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Casa de Marionetes

A História de Cordelen

Copyright © 2018 R. B. MUTTY


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Esta história é parte da série O Amante do Tritão. Recomenda-se a leitura de Noite de Despertar antes
da leitura deste livro.

Capa:
© 123rf / gleb TV
© Flickr / Taro Taylor
Design da capa:
R. B. Mutty
Os modelos da capa são meramente ilustrativos e não correspondem a nenhum personagem da história.
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Sumário

Sumário
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Epílogo
Glossário
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Obrigada por ler este livro!
Capítulo 01

Uma manhã inteira caçando e eu ainda podia ver o fundo do cesto de


mariscos.
Maron percebeu o mesmo que eu, porque começou a cavar o leito estéril
do mar com as unhas. Eu segurei seu braço antes que se machucasse.
“Esquece, Maron. Não tem mais nada, vamos subir.”
As escamas do meu irmãozinho eriçaram em horror. Ele olhou rápido ao
redor, como se mariscos fossem brotar do nada naquele deserto subaquático.
“Talvez tenha mais lá atrás. Eu não cavei fundo o bastante, nós ainda
podemos…”
Eu tomei o cesto de suas mãos e arranquei um chumaço de algas escuras
das pedras. Cuidadosamente eu ajeitei as algas sob os mariscos e tentei me
convencer que parecia haver mais comida.
“Viu só? Ele nem vai reparar.” Menti, com um sorriso no rosto. As coisas
já estavam difíceis o suficiente sem que Maron começasse a chorar.
Maron concordou com a cabeça, mas pelo desespero em seus olhos eu já
nem sabia quem mentia para quem.
Eu ergui meu olhar na direção da superfície. Pelo tom alaranjado o
crepúsculo já se aproximava. Não havia mais tempo a perder e Maron sabia
disso.
Sem ocultar a sombra em seu rosto infantil, Maron abanou sua cauda em
retorno à ilha e eu o segui logo depois, abraçado ao nosso medíocre jantar.
Maron era bastante rápido para um filhote de dez anos. Mesmo no auge
dos meus dezessete eu precisava acelerar muito para que sua cauda listrada
não desaparecesse adiante. O clã Trevally era conhecido por sua velocidade,
talvez ele fosse um Trevally especialmente ágil, ou eu fosse um
especialmente ruim.
Segundo o papai, a segunda opção era bem mais provável. Mas eu
preferia não pensar nisso, não naquele momento.
Não enquanto houvesse os gritos.

Não… Não… Por favor… não…


Eu imploro… por favor… já chega…

Eu abanei o rosto, tentando não ouvir. Por que o chamado me mostrava


isso? Por que mostrava isso ao meu pobre irmãozinho? Ele era apenas uma
criança!
Maron freou o nado e seus ombros tremeram. Eu o alcancei e passei a
mão pelas suas costas.
“Vai precisar se acostumar, Maron. Os gritos talvez nunca parem.” Eu
descansei o cesto no leito marinho e o abracei, deixando que chorasse no meu
ombro.
Maron chorou desesperado. Ele sempre chorava, como se fosse adiantar
alguma coisa. Desespero e lágrimas nunca salvariam o Zarkon.
Felizmente Maron logo se acalmou. Nosso tempo estava se esgotando.
“Peço perdão, segundo irmão Cordelen. É só que…”
“Tudo bem.” Eu peguei o cesto novamente e emergi, tão ansioso quanto
ele em me livrar das vozes.
O calor intenso da superfície ardeu em meu rosto. Eu alisei meu longo
cabelo preto para longe dos olhos e Maron fez o mesmo, com seu cabelo
pouco mais curto que o meu. Mesmo escurecidos pelo nosso destino
iminente, os olhos do meu irmãozinho brilhavam como joias, íris verdes
embaixo e lilases em cima, como era típico nos membros do nosso clã.
Maron tornava-se cada vez mais uma gracinha de menino e isso não era,
de forma alguma, uma boa notícia. Mas era melhor eu nem pensar nisso.
Nossa única preocupação naquele fim de tarde escaldante era voltar com
o jantar, mas antes que seguíssemos à ilha Maron segurou meu braço.
“O que foi?” Perguntei, avistando na mesma direção que ele.
Uma caixinha de madeira flutuava no mar de esmeralda, solitária e
intacta. Apenas mais lixo humano, nada que merecesse nossa atenção, mas
Maron ainda assim nadou até ela e a tomou nas mãos.
“É apenas destroço de algum navio. Apresse-se, Maron.”
Maron me ignorou e abriu a caixinha. A água invadiu o interior de
madeira, inundando o forro de veludo e… uma espécie de bonequinho com
cordas, ou coisa assim.
“O que é isso?” Maron ergueu o boneco. Uma cruz de madeira unia os
fios aos braços, pernas e a cabeça, mas no gesto estabanado ele enroscou tudo
completamente.
“Já disse, lixo de humano. Humanos veem importância em bens
irrelevantes, deixe que o mar leve embora.”
“Mas pode ser útil no mercado.”
Pela forma como Maron abraçou a caixinha, eu soube que não adiantaria
discutir. Eu revirei os olhos e gesticulei com a cabeça para que me seguisse,
de preferência sem nos ferrar ainda mais.
Após pouco tempo de nado, o vago tom laranja do céu escureceu-se por
completo, conforme nos aproximávamos da torre de fumaça que conectava o
céu a um enorme vulcão marrom e bege.
Tárnacos, a ilha vulcânica. Lar do clã Trevally e polo de desenvolvimento
bélico da Aliança. O último lugar que eu desejaria ver, e ainda assim o único
que eu tinha para voltar. Pela angústia que Maron exalava ele pensava igual a
mim. E como não pensaria?
Eu e Maron nos aproximamos da ilha e enfim emergimos na praia, onde
diversos outros tritões também retornavam de sua frustrante caçada. Muitos
peixes pequenos, cestos murchos e rostos abatidos, mas claro que nosso cesto
era o mais vazio de todos.
“Pouca sorte hoje, Cordelen?” Perguntou Vitanen, uma sereia Trevally
alguns anos mais velha que eu. Ela me considerava um amigo,
provavelmente. Ou pelo menos sempre sorria ao me ver, mesmo que por
simples pena.
Eu forcei um breve sorriso e dei de ombros, acompanhando ela e Maron à
terra firme. Nossas caudas dissolveram em pernas esguias e magras,
encobertas até os pés por nossas túnicas de algodão branco.
“Ainda vamos passar no mercado. Tentar a sorte.” Falei a ela.
“Vai precisar de sorte, mesmo. O verão em Tárnacos está mais cruel que
o normal. Estão todos migrando para Zhang Qi e outras colônias menos
inóspitas, eu e o Yangin migraremos amanhã mesmo com as crianças.”
Vitanen abanou sua túnica molhada e esfregou a testa, que já começava a
formar suor. “Vocês precisam migrar também, apenas por alguns meses.
Entendo sua rotina no templo, Cordelen, mas pense no seu irmãozinho.”
“Não vamos a lugar algum.” Maron respondeu com frieza.
Vitanen suspirou, tão frustrada como no verão anterior, e no outro, e no
outro. Mas eu até apreciava a insistência dela. A maioria nem se importava
mais.
“Tentem conversar com o pai de vocês, só dessa vez? Mesmo que ele
insista em ficar, Yangin e eu temos uma unidade espaçosa nas galerias de
Zhang Qi. Você e Maron serão bem vindos.”
“Eu agradeço, Vitanen, mas precisamos ir antes que o mercado feche.” Eu
acenei a ela, tentando não parecer muito rude. “Desejo uma migração segura
ao seu núcleo.”
“Nos vemos no outono.” Vitanen acenou, não evitando um breve olhar de
comiseração. Então ela jogou os longos cabelos negros para trás e seguiu
rebolando seu corpinho de sereia na direção do vilarejo.
Eu e Maron continuamos pela estrada de chão batido e pedregoso, que
agredia nossos pés descalços. Não importava que fosse a rota principal
conectando o mercado, a vila, as forjas e o templo, o vulcão sempre cuspia
detritos pontudos como vidro. Era de se agradecer quando cortavam nossos
pés ao invés de chover na nossa cabeça.
Pelo menos naquele dia o vulcão de Tárnacos estava quieto. Não o
bastante para se avistar o céu, mas pelo menos a fuligem não agredia os
olhos.
Enquanto subíamos a ladeira em direção ao mercado nosso olhar
percorria discretamente os cestos de quem descia, a maioria tritões alfas com
suas túnicas coloridas e ferramentas de forja a tiracolo, voltando do serviço
com o jantar de seus núcleos. Peixinhos magros, camarões, metade de uma
lagosta… Nós apressamos o passo ou não sobraria nada pra gente.
O mercado de Tárnacos era como a ilha em si: Uma mistura de poeira,
fuligem, detritos e tijolos castigados pelo vento. Haviam algumas lojas de
conveniência e futilidades que não eram do nosso interesse. Como devotos, o
único comércio que podíamos frequentar era a Missão Filantrópica do
Exército Real, então nos encaminhamos diretamente para lá.
Dois soldados Kampango atendiam uma fila atrás de um balcão de
madeira, tão destruído quanto aquele casebre em si. Paredes cinza, chão
marrom, telhado de argila preta que talvez tenha sido bege um dia. Ou
marrom. Uma única planta espinhenta adornava a lateral do balcão em um
vaso de areia, talvez o único vegetal daquela maldita ilha, mas eu não julgava
os soldados por trazerem um mínimo de vida àquele fim de mundo.
Eu e Maron aguardamos atrás de uns vinte outros tritões, em sua maioria
ferreiros ou devotos do templo.
Maron tentava disfarçar, mas seu olhar sempre iridescia ao admirar os
soldados reais. E aquelas roupas realmente eram lindas. Cota de malha com
detalhes em dourado e veludo vermelho. Em Tárnacos eles vestiam versões
mais leves de sua indumentária militar, expondo os enormes braços negros e
peitoral musculoso típicos dos alfas Kampango.
Mas o que nos impressionava de verdade era algo no olhar deles.
Fornecer suprimento aos Trevally devia ser o pior encargo da guarda real,
aqueles pobres Kampango pareciam prestes a derreter ou a morrer de tédio,
mas havia algo em suas expressões que era simplesmente revigorante.
Devia ser a felicidade em saber que, encerrando a distribuição de
suprimentos, eles podiam simplesmente voltar aos seus predestinados felizes
e suas vidas felizes, em um lugar feliz.
Um lugar tão além da nossa imaginação, que poderia muito bem ser uma
lenda.
A fila andou aos poucos. O sol terminava de se pôr quando o Kampango
mais velho nos encarou com uma sobrancelha arqueada.
“Quantos no núcleo?” Perguntou ele.
“Nós dois e nosso pai alfa, mas…” Falou Maron, e foi logo interrompido
quando o Kampango jogou um pedaço de alguma coisa dentro do meu cesto.
Eu espiei com desgosto. Um robalo pequeno, com a espinha exposta entre
a cabeça e a cauda.
Tentando manter a boa postura, eu encarei aquele grandalhão nos olhos.
“Somos três em nosso núcleo.” Falei.
“A assistência da Coroa não faz milagre, garotos. Cheguem cedo da
próxima vez.” O guarda mais jovem cruzou os braços e se encostou nos
fundos da loja, não escondendo o nojo em estar coberto de suor e fuligem.
“Se vocês devotos migrassem como qualquer tritão inteligente, não
precisaríamos perder nosso tempo…”
“Nós temos isso.” Maron inclinou-se na ponta dos pés e abriu a caixinha
sobre o balcão. “Podemos trocar? Por favor?”
O guarda mais velho limpou as mãos sujas de peixe no lado da roupa e
levantou o bonequinho pelas cordas.
“O que é isso?” Perguntou o guarda mais novo. Ele devia ter uns vinte
anos, vinte e dois no máximo, mas era três vezes o meu tamanho.
“É uma marionete. Você manipula as cordas e a bailarina dança.” O
guarda mais velho soltou as cordas e balançou a cruz em cima, fazendo o
bonequinho dançar. “Os humanos adoram esse tipo de bobagem.”
“Talvez minha filha goste.” O mais novo deu de ombros e mergulhou a
mão no balde atrás do balcão. Ele jogou mais alguma coisa no nosso cesto.
O mais velho bufou para o colega.
“Sanderson, você sabe que o racionamento…”
“Um pedaço a mais ou a menos, alguma hora esses pirados vão desertar
daqui e não precisaremos perder tempo com filantropia.” O mais novo
sussurrou, como se não conhecesse a audição de sua própria espécie. Ele
guardou o boneco e nos sorriu amigavelmente. “Vão logo, não segurem a
fila.”
Maron rosnou para o insulto de antes, então eu o puxei pelo braço e nos
mandamos dali. Não era minha intenção discutir com guardas Kampango, e
aquele novato, apesar de idiota, talvez tenha salvado nossas vidas.
Sobre as algas, mariscos e um robalo destroçado, descansava uma
carnuda lagosta vermelha. Pequena se comparada às caças de inverno, mas
um verdadeiro luxo no tórrido verão de Tárnacos.
Capítulo 02

Mal entramos em casa e um golpe violento estourou contra o meu rosto.


Eu rolei pela terra batida do chão da sala até acertar as costas nos tijolos da
parede.
“O céu já escureceu.” Vociferou meu pai.
Ainda atordoado, eu entreabri os olhos e avistei a silhueta borrada do
papai, já partindo pra cima de mim com o punho fechado.
Eu recuei no cantinho da parede e protegi a cabeça com as mãos, como se
fosse adiantar. Outro golpe brutal acertou meu rosto contra o chão e o gosto
metálico de sangue inundou minha língua.
“Tinha fila no mercado, pai!” Gritou Maron, no outro canto da sala.
“Trouxemos comida. Olha no cesto. Tudo para o senhor.”
Eu não conseguia mais abrir os olhos, apenas me encolhi e esperei mais
golpes, mas dessa vez o estouro veio do outro lado da sala, seguido do
gritinho agudo do Maron.
Forçando meu olho não-ferido a manter-se aberto, eu vi Maron ser
arremessado no chão. E meu pai chutou ele, e de novo, e de novo.
“Sou um rato, para comer essa porcaria que vocês trazem?” Meu pai
chutou o cesto contra a minha cabeça e a comida se espalhou pelo chão
terroso. “As lições do chamado não ensinam nada a vocês, seus pirralhos
inúteis?”
Precisava muito para o Maron chorar, mas ele soluçou alto, mesmo
sabendo o que viria. Meu pai continuou o chutando como um trapo e eu me
esforcei a conseguir levantar.
Mancando e segurando o ombro ferido eu me aproximei deles.
“Desculpa o Maron, papai. Foi culpa minha, eu nos atrasei e não
conseguimos coisa melhor.”
Meus ouvidos apitavam tanto, que nem ouvi a resposta. Apenas senti as
costas de sua mão de alfa arrebentarem o meu nariz e eu caí para trás. Minha
cabeça já dolorida acertou a quina da mesa de jantar.
Ofegante, eu esperei pelo pior. Minha espinha gelou quando papai
ajoelhou do meu lado, cada coxa dele mais grossa que meu torso inteiro. Mas
ele apenas agarrou a lagosta e arrancou-lhe a cabeça com os dentes, deixando
pingar o caldo rançoso nas minhas costas.
Ele se levantou e foi sentar no sofá.
“Limpem essa merda.” Falou pai Cypron, ruminando a lagosta como um
animal.
Demorei não sei quanto tempo apenas para me levantar. Se não fosse o
chorinho fraco do Maron eu apenas continuaria ali, parado, deixando a dor e
o calor ardente do nosso casebre terminar de me destruir. Mas papai odiava
choro e aquela lagosta não o distrairia para sempre.
Eu engatinhei até o Maron e ele engoliu os próprios soluços, deixando
que eu o ajudasse a sentar.
“Quebrou alguma coisa?” Sussurrei a ele.
Maron esfregou o sangue no canto da boca e discordou com a cabeça.
“Vamos limpar isso logo.” Ele tentou se levantar e caiu de novo,
gemendo de dor.
Meu coração se torceu, ácido como vinagre. Eu estremeci meus punhos
doloridos e levantei, ignorando a dor lancinante por todo o meu corpo.
“Deixa que eu faço isso.” Falei, começando a catar os mariscos
enlameados um por um. Meu estômago rugiu de fome e raiva quando peguei
o robalo imundo e destroçado. Era um pedaço medíocre, mas pelo menos era
comida.
Bem, pelo menos os mariscos podiam ser aproveitados. Maron já havia
conseguido se levantar quando terminei a limpeza, então esfreguei a terra de
cada conchinha e dividi meio a meio, nós dois encolhidos no canto da
cozinha.
Se papai decidisse que queria os mariscos um novo inferno se abriria sob
nossos pés, mas eu ouvia o roncar do estômago do Maron, e eu mesmo não
conseguiria ajudá-lo se desmaiasse de fome por aí.
“Vocês rezaram hoje?” Perguntou o papai. Sua simples voz congelou a
minha alma.
“Sim senhor. Passamos o dia no templo.” Respondi, mastigando em
silêncio absoluto.
“Quero que venham aqui.” Disse ele.
Eu e Maron nos entreolhamos com lágrimas nos olhos. O que raios ele
queria? Maron era um menininho e eu um filhote magricelo e alto demais,
quase uma vareta de cabelo escorrido até os quadris. Pai Cypron era um alfa
Trevally que rivalizava em tamanho e força com os Kampango, exceto que os
Kampango eram conhecidos pela bravura e lealdade em seus corações.
Desde a morte do papai Aishen, a única lealdade do papai Cypron era
com a violência.
Maron e eu alisamos nosso cabelo enlameado para trás dos ombros e
fomos ao encontro do papai, com o olhar nos pés e cada fibra dos nossos
corpos tremendo como esponjas.
“Sentem aí, sua dupla de inúteis.” Papai Cypron apontou com a cabeça
para os dois blocos de pedra que serviam de cadeira, no canto ao lado do
sofá.
Eu e Maron ajeitamos nossas túnicas sujas e sentamos polidamente ao seu
lado, os ombros eretos e as mãos cruzadas sobre as coxas como era e se
esperar de um devoto.
Papai lambeu os lábios e esfregou as costas da mão na boca, todo melado
de tripas de lagosta. Seu olhar verde e lilás era mais frio que as míticas
geleiras de Cratília.
“Vocês sabem por que apanharam, hoje?”
Eu e Maron não respondemos, não viramos o rosto, nem respiramos.
Duas estátuas desejando somente a sobrevivência de mais uma noite.
Meu pai fungou e encostou-se no sofá, ajeitando o tornozelo enorme
sobre o joelho igualmente enorme.
“Vocês apanharam porque eu me importo com vocês.” Disse ele. “Vocês
serão bem educados e receberão a glória do chamado, pela honra de seu
finado pai Aishen. Falhei com o irmão de vocês e não falharei com mais
ninguém.”
Eu mantive o olhar nos joelhos. Meus ouvidos ainda relampejavam pelos
golpes no rosto, mas o pouco que eu conseguia compreender me dava
vontade de rir.
Não importava o que o papai dizia, ou o que diziam os pastores, o
primeiro irmão Zarkon não merecia o destino que teve. Qualquer um que
pensasse o contrário não era digno da minha devoção.
Mas, ironicamente, o destino fez de mim um Trevally, um órfão de pai
ômega e também um devoto.
Pai Cypron rosnou em desagrado com nosso silêncio.
“O que disse o pastor sobre seu despertar?” Perguntou ele a mim.
Eu avermelhei, constrangido por tratar disso diante do Maron.
“Três luas, quatro no máximo. Em breve meu predestinado se revelará a
mim.”
Maron deixou escapar um solucinho sentido. Nós dois sabíamos o que
meu despertar significava, especialmente para ele.
Felizmente papai ignorou sua breve fraqueza, ocupado em unhar os restos
de lagosta do meio dos dentes.
“Filhote ingrato. Aposto que vai conseguir um predestinado como o do
Zarkon. Talvez até pior, porque pelo menos Zarkon é bonito e gracioso, uma
cópia fiel do meu Aishen. Vocês dois parecem uns morcegos.”
Eu suspirei, nada surpreso com a opinião do papai. Até na miséria e
escassez de Tárnacos eu e Maron atraíamos olhares para a sombra em nossas
expressões. Os devotos acreditavam em uma vida de sofrimento e auto-
sacrifício, então a maioria nos considerava apenas frágeis demais para os
rituais do templo. Se alguém sabia a verdade, fingia não saber. Tritões de
respeito não interferiam no assunto de outros núcleos.
Quando papai silenciou, eu e Maron permanecemos congelados no lugar
incertos sobre o que fazer. Normalmente após as surras o papai cansava e
dormia em algum canto da casa, nos dando liberdade para dormir também,
ou, com muita sorte, cedia autorização para curar nossos ferimentos no mar.
Reuniões de família não aconteciam desde a morte do papai Aishen e eu
definitivamente preferia ir deitar e soluçar contra o travesseiro até a exaustão
me adormecer.
“Cordelen, a partir de amanhã você me ajudará nas forjas.” Disse ele.
Dessa vez a surpresa me venceu e eu ergui o rosto para fitá-lo nos olhos.
“O quê?” Perguntei.
“Não vou suportar outro filho resmungando através do chamado. Duas ou
três luas serão o suficiente para meter caráter nesse seu corpo de vareta. Você
concluirá os rituais do templo antes do sol alto e me encontrará na forja
depois, fui claro?”
Eu tremulei em horror, mas o que podia fazer além de concordar?
“Mas pai, um ômega…” Disse Maron, com a vozinha baixa e trêmula.
“Enquanto seu irmão não despertar, ele é um filhote e pertence a mim,
obedece a mim. Quer amaciar o outro lado da cara, seu merdinha?”
Maron voltou a olhar para os próprios joelhos, suas mãozinhas tremendo
sobre o colo.
Papai deitou-se no sofá e coçou as bolas por cima da túnica enlameada.
“Sumam da minha frente. E nem pensem em curar-se no mar ou vou
arrebentá-los em dobro. Quero que reflitam nos sacrifícios que estou fazendo
por vocês.”
“Sim, senhor.” Nós respondemos juntos e nos retiramos ao nosso quarto,
onde nossas camas de pedra e palha aguardavam para repousar nossos corpos
doloridos.
Capítulo 03

Uma densa cortina de vapor nublava o entorno do templo, acumulando-se


no ar estagnado com seu cheiro intenso de maresia e enxofre.
Normalmente as piscinas termais estariam lotadas de devotos, mas como
a maioria já havia migrado eu e Maron caminhamos sozinhos, um pé diante
do outro nas estreitas bordas de calcário e sal entre as piscinas borbulhantes.
O Templo de Tárnacos era o maior templo de adoração ao chamado
dentre todas as colônias de tritões, ou pelo menos era isso o que o pastor
dizia. De qualquer forma, o lugar era enorme: dezenas de piscinas de água
salina aos fundos do vulcão de Tárnacos, todas de diferentes tamanhos e
altitudes, uma chovendo sobre a outra.
Os turistas sempre se impressionavam com a beleza daquele lugar. O que
havia de bonito em água quente, sal e enxofre, eu não fazia ideia.
Enfim avistamos outros tritões, todos reunidos em círculo dentro da
Piscina da Salvação.
Eu e Maron fechamos bem nossas túnicas brancas e nos aproximamos.
Felizmente o vapor estava muito denso naquela madrugada quente, então
ninguém perceberia nossos machucados antes do banho nos curar.
Os devotos nos cumprimentaram com um gesto da cabeça e dois deles
abriram espaço, permitindo que eu e Maron entrássemos na água.
Nós agradecemos em silêncio, não querendo atrapalhar a fala do pastor, e
mergulhamos nossos pés no líquido escaldante.
No começo doía muito, mas com o tempo acabei me acostumando. Os
devotos de Tárnacos acreditavam na glória através da agonia então os mais
radicais mergulhavam diariamente na água quase fervente, capaz de cozinhar
até os tritões mais fortes.
Talvez fosse tudo uma bobagem estúpida, mas não era meu papel
questionar. Enquanto o pai me obrigasse a comparecer nos rituais, acreditar
era um detalhe irrelevante. Para falar a verdade, participar das rotinas do
templo talvez fosse a melhor parte dos meus dias. Machucar a mim mesmo
era muito melhor que ser machucado por outra pessoa, e todos ali eram bons
comigo e com o Maron.
“Meus jovens pupilos chegaram cedo hoje.” O pastor acenou para nós, na
plataforma elevada ao centro da piscina. “Que o chamado os abençoe.”
“O chamado é justo e o chamado é sábio.” Respondemos em coro,
encolhidos para ocultar nossas escamas faltando. A água ardente e
extremamente salgada latejava em nossos ferimentos conforme nos
recuperava.
O pastor sorriu e continuou seu discurso da manhã. Ele era um Trevally
de meia idade, com ruguinhas no canto dos olhos e o mesmo cabelo longo e
preto que todos nós ostentávamos até a cintura, embora o dele já clareasse
com alguns fios brancos. Ele permanecia sentado sobre sua cauda de alfa,
verde com listras lilás, quase totalmente encoberta pela túnica branca.
Já acostumado à temperatura extrema e ao vapor sufocante, eu fechei os
olhos e escorreguei o corpo até mergulhar totalmente, dando início à minha
meditação.

Sua determinação é apreciada, pequeno.


Suas dúvidas, suas incertezas, tudo é areia a dissolver no mar.
Pois sua função será apenas uma
E você a cumprirá no momento certo.

A voz do chamado ecoava claramente em meus ouvidos, intensificada


pela salinidade extrema da água. Era como conversar com alguém bem ao
meu lado, exceto que era uma conversa de mão única.
Ainda assim, eu enlouqueceria se não continuasse tentando.
“Onde está o Zarkon?” Sussurrei. “Por favor, Sagrado Chamado, por
favor, eu imploro sua misericórdia ao meu irmão.”
O chamado é o equilíbrio e a justiça
O chamado premiará os dignos
Sábio é aquele que reconhece sua sagração

Eu suspirei e emergi meu rosto novamente, frustrado. Não importavam


meus sacrifícios, o chamado nunca respondia nada diretamente.
“Meus estimados discípulos, que aqui comparecem no auge do verão
tarnaciano, vocês serão aqueles a encontrar a verdadeira glória. Aceitem o
chamado em seus corações, pela luz de sua cura, pela proteção de sua voz,
pela austeridade de suas demandas, pois este é o caminho de nossa
plenitude.” Recitou o pastor para a meia dúzia de tritões que não havia
adormecido em meio à meditação. “Cordelen, quero que venha comigo.”
Quase alucinando pelo calor, demorei a entender que ouvi meu nome.
Quando expandi meus olhos para o pastor ele já estava ao meu lado, à
margem da piscina e com aquele eterno sorriso doce em seu rosto.
Eu olhei para o lado, esperando trocar olhares com Maron, mas ele não
estava mais ali. Maron nunca deixava o meu lado.
Confuso e sentindo um amargor no estômago, eu deixei a água
escaldante, minha cauda tornando-se um par de pernas vermelhas sob a
túnica encharcada.
Após uma longa reverência ao pastor eu o segui pelos corredores de sal
até as piscinas mais isoladas.
“Cometi algum erro, pastor Klein?” Perguntei, com o olhar baixo.
“De forma alguma, Cordelen. Você e Maron são meus discípulos mais
jovens e também os mais dedicados.” Ele deu uma risadinha “Seu pai Cypron
tem muito a aprender com a espiritualidade de vocês, ele aparece cada vez
menos, eu imaginaria que um ferreiro não temeria o calor desta época do
ano.”
Eu me mantive quieto, agradecendo internamente pelo pai Cypron não
aparecer tanto assim. Para que rezar pelo falecido predestinado, quando ele
podia forçar os filhos a rezar por ele?
O pastor mudou de direção, saltando habilmente entre as margens de sal
cristalizado. Cada piscina era utilizada para funções diferentes, então às vezes
eu encontrava grupinhos de meditação, ou de conversa, ou até de ginástica.
Mas quando percebi para onde eu era conduzido, todo o calor do ambiente
não impediu meu estômago de gelar.
“A Piscina do Despertar? Por que estou aqui?” Perguntei, travando meus
passos.
O pastor Klein virou-se a um pastor mais jovem, um ômega, que acenou
para nós dois de dentro daquela piscina. Ele voltou a olhar para mim.
“O chamado conversou comigo sobre seu despertar. Mais quatro luas e
você se tornará um adulto.”
“O senhor me disse isso ontem.” Eu suspirei, e então arregalei os olhos
em uma súbita esperança. “Você encontrou algum jeito de atrasar o
processo?”
“Atrasar? Não, Cordelen, por que qualquer tritão desejaria isso? Estamos
aqui pelo motivo contrário.”
O pastor Klein gesticulou ao ômega, que se aproximou de nós através do
vapor denso, carregando algo pequeno entre os dedos. Não havia ninguém ali
além de nós três.
Quando o ômega chegou ao nosso encontro, percebi o que carregava.
Uma pequena xícara com um líquido dourado e cintilante. O brilho
sobrenatural fez meus olhos iridescerem em fascínio, mas foi o aroma que
disparou meu peito.
Infusão de coral-do-oráculo, um elixir poderoso capaz de forçar o
despertar de um tritão. Era extremamente raro e seu uso muito perigoso se
usado por filhotes jovens demais. Apenas alguns núcleos de elite o
utilizavam, em uma tentativa de controlar predestinações.
Naturalmente, um clã tradicional como o Trevally rejeitava o uso de
artifícios como este, e os devotos o abominavam como uma deturpação do
Sagrado Chamado. Então por que prepararam aquele chá? E no templo, de
todos os lugares?
Percebendo o meu pânico, o pastor deu um tapinha no meu ombro.
“Fiquei sabendo que frequentará as forjas a partir de hoje. Uma função
difícil para um filhote, mas como adulto você terá uma escolha.”
Eu expandi os olhos, enfim entendendo tudo.
Maron, aquele pestinha. O que mais ele contou ao pastor Klein? De todas
as pessoas, ele deveria entender que eu não podia despertar. Eu simplesmente
não podia.
“O velho Cypron nem sempre foi assim. Você deve lembrar dele na época
antes da explosão. Um tritão viúvo pode sofrer graves mudanças emocionais,
é desejo do chamado que ele não seja julgado por isso.” Disse o pastor Klein.
Eu permaneci mudo, com suor de calor e nervosismo vertendo pelo meu
rosto e grudando o cabelo no meu pescoço. Meu olhar mantinha-se fixado no
chá dourado diante de mim.
Pastor Klein soltou meu ombro e retornou pelo caminho de onde veio.
“Você ficará mais confortável com outro ômega, e o pastor Enan tem…
certa experiência em administrar infusões. Minha recomendação é que aceite
esta ajuda, Cordelen. Seu irmãozinho está muito preocupado.”
Eu engoli seco e concordei com a cabeça.
Meu coração batia nos ouvidos quando o pastor Klein desapareceu em
meio ao vapor, de volta à própria piscina. Eu voltei a olhar para o chá, que o
tal de pastor Enan mantinha erguido diante do peito.
“Você quer predestinar com alguém em especial?” Perguntou o jovem
pastor.
“Com ninguém.” Respondi, e o pastor riu como se eu falasse uma piada.
Eu o acompanhei para dentro da água e sentei na plataforma, tremendo
tanto que não consegui nem recuperar as pernas. Eu não podia despertar, eu
não podia, eu não podia.
Mas se era inevitável que diferença faria uns dias a menos? Quando
percebi a xícara já estava em minhas mãos, o chá dourado dançando como
luz líquida na porcelana clara.
“Feche os olhos e beba em um único gole. Seu despertar ocorrerá antes da
próxima lua.”
Tremendo em puro nervosismo, eu pensei no Maron e no Zarkon. Meus
queridos irmãos por quem eu não podia fazer nada. Mas o Maron pôde fazer
algo por mim e eu não desperdiçaria seu esforço.
E então, com o rosto molhado de suor e lágrimas, eu levei a infusão aos
meus lábios.

