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BRASIL et al.

(2023) Curso
Técnico em Meio Ambiente

MEMÓRIA E TRABALHO:

Trajetórias pessoais e profissionais das costureiras de Açu/RN

G. S. D. CABRAL; N. M. MELO
1. MEMÓRIA E TRABALHO: Trajetórias pessoais e profissionais das costureiras de Açu/RN:
2. Giovana Simão Damasceno Cabral; 3. Natália Maximo e Melo
giovana.simao@academico.ifrn.edu.br; natalia.melo@ifrn.edu.br

RESUMO
Esta pesquisa apresenta um estudo sobre a memória social das costureiras na cidade de Açu-RN e tem por objetivo
compreender as suas trajetórias de vida e trabalho, para entender como elas estão inseridas na economia da costura
do município. O presente trabalho estrutura-se a partir dos conceitos da divisão sexual do trabalho e da memória
coletiva. A pesquisa possui abordagem qualitativa, tendo a coleta de dados realizada através de entrevistas com cinco
costureiras da cidade de Açu-RN. Por meio da análise dos relatos, os temas da memória, das múltiplas jornadas de
trabalho e da relação com a cidade foram observados com maior recorrência. Ao final do estudo, tornou-se evidente
a importância de promover visibilidade para as costureiras domésticas e seus saberes, pois seus trabalhos e
ensinamentos perpassam gerações e integram o patrimônio cultural e social do município de Açu/RN
PALAVRAS-CHAVE: Memória; Costureiras; Trabalhadoras; Relatos.

TITULO EM INGLÊS
ABSTRACT
alinhamento de parágrafo justificado, sem recuos à
O abstract do trabalho será precedido pelo subtítulo
direita ou à esquerda e com espaçamento entre linhas
ABSTRACT, fonte Colibri, corpo 12, maiúscula, negrito. O
SIMPLES. O resumo/abstract não excederá a primeira
texto do resumo utilizará a fonte Colibri, corpo 10,
página do artigo.

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Técnico em Meio Ambiente
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 3
2 METODOLOGIA ............................................................................................................................... 5
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES........................................................................................................... 8
3.1 Reta Industrial ............................................................................................................................................8
3.2 Overloque ...................................................................................................................................................9
3.3 Interloque .................................................................................................................................................10
3.4 Galoneira ..................................................................................................................................................11
3.5 Elastiqueira ...............................................................................................................................................11
3.6 O saber fazer costura nas memórias das costureiras ...............................................................................12
3.7 A relação das costureiras com a cidade de Açu/RN ................................................................................14
3.7 As múltiplas jornadas de trabalho das costureiras ..................................................................................15
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 16
REFERÊNCIAS................................................................................................................................. 17

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1 INTRODUÇÃO

Ao final do Século XX, foi inaugurado o conceito de Desenvolvimento Sustentável, definido


como “aquele que atende as necessidades do presente sem comprometer as gerações futuras”.
(BRUNDTLAND, 1991). Mais adiante, a noção tornou-se mais completa, com as dimensões social,
econômica e ambiental integrando o tripé da sustentabilidade (ONU, 2015). A partir desses
conceitos, a Organização das Nações Unidas elaborou a Agenda 2030, documento que prevê 17
Objetivos Para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) a serem atingidos pelos países-membros da
instituição.

Diante disso, esta pesquisa se debruça exclusivamente sobre a dimensão social, com ênfase
na figura feminina. Tendo em vista o histórico mundial da baixa representação política, das
disparidades salariais e da invisibilização do trabalho doméstico vivenciado pelas mulheres, é
importante frisar o ODS de número 51, “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as
mulheres e meninas” (ONU, 2015).

Ao longo da remota História da humanidade, a costura se apresenta como elemento


fundamental para o desenvolvimento das sociedades, seja para fins de sobrevivência ou como
atividade produtiva. No entanto, a divisão social do trabalho contemporânea tende a consagrar tal
ofício ao feminino e hereditário, perpetuando-se ao longo do tempo por meio das mulheres. Assim,
a costureira doméstica tradicional carrega consigo conhecimentos e técnicas, os quais integram a
memória social feminina, ao transmitir seus saberes para as gerações seguintes.

