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A História de Cordelen
Esta história é parte da série O Amante do Tritão. Recomenda-se a leitura de Noite de Despertar antes
da leitura deste livro.
Capa:
© 123rf / gleb TV
© Flickr / Taro Taylor
Design da capa:
R. B. Mutty
Os modelos da capa são meramente ilustrativos e não correspondem a nenhum personagem da história.
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Sumário
Sumário
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Epílogo
Glossário
Conheça os livros da série O Amante do Tritão
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Obrigada por ler este livro!
Capítulo 01
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Não havia grandes luxos na casa da Vitanen, era apenas outro casebre
marrom e castigado pelos ventos arenosos, mas ainda assim era um lar, e ela
com certeza não se importaria que eu morasse ali em sua ausência.
Há tempos eu não dormia tanto. Acordei me sentindo revigorado embora
não tenha sido uma noite tranquila. A sensibilidade da minha pele encontrava
agonia nos menores atritos. A palha do colchão, o algodão da minha túnica,
tudo eletrizava meus pelos e alterava a minha respiração.
Aquele desconforto não era nada perto do convívio com o papai, ainda
assim eu me apressei ao templo ansioso por algumas respostas.
O templo parecia ainda mais deserto naquela manhã. O pastor Klein
recitava as palavras do chamado para quatro ou cinco discípulos, entre eles o
Maron, que parecia concentrado em sua meditação.
Aliviado em vê-lo bem, eu me aproximei do grupo. Então alguém atrás de
mim segurou minha mão, causando espasmos elétricos que me fizeram
gemer.
“Nossa, já está sensível assim?” O pastor Enan soltou a minha mão,
sorrindo encabulado.
Eu escondi as mãos nas costas e endireitei os ombros.
“É apenas efeito colateral do despertar. O chamado amplia o desconforto
para que a concepção seja entendida como um alívio.” Falei.
“Vejo que alguém estudou bem a teoria.” Pastor Enan sorriu
travessamente. “Conseguiu dormir bem?”
“O problema se resolverá com a chegada do alfa, agradeço sua
preocupação.” Eu prestei reverência e segui para a piscina, ansioso em ver
Maron e ouvir os conselhos do pastor Klein.
Pastor Enan segurou minha mão de novo, suavemente dessa vez. Ainda
assim os choques relampejaram atrás do meu pescoço.
“Posso ser jovem, Cordelen, mas administro a Piscina do Despertar há
anos. As coisas estão paradas agora, mas lá costuma ser um ponto de
encontro animado para nós ômegas. Se precisar de apoio pode contar
comigo.” Ele deu uma piscadinha de cumplicidade.
Eu o ignorei e entrei na Piscina da Salvação, um tanto indignado. Todos
os tritões passavam pelo despertar, era ridículo deduzir que eu precisava de
ajuda em uma situação tão trivial.
Maron me cumprimentou educadamente.
“Você entrou em alguma piscina antes dessa?” Maron me perguntou.
“Seu rosto está todo vermelho.”
Eu balancei a cabeça em negação e dobrei minha cauda em pose de
meditar.
Tão calor. A névoa escaldante grudava no meu rosto sensível, e as bolhas
de fervor deslizavam no sulco das minhas costas como milhões de insetos
elétricos. A água em si era fogo. Tudo era fogo.
“Cordelen! Cordelen, meu jovem, você está bem?”
Alguém agitava meus ombros. Era o pastor Klein, sua imagem toda
distorcida em meio ao vapor.
“O que houve?” Perguntei, notando que estava deitado nos bancos de sal.
Os outros devotos me assistiam curiosos e trocando risadinhas, um deles
cobrindo os olhos do Maron.
“Pensei que o pastor Enan conversaria com você.” Pastor Klein desviou o
olhar, muito vermelho. “Está dispensado dos rituais pelo resto da semana,
quero que cuide da sua saúde.”
Eu apertei os olhos, enfim recuperando a nitidez da minha visão. Havia
algo na minha túnica. Aliás… sob a minha túnica. Uma coisa comprida
apontada pra cima.
Meu rosto ardeu de vexame e eu dobrei o corpo, morto de vergonha.
Após uma rápida despedida eu disparei correndo até a Piscina do Despertar,
enquanto o pastor Klein tentava acalmar a risada dos outros discípulos.
****
“Não precisa chorar. Acontece com todo mundo.” Pastor Enan segurava o
riso enquanto vasculhava um baú atrás de sua piscina.
“Não estou chorando, estou aborrecido!” Falei, ainda tremendo. “Se é tão
normal não deveriam rir.”
Pastor Enan sorriu ao encontrar alguma coisa. Ele puxou um longo tecido
branco que logo reconheci como uma túnica de devoto, só que aquela era
diferente. O tecido era grosso e parecia muito pesado, especialmente na parte
da saia. Ele entregou a longa roupa nos meus braços e eu quase cedi os
joelhos com o peso.
“O que é isso?” Perguntei, lembrando de já ter visto outros devotos
usando.
“Uma túnica para novos-adultos. O peso deve esconder certas reações e
você poderá continuar frequentando espaços públicos. Além disso, o couro de
beluga é mais liso que sua túnica de algodão e deve incomodar menos a
pele.”
“Obrigado.” Falei, envergonhado. “Então é isso? Eu devo apenas
aguentar até a chegada do alfa?”
Pastor Enan sentou em um banquinho à beira da piscina borbulhante. Ele
deu bateu no lugar ao seu lado para que eu sentasse e eu obedeci.
“Esse tal de Yoshan partiu de Egarikena, certo? Nadando rápido ele deve
demorar em torno de vinte luas, talvez mais. Velocidade não é o forte dos
Amalonas.”
“Vinte luas não parece muito.”
“Por enquanto não.” Pastor Enan riu. “O desconforto ainda aumentará
muito. Lembro quando predestinei com o Kayman e aquele lerdo me fez
esperar trinta e seis luas. Acredita que ele se perdeu nos Recifes de
Crestman? Quando ele chegou eu fervia mais que o Vulcão Tárnacos, quase
morri.”
Eu arregalei os olhos, assustado.
“É possível morrer esperando?”
“Não, não, é modo de dizer.” Pastor Enan riu e apertou meu ombro, mas
um gemido meu o fez afastar rápido. “Desculpa. Ah, é só que são boas
memórias.”
Eu olhei para a túnica em meus braços, sem saber o que falar. Como um
sofrimento desses podia trazer boas memórias? Pastor Enan pertencia a outro
tritão, um Kampango das forjas a céu aberto. Ele pariu seu primeiro filho e
em breve seu corpo conseguiria gerar o próximo. Pastor Enan era um objeto
de reprodução como qualquer outro ômega, o que havia de bom em uma vida
assim?
Pastor Enan olhou ao redor, onde havia apenas vapor, bancos de sal e
água fervente. Ele sorriu pra mim e subiu a barra da minha túnica,
travessamente.
“Levanta, deixa eu ver isso. Não se preocupa, nenhum alfa vai aparecer.”
Quê? Aquilo me envergonhava profundamente, mas acabei obedecendo e
deixei que o pastor tirasse a minha roupa por cima do pescoço.
Pela primeira vez olhei diretamente o volume entre as minhas pernas e
quase gritei de pânico. Era muito grande. Eu tentei segurar a ponta e o pastor
bateu na minha mão.
“Se controla, pode brincar quando estiver sozinho em casa.” Disse ele,
enquanto me ajudava com a túnica pesada. “Antigamente os ômegas devotos
eram proibidos de retirar esse trambolho, mas em que tempo vivemos, não é
mesmo? Esperar é muito chato sem um pouquinho de diversão.”
O tecido pesou nos meus ombros, me fazendo soltar o ar de uma só vez.
“Perdão, pastor Enan, receio não ter entendido nada. Como assim,
diversão?”
Pastor Enan sorriu como se estivesse aguardando exatamente aquela
pergunta. Ele correu ao seu baú e pouco depois voltou com uma… pedra
comprida.
Minha confusão só aumentava a cada segundo.
“Ahn…” Gaguejei, enquanto o pastor balançava a pedra diante de mim.