****

Filetes de lava escorriam pelas laterais dos túneis, iluminando o caminho


às forjas.
Eu esfreguei o suor na testa, ofegante e com a visão dobrada. Ainda havia
um longo trajeto pelo interior do vulcão, mas minhas pernas já dobravam
pelo esforço de cada passo.
Haviam diversas forjas em Tárnacos, a maioria delas ao ar livre, onde
eram produzidos tridentes, armaduras e outros equipamentos úteis à Coroa,
mas meu pai não trabalhava em uma forja comum. Apenas a forja vulcânica
produzia os melhores equipamentos, dignos de serem portados pelo próprio
Oráculo.
Como o nome sugeria, a forja vulcânica situava-se no interior do vulcão
de Tárnacos. Um inferno subterrâneo onde apenas os maiores alfas se
atreviam a trabalhar. Alguns ômegas valentes costumavam realizar trabalhos
menores por ali, mas o acesso dos ômegas foi proibido após a explosão.
Filhotes nunca foram permitidos ali, especialmente filhotes de ômega,
como eu. Mas os supervisores já haviam migrado e meu pai sabia disso
quando me forçou a aparecer.
Seguindo o cheiro do papai em meio ao fedor sufocante de enxofre, eu
consegui encontrar a forja. Era um salão amplo e redondo muito abaixo da
terra, com centenas de ferramentas e armas penduradas nas paredes, bigornas,
marretas, rodas de polia e um enorme fosso de lava incandescente no centro.
O calor fazia o ar ondular diante dos meus olhos.
De costas para mim e com um imenso martelo nas mãos, meu pai
golpeava uma corrente metálica com sua brutal força de alfa. O barulho
ecoava pelo recinto fechado e atingia meus ouvidos como se fossem facas.
“Estou aqui.” Gritei, tentando ser ouvido.
Meu pai se virou e subiu a máscara protetora em seu rosto. Ele eriçou os
lábios, enojado ao me ver.
“Recém chegou e já está suado desse jeito?” Ele deu de ombros, em
desdém. “Você vai preparar os moldes dos pontais. Não se atrase, quero vinte
desses prontos para hoje.”
Eu não sabia o que eram moldes, ou pontais, ou do que raios meu pai
estava falando. Apenas me arrastei ao balcão que ele apontou e tentei
focalizar a visão diante de mim. Meus pulmões buscavam ar em total
desespero, as pequenas ventoinhas no teto não davam conta de toda aquela
fumaça.
Meu pai continuou batendo argolas em correntes de aço, sem dar maiores
explicações. Haviam umas coisas estranhas sobre a mesa, espetos, arames,
tiras de couro… uma das coisas metálicas tinha um sulco no formato de uma
ponta, talvez o pontal fosse isso? Eu olhei para os tridentes já prontos,
totalmente negros exceto pelas pontas de ouro, tentando descobrir o que
fazer.
Eu começaria a chorar se ainda houvesse algum líquido dentro do meu
corpo. Eu sentia minha própria pele evaporar, tornar-se parte daquele ar
estagnado e sujo. Não havia tempo de pensar, eu precisava…
Alguma coisa acertou minhas costas e eu caí no chão.
“Que enrolação é essa?” Meu pai gritou.
Eu abri os olhos e avistei a fúria no olhar do meu pai. A tira de couro em
suas mãos fez sumir o pouco ar de dentro dos meus pulmões.
“Não sei o que fazer.” Miei, recuando no chão quente. “Se o senhor
explicar, eu…”
“Você é um inútil!” Ele zuniu o cinto no ar, golpeando a mesa com tanta
força que fez voar lascas de madeira. “Não consegue caçar, ou rezar ou fazer
nada que preste! Vai virar um putinho fraco e chorão, como aquele burro do
seu irmão mais velho!”
“O Zarkon não é nada disso!” Gritei, furioso demais para lembrar do bom
senso.
Tão rápido que nem consegui piscar, o pai desceu o cinto em mim,
acertando meu peito, meu ombro, minhas coxas.
“Seu irmão é exatamente tudo isso e você também é, por defender aquele
pecador. Ele merece exatamente tudo o que recebeu.” Gritou ele, entre os
golpes de cinto. “Levanta daí, vou te mostrar uma coisa.”
A dor inflamava minha pele ainda mais que o calor. Não consegui mexer
sequer um dedo, mas entreabri os olhos no cantinho onde consegui me
encolher. Pela minha visão borrada eu avistei onde meu pai apontava: uma
cratera na parede, no lado oposto da forja. Era difícil notar porque as paredes
eram naturalmente pretas, mas naquele ponto a escuridão era ainda mais
profunda.
Eu movi os lábios para perguntar, mas a voz não saiu. Maron conseguiu
que eu passasse um único dia na forja, mas até mesmo isso me era
impossível. Eu morreria. Já não me imaginava deixando aquele lugar com
vida.
“Pensei que fosse se interessar.” Meu pai deu um sorriso cínico. “Deveria
ser do seu interesse, pelo menos, porque ali foi o local da explosão.”
As palavras do papai me trouxeram um último sopro de vida. Eu apoiei os
cotovelos no chão e ergui minha cabeça para olhar direito.
“Então… então foi aqui que o papai Aishen morreu?” Perguntei.
“Poucos ômegas são loucos de se meter aqui, mas o Aishen… aquele cara
era louco. Queria ficar sempre comigo, o pombinho apaixonado. Tava nem aí
pro calorão desse lugar.” Por um momento o olhar do papai quase denotou
ternura, então logo voltou a ser uma pedra de gelo no inferno. “Ômega só
presta pra parir, mesmo.”
Derrotado pelo calor e e pelos golpes, eu respirei fundo e deixei minha
visão apagar, desejando que papai Aishen aparecesse para me levar com ele.
Capítulo 04

Despertei com a água gelada batendo no meu rosto.


Eu abri os olhos e me vi nos cascalhos vitrificados da praia da Tárnacos,
o mar cinza indo e voltando em ondas refrescantes na minha túnica rasgada.
Eu meti o rosto na água e bebi furiosamente, engasgando e arfando no
desespero de matar a sede.
De alguma forma eu estava vivo.
“Você acordou.” Maron retornou do mar com um peixe-voador nas mãos.
“Papai deixou que eu caçasse além do recife. Eu devia ter encontrado coisa
melhor.”
Maron me entregou o peixinho, que debatia suas longas barbatanas. Eu
não conseguia falar então apenas engoli aquela minúscula refeição, que
atingiu meu estômago como uma pedrinha em um poço.
Eu ergui meu olhar, avistando a constante capa negra que bloqueava o
céu. A brisa atiçava o topo do vulcão, encobrindo minha túnica com uma fina
camada de fuligem. Por um rasgo no tecido dava pra ver as marcas do cinto
nas minhas escamas, confundindo-se com as minhas listras naturais.
“Obrigado.” Falei.
“Não fiz nada. Papai disse que eu te encontraria aqui.” Maron sentou ao
meu lado e jogou água na minha cauda, acelerando o processo de cura.
“Não estou falando disso. Hoje de manhã, no templo. Não precisava ter
feito aquilo.”
“Sim, eu precisava.” Disse ele, maduro demais para uma criança.
“Quando vai despertar?”
“Hoje, eu acho?” Eu tentei avistar o sol, ou a lua, mas a fuligem impedia.
“Me desculpe.”
“Você vai ser livre, segundo irmão.” Maron deu um sorrisinho cansado e
frágil.
Eu comecei a rir, por simples desespero. Livre? Eu apenas mudaria de
dono.
Por algum tempo nós dois apreciamos a companhia um do outro,
enquanto o chamado curava meus machucados. O céu começava a
avermelhar quando Maron se levantou.
“Preciso passar no mercado.” Ele ergueu a mão quando tentei
acompanhá-lo. “Direi ao papai que você não consegue mudar de forma,
duvido que ele venha verificar. Aproveite para comer direito.”
Era humilhante ser protegido por um menino de dez anos, mas cada
movimento ardia como navalhas na minha carne.
“Boa sorte.” Eu disse.
Maron acenou para mim e seguiu na direção da vila.
Acompanhado do som das ondas e dos estalos vulcânicos, eu descansei a
testa na minha cauda e busquei forças pra chorar, mas não havia nada. Havia
apenas um vazio escuro e absoluto, como aquele que levou o papai Aishen.
Eu fechei os olhos e me imaginei nas míticas geleiras de Cratília, ou nos
suntuosos campos de Zhang Qi ou na ilha de Egarikena, onde diziam existir
mais cores que o olhar de um tritão pudesse compreender. Mas eu continuava
sendo um ponto insignificante entre as pedras lamosas de Tárnacos.
“Ahm… oi?”
Assustado, eu abri os olhos e o que vi me fez gritar.
Tudo havia sumido! A praia, o vulcão, o céu… tudo se tornou água e
estrelas no céu escuro. Eu rodopiei como um louco, surpreso demais até
perceber o óbvio.
Eu reconhecia aquele cenário. Era como o chamado nos aparecia durante
o sono e as meditações. Diziam que ele tornava-se mais real durante o
despertar, e realmente era verdade.
Espera, se aquele era meu despertar, então…
Finalmente foquei meu olhar adiante. O cara que me chamou continuava
ali, esfregando atrás do pescoço com uma expressão embaraçada no rosto.
Os ômegas do templo adoravam fofocar sobre sua experiência no
despertar, então nada daquilo era novidade pra mim. Havia mar, estrelas, o
brilho do chamado, e o tritão a quem eu pertenceria. Aquele cara não parecia
tão preparado quanto eu.
“Meu nome é Cordelen Trevally e eu sou o seu predestinado.” Informei a
ele. Para meu alívio, a ilusão não incluía minha túnica rasgada ou meus
machucados. Nós dois estávamos despidos.
O tritão musculoso enfim relaxou o corpo e abriu um sorrisão imenso.
“Sério? Eu… eu tô despertando? Ah, que coisa mais louca, isso é
incrível! O Fran me contou que aqui era muito insano com todas essas
estrelas e…” O cara abanou o rosto, deixando o cabelo cor-de-palha todo
espetado “Ah, e olha você! Nossa, é sério que vamos predestinar? Cordelen,
você é super lindo, aah!”
“É preciso informar seu nome para dissipar essa ilusão.” Falei. “Você
será meu alfa e deve vir ao meu encontro na ilha de Tárnacos.”
“Tárnacos é aquela colônia com um vulcão? Dizem que o templo é super
impressionante! Você conhece o templo? É tipo, um monte de piscinas de sal,
e tem uns tritões loucos que tomam banho lá dentro, e nossa! Você é mais
alto que eu, já reparou?”
Eu franzi a testa, bastante atordoado. Aquele alfa nadava enlouquecido ao
meu redor, me analisando de cima a baixo. Em algum momento ele chegou
perto o bastante para que eu notasse seus olhos. Uma íris lilás e outra verde.
“Você é um Amalona.” Constatei, surpreso.
“Sim! Meu nome é Yoshan Amalona! Ah, eu preciso te encontrar logo,
mas Tárnacos é tipo, super longe de Egarikena, como eu faço? Ah, meus pais
vão surtar, eu nunca viajei tão longe. Eu já disse que você é lindo?”
Minha cabeça começava a dar voltas. Eu não conseguia entender nada,
então deixei aquele cara falar e falar até que a ilusão marinha serpenteasse ao
nosso entorno.
“Encontre-me em Tárnacos, Yoshan Amalona.” Falei a ele.
“Aaah, não! Eu ainda quero falar com você! Quais seus peixes favoritos?
Você gosta de…”
Um tornado úmido envolveu meu corpo. Eu apertei os olhos por instinto e
quando voltei a abri-los estava sozinho na praia.
Yoshan Amalona… o que seria do meu futuro à sua mercê?

****

Começava a amanhecer quando voltei pra casa. Meu corpo havia se


recuperado e um pequeno atum enganou minha fome, mas eu precisava trocar
meus trapos por uma túnica decente antes de ir ao templo.
Normalmente meu pai já estaria nas forjas, então quando o avistei no sofá
meu coração quase desceu nos pés.
“O fracotinho recuperou as pernas.” Meu pai riu com desdém enquanto
levava um marisco à boca. Então ele parou a mão a meio caminho dos lábios
e franziu a testa. “Seu cheiro está diferente.”
“Eu despertei.” Respondi, com os ombros retos e a postura firme, embora
eu fosse gelatina por dentro.
“Pensei que demoraria mais.” Meu pai riu, ajeitando as costas com uma
expressão interessada e cínica. “Qual o nome do coitado que te conseguiu?”
“Yoshan.” Respondi, farejando discretamente a casa. Maron permanecia
no nosso quarto.
“Não é de Tárnacos, com certeza.” Meu pai palitou uma concha dos
dentes com outro pedaço de concha. “Outro filho inútil sendo levado para o
quinto dos infernos por um alfa qualquer. Tenta não resmungar tanto quanto
aquele miserável do Zarkon, meus banhos de mar são sempre o mesmo
tédio.”
Meu sangue ferveu em raiva. Mesmo após o meu despertar aquele velho
não pretendia demonstrar o menor respeito? Isso não me surpreendia, mas
pela primeira vez eu não precisava calar.
“Não devo ser tão inútil assim, porque predestinei com um Amalona.” Eu
arqueei minha sobrancelha levemente, o bastante para irritá-lo. “E o senhor
conhece a hierarquia dos clãs, os Amalona estão diretamente abaixo da
família real.”
Meu pai deu um grunhidinho e por um breve segundo seus olhos
tremularam em decepção e ódio, o que me trouxe uma rara satisfação.
“Um Amalona, é?” Perguntou ele.
“Um Amalona de Egarikena.” Não resisti esboçar um sorrisinho sutil.
“Eu diria que o chamado não me odeia tanto assim.”
Quando filhote eu nunca seria louco de sequer olhar papai nos olhos. Mas
a partir daquele momento eu era um adulto, propriedade de Yoshan Amalona,
e meu pai que tentasse me machucar porque sofreria sérias consequências
com a chegada do meu alfa.
No fundo eu queria ver papai tentar violência, então quando ele começou
a rir eu realmente fiquei surpreso.
“Sério? Você se acha sortudo em conseguir um Amalona?” Meu pai
tremia de tanto rir. “Como consegui criar um filho tão burro?”
“Como assim?” Perguntei, perdendo qualquer confiança na minha pose.
Meu pai levantou bruscamente do sofá e veio para cima de mim. Ele
agarrou firme atrás dos meus cabelos, enterrando as unhas no meu couro
cabeludo até eu gemer de dor.
“Os Amalonas são os confidentes e informantes da família real, mas a
lealdade deles pertence ao Oráculo e ninguém mais.” Meu pai sorriu com o
rosto quase colado ao meu, adorando o tremor nos meus olhos. “Dizem que a
personalidade de um Amalona é distinta como a cor em seus olhos. Em um
dia, são doces e companheiros, no dia seguinte BAM!”
Eu gritei e me encolhi com aquele grito, mas o papai não me bateu nem
nada parecido. Ele apenas largou meu cabelo e voltou a sentar no sofá.
Minhas pernas tremiam demais, eu precisei me apoiar na parede.
“Pegue suas coisas e suma.” Disse ele.
“Quê?”
“Este é o meu território. Suma.”
Papai não precisava dizer mais nada. Eu esperava que isso fosse
acontecer, ainda assim meu estômago dobrou em angústia quando abri a
porta do meu quarto.
Aquela era, afinal, a casa onde papai Aishen viveu conosco.
Maron sorriu ao me ver. Ele já estava acordado, encolhido no canto da
cama.
“Um Amalona, sério?” Ele sussurrou, empolgado.
Eu concordei com a cabeça, pegando minhas túnicas e juntando em uma
bolsa.
Maron mantinha um sorriso no rosto, apesar do inchaço vermelho que
não estava ali antes.
“Ele é bonito?” Maron perguntou.
Eu franzi a testa, estranhando a pergunta.
“A aparência dele é irrelevante.” Eu suspirei, sentindo um estranho calor
no rosto. “Mas sim, pode-se dizer que ele é bonito.”
Maron bateu palmas silenciosas, eu realmente não compreendia a alegria
dele.
“É melhor eu ir.” Eu passei a bolsa pelas costas. “Acho que ainda nos
vemos no templo, então… se cuida, Maron.”
“Pode deixar.” Ele acenou. “Parabéns, segundo irmão.”
Eu deixei o quarto e depois o nosso casebre. Não seria difícil encontrar
uma moradia desocupada durante o período de migração, ainda assim foi
impossível não chorar enquanto eu me afastava.
Parabéns pelo quê? Qual era o meu prêmio? Gerar os bebês de um alfa
qualquer, enquanto meu irmãozinho continuava nas mãos daquele monstro?
Capítulo 05

Não havia grandes luxos na casa da Vitanen, era apenas outro casebre
marrom e castigado pelos ventos arenosos, mas ainda assim era um lar, e ela
com certeza não se importaria que eu morasse ali em sua ausência.
Há tempos eu não dormia tanto. Acordei me sentindo revigorado embora
não tenha sido uma noite tranquila. A sensibilidade da minha pele encontrava
agonia nos menores atritos. A palha do colchão, o algodão da minha túnica,
tudo eletrizava meus pelos e alterava a minha respiração.
Aquele desconforto não era nada perto do convívio com o papai, ainda
assim eu me apressei ao templo ansioso por algumas respostas.
O templo parecia ainda mais deserto naquela manhã. O pastor Klein
recitava as palavras do chamado para quatro ou cinco discípulos, entre eles o
Maron, que parecia concentrado em sua meditação.
Aliviado em vê-lo bem, eu me aproximei do grupo. Então alguém atrás de
mim segurou minha mão, causando espasmos elétricos que me fizeram
gemer.
“Nossa, já está sensível assim?” O pastor Enan soltou a minha mão,
sorrindo encabulado.
Eu escondi as mãos nas costas e endireitei os ombros.
“É apenas efeito colateral do despertar. O chamado amplia o desconforto
para que a concepção seja entendida como um alívio.” Falei.
“Vejo que alguém estudou bem a teoria.” Pastor Enan sorriu
travessamente. “Conseguiu dormir bem?”
“O problema se resolverá com a chegada do alfa, agradeço sua
preocupação.” Eu prestei reverência e segui para a piscina, ansioso em ver
Maron e ouvir os conselhos do pastor Klein.
Pastor Enan segurou minha mão de novo, suavemente dessa vez. Ainda
assim os choques relampejaram atrás do meu pescoço.
“Posso ser jovem, Cordelen, mas administro a Piscina do Despertar há
anos. As coisas estão paradas agora, mas lá costuma ser um ponto de
encontro animado para nós ômegas. Se precisar de apoio pode contar
comigo.” Ele deu uma piscadinha de cumplicidade.
Eu o ignorei e entrei na Piscina da Salvação, um tanto indignado. Todos
os tritões passavam pelo despertar, era ridículo deduzir que eu precisava de
ajuda em uma situação tão trivial.
Maron me cumprimentou educadamente.
“Você entrou em alguma piscina antes dessa?” Maron me perguntou.
“Seu rosto está todo vermelho.”
Eu balancei a cabeça em negação e dobrei minha cauda em pose de
meditar.
Tão calor. A névoa escaldante grudava no meu rosto sensível, e as bolhas
de fervor deslizavam no sulco das minhas costas como milhões de insetos
elétricos. A água em si era fogo. Tudo era fogo.
“Cordelen! Cordelen, meu jovem, você está bem?”
Alguém agitava meus ombros. Era o pastor Klein, sua imagem toda
distorcida em meio ao vapor.
“O que houve?” Perguntei, notando que estava deitado nos bancos de sal.
Os outros devotos me assistiam curiosos e trocando risadinhas, um deles
cobrindo os olhos do Maron.
“Pensei que o pastor Enan conversaria com você.” Pastor Klein desviou o
olhar, muito vermelho. “Está dispensado dos rituais pelo resto da semana,
quero que cuide da sua saúde.”
Eu apertei os olhos, enfim recuperando a nitidez da minha visão. Havia
algo na minha túnica. Aliás… sob a minha túnica. Uma coisa comprida
apontada pra cima.
Meu rosto ardeu de vexame e eu dobrei o corpo, morto de vergonha.
Após uma rápida despedida eu disparei correndo até a Piscina do Despertar,
enquanto o pastor Klein tentava acalmar a risada dos outros discípulos.

****

“Não precisa chorar. Acontece com todo mundo.” Pastor Enan segurava o
riso enquanto vasculhava um baú atrás de sua piscina.
“Não estou chorando, estou aborrecido!” Falei, ainda tremendo. “Se é tão
normal não deveriam rir.”
Pastor Enan sorriu ao encontrar alguma coisa. Ele puxou um longo tecido
branco que logo reconheci como uma túnica de devoto, só que aquela era
diferente. O tecido era grosso e parecia muito pesado, especialmente na parte
da saia. Ele entregou a longa roupa nos meus braços e eu quase cedi os
joelhos com o peso.
“O que é isso?” Perguntei, lembrando de já ter visto outros devotos
usando.
“Uma túnica para novos-adultos. O peso deve esconder certas reações e
você poderá continuar frequentando espaços públicos. Além disso, o couro de
beluga é mais liso que sua túnica de algodão e deve incomodar menos a
pele.”
“Obrigado.” Falei, envergonhado. “Então é isso? Eu devo apenas
aguentar até a chegada do alfa?”
Pastor Enan sentou em um banquinho à beira da piscina borbulhante. Ele
deu bateu no lugar ao seu lado para que eu sentasse e eu obedeci.
“Esse tal de Yoshan partiu de Egarikena, certo? Nadando rápido ele deve
demorar em torno de vinte luas, talvez mais. Velocidade não é o forte dos
Amalonas.”
“Vinte luas não parece muito.”
“Por enquanto não.” Pastor Enan riu. “O desconforto ainda aumentará
muito. Lembro quando predestinei com o Kayman e aquele lerdo me fez
esperar trinta e seis luas. Acredita que ele se perdeu nos Recifes de
Crestman? Quando ele chegou eu fervia mais que o Vulcão Tárnacos, quase
morri.”
Eu arregalei os olhos, assustado.
“É possível morrer esperando?”
“Não, não, é modo de dizer.” Pastor Enan riu e apertou meu ombro, mas
um gemido meu o fez afastar rápido. “Desculpa. Ah, é só que são boas
memórias.”
Eu olhei para a túnica em meus braços, sem saber o que falar. Como um
sofrimento desses podia trazer boas memórias? Pastor Enan pertencia a outro
tritão, um Kampango das forjas a céu aberto. Ele pariu seu primeiro filho e
em breve seu corpo conseguiria gerar o próximo. Pastor Enan era um objeto
de reprodução como qualquer outro ômega, o que havia de bom em uma vida
assim?
Pastor Enan olhou ao redor, onde havia apenas vapor, bancos de sal e
água fervente. Ele sorriu pra mim e subiu a barra da minha túnica,
travessamente.
“Levanta, deixa eu ver isso. Não se preocupa, nenhum alfa vai aparecer.”
Quê? Aquilo me envergonhava profundamente, mas acabei obedecendo e
deixei que o pastor tirasse a minha roupa por cima do pescoço.
Pela primeira vez olhei diretamente o volume entre as minhas pernas e
quase gritei de pânico. Era muito grande. Eu tentei segurar a ponta e o pastor
bateu na minha mão.
“Se controla, pode brincar quando estiver sozinho em casa.” Disse ele,
enquanto me ajudava com a túnica pesada. “Antigamente os ômegas devotos
eram proibidos de retirar esse trambolho, mas em que tempo vivemos, não é
mesmo? Esperar é muito chato sem um pouquinho de diversão.”
O tecido pesou nos meus ombros, me fazendo soltar o ar de uma só vez.
“Perdão, pastor Enan, receio não ter entendido nada. Como assim,
diversão?”
Pastor Enan sorriu como se estivesse aguardando exatamente aquela
pergunta. Ele correu ao seu baú e pouco depois voltou com uma… pedra
comprida.
Minha confusão só aumentava a cada segundo.
“Ahn…” Gaguejei, enquanto o pastor balançava a pedra diante de mim.
Havia uma grande semelhança no formato dela com o… meu formato lá de
baixo. Exceto que a pedra era muito maior e mais grossa.
“Posso explicar como funciona, mas seus hormônios de ômega ainda
estão florescendo. Em poucos dias você entenderá sozinho.” Ele colocou a
pedra nas minhas mãos. “Por favor lave direitinho antes de me devolver.”
“…O…ok.” Respondi, me sentindo realmente burro.
Pastor Enan afagou meu cabelo. Seu sorriso tornou-se mais calmo e
sincero, quase triste.
“Eu sei que é difícil, especialmente depois do que aconteceu com seu
irmão mais velho. Mas acredite quando eu digo que existem alfas bons.
Yoshan Amalona será alguém maravilhoso.”
Eu sorri ao pastor e me levantei, prestando uma reverência em despedida.
“Agradeço suas palavras, pastor Enan, mas neste momento um tritão está
atravessando os mares para subjugar o meu corpo e se reproduzir às minhas
custas. Ninguém com tal objetivo pode ser considerado bom.”
E deixando para trás um pastor completamente emudecido, eu parti do
templo em direção ao oceano, onde planejava fazer minha primeira refeição
decente em muitos meses.

****

Fogo, vapor, lava incandescente chiando fumaça ao encontrar o mar.


Tárnacos era o verdadeiro inferno na terra, um pesadelo de rocha escaldante
onde o sol nunca alcançava.
Ainda assim, naquele momento havia algo em Tárnacos mais ardente que
qualquer piscina termal ou forja: eu.
Gemendo em agonia, eu me torci na cama e gemi ainda mais quando a
palha do colchão arranhou minhas costas. Há sete luas eu aguardava a
chegada do Yoshan, e apenas imaginar o tempo restante fazia brotar lágrimas
nos meus olhos.
A túnica de couro prensava o meu peito e espremia a minha barriga,
impedindo a evaporação do meu suor e me fazendo gritar de tanto que doía. E
era uma dor desconhecida, angustiante. Nada parecido com uma pancada ou
um soco, mas algo que brotava de dentro para fora, quente e elétrico ao
mesmo tempo.
Apesar da sugestão do pastor, eu nunca retirei a túnica pesada. Conforme
os dias passaram eu compreendi o que significaria a remoção daquele tecido,
e as consequências me pareciam extremamente inadequadas. Eu podia
desaprovar meu destino como ômega, mas sabia respeitá-lo. Yoshan
receberia meu corpo plenamente imaculado, como era seu direito de alfa.
Isso se o calor não me matasse primeiro.
“Yo… Yoshan…” Gemi, dando voltas na cama em uma quase-
alucinação. Meu lubrificante natural inundava o avesso da túnica, e os
espasmos lá atrás simplesmente não paravam.

<<Oi, meu predestinado! Me chamou?>>

“Ah!!” Gritei, tão espantado que caí da cama. “Quem? Onde?”

<<Você me ouviu? Ah, que demais! Você me ouviu mesmo, eu também


tô te ouvindo! Acho que é porque estou perto… ou devo estar. Já passei por
esse recife antes.>>

Eu balancei a cabeça, demorando a entender. Aquela era nossa ligação de


predestinados? Nunca pensei que fosse ser tão nítida.
“Por favor não se perca.” Falei, e então notei o idiota que eu estava sendo.
Yoshan era apenas um alfa buscando se satisfazer em mim, não havia
porque gastar minha conversa com ele.
<<Ei, ei, o que está fazendo, agora? Aproveitando o sol?>>

“Aqui é noite, eu estava dormindo.” A segunda parte era mentira, mas


enfim.
<<Sério? Eu tô tão longe assim? Porque aqui é tipo, um por do sol super
lindo e laranja, e tem uns golfinhos loucos que eu nunca vi, você iria achar
incrível! E outro dia eu vi um cruzeiro, daqueles com balões e bandeiras, é
muito demais! Humanos inventam umas coisas loucas!>>

Que monte de bobagem. Espera, por que raios eu estava sorrindo? Eu


desmanchei rápido a minha expressão e limpei a garganta, recuperando a
seriedade.
“Preciso dormir e você tem uma jornada pela frente. Mantenha o foco.”
Eu deitei a cabeça no travesseiro, todo esticado e desconfortável.

<<Verdade, verdade. Tá bom. Falo com você amanhã, que vai ser hoje
pra mim, eu acho, certo? Ou de noite vai ser dia? Não vou nem dormir, só
nadar muito até chegar na sua porta. Quero te ver logo, ahh!>>

Yoshan silenciou, e com o silêncio dele voltou o calor.


Eu massageei as têmporas, atordoado com aquela barulheira dentro do
meu cérebro.
Inferno. Eu não queria admitir, mas nossa breve conversa foi o único
conforto daquele dia inteiro. Era apenas a química do meu corpo reagindo à
voz dele, mas qualquer conforto seria bem vindo naquele momento. Até
mesmo a manipulação artificial do chamado.
Frustrado, quente e dolorido, eu espiei para o lado da cama, onde a pedra
comprida descansava intocada sobre a mesinha de cabeceira.
Eu revirei os olhos e me virei para o lado oposto, me forçando a dormir
de algum jeito.
Não havia nada de divertido naquela situação. Não havia nada de
divertido em ser um ômega.
Capítulo 06

Pastor Enan esfregava solitário sua Piscina do Despertar quando eu


apareci. Era a primeira vez que eu o encontrava desde que fui grosseiro, então
quando ele sorriu e acenou para mim o meu coração relaxou.
“Pensei que não voltaria mais.” Pastor Enan deixou o esfregão de lado e
veio até mim. “Como estão os calores? Se a túnica apertar demais, você
pode…”
Eu interrompi as palavras do pastor lhe entregando aquela pedra
comprida, em um gesto rápido e discreto.
Pastor Enan sorriu cheio de safadeza, mas logo notou a expressão na
minha cara e desmanchou o sorriso. Ele escondeu a pedra no bolso da túnica.
“Imaginei que você não fosse usar.” Ele suspirou. “Ainda faltam dez dias,
Cordelen. Não precisa ultrapassar seus limites.”
Eu mantive meu olhar no chão úmido, onde respingos de água quente
melavam o sal sob meus pés. Pelo menos o suor disfarçava a umidade que
escorria das minhas nádegas aos pés, aquilo era tão embaraçoso.
Pastor Enan tocou meu rosto e me fez olhar em seus olhos. Ele não
parecia ofendido, e eu era extremamente grato por isso.
“Ei, preciso arrumar as piscinas de lama para o outono, que tal me
ajudar?” Perguntou ele.
Eu concordei com a cabeça e o acompanhei, com os passos juntinhos,
tentando não escorrer ainda mais pelo meio das pernas. Um ômega como
pastor Enan não podia sentir o cheiro, mas eu detestava saber que os alfas
podiam. Aquele líquido era como um alarme anunciando a todos o meu
período fértil.
Logo chegamos às piscinas de lama. Eram muito semelhantes às piscinas
de água quente, exceto que se situavam no sopé lamoso do vulcão. O barro e
a água salgada se misturavam em um creme marrom que borbulhava devagar,
era meio assustador.
“Como se limpa uma piscina de lama?” Perguntei, de ombros encolhidos.
As borbulhas respingavam lama na minha túnica branquinha.
Pastor Enan deu risada e contornou a piscina até uma pilha de frascos e
potes com cremes coloridos. Pela maestria com que ele abria e misturava os
cremes, percebi que tudo aquilo pertencia a ele.
“Limpar uma piscina de lama? Entre logo aí, Cordelen. Hoje vamos te
preparar!” Ele disse, empolgado.
“Me… me preparar?” Eu recuei um passo.
“Sim, vai ser divertido!” Ele pegou um punhado de argila verde na ponta
do dedo. “Vamos te preparar para o momento do encontro.”

****

“Como está se sentindo?” Perguntou o pastor Enan.