Apesar de a costura ser um ofício tão importante na humanidade e com potencial de


desenvolvimento social, ambiental e econômico, continua sendo vista como uma atividade de
menor valor. Por meio de levantamento bibliográfico prévio, foi constatada a concentração de
publicações de estudos sociais na capital do Rio Grande do Norte e outros estados brasileiros,
criando uma lacuna de produções interiorizadas, além da ausência de trabalhos específicos sobre
trabalhadoras costureiras no município de Açu/RN.

Assim, o presente trabalho faz-se necessário pois busca analisar as trajetórias de vida e
trabalho das costureiras na cidade de Açu/RN para entender como elas estão inseridas na economia
da costura. Este trabalho é derivado de um estudo de caso com mulheres na indústria terceirizada
do jeans, que se propunha a analisar como as operárias do setor têxtil vivenciavam a divisão sexual
do trabalho dentro e fora das fábricas na cidade de Açu/RN (MELO, 2021). Ao longo da pesquisa,

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5.4 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de
serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade
compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais. (ONU, 2015)

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tornava-se evidente o contraste entre o trabalho das costureiras de facções e aquele que se origina
no saber fazer da costureira autônoma em domicílio. Saber este que, no mundo globalizado, tomado
pelo “fast fashion” e pelas grandes corporações de moda, ainda constitui o modo de vida de milhões
de mulheres.

Para Abreu (1985 apud KAERCHER),

O trabalho em domicílio sempre acompanhou a vida das mulheres, portanto, ele não
efetivamente surgiu para suprir as necessidades do capitalismo em ascensão, mas este
último, em realidade, apropriou-se do saber tradicionalmente feminino da costura para
transformá-lo em valor de troca. (p. 35)

Para compreender tais relações, faz-se uso dos conceitos de circuitos econômicos de Santos
(1979) que conectam as dimensões global e local.

O circuito superior seria “constituído pelos bancos, comércio e indústria de exportação,


indústria urbana moderna, serviços modernos, atacadistas e transportadores” e o circuito
inferior seria constituído “por formas de fabricação não- ‘capital intensivo’, pelos serviços
não modernos fornecidos ‘a varejo’ e pelo comércio não moderno e de pequena dimensão”
(SANTOS, 1979, p. 31).

Com isso, é possível estabelecer comparativos entre os conceitos. Enquanto no circuito


superior encontra-se a mão-de-obra feminina formal, inserida nas grandes fábricas de costura
nacionais, as costureiras domésticas com produção artesanal estão inseridas no contexto local do
circuito inferior.

Diante desse contexto, a costura autônoma frequentemente sofre com a falta de


reconhecimento simbólico e monetário (HIRATA; GUIMARÃES, 2012), o que constitui um efeito
direto da divisão sexual do trabalho na sociedade. Essa divisão social conta com o princípio
hierárquico no qual o trabalho masculino “vale” mais que o da mulher (HIRATA; KERGOAT, 2007).
Segundo Hirata e Kergoat (2007):

A divisão sexual do trabalho [...] tem como características a designação prioritária dos
homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a
apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos,
religiosos, militares etc.). (p. 599)

A pesquisa parte da hipótese de que, apesar do contexto de subordinação das mulheres a


posições inferiores e desvalorização seus conhecimentos e trabalho, muitas delas encontram no
trabalho da costura sua realização e formas de superar e resistir a esses imperativos do mundo do
trabalho contemporâneo.

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A pesquisa foi realizada no município de Açu/RN. Com 58.743 habitantes estimados e área
de pouco mais de 1.300 quilômetros quadrados (IBGE, 2020), a cidade interiorana divide, com suas
costureiras, um patrimônio histórico e uma herança de cultura e saberes. Não é possível deixar de
mencionar a tradicional festa de São João Batista, repleta de figurinos artísticos, bem como as
celebrações escolares, os casamentos e aniversários da cidade. São elas, as costureiras, as
trabalhadoras que dão expressividade aos eventos por meio dos vestuários utilizados pela
população. Dessa forma, o município é um lócus adequado para se compreender os caminhos
pessoais e profissionais trilhados pelas transformações na produção da costura, e ao mesmo tempo,
na vida das costureiras.