Havia uma grande semelhança no formato dela com o… meu formato lá de
baixo. Exceto que a pedra era muito maior e mais grossa.
“Posso explicar como funciona, mas seus hormônios de ômega ainda
estão florescendo. Em poucos dias você entenderá sozinho.” Ele colocou a
pedra nas minhas mãos. “Por favor lave direitinho antes de me devolver.”
“…O…ok.” Respondi, me sentindo realmente burro.
Pastor Enan afagou meu cabelo. Seu sorriso tornou-se mais calmo e
sincero, quase triste.
“Eu sei que é difícil, especialmente depois do que aconteceu com seu
irmão mais velho. Mas acredite quando eu digo que existem alfas bons.
Yoshan Amalona será alguém maravilhoso.”
Eu sorri ao pastor e me levantei, prestando uma reverência em despedida.
“Agradeço suas palavras, pastor Enan, mas neste momento um tritão está
atravessando os mares para subjugar o meu corpo e se reproduzir às minhas
custas. Ninguém com tal objetivo pode ser considerado bom.”
E deixando para trás um pastor completamente emudecido, eu parti do
templo em direção ao oceano, onde planejava fazer minha primeira refeição
decente em muitos meses.
****
<<Verdade, verdade. Tá bom. Falo com você amanhã, que vai ser hoje
pra mim, eu acho, certo? Ou de noite vai ser dia? Não vou nem dormir, só
nadar muito até chegar na sua porta. Quero te ver logo, ahh!>>
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****
<<Ah, você sentiu isso? Tem tipo, um vulcão gigante na minha frente,
soltando uma fumaça cinza. Me diz que é o vulcão certo. Minha cauda dói, eu
não aguento mais nadar.>>
Yoshan Amalona avançou pela areia até sua cauda tornar-se um par de
pernas fortes e de passos confiantes, cobertas apenas por uma canguinha lilás.
A cada passo suas muitas joias tilintavam umas nas outras. Anéis, pulseiras e
colares dourados, vários deles com pedrarias coloridas… nosso encontro no
despertar revelava apenas nossas almas, então me espantei com tamanha
vaidade.
O que mais me surpreendia, porém, era o cheiro. Um aroma indescritível,
mas tão potente que eu estremeci e precisei cobrir o colo com as mãos.
Aquela túnica de algodão nunca esconderia as reações horríveis do meu
corpo.
Yoshan não percebeu meu embaraço e nem tentou dizer nada. Ele
avançou em mim como um tubarão e me abraçou, suas mãos descendo rápido
das minhas costas para a minha bunda. Ele lambeu o meu pescoço.
“Consegui te encontrar.” Arfou ele, grudando nossos corpos com força.
“Meu ômega… você cheira tão bem…”
Eu queria gritar e sair correndo. Ainda estávamos na ponta da praia, à
vista de todo mundo. Eu não queria aquele cara em mim. Aliás, eu queria,
mas eu não queria querer.
Socorro, o que estava acontecendo?
Ignorando meu pânico, Yoshan passeou as mãos pelos meus quadris,
apalpou meu peito e tocou meu rosto. Seus lábios subiram do meu pescoço
aos meus lábios e ele tentou me beijar. Eu virei o rosto antes que conseguisse.
“D-devagar.” Pedi, estremecendo por diversos motivos. “N-não aqui, eu
suplico.”
Yoshan afastou o rosto, seus olhos verde-e-lilás iridescendo em confusão.
Ele avermelhou muito e soltou as mãos da minha bunda.
“Ah, desculpa! Isso foi, tipo, meio demais, né? Eu só… ahm… deu uma
vontade… eu não sei.” Ele curvou o corpo em uma reverência exagerada,
tilintando suas pedrarias. “Muito prazer, sou Yoshan Amalona.”
“Já conheço o seu nome.” Eu me mantive parado, embora tudo em mim
gritasse pra sair correndo. O embaraço no rosto daquele cara acabou me
relaxando um pouquinho. “Você reagiu ao meu cheiro. É normal que queira
se esfregar em mim.”
“Foi mal.” Ele bagunçou seus cabelos, espetando-os como uma juba. “E
então, como a coisa funciona? Eu tenho um cheiro loucão pra você também?
Porque pode se esfregar em mim, também. Vai ser super gostoso.”
Eu apertei os lábios, terrivelmente confuso e atordoado. Meu pescoço
ainda estava babado pela lambida daquele piradão de sorriso gigante, e eu
odiava perceber que gostava disso. Até mesmo o convite para me esfregar era
tentador, e isso era inaceitável.
Por trás daquela expressão inocente havia um tritão com o poder de
controlar e destruir minha vida. Eu não podia me esquecer disso.
“Precisamos realizar a consumação do vínculo.” Falei.
“Isso parece tão divertido. Onde vai acontecer? Tudo bem se for agora? E
eu quero taaanto segurar sua mão, seus dedos parecem tão macios. Aquele
vulcão é de verdade?”
Eu revirei os olhos e segurei o braço daquele cara. Não que eu quisesse
agradar ele, mas precisava puxá-lo para longe da praia pública. Me aliviava
que ele não fosse me dominar na frente de todo mundo então se eu podia
escolher o lugar, que fosse em um espaço bem privativo.
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“Aaaah! Olha só pra isso! Dá pra ver tudo daqui de cima!” Yoshan
pendurou-se para fora da janela, admirando as muitas casas da ilha e também
o oceano logo adiante. “Venha ver, Cor! Dá pra avistar um pouquinho da
fumaça de Tárnacos, lá no fundo.”
Eu segurei meu predestinado pelos quadris, temendo que ele caísse lá
embaixo onde os humanos eram apenas pontinhos. E nem pensar que eu me
aproximaria da janela mais do que isso. Ainda não compreendia como aquele
tal elevador nos transportou para aquele ambiente.
Yoshan entendeu errado a minha agarrada, porque desceu da janela e
virou de frente pra mim, também abraçando os meus quadris magros.
“Você gostou daqui?” Ele perguntou.
Eu olhei ao redor e analisei com calma aquele lugar. Era um quarto
pequeno e muito bem decorado, com paredes coloridas e pinturas, mas a
única mobília que eu conhecia por nome era a cama. E era uma cama enorme.
“Lembra as hospedagens que tritões das profundezas utilizam nos
períodos de reprodução.” Falei.
“É, a premissa é quase a mesma, mas pelo que Clyon disse tem muitos
brinquedos interessantes. Olha isso.”
Yoshan pegou uma caixinha preta e comprida e apertou alguma coisa. O
retângulo escuro na parede acendeu em diversas luzes coloridas, fazendo um
som alto enquanto mostrava pequenos humanos.
Eu arregalei os olhos, horrorizado enquanto Yoshan se divertia
imensamente. Ele parecia tão feliz que eu tentei conter minha desconfiança,
mas tudo era tão esquisito.
“Olha, isso se chama show de música pop! Ou será que é um programa de
culinária? O príncipe Clyon falou de tantos programas de TV que já não
lembro.”
Yoshan deitou na cama e continuou apertando a caixinha, fazendo o som
e a imagem mudarem constantemente. Eu nem imaginava como ele
conseguiu aquele espaço para nós, porque humanos eram conhecidos por
trocarem papéis coloridos e possuíam um comércio avançado. Mas pelo anel
de esmeralda faltando no dedo do Yoshan, logo deduzi como ele conseguiu
pagar.
Eu tentei relaxar apesar de tantas novidades me sobrecarregando.
Precisava respeitar as escolhas do meu alfa e aceitar que minha vidinha
simples nunca voltaria. Nada nunca voltaria. Nem as coisas boas, nem as
coisas ruins.
“Você ainda está aborrecido.” Yoshan apertou algo que desligou o painel.
Ele me chamou com a mão para que eu deitasse ao seu lado. “Venha aqui.”
Eu engatinhei até ele, surpreso com o quanto aquele colchão era macio e
os lençóis suaves. Quando me aproximei o suficiente Yoshan me puxou pelo
braço para cima dele e beijou minha boca.
Apesar dos meus receios, eu tive sincero prazer em devolver o beijo,
relaxando meu corpo sobre o dele e permitindo que Yoshan me desse
conforto.