“Ridículo.” Respondi.
O pastor deixou escapar uma risada e continuou massageando argila no
meu rosto, nós dois mergulhados até os ombros dentro daquele piscinão de
lama quente.
Eu pesquisei muito sobre minha futura vida de ômega, desde o instante
em que meu porte físico tornou óbvio o meu destino. Ainda assim aquilo era
novidade.
“Precisamos mesmo ficar pelados?” Perguntei, contendo as arfadas da
minha voz. Até a pele do meu rosto estava sensível.
“Que problema tem? A maioria dos clãs veste apenas uma sunguinha e
ninguém reclama.” O pastor recuou na lama agitando os pés, todo exibido.
“Além do mais, a lama é tão densa que podemos manter a forma terrestre
aqui dentro. Não é super divertido?”
Eu cocei o topo da cabeça, onde o pastor prendeu minha cabeleira em um
coque alto. Eu devia parecer um peixe-leão, com argila de todas as cores
listrando a minha cara e duas fatias de pepino-do-mar sobre as minhas
pálpebras.
Mãos suaves voltaram a tocar meu rosto. A respiração do pastor acariciou
meus lábios.
“Está secando bem. Vamos repor as camadas de coral-cárdamo amanhã,
mas por hoje já podemos…
Eu inclinei o rosto na direção de sua voz e pressionei meus lábios nos
dele, estremecendo.
Por alguns segundos nós congelamos completamente, unidos através de
nossas bocas, então pastor Enan recuou num gesto brusco.
“Nossa, nossa. O Kayman adora uma ação entre ômegas, mas seu
predestinado pode se ofender, Cordelen.” Disse ele.
Eu me livrei daqueles pepinos estúpidos nos meus olhos e bufei,
envergonhado demais para olhá-lo nos olhos.
“Perdão. É melhor eu ir embora.” Falei, escorregando e patinando ao
tentar sair da lama.
O pastor saiu primeiro e segurou minha mão, me ajudando a levantar.
Apesar do óbvio embaraço, ele ainda sorria.
“Ainda precisamos te lavar. Vamos para as duchas.”
Eu o segui como um bicho de estimação perdido, derrotado pela dor
quente no meu corpo, e pela dor ainda pior no meu coração, porque essa era
impossível de compreender e controlar. Quando percebi eu estava soluçando,
e quando a primeira lágrima escapou as outras vieram como uma avalanche.
O pastor precisou me ajudar a sentar nos banquinhos diante dos espelhos.
“Cordelen, meu bem…”
“Tudo isso é besteira. O templo, os núcleos, os rituais. É tudo ilusão, o
chamado controla tudo. Não somos livres, apenas nos arrastamos pelos
caminhos que machucam menos.”
O pastor não disse nada, apenas abriu uma válvula que fez chover no meu
rosto e meu corpo. Água fria. Em Tárnacos aquilo era uma verdadeira
raridade.
“Não somos exatamente livres, Cordelen, mas entre as garras do chamado
há muito espaço para encontrar felicidade.” O pastor grudou o peito nas
minhas costas, esfregando a lama de nós dois, me deixando apreciar aquele
minúsculo contato com outro ser vivo, por mais proibido que fosse. “Ser feliz
apesar das difículdades não significa viver uma ilusão, significa que você é
forte e corajoso. Olhe para a frente.”
Eu mantive meu olhar nos joelhos, ainda chorando e envergonhado
demais, incapaz de controlar as reações do meu corpo. O pastor precisou
segurar meu queixo e erguer minha cabeça para que eu notasse algo bem
diante de mim.
Fiquei tão pasmo que o pastor Enan começou a rir, me abraçando por trás
e admirando comigo nosso reflexo nos espelhos embaçados.
O que havia acontecido com a minha pele? Eu toquei meu rosto como se
pudesse ser outra pessoa no espelho. As olheiras escuras, as marcas antigas
de golpe, a fuligem impregnada durante os anos… tudo havia sumido. Meus
dedos escorregavam pelo meu rosto com a suavidade de uma pluma e eu
estava simplesmente… bonito.
Pastor Enan soltou meu cabelo e deixou que escorresse aos lados do meu
peito, completando uma imagem que nunca me pareceu possível. Não pra
mim.
“Olha pra isso, seu alfa vai cair de joelhos quando te ver.” Pastor Enan
deu um beijinho no meu rosto e se afastou, deixando que eu lidasse com o
choque da minha própria visão. “Não se esqueça, Cordelen, que por trás de
um vínculo artificial e forçado também existem sentimentos, beleza, encanto
e amor. E isso o chamado nunca vai tirar de nós.”
“Eu… eu…” Gaguejei, me levantando para olhar a coisa toda. Até os
vermelhões de queimadura haviam sumido, deixando minhas pernas lisinhas
e suaves.
“Vou te ajudar a vestir sua túnica, e amanhã você voltará para descamar e
hidratar esse cabelo. Yoshan Amalona lhe entregará seu coração em um
potinho de ouro, e um alfa apaixonado move montanhas pelo seu queridinho
ômega.”
Eu sorri e concordei, tão grato que não conseguia nem formar palavras.
Talvez minha predestinação pudesse ir além da mera sobrevivência,
afinal.
Talvez Yoshan Amalona pudesse ser… útil.

****

Os dias que se seguiram testaram os limites da minha sanidade. Meu


mastro se recusava a baixar, esfregando constantemente na túnica pesada e
atiçando minha entrada de trás, que molhava minhas pernas e até meus
tornozelos. Isso sem falar no calor, tanto do verão quanto dos meus
hormônios. A agonia me fazia chorar de dia e gritar de noite.
Não havia como o pastor Enan me ajudar, recusei aquela maldita pedra
comprida umas tantas vezes. Nenhum ômega já havia morrido de tanto
esperar, este era meu único consolo.
Eventualmente chegou o grande dia, ou era como pastor Enan chamava,
porque eu não poderia estar menos empolgado. Naquela mesma tarde eu
conheceria o tritão que controlaria meu corpo e a minha vida. Minha
ansiedade em conter a loucura nos meus hormônios não compensava a
tristeza em ser inseminado como um bicho.
Pastor Enan sugeriu que eu aguardasse à beira da praia, lindo e triunfante
com meus longos cabelos ao vento e uma túnica branca e novinha que ele
costurou pra mim. Eu preferia esperar em casa, mas Enan insistiu em uma
recepção de abalar as estruturas, seja lá o que isso significasse.
Mais uma vez obedeci a ele e escalei alguns rochedos na ponta da praia,
me sentindo terrivelmente estúpido. Havia poucos devotos caçando àquela
hora, mas o olhar de cada um estava em mim.
Infelizmente não tive tempo de morrer de vergonha, porque uma voz
familiar transformou minha vergonha em pavor.
“Olha quem virou gente.”
Eu me virei rápido, tropeçando nas pedras. Meu pai estava logo atrás de
mim, dando risada como se tivesse algo na minha cara.
Logo atrás dele, Maron me observava quietinho, mas seu olhar brilhava
em profunda admiração.
“Deseja algo, meu pai?” Perguntei, tentando manter a calma.
“Quanta pose para um pirralho condenado. Seu alfa vai arrancar essa
arrogância da sua cara, junto das suas pregas.”
“Será uma decisão dele, não sua.” Eu afinei meu olhar mais gelado.
“Você está lindo, segundo irmão.” Disse Maron.
Eu sorri para agradecer, mas no mesmo instante o pai desceu o braço no
rosto do Maron, tão brutal que todos na praia olharam pra gente.
Maron gritou e caiu nas pedras. Eu segurei o braço do meu pai, que já
preparava outro soco.
“Para com isso, pai!” Gritei com ele. “Ele não fez nada!”
Passado o surto de raiva, meu pai deu risada e relaxou o braço. Maron
massageou o rosto vermelho e tentou levantar, mas um pisão na cabeça o
manteve prensado no cascalho.
“Vá em frente, Cordelen, como pretende me impedir? Este não é mais seu
núcleo.”
Eu apertei meus punhos, tremendo de ódio.
“Solta ele.”
Olhando nos meus olhos, papai pisou ainda mais forte, seus pés descalços
enterrando o rosto do Maron no cascalho negro da praia. Maron deu um
gritinho e se debateu, pequeno demais para fazer qualquer coisa.
“Seu irmão Zarkon era lixo. Você é lixo, e este pirralho aqui também é
lixo. Eu decido o que fazer do meu próprio lixo.” Papai finalmente saiu de
cima do Maron e nos deu as costas em retorno ao vilarejo. “Anda, Maron.
Vamos conversar em casa.”
Eu ajoelhei e segurei Maron pelos braços, mas ele logo livrou-se das
minhas mãos.
“Vai ser pior se você me ajudar.” Ele esfregou a túnica no rosto cortado,
tingindo a manga de vermelho. “Ele me proibiu de falar com você, mas eu
precisava te elogiar.”
“Maron…” Eu solucei, com os lábios tremendo. “Des…”
“Não se desculpa. Também vou despertar um dia e aí seremos livres
juntos!” Maron forçou um sorriso de torcer o coração. “Seja feliz com o seu
alfa e suma logo dessa ilha quente. Egarikena deve ser demais.”
“Maron!” Meu pai gritou à distância.
Eu e Maron nos despedimos e ele correu de volta para casa.
Com o coração em chamas, eu contive as lágrimas dentro de mim e olhei
ao redor. Todos os tritões seguiam com sua rotina, evitando me olhar,
conversando entre si… como sempre, ninguém ousaria interferir. Cada
núcleo que cuidasse da própria vida.
Fraco demais para manter a pose, eu simplesmente ajoelhei nos rochedos
e tentei não chorar. Eu admirei o horizonte distante, onde era possível ver
uma faixa de céu azul, e então senti um choque dentro do peito.

<<Ah, você sentiu isso? Tem tipo, um vulcão gigante na minha frente,
soltando uma fumaça cinza. Me diz que é o vulcão certo. Minha cauda dói, eu
não aguento mais nadar.>>

Eu apertei os olhos e avistei alguém na linha do horizonte. Meu coração


eletrizou de novo, rápido, quente e assustado. Se eu não estivesse ajoelhado
teria caído das pedras com o susto.
Yoshan Amalona enfim havia completado sua jornada.
Capítulo 07

Yoshan Amalona avançou pela areia até sua cauda tornar-se um par de
pernas fortes e de passos confiantes, cobertas apenas por uma canguinha lilás.
A cada passo suas muitas joias tilintavam umas nas outras. Anéis, pulseiras e
colares dourados, vários deles com pedrarias coloridas… nosso encontro no
despertar revelava apenas nossas almas, então me espantei com tamanha
vaidade.
O que mais me surpreendia, porém, era o cheiro. Um aroma indescritível,
mas tão potente que eu estremeci e precisei cobrir o colo com as mãos.
Aquela túnica de algodão nunca esconderia as reações horríveis do meu
corpo.
Yoshan não percebeu meu embaraço e nem tentou dizer nada. Ele
avançou em mim como um tubarão e me abraçou, suas mãos descendo rápido
das minhas costas para a minha bunda. Ele lambeu o meu pescoço.
“Consegui te encontrar.” Arfou ele, grudando nossos corpos com força.
“Meu ômega… você cheira tão bem…”
Eu queria gritar e sair correndo. Ainda estávamos na ponta da praia, à
vista de todo mundo. Eu não queria aquele cara em mim. Aliás, eu queria,
mas eu não queria querer.
Socorro, o que estava acontecendo?
Ignorando meu pânico, Yoshan passeou as mãos pelos meus quadris,
apalpou meu peito e tocou meu rosto. Seus lábios subiram do meu pescoço
aos meus lábios e ele tentou me beijar. Eu virei o rosto antes que conseguisse.
“D-devagar.” Pedi, estremecendo por diversos motivos. “N-não aqui, eu
suplico.”
Yoshan afastou o rosto, seus olhos verde-e-lilás iridescendo em confusão.
Ele avermelhou muito e soltou as mãos da minha bunda.
“Ah, desculpa! Isso foi, tipo, meio demais, né? Eu só… ahm… deu uma
vontade… eu não sei.” Ele curvou o corpo em uma reverência exagerada,
tilintando suas pedrarias. “Muito prazer, sou Yoshan Amalona.”
“Já conheço o seu nome.” Eu me mantive parado, embora tudo em mim
gritasse pra sair correndo. O embaraço no rosto daquele cara acabou me
relaxando um pouquinho. “Você reagiu ao meu cheiro. É normal que queira
se esfregar em mim.”
“Foi mal.” Ele bagunçou seus cabelos, espetando-os como uma juba. “E
então, como a coisa funciona? Eu tenho um cheiro loucão pra você também?
Porque pode se esfregar em mim, também. Vai ser super gostoso.”
Eu apertei os lábios, terrivelmente confuso e atordoado. Meu pescoço
ainda estava babado pela lambida daquele piradão de sorriso gigante, e eu
odiava perceber que gostava disso. Até mesmo o convite para me esfregar era
tentador, e isso era inaceitável.
Por trás daquela expressão inocente havia um tritão com o poder de
controlar e destruir minha vida. Eu não podia me esquecer disso.
“Precisamos realizar a consumação do vínculo.” Falei.
“Isso parece tão divertido. Onde vai acontecer? Tudo bem se for agora? E
eu quero taaanto segurar sua mão, seus dedos parecem tão macios. Aquele
vulcão é de verdade?”
Eu revirei os olhos e segurei o braço daquele cara. Não que eu quisesse
agradar ele, mas precisava puxá-lo para longe da praia pública. Me aliviava
que ele não fosse me dominar na frente de todo mundo então se eu podia
escolher o lugar, que fosse em um espaço bem privativo.

****

Vitanen permanecia em migração então eu nunca saí da casa dela. Com


certeza era um casebre simplório para alguém de Egarikena, mas eu espanei
os móveis e troquei a palha do colchão, era o melhor que eu podia fazer.
“Você mora aqui?” Yoshan percorreu o olhar pelo chão de terra batida,
que escondi parcialmente com um tapete. “Ahm, é bem… rústico. Adorei
aquela… iluminação natural com os buracos na parede.”
Indisposto a conversar, eu o puxei até os dormitórios. Estávamos ali para
consumar, não para discutir decoração de interiores.
Quando chegamos ao quarto Yoshan travou no lugar, como se a minha
cama fosse um bicho querendo mordê-lo. E ele surpreendeu-se ainda mais
quando eu subi no colchão e fiquei de quatro.
“O que está fazendo?” Perguntou ele.
“O que parece que estou fazendo?” Eu bufei, com olhar de tédio. “Sou o
seu ômega. Estou de quatro em uma cama.”
“Tá, eu tô vendo isso… mas…” Ele cobriu a boca, completamente
encabulado.
“Você atravessou metade do mundo pelo meu corpo. Vá em frente, ele é
seu.”
Yoshan entrou no quarto a passinhos leves e eu tentei respirar o mínimo
possível, mas seu cheiro logo impregnou o ambiente e ferveu minha pele
ainda mais. Eu odiava me sentir daquela forma, só queria que acabasse o
quanto antes.
“Tem certeza que é assim, mesmo? Digo… ahm… vamos lá…” Yoshan
afrouxou sua canguinha lilás, deixando que o tecido cedesse aos seus pés.
Eu deveria estar preparado pra isso, mas dei um gritinho. Pelos oceanos,
aquilo era enorme. Muito maior que o meu. Eu não havia reparado no volume
antes então fiquei simplesmente hipnotizado, me perguntando como iria
caber.
Yoshan permaneceu paradinho na minha frente, com aquele troço de
ponta vermelha pingando umidade diante do meu rosto. O cheiro ia me
enlouquecer. Eu agarrei firme nos lençóis e estremeci, perdendo toda a
compostura que eu me orgulhava em manter.
“Pode encostar, se quiser.” Ele disse, totalmente sem jeito. “Meu corpo
também é seu, Cordelen.”
Meu cérebro entrou em pane. Aquilo deveria me assustar, me desesperar,
então por que eu não sentia medo? Aquele alfa podia me ferir ao menor
desagrado e ainda assim minha determinação começava a ruir.
“Devemos acasalar e consumar nosso vínculo. É nosso dever com o
chamado.” Falei, conseguindo não tremer a voz.
“Eu sei, eu sei…” Yoshan apoiou o joelho atrás de mim, afundando a
palha do colchão.
Parecia bem simples, na teoria. Demonstrar submissão era o caminho
mais seguro para garantir a benevolência do alfa, mas quando aquelas mãos
quentes deslizaram pelas minhas coxas e subiram a minha túnica, eu quis
gritar e sair correndo com tudo o que havia em mim.
“Gostei da sua bunda.” Yoshan apalpou minha nádega e baixou o rosto.
“Já está tão molhado.”
“O que vai fazer?” Eu espiei por cima do ombro, tremendo como
gelatina. “N-não… ah…”
Yoshan agarrou firme as minhas nádegas, suas unhas fincando suaves na
minha pele enquanto ele baixava o rosto na minha fenda. Ele lambeu minha
umidade e gemeu macio, me saboreando. Eu sentia seu quase-êxtase através
da nossa ligação.
Eu enterrei a cara no travesseiro, enlouquecido pelos espasmos elétricos.
Aquilo deveria ser horrível, por que raios não era horrível?
Os gestos do Yoshan se tornaram mais confiantes. Ele desceu a língua nas
minhas bolas e as chupou suavemente, lábios quentes e macios provocando o
calor mais intenso que eu já havia sentido. Alguma coisa crescia dentro de
mim e ameaçava explodir, era assustador demais, eu iria chorar.
“Já chega.” Supliquei, tremendo apesar do fogo tórrido no meio das
minhas pernas. “Termina logo.”
“Isso foi ruim? D-desculpa, eu… tá. Desculpa.” Ele gaguejou, ajeitando-
se atrás de mim.
E sem aviso nenhum ele emperrou o quadril para a frente, espaçando a
minha bunda e me invadindo de uma só vez, até minha bunda amassar nos
pelinhos da sua virilha.
Eu mordi o lábio até sair sangue, mas não gritei. Pensei cedo demais que
não seria horrível, porque aquilo era tenebroso. Yoshan começou a ir e voltar
atrás de mim, e cada centímetro era uma dor diferente. Os sons molhados
ultrapassavam os limites da humilhação, mas eu precisava ser forte e
suportar.
“Isso é tão gostoso…” Yoshan gemeu, me agarrando com ainda mais
força e deitando o peito nas minhas costas, procurando o ângulo que mais lhe
agradasse. “Ah…. Ah… você gosta assim?”
Não respondi, ocupado demais em conter meus gritos, tão tenso que
minhas pálpebras espremidas doíam e minhas unhas rasgavam furos no
travesseiro. Por que raios ele deitou nas minhas costas? E se aquilo nunca
terminasse? Eu não aguentava mais.
Yoshan deu um longo gemido e algo escorreu atrás de mim. Ele
finalmente saiu de dentro e no mesmo segundo eu desci minha túnica de volta
ao lugar.
“Isso foi… nossa…” Ele sentou na cama e secou o suor na testa,
sorridente e ofegante. “Pensei que durasse mais tempo, na verdade.”
“Foi tempo o suficiente.” Eu levantei da cama e tive um arrepio. Uma
gota de semente escorreu pela minha perna.
“Acho que sim.” Ele forçou um sorriso, acompanhando meus
movimentos com seu olhar bicolor. “Ahm… tem certeza que isso foi normal?
Você pareceu tão... não sei....”
Eu limpei aquela gota com o dedo e analisei com frieza, esfregando o
mesmo líquido branco que naquele momento fincava raízes dentro do meu
ventre.
“Precisamos aguardar pelo resultado da concepção, mas acredito que
tivemos sucesso.” Eu limpei o dedo na túnica.
“Sim, mas… pelas histórias que ouvi, eu esperava uma consumação
mais… agitada.”
“Preferia que eu tentasse fugir?” Eu arqueei minha sobrancelha a ele.
“Não, não! É só que… desculpa, eu tô cansado da viagem, eu acho.” Ele
apertou os joelhos um no outro e baixou a cabeça, suspirando. “Vamos deitar
e conversar um pouco, o que acha? Tenho tanto a descobrir sobre você.”
“Pode ler meus pensamentos, se investigar minha vida for de seu
interesse.” Eu penteei meu cabelo e endireitei os amassos na minha túnica.
“Se me for permitido, eu gostaria de me despedir de alguns amigos antes de
partirmos.”
“Claro que pode.” Ele voltou a sorrir, empolgado. “Tárnacos é meio
quente demais, mas parece cheio de lugares interessantes e eu vou adorar
conhecer seus amigos e… espera. Você quer ir sozinho, né?”
“Se me for permitido.” Respondi.
Yoshan suspirou e deitou na cama, de costas para mim.
“Tudo bem, eu preciso dormir por algumas horas, mesmo.”
“Sou eternamente grato.”
Eu inclinei meu corpo em reverência e deixei a casa. Seria arriscado me
despedir de Maron, mas eu podia passar no templo para uma breve oração e
para me despedir dos pastores. Pastor Enan me garantiu que tudo ocorreria
bem na consumação e, apesar da dor nas nádegas, eu admitia que ele estava
certo. Considerando-se tudo, foi um acasalamento seguro e provavelmente
frutífero.

<<Qual o problema daquele ômega? Trepar com um iceberg teria sido


mais divertido.>>

Meu coração dobrou-se ao meio e lágrimas quase escaparam dos meus


olhos.
Droga, por que saber disso me entristecia? Eu não deveria me importar
com o que um alfa pensava de mim, e Yoshan certamente não pretendia que
eu ouvisse aquilo. Cumprir nossa função de alfa e ômega era sobre acalmar o
chamado, não sobre diversão.
Se Yoshan buscava se divertir com o meu corpo, isso apenas demonstrava
que ele era apenas um alfa do pior tipo, e não seriam suas palavras doces e
sorriso lindo que mudariam a minha opinião.
Capítulo 08

Após as devidas despedidas eu parti de Tárnacos trajando apenas a túnica


em meu corpo.
Por anos eu soube que aquele momento chegaria e ainda assim não sabia
como me sentir. Sabia apenas que deixava para trás tudo o que conhecia, na
companhia de um alfa sobre quem eu só sabia uma coisa: ele adorava a
própria voz.
“E foi aqui que eu disse nossa, que porra cinza é aquela no céu? Ah,
desculpa o palavrão, sua seita não fala desaforos, né? Digo, não que eu ache
que seja uma seita, é só que vocês mergulhavam na água fervente, isso é
meio louco, não é não?” Yoshan nadava em círculos no meu entorno, sua
cauda verde de barbatana lilás espirrando água por todos os lados.
“Os pastores acreditam que o chamado nos ouve melhor na água quente e
super-salina.” Eu dei de ombros, seguindo adiante. “Não tenho o menor
apego pelos rituais, se é o que está me perguntando.”
“O chamado te ouviu alguma vez?”
“…Não.”
“Tá vendo? Alguém precisa chegar e dizer, pessoal, parem de mergulhar
na água quente, isso é insano pra caralho. Ah, falei palavrão de novo.
Desculpa.”
Eu segui nadando pelo oceano que se tornava cada vez mais azul e
reluzente, conforme Tárnacos tornava-se um pontinho à distância. A nuvem
de fuligem cada vez mais dispersa revelava o acobreado do céu e as primeiras
estrelas.
Por algum tempo apreciei o tão raro silêncio: Apenas o som das ondas e
do vento. O silêncio excessivo acabou atiçando minha curiosidade e eu espiei
para o lado. Claro que Yoshan me acompanhava bem de pertinho, nadando
de lado sem tirar o olhar de mim.
“Tem alguma coisa na minha cara?” Perguntei.
“Beleza.”
“Não seja bobo!” Eu avermelhei e acelerei o nado. Yoshan acelerou
também. “Não tente me alcançar. Eu sou um Trevally, caso tenha esquecido.”
“Isso é um desafio? Acha que um Amalona não sabe nadar?” Ele sorriu
com o canto da boca.
“Não, isso não é um desafio. Estou constatando um fato que… ei!”
Yoshan disparou à minha frente, tão rápido que um jato de espuma
formou-se logo atrás. Aquele besta saltou e mergulhou habilmente até quase
sumir no horizonte.
Mas que absurdo, um Amalona competindo corrida com um Trevally. Eu
iria vencer aquele cara e ensinar uma lição ou duas.
Abanando minha cauda em velocidade total, eu disparei pelos mares. A
paisagem marinha distorceu-se em um borrão conforme eu alcançava os
limites do meu nado, cauda subindo e descendo no auge de sua força. Em
pouco tempo aquele alfa arrogante foi crescendo na minha visão.
Em um esforço final, eu acelerei acima dos limites e zuni para a
superfície, saltando e mergulhando muito além dele. Mas Yoshan não se
rendeu fácil e continuou emparelhando comigo, nós dois serpenteando pela
água fresca e azul-turquesa.
“Esta corrida não faz sentido. Não tem uma chegada.” Falei, me sentindo
estúpido.
“E daí? Posso pegar carona em você e aí chegamos juntos.” Yoshan
montou nas minhas costas e agarrou meus ombros. Ele ria como uma criança.
“Corridas não funcionam assim!” Reclamei, debatendo os ombros e a
cauda, incapaz de me livrar.
Yoshan continuava nadando estabanado. Nossas caudas se enroscaram e
nós espiralamos totalmente desgovernados até batermos no fundo. Minhas
costas deslizaram pelo tapete de algas.
Eu massageei os ombros, atordoado e coberto de pedaços de plantas.
Deitado sobre o meu peito, Yoshan matava-se de tanto rir.
“Precisamos competir mais vezes.” Ele descansou o queixo sobre os
braços, em cima de mim.
“Acho que você não sabe o que competição significa.”
“Posso te beijar?”
“De onde veio essa pergunta??” Eu me forcei a baixar a voz, tentando não
perder a calma. “Você sabe que pode.”
“Ok, me deixa perguntar melhor: você quer que eu te beije?” Ele
mordiscou o lábio, provocativo. “Porque você com certeza quis beijar aquele
outro ômega.”
Meu sangue gelou e minha expressão travou em terror total.
“Por favor, eu imploro, não machuca o pastor Enan. A culpa foi
totalmente minha, por favor não machuca ele.”
Yoshan franziu a testa, cada movimento de seus músculos causando
lanças de gelo na minha corrente sanguínea.
“Todos os Trevally são nervosos assim? Por que eu ligaria pra um
beijinho?” Yoshan deixou escapar uma risada tímida. “Admito que eu chorei
um pouquinho, mas não me importo com algo assim.”
“D…desculpa.” Miei, ainda aterrorizado e com uma pedra no coração.
“Não quis te fazer chorar.”
“Não chorei por causa do beijo, é só que… você parecia tão, tão solitário.
Eu podia sentir sua dor através da nossa ligação, e queria mais do que tudo
chegar rápido e te consolar.”
Meus olhos tremularam, à beira de lágrimas. Eu desviei o rosto para o
lado, não queria ser visto daquele jeito.
“Não preciso da sua pena.” Falei.
“Nunca li os seus pensamentos, Cordelen. Eu queria te descobrir bem
assim, como estamos agora.” Yoshan tentou tocar meu rosto e recuou a mão,
hesitante. “Mas seus sentimentos sempre estarão comigo, então pode confiar
em mim quando estiver pronto.”
Concordei com a cabeça, mas a minha mente era um maremoto. Seria
isso algum truque dos alfas? Uma técnica para me manipular e ferir em um
momento de fraqueza?
Eu empurrei Yoshan gentilmente e saí de baixo dele, odiando o quanto o
calor do seu corpo fazia falta na minha pele, e o quanto seus lábios se
distanciavam dos meus a cada movimento.
“É melhor a gente encontrar alguma ilha. Não é seguro dormir no leito
marinho dessa região.”
“Passei por uma ilhota no caminho para cá. Não deve estar longe.”
Yoshan levantou-se do tapete de algas com um sorriso quieto no rosto, e eu
implorei por dentro que ele perguntasse sobre o beijo mais uma vez. Mas ele
apenas seguiu adiante e deixou que eu o seguisse.
Talvez fosse melhor assim, não era como se eu…

Socorro…. Por favor…


Não. Não! Não ele de novo...
Alguém… alguém me ajude…

Eu me contorci com as mãos nos ouvidos, minhas pupilas tornando-se um


pontinho em meus olhos.
“Zarkon…” Sussurrei, em total horror. As vozes ecoavam dentro do meu
cérebro como se ele estivesse logo adiante, sofrendo torturas inimagináveis.
“Quem é Zarkon?” Yoshan havia voltado, ele tocou meu rosto cheio de
preocupação em seu olhar bicolor. “O que houve, meu predestinado?”
Eu abracei Yoshan e escondi o rosto em seus ombros cheios de colares.
“Vamos sair da água. Qualquer ilha serve, por favor me tira daqui.”
Supliquei, tremendo demais para continuar nadando.
Yoshan concordou e me carregou até a superfície. Em pouco tempo
alcançamos uma ilhota arenosa com um único coqueiro e eu me apressei para
longe das ondas e das súplicas desesperadas do meu irmão mais velho.

****

Um pequeno banco de areia com uma cama de folhas de coqueiro sob as


estrelas. Para quem viveu em um casebre não era uma adaptação difícil, seria
até confortável se não fosse meu nervosismo.
Yoshan ainda não havia retornado de sua caçada e eu começava a me
preocupar.
Quando eu considerava usar nossa ligação para encontrá-lo ouvi um
borbulho nas ondas da beira-mar. Yoshan havia retornado, todo molhado e
sem nada nas mãos.
“Onde estão os peixes desse lugar??” Resmungou ele, totalmente
frustrado. “Só tem pedras e algas!”
“Bem vindo a Tárnacos.” Eu sorri com leve cinismo. “Os peixes não
resistem ao calor do verão então o mar torna-se estéril. Mas consigo
encontrar uns mariscos, se você estiver faminto.”
“Nem pensar, eu quem deveria prover pra você e te fazer feliz, e não
estou conseguindo nenhum dos dois.” Ele sentou-se ao meu lado e abraçou os
joelhos, encolhendo-se como uma bola. “Sou o pior alfa do mundo.”
“Existem piores.” Falei.
“O que aconteceu antes? Você parecia estar falando com alguém.”
Eu deitei as costas na minha cama de folhas e admirei as estrelas, tão
infinitamente bonitas longe da fuligem vulcânica.
“Você acredita que existam erros que mereçam uma punição pior que a
morte?” Perguntei.
Yoshan coçou o peito e deitou ao meu lado, admirando o céu noturno
comigo.
“Acho que todo mundo tem um lado bom. Mesmo quando as pessoas
erram ainda existe bondade dentro delas, então ninguém merece sofrer
demais.”
“Você está errado. O mundo é repleto de monstros que não merecem
salvação alguma.” Eu suspirei. “Mas aqueles que merecem punição e aqueles
que são punidos raramente são as mesmas pessoas.”
Yoshan virou de lado, ficando de frente para mim. Ele deitou a cabeça em
seu braço musculoso, causando um breve salto no meu peito.
“Cordelen, aconteceu alguma coisa que você queira me contar?”
Perguntou ele.
“Acho que vou aceitar aquele beijo.” Falei.
Yoshan engoliu seco e lambeu os lábios, tão rosas e carnudos. Ele
inclinou-se sobre mim e percorreu os dedos no lado do meu queixo, baixando
lentamente o rosto contra o meu.
“Atchim!” Eu espirrei na cara dele.
Yoshan se afastou rápido, esfregando o rosto.
Eu surtei e me levantei para ajudá-lo, tentando esfregar a manga da túnica
em seu rosto.
“Ah, desculpa, desculpa, peço mil perdões.” Eu limpei o rosto dele com
as mãos, tremendo. “É só que Tárnacos é tão quente, e a brisa daqui… eu…
a…. Atchim!”
Yoshan segurou firme os meus braços, arrancando o ar dos meus
pulmões. Eu não queria apanhar, ele era tão musculoso e mais forte que eu.
“Você está gelado! Devia ter falado alguma coisa.” Ele desceu as mãos
até a minha cintura e forçou minha túnica para cima. “Tira essa roupa
molhada.”
“Desculpa.” Eu levantei os braços e deixei que ele arrancasse o tecido, o
que apenas piorou a situação. Agora eu estava gelado, molhado e totalmente
nu.
Eu tentei esconder o corpo como pude, abraçado nas pernas.
“Não vou olhar se te incomoda tanto, mas ninguém em Egarikena se
cobre tanto assim. Talvez queira se acostumar com menos tecido.” Yoshan
levantou para pendurar minha túnica no tronco do coqueiro.
Eu o acompanhei com o olhar, avermelhando ao espiar sob sua canga, por
acidente. Seu mastro era grande mesmo quando mole, e a bunda era redonda,
empinadinha, tão musculosa quanto suas costas. Desviei rápido a visão
quando Yoshan virou de frente para mim, e passei a notar os colares. O maior
deles chamava a minha atenção desde o primeiro minuto.
“São zircônias?” Perguntei.
“Você entende de gemas?” Ele sorriu empolgado, voltando a sentar
comigo. “Todos perguntam se são rubis. Zircônias vermelhas são bastante
incomuns.”
Eu segurei o pingente entre os dedos para analisar de perto.
“A lava do Tárnacos costuma cristalizar em diversas gemas preciosas.
Acabei aprendendo um pouquinho, mas não sou nenhum especialista.” Eu
passei o dedo pelas facetas perfeitamente simétricas, três gemas longas e
entreamadas por fios de ouro, em um formato que lembrava a garra de um
pássaro. “São zircônias de excelente qualidade, perfeitamente lapidadas.”
“Obrigado! Este foi meu primeiro trabalho. Ou pelo menos a primeira
joia de verdade. Meus pais só me deixavam treinar com vidro e me
presentearam essas zircônias pouco antes do meu despertar. Precisava ver a
cara deles quando não estraguei tudo.”
“Você será um joalheiro talentoso.” Falei a ele. “Este é algum símbolo
dos Amalona?”
“Não, nada disso. É um cliantus-vermelho, a flor mais rara e bonita de
Egarikena. Me pareceu apropriado para um primeiro pingente, mas eu
poderia fazer melhor.”
“Não diga isso, é perfeito. Gosto das joias que você usa.”
“Sério? Pensei que vocês fossem contra vaidade e exageros e frescuras.”
Uma risada escapou da minha boca.
“Os devotos não são um bando de velhos chatos. Sim, nós somos contra
tudo isso, mas saiba que nosso templo tem até um spa, com piscina de lama,
aromaterapia e outras coisas.”
“Um spa?” Yoshan começou a rir de um jeito tão gostoso que acabei
rindo também. “Você deve ser um grande frequentador, porque sua pele é
uma delícia de apertar.”
“Ei!” Meu rosto esquentou.
“Desculpa, desculpa.” Apesar das palavras, aquele bobo não conseguia
parar de rir. Certamente estava me imaginando coberto de lama e com
pepinos nos olhos. Eu nunca me arrependi tanto das minhas palavras. “É só
que você fica lindo sorrindo. Eu amo a sua risada, Cordelen.”
Eu murchei os lábios, sem reação. A opinião daquele alfa tagarela era
irrelevante. Eu só precisava que ele não me odiasse a ponto de me ferir, tanto
fazia o que ele gostava em mim ou não. Então por que eu estava sorrindo de
novo, como um idiota? Eu não tinha motivo nenhum pra sorrir. E ainda assim
eu me aproximei dele e envolvi seu rosto nas minhas mãos, aproximando
meus lábios e fechando meus olhos.
Os lábios do Yoshan pressionaram contra os meus e eu relaxei o corpo,
permitindo que ele me abraçasse e deslizasse a mão por trás do meu pescoço
em uma carícia suave, aprofundando nosso beijo. Eu sentei despido em seu
colo, e ainda assim havia algo tão casto e tão puro em seu toque que eu
simplesmente me perdi, beijando e mordiscando seus lábios e gemendo
macio para os dedos que exploravam as minhas costas.
Talvez fosse um pensamento irracional, meus hormônios tomando
controle do meu bom senso, mas naquele momento tive a certeza que Yoshan
nunca me causaria mal.
“Ah…” Gemi alto demais, sentindo o fervor da vergonha.
Yoshan chupou meus lábios suavemente, brincando com a língua e me
provocando a fazer o mesmo. Seu mastro espetava embaixo das minhas coxas
e o meu também crescia contra sua barriga, o que era profundamente
embaraçoso, mas não a ponto de me fazer parar.
Eu deslizei a língua pra dentro de sua boca, meus quadris começando a se
mover involuntariamente. Dessa vez Yoshan quem gemeu na minha boca e
eu adorei ouvir, me perguntando o quanto mais ele poderia se perder em
mim.
E logo eu iria descobrir, porque Yoshan agarrou minha bunda com
firmeza, espaçando os músculos até encaixar a ponta molhada entre minhas
nádegas.
Eu contive um gritinho e tensionei os ombros, mas ao invés de meter
Yoshan levantou o corpo e me deitou gentilmente na nossa cama de folhas,
então passou a mordiscar meus mamilos.
O calor tomou conta de mim. Era como cair em um vulcão e ser atingido
por um raio ao mesmo tempo. Não imaginei que mamilos fossem tão
sensíveis mas eu comecei a gemer e me debater, enlouquecido por um prazer
tão louco quanto esquisito. Que tipo de acasalamento era aquele??
Yoshan sorriu enquanto chupava meus biquinhos, mudando de um ao
outro com sua língua ágil e lábios firmes. Suas mãos desceram discretamente
pelo meu corpo, mas antes que chegassem ao meio das minhas pernas o calor
dentro de mim simplesmente explodiu.
Eu me abracei no pescoço do Yoshan e gritei, tremulando e perdendo o
controle do meu corpo. Algo saiu lá de baixo. Semente? Aquilo era
embaraçoso demais, mas se Yoshan parasse eu iria morrer.
Yoshan ergueu os olhos para mim, uma íris verde e uma lilás cintilando
em puro tesão de alfa. Então ele deu um sorrisinho safado e começou a
descer, beijando a minha barriga, abaixo do meu ventre, e então lambeu uma
gotinha que havia escapado de mim e continuou descendo.
Eu cobri a boca com as mãos, sem acreditar em nada daquilo. O que raios
ele pretendia? A semente não se plantava daquele jeito. Onde ele pretendia
meter a boca??
Aquele louco abocanhou o meu pau. Como assim?? E para piorar, eu vi
estrelas, galáxias, não consegui parar de gritar e gemer, arqueando as costas
no prazer mais inacreditável do mundo. O veludo quente da boca do Yoshan
deslizava contra minha ponta sensível, sugando e lambendo, atiçando um
segundo calorão ainda maior que o primeiro.
“Yoshan… ah, ah… pelos oceanos… continua…” Gemi, agarrando firme
em seus cabelos e me contorcendo em nossa cama improvisada.
Yoshan segurou a base do meu mastro e aumentou o ritmo, subindo e
descendo, chupando a ponta e lambendo a base, às vezes me olhando nos
olhos só pra ver o quanto me desmontava.
E então explodi de novo, e dessa vez foi gritando. Meu corpo inflamou e
eletrizou como em um incêndio e eu jorrei semente nos lábios do Yoshan,
que bebeu e continuou sugando até meus músculos virarem esponjas.
Quando Yoshan afastou a boca eu estava em outro planeta, flutuando no
ar.
Yoshan sentou para admirar o que restava de mim, com um sorriso bem
orgulhoso nos lábios.
“E então?” Ele balançou os ombros de um jeito petulante. “Eu beijo
melhor que aquele pastor?”
Eu joguei um pedaço de coqueiro nele, incapaz de me mover além disso.
“Você é um alfa terrível.” Falei, segurando o riso.
Yoshan deitou comigo e nós nos abraçamos apertado, trocando risadinhas
até pegarmos no sono.
Apesar do tempo frio eu nunca me senti tão quente, nem tão protegido.
Capítulo 09