2 METODOLOGIA

Em primeiro lugar, foi realizado um levantamento bibliográfico voltado para as áreas da


sociologia do trabalho e da antropologia, com o objetivo de adquirir conhecimentos sobre fazer
pesquisa a partir de trabalhos já publicados. Com isso, sobressaiu-se o tema da memória social, que
norteou os passos para a produção dos instrumentos de pesquisa utilizados.

De acordo com Halbwachs (2006, apud RIOS 2013), a memória não diz respeito
simplesmente a uma experiência iniciada e concluída no passado, mas sim, a algo que permanece
vivo, animando os pensamentos e ações dos indivíduos e grupos no presente. Assim, o estudo
adquiriu a prioridade de investigar a memória social das costureiras entrevistadas em Açu/RN.
Para Velho (1978, p. 128):
Embora familiaridade não seja igual a conhecimento científico, é fora de dúvida que
representa também um certo tipo de apreensão da realidade, fazendo com que as opiniões,
vivências, percepções de pessoas sem formação acadêmica ou sem pretensões científicas
possam dar valiosas contribuições para o conhecimento da vida social, de uma época, de
um grupo.

Por ser filha e neta de costureiras, a pesquisadora possuía afinidade prévia com o tema
central do estudo, o que proporcionou uma ponte entre as próprias memórias relativas à costura e
as das mulheres entrevistadas no processo, bem como uma escuta mais atenta, pois a história oral
é uma metodologia primorosa voltada à produção de narrativas como fontes do conhecimento, mas
principalmente do saber. (DELGADO, 2003).
Por isso, a pesquisa se desenvolveu por meio de uma abordagem qualitativa, além de
procedimentos majoritariamente etnográficos, uma vez que pretendia-se realizar entrevistas com

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costureiras domésticas. Segundo Gerhardt e Silveira (2009, p. 41), algumas características da
pesquisa etnográfica são:
o uso da observação participante, da entrevista intensiva e da análise de documentos; a
flexibilidade para modificar os rumos da pesquisa; a ênfase no processo, e não nos
resultados e a coleta dos dados descritivos, transcritos literalmente para a utilização no
relatório.

O estudo foi realizado na cidade de Açu/RN (figura 1) pertencente à microrregião Vale do


Açu. O município destaca-se pelas suas funções polarizadoras como centros comerciais,
abastecimento e de prestação de serviços pela estratégica localização (LOPES, 2015). Domingues e
Gontijo (2020) afirmam que “O interior carece de análises a partir das situações e dos contextos
próprios, pois não está dado que a experiência urbana é uniforme e singular” (p. 63). Tal
característica pode ser observada ao longo da pesquisa etnográfica. No decorrer do estudo, a cidade
teve seus principais bairros percorridos pela pesquisadora a fim de ir ao encontro das costureiras.
Sendo eles: Bela Vista, Frutilândia, Janduís e Vertentes.

Figura 1: mapa de localização do município de Açu/RN

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O estudo ocorreu entre abril de 2022 e novembro de mesmo ano, sendo a pesquisa em
campo efetuada a partir do mês de junho. Durante o período citado, houve a estruturação de um
roteiro de perguntas a serem feitas às costureiras com temas ligados aos âmbitos pessoal e
profissional. As entrevistadas tinham suas falas gravadas presencialmente, com consentimento
prévio, por meio de um aplicativo de celular e, posteriormente, seus conteúdos eram transcritos
para análises.
Ao todo, manteve-se contato com 5 costureiras, denominadas neste texto por diferentes
tipos de máquinas de costura: Reta Industrial, Overloque, Interloque, Galoneira e Elastiqueira. Os
contatos foram obtidos por indicações de conhecidos e parentes da pesquisadora. Após todas as
entrevistas, montou-se um quadro para caracterização socioeconômica (quadro 1) das
entrevistadas, uma vez que se constatou realidades singulares para cada costureira.
Por fim, a análise de conteúdo das entrevistas se deu por meio da identificação de seleção e
comparação de temas recorrentes nas falas de todas as entrevistadas.