Enroscando minhas pernas nas dele, eu aguardei que meu alfa arrancasse
minha túnica e dominasse meu corpo, e de certa forma Yoshan fez isso,
deslizando as mãos pelas minhas costas, afagando o meu pescoço, apertando
meus ombros em uma massagem gostosa enquanto provava meus beijos. Mas
por algum motivo eu não me sentia explorado de forma alguma. Eu até
desejava mais.
Yoshan afastou os lábios para respirar e eu continuei beijando seu rosto e
seu pescoço. Ele acariciou atrás do meu cabelo e me fez erguer o olhar ao
dele.
“Algum problema com o meu cabelo?” Perguntei.
“É deslumbrante. Tão longo quanto o do Digníssimo Oráculo.”
“Acho que é essa a intenção. A maioria do tritões do templo usa cabelo
longo.” Eu puxei uma mecha para observar, embora nunca tivesse prestado
muita atenção. “O pastor Klein considera uma homenagem ao Oráculo, mas
eu apenas segui as tradições locais.”
“Você não gosta muito dele, não é mesmo?” Yoshan franziu a testa. “Do
Digníssimo Oráculo.”
Eu engasguei, meu coração disparando no peito. O que significava aquela
pergunta? Será que ele havia lido minha mente? Desaprovar nosso
governante era uma falta gravíssima e passível de graves consequências. E
meu predestinado era nada menos que um Amalona, o clã de informantes
cuja lealdade ao Oráculo superava qualquer outro vínculo.
Qualquer tritão com um mínimo de bom senso evitaria discussões neste
teor. Ainda assim, o olhar bicolor de Yoshan não transmitia nada além de
preocupação e tristeza por mim. Eu não podia confiar a ele meu desprezo
pelo Oráculo, mas podia ao menos lhe revelar meus motivos.
Eu suspirei e deitei ao seu lado na cama, descansando a cabeça em seu
braço.
“Meu núcleo costumava ser feliz e completo. Havia meu pai alfa Cypron,
meu pai ômega, Aishen, e os três filhos, Zarkon, eu e Maron. Não existe vida
fácil ou feliz em Tárnacos, mas as coisas eram… pacíficas, eu acho. Meus
pais se amavam e também nos amavam, e isso bastava. Então houve a
explosão.”
“Uma erupção vulcânica?” Yoshan me perguntou.
“Não, um acidente nas forjas que feriu gravemente o papai Aishen. Pai
Cypron correu com ele para o templo e o mergulhou nas águas salinas, e por
muitos sóis e luas nós rezamos ao chamado que recuperasse o papai Aishen.
Mas os ferimentos eram extensos demais, após cinco luas em agonia papai
Aishen tornou-se um com o mar.”
Eu virei o corpo e olhei as esferas de luz no teto, não querendo que as
lágrimas escapassem.
“O chamado tem seus limites, não costuma agir em venenos ou
queimaduras.” Disse Yoshan.
“Depois da morte dele, o primeiro irmão Zarkon surtou. Ele amaldiçoou o
chamado, gritou aos céus o quanto detestava a nossa vida, e nossa cultura, e
tudo o que o chamado era e representava. E o chamado… o chamado se
revoltou.”
“O que aconteceu?” Perguntou Yoshan.
“Não sabemos, mas algo deu errado quando ele despertou.” Eu sequei o
rosto, me sentindo um idiota por chorar mesmo após tanto tempo. “Zarkon
não disse o nome de seu alfa, apenas que chegaria logo. Duas luas depois,
enquanto dormíamos, ele desapareceu. Tudo o que restou foram seus gritos
de socorro, que o chamado ainda tem o prazer de entregar aos nossos ouvidos
mesmo após dois anos.”
Yoshan torceu os lábios e esperou que eu continuasse a falar, mas eu
percebia em seu olhar o quanto ele não acreditava então pra que seguir
adiante? Viver como um tritão era aceitar que toda luta era tolice.
Quando percebeu que calei, Yoshan beijou o canto do meu rosto, por
onde uma lágrima escapou. Ele me abraçou carinhosamente.
“Despedir-se dos irmãos é difícil, eu mesmo já disse adeus a dois irmãos
mais velhos, e quando despertei foi meu irmão mais novo quem disse adeus a
mim. E um dia ele também partirá com seu predestinado, porque é isso que
tritões fazem. Não sei que vozes são essas que o chamado te traz, mas para
qualquer alfa os ômegas são tesouros preciosos, tritões encantadores e lindos
capaz de gerar o milagre em seus corpos frágeis. Tenha certeza que o Zarkon
é feliz com quem quer que esteja.”
“É isso o que pensa? Que Zarkon se esqueceu de nós e que os gritos são
ilusões?” Meu sangue se aqueceu em uma breve raiva, mas aquela era uma
reação previsível de alguém que cresceu nos luxos de Egarikena. “Pelo que
entendi você também tem irmãos mais velhos e mais novos e também deve se
preocupar com eles.”
“Um pouco, mas não exatamente. Meus irmãos mais velhos agora são
preocupação de seus predestinados, da mesma forma que você é uma
preocupação minha. Eu quero te fazer feliz, Cordelen, não entendo seus
temores comigo, mas você é o meu ômega e seu sorriso é o maior dos meus
objetivos.”
“Um objetivo ainda maior que inseminar seu filho em mim?” Perguntei.
“A concepção falhou e você não está me vendo tentar de novo, está?”
Disse ele, o que me surpreendeu porque realmente era verdade. “Nós
pertencemos um ao outro, meu querido Cor. Peça o que quiser de mim,
porque a minha felicidade é realizar todos os seus desejos.”
Eu o fitei e sorri com cinismo.
“Qualquer desejo?”
“Qualquer desejo.” Yoshan concordou de imediato.
Eu subi novamente no corpo musculoso de Yoshan, admirando seu
semblante preocupado e agora levemente nervoso, de quem estranhava que
seu ômega pudesse ter um olhar tão frio. Mas como ser qualquer coisa além
de frio quando as escolhas eram tão poucas?
O sofrimento que me cercava não era uma ilusão. A única ilusão era
acreditar que eu podia ser feliz apesar do tormento que me cercava.
Sabendo disso, eu acariciei o rosto do meu Yoshan e afinei meu olhar a
ele.
“Eu desejo que você mate o meu pai.”
Yoshan arregalou os olhos e suor formou-se em sua testa. Ele abriu a
boca buscando resposta, mas o choque o petrificou.
“O quê?” Perguntou ele.
“Meu pai Cypron Trevally. Eu o quero morto, e você fará isso por mim.”
Repeti com seriedade.
Yoshan continuou estático, então seus lábios curvaram e ele começou a
rir, escorregando debaixo de mim para sentar contra o encosto da cama.
“Que brincadeira é essa, Cordelen? Não é educado testar a dedicação do
seu alfa desse jeito, sabia?”
“Não estou testando, é um pedido sério.” Falei, sentando de frente para
ele e com a expressão tão séria quanto sempre.
O sorriso de Yoshan desapareceu. Ele me fitou com o olhar sombrio e um
tanto assustado.
“Compreendo seus receios quanto ao Digníssimo Oráculo, mas ele não
poderia ter salvado seu pai ômega. Mesmo se ele chegasse a tempo, o que
seria impossível se notar meu próprio tempo de viagem, o Oráculo nada
poderia fazer. Os poderes curativos dele são apenas uma amplificação dos
poderes do chamado, que não age em queimaduras graves.” Ele sorriu de
novo e deu de ombros, tentando aliviar o clima. “Além do mais, matar tritões
é punível com a morte. Quer tanto assim se livrar de mim?”
“Não estou tramando me livrar de você, Yoshan. Os tritões de Tárnacos
vivem principalmente na terra firme, onde a vidência do Oráculo não alcança.
Se matá-lo longe do mar e esconder o corpo ninguém nunca descobrirá, e eu
serei o ômega mais agradecido, submisso e dedicado que qualquer alfa
poderia sonhar.”
Os olhos verde-e-lilás de Yoshan tremularam em medo, como se não
reconhecesse o ômega diante de si. Eu mesmo não me reconhecia. Na minha
mente todos os alfas eram cruéis e sádicos sem motivo algum, mas assim que
percebi Yoshan como alguém diferente, eu simplesmente lhe dei motivos
para agir como os alfas dos meus pesadelos.