No dia seguinte eu e Yoshan continuamos viagem rumo à Egarikena, a


capital dos tritões.
Muitos pensamentos atormentavam minha mente, mas eu não queria
Yoshan lendo nenhum deles, então ocultei meus sentimentos e o acompanhei
pelo vasto oceano, muito além da região onde papai nos permitia caçar.
Nadando logo atrás de Yoshan eu podia admirar sua cauda, sempre
subindo e descendo com a potência vivaz do nado dos alfas. Escamas verdes
na cintura e de um lilás vívido na barbatana da ponta, tão linda que às vezes
eu desejava tocar, embora fosse terrivelmente inadequado.
As lembranças da noite anterior me causavam arrepios. Eu mal conhecia
aquele alfa e ainda assim me entreguei de forma tão incontida. Tudo o que
aprendi sobre alfas fazia rodopios na minha mente e a culpa retorcia o meu
coração a níveis insuportáveis.
Como eu me atrevia a sentir satisfação? E uma satisfação entregue por um
alfa, ainda por cima!
Um descuido tão grande não podia se repetir. Enquanto eu não digerisse
os eventos da última noite, os aceitaria como um deslize conveniente:
permitir que Yoshan me dominasse era apenas um meio de adquirir sua
benevolência e nada mais.
Exceto que ele não me dominou de forma alguma, na verdade ele sequer
derramou a própria semente. Eu não imaginava o que alfas teriam a ganhar
acasalando de tal maneira e isso apenas aumentava minha confusão.
Se tudo aquilo era parte de um truque, eu precisava descobrir o quanto
antes.
Quando percebi estava pensando demais novamente, eu tentei ocultar
meus pensamentos e na minha concentração não notei Yoshan parar. Eu
colidi em suas costas.
“Perdão, meu predestinado.” Falei, apressado em me afastar.
“Um tubarão-baleia! Ah, até que enfim, eu pensei que morreria de fome.”
Eu ergui o olhar adiante e me espantei ao notar que era verdade. Um
peixe gigante nadava rente ao fundo, vasculhando a areia com seu nariz
pintado em busca de alguma refeição. Mesmo no inverno peixes tão grandes
raramente apareciam nos arredores de Tárnacos. Aquele era o maior que eu já
havia visto.
“É seguro caçar algo deste tamanho?” Perguntei, ouvindo os roncos do
meu próprio estômago. Eu já estava acostumado a passar fome, mas assim
que avistei aquele bicho o meu corpo faminto demonstrou todo o seu
desespero.
“São peixes muito musculosos, mas lentos.” Ele me espiou por cima do
ombro, sorrindo empolgado. “Que tal caçarmos juntos?”
“Claro!” Falei sem pensar duas vezes, e logo estranhei a empolgação na
minha voz. Devia ser apenas a fome mexendo comigo.
“Legal, vamos!” Yoshan disparou na direção do peixe sem falar nenhum
plano, ou ordem, ou nada. O que ele queria que eu fizesse, afinal?
Confuso, eu apenas disparei até alcançá-lo.
Chegamos no pobre tubarão tão rápido que ele nem teve tempo de fugir.
Yoshan enterrou os dentes na base da cauda, quebrando a coluna e impedindo
uma chicotada potencialmente fatal. Eu contornei e abocanhei a enorme
cabeça, tão grande que mal consegui fechar a mandíbula. Mais alguns ataques
e em segundos o animal estava morto, boiando na névoa vermelha de seu
próprio sangue.
“Nossa, nunca abati um monstrão desses tão rápido.” Os olhos do Yoshan
brilhavam em profundo maravilhamento. Ele cravou os dentes em uma
barbatana até arrancá-la e saboreou com um sorriso enorme no rosto,
gemendo de tanto prazer.
Eu percebi que também sorria, e logo corrigi este erro. Mesmo que eu
fosse um ômega, habilidades de caça também eram esperadas de mim, em
caso de alguma emergência. Talvez Yoshan estivesse apenas me testando. Na
dúvida eu ignorei os rugidos do meu estômago e o assisti devorar cada
barbatana da nossa enorme caçada.
Em algum momento Yoshan ergueu o olhar pra mim.
“Não vai comer?” Perguntou ele, de bochechas cheias.
“Quando me for permitido.” Eu baixei a cabeça.
Yoshan não disse nada, então apenas aguardei. Mas o que veio logo
depois foi um golpe atrás de mim, que me fez gritar de susto.
Não foi uma pancada forte, nem chegou a doer. Yoshan apenas bateu a
barbatana na minha bunda e me encarou com o olhar afiado e os lábios
murchos, totalmente indignado.
“Pare de falar coisas esquisitas e apenas coma. Está uma delícia.”
“S… sim.” Eu massageei minhas escamas de trás, estremecendo pelo
medo em tê-lo aborrecido. “Como meu predestinado desejar.”
Yoshan sorriu satisfeito e puxou a cauda do tubarão, que rompeu-se
facilmente sob sua força de alfa.
“Essa é a parte mais deliciosa.” Ele me entregou a cauda. “Considere um
pedido de desculpas. Tradicionalmente eu deveria caçar uma lampreia-das-
profundezas ou algum peixe mais legal, mas só tem areia nessa terra de
ninguém.”
Eu peguei aquela cauda pontuda, tão longa quanto minha cauda inteira, e
dei uma mordida. Realmente era tão bom! Eu arranquei os pedaços em
dentadas enormes e rápidas, vencido pela fome e pelo gosto delicioso.
“Gostou? É a minha parte favorita, também. Hoje nós vamos comer até
passar mal.” Disse ele.
Yoshan não estava errado, porque nós devoramos o tubarão quase inteiro.
Comi mais naquela manhã do que comeria em trinta luas durante o verão.
Quando terminamos a minha barriga doía de tão cheia, uma sensação que eu
já havia me esquecido de como era.
Um sorrisinho escapou dos meus lábios enquanto eu massageava por
cima da túnica a minha barriga bem alimentada.
“Suas desculpas são desnecessárias.” Falei, então notei que Yoshan já
havia esquecido o que disse. “Sobre você não caçar uma lampreia-das-
profundezas. Esta refeição foi absolutamente satisfatória.”
Yoshan riu, e nós nos afastamos da carcaça para seguir viagem.
“Nunca entendi essa tradição de tritão velho. Digo, eu caçaria os peixes
mais raros para você sempre que fosse seu desejo, mas tubarões são
deliciosos e me agrada a ideia de caçarmos juntos. Nós somos uma equipe
perfeita, não concorda?”
“…equipe?” Eu perguntei, atordoado pelo excesso de palavras e
especialmente por essa. Alfas e ômegas não formavam equipes. Eram apenas
dois tritões forçados a viver juntos em um conjunto restrito de leis, regras e
convenções sociais. Qualquer cooperação era simples questão de
sobrevivência, especialmente no caso do ômega.
E ainda assim, caçar com Yoshan e saborear juntos nossa captura fazia
meu coração aquecer. Eu precisava me esforçar para não sorrir como um tolo.
Yoshan continuava nadando na minha frente. Eu hesitei um pouco porque
sabia que era uma ideia estúpida, mas acelerei o nado até emparelhar com ele,
Será que eu seria punido por segurar sua mão? Eu não deveria desejar algo
tão bobo, mas eu queria. Mesmo que com isso eu demonstrasse uma
fraqueza, meu peito pulsava rápido e tudo em mim desejava tocá-lo só um
pouquinho.
Trêmulo de medo, eu estendi minha mão na direção da dele.

Isso dói! Não! Não isso, eu imploro!


Aaaaaaaah!

Eu me dobrei na água e segurei a cabeça, gritando junto.


Zarkon, Zarkon! Quem estava machucando ele, e onde? Eu não sabia.
Sabia apenas que mesmo que eu descobrisse não adiantaria nada. Tudo o que
restava do primeiro irmão eram os gritos, a dor, o desespero.
“Cordelen, o que está havendo? Cordelen!”
Yoshan tocou meu rosto e com o susto eu recuei, ainda gritando,
assustado, meu suor se misturando com o mar.
“Fica longe! Por favor, fica longe!” Eu gritei, tremendo e em pânico.
Alfas e ômegas não eram uma equipe, ou amigos, ou companheiros. Alfas
eram o inimigo. Monstros cruéis como o meu pai e o predestinado do Zarkon.
Yoshan aproximou-se de mim novamente. Ele envolveu os braços ao
redor dos meus ombros e abraçou apertado.
“Tà tudo bem, vai passar.” Ele disse, e sua voz suave e tranquila diminuiu
meus tremores. “Eu estou aqui por você.”
Eu engoli amargo e descansei o rosto na curva de seu pescoço. Metade de
mim me mandava fugir, ou pelo meno odiar aquele contato imposto em mim.
E outra metade desejava que aquele abraço fosse pra sempre.
Meus olhos esquentaram e eu solucei, logo desabando em um choro
sentido contra o seu ombro.
Mesmo sendo um completo tagarela, Yoshan aguardou em silêncio que
eu me acalmasse, massageando minhas costas em um carinho suave e
preocupado.
Quando me acalmei, Yoshan passou a mão no meu rosto como se
enxugasse minhas lágrimas, apesar de estarmos sob a água. Seu toque me
relaxou por completo, embora a dor de dentro ainda cortasse meu peito.
“Eu vou te proteger de qualquer coisa, meu Cordelen.” Disse ele. “Se
estou falhando de alguma forma, terei prazer em melhorar por você.”
“De forma alguma, meu predestinado. Você é a melhor coisa que já me
aconteceu.” Falei, e então engasguei na minha própria língua. O que raios eu
estava dizendo para o meu suposto algoz? E para piorar só havia verdades nas
minhas palavras.
Yoshan curvou os lábios, feliz e triste ao mesmo tempo. Ele desceu a mão
e segurou a minha do jeitinho que tentei fazer mais cedo. Era gostoso.
“Acho que chega de viajar por enquanto. Vamos parar em algum lugar.”
“Deseja voltar para aquela ilhota? Nós recém saímos de lá.”
“Tem outra ilha próxima, se puder suportar mais algum tempo de nado.
Parece um lugar lindo e interessante… só tem um… pequenino porém.” Ele
sorriu com o canto da boca, desviando o olhar.
“Que tipo de porém?” Perguntei, desconfiado.
Yoshan me puxou e nós mudamos levemente de direção, avançando pelas
águas azuis.
“Você vai descobrir. Hora de cometer nossa primeira grande loucura!”
Ele riu, eufórico. “Isso vai ser super divertido!”
Eu franzi a testa e simplesmente o acompanhei, como era o meu dever.
Minha mente revirou possibilidades, mas eu nunca poderia imaginar o
tamanho da loucura que nos aguardava.
Capítulo 10

Um arrepio gelado percorreu minha espinha. Eu devia ter percebido antes


a natureza do nosso destino, mas quando Yoshan e eu escalamos os rochedos
e deixamos a água, a paisagem adiante arrancou o ar dos meus pulmões.
Cubos de pedra com muitas janelas, postes com três luzes coloridas, chão
de pedra lisa e preta, por onde corriam coisas de metal e vidro, mas meu
verdadeiro espanto vinha do que havia dentro das coisas metálicas, e por trás
das janelas, nas calçadas e por toda parte.
Humanos. Centenas de humanos passavam apressados por nós, com suas
roupas estranhas e caixinhas de luz que eles sempre mantinham no olhar ou
nos ouvidos.
Eu paralisei no lugar, estarrecido. Nunca na minha vida avistei humanos,
muito menos tão de perto assim. Alguns deles passavam ao nosso lado
casualmente, vestindo roupas complexas e carregando objetos desconhecidos.
“Yoshan, onde você nos trouxe?” Sussurrei, incerto se os humanos
podiam nos ouvir, ou nos cheirar ou ler nossas mentes. Eu só reconhecia a
espécie deles porque o cheiro se assemelhava aos tritões híbridos de
Tárnacos.
“Bem vindo à Ilha do Sal, meu querido predestinado. Ou pelo menos é
isso o que diz esse panfleto.” Yoshan me mostrou um papel colorido que ele
pegou no chão. “É uma ilha que humanos ricos visitam para escurecer a pele,
acasalar e surfar. Eu descobri esta ilha em um mapa mundi quando
pesquisava o melhor roteiro até Tárnacos.”
Eu concordei com a cabeça automaticamente, porque meu cérebro
congelou no modo apreensivo. Havia muitas histórias de tritões interagindo
com humanos, lendas em sua maioria, mas todas elas horríveis e
traumatizantes. Geralmente tritões interagiam apenas com seu predestinado
humano, ou em raros casos faziam comércio com eles se houvesse
autorização do Oráculo.
Visitar uma ilha de humanos era, portanto, o maior dos absurdos.
“Olha que legal todas aquelas luzes! Vem, vamos sair dessa praia e
explorar.” Yoshan me puxou pela mão na direção das caixas metálicas que
corriam com humanos dentro. “Relaxa, os carros vão parar quando acender
aquela luz vermelha no poste.”
“Você sabe muito sobre humanos.” Falei, me forçando a segui-lo
enquanto meu bom senso gritava em voltar.
“O príncipe Clyon é meu amigo e já viajou pelo mundo inteiro. Ele me
contou tudo sobre humanos e sobre as muitas culturas deles mas meus pais
proibiam de deixar os arredores de Egarikena. Agora que nós somos adultos
podemos fazer de tudo!
O chamado não nos proibia de interagir com humanos, mas aquela era
uma convenção bastante rígida que podia ocasionar graves punições do
progenitor ou do predestinado. Mas nesse caso era meu próprio predestinado
quem me arrastava para o meio das construções luminosas.
“Não teme o que pode acontecer? E se eles descobrirem o que somos?”
“Ninguém está nem olhando pra gente, somos iguais a humanos em nossa
forma terrestre.” Ele lambeu os lábios e me fitou sedutoramente. “Aliás, tem
várias meninas olhando, mas é porque somos muito gostosos.”
Eu engoli seco, esperando que não fôssemos gostosos no sentido
gastronômico da palavra.
Yoshan e eu logo chegamos à beira do chão preto, onde os tais carros
aceleravam de um lado a outro. Eu não conseguia compreender como aqueles
objetos funcionavam, mas Yoshan conhecia tanto que eu tive vergonha de
perguntar e passar por ignorante.
Como ele disse, assim que o poste brilhou vermelho os carros pararam e
nós pudemos atravessar até a calçada das construções gigantes.
Yoshan ria e se maravilhava com tudo o que via, e eu apenas me sentia
em outro planeta. No térreo das construções havia balcões com humanos
atrás, o que lembrava vagamente as lojas de Tárnacos, embora fossem lugares
amplos e coloridos, com muito vidro e centenas de produtos de plástico e
tecido, do tipo que eu e Maron encontrávamos boiando no mar às vezes.
Meu coração pulsou dolorido ao lembrar do Maron. Eu só podia rezar que
ele estivesse sobrevivendo.
Alheio aos meus receios, Yoshan continuou me arrastando por calçadas
de mosaico, feirinhas de toldo multicolorido e estandes de comida tóxica. Um
humano até tentou nos oferecer uma batata assada, o que seria morte certa
para um tritão de porte pequeno como eu.
“Você está assustado demais, Cordelen, estamos aqui para nos divertir.”
Ele apontou para o céu. “Olha só, a noite recém começou, e é de noite que
humanos fazem coisas chamadas festas. Você já ouviu falar em música?”
“O pastor Klein cantava às vezes, durante os cultos de idolatria.”
“Ahm… certo, mas estou falando de música de verdade, aquelas dos
humanos. Um dos príncipes tem um humano que toca guitarra e faz uma
barulheira louca no centro de Egarikena. No começo muitos odiavam, mas
agora o cara é tipo uma estrela, forma a maior multidão durante os
espetáculos na padaria do meu primo.”
Eu não sabia o significado de metade daquelas palavras, então apenas
concordei e continuei andando.
Meu conhecimento sobre humanos e cidades de humanos era muito
limitado. Eu sabia era uma espécie promíscua, capaz de acasalar e procriar
com muitos parceiros, e também tomava decisões erradas constantemente,
devido à falta de uma voz que os conduzisse por caminhos exatos. Um povo
inferior com excesso de liberdade para cometer erros, ou era isso o que
costumavam dizer.
Depois que o susto inicial havia passado, notei que Yoshan tinha razão.
Poucos humanos reparavam na gente, embora alguns estranhassem a minha
túnica longa e molhada e nossos olhos incomuns.
Cada paisagem diferente causava gritinhos empolgados no Yoshan, e com
o tempo meio que comecei a apreciar certas coisas que não existiam em
Tárnacos, como as árvores floridas, pássaros e jardins, que seriam tão mais
bonitos sem todas aquelas estruturas artificiais.
“Ah, será que é aquela a loja? Sim, deve ser!” Yoshan soltou minha mão
e correu para um lugar de vitrine elegante, com muitas joias douradas e
prateadas. “Me espere nos bancos da praça, prometo voltar logo!”
Como sempre, a energia do meu alfa rodopiava minha mente até causar
náuseas, mas eu não sentia maldade em nenhuma de suas ações. Ele
desapareceu dentro da loja e, embora eu preferisse acompanhá-lo naquele
lugar assustador, o obedeci e sentei num dos bancos de madeira, embaixo de
uma grande árvore de flores brancas e aromáticas.
O sol havia terminado de se esconder, e o brilho das luzes artificiais não
me permitia ver as estrelas. Eu me concentrei em observar a multidão de
humanos, que andava não somente aos pares, mas também sozinhos ou em
grandes grupos. Havia bastante diferença entre o tipo físico dos homens, mas
pelo que ouvi humanos não se organizavam no mesmo sistema de alfa e
ômega. Eles podiam escolher qualquer parceiro, o que devia ser maravilhoso.
Digo, Yoshan não era um parceiro nada ruim, mas se eu pudesse desejar
qualquer coisa, desejaria a mesma liberdade ao Zarkon.
Para os tritões, desejar era uma perda de tempo inútil.
Meus pensamentos foram interrompidos por uma cócega no braço. Pensei
que era Yoshan brincando comigo, então me virei e dei um grito, arrepiando
cada pelo do meu corpo.
O que era aquilo?? Um animal branco e quadrúpede havia subido no
banco ao meu lado, e esfregava seu rosto peludo em mim. Orelhas pontudas,
bigodes enormes e um longo rabo… até que parecia inofensivo, mas então ele
bocejou e revelou caninos longos e afiados.
“Por favor, não me devore.” Supliquei fininho, me encolhendo no canto
do banco.
A criatura ronronou, me encarando com seus olhos enormes e as mesmas
pupilas afiadas de um tritão feral. Era aterrorizante. Eu estremeci em pavor e
quase tive um troço quando ele subiu no meu colo, lambeu as patinhas e
deitou.
Eu me mantive imóvel como uma estátua, temendo despertar a fúria
daquele espécime. Eu implorei no meu pensamento que Yoshan voltasse
logo.
Yoshan me ouviu e não demorou a voltar, mas cada segundo era tempo
demais. Quando ele me encontrou eu já estava à beira de lágrimas, temendo
que aquele bicho nunca saísse e eu precisasse ser escravo de seus caprichos
pelo fim da eternidade.
“Ah, que legal, você fez amizade com um gatinho!” Yoshan abaixou ao
meu lado e passou a mão no espécime. “Oi, bichinho fofo, como vai? Aaaah,
gatos são tão macios quanto o Clyon falou! Sabia que eles comem peixe,
igual a nós?”
Eu não respondi, só queria sair correndo para me esconder em algum
lugar seguro e chorar.

Em um ato de extrema valentia, Yoshan tirou o animal do meu colo e


colocou no chão. Ele sorriu contente para mim e eu notei uma mudança em
sua aparência.
“Onde está seu pingente de zircônia?” Perguntei.
“Por aí.” Ele deu de ombros. “O que quer fazer agora? Podemos ir a um
show, ou no parque de diversão, ou assistir filmes de pirata. Humanos têm
muitas atividades interessantes!”
Eu mordi o lábio, ainda estremecendo embora o gato já tivesse ido
embora. Nada do que Yoshan falava fazia sentido pra mim. Em Tárnacos
tudo o que havia eram pedras, areia e fogo. Eu me perguntava quantas dessas
coisas de humano também existiriam em Egarikena, e me sentir ignorante
destruía qualquer tranquilidade dentro de mim.
“Tudo bem se nós… descansarmos… talvez?” Sussurrei.
“Já?” Yoshan olhou para o céu poente. “Tá, pode ser. Eu também sempre
quis conhecer um hotel e nós passamos na frente de alguns realmente
incríveis!”
“…Hotel?” Perguntei de novo, mas Yoshan já estava em outro lugar
dentro de sua mente. Eufórico e enérgico ele me segurou pelo braço e correu
comigo pelas calçadas amplas da cidade, em direção a sabe-se-lá onde.
Eu só esperava que hotéis fossem menos ameaçadores que gatos.
Capítulo 11

“Aaaah! Olha só pra isso! Dá pra ver tudo daqui de cima!” Yoshan
pendurou-se para fora da janela, admirando as muitas casas da ilha e também
o oceano logo adiante. “Venha ver, Cor! Dá pra avistar um pouquinho da
fumaça de Tárnacos, lá no fundo.”
Eu segurei meu predestinado pelos quadris, temendo que ele caísse lá
embaixo onde os humanos eram apenas pontinhos. E nem pensar que eu me
aproximaria da janela mais do que isso. Ainda não compreendia como aquele
tal elevador nos transportou para aquele ambiente.
Yoshan entendeu errado a minha agarrada, porque desceu da janela e
virou de frente pra mim, também abraçando os meus quadris magros.
“Você gostou daqui?” Ele perguntou.
Eu olhei ao redor e analisei com calma aquele lugar. Era um quarto
pequeno e muito bem decorado, com paredes coloridas e pinturas, mas a
única mobília que eu conhecia por nome era a cama. E era uma cama enorme.
“Lembra as hospedagens que tritões das profundezas utilizam nos
períodos de reprodução.” Falei.
“É, a premissa é quase a mesma, mas pelo que Clyon disse tem muitos
brinquedos interessantes. Olha isso.”
Yoshan pegou uma caixinha preta e comprida e apertou alguma coisa. O
retângulo escuro na parede acendeu em diversas luzes coloridas, fazendo um
som alto enquanto mostrava pequenos humanos.
Eu arregalei os olhos, horrorizado enquanto Yoshan se divertia
imensamente. Ele parecia tão feliz que eu tentei conter minha desconfiança,
mas tudo era tão esquisito.
“Olha, isso se chama show de música pop! Ou será que é um programa de
culinária? O príncipe Clyon falou de tantos programas de TV que já não
lembro.”
Yoshan deitou na cama e continuou apertando a caixinha, fazendo o som
e a imagem mudarem constantemente. Eu nem imaginava como ele
conseguiu aquele espaço para nós, porque humanos eram conhecidos por
trocarem papéis coloridos e possuíam um comércio avançado. Mas pelo anel
de esmeralda faltando no dedo do Yoshan, logo deduzi como ele conseguiu
pagar.
Eu tentei relaxar apesar de tantas novidades me sobrecarregando.
Precisava respeitar as escolhas do meu alfa e aceitar que minha vidinha
simples nunca voltaria. Nada nunca voltaria. Nem as coisas boas, nem as
coisas ruins.
“Você ainda está aborrecido.” Yoshan apertou algo que desligou o painel.
Ele me chamou com a mão para que eu deitasse ao seu lado. “Venha aqui.”
Eu engatinhei até ele, surpreso com o quanto aquele colchão era macio e
os lençóis suaves. Quando me aproximei o suficiente Yoshan me puxou pelo
braço para cima dele e beijou minha boca.
Apesar dos meus receios, eu tive sincero prazer em devolver o beijo,
relaxando meu corpo sobre o dele e permitindo que Yoshan me desse
conforto.
Enroscando minhas pernas nas dele, eu aguardei que meu alfa arrancasse
minha túnica e dominasse meu corpo, e de certa forma Yoshan fez isso,
deslizando as mãos pelas minhas costas, afagando o meu pescoço, apertando
meus ombros em uma massagem gostosa enquanto provava meus beijos. Mas
por algum motivo eu não me sentia explorado de forma alguma. Eu até
desejava mais.
Yoshan afastou os lábios para respirar e eu continuei beijando seu rosto e
seu pescoço. Ele acariciou atrás do meu cabelo e me fez erguer o olhar ao
dele.
“Algum problema com o meu cabelo?” Perguntei.
“É deslumbrante. Tão longo quanto o do Digníssimo Oráculo.”
“Acho que é essa a intenção. A maioria do tritões do templo usa cabelo
longo.” Eu puxei uma mecha para observar, embora nunca tivesse prestado
muita atenção. “O pastor Klein considera uma homenagem ao Oráculo, mas
eu apenas segui as tradições locais.”
“Você não gosta muito dele, não é mesmo?” Yoshan franziu a testa. “Do
Digníssimo Oráculo.”
Eu engasguei, meu coração disparando no peito. O que significava aquela
pergunta? Será que ele havia lido minha mente? Desaprovar nosso
governante era uma falta gravíssima e passível de graves consequências. E
meu predestinado era nada menos que um Amalona, o clã de informantes
cuja lealdade ao Oráculo superava qualquer outro vínculo.
Qualquer tritão com um mínimo de bom senso evitaria discussões neste
teor. Ainda assim, o olhar bicolor de Yoshan não transmitia nada além de
preocupação e tristeza por mim. Eu não podia confiar a ele meu desprezo
pelo Oráculo, mas podia ao menos lhe revelar meus motivos.
Eu suspirei e deitei ao seu lado na cama, descansando a cabeça em seu
braço.
“Meu núcleo costumava ser feliz e completo. Havia meu pai alfa Cypron,
meu pai ômega, Aishen, e os três filhos, Zarkon, eu e Maron. Não existe vida
fácil ou feliz em Tárnacos, mas as coisas eram… pacíficas, eu acho. Meus
pais se amavam e também nos amavam, e isso bastava. Então houve a
explosão.”
“Uma erupção vulcânica?” Yoshan me perguntou.
“Não, um acidente nas forjas que feriu gravemente o papai Aishen. Pai
Cypron correu com ele para o templo e o mergulhou nas águas salinas, e por
muitos sóis e luas nós rezamos ao chamado que recuperasse o papai Aishen.
Mas os ferimentos eram extensos demais, após cinco luas em agonia papai
Aishen tornou-se um com o mar.”
Eu virei o corpo e olhei as esferas de luz no teto, não querendo que as
lágrimas escapassem.
“O chamado tem seus limites, não costuma agir em venenos ou
queimaduras.” Disse Yoshan.
“Depois da morte dele, o primeiro irmão Zarkon surtou. Ele amaldiçoou o
chamado, gritou aos céus o quanto detestava a nossa vida, e nossa cultura, e
tudo o que o chamado era e representava. E o chamado… o chamado se
revoltou.”
“O que aconteceu?” Perguntou Yoshan.
“Não sabemos, mas algo deu errado quando ele despertou.” Eu sequei o
rosto, me sentindo um idiota por chorar mesmo após tanto tempo. “Zarkon
não disse o nome de seu alfa, apenas que chegaria logo. Duas luas depois,
enquanto dormíamos, ele desapareceu. Tudo o que restou foram seus gritos
de socorro, que o chamado ainda tem o prazer de entregar aos nossos ouvidos
mesmo após dois anos.”
Yoshan torceu os lábios e esperou que eu continuasse a falar, mas eu
percebia em seu olhar o quanto ele não acreditava então pra que seguir
adiante? Viver como um tritão era aceitar que toda luta era tolice.
Quando percebeu que calei, Yoshan beijou o canto do meu rosto, por
onde uma lágrima escapou. Ele me abraçou carinhosamente.
“Despedir-se dos irmãos é difícil, eu mesmo já disse adeus a dois irmãos
mais velhos, e quando despertei foi meu irmão mais novo quem disse adeus a
mim. E um dia ele também partirá com seu predestinado, porque é isso que
tritões fazem. Não sei que vozes são essas que o chamado te traz, mas para
qualquer alfa os ômegas são tesouros preciosos, tritões encantadores e lindos
capaz de gerar o milagre em seus corpos frágeis. Tenha certeza que o Zarkon
é feliz com quem quer que esteja.”
“É isso o que pensa? Que Zarkon se esqueceu de nós e que os gritos são
ilusões?” Meu sangue se aqueceu em uma breve raiva, mas aquela era uma
reação previsível de alguém que cresceu nos luxos de Egarikena. “Pelo que
entendi você também tem irmãos mais velhos e mais novos e também deve se
preocupar com eles.”
“Um pouco, mas não exatamente. Meus irmãos mais velhos agora são
preocupação de seus predestinados, da mesma forma que você é uma
preocupação minha. Eu quero te fazer feliz, Cordelen, não entendo seus
temores comigo, mas você é o meu ômega e seu sorriso é o maior dos meus
objetivos.”
“Um objetivo ainda maior que inseminar seu filho em mim?” Perguntei.
“A concepção falhou e você não está me vendo tentar de novo, está?”
Disse ele, o que me surpreendeu porque realmente era verdade. “Nós
pertencemos um ao outro, meu querido Cor. Peça o que quiser de mim,
porque a minha felicidade é realizar todos os seus desejos.”
Eu o fitei e sorri com cinismo.
“Qualquer desejo?”
“Qualquer desejo.” Yoshan concordou de imediato.
Eu subi novamente no corpo musculoso de Yoshan, admirando seu
semblante preocupado e agora levemente nervoso, de quem estranhava que
seu ômega pudesse ter um olhar tão frio. Mas como ser qualquer coisa além
de frio quando as escolhas eram tão poucas?
O sofrimento que me cercava não era uma ilusão. A única ilusão era
acreditar que eu podia ser feliz apesar do tormento que me cercava.
Sabendo disso, eu acariciei o rosto do meu Yoshan e afinei meu olhar a
ele.
“Eu desejo que você mate o meu pai.”
Yoshan arregalou os olhos e suor formou-se em sua testa. Ele abriu a
boca buscando resposta, mas o choque o petrificou.
“O quê?” Perguntou ele.
“Meu pai Cypron Trevally. Eu o quero morto, e você fará isso por mim.”
Repeti com seriedade.
Yoshan continuou estático, então seus lábios curvaram e ele começou a
rir, escorregando debaixo de mim para sentar contra o encosto da cama.
“Que brincadeira é essa, Cordelen? Não é educado testar a dedicação do
seu alfa desse jeito, sabia?”
“Não estou testando, é um pedido sério.” Falei, sentando de frente para
ele e com a expressão tão séria quanto sempre.
O sorriso de Yoshan desapareceu. Ele me fitou com o olhar sombrio e um
tanto assustado.
“Compreendo seus receios quanto ao Digníssimo Oráculo, mas ele não
poderia ter salvado seu pai ômega. Mesmo se ele chegasse a tempo, o que
seria impossível se notar meu próprio tempo de viagem, o Oráculo nada
poderia fazer. Os poderes curativos dele são apenas uma amplificação dos
poderes do chamado, que não age em queimaduras graves.” Ele sorriu de
novo e deu de ombros, tentando aliviar o clima. “Além do mais, matar tritões
é punível com a morte. Quer tanto assim se livrar de mim?”
“Não estou tramando me livrar de você, Yoshan. Os tritões de Tárnacos
vivem principalmente na terra firme, onde a vidência do Oráculo não alcança.
Se matá-lo longe do mar e esconder o corpo ninguém nunca descobrirá, e eu
serei o ômega mais agradecido, submisso e dedicado que qualquer alfa
poderia sonhar.”
Os olhos verde-e-lilás de Yoshan tremularam em medo, como se não
reconhecesse o ômega diante de si. Eu mesmo não me reconhecia. Na minha
mente todos os alfas eram cruéis e sádicos sem motivo algum, mas assim que
percebi Yoshan como alguém diferente, eu simplesmente lhe dei motivos
para agir como os alfas dos meus pesadelos.
Seria Yoshan capaz de me ferir? Muitos tritões castigariam seu parceiro
por muito menos, mas aquele era um risco que eu precisava correr. Era tarde
demais para o Zarkon, mas a vida do Maron dependia do meu sucesso.
Após algum tempo, Yoshan suspirou e baixou o olhar, dolorido e
decepcionado.
“Peço mil perdões, meu predestinado. Isso é algo que não posso fazer.”
Ele disse cada palavra como se fossem facas cravando em seu peito, então
sorriu um sorrisinho triste. “Mas tem algo que posso fazer. Posso reencontrá-
lo com seu irmão Zarkon.”
Meus olhos expandiram em espanto total.
“Ninguém sabe a localização do Zarkon. Ele sumiu dias após o despertar,
sequestrado pelo alfa.” Eu disse.
“Se ninguém viu ele sumir então este sequestro é apenas especulação,
certo? Vou mostrar que ele vive feliz nos braços de seu alfa, provavelmente
cercado de sobrinhos seus.”
“Como tem tanta certeza que ele está bem?” Perguntei, ainda chocado.
“Simples, porque o Digníssimo Oráculo é o protetor de todos os oceanos
e nunca deixaria uma injustiça acontecer.” Yoshan começou a se empolgar de
novo. “Por exemplo, quando um amigo meu nasceu de um humano, o pai alfa
dele ficou muito doente da cabeça, então o Oráculo enviou seus guardas para
salvá-los e lhes deu abrigo e tratamento na capital.”
“Ele certamente interviu porque um tritão louco em meio a humanos é um
perigo aos segredos da espécie. O Oráculo protege a espécie, não os
indivíduos.” Falei, tentando não soar cínico.
“Não é verdade, porque quando o pai dele se machucou o Oráculo fez de
tudo para salvá-lo e conseguiu. Ele é o herói do nosso povo, derrotou os
selkies e unificou toda a nossa espécie após a grande guerra. Se houvesse um
tritão sofrendo em qualquer lugar, o Oráculo não hesitaria em salvá-lo.”
Eu sorri ao Yoshan. Não que eu acreditasse totalmente no que ele me
dizia, mas apesar de detestar tamanho idealismo, eu apreciava sua tentativa
em me confortar.
“Pode mesmo encontrar o Zarkon?” Perguntei.
“Eu sou um Amalona, esqueceu? Obter informações é o que define nosso
clã. Amanhã mesmo me comunicarei com outros Amalonas através das ondas
e encontrarei seu irmão pra você.”
Dessa vez um sorriso amplo e sincero se formou em meu rosto, molhado
por lágrimas emocionadas.
Eu abracei Yoshan apertado, me segurando para não chorar.
“Obrigado. Obrigado de verdade.” Eu disse a ele.
Yoshan me abraçou de volta, carinhoso e gentil como eu amava que ele
fosse.
“Eu sou seu alfa, esqueceu? Pelo meu precioso Cordelen eu seria capaz
de qualquer coisa. Quase qualquer coisa.” Ele engasgou dolorido ao falar a
última parte. “Espero que isso te faça feliz.”
Eu concordei e beijei seus lábios em profunda paixão. Dentro de mim,
meu coração pulsava forte com a esperança que eu pensava ter abandonado.
Capítulo 12

