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LIVRARIA M O DERNA ,
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Livreiros Editores

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C om p rã o .lA rto s, c o l l e c t a s d e s e llò s , m oadas, g r a v u r a s ,
q u T d ro s a o leo , o b je c t a i da av ’.e, etc.

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0 POVO PORTUGUEZ
NOS SEUS

COSTUMES, CRENCAS, E TRADICOES


I

T T 2 V / S. /
\ry OriginaLflsom ' \ \
D ig itiz e d b y V ^ O O g L c N E W Y O R K P U B L IC L IB R A R Y
DO MESMO AUCTOR :
FONTES TRADICIONAES DA UTTERATURA PORTUGUEZA:
Historia da Poesia popular portugueza. Porto, Typ.
Luzitana, 1867, In-8.°, Jde vin-222 pp i vol.
Cancioneiro popular, colligido da tradição oral. Coim­
bra, Imprensa da Universidade, 1867, In-8.®, de
vn-223 pp 1 vol.
Romanceiro geral, colligido da tradição. Coimbra, Im­
prensa da Universidade,1867, In-8.®, de vm-216 pp. 1 vol.
Cantos populares do Archipelago açoriano. Porto, Typ.
da Livraria Internacional, 1869, In-8.°, de xvi-478
pp 1 vol.
Cantos populares do Brazil, coll. pelo Dr. Sylvio Ro-
mero,— Introducção e Notas comparativas. Lisboa,
Nova Livraria Internacional, 1883, In-8.°, de x x x ii
a 286, e 240 pp 2 vol.
Floresta de Romances com forma litteraria. Typ. da Li­
vraria Internacional, 1868, In-8.®, de liu-217 pp. . 1 vol.
Contos tradicionaes do Povoportuguez, com um Estudo
sobre a Novellistica geral e Notas comparativas.
Porto, Livraria Universal, 1883, In-8.°, de u-232;
e 30-243 pp 2 vol.
Contos populares do Brazil, coll. pelo Dr. Sylvio Ro-
mero, — Estudo preliminar e Notas comparativas.
Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1885, In-8.°, de
xxxvi-235 pp 1 vol.
O Povoportuguez nos seus Costumes, Crenças e Tradi­
ções : Livro n. Crenças e Festas publicas. Livro m.
Tradições e Saber popular. (No prelo.)

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0 POVO PORTUGUEZ
w
NOS SEUS

POR
T H E O P H IL O b r a g a

les vivants sont toujours et


de plus en plus dominés par
les morts.
A. Comte, Politique
positive t t. ii, p. 61.

VOLUME I
COSTUMES E VIDA DOMESTICA

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* : /

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L IV R A R IA F E R R E IR A — E d it o r a
132— Rua Aurea—134
1885 _
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Harvard College Library
OCT 7 1312

«•TOR, wENOX «NO


TfLOtN NOATim.
P. 1913 L

C O IM B R A — IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
rA r> O riginal from
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PR O EM IO
Escrevia Henri Martin, por occasião do Congresso
anthropologico celebrado em Lisboa èm 1880: «Por-
. tugal é exactamente a região da JSuropa onde o eru-
> dito, por muito que se encerre na sua 'sciencia, hade
por força abrir os olhos, e bem abertos sobre tudo
. quanto o rodeia; porque o presente é aqui tão curioso,
e quasi tão differente dos nossos costumes, como o
podiam ser as edades antigas.» Desde 1867 a 1884
S temos emprehendido uma larga investigação sobre a
ethnogenia do Povo portuguez, comprehendendo os
Costumes, as Industrias locaes, Crenças e Supersti­
ções, Festas religiosas, Cerimonias funerarias e nu-
pciaes, Symbolos do direito consuetudinario, Jogos
infantis, Adivinhas, Adágios, Colloquios e Dansas dra-
, maticas, Musicas e Canções, Novellas, Prophecias
nacionaes, Cantos heroicos do Romanceiro, Litteratura
de cordel, Dialectologia e Lendas históricas. O pre­
sente trabalho vem rematar esta empreza, que tem
sido o pensamento constante a que dedicámos quasi
; que exclusivamente a nossa actividade intellectual.
Sobre este campo ethnologico ex.is.tem trabalhos im­
portantes na Europa^ como-*« Pnmmve: and
Costums, de James Farjer, £ .especialmente a obra de
Kolberg, em quatorze.vdurfieiv: O Povo, seus
m e s ,modo de viver, Linguagem, Tradições, Provérbios,
Cerimonias, Esconjuros, Pasm-tmpos,.Cantos, Musica
e Dansa. (Varsóvia, 1857-1880.) Mo viemos a estes
estudos por uma simples imitação, nem por curio­
sidades de momento e sem destino; por uma evolu­
ção natural do nosso espirito achámo-nos attrahidos

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VI PROEMIO
para a observação de todas as manifestações do viver
portuguez, e o nosso methodo de investigação e o
critério comparativo, bem como o intuito de recon-
strucção sociologica como systema de coordenação dos
factos, desenvolveram-se constantemente á medida
que avançámos da actividade esthetica para a activi­
dade scientifica, e por flm para a especulação
sophica.
Attrahidos ainda na adolescencia para esse lyrismo
pessoal pervertido pelo Romantismo, viemos a conhe­
cer que existia uma poesia mais profunda do que as
emoções do momento, revelada nos conflictos da hu­
manidade que accentuam a sua elevação na historia.
Entrando n’esta via, em que traçámos o esboço de
uma Epopêa humana na Visão a ideali-
sação do passado fez-nos comprehender os documen­
tos persistentes da sua poesia, as tradições transmitti-
das na voz do povo. Immediatamente começámos a
accumular os materiaes do Cancioneiro e Romanceiro
geral portuguez, aproveitando o contacto com toda a
mocidade portugueza na frequencia da Universidade
de Coimbra. Obedecendo a esta seducção, escolhemos
para a nossa these de doutoramento em direito, os
Foraes, documentos tradicionaes do direito local e
consuetudinario ; o estudo da jurisprudência foraleira
fez-nos encontrar numerosos vestígios de costumes
na vida acjual .do povo, e abundantes symbolos jurí­
dicos nas <fàn%as:e\Tománces or&es. Por esta forma
achámos o'iado'vïvo das. instituições locaes, e ao me­
smo tempo a impoèrtançia histórica contida nos factos
apparentemente insignificantes alludidos nos cantos do
povo portuguez-, Esteta àchado o nosso critério, e por­
tanto o interesse artisticò convertido em seriedade
scientifica. A relação entre os Foraes do seculo xiii
e os romances populares actuaes estabeleceu-se no
nosso espirito, pelo encontro frequente de numerosis-

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PROEMtO VII
simas referencias dos principaes romances nas obras
dos escriptores quinhentistas Gil Vicente, Prestes, Sá
de Miranda, Jorge Ferreira e Camões. Avançando
constantemente, e sentindo, comprehendendo a ex­
pressão do nosso genio nacional, organisamos então a
Historia da Litteratura porlugueza,onde cada escri-
ptor seria julgado segundo a intuição que teve das
fontes tradicionaes de que mais ou menos consciente­
mente se aproximou. Assim pelo estudo dos cantos
do povo é que comprehendemos o que havia de cara­
cteristicamente nosso nos Cancioneiros provençaes
portuguezes, considerados por Wolf como imitações
sem caracter nacional ; pelo estudo das superstições
é que conhecemos as origens de alguns Autos de Gil
Vicente, onde este homem de genio dramatisou costu­
mes populares, como no Triumpho do Inverno. Per­
tence tambem a esta ordem de estudos a obsemção
da persistência ethnica das raças peninsulares,' base
do nosso esboço sobre os Elementos da Nacionalidade
portugueza e da Historia de Portugal em que traba­
lhamos.
De todos estes factos infere-se que obedecemos sem­
pre a um ponto de vista superior, fugindo intencio­
nalmente da compilação material sem subordinação a
um plano. A compilação é util e necessaria, mas tem,
alem do defeito da incongruência irracional, o perigo
de dar a estes estudos ethnologicos uma apparencia
de frivolidade que os prejudica. O espirito humano
precisa sempre de uma synthèse, e é o que Bacon
affirma na maxima : A verdade pode sair do erro, mas
nunca da confusão. Este saudavel principio nos levou
constantemente a procurar um ponto de vista geral
que nos guiasse n’esta ordem de estudos. Do exame
comparativo dos cantos populares, chegámos ao conhe­
cimento da unidade poética do Occidente da Europa,
já presentida por Nigra, Liebrecht e Wolf; o estudo

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VIII PROEMIO
da Ethnologia poz-nos em maior evidencia este fondo
tradicional commum, e partindo d’esta concepção pu-
démos systematisar os costumes populares inconscien­
tes, incompletos e sem sentido real, coordenando-os
segundo os estados sociaes primitivos de que elles
eram a sobrevivência. N’este estudo de reconstrucção
é que viemos a comprehender as differenças funda-
mentaes que existem no methodo e processo descri-
ptivo de uma Sociologia concreta, e o destino philo-
sophico ou abstracto de uma sciencia deductiva de
previsão dos phenomenos sociaes, ou propriamente a
Sociologia, confundida por Spencer e outros com a
ethnologia. A publicação do de Sociologia
representa na nossa actividade mental o período de
abstracção philosophica ; por esse trabalho chegá­
mos á concepção das leis geraes que subordinam os
factos sociaes. A sua applicação ao exame da vida do
povo portuguez nos seus costumes, crenças e supersti­
ções, torna este trabalho uma como Sociologia descri-
ptiva, exemplificada em um pequeno grupo humano.
Da concepção geral sociologica tirámos a divisão fun­
damental dos phenomenos : os que se referem á acti­
vidade popular, ou Costumes, os que resultam da
affectividade ou as Crenças, e os que são as formas
especulativas da intellectualidade da multidão ou as
Tradições. Eis os diversos aspectos por onde este tra­
balho se prende logicamente aos diversos gráos do
nosso desenvolvimento esthetico, scientifico e philo-
sophico, accentuados com clareza em trabalhos cuja
unidade de plano e intenção começam a ser compre-
hendidas.

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0 POYO PORTUGUËZ
NOS SEUS

COSTUMES, CRENÇAS E TRADIÇÕES

IN T R O D U C Ç Â O
Bases da oritioa ethnologioa
A s persistências consuetudinarias.—Transição da anthropo-
logia para a ethnographia: Usos sem relação com os costu­
mes.— Costumes sem relação com as opiniões.— As recor­
rências ou regressões aos costumes atrazados por uma raça
superior: Contacto com raças homogeneas.— Isolamento e
regressão das raças.—Causas psychologicas: O automatismo
orgânico da Imitação e da Tradição, nas crianças, nas mu­
lheres e nos velhos.— As so b re o ic e n c ia sAdaptações das
impressões primitivas. — Transformações dos mythos em
lendas. — Decadencias cultuaes e superstições populares. —
Fundação de uma Psychologia anthropologica, ou Demotica>
subordinando em corpo de doutrina a Ethnographia, a De-
mographia. a Demopsychologia, a Hierologia, a Ethologia e
a Nacionalitteratura.— Caracter de uma Sciencia social de-
8criptiva, segundo as tres syntheses, activa, affectiva e espe­
culativa, dirigindo a coordenação do presente livro.