Seria Yoshan capaz de me ferir? Muitos tritões castigariam seu parceiro
por muito menos, mas aquele era um risco que eu precisava correr. Era tarde
demais para o Zarkon, mas a vida do Maron dependia do meu sucesso.
Após algum tempo, Yoshan suspirou e baixou o olhar, dolorido e
decepcionado.
“Peço mil perdões, meu predestinado. Isso é algo que não posso fazer.”
Ele disse cada palavra como se fossem facas cravando em seu peito, então
sorriu um sorrisinho triste. “Mas tem algo que posso fazer. Posso reencontrá-
lo com seu irmão Zarkon.”
Meus olhos expandiram em espanto total.
“Ninguém sabe a localização do Zarkon. Ele sumiu dias após o despertar,
sequestrado pelo alfa.” Eu disse.
“Se ninguém viu ele sumir então este sequestro é apenas especulação,
certo? Vou mostrar que ele vive feliz nos braços de seu alfa, provavelmente
cercado de sobrinhos seus.”
“Como tem tanta certeza que ele está bem?” Perguntei, ainda chocado.
“Simples, porque o Digníssimo Oráculo é o protetor de todos os oceanos
e nunca deixaria uma injustiça acontecer.” Yoshan começou a se empolgar de
novo. “Por exemplo, quando um amigo meu nasceu de um humano, o pai alfa
dele ficou muito doente da cabeça, então o Oráculo enviou seus guardas para
salvá-los e lhes deu abrigo e tratamento na capital.”
“Ele certamente interviu porque um tritão louco em meio a humanos é um
perigo aos segredos da espécie. O Oráculo protege a espécie, não os
indivíduos.” Falei, tentando não soar cínico.
“Não é verdade, porque quando o pai dele se machucou o Oráculo fez de
tudo para salvá-lo e conseguiu. Ele é o herói do nosso povo, derrotou os
selkies e unificou toda a nossa espécie após a grande guerra. Se houvesse um
tritão sofrendo em qualquer lugar, o Oráculo não hesitaria em salvá-lo.”
Eu sorri ao Yoshan. Não que eu acreditasse totalmente no que ele me
dizia, mas apesar de detestar tamanho idealismo, eu apreciava sua tentativa
em me confortar.
“Pode mesmo encontrar o Zarkon?” Perguntei.
“Eu sou um Amalona, esqueceu? Obter informações é o que define nosso
clã. Amanhã mesmo me comunicarei com outros Amalonas através das ondas
e encontrarei seu irmão pra você.”
Dessa vez um sorriso amplo e sincero se formou em meu rosto, molhado
por lágrimas emocionadas.
Eu abracei Yoshan apertado, me segurando para não chorar.
“Obrigado. Obrigado de verdade.” Eu disse a ele.
Yoshan me abraçou de volta, carinhoso e gentil como eu amava que ele
fosse.
“Eu sou seu alfa, esqueceu? Pelo meu precioso Cordelen eu seria capaz
de qualquer coisa. Quase qualquer coisa.” Ele engasgou dolorido ao falar a
última parte. “Espero que isso te faça feliz.”
Eu concordei e beijei seus lábios em profunda paixão. Dentro de mim,
meu coração pulsava forte com a esperança que eu pensava ter abandonado.
Capítulo 12
Yoshan não tentou usar meu corpo durante a noite. Nós apenas nos
abraçamos sob os cobertores quentes e eu logo adormeci, embalado pelo
calor de sua respiração.
Mas quando acordei, já de manhã, não havia ninguém ao meu lado. Eu
saltei da cama e vasculhei os outros cômodos procurando por Yoshan, e ao
concluir que estava sozinho o pânico tomou conta de mim.
Ele partiu. Meu alfa havia me abandonado, insultado após meu pedido
sem cabimento. Eu nunca desejei um alfa durante toda a minha infância, mas
Yoshan era bondoso e prometera me reencontrar com Zarkon. Teria sido tudo
uma mentira, para que meu castigo fosse o golpe estarrecedor da decepção?
O que seria de mim, retornando em desgraça para Tárnacos? A rejeição do
predestinado era a vergonha máxima para um tritão e eu sequer havia
germinado a semente em meu ventre, o que me colocava em uma situação tão
humilhante quanto perigosa.
Eu tentei deixar o quarto, mas a maçaneta não girava. Yoshan fez algo
com um retângulo plástico quando entramos, mas eu não havia prestado
atenção. E se eu morresse ali dentro? Bastavam algumas luas para que o
efeito da desidratação fosse fatal.
Então enfim descobri o plano de Yoshan. Ele pretendia que eu morresse
lentamente para ser devorado pelos inferiores. No que eu estava pensando
quando pedi algo tão absurdo a ele? Meus erros se pagariam com uma morte
lenta e terrível.
<<Bom dia, meu predestinado! Você prefere salmão ou enguia para nosso
desjejum?>>
Meu coração saltou com o susto, e após um breve instante de
perplexidade eu gaguejei uma resposta.
“Traga o que for de seu agrado.” Falei.
Yoshan concordou por telepatia e eu sentei na cama me sentindo um
idiota.
Após algum tempo, quando eu terminava de pentear o cabelo com os
dedos, ele voltou carregando um peixe rosado por cima do ombro.
“Desculpe a demora, meu predestinado. As águas de colônias humanas
são bastante poluídas, então precisei caçar muito longe.” Ele estendeu o peixe
para mim, ambos pingando água no tapete, totalmente molhados. “O cara do
elevador não queria me deixar entrar, mas aí falei que pesquei esse salmão
com os dentes e ele disse nossa, que da hora e me deixou subir. Humanos
não gostam que molhem o chão, mas o que podemos…”
Eu abracei Yoshan com força, fazendo-o derrubar o peixe morto na cama.
“Pensei que tivesse ido embora.”
“Ei, ei, você é meio paranoico, já te disseram isso?” Yoshan me abraçou
com uma mão só. “Eu nunca vou te deixar, você é o que tenho de mais
importante no mundo.”
Eu sorri e me afastei, curvando a cabeça para agradecê-lo. E então notei
algo em sua outra mão, uma sacolinha de papel com um laço de fita.
Yoshan me entregou a sacolinha e eu a segurei com cuidado nas mãos.
“O que é isso?” Perguntei.
“Abra para descobrir.” Yoshan sorriu com o canto da boca.
Eu soltei o laço e puxei o conteúdo de dentro, então meus olhos
iridesceram em surpresa.
Era o pingente de cliantus-vermelho que eu achei tão lindo no peito do
Yoshan. Exceto que não era mais um pingente. A correntinha havia sumido, e
em seu lugar, na parte de trás, havia um grampo de ouro.
Uma mistura de sensações loucas tomou conta de mim, me deixando
confuso de uma forma doce e amarga ao mesmo tempo.
“Eu não compreendo. Já sou plenamente submisso e obediente a você,
meu predestinado. Não há necessidade de conquistar minha benevolência
com presentes.”
“Eu sei, disso.” Yoshan pegou o broche das minhas mãos e alisou os
lados do meu cabelo para trás. “Não estou lhe presenteando com segundas
intenções. Estou lhe presenteando porque eu te amo.”
Yoshan laçou alguns nós de uma trança fina atrás da minha cabeça e
então passou o grampo da joia. Um sorriso lindo iluminou o seu rosto ao
notar o resultado.
“Não ficaria tão bom como pingente porque seus ombros são estreitos
para uma joia tão grande, mas como presilha nesses cabelos longos… ficou
perfeito.”
Eu não conseguia desmanchar meu sorriso. Os Trevally abominavam
vaidade e futilidades de qualquer tipo, mas danem-se os costumes de
Tárnacos. Eu estava tão totalmente feliz que corri para a salinha de azulejos
brancos para tentar ver no espelho.
Antes que eu quebrasse o pescoço tentando olhar, Yoshan segurou um
segundo espelho atrás de mim e eu enfim consegui ver. A joia reluzia suas
várias facetas de zircônia vermelha, três pedras no formato de uma flor que
eu nunca havia visto, mas que eu esperava conhecer em breve.