Yoshan não tentou usar meu corpo durante a noite. Nós apenas nos
abraçamos sob os cobertores quentes e eu logo adormeci, embalado pelo
calor de sua respiração.
Mas quando acordei, já de manhã, não havia ninguém ao meu lado. Eu
saltei da cama e vasculhei os outros cômodos procurando por Yoshan, e ao
concluir que estava sozinho o pânico tomou conta de mim.
Ele partiu. Meu alfa havia me abandonado, insultado após meu pedido
sem cabimento. Eu nunca desejei um alfa durante toda a minha infância, mas
Yoshan era bondoso e prometera me reencontrar com Zarkon. Teria sido tudo
uma mentira, para que meu castigo fosse o golpe estarrecedor da decepção?
O que seria de mim, retornando em desgraça para Tárnacos? A rejeição do
predestinado era a vergonha máxima para um tritão e eu sequer havia
germinado a semente em meu ventre, o que me colocava em uma situação tão
humilhante quanto perigosa.
Eu tentei deixar o quarto, mas a maçaneta não girava. Yoshan fez algo
com um retângulo plástico quando entramos, mas eu não havia prestado
atenção. E se eu morresse ali dentro? Bastavam algumas luas para que o
efeito da desidratação fosse fatal.
Então enfim descobri o plano de Yoshan. Ele pretendia que eu morresse
lentamente para ser devorado pelos inferiores. No que eu estava pensando
quando pedi algo tão absurdo a ele? Meus erros se pagariam com uma morte
lenta e terrível.

<<Bom dia, meu predestinado! Você prefere salmão ou enguia para nosso
desjejum?>>
Meu coração saltou com o susto, e após um breve instante de
perplexidade eu gaguejei uma resposta.
“Traga o que for de seu agrado.” Falei.
Yoshan concordou por telepatia e eu sentei na cama me sentindo um
idiota.
Após algum tempo, quando eu terminava de pentear o cabelo com os
dedos, ele voltou carregando um peixe rosado por cima do ombro.
“Desculpe a demora, meu predestinado. As águas de colônias humanas
são bastante poluídas, então precisei caçar muito longe.” Ele estendeu o peixe
para mim, ambos pingando água no tapete, totalmente molhados. “O cara do
elevador não queria me deixar entrar, mas aí falei que pesquei esse salmão
com os dentes e ele disse nossa, que da hora e me deixou subir. Humanos
não gostam que molhem o chão, mas o que podemos…”
Eu abracei Yoshan com força, fazendo-o derrubar o peixe morto na cama.
“Pensei que tivesse ido embora.”
“Ei, ei, você é meio paranoico, já te disseram isso?” Yoshan me abraçou
com uma mão só. “Eu nunca vou te deixar, você é o que tenho de mais
importante no mundo.”
Eu sorri e me afastei, curvando a cabeça para agradecê-lo. E então notei
algo em sua outra mão, uma sacolinha de papel com um laço de fita.
Yoshan me entregou a sacolinha e eu a segurei com cuidado nas mãos.
“O que é isso?” Perguntei.
“Abra para descobrir.” Yoshan sorriu com o canto da boca.
Eu soltei o laço e puxei o conteúdo de dentro, então meus olhos
iridesceram em surpresa.
Era o pingente de cliantus-vermelho que eu achei tão lindo no peito do
Yoshan. Exceto que não era mais um pingente. A correntinha havia sumido, e
em seu lugar, na parte de trás, havia um grampo de ouro.
Uma mistura de sensações loucas tomou conta de mim, me deixando
confuso de uma forma doce e amarga ao mesmo tempo.
“Eu não compreendo. Já sou plenamente submisso e obediente a você,
meu predestinado. Não há necessidade de conquistar minha benevolência
com presentes.”
“Eu sei, disso.” Yoshan pegou o broche das minhas mãos e alisou os
lados do meu cabelo para trás. “Não estou lhe presenteando com segundas
intenções. Estou lhe presenteando porque eu te amo.”
Yoshan laçou alguns nós de uma trança fina atrás da minha cabeça e
então passou o grampo da joia. Um sorriso lindo iluminou o seu rosto ao
notar o resultado.
“Não ficaria tão bom como pingente porque seus ombros são estreitos
para uma joia tão grande, mas como presilha nesses cabelos longos… ficou
perfeito.”
Eu não conseguia desmanchar meu sorriso. Os Trevally abominavam
vaidade e futilidades de qualquer tipo, mas danem-se os costumes de
Tárnacos. Eu estava tão totalmente feliz que corri para a salinha de azulejos
brancos para tentar ver no espelho.
Antes que eu quebrasse o pescoço tentando olhar, Yoshan segurou um
segundo espelho atrás de mim e eu enfim consegui ver. A joia reluzia suas
várias facetas de zircônia vermelha, três pedras no formato de uma flor que
eu nunca havia visto, mas que eu esperava conhecer em breve.
“Seu cabelo fica lindo nesse penteado. Alguém com olhos tão lindos deve
mostrá-los ao mundo de rosto erguido.”
“Eu tenho olhos lindos? É difícil acreditar em tal elogio, vindo de um
Amalona.”
Yoshan beliscou meu nariz e deu um beijinho no meu rosto.
“Em primeiro lugar, seus olhos são mais lindos que qualquer pedra
preciosa que eu conheça, e eu conheço centenas de pedras preciosas. Em
segundo lugar, está na hora de você confiar em mim porque eu cumpro todas
as minhas promessas… incluindo a parte de encontrar o seu irmão.”
Meu sorriso sumiu no ritmo dos saltos no meu peito. Eu me virei ao
Yoshan com o rosto empalidecendo.
“Você encontrou o Zarkon?” Meus lábios tremeram. “Como? Deveria ser
impossível.”
“Foi simples. Eu considerei o tempo entre seu irmão despertar e sumir e
deduzi que o alfa não podia morar tão longe. Também considerei o sumiço de
dois anos, o que estabelece Zarkon como um ômega de vinte anos, e por
consequência seu alfa também. Um núcleo em período reprodutivo
geralmente mora em terra firme, o que se confirma pela voz do seu irmão ser
ouvida apenas ao amanhecer e ao pôr-do-sol, momentos em que tritões da
superfície geralmente se banham ao mar. São poucas as ilhas no entorno de
Tárnacos e 98% dos alfas nativos da região são do clã Trevally, só precisei
consultar meu clã sobre os alfas Trevally de vinte anos que morassem em
ilhas a dois dias de Tárnacos, e veja só temos uma ocorrência exata, um alfa
chamado Dankoren Trevally.” Yoshan sorria mais e mais orgulhoso a cada
frase.
Eu pisquei rápido.
“Você… você é muito esperto.” Falei.
“Eu sou, não sou?” Yoshan fechou os punhos em comemoração,
empolgadíssimo. “Eu sempre quis investigar mistérios como os mais velhos
do clã e não passei vergonha! Me sinto um Amalona de verdade e isso é tão,
tão, tão incrível, quando o primo Édrilan souber ele vai assar um pão de
barbatana só pra mim, e eu amo barbatanas de tubarão, já te disse isso?”
Yoshan balançou os ombros casualmente, como se não me percebesse à beira
de um colapso. “As más notícias é que o território de Dankoren situa-se na
direção oposta de Tárnacos, espero que tenha recuperado sua disposição a
nadar.”
Yoshan falou, falou e falou, mas meus ouvidos escutavam apenas o bater
do meu coração disparado. Minha mente dava voltas pulsando a única
informação que realmente mudava tudo.
Eu enfim reencontraria Zarkon.
“Precisamos partir imediatamente.” Eu retornei ao quarto maior, tão
assertivo que minha voz assustou a mim mesmo.
“Como desejar, meu querido predestinado.” Disse Yoshan. “Ahm…
podemos comer este salmão, primeiro? Meu estômago está me matando.”
Quase deixando o quarto, eu me virei para trás e avistei nossa refeição
matinal, que brilhava tentadora sobre os lençóis agora encharcados. Meu
estômago também roncou.
“Comeremos durante a viagem.” Falei. “Quero encontrar Zarkon o quanto
antes.”

****

Eu e Yoshan nadamos dia e noite, pausando apenas para refeições


rápidas. Quando Tárnacos apareceu no horizonte a minha cauda já doía tanto
que Yoshan me venceria em qualquer corrida.
Yoshan diminuía o ritmo cada vez mais para me acompanhar, com uma
óbvia preocupação em seus olhos.
“Olha, acho que reconheço aquele vulcão.” Brincou ele, mas as cãibras
destruíram minha vontade de rir. “Vamos descansar aqui esta noite.”
“Nem pensar. Se retornamos à Tárnacos é porque já estamos na metade
do caminho. Eu aguento.” Falei, acelerando um pouquinho e quase gemendo
de dor.
Yoshan descansou a mão no meu ombro, me forçando a parar.
“Seu corpo de ômega não foi feito pra isso, Cor, eu posso sentir sua
exaustão. Ganharemos tempo pernoitando aqui e seguindo viagem com a
energia renovada.” Ele sorriu com o canto do lábio. “E agora que somos
amiguinhos, você pode me apresentar seu antigo núcleo.”
“Não somos amiguinhos!” Eu levantei a voz, avermelhando. “Tá bem,
vamos descansar, mas seguiremos viagem amanhã cedo.”
“Ah, ainda bem. Eu não queria admitir, mas tô louco por uma cama. E
nós podemos passear pelo templo! Deve ser tão bonito…”
Eu suspirei e acompanhei Yoshan até a praia, sentindo emoções doloridas
e conflitantes. Parte de mim não queria ver aquele maldito vulcão nunca mais
e parte de mim gritava de alegria por estar de volta.
O cheiro de enxofre e a fuligem me causaram uma nostalgia amarga e
horrível, como se não fizessem poucas luas desde que partimos. Yoshan
percebeu isso porque segurou firme minha mão conforme deixávamos a água,
nossas caudas exaustas tornando-se pernas igualmente exaustas.
Evitando contato visual com os muitos vizinhos curiosos, eu conduzi
Yoshan de volta ao casebre da nossa consumação.
No caminho ao casebre avistei uma sereia. Quando a reconheci senti
arrepios na espinha.
“Vitanen?” Perguntei a ela.
“Ah, oi, Cordelen! Nossa, este é o seu predestinado? Que rapaz lindo!”
Ela estendeu a mão a Yoshan.
Yoshan se apresentou e beijou sua mão educadamente, empolgando-se
em conhecer minha amiga quando tudo o que eu sentia era tremor.
“Pensei que voltariam no outono.” Falei.
“Era este o plano, mas quem suporta os progenitores do Yangin? Eles
visitavam cinco vezes por dia, sempre com algum primo ou cunhado ou
amigo pra apresentar. Eu sei que o clã Hai-Kui não vê significado em
propriedades particulares, mas eu sou uma Trevally e eu queria poder
dormir!”
“Seu predestinado é um Hai-Kui? Conheço um Hai-Kui em Egarikena,
mas ele é muito reservado.” Falou Yoshan,
“Sorte a sua, porque deixa eu te dizer, eles são tão invasivos! Eu amo o
meu predestinado, mas…”
Eu assisti os dois conversarem animados, com a cabeça latejando em
exaustão. Em algum momento precisei interromper a conversa ou acabaria
dormindo ali. Eu puxei a mão do Yoshan discretamente, esperando que ele
entendesse o recado.
“Ah, precisamos ir agora. É um prazer conhecê-la, Vitanen, mas nossa
casinha nos aguarda.”
“Lembrem de trancar as portas, alguém acasalou na nossa cama e o
Yangin está furioso, jurando matar o invasor.” Vitanen nos encarou
seriamente, então notou o pavor na minha cara e desatou a rir. “Estou
brincando, Cordelen, o Yangin entende a sua situação. Se precisar de um
lugar pra ficar, nós…”
“Não será necessário. Vamos Yoshan.” Eu o puxei na direção contrária,
nos afastando da vila.
“Do que ela está falando, Cor? Aquela não era a sua casa?” Perguntou
ele.
“Vou te apresentar o templo. Você vai adorar as piscinas.”
Yoshan travou no lugar e apertou minha mão. Ele não disse nada, mas sua
mágoa ecoou dentro de mim, e eu já não suportava ver tristeza em seus olhos.
Eu soltei o ar lentamente, fazendo o esforço mental de confiar em outra
pessoa. De confiar no meu alfa. No meu amigo e amante.
“Tá bem, vamos para a minha verdadeira casa. Por favor, não mencione
nada sobre eu querer matar alguém.”
Yoshan sorriu, super feliz e empolgado.
“Espero causar uma boa impressão no seu pai. Ele deve ser incrível para
criar alguém como você, meu querido Cor.” Ele beijou minha bochecha e
novamente nos encaminhamos para vila, onde o casebre do meu pai já
aparecia em meio a muitos outros.
Capítulo 13

Minhas pernas tremiam demais. Yoshan havia percebido meu desespero,


mas sua ingenuidade não permitia compreender meus motivos. Certamente
pensava ser frescura ou paranoia minha, não que isso importasse.
Eu só esperava conseguir ocultar a realidade, não importava como.
Yoshan era inocente demais, mas eu aprendi a gostar desta inocência. Eu não
queria que ele sentisse pena de mim ou, no pior cenário, que descobrisse os
prazeres em torturar sua propriedade.
“Chegamos.” Falei, quando viramos a última esquina.
Após tanto tempo andando em meio a casebres e destroços, Yoshan nem
ouviu minhas palavras. Era óbvio o quanto tudo ali o aterrorizava, ele cobria
o rosto com as mãos para proteger-se da fuligem e do fedor de peixe velho
que eu já nem reparava mais.
Como eu apresentaria Yoshan ao meu pai? Não tive coragem de contar
que fui expulso. Tritões recém-despertados já eram reconhecidos como um
núcleo distinto, portanto era direito dos progenitores expulsá-los do território,
mas na prática apenas os clãs mais bárbaros e primitivos faziam isso. Mesmo
com todos os seus defeitos os Trevally eram um clã de média casta, eu
mesmo não conhecia ninguém além de mim a ser expulso.
Não que eu quisesse continuar morando com o meu pai, mas isso era
outra história.
Meu coração batia tão alto quanto as minhas batidas na porta. Se fosse
meu pai a atender, poderia acontecer qualquer coisa. Yoshan era metade do
tamanho do meu pai, não venceria em um combate direto e desarmado.
Felizmente foi Maron quem abriu a porta, e ele abriu um sorriso gigante
quando me viu.
“Segundo irmão, você voltou!” Ele me abraçou apertado com um dos
braços e logo soltou, voltando a segurar a gola da túnica bem fechada.
“Todos disseram que vocês haviam partido, pensei que… ahm… Este é o seu
predestinado?”
Maron estendeu a mão em cumprimento, mas Yoshan ajoelhou-se à altura
dele e apertou suas bochechas.
“Aaah, você não falou do seu irmãozinho! Que coisa mais fofinha, olha
que bochechas macias!” Yoshan esticou a boca do Maron, o deixando
perfeitamente confuso. “Ele parece meu irmão mais novo, tão bonitinho e
arteiro. Ele também está sempre se arrebentando por aí.”
Eu franzi a sobrancelha e só então notei um hematoma na testa do Maron.
“Onde está o pai Cypron?” Perguntei.
“Partiu em uma de suas viagens, faz algumas luas.” Maron massageou as
bochechas, tentando devolvê-las ao lugar.
“Ah, que azar. Eu queria tanto conhecer a família toda!” Disse Yoshan.
Maron arqueou a sobrancelha pra mim, me julgando. O que ele queria
que eu fizesse? Eu não podia sair contando sobre a minha vida para um
desconhecido.
“Meu predestinado, receio que seja embaraçoso admitir, mas não temos
alimento algum nesta casa.” Eu baixei a cabeça em reverência educada.
“Certamente a Missão Filantrópica será mais generosa com um Amalona do
que conosco devotos. Você poderá encontrá-los no mercado, subindo o morro
por onde passamos.”
Dessa vez Yoshan quem arqueou a sobrancelha. Era tão óbvio assim que
eu precisava me livrar dele? Por sorte ele preferiu não discutir e nos deu as
costas.
“As missões filantrópicas distribuem os recursos de Egarikena, com
certeza devem conhecer algum parente meu. Deseje-me sorte.” Yoshan
despediu-se brevemente e voltou de onde viemos.
Assim que Yoshan sumiu de vista eu entrei com Maron e fechei a porta.
“Por que expulsou aquele cara? Ele parece bem legal.” Maron apertou a
gola da túnica contra o pescoço.
“Você não me engana, Maron. Deixa eu ver.”
Maron continuou se fazendo de bobo, então eu forcei o tecido para baixo
até ceder nos pés dele. Um enorme hematoma negro escurecia seu ombrinho
de criança.
Embaraçado, Maron vestiu-se novamente.
“Nem tá doendo muito. O chamado tá demorando a curar porque
quebrou, eu acho. Mas o papai sempre demora nessas viagens, vai dar tempo
de ficar bom.” Ele sorriu pra mim.
“Aquele… aquele miserável…” Meus lábios tremeram de tristeza e ódio.
“Para onde ele foi?”
“Você sabe que ele some às vezes. Foi lamentar a morte do papai
Aishen.” Maron balançou o ombro saudável. “O segundo irmão deveria
comemorar, porque podemos sentar no sofá e ter a casa toda pra gente! Você
e o Yoshan podem dormir no quarto de casal essa noite e amanhã fazemos
turismo pela ilha.”
Eu acabei sorrindo, embora meu peito doesse tanto. A alma do Maron era
mais forte do que aparentava, ele permanecia esperançoso mesmo em
situação tão devastadora. Ainda assim eu não podia revelar o motivo do meu
retorno. Se minha busca pelo Zarkon resultasse em fracasso, nem mesmo
Maron conseguiria suportar a decepção.
“Precisamos partir amanhã cedo. Sinto muito, Maron.” Eu percorri a casa
tentando deixá-la um pouquinho apresentável. “Vamos pernoitar aqui, mas
seria péssimo que o papai nos encontrasse.”
“Você é terrível em inventar desculpas, segundo irmão.” Maron afinou os
olhos e arrancou a almofada das minhas mãos. “Deixa que eu ajeito o sofá.
Não sei qual a sua pressa, mas se vão partir logo pelo menos se divirta um
pouco.”
“Não preciso me divertir, Maron.” Eu revirei os olhos. “E o que tem de
divertido nessa maldita ilha quente?”
Eu tentei ajeitar o sofá novamente e Maron bateu a almofada na minha
bunda. E bateu de novo, e de novo, me fazendo recuar até a porta de entrada.
“Ainda é dia, segundo irmão, pare de agir como um pastor chato.” Maron
abriu a porta, fazendo um beicinho indignado. “Esta casa não é mais sua, e eu
digo que você só pode voltar de noite, depois de se divertir muito!”
Eu suspirei. Não adiantava discutir.
“Tá bem… vou encontrar Yoshan e pensar em alguma coisa.” Eu lembrei
de algo interessante e acabei sorrindo de leve. “Pensando bem, sei
exatamente para onde levar Yoshan.”

****

Eu atravessei lentamente os caminhos de sal por entre as piscinas,


enquanto Yoshan saltitava loucamente atrás de mim.
“Aaah, olha todas essas piscinas! Sério que todas são naturais? Porque
olha, tem umas lá em cima, escalando a parede do vulcão! Essas paredes são
de sal?”
“O sal na água é tão concentrado que cristaliza, formando essas paredes
brancas. Então a água fervente dos gêiseres forma diversas cascatas que
engrossam as paredes de cada piscina travertina pouco a pouco, ao longo de
milhares de luas.”
“Milhares de luas? Noooossa, isso é tão demais. Olha só, é como se fosse
pedra!” Yoshan pisoteou nas bordas estreitas, sempre olhando ao redor e
admirando tudo.
O que raios eu estava fazendo? Meu objetivo era encontrar Zarkon, mas
ali estava eu bancando o guia turístico de um Amalona empolgado demais.
Yoshan dançava pelos caminhos estreitos entre cada piscina, tentando
acompanhar meus passos ágeis e já acostumados a caminhar ali.
“Ei, ei, qual dessas é a piscina que vocês mergulham? Porque tipo, essas
bolhas aqui são de fervura, não são? Não quero reclamar, nem nada assim,
mas tá quente demais, como você não tá derretendo? E você mergulha nisso,
não tem medo de virar uma sopa de… aaaaah!”
Eu me virei rápido, apenas a tempo de ver Yoshan despencando em uma
das piscinas. Eu saltei rápido e o ajudei a sair da água enquanto ele gritava
como uma criança sereia.
“Quente, quente, quente, quente!!! Aaah minhas bolas viraram um
omelete bem cozido.” Yoshan abanou os braços, com a pele totalmente
vermelha e um horror assustado que era quase cômico.
“Na verdade os devotos mergulham nas piscinas mais baixas.” Eu sorri
com o canto do lábio e segui andando. “Estas aqui são frias demais.”
O susto acalmou o falatório de Yoshan, que permaneceu resmungando
baixinho até chegarmos em nosso destino: As piscinas de lama do pastor
Enan.
“Nossa, que lugar é esse?” Yoshan arregalou os olhos, ainda se abanando
discretamente.
“Conheça o spa do templo de Tárnacos. Costuma ser mais movimentado,
os turistas evitam aparecer no verão.” Eu olhei ao redor. “Pelo visto hoje
somos apenas nós dois.”
Yoshan parou à beira da lama e se encolheu todo, assistindo as bolhas de
lama estourarem lentamente.
“…Essa piscina também é quente, né?” Perguntou ele.
“Só um pouquinho.” Eu sorri.
“Legal. Super ótimo. É muito linda e interessante, meu predestinado, mas
acho que… Ah!!”
Dessa vez eu quem empurrei Yoshan, que desabou para dentro da lama.
Eu me despi, saltei logo atrás e o ajudei a livrar a lama do rosto enquanto
Yoshan resmungava e esperneava.
“Ah, porque tudo aqui é tão quente? Minha bunda vai cozinhar e as
minhas pernas… ei. As minhas pernas!”
Yoshan percebeu rápido que mantinha sua forma humana dentro da lama
e começou a dançar e saltar, divertindo-se horrores. Nem os tritõezinhos de
cinco anos se divertiam tanto.
“Olha pra mim! Eu sou um humano!” Ele flutuou de barriga para fora,
balançando as pernas no ar.
Eu dei risada e sentei na parte rasa à borda da piscina, prendendo meu
cabelo em um coque alto com meu lindo broche de zircônia. Então esperei
Yoshan cansar, algo que talvez demorasse horas.
“Você gostou daqui?” Perguntei.
“Se eu gostei? Aqui é demais! Estou adorando esse nosso encontro!”
Eu avermelhei e aqueci ainda mais que a lama. Aquilo não era um
encontro. Casais apaixonados e tolos saíam em encontros, eu apenas
precisava agradar meu predestinado em troca de favores… certo?
Após algum tempo nadando e brincando nas bolhas de lama, Yoshan
nadou até mim e se debruçou entre as minhas pernas, que mal se mantinham
ocultas sob uma rasa camada de lama.
“Não quer brincar também?” Ele ergueu o que devia ser sua cabeça, mas
era apenas uma bola marrom.
“Você parece um monstro de lama.” Eu sorri e esfreguei os dedos em seu
rosto, expondo a beleza de seus olhos bicolores e cabelo espetado.
Yoshan sorriu docemente e permitiu que eu continuasse o limpando,
apreciando o carinho em seu rosto.
Eu deveria parar, ele mesmo podia se lavar nas duchas logo atrás de nós,
mas eu não queria. E não era apenas minha mente a protestar, o meu corpo
também aquecia, ciente da nudez de nossos corpos tão próximos.
Nossa conexão tornava impossível disfarçar. Na verdade eu sentia que
meu calor não vinha totalmente de mim, mas principalmente do Yoshan que
mal disfarçava suas verdadeiras vontades.
Que insulto. Minha intenção era ser gentil, e não excitar aquele sem-
vergonha. Ainda assim eu continuei acariciando seu rosto e o puxando para
perto de mim, até Yoshan subir na parte rasa comigo e sentar ao meu lado.
Yoshan respirava ofegante, admirando meus olhos com um sorriso
enigmático. Eu agradeci aos oceanos pela lama ocultar nossas partes baixas
ou a vergonha me faria sair correndo. Yoshan era um bom alfa, meu temor
vinha de mim mesmo, das coisas que minha própria mente era capaz de
desejar.
Mesmo que eu fosse apenas uma incubadora de filhotes, eu queria
acreditar que podia haver amor e amizade entre nós dois. Seria estupidez
minha desejar isso tão cedo? Eu conhecia Yoshan há poucas luas, mas já não
o temia. Na minha experiência isto era um erro incalculável.
Yoshan me olhava como um bobo alegre, sua pele avermelhada mal
aparecendo sob as camadas de lama. Certamente pensava alguma perversão
comigo, e embora isso fosse o esperado de um alfa, a curiosidade me venceu
e eu pesquisei sua mente, querendo descobrir seus pensamentos exatos.
E para a minha surpresa, não consegui ler nada. Eu tentei de novo,
concentrando a minha mente, mas a cabeça de Yoshan era oca e vazia. Como
era possível, para um tritão hiperativo como ele?
Yoshan começou a rir sozinho e eu estremeci, temendo tê-lo aborrecido.
“Não conseguirá ler minha mente sem a minha autorização. Sou um
Amalona, esqueceu? Nós seríamos confidentes bem ruins fôssemos
vulneráveis à telepatia.”
“P-perdão, peço mil perdões.” Eu surtei, curvando o corpo em reverência
diversas vezes. “Não desejei invadir sua privacidade, nem investigar nada
sério.”
“Eu sei, eu sei, relaxe.” Yoshan riu. “Posso descansar a minha mente e
você investiga o que deseja. Estou surpreso que tenha tentado apenas agora.”
“Todos os Amalona podem bloquear telepatia?” Perguntei, ainda nervoso.
“Por que acha que somos espiões, informantes e confidentes do
Digníssimo Oráculo? Nós recebemos treinamento quando filhotes, e pouco
antes de despertar os outros membros do clã passam um monte de
informações ultra-secretas! E eu tive que memorizar tudo sem me confundir,
foi suuuper difícil mas ganhei elogios porque não esqueci nada!” Yoshan
balançou os pés na lama, super animado.
“Segredos ultra-secretos?”
“É, o tipo de coisa que derrubaria impérios. Teve coisa que ouvi que
fiquei tipo, nooossa, sério mesmo? Peço desculpas por não poder contar, nem
mesmo os predestinados podem saber, e o Oráculo descobriria que contei
lendo a sua mente.”
“Então você não pretende abrir sua mente a mim por completo.”
“Não posso fazer isso. Pretendia expor apenas o que você desejava saber:
os meus pensamentos mais pervertidos.”
Eu avermelhei muito e escondi o rosto nas mãos, querendo me matar de
vergonha.
“Peço perdão, nunca mais agirei de forma tão inadequada.” Falei por
entre as minhas mãos, querendo me enterrar na lama e sumir. “Explore minha
mente o quanto desejar, se julgar ser uma vingança apropriada.”
“Você fala umas coisas bem estranhas.” Yoshan deslizou a mão pelos
meus ombros e me puxou para pertinho dele, sorrindo tímido. “Não vou ler
seus pensamentos pessoais, até porque não preciso. Não sou bobo como você
deve pensar, meu predestinado. E você não é difícil de entender.”
“Ah, é? Me surpreenda então.” Eu sorri com o canto da boca, o
desafiando.
Yoshan pausou um longo instante, seu sorriso desmanchando em uma
expressão séria.
“Você não quer ter filhos.” Ele me disse.
Meus ossos tornaram-se gelo e eu não consegui respirar. Meu instinto foi
negar instantaneamente, mas até a voz congelou nos meus pulmões. E
enquanto eu petrificava Yoshan apenas me olhava quieto e ilegível,
certamente estudando minhas reações.
“Eu… eu… eu não…” Gaguejei, aterrorizado.
A verdade é que nunca pensei exatamente desta forma. Ter bebês era o
que tritões faziam, então nunca gastei meu tempo desejando o impossível.
Ainda assim não havia como negar as palavras de Yoshan. Ele apenas
percebeu algo em mim que eu mesmo nunca havia notado.
E aquele era um crime além de qualquer perdão.
“Cordelen…”
“P-por favor, não leia a minha mente. Não agora. Eu imploro, vamos
fingir que nunca conversamos isso.” Eu solucei, assustado demais. “Vamos
procriar quantas vezes você quiser, vou amar cada um dos nossos filhos,
meus desejos são completamente irrelevantes.”
Yoshan tocou meus lábios, me fazendo calar. Era estranho vê-lo tão sério,
mas não era o tipo assustador de sério. Era como a vez em que ele admitiu ter
chorado por mim, uma mistura de tristeza e compreensão.
“Se você não deseja filhotes, não teremos nenhum.” Ele sussurrou, como
se fosse um segredo imundo e realmente era. “Nossos corpos vão reclamar, e
o chamado também, mas podemos dar um jeito. Conheço tritões que
escolheram nunca procriar então sei que é possível.”
Eu movi os lábios, mas a surpresa embaralhava as palavras na minha
garganta.
“Seu corpo sempre vai reagir ao meu cheiro, Yoshan. A dor e a agonia
serão insuportáveis. Por que você faria um sacrifício desses?”
Yoshan sorriu e aproximou o rosto do meu.
“Porque eu te amo e nunca te forçaria ao que não deseja. Eu aguardarei
você estar pronto, meu Cordelen, mesmo que este dia nunca chegue.”
Eu sorri e toquei os lábios de Yoshan com os meus, aquele suave contato
logo se transformando em um beijo apaixonado.
“Sua bondade é minha benção, meu predestinado.” Falei, entre beijos.
Yoshan me beijou de novo, ainda mais profundamente, me fazendo
lembrar da excitação vergonhosa no meu corpo. Mas eu não queria mais
sentir vergonha. Yoshan se esforçava por mim e eu também queria me
esforçar por ele.
Sem afastar nossos lábios, eu criei coragem e subi em Yoshan, ajoelhando
por cima dele em meio à lama borbulhante. Naquela pose eu quase espetava
meu mastro em sua barriga então tentei evitar isso, mas o próprio Yoshan
agarrou minha bunda e me forçou contra seu corpo, pressionando meu órgão
sensível contra seus gominhos de músculo.
Eu mordi meus lábios com força ou soltaria gemidos escandalosos. Cada
toque de Yoshan era como fogo, mas de um tipo gostoso que me fazia querer
mais. Quando percebi eu já me esfregava em sua barriga, roçando a pontinha
do mastro em busca de prazer.
“Ah… tão… tão quente…” Yoshan sussurrou contra os meus lábios,
massageando minha bunda.
Eu sorri e ganhei um pouquinho de confiança, o bastante para arquear o
quadril e tocar meu mastro no dele. Minha intenção era me esfregar naquela
posição, mas sentir a excitação do Yoshan tocando a minha descontrolou meu
corpo. Eu estremeci de cima a baixo, à beira do êxtase.
Yoshan relaxou os músculos, talvez fosse autorização para assumir o
controle? No meu entendimento os alfas sempre subjugavam os ômegas, mas
Yoshan era tão diferente. Eu meio que desejava agradecê-lo por isso.
Reunindo toda a minha bravura eu baixei a mão para segurar seu
membro… mas não o encontrei sob a lama. Eu apalpei sob mim, procurando
como se fosse um louco. Estava ali segundos atrás! Não podia ter sumido!
“Ah… quen…te…” Sussurrou Yoshan.
Eu ergui os olhos pra ele e quase dei um grito. Yoshan deslizava para
dentro da lama, completamente apagado. Ele desabou e sua cauda lilás
flutuou brevemente antes de afundar com ele.
“Yoshan!!” Eu gritei em pânico e mergulhei para salvá-lo.
Capítulo 14