0 interesse crescente pelos estudos ethnologicos,


já como desenvolvimento indispensável das observa­
ções da Psychologia, (Herbart e Waitz) ja como condu­
zindo á preparação dos factos inductivos da >
(Herbert Spencer, Wundt e Letoumeau) revela-nos
que uma modificação fundamental se operou no cri-
1
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2 INTRODUCÇÃO

terio humano, procurando a razão de ser dos actos


individuaes e das instituições sociaes, não na vontade
preponderante dos grandes homens, mas nos ante­
cedentes historicos que remontam até ao automatismo
orgânico das collectividades. A Historia esgotou-se na
celebrisação dos chefes militares e dynasticos, expli­
cando as transformações sociaes pela intervenção ar­
bitraria d’essas altas individualidades; assim redu­
zia-se à narrativa da sua existencia biographica, que
substituía completamente a da nação. As phrases—
seculo de Pericles, seculo de Augusto, seculo de Leão x,
seculo de Luiz xiv, são uma synthèse banal de uma
concepção errada; porque o esplendor de cada um
d’esses séculos proveiu de antecedentes remotos como
o estado da raça, da sua situação geographica, dos
seus conflictos sociaes, do gráo de intellectualidade
em relação com as noções objectivas, e emfim da so­
lidariedade com um passado mais ou menos culto,
que facilitava òs novos progressos vindouros. A alte­
ração do critério fez-se de um modo insensível, ainda
que muito tarde, como se observa na propria espe-
cialisação da Historia. As investigações que se diri­
giam aos actos dos indivíduos socialmente preponde­
rantes, como os da historia politica, alargaram-se aos
phenomenos sociaes, como o Direito, a Arte, a Pro­
priedade, asLitteraturas, asLinguas, e assim se chegou
a tocar o problema social sob um aspecto scientifico,
fixando o verdadeiro campo de exploração critica no
conjuncto das sociedades humanas. Quando Comte
comprehendeu o principio, que : «os mortos governam
sempre, e de cada vez mais os vivos,» achou a forma
do encadeamento da complexidade dos factos sociaes
para poder submettel-os á invariabilidade das leis
naturaes, tornando possivel a constituição de uma
Sciencia social. Os progressos dos estudos biologicos
ajudaram ao desenvolvimento da ideia de evolução;

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 3
as descobertas sobre a correlação das forças, expli­
cando os phenomenos physicos e chimicos, vieram dar
o valor de uma synthèse philosophica á concepção
evolucionista, a qual ampliando-se aos phenomenos
sociaes provocou os vastos trabalhos da Ethnologia,
que em vez de serem uma accumulação de factos sem
intuito— como a maior parte das relações dos viajan­
tes — se subordinaram á determinação da influencia
dos meios, ás capacidades das raças e seus cruza­
mentos, ás hereditariedades e atavismoS, nas suas
formas de persitênca, recorrências e sobrevwencias.
Fixado o ponto de vista da relação dos anteceden­
tes, como a base de uma explicação racional, o me-
thodo comparativo veiu fortalecer a Historia, condu­
zindo a deducções, tanto mais seguras quando esta­
belecidas nos grandes conjunctos de factos. N’este
estado da Ethnographia, a que a elevaram Lubbock,
Tylor, Bastian, Wundt, Waitz, Lazarus, e tantos outros,
a sciencia descriptiva tendeu a converter-se em uma
sciencia geral do homem moral ou em Psychologia, e
em uma sciencia concreta dos aggregados sociaes con­
fundida com a Sociologia. É esta indeterminação que a
prejudica ; conhecido o critério evolutivo e o methodo
comparativo, ha toda a segurança para que as inves­
tigações especiaes restrictas a uma raça ou a uma
nação se não esterilisem em uma futil curiosidade. Se
nos seus resultados geraes a Ethnologia deriva da
investigação dos phenomenos passados nos aggrega­
dos humanos o conhecimento do homem medio, e das
formas de progresso das necessidades, dos instinctos,
dos sentimentos, dos interesses e das ideias que agi­
taram essas collectividades na successão histórica das
. suas instituições políticas, economicas e moraes, tam­
bém sob o ponto de vista restricto a um dado povo,
esse estudo dos seus antecedentes sociaes serve para
determinar os caracteres nacionaes, por isso que os
••
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4 INTRODUCÇÂO
costumes domésticos, as tradições, as formas da acti­
vidade, tudo isso é um elemento indistincte d’onde
se vão destacando a Poesia, a Litteratura, a Arte, a
Industria, e a acção histórica de um povo na civili-
sação. Tal é o ponto de vista em que nos collocamos
ao coordenar os materiaes d’este livro em que descre­
vemos o Povo portuguez nos seus Costumes, Crenças
e Tradições.
Não basta compilar os factos espontâneos que se
conservam nos costumes ou modos de existencia do
povo ; pelo exame comparativo applicado a esses ele­
mentos ethnicos é que se comprehende a sua funda­
mental importância, impondo-nos respeito por uma
ordem de documentos que encerram extraordinarias
inferências ácerca do estado moral e social do povo
de hoje nas suas relações de dependencia com um
passado de que é o representante inconsciente. Diz
Gustavo Le Bon, alludindo a esta dependencia ethnica:
«Este passado immenso que trazemos em nós mes­
mos, nós não o sentimos, da mesma fórma que não
sentimos a pressão enorme da atmosphera que nos
cérca; a sua existencia não é menos real.» (I)
Turgot já havia possuido a intuição d’esta lei de evo­
lução na historia, quando no seu Segundo Discurso
na Sorbonna, escrevia : «Todas as edades estão enca­
deadas por uma serie de causas e de effeitos que li­
gam o estado do mundo a todas aquellas que o pre­
cederam.» A verificação d’este principio leva a des­
cobertas estupendas, como a reconstrucção das for­
mas das sociedades primitivas através do exame das
instituições e hábitos do presente. Tal é a primeira
consequência do methodo comparativo, e mesmo o
seu principal intuito. Toda a investigação ethnica que
não visar a esta reconstrucção sociologica não passará
(i) L’Homme et les Sociétés, t. il, p. 177.

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA S
de um inventario esteril, e as comparações ficarão
inintelligiveis. Porque, como observa Koenigswarter:
«todas as vezes que um facto se encontra a immensa
distancia de tempo e de logar, entre povos differen-
tes pelo clima, pela sua religião, sua origem e lin­
guagem, este facto liga-se necessariamente ao desen­
volvimento social da Humanidade.» (1) É por esta
vista de conjuncto que nos apparece a concordância
humana através das suas phases sociaes, das suas
variações anthropologicas, das suas concepções men-
taes, concordância que não é outra cousa senão um
esforço de convergência para a elevação da especie,
e que encerra a synthese ou o consensus que caracte-
risa uma Civilisação. Por mais elevada que seja a cul­
tura de um povo, sempre nos seus costumes, crenças
e tradições se irão encontrar os vestígios de epocas
rudimentares sobre as quaes se foram organisando
as formas superiores da sua existencia; e assim como
nos organismos mais perfeitos os biologistas vão en­
contrar certos orgãos sem destino, que não correspon­
dem a nenhuma funcção actual, mas que subsistem
como ultima dependencia de uma phase morphologica
que passou, tambem nas sociedades se conservam
manifestações automaticas em antinomia com a situa­
ção actual das consciências. Charriére notou esta du­
plicidade, cujo conhecimento é de uma importância
pratica para aquelles que exercem qualquer interven­
ção politica: «Em qualquer ponto que se tomem as
sociedades, ellas apresentam sempre duas edades dis-
tinctas, a edadenatural,chamada barbara em tod
as historias por contraposição á edade civilisada, e da
qual o caracter tem sido reciprocamente desconhecido.
Ainda que o homem seja tudo por si só, a edade civi-
(i) Étudeshistoriques sur le de la Société,
introd.

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6 INTRODUCÇÂO
lisada tem por fim negar o que tomou a este primeiro
desenvolvimento do seu instincto. Comtudo elle decide
do espirito e da direcção de uma sociedade que recebe
da edadenatural a sua lingua, costumes, instituições
tradicionaes, em uma palavra, a matéria prima ela­
borada em uma segunda edade.» (1) É o estudo d’esta
matéria prima que constitue o verdadeiro preliminar
da historia da civilisação, quer no sentido geral ou
sociologico, quer sob o ponto de vista restricto de
uma nacionalidade na creação das suas instituições
políticas, religiosas, estheticas ou economicas. A cri­
tica funda-se no conhecimento d’esta relação entre os
elementos da edade natural que receberam forma
reflectida e serviram de expressão consciente ás indi­
vidualidades preponderantes. Carey applicoueste prin­
cipio á sciencia economica, escrevendo : «O relance
o mais superficial sobre as diversas partes do uni­
verso leva-nos a perceber que todos os periodos da
civilisação dos tempos passados podem encontrar-se
no presente, etc. » (2) Pela applicação de uma tal ideia,
os estudos históricos receberam uma luz extraordiná­
ria, procurando-se o sentido de certas instituições
incomprehensiveis do passado na relação persistente
com estados sociaes de outras epocas. Fustel de Cou-
langes, explicando as formas da organisação civil e
política de Roma pela recomposição da tribu primitiva
que se desenvolveu em patriciado, exclama : «Feliz­
mente, o passado nunca morre completamente para
o homem. O homem pode esquecer-se d’elle, mas
guardal-o-ha sempre em si. Porque, tal qual é em
cada epoca, elle é o resumo e o producto de todas as
epocas anteriores.» (3) Esta dependencia physica e
moral, parecendo destruir-nos o nosso livre arbitrio,
(1) Politique de l’Histoire, 1.1, p. 22.
(2) Principes de la Science sociale, 1.1, pag. xi.
(3) La Cité antique, p. S.

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 7
desde que for conhecida considera-se como uma força
effectiva e inilludivel que terá de ser aproveitada, di­
rigindo-a no sentido da elevação da propria consciên­
cia. As luctas para a vulgarisação das novas ideias,
a difficuldade de generalisar as descobertas techno-
logicas, são a consequência de uma tenacidade do
passado, que muitas vezes os poderes politicos e re­
ligiosos, temporaes e espirituaes, exploram mantendo
a sociedade na estabilidade desoladora de um conser-
vantismo estúpido. Gustavo Le Bon observa o confli-
cto que se dá entre estas duas forças, a do supposto
livre arbitrio, ou da iniciativa das determinações indi-
viduaes, vencida pela acção de um meio ignorado :
«O homem julga proceder como.elle quer, mas n’este
meio inconsciente, de que nem suspeita, e onde se
elaboram as causas das suas acções, todas as gera­
ções que o precederam depositaram os seus vestígios.
Debalde procurará subtrahir-se-lhe, os limites dentro
dos quaes se pode afastar são dos mais restrictos.» (4)
Se o conhecimento d’esta subordinação fatal do homem
é a unica condição possivel para attingir a liberdade,
quer em si, quer nas instituições que o envolvem, o
desenvolvimento do critério n’esta ordem de investi­
gações tem o poder de destruir todas as illusões per-
stigiosas ácerca da origem divina dos principaes recur­
sos de que o homem se serviu para attingir o pro­
gresso de que disfructa. As relações do presente para
com o passado, uma vez estabelecidas, mostram-nos
como as formas superiores da sociedade são a conse­
quência da transformação de organisações imperfeitas,
assim como as nossas concepções moraes abstractas,
de direito, dever, justiça e responsabilidade são o
desdobramento de manifestações concretas e materiaes
muitas vezes ainda reflectidas em symbolos consagra-
(1) L’Hommeetles Sociétés, t.n,p.121.