“Seu cabelo fica lindo nesse penteado. Alguém com olhos tão lindos deve
mostrá-los ao mundo de rosto erguido.”
“Eu tenho olhos lindos? É difícil acreditar em tal elogio, vindo de um
Amalona.”
Yoshan beliscou meu nariz e deu um beijinho no meu rosto.
“Em primeiro lugar, seus olhos são mais lindos que qualquer pedra
preciosa que eu conheça, e eu conheço centenas de pedras preciosas. Em
segundo lugar, está na hora de você confiar em mim porque eu cumpro todas
as minhas promessas… incluindo a parte de encontrar o seu irmão.”
Meu sorriso sumiu no ritmo dos saltos no meu peito. Eu me virei ao
Yoshan com o rosto empalidecendo.
“Você encontrou o Zarkon?” Meus lábios tremeram. “Como? Deveria ser
impossível.”
“Foi simples. Eu considerei o tempo entre seu irmão despertar e sumir e
deduzi que o alfa não podia morar tão longe. Também considerei o sumiço de
dois anos, o que estabelece Zarkon como um ômega de vinte anos, e por
consequência seu alfa também. Um núcleo em período reprodutivo
geralmente mora em terra firme, o que se confirma pela voz do seu irmão ser
ouvida apenas ao amanhecer e ao pôr-do-sol, momentos em que tritões da
superfície geralmente se banham ao mar. São poucas as ilhas no entorno de
Tárnacos e 98% dos alfas nativos da região são do clã Trevally, só precisei
consultar meu clã sobre os alfas Trevally de vinte anos que morassem em
ilhas a dois dias de Tárnacos, e veja só temos uma ocorrência exata, um alfa
chamado Dankoren Trevally.” Yoshan sorria mais e mais orgulhoso a cada
frase.
Eu pisquei rápido.
“Você… você é muito esperto.” Falei.
“Eu sou, não sou?” Yoshan fechou os punhos em comemoração,
empolgadíssimo. “Eu sempre quis investigar mistérios como os mais velhos
do clã e não passei vergonha! Me sinto um Amalona de verdade e isso é tão,
tão, tão incrível, quando o primo Édrilan souber ele vai assar um pão de
barbatana só pra mim, e eu amo barbatanas de tubarão, já te disse isso?”
Yoshan balançou os ombros casualmente, como se não me percebesse à beira
de um colapso. “As más notícias é que o território de Dankoren situa-se na
direção oposta de Tárnacos, espero que tenha recuperado sua disposição a
nadar.”
Yoshan falou, falou e falou, mas meus ouvidos escutavam apenas o bater
do meu coração disparado. Minha mente dava voltas pulsando a única
informação que realmente mudava tudo.
Eu enfim reencontraria Zarkon.
“Precisamos partir imediatamente.” Eu retornei ao quarto maior, tão
assertivo que minha voz assustou a mim mesmo.
“Como desejar, meu querido predestinado.” Disse Yoshan. “Ahm…
podemos comer este salmão, primeiro? Meu estômago está me matando.”
Quase deixando o quarto, eu me virei para trás e avistei nossa refeição
matinal, que brilhava tentadora sobre os lençóis agora encharcados. Meu
estômago também roncou.
“Comeremos durante a viagem.” Falei. “Quero encontrar Zarkon o quanto
antes.”
****
****
Ah, como as coisas terminaram tão esquisitas? Se eu não fosse tão burro
não estaria ali, agachado nas duchas enquanto regava água fria no meu
predestinado inconsciente.
Enlameado, nu e me sentindo um idiota. Para piorar, ouvi duas vozes se
aproximando de nós e não podia me esconder e abandonar Yoshan ali.
Duas figuras apareceram em meio ao vapor denso, um tritão magrinho de
túnica e outro enorme, musculoso e negro de túnica azul, com um bebê no
colo. Os dois conversavam animados entre si.
Droga. Eu olhei ao redor procurando minhas roupas e as avistei longe
demais, no outro lado da piscina de lama. Eu tentei pensar em algum plano,
mas logo o casal me avistou e eu reconheci o ômega.
“Ah, Cordelen, Você voltou!” Pastor Enan sorriu brevemente, e logo fez
uma cara assustada e correu até nós. “O que houve aqui?”
“Eu não sei.” Falei, encolhendo o corpo.
Pastor Enan enfim notou que eu estava pelado e correu de volta ao
grandão negro, abanando as mãos.
“Vai pra casa, Kayman, nada para se ver aqui. Vai trocar as fraldas do
Leon, vai. Tchau!” Pastor Enan enxotou o cara como um animal, mas pela
tranquilidade nos dois aquela era uma situação bem comum.
Quando o grandão foi embora, pastor Enan buscou minha túnica e me
entregou. Ele segurou a ducha gelada sobre Yoshan enquanto eu me vestia.
“Olha o vermelhão nesse pobre alfa, a lama nem está tão quente assim.”
Pastor Enan sorriu safado pra mim. “O que estavam fazendo, exatamente?”
Eu avermelhei ainda mais que a pele febril do Yoshan.
“Ahm… nada demais. Meu predestinado desejou conhecer o templo, foi
minha obrigação de ômega satisfazê-lo.”
Pastor Enan riu alto, me ajudando a livrar a lama das escamas do Yoshan.
Como ele conseguia se divertir naquela situação? Eu me controlava para não
chorar em desespero.
“Enfim conheci seu predestinado. Você tirou a sorte grande, Cordelen,
olha que barbatana mais linda. Alfas Amalona são realmente pequenos, mas
esses músculos devem te fazer ver estrelas.”
Eu murchei o lábio e abracei meus joelhos, já limpo e arrumado em
minha túnica seca.
“Yoshan não é pequeno, seu predestinado é que é uma montanha.” Eu
olhei para o chão, onde a água fria da ducha escorria para as piscinas.
“Escuta, pastor Enan… sobre o meu bebê…”
“Ah, é verdade! É um menino ou uma menina?” Perguntou ele,
empolgado.
“Não… eu ainda não… ahm…” Eu esfreguei atrás do pescoço, me
perguntando como tratar um assunto tão delicado. “Por que precisamos gerar
bebês, exatamente?”
“Como assim, por quê? Porque o chamado manda. É a obrigação de todos
os tritões.” Pastor Enan sorriu docemente então levantou para fechar a água.
“É que… é estranho. Ainda não concebi mas meu corpo não dói mais,
não sofre aqueles calorões tenebrosos. Meu desconforto terminou com a
chegada de Yoshan.” Eu engoli seco, estremecendo com o rumo das minhas
palavras. “E se… talvez… o chamado… ah… esquece.”
Pastor Enan torceu o lábio, me olhando bastante confuso. Não era minha
intenção confundi-lo, mas apesar de ser meu amigo ele também era um pastor
e pregava a sabedoria do chamado como uma lei absoluta. Eu preferia evitar
conflitos.
“Me diga, Cordelen, o chamado já exigiu bebês de você?” Perguntou ele.
“O que? Claro que sim, ele sempre recita sobre cumprir a minha missão.
O mesmo que fala a todos.”
“Mas ele disse especificamente que esta missão era reproduzir a espécie?”
Ele franziu a testa.
Eu não entendi onde pastor Enan queria chegar, mas algo naquela
conversa fazia gelar meu estômago. Eu vasculhei minhas lembranças sobre as
muitas profecias e lições do chamado, mas realmente não ouvi nada sobre do
tipo.
Percebendo minha confusão, pastor Enan sorriu discretamente, mas o
peso no ar tornou-se sufocante. Ele olhou para os lados antes de continuar.
“Isso é apenas uma teoria minha, Cordelen, não conte a ninguém se não
quiser problemas.” Ele sussurrou perto do meu ouvido. “Acredito que para
alguns tritões, raramente, o chamado tenha uma missão maior.”
“Missão maior?” Eu ri de nervosismo. “Que tipo de missão maior? Deve
ser apenas falha da minha memória, o chamado certamente me ordenou
proliferar, eu apenas não lembro.”