Quadro 1: Caracterização socioeconômica das costureiras

Nome Reta Industrial Overloque Interloque Galoneira Elastiqueira

Naturalidade Santo Açu/RN Açu/RN Açu/RN Areia


Antônio/RN branca/RN

Idade 56 57 60 59 33

Estado civil casada solteira divorciada solteira casada

Filhos dois homens um homem três mulheres e duas mulheres dois meninos
um homem

Escolaridade ensino médio ensino médio ensino ensino médio ensino médio
completo completo fundamental completo completo
completo

Curso superior contabilidade ciências não possui não possui técnica em


econômicas enfermagem,
graduando em
fisioterapia

Tempo na 40 anos 40 anos 42 anos 39 anos 21 anos


profissão

Fonte: Autoria própria

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3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
A seguir, serão apresentadas brevemente as trajetórias das trabalhadoras entrevistadas
levando em conta seus relatos. Em seguida, serão feitas análises sociológicas baseadas nos temas
mais recorrentes nas falas das entrevistadas.

3.1 Reta Industrial


"É mais difícil fazer um vestido de quadrilha? É, mas eu me apaixonei por essas fantasias.”

Reta é costureira há 4 décadas e convive desde pequena com a arte, quando observava e
auxiliava sua mãe na máquina de costura para sustentar a família. Aos 14 anos, teve o primeiro e
único emprego como caixa de supermercado, aos 16, já costurava peças completas sozinha.
Concluiu o ensino médio como técnica em contabilidade, porém, rapidamente dedicou-se a
conquistar seu espaço dentre as costureiras da cidade. Durante boa parte de sua jornada
profissional, as roupas de Dona Reta estiveram presentes em muitos aniversários, casamentos e
outros eventos em Açu/RN. Porém, atualmente sua produção e clientela são voltados
exclusivamente para figurinos, especialmente para os das quadrilhas, apresentações de dança
tradicionais na região Nordeste. Em sua residência no bairro Bela Vista, encontra-se seu ateliê
(figura 2) e todo o aparato de fantasias prontas (figura 3) da interlocutora, que os têm, junto aos
clientes, como companhia diária. Seu marido trabalha fora da cidade e passa longos períodos fora
de casa. Em seu relato, Dona Reta destaca a proximidade que tem com suas irmãs, seja pela ajuda
em épocas de maior movimento, seja para passar os finais de semana e momentos de lazer.
Figura 2: Ateliê da entrevistada Dona Reta

Fonte: Autoria Própria

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Figura 3: Fantasias produzidas pela costureira Reta

Fonte: Autoria Própria

3.2 Overloque
"Causa dor, mas é muito gratificante.”

Em uma rua estreita e recuada do bairro Vertentes, vive a costureira Overloque, que em seu
relato evidencia as diversas nuances pertencentes ao mundo da costura. Durante a infância e
adolescência, recebeu da mãe costureira os conhecimentos iniciais da sua profissão. Formada em
Ciências Econômicas pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, nunca chegou a atuar na
área, tendo trabalhado por 18 anos em uma empresa de cerâmicas no município de Itajá/RN. Mãe
solteira, a gravidez de seu filho e a demissão vieram na mesma época, o que a levou a buscar a
especialização em Corte e Costura, oferecida pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE). Alternando entre a conversa e o carinho aos seus 3 gatos, Overloque comprova
seus conhecimentos em tendências de moda, modelagem e percentual de elasticidade dos tecidos
a partir da sua mais recente criação (figura 4). Atualmente, os anos convivendo com a tendinite as
dores nas costas a fazem ansiar pela sua aposentadoria como costureira autônoma. Em um dado
momento da entrevista, a interlocutora faz uma diferenciação entre a costureira autônoma e a
operária de máquina: “as mulheres que trabalham de facções, eu digo que elas não sabem nada de costura.
Porque, se ela faz um bolso de short, ela sempre vai continuar fazendo aquele bolso de short.” (OVERLOQUE,
57 anos, entrevistada em 29/06/2022)

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Figura 4: Modelo recém finalizado pela costureira Overloque.