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8 INTRODUCÇÀO
dos pela antiguidade. Vico, que na sua Sciencia Nova
teve a comprehensão synthetica do valor dos elementos
consuetudinarios e tradicionaes para a reconstrucção
do conhecimento da natureza das nações, concluiu dos
seus estudos o grande principio — que a Humanidade
é obra de- si mesmo. É esta a concepção final que
resultará sempre de todas as descobertas áçerca das
relações do presente com o passado conservadas in­
conscientemente nos costumes; d’ella se derivará a
nova lei moral e a base para a reorganisação das
sociedades sob o ponto de vista da Sociocracia. O
philosopho Hume já bavia presentido o alcance d’esta
solidariedade com o passado, quando invertendo o
problema da comprehensão do presente, partia da
sociedade de hoje para se descobrir o caracter das
edades antigas; dizia elle: «Quereis conhecer os Gre­
gos e os Romanos, estudae os Inglezes e os Francezes;
os homens descriptos por Tacito e Polybio parecem-nos
os habitantes que nos cercam.» Os estudos da Anthro-
pologia e da Linguistica ou Philologia comparada, leva­
ram á descoberta de que estas analogias entre povos
e civilisações tão remotas assentavam não sobre uma
similaridade psychologica, mas sobre uma realidade
histórica, porque estas nacionalidades provieram do
mesmo tronco anthropologico — a raça árica nas suas
diversas emigrações para o Occidente. É esta conti­
guidade e connexão histórica que vem coordenar uma
grande somma de manifestações sociaes, como mythos,
formas linguisticas, constituição patriarchal governa­
tiva, typos litterarios, que se conservaram com' cara­
cteres communs na Civilisação occidental representada
pela Grecia, Roma, e nacionalidades constituídas na
Edade media, como a França, a Inglaterra e a Alle-
manha. As mesmas differenças inconciliáveis mais
facilmente se explicarão pelas circumstancias do encon-,
tro e fusão de outros elementos anthropologicos ante

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 9
riores que os árias emigrantes assimilaram mais ou
menos determinadamente. Os processos comparativos
no estudo dos mais complicados elementos ethnicos
conduzem a uma unificação de resultados; Juvenal
comprehendera a possibilidade d’esta synthese, quando
pelo conhecimento do que se passa em uma casa de­
duzia o conhecimento do genero humano: «
generismores tibiscire vólenti,.» (1)
De facto a vida domestica, tendo-se ampliado ou sido
parodiada na vida publica, encerra rudimentos de cos­
tumes e instituições nacionaes, que só se comprehen-
dem approximando-os do typo de que derivam; e das
analogias dos diversos costumes nacionaes se deduzem
as relações organicas da grande raça a que pertence­
mos recompondo as suas concepções e modo de exis­
tência primitivas.
As persistências. — O estudo physiologico da nossa
natureza explica por que motivo um certo numero
de actos são realizados sem estimulo funccional, ou
especificamente; e porque é que ao mesmo tempo uma
grande variedade de actos voluntários se tornam in­
conscientes ou automáticos, como condição indispen­
sável da maior perfectibilidade do seu desempenho.
É d’esta origem organica que se deriva a tenacidade
de conservação dos modos de actividade ou costumes
que já não condizem com o estado moral ou mesmo
com as ideias dominantes de uma epoca. Os moder­
nos ethnologos observam com interesse esta catego­
ria de actos, que, alem de provirem de uma especi­
ficidade organica, tambem tiram a sua força de esta­
bilidade de uma uniforme suggestão do meio. Spencer
faz sentir esta relação da persistência dos costumes
com a acção constante do meio cosmico, como se
(1) Satyra xiv, 159,

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10 INTRODUCÇÃO
observa nos povos gue vivem no deserto ; diz Spen­
cer: «Desde os tempos os mais remotos, que as re­
giões áridas do Oriente são povoadas por tribus semí­
ticas cujo typo social rudimentar é adaptado a essas
solidões 1 Da mesma fórma as descripções que Hero-
doto faz da maneira de viver dos Scythas e de sua
organisação social, assemelha-se emquanto ao fundo
à que Palias apresenta dos Kalmukos. » É assim que
se explica como os mesmos costumes apparecem em
raças diversas provocadas pela acção do mesmo meio;
necessidades eguaes provocam instinctos eguaes, há­
bitos idênticos, influindo por uma mesma suggestão
na similaridade das concepções. Se a nossa organisa­
ção physiologica explica o automatismo ou persistên­
cia de um grande numero de actos, principalmente
os costumes, a acção mesologica é que se torna a
base positiva da theoria da degradação de certas
raças, e das formas as mais caprichosas das regres­
sões aos estados ou concepções mentaesv e sociaes
inferiores. Dentro de um mesmo paiz existem classes
com um nivel desegual de cultura, como em uma
dada região existem extensas variedades de tempe­
ratura quebrando o synchronismo dos trabalhos agrí­
colas; é tambem n’estas classes que se irão repetir
com maior intensidade os phenomenos de persistên­
cia ethnica. Portanto, o estudo dos costumes só se
pôde fazer scientificamente sobre os aggregados so­
ciaes e não sobre o individuo ; d’aqui dimanam espon­
taneamente considerações sobre o estado social de
que esses costumes são a resultante mais ou menos
vigorosa, a expressão mais ou menos clara de uma
constituição primitiva. Pela persistência dos costumes
das sociedades actuaes, os modernos ethnologos re­
compõem as sociedades humanas ante-historicas. A
tatuagem, conservada entre marinheiros e soldados,
bem como as orelhas furadas, são fórmas persistentes

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA li
da existencia selvagem. Lubbock indica a continuidade
das habitações lacustres desde uma epoca ante-histo-
rica até ao tempo de Herodoto, e successivamente
até hoje; os sacrifícios primitivos dos que habitavam
essas cidades aos seus lagos protectores ainda hoje
persistem na fórma de superstições na Irlanda e na
Escossia. (1) Nas raças inferiores esta persistência
quasi que se confunde com a estabilidade improgres-
siva do instincto animal; assim os habitantes da
bacia do Nilo, como nota jjaker, construem as suas
casas com a mesma immobilidade de typo como as
aves construem os seus ninhos. (2) Nas raças supe­
riores conserva-se o objecto ou a pratica, modifican­
do-se a fórma, ou o espirito. Diz Lubbock: «O uso
dos punhaes de pedra em certas cerimonias egypcias
transporta-nos a um tempo em que este povo se ser­
via habitualmente de instrumentos de pedra.» (3)
Mais tarde o uso do bronze e do ferro vem a elimi­
nar os punhaes de pedra, mas a persistência do cos­
tume ha de impor-se quer por uma allusão emblemá­
tica, quer por uma nova interpretação racional. Acom­
panhando o mesmo punhal de pedra, vel-o-hemos na
China conservado como representação de instrumen­
tos mais adiantados: «Ainda hoje o nome de hacha
escreve-se em chinez como symbolo da pedra, que
era o instrumento dominante da epoca em que fun­
daram a sua escripta.»(4) Por outro lado Swen Nilson
mostra como entre os povos scandinavos a fórma dos
ornatos e dos amuletos em coração é um resto do
antigo uso do silex em fórma de lança conservado
inconscientemente das epocas ante-historicas. (5)
(1) UHomme avant VHistoire, p. 163. Ed. 1867.
(2) Spencer, Sociologie, 1. 1, p. 132.
(3) Origines de la Civilisation, p. 2.
(4) Lenormant, Premiêres Civilisations, 1. 1, p. 94.
(5) Les habitants primitifs de la Scandinavie, p. 243, nota I,

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12 INTRODUCÇÃO
Diante d’estes exemplos, os costumes, a linguagem,
emfim toda e qualquer manifestação do homem em
sociedade, tornam-se documentos importantes que o
ethnologo lê com clareza recompondo os estados pri-
mordiaes que nos trouxeram á civilisação presente.
Na sua Introducção á Sciencia Spencer cita
' numerosos casos de persistência, em que os usos não
estão em relação com os costumes: «os sacrifícios
dos prisioneiros ou de outros homens, outr’ora uni­
versalmente praticado pelos cannibaes nossos ante­
passados, persistem nas usanças ecclesiasticas longo
tempo depois de terem desapparecido da vida social
ordinaria. A este primeiro facto ligam-se estreitamente
dois outros, que conduzam tambem a inducções de
um alcance geral. Os instrumentos cortantes de pedra
continuam a ser empregados nos sacrifícios em uma
epoca em que para todos os outros usos se serviam
de instrumentos de bronze e mesmo de ferro; o Deu-
teronomio ordena aos hebreus que construam altares
de pedra sem se servirem de utensílios de ferro; o
grande sacerdote de Júpiter em Roma barbeava-se
com um cutello de bronze.» (1) Não levando mais
longe a transcripção importante, compendiaremos os
factos; quando na vida domestica já tinha sido aban­
donada a producção do fogo pelo attrito de dois páos,
ainda persistia o processo archaico nos ritos cultuaes
dos hindus, como ainda hoje na egreja catholica se
renova o fogo por meio do silex e da isca. Quando
no Egypto se fallava uma linguagem vulgar, accommo-
dada ás relações civis, conservava-se a difficil escri-
pta hieroglyphica para a litteratura sagrada, da mes­
ma fórma que a par das nossas linguas vivas per­
siste o latim liturgico da egreja catholica. Spencer
mostra á evidencia como depois da classe conserva-
(1) Op. cit., p. H4,

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 43
dora da theocracia, a classe que exerce o poder po­
lítico, aristocracias e governos, mantém os usos ana-
chronicos em antinomia com os costumes sociaes. As
praxes de direito feudal conservaram-se por muito
tempo na Europa, quando era geral o direito civil
esçripto; boje ainda muitos tomam a serio os titulos
nobiliarchicos de duques, marquezes, condes e barões,
quando já não existe a organisação social mibtar, nem
a organisação da propriedade territorial beneficiaria.
Os costumes palacianos conservam ainda o calção e
meia completamente banidos e ridicularisados entre
todas as classes sociaes; o beijamão é um resto da
antiga servidão e subordinação da homenagem; tam­
bém em geral as insígnias são caricatas, materiali-
sando ideias abstractas, como a corôa, symbolisando
a auctoridade, a vara,significando o poder judicial. (4)
As populações isoladas das aldeias estão no mesmo
caso que as classes confinadas no mundo official ou
na côrte, conservam nos seus usos cousas que estão
em desaccordo com os costumes da epoca, tornan­
do-se o refugio prolongado das modas decahidas.
O phenomeno da persistência ethnica apresenta
ainda uma outra face: quando os costumes da colle-
ctividade estão sem relação com as opiniões ou o modo
de pensar. Muitas das pessoas que praticam actos
cultuaes já não crêem e tem opiniões physicistas.
Os governos conservam as soluções dos conflictos
internacionaes submettidos á primitiva fórma da guerra
e da razão do mais forte; assim se viu as duas na­
ções mais especulativas e civilisadas da Europa, a
(1) O mesmo se repete nos tratamentos, quasi sempre ar-
chaicos: «Aqui quero lembrar como em Portugal temos huma
cousa alhea e com grande disonança onde menos se devia
fazer: a qual é esta, que a este nome rey demos-lhe artigo
castelhano chamando-lhe el-rey; não lhehaviamos de chamar
senão o rey, etc.» Fem. d’01iveira, Gram., cap. 44.

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14 INTRODUCÇÃO

França e a Allemanha, em 1870, atacarem-se como


duas grandes hordas selvagens, para vergonha da
civilisação, sendo applaudido e por vingar-se o que
teve a razão da força bruta, apropriando-se de terri­
tórios e do dinheiro do vencido. Na ordem individual
persiste o antigo processo do combate judiciário no
duelloa pretexto de pontos de honra, quando muitas
vezes os combatentes são publicamente indignos, ou
tambem homens de bom senso que em sua consciên­
cia protestam contra a imposição do costume.
Asrecorrências. — Uma vez estudado o phenomeno
das persistências ethnicas, o determinismo orgânico
que as explica é o mesmo que esclarece esse outro
phenomeno peculiar das recorrências ou regressões
de um povo adiantado a costumes atrazados de que
se esquecera. Não é precisò renovar a theoria de
degradação da especie, para comprehender as re­
gressões a costumes de caracter inferior; basta notar
a tenacidade dos caracteres ethnicos de uma raça ou
de um povo, para deduzir que a sua revivescencia
será uma consequência do contacto com qualquer
ramo do mesmo tronco anthropologico. A persistên­
cia dos caracteres nas raças acha-se provada por um
grande numero de factos; Cesar descreve o Gaulez
tal como subsiste na feição do francez moderno: «Os
Gaulezes têm o amor das revoluções; um revés os
desanima; elles são tão promptos a emprehender
guerras, como molles e sem energia na hora dos
desastres.» Edwards, percorrendo os departamentos
da França notou os caracteres das raças primitivas
subsistindo nos habitantes do mesmo territorio indi­
cado pela historia (1); percorrendo a Italia e a Grecia
(1) «... os principaes caracteres physicos de um povo podem
conservar-se através de uma larga serie de séculos em uma
grande parte da população, apesar da influencia do clima,

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 15
chegou ás mesmas conclusões fundamentaes; J. J.
Ampère, percorreu a Grecia moderna procurando
comprehendel-a pelas tradições da cultura hellenica,
e ainda encontrou ali o mesmo fundo popular sobre
que se crearam os my thos, as lendas épicas e os cantos
lyricos e dramaticos. (1) Bibot tambem nota como o
byzantino da epoca do Baixo Império era romano nas
fórmulas, mas organicamente grego: «O byzantino
conservou do grego, além da lingua e das tradições
litterarias, uma subtileza, que sem força para su-
stental-a degenerou em argúcia mesquinha. O gosto
do grego pela linguagem culta e pelas discussões
brilhantes tornou-se o palavrorio byzantino, a subti­
leza sophistica dos philosophos na escholastica ôca dos
theologos; e a doblez de Graeculus na diplomacia
pérfida dos imperadores.* Pelo seu lado, Taine tam­
bem approxima o germano descripto por Tacito do
allemão, nosso contemporâneo. Escreveu o grande
historiador: «Corpulentos e brancos, fleugmaticos,
com os olhos azues espantados e os cabellos de um
louro ruivo; estomagos vorazes, repletos de carne e
da mistura de raças, das invasões estrangeiras, e dos pro­
gressos da civilisação.» W. F. Edwards, Les
logiquesdes Races humaines considérés leurs rapports avec
1’Histoire, p. 37.
«Devemo-nos dispôr a achar nas nações modernas, quasi
por certos vestígios, e em uma porção mais ou menos grande,
os traços que as distinguiam na epoca em que a historia ensina
a connecel-as. Temos visto que a accessão de novos povos
multiplica os typos, não os confunde; o seu numero augmenta
com os que estes povos lhe trazem e com os que elles criam
misturando-se: porém deixam subsistir os antigos, restringin­
do-se na razão da extensão que tomam as raças intermediá­
rias. Assim os typos primitivos e os de nova formação subsi­
stem conjunctamente sem se excluírem nos povos mais on
menos civilisados todas as vezes que cada um constitue uma
grande parte da nação.» ,p. 37).
(Idem
d) Grèce, Rome et DarUe, p. 6i a 65.