Ah, como as coisas terminaram tão esquisitas? Se eu não fosse tão burro
não estaria ali, agachado nas duchas enquanto regava água fria no meu
predestinado inconsciente.
Enlameado, nu e me sentindo um idiota. Para piorar, ouvi duas vozes se
aproximando de nós e não podia me esconder e abandonar Yoshan ali.
Duas figuras apareceram em meio ao vapor denso, um tritão magrinho de
túnica e outro enorme, musculoso e negro de túnica azul, com um bebê no
colo. Os dois conversavam animados entre si.
Droga. Eu olhei ao redor procurando minhas roupas e as avistei longe
demais, no outro lado da piscina de lama. Eu tentei pensar em algum plano,
mas logo o casal me avistou e eu reconheci o ômega.
“Ah, Cordelen, Você voltou!” Pastor Enan sorriu brevemente, e logo fez
uma cara assustada e correu até nós. “O que houve aqui?”
“Eu não sei.” Falei, encolhendo o corpo.
Pastor Enan enfim notou que eu estava pelado e correu de volta ao
grandão negro, abanando as mãos.
“Vai pra casa, Kayman, nada para se ver aqui. Vai trocar as fraldas do
Leon, vai. Tchau!” Pastor Enan enxotou o cara como um animal, mas pela
tranquilidade nos dois aquela era uma situação bem comum.
Quando o grandão foi embora, pastor Enan buscou minha túnica e me
entregou. Ele segurou a ducha gelada sobre Yoshan enquanto eu me vestia.
“Olha o vermelhão nesse pobre alfa, a lama nem está tão quente assim.”
Pastor Enan sorriu safado pra mim. “O que estavam fazendo, exatamente?”
Eu avermelhei ainda mais que a pele febril do Yoshan.
“Ahm… nada demais. Meu predestinado desejou conhecer o templo, foi
minha obrigação de ômega satisfazê-lo.”
Pastor Enan riu alto, me ajudando a livrar a lama das escamas do Yoshan.
Como ele conseguia se divertir naquela situação? Eu me controlava para não
chorar em desespero.
“Enfim conheci seu predestinado. Você tirou a sorte grande, Cordelen,
olha que barbatana mais linda. Alfas Amalona são realmente pequenos, mas
esses músculos devem te fazer ver estrelas.”
Eu murchei o lábio e abracei meus joelhos, já limpo e arrumado em
minha túnica seca.
“Yoshan não é pequeno, seu predestinado é que é uma montanha.” Eu
olhei para o chão, onde a água fria da ducha escorria para as piscinas.
“Escuta, pastor Enan… sobre o meu bebê…”
“Ah, é verdade! É um menino ou uma menina?” Perguntou ele,
empolgado.
“Não… eu ainda não… ahm…” Eu esfreguei atrás do pescoço, me
perguntando como tratar um assunto tão delicado. “Por que precisamos gerar
bebês, exatamente?”
“Como assim, por quê? Porque o chamado manda. É a obrigação de todos
os tritões.” Pastor Enan sorriu docemente então levantou para fechar a água.
“É que… é estranho. Ainda não concebi mas meu corpo não dói mais,
não sofre aqueles calorões tenebrosos. Meu desconforto terminou com a
chegada de Yoshan.” Eu engoli seco, estremecendo com o rumo das minhas
palavras. “E se… talvez… o chamado… ah… esquece.”
Pastor Enan torceu o lábio, me olhando bastante confuso. Não era minha
intenção confundi-lo, mas apesar de ser meu amigo ele também era um pastor
e pregava a sabedoria do chamado como uma lei absoluta. Eu preferia evitar
conflitos.
“Me diga, Cordelen, o chamado já exigiu bebês de você?” Perguntou ele.
“O que? Claro que sim, ele sempre recita sobre cumprir a minha missão.
O mesmo que fala a todos.”
“Mas ele disse especificamente que esta missão era reproduzir a espécie?”
Ele franziu a testa.
Eu não entendi onde pastor Enan queria chegar, mas algo naquela
conversa fazia gelar meu estômago. Eu vasculhei minhas lembranças sobre as
muitas profecias e lições do chamado, mas realmente não ouvi nada sobre do
tipo.
Percebendo minha confusão, pastor Enan sorriu discretamente, mas o
peso no ar tornou-se sufocante. Ele olhou para os lados antes de continuar.
“Isso é apenas uma teoria minha, Cordelen, não conte a ninguém se não
quiser problemas.” Ele sussurrou perto do meu ouvido. “Acredito que para
alguns tritões, raramente, o chamado tenha uma missão maior.”
“Missão maior?” Eu ri de nervosismo. “Que tipo de missão maior? Deve
ser apenas falha da minha memória, o chamado certamente me ordenou
proliferar, eu apenas não lembro.”
“Você lembraria. Ele recita todos os dias, durante anos. Eu sei porque
comigo ainda é assim.” Pastor Enan tocou a barriga um pouco saliente. “Mas
tem alguns casos de tritões que não procriam e também não enlouquecem.
Isso é estranho, não é?”
“Meu chamado não precisou de um bebê para se acalmar…” Suor desceu
pelo meu rosto, e não era de calor. “Ele queria apenas que eu encontrasse o
Yoshan.”
“Hnngh… alguém me chamou?” Resmungou Yoshan atrás de nós.
Nós encerramos o assunto rapidamente. Eu ajudei Yoshan a sentar e
percebi, com imenso alívio, que ele havia recuperado as pernas assim que
acordou.
“Outro tritão pelado. Vocês de Egarikena são muito despudorados.”
Pastor Enan virou de costas, fingindo sentir vergonha. Era óbvio que tudo
aquilo o divertia.
Após recuperar-se da tontura, Yoshan levantou e deu-me um beijinho nos
lábios.
“Como esse calor não mata vocês?” Yoshan encontrou uma toalha nas
duchas e amarrou na cintura.
“Peço mil perdões, meu predestinado. Foi um erro que não pretendo
repetir.”
“Não foi culpa sua, Cor. Sou eu quem… ei.” Yoshan farejou o ar e voltou
sua atenção ao pastor Enan, que ainda estava de costas. “Você é o cara que
beijou meu predestinado.”
Meu coração quase parou, e pelo gesto súbito do pastor ao virar-se para
Yoshan, ele também estremecia em pânico. Rápido como um trovão, o clima
tornou-se fatal e sombrio.
Aquilo era péssimo. O predestinado do pastor já devia estar longe, não
poderia protegê-lo. E mesmo que estivesse ali, Yoshan não seria páreo contra
um Kampango. Eu não queria que ninguém se machucasse.
Tremando os lábios, pastor Enan gaguejou algo impossível de ouvir,
encolhendo os ombros tão assustado que nem parecia o pastor extrovertido de
sempre.
Yoshan passou o olhar por mim e depois por ele, então começou a rir.
“Pensei que era coisa do Cordelen, mas vocês todos são uns nervosinhos.
Tudo bem que vocês aprontaram um pouco, podem até se beijar de novo,
quem liga?” Yoshan deu de ombros e jogou o cabelo molhado para trás.
“Obrigado por ser um bom amigo ao meu predestinado.”
Demorou um pouco até nosso coração normalizar, mas logo depois pastor
Enan sorriu.
“Eu quem agradeço por ser um alfa digno do Cordelen. Ele é um dos
nossos melhores devotos, e um amigo inestimável para mim.”
Antes que eu demonstrasse meu extremo alívio, o tritão negro voltou com
o bebê em um braço e um tecido azul em outro.
“Trouxe roupas para o rapaz pelado.” Ele entregou o tecido ao Yoshan.
“Ah, valeu, cara. Minha canga pode estar em qualquer lugar dessa
piscina.” Yoshan riu e vestiu-se na túnica. “Ah, que roupa mais quente!
Vocês são masoquistas? Aliás, nem precisam responder.”
Eu dei uma risadinha, apreciando a aparência do Yoshan nas túnicas do
nosso povo. Apenas devotos podiam vestir tecidos brancos, mas Yoshan
ficava especialmente bonito em azul.
Enquanto Yoshan abanava os braços como uma gaivota, desacostumado a
se cobrir tanto, pastor Enan chegou em Kayman e sussurrou algo em seu
ouvido que fez o alfa Kampango rir.
“Então são eles? Você é um safado mesmo, amor. Veja a idade deles,
devem ter recém despertado.”
Eu e Yoshan trocamos olhares curiosos enquanto os dois cochichavam e
riam.
“O que é tão engraçado?” Perguntei a eles.
“Nada, é só que…” Pastor Enan cobriu a boca e riu educadamente. Ele
era péssimo em fingir vergonha. “Kayman, por favor, eu não sei pedir…”
Kayman riu ainda mais alto, tremulado seu peitoral massivo de
Kampango. Não era de se surpreender que Enan considerasse Yoshan
pequeno, porque Kayman era três vezes o tamanho dele. Como ele conseguiu
inseminar o pastor Enan sem matá-lo era algo que eu não conseguia imaginar.
“Perdoem o meu predestinado Enan. Ele é um pouco tímido…”
“Muito tímido.” Pastor Enan corrigiu.
“…e ele quer saber se vocês participariam de um baile de escamas.”
Kayman desatou a rir de novo. “Você é terrível, amor. Os garotos nem devem
saber o que é isso.”
Eu arqueei a testa, perplexo. Na verdade eu não sabia mesmo, mas não
queria passar por burro.
“Vamos pensar a respeito. Eu e Cordelen partiremos amanhã cedo, mas
logo voltamos a Tárnacos.” Yoshan entrelaçou os dedos nos meus, sorrindo
educado.
“Oh, Amalonas realmente conhecem tudo.” Kayman secou uma lágrima
de riso e afagou o rosto do pastor Enan, que tentava murchar sua expressão
perversa. “Geralmente eu quem escolho outros casais, vocês são os primeiros
a atiçar a curiosidade do meu predestinado. Espero que aceitem, será uma
noite incrível.”
“Devo confiar que você não encostará no meu Cordelen, ou teremos
problemas.” Os olhos de Yoshan iridesceram ao Kayman de forma
assustadora e territorial.
“Claro que ele não vai, e também vou confiar que você não encostará em
mim.” Pastor Enan defendeu Kayman, meio indignado. “Meu Kayman
prefere apenas assistir, mas se você quiser algo mais podemos ser criativos.”
Eu desisti de tentar entender e apenas deixei eles conversarem.
Após pouco tempo nós nos despedimos e eu segui com Yoshan de volta à
vila. Quando deixávamos o templo pastor Enan segurou meu ombro e
sussurrou no meu ouvido.
“Vou te aguardar ansiosamente.” Ele disse, e então correu de volta para
Kayman.
Felizmente o mormaço esgotou a energia excessiva do Yoshan, então
apenas caminhamos lado a lado de mãos dadas. Era gostoso, apesar da
paisagem marrom e turva quebrar o clima.
“Vá em frente, pode me perguntar o que é um baile de escamas.” Yoshan
sorriu implicante.
“Sei perfeitamente bem o que significa, não sou nenhum ignorante.” Eu
empinei o queixo.
“Ah, é? Então explique você pra mim.” Yoshan segurava-se para não rir.
“É simples. É… ahm…” Eu avermelhei e desviei meu rosto do daquele
idiota. Não queria vê-lo rindo de mim.
“Que bom que você sabe, então eu não preciso explicar.” Yoshan piscou
pra mim e seguiu na frente. “Pode ir na frente, eu vou passar naquele
mercado e subornar alguns guardas.”
Eu abri a boca e quase falei um palavrão, mas Yoshan já subia
calmamente o morro em direção às lojas, rebolando contente por ter me
tirado do sério. Mas se ele pensava que eu iria ceder e admitir minha burrice,
estava muito enganado.
Ah, que raiva… o que raios era um baile de escamas??

****
Uma surpresa me aguardava em casa, e pela primeira vez era uma
surpresa agradável: Vitanen e seu predestinado Yangin apareceram com um
suculento atum assado.
Eu e Maron nem acreditamos, nosso estômago grunhindo para nos
lembrar da fome intensa. Assim que terminamos de ajeitar a mesa Yoshan
também apareceu trazendo não uma, mas três lagostas vermelhas. E eram
enormes!
“Hoje teremos um banquete!” Maron fechou os punhos no ar,
comemorando.
Eu ri da alegria do meu irmãozinho, tão rara de se ver. E Maron animou-
se ainda mais ao provar nossa refeição, tão farta que parecia uma miragem.
Se tudo desse certo o nosso próximo banquete seria ainda mais feliz, pois
eu revelaria que o primeiro irmão Zarkon estava feliz e seguro. Talvez ele
pudesse até mesmo nos visitar e então teríamos o melhor jantar das nossas
vidas.
Assim que as visitas partiram eu me recolhi ao quarto de casal com
Yoshan. Meu plano era dormir cedo para seguir viagem à primeira luz do sol,
mas não resisti a brincar um pouquinho. Eu usei minha mão no Yoshan e seus
gemidos de prazer embalaram meu sono, me fazendo dormir abraçadinho
nele, orgulhoso em tê-lo satisfeito um pouco.
Quando eu confirmasse a segurança do Zarkon eu com certeza tentaria
vencer meus medos. Yoshan me proporcionava o melhor de seu coração e eu
também queria fazer meu melhor por ele.
Capítulo 15

Assim que mergulhamos, eu senti como se as ondas carregassem qualquer


alegria de volta à praia. A ausência do meu pai foi um raro presente que me
permitiu rever bons amigos, mas assim que me vi sozinho com Yoshan no
mar, a realidade voltou a me atingir.
Em breve eu reencontraria um irmão que pensava ter perdido para
sempre. Eu ainda não sabia como lidar com isso, o sentimento era forte
demais.
Para piorar meu turbilhão emocional, as vozes chegavam mais intensas
que nunca.

Eu não aguento mais…


Por favor me deixem morrer…
Alguém acabe com isso… qualquer um…

Eu estremeci, não querendo imaginar a reação do Maron quando ouvisse


tais lamúrias. Yoshan me garantiu que eram apenas resquícios de vidas
passadas, ilusões e memórias que o chamado trazia a mim. Meus anos de
devoção ampliaram minha sensibilidade às vozes, apenas isso.
No fundo, me batia a certeza absoluta e aterrorizante de que aquela era a
voz do Zarkon. Mas não adiantava tremer e me desesperar então apenas a
ignorei e segui nadando.
“Quer fazer uma pausa? Já nadamos dois dias inteiros.” Perguntou
Yoshan.
“Nem pensar. Não quando falta tão pouco.” Respondi, ofegante.
“Me avise se precisar descansar, não quero que prejudique sua saúde.”
Yoshan girou na água e nadou de barriga para cima, acariciando meu rosto.
“Você é bem resistente para um ômega.”
Senti uma pontinha de injúria com aquele comentário, apesar de não
haver maldade. Agora que não havia a preocupação com bebês e fertilidade
eu não me permitiria diminuir por conta da minha biologia. Tudo o que um
alfa podia fazer eu também faria por mais difícil que fosse.
E o que era um nado de poucos dias, perto da possibilidade de rever
Zarkon?
Yoshan subiu em direção à superfície e meu coração deu um salto.
Minhas guelras detectavam um paredão interrompendo a fluidez do mar.
Uma ilha.
Eu acompanhei Yoshan à superfície quase tendo um troço.
Não havia sido impressão minha. Na linha do horizonte havia um
pequeno ilhéu, tão diminuto que mal comportava duas árvores e sua única
construção: uma casinha rústica de pedra.
Os gritos haviam parado. Zarkon já não estava na água, então só havia um
lugar onde ele poderia estar.
“Pronto para visitar seu irmão mais velho?” Yoshan segurou minha mão,
me dando forças.
Eu queria sorrir e dizer que sim, mas uma sensação horrível gelava meu
estômago mais e mais. Talvez fosse simples ansiedade.
“Vamos.” Eu acelerei o nado em direção à ilha.

****

Nós emergimos na praia de rochas aos fundos da casa, minhas pernas


tremendo tanto que quase caí. Yoshan precisou me segurar e me conduzir
enquanto contornávamos a construção até a porta de entrada.
O que era aquela agonia horrível dentro de mim? Yoshan certamente a
sentia através de nossa ligação, mas descartava como se fosse paranoia. Ele
queria rir e implicar comigo quando Zarkon estivesse bem, comendo canapés
de salmão com seu amado predestinado e filhos.
Mas se aquela era uma possibilidade irreal, qualquer ilusão despencou
quando chegamos na frente da casa.
“Olha isso, o predestinado dele deve ser um soldado real.” Yoshan correu
até o lado da varanda e pegou um tridente que descansava encostado ao
parapeito. “Punho de obsidiana e pontais de ouro. O cara deve ser de alto
escalão… estranho, eu deveria conhecer, se fosse.”
Eu estremeci. Conhecia muito bem tridentes como aquele.
“Yoshan, deixa isso aí. Precisamos ir. Agora.” Eu recuei meus passos,
minha visão escurecendo em profundo temor.
“Ahn? Depois que nadamos até aqui? Você não tá tipo, loucão pra rever
seu irmão?” Yoshan girou o tridente no ar, rindo. “O cara deve estar vivendo
o sonho. Tritões da guarda pessoal do Oráculo são muito cobiçados.”
O terror me manteve paralisado no lugar até Yoshan cansar das minhas
neuroses e puxar minha mão. O tempo todo ele falava coisas, mas eu só ouvia
o disparar do meu próprio coração.
Foi um erro aparecer com Yoshan. Foi um erro grave demais.
Yoshan abriu a porta em um gesto sutil e me conduziu para dentro,
furtivo. No mesmo instante a arrogância em seu rosto desmanchou em um
horror igual ao meu.
Sentado em uma cadeira da mesa de jantar, um enorme alfa Trevally se
masturbava com um sorriso devasso em seu rosto, assistindo alguma coisa
mais adiante. Alguma coisa que se debatia em correntes presas ao teto.
Minha mente demorou a entender o que eu via, havia apenas horror e
pânico em toda a minha alma.
Aprisionado às correntes no teto pelo pescoço e pelos braços, um tritão
ômega gemia em choro desesperado enquanto outro alfa o tomava por trás
com brutalidade. Filetes de sangue vertiam de marcas de chicote em todo o
seu corpo, e também da parte onde ele e o alfa se uniam.
“P…Pai?” Gaguejei, me segurando à parede para não desmaiar.
Branco como papel, Yoshan deu as costas e vomitou no canto da sala.
Os três enfim notaram nossa presença. O ômega ergueu o rosto e apesar
de todos os hematomas o reconheci no mesmo instante.
“Irmão Cordelen…” Ele soluçou, se debatendo nas correntes.
“O que raios…” Eu respirei fundo ou acabaria vomitando como Yoshan.
“O que raios é tudo isso, meu pai? Suas viagens para lamentar o papai
Aishen… era para cá que você vinha?”
Meu pai deu risada e saiu de dentro do Zarkon, sem se importar a mínima
em esconder seu corpo ou o dele. Seus olhos eram sombrios como os de um
monstro.
“Filho idiota, devia ter sumido com seu playboyzinho de Egarikena.” Pai
Cypron agarrou Zarkon pelo cabelo e o fez olhá-lo nos olhos, rindo. “Aishen
está morto. O que um alfa solitário pode fazer, além de encontrar um
substituto muito parecido?”
Yoshan apoiou-se no cabo do tridente, tremendo ainda mais que eu.
“Isso não faz sentido.” Yoshan virou-se ao alfa desconhecido, que assistia
fascinado à nossa conversa. “Você é Dankoren Trevally, não é? Zarkon é o
seu ômega! Você tem a obrigação de protegê-lo!”
O alfa baforejou uma risada cínica, como se tudo fosse uma grande
comédia.
“Não tenho obrigação nenhuma com um ômega infértil. A única utilidade
deste imprestável é ter um pai com acesso às forjas vulcânicas. Um tridente
de obsidiana vale fortunas no comércio com humanos.”
“Isso não é certo…” As pupilas de Yoshan se tornaram pontinhos em seu
rosto branco. “Ômegas são tesouros… eles devem ser estimados, protegidos e
amados…”
O alfa riu debochado, trocando olhares sarcásticos com o meu pai.
“Você tinha razão, Cypron, os boyzinhos de Egarikena vivem com a
cabeça nas nuvens.” Ele levantou-se limpou as mãos meladas na toalha da
mesa. “Não há crime nenhum aqui, jovens. Aquele ômega me pertence e eu
faço uso dele como bem entender. Vão pra casa comer pãozinho de polvo, ou
sei lá que idiotice inventaram em Egarikena nos últimos tempos.”
“Soltem ele…” Eu pensei ter sussurrado, mas a voz veio de Yoshan.
Eu me virei para Yoshan, que agarrava-se com força ao tridente em suas
mãos. Horror e ódio distorciam seu rosto de forma irreconhecível. “Vocês
não me ouviram? Soltem aquele ômega agora mesmo!!”
“Isso é sério?” O alfa gargalhou, percorrendo o olhar pelo corpo
relativamente menor do Yoshan. “Que azar, Cypron, seu segundo filho
predestinou com um retardado.”
Meu pai limpava casualmente ferramentas de metal e tiras de couro como
aquela que ele me açoitou. Era como se a gente fosse apenas um breve
incômodo entre suas sessões com Zarkon. Com o próprio filho.
“Suma daqui, Cordelen. Este território pertence ao meu associado, se ele
quiser te agredir não poderei te defender.” Ele sorriu com o canto da boca.
“Não que eu queira fazer isso.”
Minha cabeça doía, latejava e zunia em uma sensação terrível e
excruciante. Eu apertei os lados da cabeça e gritei, percebendo que a dor não
vinha apenas de mim, mas da minha ligação de predestinados.
O terror dominava meu corpo, mas o Yoshan… a mente do Yoshan… ele
estava quebrando.
“Aaaaaaaaahh!!” Yoshan saltou em Dankoren, tão rápido que só notei o
que acontecia quando jatos vermelhos tingiram minha túnica.
Yoshan deslizou as lâminas do tridente no pescoço do alfa, fincou em seu
pescoço, nos ombros, onde alcançava. Ele o destroçou em segundos, gritando
como um demônio através dos dentes afiados de sua forma feral.
“O quê? Seu Amalona louco!” Meu pai também assumiu a forma feral,
seus olhos afiados me aterrorizando além dos limites. Perto dele Yoshan era
quase um anão.
Eu devia mandar Yoshan parar, mas o choro desesperado me atraiu ao
Zarkon. Eu vasculhei às pressas o monte de açoites, cordas e alicates até
encontrar as chaves, então abri as argolas que o prendiam à parede e Zarkon
cedeu ao chão, tossindo e chorando em profundo desamparo.
“Tá tudo bem, Zarkon. Nós viemos te salvar.” Eu o abracei e ajudei a
levantar. “Vem, nós precisamos fugir.”
Com Zarkon nos braços, eu me virei para os sons de madeira e vidro
estilhaçando. Yoshan lutava ferozmente, seu tridente ágil contra os dentes
afiados e brutais do meu pai.
O zunido das lâminas douradas, os rugidos ferais dos dois alfas furiosos,
o estalo de dentes batendo quando Yoshan escapava por pouco de uma
mordida fatal. O combate marcava o corpo de ambos com mordidas e
lacerações cortes até o cheiro de sangue tornar-se insuportável.
“Yoshan, já chega!” Eu desviei da luta em direção à saída. “Já estou com
o Zarkon, vamos embora!”
“Seu bastardo desgraçado. Era o seu próprio filho!” Yoshan deslizou um
golpe no pescoço do meu pai, que ele desviou por muito pouco. “Você
sempre soube onde ele estava, manteve em segredo para… essa barbárie
horrível…”
Droga, eu precisava acalmar Yoshan de algum jeito. Eu sentei Zarkon nas
pedras diante da casa e voltei o mais rápido possível, mas já era tarde demais.
O corpo de dois alfas amontoava-se um em cima o outro em uma piscina
de sangue. Sobre os dois, Yoshan ofegava em completa exaustão e raiva, sua
forma feral desaparecendo aos poucos de seu rosto.
Cansado demais, Yoshan derrubou o tridente e em seguida cedeu. Eu
corri até ele e amparei sua queda.
“Yoshan!!” Eu o abracei apertado.
“Seu irmão… nós conseguimos salvá-lo?” Ele sussurrou fracamente.
Eu olhei para o chão, onde o cadáver dos dois tritões retornava à forma
aquática com escamas escurecidas e opacas, confirmando a sua morte.
“Sim, Yoshan. Nós salvamos o Zarkon.”
Capítulo 16

Era alta madrugada quando enfim chegamos em casa.