Fonte: Autoria Própria

3.3 Interloque

"Esse meu carro, o ateliê, a reforma da casa, tudo foi [conseguido] só com a costura.”

Costureira renomada em toda a cidade, com clientela antiga e fiel, Interloque é uma mulher
de poucas palavras, mas com uma história de superação. Aos 11 anos, ensinada por uma tia, já
costurava vestidos sozinha. Aos 18 anos, casou-se e teve a primeira filha. Apesar do grande desejo
de ingressar no ensino superior, seu marido a proibia, permitindo apenas que fizesse o curso de
Corte e Costura do SEBRAE. Antes da costura, conseguia sua renda com trabalhos de manicure e
crochê. Hoje, Interloque é divorciada e vive sozinha em sua casa na última rua do bairro Janduís,
recebendo frequentemente as visitas de suas netas e filhos, dentre os quais há a terceira costureira

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da família, que já acumula o saber fazer de duas gerações. Em casa, Interloque possui retratos de
suas muitas viagens ao exterior espalhados pelos cômodos e, em sua fala, atribuí todas as conquistas
ao seu trabalho no ateliê.

3.4 Galoneira

"Eu tenho clientes adultas aqui, que chegaram pra mim bebês.”

Caminhando e conhecendo as numerosas ruas do Frutilândia (figura 3), bairro mais populoso
da cidade, a pesquisadora encontrou, em uma via estreita e sem calçamento, a residência da
penúltima entrevistada: Dona Galoneira. Com um relato intimista, Dona Galoneira mostra como a
costura a perseguiu em suas diferentes trajetórias, até o presente momento. Após a infância na qual
sua mãe a repassou todo o seu saber fazer, Galoneira tomou a costura como fonte de renda desde
a juventude. Ao terminar o ensino médio, teve a primeira de duas filhas, mas nunca se casou.
Durante 15 anos sua vida profissional, marcada por instabilidade, teve um único objetivo: criar as
duas filhas. Trabalhou para costureiras mais antigas da cidade, para uma fábrica de costura,
atualmente fechada, bem como autônoma nas cidades de São Paulo/SP e Natal/RN, onde tem
parentes. Porém, a entrevistada considera a volta para a cidade natal o ponto de virada para criar
sua própria clientela. Atualmente, tendo a filha mais velha como costureira auxiliar, Dona Galoneira
se vê como um diferencial entre as colegas de profissão, sendo referenciada quando se trata de
peças complexas ou delicadas. Devido à sua demanda constante, a frase “eu não tenho tempo” é
recorrente na fala da interlocutora, que comenta sobre sua vida social nula, a ansiedade que a
impede de realizar intervalos de descanso entre as encomendas e a pouca integração que possui
com a própria cidade, como evidencia ao contar que sai de casa apenas para os supermercados e
bancos. Na ocasião da entrevista, a pesquisadora descobriu que sua própria avó costurou o vestido
de casamento de Galoneira.

3.4 Elastiqueira

"Eu imagino a peça na minha cabeça e é como se ela se


desmontasse para eu fazer.”

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Representando o ponto fora da curva para a pesquisa, a última entrevistada difere das
demais não só na faixa etária, mas também na trajetória profissional e relação com o saber fazer
costura. Quando criança, Elastiqueira manuseava a máquina de costura da mãe sem o seu
consentimento, aprendendo aos poucos a costurar roupas para suas bonecas. Ainda na juventude,
a entrevistada estabeleceu o investimento em um ateliê de alta costura como seu objetivo, usando
as rendas de empregos temporários como recepcionista e caixa de supermercado para aprimorar
seu negócio e seus conhecimentos técnicos. À algumas ruas de distância da entrevistada Galoneira,
encontra-se a última casa visitada, que possui não só o ateliê, como a sala de estética de cílios e
sobrancelhas de Elastiqueira, nascido durante a Pandemia da Covid-19, como forma de sua
“reinvenção”, juntamente com a marca “Lady Petit” de alta costura. No momento em que a
pesquisa se realiza, a interlocutora conduz sua graduação em fisioterapia, que irá se juntar
posteriormente ao seu curso técnico em enfermagem. Em meio a costura e aos estudos
profissionalizantes, a maternidade chegou para Elastiqueira. No entanto, nenhuma de suas duas
gestações freou seu ritmo frenético na costura e nos estudos.