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16 INTRODUCÇÃO
de queijo, aquecidos por licores fortes; um tempera­
mento frio e tardio para o amor, o gosto pelo lar
domestico, e a tendencia para a embriaguez brutal;
etc.» Taine reconhece que «é assim o allemão de hoje
em dia.» Gustavo Le Bon, accumulando estes factos,
conclue que as differenças nas republicas da America,
saxonicas e hespanholas, se explicam pela proveniên­
cia das .qualidades ethnicas, que tiram de instituições
politicas idênticas resultados tão oppostos. (1) A his­
toria da Europa está implicita n’esta lei de persistên­
cia ethnica ; as numerosas invasões soffridas por este
continente fizeram que raças différentes se sobrepu-
zessem no mesmo territorio cruzando-se, prevalecendo
ora a acção do numero, ora a superioridade da cultura.
N’estes cruzamentos, muitas e muitas vezes se fuzio-
naram em diversas epocas ramos diversos da mesma
raça levados ao encontro uns dos outros por acciden­
tes historicos. A distancia que separa os ramos árícos
que vieram occupar a Europa, quer chronologica quer
topologicamente fallando, diflerenciava-os tanto como
se observa do Grego para o Romano, do Romano para
o Celta, d’este para o Germano, ou ainda para o Slavo ;
quando qualquer d’estes ramos se formava ou unifi­
cava, quer os Romanos submettendo-os a todos, quer
os Germanos dominando por seu turno os romanos,
inevitavelmente se davam regressões ethnicas em que
preponderavam os costumes do elemento mais atra-
zado; quando em Roma se estabeleciam as institui­
ções pessoaes e militares do Império, é quando a
administração provincial regressava ao typo da liber­
dade local do Municipalismo, e que se restabelecia o
culto fetichista do Genius loci, ou das divindades po-
liades. Sob o predomínio dos povos germânicos a
Europa regressou ao regimen das guerras privadas,
(i) L’Homme et les Sociétés,t. n, p. 131.

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BÀSES DA CRITICA ETHNOLOGICA 47
da vindicta pessoal, e as instituições politicas tornam-se
outra vez palriarchaes na fórma do feudalismo. Quando
a Europa se vê invadida por tribus tartaras, dá-se
subsequentemente essa regressão aos cultos mágicos
das raças amarellas, e reina o contagio de allucina-
ção da demonomania e da feitiçaria. Outras vezes
dá-se o phenomeno contrario, é a raça que decae a
que conserva costumes superiores, como a hierarchia
dos parentescos em povos errantes como os austra­
lianos. (1) O isolamento dos povos é uma causa da
sua decadencia ethnica, ou de uma estabilidade que
a equivale. O phenomeno da recorrência ou da regres­
são tambem se manifesta individualmente; os velhos,
como diz o dictado, são duas vezes crianças; os velhos
condemnam o presente e idealisam o passado, que
se lhes aviva na memória. A phrase laudator tmporis
acti é uma designação vulgar dos que obedecem in­
conscientemente a esta tendencia organica; se a morte
não fosse uma eliminação inevitável, as sociedades
humanas estacionariam pela preponderância dos velhos
com a regressão do seu conservantismo. A mulher
e a criança são um outro factor de regressão ethnica.
Todas as exaltações pietistas vão encontrar na im­
pressionabilidade das mulheres a base da sua expan­
são. Quando no mundo dominavam a civilisação helle-
nica e a clareza racional do direito romano, foi pelo
fervor das mulheres, as agapetas, que o Occidente
regressou deploravelmente aos cultos orgiasticos da
morte do joven-deus allegorisados no Christianismo.
Nas agitações politicas ella tem servido por vezes de
agente de regressão ao communismo das primitivas
associações christãs. Muitas das modas são regressões
a costumes selvagens, como os ornatos dos anneis e
brincos, as ancas simulando a statopigia dos hoten-
(1) Spencer, Principes de Sociologie, i, p. 143,
2

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18 INTR0DUCÇÃ0

totes, ou os cosméticos da tatuagem. Os exemplos


abundam, e ainda no seculo xix vemos os jesuítas
exercerem a alliciação das mulheres na esperança de
por esse meio fazerem regressar a Europa civilisada
ao obscurantismo da theocracia. As crianças pelo
instincto da imitação conservam as praticas que obser­
vam, e pelo extraordinário amor das tradições poé­
ticas fazem reviver o passado, obrigando a repetir
com instancia o conto, a lenda, o mytho incomprehen-
dido, perguntando o porquê d’aquelles actos que se
praticam muitas vezes já sem se lhes ligar um intuito
ou um sentido. Quando nos costumes públicos já um
certo numero de actos se extinguiram, as crianças
ainda regressam a elles, dando-lhes a fórma de jogo,
de parodia, como se observa nos seus combates e
tréguas simuladas, e em certos actos festivos que
coincidem com as epocas religiosas do anno no kalen-
darío ecclesiastico. A criança representa na sociedade
as concepções espontâneas do fetichismo, e esse estado
mental em que os productos da imaginação são toma­
dos como realidades. A criança é depois o homem,
absorvido pela vida pratica, vivendo pelo presente, e
accommodando as cousas ás suas circumstancias, mas
os costumes domésticos sobrevivem na familia nas
gerações novas que vêm despontando. Tal é esse outro
phenomeno ethnico fundamental, a que Tylor chama
as Sobrevivencias. A psychologia das crianças explica
um grande numero de factos ethnologicos; Spencer
apresenta o seguinte principio: «Emquanto o desen­
volvimento mental é atrazado, o espirito não faz senão
receber e repetir; não pode crear, falta-lhe a origi­
nalidade.® (1) Os povos, mesmo os mais atrazados,
comprehendem o valor da tenacidade da memória
infantil no seu aferro pelas tradições; Yarigny, a)
(1) Príncipes de Soáologie, 1.1, p. 114.

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 10
seu estudo Vinte annos mu ilhas Sa
o modo da transmissão tradicional; e insiste em ou­
tro seu escripto mostrando como nas ilhas Havai,
«é uso escolher-se em cada familia uma criança, de
ordinário uma rapariga, á qual se ensinam desde a
tenra edade os cantos dos antepassados. Estes cantos
transmittem-se assim verbalmente, sem serem escri-
ptos.»(l)Santa Rita Durão, no seu poema da Caramurú,
tambem nota um facto analogo nos indigenas do Brazil:
A antiga tradição nunca interrupta,
Em cantigas, que o povo repetia
Desde a edade infantil todos comprehendem,
E que dos paes e mães cantando aprendem.
Pela ethnologia da criança se recompõe os cara­
cteres do homem emocional primitivo; a criança, por
assim dizer, representa na sua evolução òs estados
rudimentares das sociedades mais remotas. Ella con­
serva na sua linguagem as duas fórmas emocionaes
da intonação e da gesticulação; tem um fetichismo
espontâneo no amor pelas cousas inanimadas, sobre­
vivendo n’ella muitos dos caracteres do selvagem.
Spencer observa que o Tupi, quando tropeça em
uma pedra, bate-lhe (2) como vêmos fazer a criança,
que como o Tasmaniano passa do riso ás lagrimas,
ou é incapaz de perseverança, como o Australiano.
O medo que se apossa da criança ao vêr uma pessoa
extranha á familia, ou mesmo a hostilidade contra
outras crianças, representa esse estado de guerra per­
manente das populações atrazadas; para ellas a casa
é o mundo, como para as povoações rudes que expli­
cam o universo pelo limitado ambito que conhecem.
1) Apud Revue iwtemationale, p. 79. (Í883).
2) Príncipes de Sociologies 1 1, p. 8.
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20 INTRODUCÇÃO
É esta tenacidade na conservação tradicional, que
originou esses provérbios, ou synthèses da sabedoria
popular : *0 que o berço dáa tumba
dizem os hespanhoes: v.Mudar costumbre es a par de
muerte.» N’estas condições as sociedades progridem,
transformam-se, e as proprias tradições de oraes pas­
sam a escriptas, ou se fixam pela morphologia artís­
tica ; mas, embora se modifiquem, conservam a sua
primeira fórma emocional na sobrevivência de outras
edades sociaes. 0 que fôra um culto religioso nacio­
nal, uma vez extincta a nacionalidade, sobrevive como
um rito magico, ou como uma superstição, ou ainda
como um jogo infantil ; o que fôra um mytho, uma
explicação subjectiva de um phenomeno cosmico, uma
vez explicado pela sciencia, passa á fórma de uma
metaphora da linguagem, sobrevive como um enigma
popular, ou como um conto maravilhoso.
ás sobrevivencias.— Este phenomeno ethnico, pelo
qual se explicam as creações da arte e da litteratura,
deriva d’esse principio ou lei de evolução, tão evi­
dente em outros phenomenos de ordem cósmica e
biologica. Comte fez sentir o valor philosophico d’este
principio : «A sã theoria da nossa natureza, individual
ou collectiva, demonstra que o curso das nossas trans­
formações não pode nunca constituir senão uma evo­
lução sem comportar nenhuma creação. Este principio
geral é plenamente confirmado pelo conjuncto da apre­
ciação histórica, que descobre sempre as raizes de
cada mutação effectuada até indicar o mais grosseiro
estado primitivo como o esboço rudimentar de todos
os aperfeiçoamentos ulteriores.» (1) Na sua obra A
Civilisação primitiva Tylor deu a esta categoria de
factos, pelos quaes se reconstitue a marcha da civili-
(1) Système de Politique positive, 1.1, p. 106.

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 21
sação, o nome de sobrevinca, (survivais) : «Ura
grande numero de processos, de costumes, de opi­
niões foram transportados pela força do habito para
um estado social différente d’aquelle onde tinham
sido originados, e subsistem desde logo como teste­
munhas e exemplos de um antigo estado moral e
intellectual d’onde um novo saiu.— A conservação dos
velhos usos, só por si, é o indicio da transição dos
tempos que se vão para os tempos que vêm vindo.
— O que as sociedades antigas consideravam como
uma cousa séria, pode acabar por não ser mais do
que um divertimento nas gerações subsequentes, e o
que fôra objecto de crenças convictas pôde acabar por
transmittir-se apenas nas tradições das amas, em
quanto que os hábitos do passado podem transmittir-se
á sociedade nova, ou mesmo tomar outras formas su­
sceptíveis ainda de efficacidade para o bem ou para o
mal.— O estudo do principio de' sobrevivência perde,
importa reconhecel-o, uma grande importância pra­
tica, se se considera que as mais das vezes o que nós
chamamos superstição não é outra cousa mais do que
a sobrevivência de ideias pertencentes a uma socie­
dade extincta; e é isto que permitte á sua mortal
inimiga, a'explicaçâo racional, o atacal-as. Effectiva-
mente, ainda que sejam insignificantes em si uma
multidão de factos de sobrevivência, tal é a utilidade
do seu estudo para descrever o curso do desenvolvi­
mento historico, que só pode dar o sentido da sua
significação, que um ponto vital das investigações
ethnographicas consiste em reconhecer a sua natureza
o mais claramente possível.» (1) D’estes principios
Tylor deduz a seriedade que merece o estudo de cer­
tos jogos, anexins, costumes e superstições populares,
para pelas sobrevivencias recompôr a evolução social
(1) Tylor, La Civilisation primitive, 1.1, p. 19 e 20.