“Você lembraria. Ele recita todos os dias, durante anos. Eu sei porque
comigo ainda é assim.” Pastor Enan tocou a barriga um pouco saliente. “Mas
tem alguns casos de tritões que não procriam e também não enlouquecem.
Isso é estranho, não é?”
“Meu chamado não precisou de um bebê para se acalmar…” Suor desceu
pelo meu rosto, e não era de calor. “Ele queria apenas que eu encontrasse o
Yoshan.”
“Hnngh… alguém me chamou?” Resmungou Yoshan atrás de nós.
Nós encerramos o assunto rapidamente. Eu ajudei Yoshan a sentar e
percebi, com imenso alívio, que ele havia recuperado as pernas assim que
acordou.
“Outro tritão pelado. Vocês de Egarikena são muito despudorados.”
Pastor Enan virou de costas, fingindo sentir vergonha. Era óbvio que tudo
aquilo o divertia.
Após recuperar-se da tontura, Yoshan levantou e deu-me um beijinho nos
lábios.
“Como esse calor não mata vocês?” Yoshan encontrou uma toalha nas
duchas e amarrou na cintura.
“Peço mil perdões, meu predestinado. Foi um erro que não pretendo
repetir.”
“Não foi culpa sua, Cor. Sou eu quem… ei.” Yoshan farejou o ar e voltou
sua atenção ao pastor Enan, que ainda estava de costas. “Você é o cara que
beijou meu predestinado.”
Meu coração quase parou, e pelo gesto súbito do pastor ao virar-se para
Yoshan, ele também estremecia em pânico. Rápido como um trovão, o clima
tornou-se fatal e sombrio.
Aquilo era péssimo. O predestinado do pastor já devia estar longe, não
poderia protegê-lo. E mesmo que estivesse ali, Yoshan não seria páreo contra
um Kampango. Eu não queria que ninguém se machucasse.
Tremando os lábios, pastor Enan gaguejou algo impossível de ouvir,
encolhendo os ombros tão assustado que nem parecia o pastor extrovertido de
sempre.
Yoshan passou o olhar por mim e depois por ele, então começou a rir.
“Pensei que era coisa do Cordelen, mas vocês todos são uns nervosinhos.
Tudo bem que vocês aprontaram um pouco, podem até se beijar de novo,
quem liga?” Yoshan deu de ombros e jogou o cabelo molhado para trás.
“Obrigado por ser um bom amigo ao meu predestinado.”
Demorou um pouco até nosso coração normalizar, mas logo depois pastor
Enan sorriu.
“Eu quem agradeço por ser um alfa digno do Cordelen. Ele é um dos
nossos melhores devotos, e um amigo inestimável para mim.”
Antes que eu demonstrasse meu extremo alívio, o tritão negro voltou com
o bebê em um braço e um tecido azul em outro.
“Trouxe roupas para o rapaz pelado.” Ele entregou o tecido ao Yoshan.
“Ah, valeu, cara. Minha canga pode estar em qualquer lugar dessa
piscina.” Yoshan riu e vestiu-se na túnica. “Ah, que roupa mais quente!
Vocês são masoquistas? Aliás, nem precisam responder.”
Eu dei uma risadinha, apreciando a aparência do Yoshan nas túnicas do
nosso povo. Apenas devotos podiam vestir tecidos brancos, mas Yoshan
ficava especialmente bonito em azul.
Enquanto Yoshan abanava os braços como uma gaivota, desacostumado a
se cobrir tanto, pastor Enan chegou em Kayman e sussurrou algo em seu
ouvido que fez o alfa Kampango rir.
“Então são eles? Você é um safado mesmo, amor. Veja a idade deles,
devem ter recém despertado.”
Eu e Yoshan trocamos olhares curiosos enquanto os dois cochichavam e
riam.
“O que é tão engraçado?” Perguntei a eles.
“Nada, é só que…” Pastor Enan cobriu a boca e riu educadamente. Ele
era péssimo em fingir vergonha. “Kayman, por favor, eu não sei pedir…”
Kayman riu ainda mais alto, tremulado seu peitoral massivo de
Kampango. Não era de se surpreender que Enan considerasse Yoshan
pequeno, porque Kayman era três vezes o tamanho dele. Como ele conseguiu
inseminar o pastor Enan sem matá-lo era algo que eu não conseguia imaginar.
“Perdoem o meu predestinado Enan. Ele é um pouco tímido…”
“Muito tímido.” Pastor Enan corrigiu.
“…e ele quer saber se vocês participariam de um baile de escamas.”
Kayman desatou a rir de novo. “Você é terrível, amor. Os garotos nem devem
saber o que é isso.”
Eu arqueei a testa, perplexo. Na verdade eu não sabia mesmo, mas não
queria passar por burro.
“Vamos pensar a respeito. Eu e Cordelen partiremos amanhã cedo, mas
logo voltamos a Tárnacos.” Yoshan entrelaçou os dedos nos meus, sorrindo
educado.
“Oh, Amalonas realmente conhecem tudo.” Kayman secou uma lágrima
de riso e afagou o rosto do pastor Enan, que tentava murchar sua expressão
perversa. “Geralmente eu quem escolho outros casais, vocês são os primeiros
a atiçar a curiosidade do meu predestinado. Espero que aceitem, será uma
noite incrível.”
“Devo confiar que você não encostará no meu Cordelen, ou teremos
problemas.” Os olhos de Yoshan iridesceram ao Kayman de forma
assustadora e territorial.
“Claro que ele não vai, e também vou confiar que você não encostará em
mim.” Pastor Enan defendeu Kayman, meio indignado. “Meu Kayman
prefere apenas assistir, mas se você quiser algo mais podemos ser criativos.”
Eu desisti de tentar entender e apenas deixei eles conversarem.
Após pouco tempo nós nos despedimos e eu segui com Yoshan de volta à
vila. Quando deixávamos o templo pastor Enan segurou meu ombro e
sussurrou no meu ouvido.
“Vou te aguardar ansiosamente.” Ele disse, e então correu de volta para
Kayman.
Felizmente o mormaço esgotou a energia excessiva do Yoshan, então
apenas caminhamos lado a lado de mãos dadas. Era gostoso, apesar da
paisagem marrom e turva quebrar o clima.
“Vá em frente, pode me perguntar o que é um baile de escamas.” Yoshan
sorriu implicante.
“Sei perfeitamente bem o que significa, não sou nenhum ignorante.” Eu
empinei o queixo.
“Ah, é? Então explique você pra mim.” Yoshan segurava-se para não rir.
“É simples. É… ahm…” Eu avermelhei e desviei meu rosto do daquele
idiota. Não queria vê-lo rindo de mim.
“Que bom que você sabe, então eu não preciso explicar.” Yoshan piscou
pra mim e seguiu na frente. “Pode ir na frente, eu vou passar naquele
mercado e subornar alguns guardas.”
Eu abri a boca e quase falei um palavrão, mas Yoshan já subia
calmamente o morro em direção às lojas, rebolando contente por ter me
tirado do sério. Mas se ele pensava que eu iria ceder e admitir minha burrice,
estava muito enganado.
Ah, que raiva… o que raios era um baile de escamas??
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Uma surpresa me aguardava em casa, e pela primeira vez era uma
surpresa agradável: Vitanen e seu predestinado Yangin apareceram com um
suculento atum assado.
Eu e Maron nem acreditamos, nosso estômago grunhindo para nos
lembrar da fome intensa. Assim que terminamos de ajeitar a mesa Yoshan
também apareceu trazendo não uma, mas três lagostas vermelhas. E eram
enormes!
“Hoje teremos um banquete!” Maron fechou os punhos no ar,
comemorando.
Eu ri da alegria do meu irmãozinho, tão rara de se ver. E Maron animou-
se ainda mais ao provar nossa refeição, tão farta que parecia uma miragem.
Se tudo desse certo o nosso próximo banquete seria ainda mais feliz, pois
eu revelaria que o primeiro irmão Zarkon estava feliz e seguro. Talvez ele
pudesse até mesmo nos visitar e então teríamos o melhor jantar das nossas
vidas.