3.5 O saber fazer costura nas memórias das costureiras

Segundo Halbwachs (2006, apud RIOS, 2013, p. 4), a memória é um fenômeno coletivo, isto
é, necessita de um mínimo de concordância entre as lembranças dos indivíduos para que elas
possam se complementar, formando um patrimônio comum de recordações. No entanto, Pollak
(1992, apud RIOS, 2013, p. 8) afirma que o indivíduo constrói suas próprias recordações,
participando, dessa forma, da memória dos grupos. Visto isso, o presente trabalho buscou tanto as
singularidades quanto as semelhanças entre os relatos das costureiras entrevistadas. Assim, os
primeiros contatos com a máquina de costura, as inspirações de moda e as observações quanto ao
cenário atual da costura em Açu/RN foram alguns dos questionamentos feitos às interlocutoras.

Para Reta Industrial, seus primeiros anos na profissão foram marcados pela bagunça dos
tecidos, linhas e aviamentos em uma sala pequena. Ao decidir mudar de ramo, o trabalho criativo
foi o que a atraiu. Ela conta que suas primeiras fantasias foram produzidas e alugadas para eventos
de escolas particulares do município de Açu.

Enquanto isso, a relação de Overloque com o cerzir sempre foi marcada por motivações
familiares:

Quando a gente era criança, mamãe costurava e a gente ajudava muito ela.
Hoje tem máquina pra tudo, mas naquela época ela só tinha uma máquina, então os
acabamentos eram todos na mão e eu e minhas irmãs, ajudávamos ela. Aí depois eu

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comprei umas máquinas, quando eu ainda trabalhava na cerâmica, para fazer
roupas pra mim mesmo. Eu decidi ser costureira pra valer quando eu tive meu
menino, uns 17 anos atrás. Eu não queria mais trabalhar fora por causa dele né, uma
criança pequena. (OVERLOQUE, 57 anos, entrevistada em 29/06/22)

Já Elastiqueira, em seu relato, conta que desde muito jovem se interessava pela máquina de
sua mãe, porém seu saber-fazer foi construído por conta própria.

Eu comecei a pegar nas máquinas com nove anos, minha mãe costura, só
que ela nunca quis que eu mexesse nas máquinas dela. Então, quando ela saía de
casa, eu ia mexer, quando ela chegava a máquina estava desmantelada, aí ela sabia
que eu estava tentando aprender. Até que ela comprou uma máquina mais nova e
me deu a velha, aí eu comecei a fazer roupas de bonecas. (ELASTIQUEIRA, 33 anos,
entrevistada em 30/09/22)

Quando questionadas sobre inspirações de modelos e combinações de cores, as respostas


variaram, passando pelo aplicativo Pinterest, utilizado pela costureira Galoneira, eventos da alta
costura e revistas de moda, muito populares até o final da década de 2010.

Tinha revistas, a Moda Moldes e a Manequim eram muito faladas. Os


clientes já queriam a roupa da revista, então todo mês tinha que comprar essas.
(RETA, 56 anos, entrevistada em 28/06/22)

Eu acompanho tendências. Por exemplo, a cada coleção que lança, tipo a São
Paulo fashion week, a gente vê quais são os materiais que vão usar, as cores daquela
coleção… (OVERLOQUE, 57 anos, entrevistada em 29/06/22)

Por fim, apenas três das interlocutoras fizeram comentários acerca de suas posições na
economia da costura em que estão inseridas, além de opinarem sobre a situação atual da costura
tradicional domiciliar. Para Overloque, seus momentos de descanso são aqueles em que “o ateliê a
chama” para voltar ao trabalho.