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S'
22 INTRODCCÇÃO
e o sentido originário d’esses fastos. Á sobrevivência
é o facto capital da ethnogenia, pela circumstancia de
resnltar da elaboração social no seu conjuncto, ou como
transformação inconsciente da collectividade. Um jogo,
uma dança popular são quasi sempre o ultimo vestígio
de um culto extincto já desconhecido ; a maior parte
das superstições são a sobrevivência de concepções
de estados mentaes atrazados, ou de formas sociaes
inferiores, ou de religiões decahidas da sua immo-
bilidade canônica, ou de syncretismo de différentes
epocas, crenças e fusão de raças. O facto da substi­
tuição do christianismo aos polytheismos greco-romano
e germânico, deu a sobrevivência de elementos poly-
theistas já transformados no systema da nova religião,
já sendo elaborados nos costumes populares dos
tantas vezes condemnados pelaEgreja. Considera Emile
Bumouf : «nós mesmos observámos na Grecia que
muitos sanctos ou personagens christãos só se succe-
deram aos deuses de outr’ora, por terem nomes simi-
lbantes aos seus ou poderem ser objecto de cultos ana-
logos. Santo HeliaSj succedeu a o Sol ; Sam
Demetrio, a Demeter ou Ceres ; a Santa Virgem á Vir­
gem Minerva, que foi a Aurora, e assim de muitos
outros. Vestígios innumeros de antigos cultos existem
ainda no seio do Christianismo, que nunca pôde apa-
gal-os completamente. » (1) Do kalendario romano
vieram para o catholico as principaes festas, como a
Floralia, as estreias, e muitas das divindades poly-
theistas, como D y o n i s i o E, leutherio e R
de Baccho) festejados em 9 de outubro, ou Santo Âpol-
l i n a r i o , coincidindo com as festas romanas a Apollo;
ou mesmo a personificação das Festas florae et lucae
em Santa Flora e Santa Luzia. Com o polytheismo
germânico dá-se a mesma sobrevivência no Christia-
(i) Science des Religions, p. 75.

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BÀSES DA CRITICA ETHNOLOGICA 23
nismo, com a Arvore Yggdrasil transformada na Ar­
vore do Natal. Egualmente na etymologia das palavras
sobrevivem as concepções primitivas, como nos nomes
de individuos sobrevivem as reminiscências das sobre­
posições de raças em uni mesmo territorio. Todos
empregamos a palavra uspicoamas já ningu
sulta as aves ( avisspicium) para conhecer o fut
a qualquer accidente desgraçado chamamos desastre,
(de dis e aster) mas ninguém no nosso estado de civi-
lisação consulta a boa disposição dos astros; falíamos,
(do latim fabulre)mas não recorremos ás fabulas para
nos entendermos. No Vocabulário portuguez conser­
vam-se palavras de origem germanica e arabe, como
nos nomes individuaes se observa a cobabitação des­
tes dois elementos ethnicos, como por exemplo em
Venegas (de Iben, filho, em arabe, e Egas, em go-
tbico). Nas imprecações religiosas do catholicismo
peninsular sobrevive a invocação a Allah em Oxalá,
(do arabe ins-Âttah, Allah o queira) e no Cancioneiro
da Vaticana ainda se emprega At mezela, (do arabe
Mashallah, Allah o quer). Não accumulamos mais
exemplos, porque toda a ethnologia consiste em re­
stabelecer os antecedentes ethnicos dos costumes. Vico
possuiu a extraordinaria intuição do valor scientifico
d’estes factos fragmentários de sobrevivência: «As
ruinas da antiguidade, inúteis até aqui á sciencia, por­
que ellas ficaram baças, quebradas, deslocadas, pro­
duzirão uma grande luz quando ellas forem polidas,
ajustadas e collocadas no seu logar.» (!) Augusto
Comte, primeiro do que ninguém, alcançou a impor­
tância do processo ethnologico, primeiramente para
introduzir o critério evolutivo na Sociologia, e depois
para garantir as fôrmas das aspirações do progresso:
«Para fundar a verdadeira Sciencia social, bastava
(1) Sciencia nova, p, 91, Trad. franceza.

C ~ ^ t-,r\rs \o O rig in a l fro m ^


D ig it iz e d b y V j O O ^ L C . N E W Y O R K P U B L IC L IB R A R Y
24 INTRODUCÇÃO
estabelecer irrevocavelmente esta theoria ,
combinando com a lei dynamica que a caractérisa
antes de tudo o principio statico que a consolida, e
depois a extensão temporal que a completa.® (1) O
valor d’esta base statica da tradição acha-se formu­
lado por Comte com uma nitidez admiravel : «Mas, a
qualquer gráo a que possa chegar o progresso social,
será sempre de uma importância capital que o homem
não se creia nascido de hontem, e que o conjuncto
das suas instituições e dos seus costumes ligue por
um systema de signaes intellectuaes e materiaes as
suas recordações do passado ás suas aspirações de
um futuro qualquer.» (2) Os investigadores allemães
têm procurado fundar a Sciencia que unifique em um
corpo de doutrina os conhecimentos d’esses vestigios da
antiguidade, preoccupando-se em recompôr o Allgeist
ou o espirito collectivo, e o ou espirito de
um povo (Steinthal); pela sua parte Stuart Mill previa
a formação de uma Ethologia, ou determinação dos
caracteres nacionaes. De facto, além de um fundo
commum que se revela na similaridade de um certo
numero de tradições e de processos mentaes, expli­
cável pelos cruzamentos das raças e pela influencia
constante do meio, existem differenças ethnicas de
povo a povo que vão constituindo a sua individuali­
dade nacional. Os odios locaes e internacionaes, que
se conservam na poesia do povo, a diversidade dos
seus processos technologicos e o antagonismo dê clas­
ses, a variedade das suas danças e instrumentos mú­
sicos, dos trajos e hábitos festinantes, emflm dos
caracteres moraes, são outras tantas expressões deter­
minativas das individualidades nacionaes, que se vão
acccentuar em formas superiores da actividade histo-
(d) Système de Politique positive, 1.1, p. 35. N’esta primeira
concepção ficou Spencer.
(2) Philosophie positive, condensée par Miss Martineau, u, 166.

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 25
rica, das creações da Arte e da Litteratura. Compre-
hende-se como alguns espíritos eminentes cahiram na
illusão de consjderarem esta somma de factos concre­
tos como constituindo o campo da Sociologia, quando
esta sciencia não pode elevar-se ao seu caracter geral
senão pelo estabelecimento de previsões a partir das
civilisações mais altas. De facto a par da Sociologia
deve organisar-se uma sciencia descriptiva coorde­
nando esta enorme somma de factos.
Á falta de um titulo, Vico deu o nome de Sciencia
Nova ao conhecimento derivado dos vestigos tradicio-
naes dos povos explicando as suas instituições e his­
toria. Esta sciencia teve um desenvolvimento crescente,
mas sem plano synthetico; Grimm estudou os
jurídicos conservados nos velhos documentos germâ­
nicos e nos costumes, Herbart sentiu a necessidade
de estudar a psychologia no povo, e Waitz continuou
este novo critério nas differentes raças humanas toma­
das em conjuncto; as litteraturas populares foram
estudadas como base tradicional das grandes obras
primas, como a Divina Comedia, o Decameron, as Tra­
gédias de Shakespeare e o Fausto; os estudos da
Anthropologia procuraram differenciações dos povos
nos costumes ou modos da sua actividade. As super­
stições populares vieram completar os processos da
Sciencia das religiões; e a historia comparativa pro­
curou as origens consuetudinarias das instituições
sociaes e políticas. D’estas differentes contribuições
isoladas nasceu a necessidade de dar-lhes um nome
complexo que as abrangesse, formando um corpo de
doutrina; propoz-se o nome de Demopsychologia, que
se não acceitou, por incompleto, por abranger somente
um aspecto dos phenomenos sensoriaes e racionaes;
rm 1846 Williams Thoms introduziu a designação de
Folk-Lore (isto é, saber do povo) para compréhender
esta ordem de phenomenos, vindo em 1878 este nome

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26 INTRODUCÇlO
a servir de titulo a uma associação destinada á «con­
servação e publicação das tradições populares, bala­
das, provérbios locaes, dictos, superstições e antigos
costumes, e o mais que se refira a estes assumptos.*
Como titulo de uma associação ingleza pode accei-
tar-se; como designação scientifica é imperfeita, por­
que não exprime senão um lado de tão complicados
problemas, o que se refere ao saber do povo.
É preciso, antes de tudo, coordenar todos esses phe-
nomenos, tomando o bomem nas manifestações do seu
sêr: a activdae, o sentimento, e a racionalidade.
Assim a este conjuncto de phenomenos daríamos o
nome de Demotica, dividida nas seguintes partes:
I. Ethnologia e Demographia.
II. Demopsychologia e Hierologia.
III. Nacionalitteratura e Ethologia.
Esta sciencia descriptiva comprehende pois na sua
primeira parte, a Paleontologia humana, tal como a
têm desenvolvido os geologos e os anthropologistas
(Lyell, Broca, Quatrefages, Hamy, Huxley); e a Ethno-
graphia dos costumes, instituições e formas de acti­
vidade (Lubbock, Tylor, Baschoffen, Spencer, Bastiat,
Wundt, Mac Lennan, Lavelleye). O estudo dos movi­
mentos inconscientes passados na multidão, taes como
a estatística da natalidade, estaturas, casamentos, cri­
mes e mortalidade, formam a Demographia, iniciada
por Quetelet, e continuada por Bertillon.
A segunda parte da Demotica será constituída pelo
estudo da psychologia anonyma ou collectiva, a que já
se dá o nome de Demopsychologia, e pelo estudo das
Religiões na sua forma de mythos, cultos, theologias
e superstições com o nome de Hierologia. O critério
scientifico moderno, ampliando as leis cosmologicas e
biologicas aos phenomenos sociaes, adquire uma nova
capacidade para comprehender o estado mental do
bomem primitivo, que pelo seu syncretismo espontâneo

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 27
explicava os phenomenos do inundo physico e orgâ­
nico pelo confronto com a sua individualidade. O que
era n’esse estado emocional uma confusão, pela im­
possibilidade de relacionar os elementos do conheci­
mento, é hoje uma synthese coordenadora. A Demopsy-
chologia pode já esboçar os contornos da historia ou
evolução mental da Humanidade; esses contornos des­
tacam-se nas seguintes epocas: As impressões do
mundo exterior, pela sua intensidade e complexidade,
não são elaboradas subjectivamente. Este periodo de
inconsciência é representado pelos selvagens actuaes
mais degradados e pelo estado pathologico da idiotia.
Em uma segunda epoca as impressões são excedidas
pela elaboração subjectiva, e portanto a realidade é
substituída pela visualidade. Este estado é represen­
tado pelas organisações sociaes theocraticas, pela con­
cepção das theogonias e theologias primitivas, e ainda
pelos metaphysicos e hallucinados. Comte define niti­
damente esta situação mental: «O pensador fetichista,
que não sabe distinguir entre a actividade e a vida,
acha-se menos afastado da verdade scientifica do que
o sonhador theologo, que apesar da evidencia consi­
dera a matéria como passiva. Um observa, sem duvida,
de uma maneira pouco profunda, mas o outro concede
á imaginação uma influencia exorbitante.» (1) E apre­
ciando a vacuidade das especulações metaphysicas,
accrescenta Comte: «Aos olhos de um verdadeiro philo-
sopho, a ingênua ignorancia que distingue sob este
aspecto (o fetichismo) os humildes pensadores da
Africa central é mais estimável mesmo em racionali­
dade, do que o pomposo, palavreado dos soberbos dou­
tores germânicos.» (2) É sobre esta base de positi-
vidade mental das concepções fetichistas na sua apro-
(1) Systême de Politique positive, t. n, p. 85,
(2) Ibidem, t ui, p. 99.