Assim que as visitas partiram eu me recolhi ao quarto de casal com
Yoshan. Meu plano era dormir cedo para seguir viagem à primeira luz do sol,
mas não resisti a brincar um pouquinho. Eu usei minha mão no Yoshan e seus
gemidos de prazer embalaram meu sono, me fazendo dormir abraçadinho
nele, orgulhoso em tê-lo satisfeito um pouco.
Quando eu confirmasse a segurança do Zarkon eu com certeza tentaria
vencer meus medos. Yoshan me proporcionava o melhor de seu coração e eu
também queria fazer meu melhor por ele.
Capítulo 15
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Não havia bagagem a carregar, e meus irmãos sabiam quando não fazer
perguntas. Quando os encontrei em uma parte isolada da vila e lhes contei o
plano, sussurrando entre os sons vazios da noite, eles de imediato entenderam
a gravidade da situação.
Como resultado, pouco após me despedir de Yoshan, nós três estávamos
prontos para partir. Mas ao dar meus primeiros passos em direção à praia
Zarkon segurou minha mão.
Eu me virei a ele, curioso apesar da pressa.
“O que foi?” Perguntei.
“Aquele meio-selkie está nesta ilha, você disse?” Perguntou Zarkon.
“Fale baixo.” Reclamei, concordando com a cabeça.
“O povo de Cratília vai apreciar o presente.” Zarkon deu meia volta em
direção à ilha.
Eu gaguejei alguma coisa, assustado embora incapaz de repreendê-lo.
Maron o havia seguido sem a menor hesitação e eu precisava deixar de ser
frouxo. Mesmo que se tratasse de um bebê, eu abraçaria todas as chances
possíveis de obter uma boa vida em território inimigo. Meu Yoshan não
esperaria menos de mim.
<<É um plano arriscado. Por favor, seja muito cuidadoso.>>
Eu concordei por telepatia e segui em frente. Yoshan devia estar muito
nervoso para arriscar comunicação comigo, eu não podia em hipótese alguma
decepcioná-lo.
Durante a caminhada Yoshan revelou sobre um humano que vivia com o
príncipe Byron, então bastava seguir o mesmo cheiro daquela ilha de
humanos. Não foi difícil encontrar a casa certa em uma vila isolada e arenosa,
com uma pracinha florida.
Mesmo sabendo da loucura que iríamos fazer Yoshan não tentou me
dissuadir, o que era toda a aprovação que eu precisava para seguir em frente.
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O gotejar do teto era o único som naquele calabouço sombrio, com cheiro
de dor e tristeza. A única estrutura era uma gaiola de aço espessa demais para
quebrar com os dentes. Lembrava as jaulas de captura de lagosta em escala
muito maior.
Passou-me pela mente se papai Jon teria construído aquilo. Eu esperava
que não.
“Yosh?” Eu me apressei à cela assim que o vi, com o coração nas mãos.
“Fran, você veio…” Yoshan tossiu com fraqueza, esparramado no canto
da parede. Ele baixou o olhar para o bastão em minhas mãos e seu breve
sorriso desapareceu.
Eu notei o corpo quase despido de Yoshan e lutei muito para segurar
minhas lágrimas. Hematomas azuis e pretos coloriam seus braços e pernas e
um filete de sangue escorria dos lábios inchados. Os soldados realmente se
divertiram com ele, como se fosse adiantar alguma coisa.
“Para onde enviou seu predestinado, Yosh?” Eu me debrucei nas grades,
trêmulo de pena e preocupação. “Nem o Digníssimo Oráculo consegue
encontrá-lo, Egarikena está em caos.”
Yoshan riu e levantou-se dolorido. Ele mancou até mim e apoiou-se no
lado oposto das barras, me admirando com seus olhos bicolores e cansados.
“Tritões Amalona treinam desde a infância para guardar segredos, Fran.”
Ele apontou para o bastão com o rosto. “Os guardas não arrancaram uma só
palavra, nossa antiga amizade não aumentará suas chances.”
“Você sabe que eu não faria um absurdo desses.” Eu joguei aquele
maldito bastão longe e toquei o rosto pálido de Yoshan, querendo fazer sumir
aquelas marcas terríveis. “O que houve com você, Yosh? Você assassinou
tritões e humilhou o Digníssimo Oráculo. Como as coisas despencaram tão
rápido?”
“Tudo nesta ilha é uma mentira, Fran. A vida lá fora é um show de
horrores que o Oráculo não faz questão de mudar.” Disse Yoshan. “Se você
deixasse esta maldita ilha perceberia o mesmo que eu.”
“E qual a solução? Matar soldados a sangue frio? Sanderson era um bom
homem e seu predestinado o assassinou diante da filha! Uma criancinha viu o
pai ser assassinado, Yoshan, e aqueles monstros quase levaram Ronan
embora. O humano do Byron está histérico, toda a ilha mergulhou em
tumulto e insegurança.”
Yoshan sorriu quieto, apreciando meu carinho em seu rosto.
“Qual o problema em um pouco de insegurança? É apenas uma amostra
do que as colônias enfrentam todos os dias. Você nunca se perguntou sobre
as palavras do Oráculo, Fran? O que sabemos exatamente? E se o Oráculo e o
chamado forem a mesma entidade, controlando tudo o que somos? Por que
precisamos nos reproduzir tanto? De onde vêm todas essas leis, e por quê?”
Eu me afastei de Yoshan, estremecendo, mas percebi que meu tremor não
era medo. Era ódio.
“Maldito o dia em que você predestinou com aquele Trevally.” Rosnei,
levando as mãos ao meu ventre avolumado. “Você tinha uma vida diante de
si, Yosh. Meu pequeno Sebasten te adora, e eu tanto esperei criar este aqui
junto do seu primeiro bebê.”
“Como estão os meus pais? Meu antigo núcleo está bem?” Perguntou
Yoshan, estranhamente ágil em mudar de assunto.
Eu suspirei e sentei encostado às grades, no chão de pedras molhadas.
“Os reis inocentaram seus parentes quanto ao envolvimento nos crimes,
mas a morte do soldado Sanderson atiçou os ânimos da população, ninguém
nunca foi assassinado em Egarikena. Invadiram e depredaram todas as
habitações dos Amalonas até não restar nada, seus pais e irmãos fugiram às
pressas. Édrilan conseguiu ficar por ser predestinado de um Makaira, mas não
restou tábua sobre tábua de sua padaria.”
Por mais que aquela fosse a verdade eu não esperava que Yoshan fosse
acreditar. Mas ele baixou o olhar e chorou baixinho, destruindo o que restava
do meu coração.
“Ele vai pagar caro… O Oráculo vai pagar tão caro…” Sussurrou ele,
entre soluços de choro.
“A conversa no palácio é sobre a sua execução, Yosh. Sua única chance é
revelar o paradeiro de Cordelen Trevally.” Eu me levantei, não suportando a
dor no meu peito. “Ordenarei que os guardas não te machuquem, então, por
favor, conte a verdade a eles. O povo da ilha não merece viver com medo e
eu mesmo desejo ter meu segundo filho em segurança. Não sei como
Cordelen te manipulou tanto, mas tente lembrar tudo o que o Digníssimo
Oráculo fez por nós, pelo meu pai, pelo nosso povo. Ele é o nosso herói e
protetor.”
Yoshan fingiu não me ouvir, como se algo no chão fosse mais
interessante, então eu lhe dei as costas e me afastei em direção à escada.
Assim que dei o primeiro passo nos degraus, porém, ouvi um clique e um
rangido metálico.
Eu me virei com o coração disparado. Yoshan me encarava do lado de
fora da cela, ao lado da porta aberta.
“Yosh? Como você…ah!”
Yoshan pulou em mim, muito rápido. Antes que eu gritasse ele havia
coberto minha boca e imobilizado meus pulsos atrás do meu corpo.
“Quantos guardas tem lá fora?” Ele tirou a mão da minha boca para que
eu respondesse.
O que raios estava acontecendo? Eu quis chorar, mas contive minhas
emoções com toda a força. Se eu disparasse os alarmes no Jensen e ele se
envolvesse tudo desabaria ainda mais.