[a profissão] tá apagada…na verdade hoje em dia a gente vê que as fábricas


estão crescendo muito né, a indústria da moda não para. Então eu me vejo como um
diferencial, a gente sabe que a costura de facção é uma costura que tem muitas
regras, uma coisa muito robótica. Então quando você faz uma peça do zero, exclusiva
pra uma pessoa, é uma outra costura. (ELASTIQUEIRA, 33 anos, entrevistada em
30/09/22)

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3.6 A relação das costureiras com a cidade de Açu/RN

Segundo Pollak (1992, apud RIOS, 2013), as memórias incluem sempre três elementos:
acontecimentos, pessoas e lugares. Ou seja, o lugar exerce influência sobre o indivíduo, que por
sua vez, cria memórias com base no ambiente em que vive. A ampliação e o crescente
desenvolvimento das cidades representam um amplo desafio aos serviços básicos de saneamento
e infraestrutura (ZIONI, 2005 apud LOPES, 2015, p. 52). Durante o período das entrevistas, observou-
se que a moradia afastada do centro da cidade e a precariedade dos serviços de saneamento e
asfalto (figura 9) nos bairros foram comuns à todas as costureiras.

Durante o desenvolvimento da pesquisa, foram constatadas diferentes relações entre as


costureiras e o município de Açu/RN, o que culminou em uma análise mais aprofundada acerca dos
caminhos trilhados pelas interlocutoras na cidade, bem como suas percepções socioambientais
sobre os locais em que vivem.

Quando questionadas sobre os locais mais frequentados e atividades de lazer realizadas na


cidade, as respostas variavam entre supermercados, igrejas e a tradicional festa de São João Batista.
Já ao serem indagadas sobre os bairros, três entrevistadas afirmaram que mudariam de localidade
no futuro. Algumas interlocutoras relataram sobre os motivos de mudança para a cidade de Açu:
Enquanto Elastiqueira e seus pais mudaram-se por influência dos irmãos mais velhos, Reta vivia em
um sítio em Santo Antônio/RN, porém o trabalho na agricultura de seu pai trouxe a sua família para
a cidade.

Eu não saio muito, quando eu vou é ao supermercado, às vezes dou uma


passadinha no armarinho, mas aqui não tem muita opção nem de aviamento nem
de tecido sabe? (GALONEIRA, 59 anos, entrevistada em 29/09/22)

A melhor época pra sair aqui é o São João, eu fazia uma roupa pra mim de
manhã e de noite saia com ela, ai assim, nos finais de semana eu vou sempre nessa
igreja aqui do bairro também. (OVERLOQUE, 57 anos, entrevistada em 29/06/22)

na época de eleição eles [políticos] iniciam e terminam os fuzuês deles aqui,


mas não dão muita atenção aos serviços não. Pode ver pela nossa rua mesmo, o
estado. (GALONEIRA, 59 anos, entrevistada em 29/09/22)

Tenho origem lá de Santo Antônio/RN, aí eu vim aqui pra Açu com 8 anos de
idade, mas sempre morei em sítio, meu pai vivia disso. Quando eu me casei foi que
vim morar nessa casa. (RETA, 56 anos, entrevistada em 28/06/22)

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Figura 5: Esgoto a céu aberto na rua onde mora a costureira Galoneira

Fonte: autoria própria

3.7 As múltiplas jornadas de trabalho das costureiras

Conforme foi exposto na introdução, a divisão sexual do trabalho designa ao serviço das
mulheres não só a própria costura, mas também a manutenção do lar e do núcleo familiar, criando,
no caso da costureira domiciliar, uma relação de interdependência entre o trabalho profissional e o
doméstico e não remunerado.

Para apurar os efeitos da divisão sexual do trabalho na vida das interlocutoras, estas foram
indagadas sobre suas rotinas, períodos de maior movimento e problemas de saúde acarretados
pelas funções desempenhadas. Em seu relato, Reta comenta sobre sua irmã, também costureira,
que a ajuda rotineiramente no ateliê. Menciona também os pequenos alinhavos feitos por seu
marido, quando as encomendas são muitas.