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28 INTRODUCÇÃO
ximação geral da realidade, que assenta esse principio,
descoberto pela intuição genial de Jacob Grimm, de
que nas tradições populares não existe mentira. O
nosso seculo vae comprehendendo com uma surpre-
hendente lucidez a psycbologia da criança e do sel­
vagem, e interpreta com um sentimento de verdade
os mais complicados mythos e religiões antigas e as
manifestações da arte rudimentar, ao passo que o que
se observa nos passados metaphysicos é uma severi­
dade brutal dos pedagogos para com as crianças, uma
intolerância da parte dos theologos para com as outras
religiões, e um desdem dos rhetoricos para com as
producções estheticas que não são greco-romanas.
A terceira epoca da nossa evolução mental, repre­
sentada pela actividade scientificai distingue-se pelo
estabelecimento entre as impressões objectivas e a
elaboração subjectiva de uma relação critica que nos
aproxima da realidade, por onde se verifica a noção
abstracta. A leidostres estadefinida po
dà-nos o methodo para system atisar os factos da Demo-
psychologia, em que se distinguem Lazarus, Waitz e
Gerland.
A Hierologia estuda o grande systema das relações
subjectivas que derivam da noção de causalidade, e
que recebem a forma dos mythos, das praticas cul-
tuaes e da relação entre a vida domestica e a exis­
tência publica. O homem faz o Deus á sua imagem,
e o estado social organisa-se segundo a concepção que
o homem faz da divindade. Em uma sociedade rudi­
mentar, em que prepondera o regimen da maternidade,
o Deus é um fetiche-feminino, a Terra-Mãe, a Virgem-
Meretrix, que tira de si mesmo os Deuses e todas as
cousas creadas. Em uma sociedade em que prepon­
dera o regimen da paternidade, patriarchas, eupatri-
das e patrícios, o deus é masculino, creando tudo pela
sua mão, que se representa como um symbolo phal-

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 29
lico do lingam. Quando vem a prevalecer o regimen
familista, a mulher não perde o seu logar, se o filho
entra n’este agrupamento, formando a trindade domes­
tica, sobre cujo typo se organisa a hierarchia divina,
a qual se renova pelas incarnações ou avatar. Depois
da vida domestica, temos a vida social influindo na
concepção religiosa.
As formas da actividade do homem, a natureza do
seu trabalho determinam a morphologia das divinda­
des. Em uma sociedade agricola, a Terra é a Deusa
Mãe, Demeter,e todos os accessorios da terra, os
montes, as cavernas, os charcos e os arvoredos são
os objectos do culto ; a terra é concebida como um
utero, o kteis fecundo, e o seu culto toma o caracter
da prostituição sagrada, ou o hetairismo social. Sacri­
fica-se ás divindades femininas o adolescente, o macho
como o objecto mais propiciatorio. Nos costumes mo­
dernos, especialmente nas superstições conservam-se
numerosos vestígios do primitivo hetairismo, como no
culto das cavernas e montanhas e em muitas formas
do marianismo. A actividade agricola influe sobre a
estabilidade civil, como o descobriu Turgot, (1) sendo
assim que as sociedades attingiram o regimen indu­
strial ; a necessidade da vida nomada imposta pelo
estado pastoral, levava as raças a um isolamento, e
a uma inferioridade physica e moral. As raças pasto-
raes não conheceram as relações definidas da família
nem da propriedade, não se affeiçoavam pela econo­
mia, não creavam força pela industria, e errantes de
região em região, tornavam-se odiadas pela pilha­
gem, pelas doenças physicas como a lepra, e pelas
monstruosidades dos costumes de incesto e bestiali­
dade. Em uma sociedade pastoral prepondera o culto
siderico, a idealisação dos phenomenos da luz, ado-
(1) Obras, t. ii, p. 599. Ed. 1844.

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30 INTRODUCÇÃO

rando nos paizes quentes a Lua e nas regiões frias


o Sol, formas que nos apparecem muitas vezes sobre­
postas, e que ainda modernamente subsistem no ka-
lendario catholico nos dois computos lunar e solar
annual. Cria-se o culto das divindades malévolas das
trevas e dos ventos, e o Fogo como incarnação da
luz celeste torna-se o mediador, o Agnis, o Mithra, o
Christo, cujas allegorias moraes e abstractas acompa­
nham as phases superiores da civilisação. O estado
pastoral foi desapparecendo diante da superioridade
do regimen industrial, e com elle o siderismo decaiu
transformando-se entre um grande numero de povos
em Epopêas solares.
O estabelecimento da differenciação dos caracteres
nacionaes, e as origens das creações litterarias e ar­
tísticas como manifestação d’esse individualismo social,
formam a ultima parte da Demotica. Os modernos tra­
balhos de Freeman, de Fustel de Coulanges, estabe­
lecendo o critério comparativo no estudo das institui- i
ções têm determinado de um modo muito claro os
typos primários da organisação social. Existe a socie­
dade baseada sobre o facto do nascimento, (de
nação) e a que tira a sua cohesão da estabilidade ter­
ritorial {Demos, a planicie) ; estes dois typos, o Fami-
lismo e o Cantonalismo, desdobram-se diversamente,
dando fórma ás mais complicadas instituições. No Fa-
milismo, apparece primeiro a organisação da Tribu, i
em que não ha individualidade, porque os filhos, os !
adhérentes, e os servos são eguaes sob a auctoridade
do patriarcha, que funda o seu poder na veneração
á edade. Do poder do patriarcha, provém a Realeza,
na sua forma hereditária, em que o poder se funda
na veneração do nascimento, como nas aristocracias,
ou tambem na forma electiva ou militar, em que o
poder vem da veneração pela força. Da eleição dos
chefes militares, deriva essa forma de independencia

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 31
senhorial do Feudalismo, que vem mais tarde a extin-
guir-se pelo conflicto com os reis dynasticos que fixa­
ram o poder da eleição na sua familia. Da outra forma
social, o Cantonalismo, deriva-se a Cidade, na sua
fórma de Município, em que se destaca o individuo
como cidadão, exercendo a sua liberdade civil pelo
suffragio, e desenvolvendo-se n’esse concurso activo
e esplendido que se chama Civilisação. O conjuncto
de cidades, prevalecendo o interesse local a par do
interesse geral, vem a produzir as Republicas, as Fe­
derações, já na forma completa de unificação de Nação,
já no accordo voluntário de Hegemonias.
É no conflicto d’estes diversos elementos, conheci­
dos pelos nomes de Monarchia e Democracia, que se
destacam as formas das nacionalidades modernas, con­
forme o estado social primitivo das raças que se fusio­
naram ou se invadiram. Nos costumes locaes desta­
cam-se muitas vezes estas diiferenças, ainda nos factos
mais accidentaes. Firmin Caballero recompõe os typos
diversos das populações primitivas da península his­
pânica pelos seus instrumentos músicos e hábitos fes-
tinantes, processo que conduz á creação da Naciona-
litteratura :
«A Hespanha, composta de gentes tão diversas, ne­
cessariamente ha de apresentar uma variedade de
ç a s . , b a i l e s , c a n ç õ e s ,instrumentos músicos e jogo
d’elles em harmonia com os distinctivos provinciaes.
Um andaluz passa horas esquecidas cantando a cafía
ou a rondefía, estimulado com alguns copos de man-
zanilla; ao passo que um navarro exercita a sua forte
musculatura na pelota, ou descansa jogando o mus
entre algumas pintas do neto. Uma salamanquina não
pode suster os pés ouvindo as habas verdes, ao passo
que lhe parece fria e sem alma a que encanta
a gallega. Uma manchega ficará uma noite inteira can­
tando seguidillas ao compasso das castaüueüas, e do

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32 INTRODUCÇÂO
guitarrillo, emquanto a fria byscainha se contenta com
bailar algum zorcico ao monotono ruido do tamboril.
Em Castella eram frequentes as dansas de mouros e
ciiristãos, e os compassados que os valencia-
nos substituem com saltos ageis e provas de equilí­
brio. Em umas partes ao som da dulzaina, em outras
ao da gaita zamorana ou da gallega em Galliza, e Astu-
rias ao da zampofía, nos bairros de Madrid ao da
d u r r i a , e em muitas províncias ao da guitarra ou vihuel
que temos apresentado á Europa para sua admiração,
se entôam alegres cantares de poesia popular inimi­
tável, e com especialidade nos paizes onde acompa­
nham os rudes pbrém vivos instrumentos da
reta e sonajas. Os serranos costumam entregar-se ao
jogo de bolas; os manchegos ao boleo de bolas de ferro,
que fazem girar muito longe pelos seus caminhos
planos; e em muitas partes preferem o tiro da barra.
A jota é a aria mais variada das nossas canções vul­
gares, e com os nomes de
valenciana e estudantina se ouve por toda a parte de
mil maneiras levando a animação aos concorrentes;
porém commummente a acompanham com bolero e o
fandango, que como recordação histórica se conserva
nos intervallos theatraes. Dos jogos de naipes, o supra­
citado mus, o lute, o truque, a flor e a brisca são os
mais generalisados entre o povo. Porém a diversão
nacional por excellencia são as corridas de touros, para
as quaes se tem construído circos ou praças de pro-
posito nas povoações principaes do interior e do meio-
dia, que é aonde mais entjiusiasmo se conserva por
estas festas arabes.» (1)
As origens populares e tradicionaes das fôrmas
litterarias é que constituem o objecto da Nacionalitte-
(i) Firmin Caballero, Manual geographico-admmistrativo de
la monarquia espanola, p. 187. Madrid, 1844.

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 33
ratnra. Existem fórmas geraes a todos os povos, taes
como o lyrismo, a epopêa e o drama, bases univer-
saes das mais variadas e remotas litteraturas. A ela­
boração dos poemas homéricos comprehende-se e
explica-se hoje pelo estudo dos cantos populares, como
o presentiu Wolf, e Lang vae determinar elementos
populares que ainda subsistem na tradição e que são o
nucleo primitivo de episodios homéricos. 06 poemas
indianos apresentam as mesmas phases de elabora­
ção, como nota Emilio Burnouf, comparando os Aédos
da Grecia com os Sutas da índia, celebrando á meza
dos príncipes nos banquetes as suas façanhas. Os
cantos lyricos fixam-se, tomando por lypo as fórmas
populares dos cantos das vindimas, dos noivados e
das tristezas funeraes, os Linos, Iálmos, o Paean, os
Hymeneos e os Threnos. Embora se não observe esta
continuidade e successão organica em todas as litte­
raturas, por effeito da influencia de outras mais adian­
tadas, comtudo existem os elementos mesmo nos
povos que mais têm esquecido as suas tradições. A
creação do genero dramatico é a que mais se apro­
xima das suas fontes populares; na Grecia o drama
sáe da fórma syncretica do primeiramente
destacando-se o bailado, depois a musica, conservando
apenas as neumas, mais tarde destacando-se uma
voz, e por fim estabelecendo-se o dialogo. Diz Stuart
Mill: os interesses separam e os sentimentos unifi­
cam; é nos productos da Nacionalitteratura que se
observam profundas similaridades de themas tradicio-
naes e de fórmas strophicas entre os povos ainda os
mais separados. Os modernos estudos da Novellistica,
iniciados por Grimm, Schmidt, Benfey e Khoeller, têm
determinado a existencia dos mesmos assumptos tra-
dicionaes desde as raças nómadas da alta Asia até ao
extremo occidente europeu; Nigra, Wolf e Du Puy-
maigre têm determinado um grande numero de tradi-
3
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34 INTRODUCÇÃO
ções epicas, communsáGrecia moderna, Italia, França,
Hespanha e Portugal; Paul Meyer, Liebrecht e Main-
zer notam egual similaridade na forma lyrica das bai­
ladas, pastorellas e serranilbas da epoca provençal.
É assim que a Nacionalitteratura nos conduz á unidade
de um fundo ethnico, commum na civilisação Occiden­
tal. Torna-se aqui applicavel o principio de Tylor, da
necessidade de um relance sobre as divisões da es-
pecie humana. A occupação das Gallias pelas raças
descriptas por Cesar, Pomponio Mela e Ammiano Mar-
cellino, a occupação das libas britannicas pelas raças
descriptas por Tacito, e as da Península hispanica
descriptas por Strabão e Stephano de Byzancio, redu­
zem-se a tres typos similhantes entre si, o que nos
explica a conformidade de certas fórmas da civilisa­
ção entre os povos do occidente. O mais antigo de
todos é o representado pelo elemento aquitanico ou
ibérico, depois o proto-celtico, ligurico ou mesmo pe-
lasgico, e por ultimo os emigrantes aryanos, que só
deixaram intacto «o triângulo comprehendido entre os
Pyreneos, o Garonna e o golfo da Gasconha.» (1)
Este facto é que nos explica a narrativa de Strabão,
pela qual os Aquitanos formaram pela sua lingua e
caracteres physicos um grupo completamente á parte
dos outros povos da Gallia, e muito mais proximo do
Ibero do que do Gaulez; (2) explica-nos porque fórma
«a civilisação italica penetrou emLyon, Autun, Tolosa,
Bordeos, em quasi toda a antiga Lyoneza; (3) como
os Ligurios se estenderam pelas GalUas, Hespanha,
Italia e libas britannicas, confundidos pelos antigos
com os Iberos. (4) Este rapido prospecto anthropolo-
gico estabelece um meio de coordenação para as mani-
(1) Broca, Mém. d’A1rUhoplgie .1, p. 395.
(2) Ibidem,1 .1, p. 405.
(3) Belloguet, Èthnogénie gaulot iu, p
(4) Ibidem, t. ui, p. 33 e 45.