Maron abriu a porta esfregando os olhos, muito sonolento, mas quando
reconheceu quem estava conosco ele acordou de imediato.
“Zarkon!!” Maron saltou em seu colo e o abraçou apertado. “Primeiro
irmão Zarkon, não acredito. É você mesmo, você está bem!!”
Maron chorou emocionado nos braços do nosso irmão mais velho. Zarkon
ajoelhou com ele e afagou seu cabelo, aparentando felicidade apesar do
silêncio. Ele conversou muito pouco durante todo o retorno.
Ver Zarkon conosco mais uma vez era surreal e maravilhoso. Nem
mesmo os horrores que presenciei evitavam as lágrimas de alegria no meu
rosto. Eu me abracei nos meus irmãos e nós três choramos juntos,
comemorando um alívio que eu pensava que nunca chegaria.
Algum dia a realidade daquele dia terrível me atingiria. Eu nunca contaria
ao Maron o que aconteceu, mas Zarkon sofreu daquela forma durante dois
anos, ele teria muito a superar e eu também.
Mas naquele momento, quem mais precisava do meu suporte não era
Zarkon.
Eu me levantei, pedi que Maron entrasse em cassa com nosso irmão e
então fui até Yoshan, que nos assistia da calçada.
Mesmo após os dias de viagem, o rosto de Yoshan permanecia branco, e
o brilho em seu olhar bicolor havia desaparecido, dando lugar a uma sombra
que não ia embora.
“Você é um herói, meu predestinado.” Eu o abracei.
“Não, eu não sou.” Yoshan não tentou corresponder o abraço. “Eu sou um
assassino.”
“Você puniu tritões que mereciam pagar com a vida e trouxe justiça ao
Zarkon. Minha gratidão será eterna.” Eu descansei a cabeça em seu ombro.
“Eu te amo.”
Yoshan enfim ergueu a mão e afagou minha nuca, logo abaixo do broche
que ele me presenteou.
“Eu não compreendo… o Digníssimo Oráculo é o protetor da nossa
espécie, herói do nosso povo. Como ele permitiu que algo assim
acontecesse?”
O que eu poderia responder? O Oráculo protegia os tritões como espécie,
não como indivíduos. Eu já havia dito isso a Yoshan, mas não tive coragem
de repetir porque seus ombros tremeram contra o meu rosto e ele começou a
chorar.
Eu acariciei seu cabelo, sentindo as pontas espetadas fazerem cócegas nos
meus dedos. Zarkon conquistou sua liberdade e Maron poderia ter uma
infância normal e feliz. Por maior que fosse minha angústia eu nunca senti
tanta felicidade.
“Me desculpa, Cordelen. Eu queria viver ao seu lado te fazer feliz.” Disse
ele, entre soluços.
“Você já me faz feliz, Yoshan. Nós seremos inseparáveis.”
“Não… não seremos…” Ele sussurrou, choroso.
Yoshan realmente não estava lidando bem com a situação, mas eu
conhecia a força de um tritão em superar dificuldades. Yoshan ficaria bem
em algum momento. Por enquanto eu podia apenas conduzi-lo ao leito e fazê-
lo companhia. Após uma noite de descanso poderíamos conversar com mais
calma.
Zarkon adormeceu no quarto com Maron, na minha antiga cama. Eu segui
com Yoshan para o quarto de casal e tranquei a porta, mas pela expressão
cada vez mais sombria e assustada no rosto do meu predestinado, compreendi
que nenhuma intimidade ocorreria naquela noite.
E, de fato, Yoshan não tentou tocar em mim e também recusou meus
toques. Nós adormecemos abraçados um no outro, mas foi um sono muito
breve.
De manhã cedo alguém batia na porta do quarto.
Eu bocejei e levantei aos poucos, exausto e levemente irritado.
“Peço perdão, mandarei o Maron não nos incomodar tão cedo.” Falei
virando-me ao Yoshan, que já estava sentado com o mesmo olhar escuro e
perdido da noite anterior. “Você sequer dormiu?”
Yoshan continuou quieto, com o olhar fixo na porta. Eu resolvi acabar
logo com aquela interrupção e destranquei a fechadura.
Então meu coração quase escapou pela boca. Não era o Maron, mas dois
Kampango de armadura e tridentes. Os soldados do mercado, o que eles
estavam fazendo ali?
O soldado mais velho entrou no quarto com o peito estufado e os ombros
retos.
“Yoshan Amalona, em nome do Digníssimo Oráculo você está preso pelo
assassinato de Cypron Trevally e Dankoren Trevally. Venha conosco,
qualquer resistência resultará em execução imediata.”
Eu arregalei os olhos. O quê? Que brincadeira era aquela??
Yoshan não compartilhava em nada da minha surpresa. Quando olhei
para ele, Yoshan já estava ao meu lado estendendo os pulsos à frente do
corpo.
O soldado mais jovem se aproximou e o amarrou com uma corda.
“Ah, finalmente algo mais interessante que distribuir peixe, mas isso não
é meio deprimente, Gregon? É apenas um garoto.” Disse o mais jovem.
“Não é nosso papel julgar, Sanderson. Atender uma ordem direta do
Oráculo é uma honra única na vida de soldados rasos como nós.” O soldado
mais velho verificou o nó das amarras. “Vamos, é um longo caminho até
Egarikena.”
Espera aí, o que estava acontecendo? O guarda mais velho puxou as
cordas e forçou Yoshan a andar então os três deixaram o quarto.
“Vocês não podem levar ele!” Eu segurei o braço do guarda mais velho,
que virou-se a mim com um olhar desinteressado.
“Você participou do crime?” Perguntou ele.
“Não, ele não teve nada a ver com aquilo!” Gritou Yoshan. “Me levem
daqui, mas deixem meu predestinado fora disso!”
“Por favor… eu não sei o que está havendo, mas Yoshan não é mau. Ele
salvou meu irmão e me protegeu.” Falei, com o olhar marejando e uma
sensação horrível e familiar queimando meu estômago. A sensação de
impotência.
“Ahm, mas era o território deles, certo?” O mais novo coçou a cabeça,
pensativo. “Se invadiram o território alheio, faz sentido eles terem atacado.”
“Sanderson, você é um Amalona, por acaso? Deixe o interrogatório aos
informantes do Digníssimo Oráculo e vamos embora.” Disse o mais velho,
mas a atenção do outro continuou em mim.
“Você é o cara da caixinha de marionetes, não é? Minha filha adorou o
presente.” Ele virou-se ao colega. “Não podemos soltá-lo, Gregon? O garoto
não demonstra resistência, pode ir sozinho ao julgamento em Egarikena.”
“Não pretendo decepcionar o Oráculo, se continuar resmungando seguirei
sozinho com o prisioneiro.”
O mais novo desistiu e acompanhou o outro para fora da casa, Yoshan os
seguindo logo atrás, puxado pelas cordas em seu pulso. Antes de sumir porta
afora ele virou-se para mim com o olhar mais sombrio e triste que já vi em
seus olhos.
“Adeus.” Disse ele, e então um puxão na corda o fez sumir pelas ruelas
da vila.
Minhas pernas tremiam e minha mente latejava em profunda confusão.
Eu tentei entrar na mente do Yoshan em busca de explicações, mas Yoshan
havia me bloqueado por completo.
“É verdade o que ele disse? Nosso pai está morto?” Perguntou Maron, na
porta de seu quarto.
Meu nervosismo não me permitia falar, eu apenas concordei com a
cabeça.
A resposta de Maron foi um simples sorriso, certamente ele pularia de
alegria se não tivesse recém presenciado a prisão do meu alfa. Um alfa ao
qual nós três devíamos eterna gratidão.
Zarkon deixou o quarto logo atrás de Maron. Ele vestia uma túnica branca
como a nossa e havia prendido o cabelo em um longo rabo-de-cavalo,
parecendo bastante recuperado por fora se não fosse o olhar caído e mórbido.
“Por que ainda estamos aqui?” Perguntou Zarkon.
“C…como assim?” Gaguejei, à beira de uma crise de pânico. “Eles
pensam que Yoshan é um assassino, vão matar ele, Zarkon!”
Zarkon jogou as roupas do armário em uma bolsa e a passou por cima do
ombro.
“Você ouviu aquela dupla de idiotas, seu predestinado será julgado em
Egarikena.” Ele deixou o quarto e parou diante da porta de entrada, me
encarando. “Você pode ficar aqui chorando ou pode tentar impedi-los.”
“Impedir como? Eles são alfas, Zarkon, a distância entre as duas ilhas é
imensa!” Falei.
“Eles são resistentes, mas nós somos rápidos.” Maron parou ao lado do
Zarkon, determinado. “Podemos descansar à noite e alcançá-los durante o
dia.”
Lágrimas de comoção molharam o meu rosto. Até o Maron concordava
com aquela loucura?
“Chegaremos no dia do julgamento e você dirá algumas verdades para
aquele bastardo de cauda dourada.” Disse Zarkon.
Meu corpo tremia de medo e angústia. Eu deslizei a mão entre minhas
mechas, sentindo o relevo do broche que Yoshan me presenteou, e então
respirei fundo e engoli minhas lágrimas.
“Espero que tenham descansado bem. Temos um longo caminho à nossa
frente.” Eu segui à frente deles, deixando nossa casa em direção ao mar.
Capítulo 17
Dois meses depois

Nossa jornada nos surpreendeu de muitas formas. Recifes de coral, navios


naufragados, baleias imensas e cardumes que pareciam conter bilhões de
sardinhas. A imensidão do oceano superava todas as minhas expectativas,
tanto eu quanto meus irmãos nos espantamos inúmeras vezes com cenários
surreais, que um habitante de Tárnacos nunca seria capaz de imaginar.
Ainda assim, o cenário mais surpreendente de todos era também o nosso
destino: Egarikena, a Ilha de Cristal.
Eu, Maron e Zarkon deixamos o mar em uma praia tumultuosa, onde
dezenas de tritões e sereias deslocavam-se entre a terra firme e uma
inacreditável galeria subterrânea. Mas o verdadeiro espanto vinha da
superfície.
Flores multicoloridas, jardins verdejantes, graciosas casas de madeira e
tijolo com pintura vívida, organizadas ao longo de calçadas de mosaico. No
centro de todas aquelas cores erguia-se ao céu a estrutura mais colorida de
todas: um suntuoso castelo de cristal róseo, que parecia descascar da pedra
negra da montanha.
Maron abriu a boca e não conseguiu mais fechar, fascinado com a
paisagem tão mítica quanto as histórias que nos chegavam. Eu imaginava que
fossem lendas exageradas, mas aquela ilha era tudo o que diziam e ainda
mais.
“Para cada inferno, um paraíso.” Disse Zarkon, com um olhar nada
impressionado. “Vou supor que a praça é lá, naquela estátua dourada.”
Eu acompanhei para onde ele olhava e também avistei a tal estátua: um
jovem tritão de cabelos longos e olhar imponente, quase opressor.
Realmente, se eu fosse um monarca tirano aquele seria o local perfeito
para executar alguém. E pela movimentação excessiva em direção à estátua,
não havia tempo a se perder.
“Meu amor, nós estamos chegando.” Falei, e novamente Yoshan não me
respondeu. Mas mesmo que ele bloqueasse nossa comunicação eu ainda
podia sentir sua tristeza e seu medo.
Se as palavras de Yoshan foram verdade, o Oráculo era incapaz de ler sua
mente de Amalona. Só havia, então, uma única maneira dele descobrir tão
rápido aquele incidente. Ele havia invadido minhas próprias memórias.
Eu jamais perdoaria o Oráculo por me usar contra meu próprio
predestinado, ou por tê-lo causado tanto sofrimento.

****

Centenas de tritões amontoavam-se no enorme espaço cercado de


lojinhas, diante da estátua do Oráculo-Rei Aurelian.
Eu e meus irmãos abrimos espaço na multidão e logo avistamos o motivo
daquele espetáculo: Meu predestinado Yoshan ajoelhado no chão frio,
vestindo apenas os trapos azuis de sua túnica e com as mãos amarradas às
costas.
“Y…Yoshan…” Sussurrei indo até ele, com o coração em chamas.
Zarkon me segurou antes que eu fizesse alguma besteira. Ele apontou
com o rosto para algo logo adiante de Yoshan.
Na plataforma aos pés da estátua havia dois outros tritões, um enorme
alfa de uniforme militar elaborado e tridente das forjas vulcânicas, e um
ômega loiro semelhante à figura da estátua, embora envelhecido.
General-Rei Hian e Oráculo-Rei Aurelian. Os governantes do oceano
naquele momento fuzilavam Yoshan com sua expressão mais opressora e
incriminatória.
Talvez por sentir minha presença Yoshan virou o rosto para trás na minha
direção e foi cutucado pelos soldados Kampango, que vigiavam seus menores
movimentos. Ele estremeceu e ergueu o olhar aos reis.
O Oráculo deu um passo à frente.
“Yoshan Amalona, você é acusado de assassinar os tritões Cypron e
Dankoren Trevally. Tem algo a dizer antes de aplicada a sua sentença?”
Disse o Oráculo.
“Digníssimo Oráculo, vossa majestade tinha conhecimento da situação de
Zarkon Trevally? Sobre o que ocorria com ele?” Perguntou Yoshan.
“Está duvidando da minha onipresença? Você, como um Amalona, é
quem melhor compreende o alcance do poder de um oráculo.” Respondeu o
Oráculo.
“Você sabia, não sabia?” Yoshan gritou. “Aquele garoto Trevally sofreu
durante anos, foi torturado de formas inacreditáveis! Você é o digníssimo
herói dos tritões, deveria proteger o seu povo!!”
O olhar de Aurelian tremulou como ouro líquido.
“Proteger meu povo é o que estou fazendo, assassino.”
Yoshan engasgou com a frieza em suas palavras e eu mesmo gemi com a
dor em seu coração. Aquilo o feria além da minha compreensão, suas
lágrimas se formaram nos meus olhos e eu quis gritar por ele, e com ele, mas
os berros do Yoshan eram os únicos a serem ouvidos em meio aos sussurros
indignados da população.
“Você é uma fraude! Como permitiu que aquele ômega sofresse tanto??”
Gritou ele.
“Um tritão de respeito não intervém nos assuntos de outros núcleos.” O
Oráculo respondeu com desprezo.
“Seu monstro! Seu tirano desgraçado! Quantos outros estão sofrendo
ainda mais, agora mesmo? Tritões ômega pequenos e frágeis como você?”
Yoshan livrou-se dos soldados e se levantou, fazendo meu coração saltar.
Havia guardas demais, todos muito bem armados e preparados para defender
sua realeza.
Antes que Yoshan cometesse uma estupidez, já sob a mira de dezenas de
lâminas, um ômega ruivo aproximou-se dele.
“Yosh, o que aconteceu com você? Respeite o Digníssimo Oráculo.”
Pediu ele, muito assustado e triste.
“Fran…” Yoshan virou-se para ele, trêmulo. “Fran, você precisa deixar
essa ilha. É tudo uma mentira. Uma utopia que esconde a realidade lá fora. É
horrível, Fran, é horrível.”
“Foi seu predestinado quem enfiou essas bobagens na sua cabeça? Todo
mundo tem problemas, Yosh, você espera que o Oráculo seja a babá de uma
espécie inteira?”
“Você não está entendendo, Fran… as regras daqui não existem lá fora.”
“E por isso você julgou adequado assassinar dois tritões?”
A dor no coração de Yoshan ecoou dentro de mim. Então aquele era Fran,
o suposto melhor amigo dele? Não me parecia um amigo tão bom assim, mas
sua reação não me surpreendia. Também não me surpreendia a raiva de todos
os espectadores ser direcionada a Yoshan, e apenas a ele.
Da pior forma possível, Yoshan descobria naquele instante o que eu
sempre soube. Naquela ilha de flores e pedras coloridas não havia vida ou
realidade, apenas centenas de tritões dançando conforme o Oráculo movia
suas cordas em uma eterna ilusão.
No fim, Egarikena era o que sempre imaginei que fosse, uma sombria e
irreal casa de marionetes.
Um casal de tritões aproximou-se dos reis. Pela ausência de reação dos
soldados, era óbvio que pertenciam à família real. E de fato, quando prestei
atenção em seus olhos preocupados, notei que eram um ômega Makaira e um
alfa Amalona.
O casal ajoelhou-se no chão em profunda súplica.
“Meus estimados pais, em nome do meu predestinado Édrilan eu imploro
sua clemência à vida de seu primo.”
“Vocês chegaram agora, Moyren? Este garoto matou dois de meus
súditos.” Disse o Oráculo.
“Digníssimo Oráculo, meu primo Yoshan ainda é jovem e tolo, a devida
oportunidade lhe fará repensar seus atos. O Digníssimo bem sabe que a
clemência lhe traz bons frutos.” Disse o alfa.
“Édrilan eu compreendo sua aflição, mas não estamos mais falando das
trapalhadas de um humano ingênuo. Este é um caso de assassinato e minhas
leis são claras.” O Oráculo estendeu a mão e o Rei-General entregou-lhe seu
tridente, que por ironia era do modelo que meu pai forjava. “Yoshan
Amalona será executado por decapitação.”
“Não!” Eu gritei, soltando-me do Zarkon e correndo até eles.
“Cordelen, não se meta nisso!” Yoshan gritou para mim. A tristeza em
seu olhar destruiu o que restava do meu coração.
Não, nem pensar que eu desistiria do meu Yoshan. Não quando ele
mesmo arriscou tudo por mim.
“Yoshan salvou meu irmão Zarkon, meu irmão Maron e também a minha
alma, me mostrando que ainda existem alfas que não são completos
monstros! Ele não merece ser morto por fazer um trabalho que deveria ser
seu!” Gritei para aquele loiro arrogante e miserável.
O Oráculo arregalou os olhos e a multidão zuniu um burburinho
indignado e surpreso, mas eu não baixei meu olhar. Encarei aquele ômega de
olhos dourados com toda a minha fúria porque diante te mim não havia
nenhum rei. Não mais.
“Então você é o desgraçado que estragou a mente do Yosh…” O ômega
ruivo rosnou pra mim, emanando tanto ódio que seu alfa surgiu para evitar
que ele se jogasse no meu pescoço.
O ruivo bufou furioso e me deu as costas, ajoelhando-se com seu alfa
junto ao outro casal. Outros tritões também se uniram para pedir clemência,
pelo cheiro os reconheci como os pais e irmãos do Yoshan.
Yoshan me fitou com o canto do olhar, aterrorizado e triste, então um
soldado o empurrou para baixo e forçou a encostar a cabeça no chão,
expondo o seu pescoço.
A quilo não podia acabar assim. Meu tempo com Yoshan foi breve, mas
eu já conhecia sua alma, suas alegrias, seu amor infinito e sincero por mim,
um sentimento pelo qual ele arriscou a própria vida. Uma vida que em breve
ele iria perder por minha culpa.
Mais alguém ajoelhou-se em clemência ao meu lado. Me surpreendi ao
notar que era Maron.
Do meu outro lado, Zarkon apoiou a mão no meu ombro, fitando-me com
um olhar severo.
“Uma luta de cada vez, Cordelen.” Disse Zarkon, e então se ajoelhou.
Meu coração ferveu de frustração, angústia, a maior fúria que eu já havia
conhecido. Mas o meu amor ainda vencia qualquer sentimento, e apenas por
isso eu cedi meus joelhos e encostei minha testa no chão em uma pose de
total humilhação.
“Digníssimo Oráculo, perdão pelas minhas palavras rudes. Eu imploro
pela clemência do meu predestinado Yoshan.”
Quantos tritões reuniram-se naquela praça? Mil? Dois mil? Entretanto
menos de quinze imploravam pela vida de um tritão que nada mais fez além
de salvar um ômega indefeso.
A demora na resposta destruía meus nervos. Com o rosto no chão eu
podia apenas ouvir o burburinho do público e os passos do Oráculo, que
caminhava na direção de Yoshan.
Quando o Oráculo parou diante de Yoshan, meu coração parou junto.
Então ele virou-se de volta à plataforma.
“Rei-General Hian. Lembre-me das nossas leis sobre prisioneiros.” Disse
o Oráculo.
“Um tritão não mantém prisioneiros.” Disse o General.
“E qual seria sua opinião sobre isso?” Perguntou o Oráculo.
O público silenciou, e aqueles de nós que suplicavam clemência
trancaram a respiração, tremendo em profundo nervosismo e ansiedade.
“Não sei o que penso, meu Oráculo e predestinado, mas sei o que vejo. E
eu vejo diversos súditos implorando pela vida de um jovem tritão recém-
despertado, que ainda tem uma vida inteira diante de si.” Disse o General.
O Oráculo soltou um longo suspiro e fitou Yoshan, que permanecia
dobrado contra o chão onde eu não podia vê-lo.
“O clã Amalona me é conhecido por sua lealdade e senso de justiça. Não
será um elo fraco que me fará quebrar a corrente.” O Oráculo estalou o cabo
do tridente no chão. “Yoshan Amalona, eu lhe concedo clemência, reduzindo
sua pena ao encarceramento vitalício até futura ordem.”
Eu me ergui do chão e sorri, incrédulo, enquanto todos ao meu redor se
abraçavam comemorando. Eu mesmo corri até Yoshan e o envolvi em meus
braços, chorando em profundo alívio.
“Yoshan… meu Yoshan… eu te amo.” Eu chorei, tão feliz e triste ao
mesmo tempo.
Ainda amarrado, Yoshan não podia corresponder o abraço, então ele
apenas descansou o rosto no meu ombro e sorriu.
“Não comemore tanto, ainda sou um prisioneiro.” Ele disse, comovido.
“Estou tão feliz que tenha vindo.”
“Zarkon e Maron também estão aqui. Você não está sozinho, Yoshan,
vamos resolver tudo.” Eu afaguei seus cabelos espetados.
“Não, nós não vamos.” Disse ele, e então alguém o puxou para trás.
Eu me levantei assustado, notando o enorme guarda Kampango que
puxava os pulsos de Yoshan para trás.
“Despeça-se dos seus amigos, garoto de sorte.” Disse ele.
Uma profunda ira ardia no fundo do meu ser, mas eu me contive e fui
embora daquela maldita praça na companhia dos meus irmãos, permitindo
que Yoshan conversasse com seus familiares. Eu poderia me comunicar com
Yoshan por telepatia, mas os pais do Yoshan, seus irmãos e amigos… estes o
Yoshan não veria nunca mais.
Capítulo 18

Eu nunca encontraria as catacumbas se não fosse o auxílio daquele tal de


Édrilan. O primo do Yoshan era um alfa maior e mais imponente que ele,
embora a expressão suave e o avental de culinária reduzissem seu potencial
de intimidação. De qualquer forma, mesmo que Édrilan fosse um alfa me
conduzindo sozinho pelos becos de Egarikena, eu não o temia. E eu devia
minha nova coragem ao Yoshan.
Nós dobramos uma esquina na vila próxima à praça e entramos num beco
escuro, entre duas casas. Édrilan cumprimentou dois soldados que montavam
guarda e eles levantaram um alçapão discreto, revelando uma escadinha que
desaparecia no subsolo de pedra.
Os dois guardas me encararam com desconfiança, mas eu mantive os
ombros empinados e segui Édrilan para as profundezas.
Aquele lugar era úmido, estreito e assustador. Quando os guardas bateram
o alçapão atrás de nós eu não contive um arrepio de nervosismo. O escuro era
quase absoluto, me forçando a apoiar as mãos nas paredes conforme
descíamos na direção do brilho alaranjado de uma tocha distante.
Quando chegamos ao fundo, Édrilan usou a tocha na parede para acender
algumas outras, iluminando um pouco melhor aquela caverna horripilante.
Conforme ele iluminava o lugar ia tomando forma e revelando sua única
estrutura: uma jaula de grossas barras de aço encostada à parede, e parecia
bastante nova.
Édrilan me acompanhou até a jaula, meu coração acelerando e rasgando a
cada passo.
Eu já sabia o que encontraria, mas quando de fato avistei meu Yoshan,
tão assustado embora feliz em me ver, diversas lágrimas transbordaram de
mim.
“Yoshan!” Eu corri até a jaula e o abracei através das barras. “Yoshan,
meu amado. Como você está?”
“Melhor agora.”
Yoshan afrouxou o abraço para beijar meu rosto. Eu logo corrigi seu
gesto beijando profundamente seus lábios, me odiando por não ter feito isso
tanto quanto poderia. Nas duas luas em que mantivemos distância pensei que
enlouqueceria longe de seu cheiro e seu toque.
Nosso beijo aprofundou-se rápido, tão cheio de saudade e desejo, mas
uma pigarreada do Édrilan nos devolveu à realidade e nós nos afastamos.
Tudo naquele cenário me angustiava. A iluminação precária, o mofo, a
água que gotejava constantemente no canto da cela e que com certeza não era
salina o bastante para o conforto de um tritão.
“Você demorou. Muito turismo por Egarikena?” Yoshan sorriu,
debruçado às barras. Era estranho vê-lo sem nenhuma joia, trajando apenas
trapos azuis do que costumava ser uma túnica tarnaciana.
“Não brinque sobre isso. Passei cada instante lutando para reencontrá-lo,
mas não conheço ninguém, foi um pesadelo. Os reis concederam a mim e aos
meus irmãos uma unidade nas galerias, mas foi seu primo quem conseguiu
essa visita.”
“Obrigado, Édrilan… e perdão…” Yoshan fitou o outro alfa Amalona
com submissão e tristeza.
“É tudo o que posso fazer, Yoshan. Receio ter esgotado todos os meus
favores com o Oráculo.” Édrilan guardou as mãos no bolso do avental e
suspirou. “Entenda o que quero dizer com isso.”
Yoshan concordou com a cabeça, ainda mais deprimido.
“Agradeço seus esforços, primo Édrilan, mas se isto é adeus realize só
mais um desejo.” Yoshan dobrou o corpo em reverência ao primo.
A princípio Édrilan não entendeu, então ele revirou os olhos e vasculhou
o bolso, fazendo um som metálico ao retirar um molho de chaves.
“Não demorem e não toquem na água. Se o Oráculo detectar vocês, todos
nós estamos ferrados.”
Édrilan passou a chave no cadeado da cela e abriu a porta. Ele fez um
gesto para que eu entrasse e assim que entrei ele trancou a porta e continuou
ali.
Mal contive a emoção em abraçar Yoshan sem grades geladas entre nós
dois. Ele beijou meu pescoço e gemeu de prazer por enfim estarmos juntos.
Apesar de assustado com a intimidade súbita, eu permiti que Yoshan
forçasse a gola da minha túnica para baixo até expor meus ombros, que logo
ele passou a beijar também.
Aquilo me envergonhava um pouco, mas envergonhou especialmente ao
Édrilan, que avermelhou e nos deu as costas, indo esperar nos degraus da
escada.
Enfim longe de seu olhar, eu relaxei o corpo e deixei que Yoshan se
servisse de mim. Eu esperava qualquer coisa, menos que ele voltasse a ajeitar
minha túnica e me puxasse a sentar com ele no canto da cela. Seu olhar
saudoso e apaixonado havia desaparecido, dando lugar a uma expressão séria
e severa que me arrepiou.
“Você está bem, mesmo? Como foi o interrogatório?” Ele me perguntou.
Ah, então ele leu meus pensamentos… isso me chateava um pouco, mas
nosso tempo era tão breve que era bom eu não precisar contar tudo.
“O Oráculo não precisa me interrogar diretamente. Os reis apenas me
forçaram a mergulhar nas águas do templo. Não sei o que tanto investigaram
na minha cabeça, mas o que haveria a se descobrir?”
Yoshan suspirou, com o olhar baixo e as pernas enroscadas às minhas.
Pelo inchaço em seus olhos ele havia chorado muito, mas naquele momento
ele não aparentava tristeza, apenas uma mistura estranha de preocupação e
raiva.
Aquele era nosso último encontro, eu não era burro de não perceber. A
injustiça queimava furiosa dentro de mim ao me lembrar da frieza e
impetuosidade daquele que deveria ser nosso líder misericordioso.
Mas, como sempre, aqueles que eram punidos e aqueles que mereciam
punição nem sempre eram as mesmas pessoas.
“Yoshan, você… digo… nós…” Eu engoli seco, com o olhar baixo. “…
eu quero… fazer amor com você.”
Yoshan avermelhou, surpreso e um tantinho mais animado. Ele segurou
os lados do meu rosto e me puxou a ele, beijando meus lábios com doses
iguais de tristeza e amor.
Por mais que doesse, por mais que eu quisesse gritar, e chorar, e reduzir
aquela ilha ao mesmo carvão e fogo de onde eu cresci, eu não controlei a
reação do meu corpo. O toque do Yoshan me inflamava com facilidade desde
o primeiro dia, e eu também sentia o efeito do meu cheiro no meu querido
predestinado que, entretanto, se continha em um avanço lento e casto, como
se fosse apenas mais uma noite e não a última.
Eu era extremamente grato por sua paciência, mas queria fornecer
lembranças que Yoshan não esqueceria.
Enquanto nos beijávamos, eu conduzi Yoshan a deitar nas pedras úmidas
e subi os trapos de sua túnica, me ajeitando sobre ele conforme nossas mãos
exploravam o corpo um do outro.
Assim que Yoshan percebeu onde chegaríamos ele gemeu alto,
massageando minhas coxas conforme subia meu próprio tecido.
“Eu te amo, Yoshan.” Eu sussurrei em seu ouvido e então levantei,
endireitando minhas nádegas no ângulo perfeito e descendo aos poucos, até
minha entrada pressionar contra a ponta rígida.
Yoshan gemeu alto de novo, sem vergonha alguma. Foi o bastante para
Édrilan subir vários degraus da escada e sentar ainda mais longe da nossa
vista.
Não era como se a urgência da situação sobrescrevesse anos e anos de
medos e traumas. Entre todos os meus sentimentos, o temor ainda encontrava
espaço e me fazia tremer. Mas que tempo havia para saborear meu amor
crescente por aquele tritão de olhar bicolor? Isso o Oráculo arrancou de mim.
“Você é lindo demais.” Yoshan sorriu pra mim, me concedendo a
coragem necessária para descer até o fim.
Eu me empalei totalmente no mastro espesso, esticando e me
preenchendo a níveis que pareciam impossíveis.
Apesar do tamanho enorme eu não sentia dor, apenas faíscas elétricas que
percorriam minha virilha e fazia meu mastro pingar sobre ele.
Ah, era bom. Tão melhor do que pensei que seria. Quando notei já estava
subindo e descendo, como se meu quadril tivesse vida própria e um desejo
insaciável em satisfazer meu alfa.
Um calor explosivo acumulou em mim e eu me segurei o quanto pude,
suando e mordendo o lábio no esforço de satisfazer Yoshan primeiro. Mas ele
não facilitou e agarrou meu mastro, me masturbando com vontade e
molhando seus dedos com a umidade da ponta enquanto me admirava,
fascinado.
Eu não queria sujá-lo, seria tão embaraçoso, mas as mãos de Yoshan
eram tão ágeis e meu prazer tão culminante. Eu me empalei ainda mais rápido
e fechei os olhos, me concentrando no êxtase insano que era meu alfa
latejando dentro de mim, meu prazer e o dele se mesclando em uma única
sensação avassaladora.
Deixando um gemido escapar por entre meus dentes, eu jorrei minha
semente no Yoshan e ao mesmo tempo ele jorrou dentro de mim. Nunca senti
tanto calor, e quando Yoshan saiu de mim, nunca senti tanto relaxamento.
Ofegante e dolorido nas coxas, eu sentei ao lado de Yoshan e esfriei as
costas na parede fria. Eu sorri a ele e apreciei seu sorriso de cumplicidade.
Mas a alegria em sua expressão durou pouco tempo.
A seriedade sombria retornou ao olhar do Yoshan. Ele espiou
discretamente para a escada onde Édrilan nos aguardava de costas, mas
quando virei para fazer o mesmo ele segurou meu rosto no lugar, fazendo-me
olhar nos seus olhos.
“Cordelen, nós temos pouco tempo, preciso que se concentre e me
escute.” Ele sussurrou.
Eu franzi a testa, ainda formigando de prazer.
“Desagradei-lhe de alguma forma, meu predestinado?” Perguntei.
“Não! Digo, não. Foi incrível e delicioso e… não, agora não podemos.
Você precisa prestar atenção e…” Yoshan olhou além de mim para onde
Édrilan estava e deu um alto gemido erótico, como se ainda estivéssemos nos
amando. Ele voltou a olhar para mim. “Cordelen, você não está seguro.”
Um arrepio desceu minha espinha e Yoshan enfim teve toda a minha
atenção.
“Como assim?” Perguntei, no mesmo tom de sussurro. “O Oráculo
conhece minha mente tão bem quanto eu, Yoshan. Não sou um perigo a
ninguém, e nem você. Tenha paciência, só preciso provar a eles sua inocência
e você será livre.”
“Não acredite nessa bobagem! O Oráculo não me prendeu em um súbito
gesto de boa vontade. Você é predestinado de um Amalona, tente pensar
como um.”
Eu afinei os olhos, esforçando meu cérebro ao máximo. Quando percebi
do que Yoshan falava, toda a sombra em seu olhar fez sentido para mim.
“Ele não poupou sua vida, não é mesmo?”
“Amalonas são um clã de alta casta, uma execução pública causaria um
atrito político arriscado demais. Aurelian vai esperar a poeira baixar, e
quando ninguém mais comentar o caso resolverá tudo na privacidade destas
catacumbas.”
Eu comecei a chorar e Yoshan apertou firme meu rosto, me fazendo
engolir as lágrimas.
“O que podemos fazer… isso não é justo…” Solucei baixinho. “Sou
apenas um filho de ferreiros, não conheço nada ou ninguém nesta ilha, não
tenho a sua inteligência ou rede de contatos.”
“Aurelian cometeu um erro ao me prender e sabe disso, por isso você foi
interrogado tanto tempo, mas aquele desgraçado loiro despreza a inteligência
de um Amalona. Eu nunca me comunicaria com você enquanto estivesse à
mercê dos poderes dele, não lhe revelaria nenhum segredo.”
“Que tipo de segredo?”
Yoshan esfregou a testa, apressado e ao mesmo tempo temeroso, sem
saber por onde começar.
“Cordelen, existe uma informação… informações… que somente
Amalonas sabem e são passadas de geração em geração, com o intuito de
proteger a família real.”
Eu prestei atenção em cada palavra do Yoshan, algo nos rumos daquela
conversa eriçava cada pelo do meu corpo.
“Por isso estou em perigo? Porque você poderia me contar segredos
através da nossa ligação? Não exagere, Yoshan, você não é nenhum traidor.”
Yoshan manteve-se quieto por um breve instante, seus olhos verde-e-lilás
tremulando intensos sob a luz das tochas. O gelo no ambiente tornou-se ainda
mais frio.
“Esta noite, quando o Oráculo estiver dormindo, você e seus irmãos
fugirão imediatamente. Devem nadar para Cratília sem descanso e sem olhar
para trás. Prometa-me isso.”
“Cratília, a Cratera de Gelo? Mas este lugar é apenas uma lenda.” Falei.
“E se não for? E se tudo o que sabemos sobre Egarikena e sobre o
Oráculo estiver errado? E se… e se tudo o que somos for uma grande mentira
fabricada pelos reis?” As pupilas de Yoshan tornaram-se pontinhos trêmulos
em uma expressão alucinada. “Não acha estranho que nosso povo se recupere
de uma guerra recente e ainda assim ninguém conheça nossos inimigos? Se
Aurelian pode ler pensamentos, quem garante que não pode alterá-los?”
“Meu predestinado, você está me assustando…” Eu baixei as
sobrancelhas. “Fugirei para Cratília se este for o seu desejo, mas não entendo
porque me quer em uma das capitais selkies.”
“Os poderes do Oráculo tem limitações, não alcançam os polos do
planeta. Este é um dos maiores segredos que os Amalona carregam, e agora
você também.” Ele me disse, fitando a direção da escada a todo instante.
“Apenas em Cratília você estará a salvo, porque lhe contarei tudo, meu
predestinado. Todos os segredos da família real, segredos que mudam tudo.”
“Segredos que mudam tudo?” Eu segurei as mãos de Yoshan nas minhas,
nós dois tremíamos. “Está falando do desaparecimento do príncipe Hian
Segundo?”
“Hian Segundo nunca esteve desaparecido. Ele vive em uma ilha de
humanos no arquipélago havaiano e tem dois herdeiros.” Yoshan aproximou
o rosto, sussurrando cada vez mais baixo. “O primeiro deles também é filho
do finado príncipe selkie Connor, sucessor do trono de Faerynga e herdeiro
dos territórios árticos. O bebê vive em Egarikena sob os cuidados do décimo
irmão Makaira sob o nome de Ronan Makaira, mas sua verdadeira identidade
é Ronan Faroé-Makaira, o Herdeiro dos Sete Mares.”
“O quê?” Eu arregalei os olhos. “O príncipe Hian Segundo predestinou
com um príncipe selkie? Quer dizer que...”
Yoshan cobriu minha boca com a mão, eu havia falado alto sem querer,
mas felizmente Édrilan não nos ouviu.
“Tem mais. Hian Segundo teve um outro filho e é aí que as coisas
complicam de verdade, porque.…”
As palavras de Yoshan não podiam ser reais. Eu ouvi o que ele me dizia,
mas tudo eram zunidos competindo com os disparos do meu coração.
“Não é possível, Yoshan. Nunca ouvi falar de algo parecido.” Falei,
mortificado.
“Estas informações serão o suficiente para comprar sua segurança em
Cratília, talvez até mesmo um alto posto militar. Passarei mais detalhes
através da nossa ligação, mas já é hora. O Oráculo adormecerá em breve,
você e seus irmãos precisarão estar longe quando ele descobrir.”
Eu engoli amargo, apertando firme as mãos do Yoshan.
“Não quero te deixar.” Eu solucei. “Você é tudo o que tenho, Yoshan,
tudo o que amo.”
“Você tem seus irmãos. Não me faça ser executado ao seu lado, eu não
suportaria.” Yoshan deslizou a mão atrás dos meus cabelos. “Além do mais,
nossa despedida não é definitiva.”
Yoshan soltou o broche de zircônia dos meus cabelos e forçou a parte de
trás. O grampo da presilha soltou-se em um estalo metálico e Yoshan
rapidamente o escondeu na fenda entre as pedras.
“Meu predestinado, o que pretende…”
Yoshan devolveu o broche quebrado em minhas mãos, segurando-as com
firmeza e afeto. Seu olhar ainda me transmitia angústia e temor, mas havia
um brilho oculto. Um brilho de profundo ódio e frustração.
“Nós nos reencontraremos em breve, seja em Cratília, seja em um
palanque com cordas nos nossos pescoços.” Disse Yoshan.
Eu concordei com a cabeça. Definitivamente seria em Cratília.
“Ei, já terminaram aí?” Édrilan levantou-se e chegou até nós.
Yoshan e eu nos levantamos e endireitamos nossas roupas rapidamente.
Eu escondi meu broche rompido no peito da túnica.
Trocando um último olhar de despedida, nós nos beijamos brevemente
enquanto Édrilan destrancava o cadeado.
Então Édrilan trancou as grades novamente e subiu comigo de volta à
superfície. O tempo todo eu mantive a mão no peito, buscando naquele
broche a coragem necessária para obedecer meu predestinado.
Capítulo 19