“Yosh, você não é assim, você é bom. Por favor, volta a ser meu melhor
amigo.” Pedi, choroso. “Muitos pensam que você é um traidor, se você for
morto tentando fugir eles terão certeza.”
Após alguns segundos de apreensão, Yoshan deu um grunhido frustrado e
me soltou.
Ele se afastou um passo, tremendo os punhos fechados.
“Não posso ser morto aqui, Fran. Eu pensei ter tudo planejado, mas
ocorreram… imprevistos.” Yoshan baixou o olhar brevemente e voltou a me
encarar, nervoso e alucinado. “Se eu ficar serei morto pelos reis que você
tanto ama.”
Eu apertei os lábios, rasgando em tristeza. Por isso Yoshan implorou pela
minha presença? Para me usar de escudo e passar pelos guardas? Era um
plano digno de um Amalona, nenhum soldado arriscaria ferir o ômega de um
príncipe. Ainda assim era um plano estúpido, típico de alguém desesperado.
Cansado de aguardar resposta, Yoshan passou por mim e subiu a escada.
Eu segurei sua mão impulsivamente, com o meu coração causando estrondos
dentro do peito.
“Dois guardas. Kampangos alfa, da guarda pessoal do rei. Vão te fazer
em pedaços, Yoshan.” Eu balancei a cabeça, sem acreditar no que estava
prestes a dizer. “Tenho um plano melhor.”
Yoshan franziu a testa, seu olhar me acompanhando com confusão e
perplexidade conforme eu atravessava o calabouço até um canto isolado.
Eu esfreguei as mãos nas paredes úmidas e pouco iluminadas,
investigando cada saliência minuciosamente.
“Ouvi conversas no palácio… este lugar não é um calabouço de verdade,
é uma galeria que nunca chegou a ser terminada. E todas as galerias… tem
acesso ao mar…”
Uma ponta de pedra arranhou minha mão e me fez recuar, dolorido. Era
ali. Naquele canto havia uma fenda estreita que emanava o cheiro salgado de
mar.
Yoshan se aproximou e expandiu os olhos em surpresa.
“Quem diria. Você seria um excelente Amalona, Fran.” Ele sorriu a mim
e passou de lado pela fresta, precisando espremer o corpo.
Apesar da felicidade do Yoshan o meu coração continuava a bater
amargo. Eu o segui pela passagem apertada e logo a descida revelou um túnel
submerso. A água brilhava fracamente, carregando a luz do sol para dentro da
caverna.
Como as coisas chegaram naquele ponto? O que fiz para perder meu
amigo de forma tão brusca e sem sentido? Eu não sabia, mas pretendia
descobrir.
“Yoshan.” Falei.
Yoshan virou-se para mim com curiosidade ansiosa, já colocando o pé
dentro da água.
Eu engoli minhas lágrimas e o fuzilei com meu olhar mais sério e
determinado.
“Se você der mais um passo, nós seremos inimigos.” Eu disse.
Yoshan sorriu para mim.
“E ainda assim você está me ajudando a escapar.”
Não havia nada de divertido naquela situação, na verdade era devastador.
Mesmo assim eu também sorri e relaxei a postura.
“Prometa que vai ficar bem.” Eu disse.
Yoshan me estendeu a mão.
“Adeus, meu melhor amigo.”
Eu apertei firme a mão do Yoshan e não aguentei, comecei a chorar.
Após nossa breve despedida Yoshan soltou minha mão e mergulhou no
túnel, desaparecendo nas profundezas do mar.
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Espécies
Tritões e sereias
Tritões são os machos, sereias as fêmeas. Em sua forma aquática eles
têm uma longa cauda de golfinho coberta de escamas. Diferente das sereias e
humanos, tritões possuem um gênero secundário, podendo ser alfas ou
ômegas. Eles são capazes de respirar dentro d’água através de guelras atrás
das orelhas e não conseguem manter a forma terrestre quando na água.
Tritões de sangue puro precisam do mar para sobreviver e são alérgicos a
alimentos da terra firme. A proporção populacional entre tritões e sereias é de
10 tritões para cada sereia.
Selkies
Uma raça do povo do mar. Diferente dos tritões, os selkies não
possuem escamas e sua cauda lembra a de uma foca. Sabe-se muito pouco
sobre eles.
Humanos
Chamados pelo povo do mar de inferiores ou povo terrestre, os
humanos são pessoas comuns que em sua maioria nem suspeita da existência
de tritões. Por serem de uma raça biologicamente menos evoluída, todos os
humanos são ômega.
Biologia
Omegaverse
O gênero literário no qual O Amante do Tritão foi vagamente
inspirado. Nas histórias omegaverse a sociedade divide-se entre alfas e
ômegas, onde o ômega é capaz de ficar grávido do alfa independente de ser
homem ou mulher.
Alfa
Tritões alfas são maiores, mais fortes e em geral mais dominantes que
seus parceiros ômegas. Seu dever é realizar todos os desejos de seu ômega
grávido e zelar pelo bem-estar do núcleo.
Ômega
Ômegas quase sempre são magrinhos, delicados e dóceis, embora não
se deva confundir delicadeza com fragilidade. O ômega é capaz de gerar o
bebê do alfa em seu ventre, em uma gestação que dura nove meses.
Filhote
Todo o povo do mar menor de dezoito anos é considerado filhote.
Eles têm o desenvolvimento emocional e hormonal de uma criança humana,
são incapazes de sentir prazer ou desejo e tem capacidade limitada em
compreender sentimentos complexos como o amor. Após o Despertar, o
filhote se tornará alfa ou ômega.
Híbrido
O filho de um tritão com um humano. Híbridos herdam a maior parte
da carga genética do pai alfa, mas podem adquirir traços do pai humano
como personalidade, resistência a alimentos terrestres ou a viver longe do
mar. Eventualmente híbridos adquirem a cor dos olhos do pai ômega, uma
das únicas ocasiões em que sua cauda não será verde. Devido à dominância
genética, o filho de dois híbridos ou um híbrido e um sangue-puro apaga os
traços humanos, gerando um bebê sangue-puro.
Formas
O povo do mar pode assumir diferentes formas: aquática, terrestre e
feral. Esta última forma, destinada à defesa ou combate, pode ser usada fora
ou dentro da água e é especialmente difícil de ser controlada por tritões
híbridos.
Despertar
É quando o filhote torna-se um adulto, podendo ser alfa ou ômega. O
desenvolvimento hormonal e emocional ocorre subitamente, um processo
confuso e assustador para a maioria. Também é no despertar que o tritão
conhecerá seu predestinado.
Adormecer
Ocorre em tritões idosos. O chamado silencia e o tritão torna-se
incapaz de se reproduzir, mas ainda é agraciado por outras dádivas como os
poderes curativos do mar.
Abandono
Em casos extremos o chamado pode abandonar um tritão, privando-o
de seus poderes curativos, habilidades telepáticas, alertas ao perigo e todas as
suas outras dádivas.
Telepatia
Tritões podem se comunicar telepaticamente com seus predestinados,
e também com outros tritões de forma mais limitada. Esta é uma dádiva do
chamado que permite aos tritões conversar embaixo d’água.
Oráculo
Tritões especiais de cauda dourada e a capacidade única de amplificar
os poderes do chamado. Aurelian Makaira é o atual oráculo, e também rei dos
tritões.
Chamado
É um mistério.
Egarikena
Capital do reino dos tritões. É uma linda ilha de cristal com um
castelo no topo, onde moram os reis Hian e Aurelian Makaira.
Predestinação
Evento do Despertar que reúne o casal alfa e ômega. O casal
predestinado pode conversar por telepatia, sentir as sensações um do outro e
até mesmo ler alguns pensamentos.
Maculador
Aquele que fere um vínculo de predestinação é considerado um
maculador. Costumam ser severamente castigados.
Núcleo
Unidade familiar do casal predestinado e seus filhotes.
Clã
São as diferentes sociedades de tritões, determinadas a partir do padrão em
lilás nas caudas. Amalonas possuem barbatana lilás, Trevallys possuem
listras no dorso, Kampangos têm manchas pontilhadas… cada clã possui
algumas outras características únicas, e são divididos entre castas alta, média
e baixa de acordo com sua importância política.
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