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BASES
t DA CRITICA ETHNOLOGICA 3 ti
festações as mais desconnexas dos costumes, em
especial dos povos do occidente; muitos jogos infan­
tis, restos de cultos decahidos em superstições popu­
lares, vestígios de mythos conservados nas festas pu­
blicas , persistem como documentos d’estas varias sobre­
posições ethnicas. Ha aqui a estabelecer duas syntheses,
unta consciente, que é a verdadeira coordenação da
historia moderna da Europa, e outra espontanea, que
é o consensus em que se fundaram as varias phases
da civilisação de que as modernas sociedades da Eu­
ropa são orgãos solidários. Esboçaremos rapidamente
cada uma d’essas syntheses; na sua fôrma histó­
rica, a synthese que se caracterisa pela unidade da Ci­
vilisação Occidental, resume-se nos seguintes perío­
dos : 1.° M
editerâneo, no qual o Egypto propaga
para a Grecia a cultura affectiva, e os Phenicios
iniciam na Grecia a concorrência activa do commercio
e da navegação ; 2.° Mediterraneo-europeu, contrapondo
às civilisações isoladas o universalismo, já no helle-
nismo que a Grecia propaga pela synthese especula­
tiva dos seus artistas, litteratos e philosophos, já pela
incorporação romana dos povos barbaros; 3.° no pe­
ríodo athlantico, a França, representando a entrada d OS
germanos na occidentalidade, continúa a hegemonia
romana, e dá à Europa uma unidade de acção nas Cru­
zadas, e ao sentimento uma nova poesia das canções
e das gestas; Portugal e a Hespanha pelas grandes
navegações e colonisações dão pelo sentimento nacio­
nal a cohesão a esse cosmopolitismo, que é a manifes­
tação da ubiquidade humana, e que nos leva á posse
do planeta. Como se chegou a esta altura surprehen-
dente? Nos costumes, crenças e tradições populares
devem-se conservar os recursos que nos fizeram trans­
itar do barbarismo para a civilisação. O ethnologista,
coordenando esses elementos fragmentários, deve ir
organisando o consensus que dirigiu cada epoca ou

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36 INTRODUCÇÂO
phase da humanidade, como disse Comte: «o homem
não póde dispensar-se de uma synthese qualquer para
coordenar seus pensamentos de maneira a dirigir
a sua conducta.» (1) Tal é o valor d’este consensus,
que vae tomando diversas fôrmas; os gráos por onde
se elevam as sociedades consistem na modificação dos
motivos que as determinam. O pensamento de Comte
esclarece-nos: «O principal artificio do aperfeiçoamento
humano consiste em diminuir a indecisão, a inconse­
quência e a divergência dos nossos desígnios, subor­
dinando a motivos exteriores todos aquelles nossos
hábitos intellectuaes, moraes e práticos, que emanaram
primitivamente de origens puramente interiores.» (2)
Vontade ou acção, dirigida pelas emoções sentimen-
taes ou pelas noções da intellectualidade, eis os mo­
dos de manifestação do nosso sêr individual, tomando
o seu maior relêvo na collectividade social. É por essa
origem psychologica, que as sociedades se não dis­
pensam de uma synthese, que toma necessariamente
com a realisação do progresso a fôrma activa, affe-
ctiva ou especulativa. Eis a base fundamental para
uma boa classificação na historia dos costumes, das
crenças e tradições de qualquer povo. Comte accen-
tua o caracter de cada uma d’estas syntheses: «A
vida pratica dispõe mais ao amor do que a vida theo-
rica, porque o concurso mostra-se n’ella indispensável.
— Por uma reacção moral mais intima e mais directa,
a actividade excita a expansão das affeições sympa-
thicas, procurando-lhes uma satisfação continua.» (3)
A existencia da Synthese activa verifica-se nas civili-
sações primitivas baseadas sobre o empirismo das
artes industriaes; o proletariado nas sociedades mo­
dernas, elevado pela dignidade do trabalho, está orga-
(1) Systéme de Politique positive, t. n. p. 80.
(2) Ibidem, 1.1, p. 28.
(3) Ibidem, t u, p. 44.

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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 37
nisando a sua synthese activa pela democracia. A soli­
dariedade humana, despertada pela necessidade do
concurso, só podia generalisar-se pelo sentimento que
relacionou a vida domestica com a vida publica; essa
relacionação fez-se pelas crenças. Diz Comte: «A vida
publica não podia realmente desenvolver-se senão sob
o theologismo.» (1) Além d’isso o sentimento torna-se o
primeiro estimulo das reflexões moraes: «o impulso
de uma paixão qualquer é mesmo indispensável á nossa
intelligencia para determinar e sustentar quasi todos
os seus esforços.» (2) Toda a poesia popular, ligada
aos actos da sua existencia domestica e civil, é a ex­
pressão d’esta synthese affectiva, que conduz as col-
lectividades humanas a esse fundo de bom senso ou
sabedoria contido nos seus provérbios e observações
moraes. Comte caracterisa com segurança esta base
de razão em que assentam as instituições humanas:
«Máo grado as pretensões doutoraes de uma orgulhosa
philosophia, as nossas principaes instituições são sem­
pre essencialmente devidas á razão commum, guiada
pelas ingénuas crenças, que só podem dissipar o nosso
torpor inicial.» (3) Taes são os princípios que nos diri­
giram na formação da nossa ethnogenia portugueza,
definindo-nos a área dentro da qual podemos exercer
o methodo comparativo na interpretação de cada facto
isolado, e no modo do seu agrupamento systematico,
pelo qual se conheça a evolução da existencia com­
plexa de um povo.
(1) Systême de Politique positive, t. n, p. 86.
(2) Ibidem1., 1, p. 17.
(3) Ibidem, t n, p. 93.

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LIYRO I
COSTUMES E VIDA DOMESTICA

CAPITULO I
Persistência dos typos anthropologicos, determinada
pelos costumes populares
\
Como as observações anthropologicas estabeleceram o facto da
persistência histórica dos tyoos das raças. — Feições varia­
das do portuguez, coincidindo com costumes peculiares de
raças primitivas.—Costumes e tradições da epoca ante-his-
torica em Portugal.— As aversões populares ao typo ruivo,
— As hostilidades entre o habitante da montanha e o ribei­
rinho.— Caracteres anthropologicos do pé pequeno e nariz
aquilino; o orgulho nacional e o amor da novidade.—Sepa­
ração de duas raças em Portugal, segundo os viajantes estran­
geiros.— Preponderância do genio imitativo e pequena capa­
cidade especulativa.—Successão das raças históricas no solo
hispânico, e persistência dos seus caracteres, segundo a lei
physiologica de Müller.—Creação completa de um typo na­
cional ou Mo8arabe.—Causas da differenciação entre Portu­
gal e Hespanha, e da similaridade dos seus costumes.
Quando se observam os traços variadíssimos da
physionomia do povo portuguez, quando nas exposi­
ções de retratos das officinas photographicas se con­
templa um sem numero de caras, quasi que se podia
escolher uma amostra bem característica de typos
anthropologicos os mais preponderantes e bem accen-
tuados da humanidade. Ha caras com um prognatismo

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40 LIVRO I, CAPITULO I
singular, e com depressões frontaes, que lembram o
homem pre-historico ; outras têm proeminências ma­
lares e disposição obliqua das palpebras, que lembram
a raça mongolica ; outras o traço fino e perfeito do
ária, jà com os cabellos pretos e olhos castanhos, já
com os olhos azues e cabellos louros ; uns são enxu­
tos de carnes, com o cabello crespo ou curto e negro,
com barba lampilha, lembrando o typo berber; ás
vezes a côr da pelle toma uma cambiante bronzeada
clara do typo fullah ; um tem a estatura alentada dos
homens do norte como o antigo germano, outro a
obesidade do turco, outro a estatura meã do mouro,
outro a côr ruiva dos cabellos e barba como o alano
ou o scytha. Parece-nos uma feira dos différentes povos
da terra, e longo tempo nos foi impossivel explicar
racionalmente a persistência de typos tão variados,
pela influencia de estudos exclusivamente historicos. As
ideias fundamentaes com que em 1829 W. F. Edwards
estabeleceu as relações entre a Historia e a Anthro-
pologia, é que nos puzeram no caminho de compre-
hender o motivo do encontro em um mesmo solo d’esta
multiplicidade de typos. Diz o notável anthropologista :
«Em Historia, quando um povo é conquistado, quando
perde a sua independencia e não fórma já uma na­
ção, elle deixou de existir; e n’estas revoluções polí­
ticas como nos cataclysmos do antigo mundo, julgar-
se-hia que cada epoca desastrosa fez desapparecer as
raças que tinham subsistido até então. Porém, um
outro ramo de conhecimentos, fundado em nossos dias,
vem rectificar estas falsas impressões.» (1) Edwards
justifica esta afiirmação importante pelos phenomenos
da linguistica, em que pelas línguas actuaes se remonta
ás linguas antigas de que ellas derivam. Não podendo
acompanhar aqui as provas accumuladas pelo natura-
(1) Des caracteres physiologiques des , p. 6.

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PERSISTÊNCIA DOS TTPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 41
lista, consignamos a conclusão admittida geralmente
pelos mais eminentes anthropologistas: «Os princi-
paes caracteres physicos de um povo podem conser­
var-se através de uma longa serie de séculos em uma
parte da população, apesar da influencia do clima, da
mistura das raças, das invasões estrangeiras e dos
progressos da civilisação.» (1) Na applicação d’este
principio Edwards é ainda mais explicito: «Devemos
pois esperar o encontrar nas nações modernas algu­
mas cambiantes quasi, e em uma proporção maior
ou menor, os traços que as distinguiam na epoca em
que a historia nos ensina a conhecel-as.' Nós temos
visto que, se a accessão de varios povos multiplica os
typos, ella não os confunde, o seu numero augmenta,
não só por aquelles que estes povos trazem, como
pelos que criam fusionando-se; porém elles deixam
subsistir os antigos, restringindo-os comludo na razão
da extensão que tomam as raças intermediárias.» A
multiplicidade dos typos physionomicos portuguezes,
a que acima alludimos, deixa de ser uma miragem da
imaginação, e corresponde na sua manifestação mais
geral ao facto historico do grande numero de raças
que passaram ou se estabeleceram no solo da penín­
sula hispanica e que nunca se extinguiram totalmente.
Isto concorda com a ideia de Edwards, que este pheno-
meno da persistência dos typos só pertence á grande
massa ou multidão. Na pequena faixa territorial em
que se fórma o typo portuguez existem vestígios de
todas essas raças, desde o homem da edade de bronze
ou o Ibero até aos typos mais pronunciados dos ra­
mos áricos europeus. (2) Deve ser pois a serie da
sua successão o meio de organisar a critica compa-
(1) Descaracteres, etc., p. 37.
(2) Esta successão de raças jã foi por nós tratada sob o ti­
tulo de Elementos daNacionalidade portuguesa, na
Estudos livres, onde occupa 150 paginas compactas.