Não havia bagagem a carregar, e meus irmãos sabiam quando não fazer
perguntas. Quando os encontrei em uma parte isolada da vila e lhes contei o
plano, sussurrando entre os sons vazios da noite, eles de imediato entenderam
a gravidade da situação.
Como resultado, pouco após me despedir de Yoshan, nós três estávamos
prontos para partir. Mas ao dar meus primeiros passos em direção à praia
Zarkon segurou minha mão.
Eu me virei a ele, curioso apesar da pressa.
“O que foi?” Perguntei.
“Aquele meio-selkie está nesta ilha, você disse?” Perguntou Zarkon.
“Fale baixo.” Reclamei, concordando com a cabeça.
“O povo de Cratília vai apreciar o presente.” Zarkon deu meia volta em
direção à ilha.
Eu gaguejei alguma coisa, assustado embora incapaz de repreendê-lo.
Maron o havia seguido sem a menor hesitação e eu precisava deixar de ser
frouxo. Mesmo que se tratasse de um bebê, eu abraçaria todas as chances
possíveis de obter uma boa vida em território inimigo. Meu Yoshan não
esperaria menos de mim.
<<É um plano arriscado. Por favor, seja muito cuidadoso.>>
Eu concordei por telepatia e segui em frente. Yoshan devia estar muito
nervoso para arriscar comunicação comigo, eu não podia em hipótese alguma
decepcioná-lo.
Durante a caminhada Yoshan revelou sobre um humano que vivia com o
príncipe Byron, então bastava seguir o mesmo cheiro daquela ilha de
humanos. Não foi difícil encontrar a casa certa em uma vila isolada e arenosa,
com uma pracinha florida.
Mesmo sabendo da loucura que iríamos fazer Yoshan não tentou me
dissuadir, o que era toda a aprovação que eu precisava para seguir em frente.

****

Eu e Zarkon vigiamos o jardim da casa, envolvidos no silêncio absoluto


da noite e escondidos entre os muitos arbustos. Após pouca espera, Maron
apareceu de volta ao terraço carregando alguma coisa e saltou no chão,
silencioso como uma pluma.
“É este mesmo?” Perguntou Zarkon.
“Os olhos são vermelhos, e sinta o cheiro. O outro é um óbvio Makaira
híbrido.” Respondeu Maron.
Eu peguei o bebê do colo de Maron. Era mais velho do que eu pensava,
uns três anos, talvez. Idade o bastante para perceber o que ocorria e causar o
maior escândalo, entretanto ele permanecia quieto e me encarava com suas
íris vermelho-rubi.
Então selkies eram reais. O que mais era real? E quais verdades eram
simples fabricações? Não era o momento de descobrir.
“Vamos.” Eu disse aos meus irmãos.
Aquele era um vilarejo de pescadores separado da vila principal, então
para chegar ao mar bastava contornar aquela mesma casa.
Quando contornamos a casa, porém, um assobio nos travou no lugar.
Branco como papel, eu me virei na direção do som e avistei uma figura
familiar. Era o soldado mais novo que distribuía suprimentos em Tárnacos.
Ele banhava-se em um tanque termal de madeira e levantou num salto ao nos
ver.
A cada passo daquele alfa despido eu e meus irmãos recuávamos dois. A
princípio ele parecia apenas curioso e desconfiado, mas quando reconheceu o
bebê sua postura mudou completamente.
O soldado fitou rapidamente o chão ao redor, percebendo que sua
armadura e tridente estavam fora de alcance. Ainda assim ele continuou
avançando, com as mãos diante do corpo em um gesto que pedia calma.
“Tá tudo bem. Seu nome é Cordelen, certo? Devolva o bebê do Byron e
prometo não fazer perguntas.”
“Fique longe.” Eu recuei um pouco mais, logo batendo as costas em um
balcão que fedia a peixe velho. “Não conte nada a ninguém.”
“Eu sei que a prisão do seu predestinado o chateou, Cordelen, mas o povo
de Egarikena não é seu inimigo. Eu não sou seu inimigo. Você é bem-vindo
em nossa ilha, não precisa causar confusão.” Ele tentou relaxar o rosto em
uma expressão amigável, como se não fosse um alfa Kampango capaz de
matar um ômega com um soco. “Por que não conversamos? Venham banhar
no ofurô conosco, o príncipe Byron autorizou que…”
Alguém saltou sobre o alfa com a velocidade de um raio, sem lhe dar
tempo de gritar. Eu mesmo gritaria, mas tive a frieza de manter meu silêncio
quando percebi o que acontecia.
Zarkon derrubou o alfa no chão, cravando os dentes afiados no fundo de
seu pescoço e mantendo-se firme enquanto o soldado se debatia cada vez
menos.
“Zarkon, pare!” Eu sussurrei, abraçando firme o bebê. “Não faz isso!”
O guarda empurrou os ombros de Zarkon com força o bastante para
deslocar seus ossos, mas um segundo tritão feral saltou sobre ele e mordeu
seus pulsos. Maron.
O guarda debateu-se uma última vez e suas pernas dissolveram em uma
cauda imóvel e opaca.
Zarkon enfim saiu de cima dele e me fitou com o olhar sombrio e afiado
de sua forma feral, secando o sangue do rosto com as costas da mão como se
julgasse o pavor nos meus olhos.
“Que diferença faz, a essa altura?” Perguntou Zarkon.
Eu estremeci e puxei Maron pela mão, querendo ver o estrago de perto.
Mal reconhecia o soldado em meio à piscina de sangue, seus olhos
vitrificados refletiam as estrelas do céu de Egarikena.
Então, para adicionar ao meu terror, ouvi um borbulho na banheira. Uma
sereinha tão jovem quanto o bebê em meus braços debruçou-se na borda,
abraçada a uma bonequinha com cordas.
“Papai?” Ela olhou ao redor, procurando.
“Vamos sair daqui.” Eu cutuquei Maron e Zarkon e nós três corremos até
a praia, mas assim que pisamos na areia molhada ouvimos um grito.
“Ei, o que aconteceu aqui??” Perguntou um dos cinco soldados que
apareceram o único que eu reconhecia. Era o mais velho da loja de
suprimentos. Ele agachou-se ao lado do cadáver. “Sanderson? Sanderson,
fala comigo!”
Um dos outros acolheu a menina no colo e o alfa mais velho logo
recuperou-se do choque e nos fuzilou com seu olhar mais furioso, firmando a
mão em seu tridente.
Fomos cercados. Cada soldado ao nosso redor muito bem armado com
seus tridentes negros e dourados.
Meus irmãos rugiram e rosnaram em postura de combate, tão
aterrorizantes quanto um tritão feral ômega conseguia ser, mas que bem
haveria naquele ataque suicida?
Aquela não era a nossa luta. Não ainda.
Eu segurei Maron antes que saltasse nos enormes soldados e com a outra
mão lancei o bebê para o alto. Os soldados enlouqueceram tentando pegá-lo e
com aquela breve distração nós três disparamos ao mar.
Nós zunimos pelo oceano, nossas caudas abanando furiosas contra as
ondas escuras da noite. Não demorou até os soldados perceberem nossa fuga
e surgirem logo atrás de nós, quatro furiosos alfas Kampango brandindo suas
caudas verdes e salpicadas de lilás.
Um tridente passou chiando do lado do meu rosto, arremessado com tanta
violência que desapareceu no horizonte adiante. Então outro tridente voou em
nossa direção, e mais um. Nós três manobramos e rodopiamos na água,
aterrorizados, mas com o fogo da determinação queimando no peito.
Nós chegaríamos nas míticas Crateras de Gelo e então meu Yoshan nos
encontraria. Então viveríamos seguros entre os selkies e conheceríamos a
verdadeira liberdade.
E então, finalmente, a punição encontraria as pessoas certas.
“Mais rápido, os desgraçados estão fugindo!” Gritou um dos soldados.
“Chamem reforços.”
Se os soldados desistiram, se conseguiram reforços, eu não fiquei para
descobrir. Aquelas palavras foram as últimas que ouvimos antes de
desaparecer nas profundezas azuis, nossas caudas abanando nos limites da
exaustão e além.
Durante algumas luas nós três nadamos incessantemente. Aquele que
precisava dormir era carregado por um dos dois que permanecia desperto,
nossos instintos de tritão sempre nos conduzindo reto na direção sul, onde o
mar tornava-se cada vez mais escuro e as ilhas cada vez mais brancas.
Teria o Oráculo percebido nossa ausência a tempo? Estaria Yoshan ainda
vivo, se este fosse o caso? Não havia tempo para pensar nisso. Eu precisava
proteger meus irmãos e manter minha promessa àquele que era a outra
metade da minha alma.
“Estão sentindo este cheiro?” Maron acordou no colo de Zarkon e
esfregou o rosto.
Eu movi o nariz e confirmei que sim, havia um cheiro incomum embora
familiar. O mesmo cheiro daquele bebê.
Em meio às enormes massas brancas que eram o fundo de icebergs,
sombras vermelhas nos cercaram. Eles não carregavam tridentes, mas
pequenas armas curvas com flechas na ponta. O primeiro deles se aproximou
e sua aparência fez meu queixo cair.
Cabelos brancos, pele muito clara e cauda sem escamas, tão rosa quanto a
cor de seus olhos. Apesar das muitas armas apontadas para nós, o fascínio
predominava sobre o nosso medo.
Cratília também era real.
“Meu nome é Cordelen Trevally e estes são meus irmãos Zarkon e
Maron.” Falei a eles. “Tenho assuntos a tratar com o seu rei.”
Os selkies se entreolharam, curiosos e apreensivos, então alguns deles se
aproximaram com cordas e amarraram nossos pulsos.
Nós não tentamos resistir, é óbvio. Sabíamos que nossa captura era
apenas temporária. O começo de um novo futuro.
Epílogo
Fran

Eu olhei para baixo e tentei avistar o final daquela escadinha úmida.


Nunca imaginei que houvesse uma passagem secreta tão próxima da nossa
casa, e saber que Yoshan estava lá embaixo arrepiava cada pelo ruivo do meu
corpo.
Os soldados mantinham o alçapão aberto, aguardando com paciência que
eu criasse coragem de entrar. Quando dei o primeiro passo um deles me
entregou um bastão de madeira.
Eu estremeci, já sabendo a utilidade daquela coisa, e o olhar severo dos
soldados não deixava espaços para mal-entendidos.
“Precisa mesmo ser eu?” Perguntei.
“O prisioneiro não menciona outro nome há três dias. Lamentamos o
inconveniente, Digníssimo Fran, e agradecemos que compreenda a gravidade
da situação.” O soldado suspirou, complacente. “Podemos acompanhá-lo, se
precisar que…”
“Não será preciso.” Falei, tentando soar simplesmente autoritário.
Eu já havia concordado com aquela loucura mais cedo, desafiando o
desejo do meu amado Jensen para que eu não me envolvesse. Mas como não
me envolver quando epicentro de tanta confusão era meu melhor amigo?
Com o bastão em mãos eu desci pela escada escura. Os guardas fecharam
o alçapão assim que passei e me deixaram sozinho para que eu cumprisse
minha missão.

****
O gotejar do teto era o único som naquele calabouço sombrio, com cheiro
de dor e tristeza. A única estrutura era uma gaiola de aço espessa demais para
quebrar com os dentes. Lembrava as jaulas de captura de lagosta em escala
muito maior.
Passou-me pela mente se papai Jon teria construído aquilo. Eu esperava
que não.
“Yosh?” Eu me apressei à cela assim que o vi, com o coração nas mãos.
“Fran, você veio…” Yoshan tossiu com fraqueza, esparramado no canto
da parede. Ele baixou o olhar para o bastão em minhas mãos e seu breve
sorriso desapareceu.
Eu notei o corpo quase despido de Yoshan e lutei muito para segurar
minhas lágrimas. Hematomas azuis e pretos coloriam seus braços e pernas e
um filete de sangue escorria dos lábios inchados. Os soldados realmente se
divertiram com ele, como se fosse adiantar alguma coisa.
“Para onde enviou seu predestinado, Yosh?” Eu me debrucei nas grades,
trêmulo de pena e preocupação. “Nem o Digníssimo Oráculo consegue
encontrá-lo, Egarikena está em caos.”
Yoshan riu e levantou-se dolorido. Ele mancou até mim e apoiou-se no
lado oposto das barras, me admirando com seus olhos bicolores e cansados.
“Tritões Amalona treinam desde a infância para guardar segredos, Fran.”
Ele apontou para o bastão com o rosto. “Os guardas não arrancaram uma só
palavra, nossa antiga amizade não aumentará suas chances.”
“Você sabe que eu não faria um absurdo desses.” Eu joguei aquele
maldito bastão longe e toquei o rosto pálido de Yoshan, querendo fazer sumir
aquelas marcas terríveis. “O que houve com você, Yosh? Você assassinou
tritões e humilhou o Digníssimo Oráculo. Como as coisas despencaram tão
rápido?”
“Tudo nesta ilha é uma mentira, Fran. A vida lá fora é um show de
horrores que o Oráculo não faz questão de mudar.” Disse Yoshan. “Se você
deixasse esta maldita ilha perceberia o mesmo que eu.”
“E qual a solução? Matar soldados a sangue frio? Sanderson era um bom
homem e seu predestinado o assassinou diante da filha! Uma criancinha viu o
pai ser assassinado, Yoshan, e aqueles monstros quase levaram Ronan
embora. O humano do Byron está histérico, toda a ilha mergulhou em
tumulto e insegurança.”
Yoshan sorriu quieto, apreciando meu carinho em seu rosto.
“Qual o problema em um pouco de insegurança? É apenas uma amostra
do que as colônias enfrentam todos os dias. Você nunca se perguntou sobre
as palavras do Oráculo, Fran? O que sabemos exatamente? E se o Oráculo e o
chamado forem a mesma entidade, controlando tudo o que somos? Por que
precisamos nos reproduzir tanto? De onde vêm todas essas leis, e por quê?”
Eu me afastei de Yoshan, estremecendo, mas percebi que meu tremor não
era medo. Era ódio.
“Maldito o dia em que você predestinou com aquele Trevally.” Rosnei,
levando as mãos ao meu ventre avolumado. “Você tinha uma vida diante de
si, Yosh. Meu pequeno Sebasten te adora, e eu tanto esperei criar este aqui
junto do seu primeiro bebê.”
“Como estão os meus pais? Meu antigo núcleo está bem?” Perguntou
Yoshan, estranhamente ágil em mudar de assunto.
Eu suspirei e sentei encostado às grades, no chão de pedras molhadas.
“Os reis inocentaram seus parentes quanto ao envolvimento nos crimes,
mas a morte do soldado Sanderson atiçou os ânimos da população, ninguém
nunca foi assassinado em Egarikena. Invadiram e depredaram todas as
habitações dos Amalonas até não restar nada, seus pais e irmãos fugiram às
pressas. Édrilan conseguiu ficar por ser predestinado de um Makaira, mas não
restou tábua sobre tábua de sua padaria.”
Por mais que aquela fosse a verdade eu não esperava que Yoshan fosse
acreditar. Mas ele baixou o olhar e chorou baixinho, destruindo o que restava
do meu coração.
“Ele vai pagar caro… O Oráculo vai pagar tão caro…” Sussurrou ele,
entre soluços de choro.
“A conversa no palácio é sobre a sua execução, Yosh. Sua única chance é
revelar o paradeiro de Cordelen Trevally.” Eu me levantei, não suportando a
dor no meu peito. “Ordenarei que os guardas não te machuquem, então, por
favor, conte a verdade a eles. O povo da ilha não merece viver com medo e
eu mesmo desejo ter meu segundo filho em segurança. Não sei como
Cordelen te manipulou tanto, mas tente lembrar tudo o que o Digníssimo
Oráculo fez por nós, pelo meu pai, pelo nosso povo. Ele é o nosso herói e
protetor.”
Yoshan fingiu não me ouvir, como se algo no chão fosse mais
interessante, então eu lhe dei as costas e me afastei em direção à escada.
Assim que dei o primeiro passo nos degraus, porém, ouvi um clique e um
rangido metálico.
Eu me virei com o coração disparado. Yoshan me encarava do lado de
fora da cela, ao lado da porta aberta.
“Yosh? Como você…ah!”
Yoshan pulou em mim, muito rápido. Antes que eu gritasse ele havia
coberto minha boca e imobilizado meus pulsos atrás do meu corpo.
“Quantos guardas tem lá fora?” Ele tirou a mão da minha boca para que
eu respondesse.
O que raios estava acontecendo? Eu quis chorar, mas contive minhas
emoções com toda a força. Se eu disparasse os alarmes no Jensen e ele se
envolvesse tudo desabaria ainda mais.
“Yosh, você não é assim, você é bom. Por favor, volta a ser meu melhor
amigo.” Pedi, choroso. “Muitos pensam que você é um traidor, se você for
morto tentando fugir eles terão certeza.”
Após alguns segundos de apreensão, Yoshan deu um grunhido frustrado e
me soltou.
Ele se afastou um passo, tremendo os punhos fechados.
“Não posso ser morto aqui, Fran. Eu pensei ter tudo planejado, mas
ocorreram… imprevistos.” Yoshan baixou o olhar brevemente e voltou a me
encarar, nervoso e alucinado. “Se eu ficar serei morto pelos reis que você
tanto ama.”
Eu apertei os lábios, rasgando em tristeza. Por isso Yoshan implorou pela
minha presença? Para me usar de escudo e passar pelos guardas? Era um
plano digno de um Amalona, nenhum soldado arriscaria ferir o ômega de um
príncipe. Ainda assim era um plano estúpido, típico de alguém desesperado.
Cansado de aguardar resposta, Yoshan passou por mim e subiu a escada.
Eu segurei sua mão impulsivamente, com o meu coração causando estrondos
dentro do peito.
“Dois guardas. Kampangos alfa, da guarda pessoal do rei. Vão te fazer
em pedaços, Yoshan.” Eu balancei a cabeça, sem acreditar no que estava
prestes a dizer. “Tenho um plano melhor.”
Yoshan franziu a testa, seu olhar me acompanhando com confusão e
perplexidade conforme eu atravessava o calabouço até um canto isolado.
Eu esfreguei as mãos nas paredes úmidas e pouco iluminadas,
investigando cada saliência minuciosamente.
“Ouvi conversas no palácio… este lugar não é um calabouço de verdade,
é uma galeria que nunca chegou a ser terminada. E todas as galerias… tem
acesso ao mar…”
Uma ponta de pedra arranhou minha mão e me fez recuar, dolorido. Era
ali. Naquele canto havia uma fenda estreita que emanava o cheiro salgado de
mar.
Yoshan se aproximou e expandiu os olhos em surpresa.
“Quem diria. Você seria um excelente Amalona, Fran.” Ele sorriu a mim
e passou de lado pela fresta, precisando espremer o corpo.
Apesar da felicidade do Yoshan o meu coração continuava a bater
amargo. Eu o segui pela passagem apertada e logo a descida revelou um túnel
submerso. A água brilhava fracamente, carregando a luz do sol para dentro da
caverna.
Como as coisas chegaram naquele ponto? O que fiz para perder meu
amigo de forma tão brusca e sem sentido? Eu não sabia, mas pretendia
descobrir.
“Yoshan.” Falei.
Yoshan virou-se para mim com curiosidade ansiosa, já colocando o pé
dentro da água.
Eu engoli minhas lágrimas e o fuzilei com meu olhar mais sério e
determinado.
“Se você der mais um passo, nós seremos inimigos.” Eu disse.
Yoshan sorriu para mim.
“E ainda assim você está me ajudando a escapar.”
Não havia nada de divertido naquela situação, na verdade era devastador.
Mesmo assim eu também sorri e relaxei a postura.
“Prometa que vai ficar bem.” Eu disse.
Yoshan me estendeu a mão.
“Adeus, meu melhor amigo.”
Eu apertei firme a mão do Yoshan e não aguentei, comecei a chorar.
Após nossa breve despedida Yoshan soltou minha mão e mergulhou no
túnel, desaparecendo nas profundezas do mar.

****

Eu saí pela passagem no beco e devolvi o bastão aos guardas. Jensen me


aguardava na saída, com nosso bebê adormecido em seus braços.
“Como foi lá?” Ele me perguntou no caminho de casa.
“Os Amalonas são tudo o que dizem, protegem segredos como uma ostra
protege suas pérolas.” Falei, estudando meu predestinado com o canto do
olhar. Bastava que Jensen usasse telepatia para desmascarar minhas mentiras.
A tristeza em Jensen me feria. Devia ser tão difícil ver seus pais nervosos
e em pânico, enviando soldados aos quatro cantos dos oceanos e precisando
recorrer à violência com todos que pudessem ter informações.
O caminho para casa pouco lembrava o de poucas luas atrás. Não se via
mais crianças brincando, ou grupinhos de ômegas rindo e trocando fofoca, ou
vendedores oferecendo produtos exóticos de colônias distantes. Havia apenas
tropas de soldados marchando em sincronia, vistoriando casas e buscando
justiça ao colega morto. Até a escadaria da montanha tornara-se intrafegável,
atulhada de guardas da estátua ao castelo no cume, onde um regimento inteiro
protegia os reis de algo que eu ainda não compreendia.
Mesmo que Cordelen e seus irmãos estivessem escondidos na ilha, era
uma proteção exagerada contra apenas três inimigos. Mas eu não culpava os
reis pelo excesso de zelo. Diferente de Yoshan eu reconhecia a dedicação
deles pela nossa segurança, embora uma dúvida persistisse.
Tritões maus predestinam com outros tritões maus. Foi o próprio Yoshan
quem me ensinou isso, mas eu me recusava a acreditar que houvesse maldade
em seu coração. Yoshan foi meu melhor amigo, me ajudou quando mais
precisei, era o tipo de tritão que arrancaria as escamas para trazer um sorriso
aos amigos.
“Cordelen está grávido.” Falei, quebrando o silêncio. “Não acho que
tenha sido intencional.”
“O quê?” Perguntou Jensen, surpreso.
“Yoshan sempre me olha nos olhos ao falar comigo, mas ele falou de um
imprevisto antes de fugir, e então olhou para a minha barriga.”
“Deixou o prisioneiro fugir??” Jensen segurou meu braço, quase
derrubando o bebê. “Fran, tem ideia do que fez? Você pode ser gravemente
punido!”
“Sou predestinado de um Makaira, serei punido apenas se for este o seu
desejo.” Respondi, sério e pouco impressionado.
Jensen me encarou com temor no olhar, como se não me reconhecesse.
Eu mesmo estranhava a minha própria frieza e ausência de arrependimento,
mas ainda assim acabei sorrindo. Se Jensen tivesse a intenção de me entregar,
bastaria um grito e eu estaria preso antes do pôr-do-sol, certamente ao lado de
Yoshan se não o matassem ainda antes.
Como eu esperava, Jensen recuperou-se do susto e continuou me
acompanhando até em casa, atravessando a floricultura enquanto embalava
nosso filho.
“Não é uma informação tão importante. A gravidez daquele ômega, eu
quero dizer.” Disse ele.
“Não é importante, mas me preocupa.” Eu acariciei meu ventre. “Preciso
que encontre o General-Rei Hian, quero uma audiência com ele.”
Jensen deu uma risadinha perplexa, enquanto destrancava a porta de casa.
“Acredito que meu pai tem preocupações maiores neste momento, meu
predestinado. A gravidez de Cordelen não é relevante o suficiente para uma
audiência.”
“Não quero conversar com ele. Quero me alistar.” Falei.
Jensen trancou a porta depois que entrei e me encarou ainda mais
assustado embora se segurasse para não rir.
“Se alistar no exército real? Você ficou louco, meu predestinado? Não
posso permitir isso.”
“Por quê? Porque eu sou um ômega, ou porque eu sou um Gobio-Gobio?”
Perguntei, aquecendo de raiva e não me atrevendo a ler sua mente, ou aquela
discussão certamente viraria uma briga.
Jensen engasgou, perplexo e desconfiado. Mas se aprendi algo em meus
anos de predestinação era que alfas realizavam os sonhos de seus ômegas,
quaisquer que fossem.
“Vou conversar com o papai, tá bem? Não o quero em nenhuma frente de
batalha, precisarei insistir em um posto militar mais elevado.”
Eu peguei o pequeno Sebasten e a mudança de mãos o fez despertar.
Nosso filho me encarou com seus lindos olhos verde-esmeralda, quase
encobertos pela cabeleira ruiva que aumentava a cada dia. Seu sorrisinho me
fez sorrir de volta, embora meu coração fosse fogo e trovões.
Soldado raso, comandante, não me importava. Cordelen Trevally trouxe
medo e insegurança ao reino e destruiu a vida do meu melhor amigo. Eu faria
tudo o que estivesse ao meu alcance para encontrá-lo.
E então eu o faria pagar muito caro.
Casa de Marionetes
FIM
A história continua em

O Amante do Tritão Livro 3

Espero que estejam ansiosos!


Glossário

Começou a se perder na mitologia de O Amante do Tritão? Confira


alguns termos e definições:

Espécies

Tritões e sereias
Tritões são os machos, sereias as fêmeas. Em sua forma aquática eles
têm uma longa cauda de golfinho coberta de escamas. Diferente das sereias e
humanos, tritões possuem um gênero secundário, podendo ser alfas ou
ômegas. Eles são capazes de respirar dentro d’água através de guelras atrás
das orelhas e não conseguem manter a forma terrestre quando na água.
Tritões de sangue puro precisam do mar para sobreviver e são alérgicos a
alimentos da terra firme. A proporção populacional entre tritões e sereias é de
10 tritões para cada sereia.
Selkies
Uma raça do povo do mar. Diferente dos tritões, os selkies não
possuem escamas e sua cauda lembra a de uma foca. Sabe-se muito pouco
sobre eles.
Humanos
Chamados pelo povo do mar de inferiores ou povo terrestre, os
humanos são pessoas comuns que em sua maioria nem suspeita da existência
de tritões. Por serem de uma raça biologicamente menos evoluída, todos os
humanos são ômega.

Biologia

Omegaverse
O gênero literário no qual O Amante do Tritão foi vagamente
inspirado. Nas histórias omegaverse a sociedade divide-se entre alfas e
ômegas, onde o ômega é capaz de ficar grávido do alfa independente de ser
homem ou mulher.
Alfa
Tritões alfas são maiores, mais fortes e em geral mais dominantes que
seus parceiros ômegas. Seu dever é realizar todos os desejos de seu ômega
grávido e zelar pelo bem-estar do núcleo.
Ômega
Ômegas quase sempre são magrinhos, delicados e dóceis, embora não
se deva confundir delicadeza com fragilidade. O ômega é capaz de gerar o
bebê do alfa em seu ventre, em uma gestação que dura nove meses.
Filhote
Todo o povo do mar menor de dezoito anos é considerado filhote.
Eles têm o desenvolvimento emocional e hormonal de uma criança humana,
são incapazes de sentir prazer ou desejo e tem capacidade limitada em
compreender sentimentos complexos como o amor. Após o Despertar, o
filhote se tornará alfa ou ômega.
Híbrido
O filho de um tritão com um humano. Híbridos herdam a maior parte
da carga genética do pai alfa, mas podem adquirir traços do pai humano
como personalidade, resistência a alimentos terrestres ou a viver longe do
mar. Eventualmente híbridos adquirem a cor dos olhos do pai ômega, uma
das únicas ocasiões em que sua cauda não será verde. Devido à dominância
genética, o filho de dois híbridos ou um híbrido e um sangue-puro apaga os
traços humanos, gerando um bebê sangue-puro.
Formas
O povo do mar pode assumir diferentes formas: aquática, terrestre e
feral. Esta última forma, destinada à defesa ou combate, pode ser usada fora
ou dentro da água e é especialmente difícil de ser controlada por tritões
híbridos.
Despertar
É quando o filhote torna-se um adulto, podendo ser alfa ou ômega. O
desenvolvimento hormonal e emocional ocorre subitamente, um processo
confuso e assustador para a maioria. Também é no despertar que o tritão
conhecerá seu predestinado.
Adormecer
Ocorre em tritões idosos. O chamado silencia e o tritão torna-se
incapaz de se reproduzir, mas ainda é agraciado por outras dádivas como os
poderes curativos do mar.
Abandono
Em casos extremos o chamado pode abandonar um tritão, privando-o
de seus poderes curativos, habilidades telepáticas, alertas ao perigo e todas as
suas outras dádivas.
Telepatia
Tritões podem se comunicar telepaticamente com seus predestinados,
e também com outros tritões de forma mais limitada. Esta é uma dádiva do
chamado que permite aos tritões conversar embaixo d’água.

Sociedade dos Tritões

Oráculo
Tritões especiais de cauda dourada e a capacidade única de amplificar
os poderes do chamado. Aurelian Makaira é o atual oráculo, e também rei dos
tritões.
Chamado
É um mistério.
Egarikena
Capital do reino dos tritões. É uma linda ilha de cristal com um
castelo no topo, onde moram os reis Hian e Aurelian Makaira.
Predestinação
Evento do Despertar que reúne o casal alfa e ômega. O casal
predestinado pode conversar por telepatia, sentir as sensações um do outro e
até mesmo ler alguns pensamentos.
Maculador
Aquele que fere um vínculo de predestinação é considerado um
maculador. Costumam ser severamente castigados.
Núcleo
Unidade familiar do casal predestinado e seus filhotes.
Clã
São as diferentes sociedades de tritões, determinadas a partir do padrão em
lilás nas caudas. Amalonas possuem barbatana lilás, Trevallys possuem
listras no dorso, Kampangos têm manchas pontilhadas… cada clã possui
algumas outras características únicas, e são divididos entre castas alta, média
e baixa de acordo com sua importância política.
Conheça os livros da série O Amante do Tritão

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O Beijo do Incubus (258 páginas)
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Heróis Despedaçados (186 páginas)
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