Para Elastiqueira, que se divide entre o ateliê, a maternidade e os estudos, a resposta veio
acompanhada de uma reflexão:

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Passei minhas duas gestações em períodos de enorme demanda. Uma
semana antes do meu primeiro filho, estava terminando muitas encomendas. Eles se
criam no meio dos tecidos mesmo. Trabalhar em casa acaba sendo uma faca de dois
gumes, eu não tenho hora para parar, só começar. Sempre passei madrugadas e
madrugadas trabalhando para dar conta de tudo. (ELASTIQUEIRA, 33 anos,
entrevistada em 30/09/22)

Questionadas sobre problemas de saúde, as dores na coluna foram unanimes às cinco


entrevistadas. O trabalho repetitivo acarretou em tendinite para Overloque, que convive com as
crises inflamatórias há 4 anos. Já Interloque conta que já desenvolveu infecção urinária, devido aos
longos períodos sentada no ateliê.

Para Melo (2022), sustentadas por uma ideologia do empreendedorismo, mulheres


conciliam trabalho doméstico com trabalho produtivo reforçando, assim, a divisão sexual do
trabalho tradicional. Analisando os relatos, foram encontradas semelhanças acerca das condições
de trabalho das costureiras, com a sobrecarga de serviços, viradas de madrugadas e dificuldade em
conciliar demanda e descanso sendo comuns a todas as entrevistadas. Percebe-se ainda, a
normalização das problemáticas citadas, tidas por parte das interlocutoras como características
próprias da profissão.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao produzirem peças únicas que compõem aniversários, casamentos, formaturas, quadrilhas e
festas, as costureiras tecem suas próprias histórias e participam ativamente das histórias de outras
mulheres. Ao longo de gerações, recebem e passam adiante para filhas e até mesmo netas a
aprendizagem referente ao corte e a costura, mantendo viva uma tradição feminina milenar.
A partir da memória expressa em relatos de vida das mulheres, o presente trabalho pôde
compreender e dar voz às diferentes configurações de trabalho, as relações com a cidade e aos
saberes do mundo da costura domiciliar. Nas falas de cada entrevistada, foi possível identificar a
costura como a emancipação, o ofício que possibilitou e possibilita a criação de seus filhos, a
obtenção de bens próprios e todo o tipo de realizações pessoais.
No mundo globalizado, o artesanato vem perdendo cada vez mais espaço para os produtos
industrializados. Tal transformação afeta diretamente a costura domiciliar, atividade tradicional,
assim como as costureiras, que percebem a perda de interesse em sua profissão pelas gerações
atuais de mulheres. Essa nova configuração de trabalho se dá pela invasão do circuito superior da
economia, ao qual pertence a indústria têxtil e as facções de costura, no circuito inferior, que abarca
as produções locais e em menor escala, onde se encontram as costureiras domésticas.
A costura tradicional está enraizada no município de Açu/RN, lócus da pesquisa, não só pela
expressividade das costureiras, que produzem de fantasias à alta costura, mas também por suas
tradições festivas, que favorecem a permanência do ofício, mesmo em um cenário de “falecimento”,
conforme a interlocutora Galoneira. A cidade e seus bairros são o palco para as vivências de cada
costureira, que construíram suas famílias, frequentam as Igrejas, os parques, os armarinhos e as

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lojas de tecido presentes no local. Com isso, verifica-se a importância de se pensar a cidade no
desenvolvimento das memórias femininas.
Por fim, estudando a memória de cinco costureiras, foram encontradas dinâmicas de vida e
trabalho similares e únicas ao mesmo tempo, vinculadas pela feminilidade e hereditariedade
intrínsecas ao ofício da costura. Em cada entrevista, a pesquisadora conheceu histórias relativas à
sua própria avó, costureira antiga e conhecida por toda a cidade de Açu/RN, encontrando, a partir
das interlocutoras, fragmentos individuais que constituem a memória coletiva da costura.

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