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42 LIYRO I, CAPITULO I

rativa dos costumes, aproximando-os como persistên­


cias dos costumes descriptos como pertencentes a
algumas d’essas raças que aqui estacionaram. Â raça
ante-historica da epoca miocene, conhecida pelos silex
talhados da Otta, base do Monte Redondo, apparece
nas mesmas condições em Thernay, em Monte Aperti
(Toscana) e na Perusia (Umbria); não seremos exa­
gerados, se no confronto dos costumes procurarmos
as analogias entre os povos occidentaes, partindo para
a conclusão da sua unidade primitiva. Sobre este fundo
autochtone, apparecem-nos as tres raças meridionaes,
communs á Italia, Hespanha, Gallias e Bretanha; uma
d’essas é a raça dolichocephala, achada perto de Salva-
terra de Mugem, e caracterisada pelo craneo basco
dos arredores de Cambo. Esta primeira raça, constru-
ctora das Antas (Dolmens) da Beira e do Alemtejo,
assim como na sua fórma craneana apresenta uma
notável similaridade com o craneo berber, tambem
nas suas construcções, como os Dolmens de Antequera,
(Malaga) apresenta analogias com outras de Africa.
Huxley considerava esta raça, que ao sul da Europa
precedeu os Celtas, como sendo dos Esquimáos: «Os
habitantes primitivos da edade de pedra no occidente
pertencem á raça dos Esquimáos: a mesma pequeneza
de mão, os mesmos costumes, utensilios, armas, de­
senhos sobresaemna epoca dos nossosmamuths...»(l)
Outros, como Arndt e Rask, consideram-na como fin-
nica. A circumstancia dos caracteres analogos aos
berberes e aos monumentos da Africa não inhibe de
acceitar que além d’este elemento que desceu do norte
da Europa, um ramo do mesmo povo, atravessando
a Africa, como se deprehende das construcções lacus­
tres, se fixou na Europa meridional. Se o elemento
finnico serve para fixar os limites da comparação, o
(1) Ap. Belloguet, Ethnogénie gauloise, t. n, p. 165, not. 3.

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PERSISTÊNCIA DOS TTPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 43
elemento fullah está indicado como o outro extremo
para recompôr a raça primitiva, que se estabelece
antes dos Árias no occidente. Diz Anselmo de Andrade:
«nos lagos de Tshadd e de Makrya (Africa) nas mar­
gens do Zambeze e do Niger e na costa dos Escravos,
é certo haver cabanas lacustres que reproduzem exa­
ctamente as pre-historicas da Europa.» (1) Qual esse
povo que atravessa a Africa com os recursos da civi-
lisação lacustre? A palavra Fulah e Fuleh significa
branco, e «em duvida resulta este nome do cruza­
mento do elemento proveniente da Asia meridional
com o elemento indigena das ilhas oceanicas, vindo
esta raça mixta a ser a que iniciou no occidente euro­
peu as habitações lacustres, e o culto lunar, que per­
siste nas superstições populares. Esbocemos agora
alguns contornos dos costumes. Os Esquimáos dão
aos seus barcos o nome de kajak, que entre nós per­
siste na fórma de cahique,usam a tatu
palmente as mulheres, da mesma fórma que em Por­
tugal as meretrizes ; usam os amuletos, taes como no
nosso povo os signos-saimões, figas, bolsas com obje­
ctos ou relíquias de pedra de ára, fitas ; as supersti­
ções das almas penadas, de ter alma de um defuncto
em si, a crença na caça mysteriosa por um espirito,
(Inua do inverno) os loucos com caracter sagrado, as
festas de Julen ao mesmo phenomeno solar da festa
de Sam João, são factos ethnicos que sobrevivem no
povo portuguez, como entre os Scandinavos e Ger­
manos, e que se acham em uma camada mais remota
de que os Esquimáos são os representantes. (2) Na
linguagem popular, como documento ethnico, subsi­
stem ás vezes referencias a estados sociaes extinctos ;
diz um anexim portuguez : Quem quer a bolota é que
(1) As Populações lacustres', p. 37. Lisboa, 1882.
(2) Morillot, Mythologie ét Legendes des Esquimaux, p. 244,
250, 262, 268. (Actes de la Société de t. iv. (1877)
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trepa, o qual com certeza se refere ao tempo em que


o homem se alimentava com bolota doce (baianos)
antes da cultura dos cereaes ter sido introduzida na
Europa pela raça asiatica dos lacustres. Os primitivos
Pelasgos alimentavam-se tambem com a bolota doce
antes da cultura cerealífera. (1 ) Ainda hoje no Alem-
tejo come-se a bolota ou landra torrada, mas não pelo
motivo porque a comem os Yezidis da vertente Occi­
dental dos montes Sindjar nas crises de fome. As tra­
dições da epoca lacustre apparecem em Portugal, mas
já desvairadas pelas interpretações religiosas de cida­
des subvertidas por castigo do céo; a lenda gallega da
cidade de Valverde, localisada pela tradição na lagoa
do Carregai, na de Doninos, e na de Riega, não é
outra cousa senão a reminiscência das povoações la­
custres, como o entende Murguia. (2) Nos Contos popu­
lares portuguezes é frequente o thema de lagos que
ficam depois da ruina de palacios ou castellos.
Parece-nos que em Portugal se estabeleceu uma
certa differenciação entre estas duas raças primor-
diaes, a que desce do norte da Europa, e a que vem
da Africa; na zona galleziana, e em especial no Minho
as hachas de bronze são muito aperfeiçoadas, com
anneis e meia canna na parte superior, porém no
Alemtejo as hachas são simples e no Algarve extre­
mamente raras. Esta differenciação prolonga-se com
os tempos, e os viajantes estrangeiros notam-na; lê-se
na Viagem do Duque de Chatelet (Desateux): «Ha to­
davia entre a capital e o norte d’este reino uma diffe-
rença notável. Nas províncias septentrionaes os homens
não são tão trigueiros nem tão feios; são mais fran­
cos e mais tractaveis na sociedade, muito mais valen­
tes e mais laboriosos; porém esta differença dá-se
(1) Maury, Hist. desReligions de la Grèce antique, 1.1, p. ti.
(2) Anselmo de Andrade, op. cit., p. 17.

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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 4 5
egualmente nas mulheres; são muito mais brancas
do que as do sul.» Rackzynscki tambem notou esta diffe-
renciação em quanto ao gosto artístico e á capaci­
dade architectonica nas províncias do norte. Nos ane-
xins populares ainda se conserva a aversão ao typo
ruivo, o qual entre os povos germânicos é conside­
rado como um vestigio scythico:
— Barba ruiva Home’ de barba ruiva
De longe a saúda. Uma faz, outra cuida.
— Ruço de má pello,
De má casta
£ má’ cabello.
Esta mesma antipathia de raça se encontra entre
os Egypcios e os Israelitas para com os typos de
cabellos ruivos; árias e semitas detestavam essa raça
inferior que os precedeu na Historia. O conflicto entre
as duas raças tornou-se permanente, accentuando-se
na lucta entre o montanhez e o habitante da planície;
diz Strabão(l): «sempre na verdade viveram em guer­
ras ou entre si, ou com os seus vizinhos além do Téjo,
até que os Romanos puzeram fim a este estado de
cousas, fazendo descer os povos da montanha para a
planicie, e reduzindo a maior parte das suas cidades
a simples burgos, fundando ao mesmo tempo algumas
coíonias entre elles. Foram os serranos, como facil­
mente se acredita, que iniciaram a desordem; habi­
tando um paiz triste e selvagem, possuindo tão só-
mente o necessário, desceram a cubiçar o bem de
seus vizinhos. Estes, por sua parte, tiveram para os
repellir de abandonar os seus proprios trabalhos e
com elles mesmos se puzeram a guerrear em vez de
cultivar a terra; o paiz pela falta de cuidados cessou
(1) Strab., Lib. m, cap. 3, § 5.

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46 UTRO I, CAPITULO I
de produzir...» O nome de sarrano é considerado
ainda entre o povo como injurioso, e Gil Vicente nas
suas farças reproduz certos usos «imitando os daserra. »
O cruzamento d’estes dois elementos anthropologicos
operou-se com a acção do tempo e pela pressão de
outras raças que succederam no territorio hispânico,
mas nem por isso os seus costumes e feições se uni­
ficaram. Gustave Le Bon assim o reconhece : «Apesar
da influencia considerável dos cruzamentos, as trans­
formações do caracter de que é susceptível uma raça
não são tão profundas como se poderá acreditar; os
elementos diversos que ella contém juxtapõem-se antes
de se fusionarem, e a hereditariedade sustenta-se por
muito tempo.» (1) Muitos dos costumes d’estes dois
primeiros povos ainda subsistem entre nós ; no Minho
encontrámos em uso o lavar-se com ourina para em­
branquecer a pelle, e Diodoro Siculo (v, 33) refere
isto mesmo dos Celtiberos. (2) O alongamento dos cra-
neos berbericos era produzido por um modo artificial,
e Gosseconsidera-o como um caracter porventura ibé­
rico; nas aldeas ainda se costuma apertar a cabeça
da criança recemnascida com lenços, «para lhe arran­
jar a moleirinha,» ficando depois com verdadeiras de­
formações.
Não é menos notável a persistência de caracteres
anthropologicos na raça do sul; Clapperton, fallando dos
Fullahs, diz : «A sua côr não é mais bronzeada do
que a dos Hespanhoes ou dos Portuguezes da classe
inferior.» (3) E em outro logar escreve Eichthal : «As
raparigas fellanas... distinguem-se por um caracter
anatomico dos mais importantes, a e
(1) L’Homme et les Sociétés, t. il, p. 133.
(2) Belloguet considera este uso derivado da purificação da
urina da vacca, descripta no Aresta (fagard vnij e no Codigo
de Manu (xi, 108,109). Ethnogénie,t. m, p. 139.
(3) Ap. Gustave d’Eichthal, Les Foullahs, p. 6.

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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 47
cadeza dos pés e mãos.» (i) O Fullah é um dos vestí­
gios d’essa raça primitiva que atravessou a Africa, o
por isso os seus costumes podem ser comparados com
os dos primeiros povos que entraram na Hespanba.
Na tradição popular portugueza o pequeno é uma
belleza celebrada nas cantigas :
Tendes o pé pequenino
Do tamanho de um vintem :
Mer’cia calçar de prata
Quem tão pequeno pi tem.
Diz Gustave d’Eichthal : «O orgulho nacional é um
dos traços mais característicos dosFullahs.» (2) Citare­
mos as observações de estrangeiros, mais impressio­
náveis do que os naturaes : «Em patrióticas jactancias
e gabos, nenhuma nação leva a melhor aos portugue-
zes...» (3)Depois deBeckford, Du Chatelet(Desaleux)
não é menos claro : «O povo portuguez é naturalmente
orgulhoso, soberbo e animoso, e detesta em geral
qualquer outro povo.» Suidas attribue este caracter a
todas as nações scythicas, apparecendo constantemente
entre os Celtas ; o elemento celtico que constitue tamr
bem o nosso typo nacional recrudesceu n’este cruza­
mento, vindo por isso essa qualidade a preponderar
no portuguez. O orgulho excessivo (Diod., V, 32) parece
ter mais particularmente caracterisado a raça celtica;
Pomponio Mela (ui, 2) chama-lhe gentes superbae, e
Silio ítalico {Pun., xi, 25) tumidissimus Celta, e estas
qualidades preponderam no caracter hespanhol, orgu­
lhoso da sua fidalguia, arrotando valentias e com um
exclusivismo patrio. (4)
Este elemento celta prepondera mais para a região
(1) Les FoiUlahs,p. 52.
(2) Op. cit., p. 54.
(3) Beckford, Carta xxiv.
(4) Belloguet, Ethnogénie gauloise, t. iu, p. 19.

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48 LIVRO I, CAPITULO I
do norte de Portugal, e para a orla maritima, do cru­
zamento dos Ligurios. Este typo medio acha-se de-
scripto por uns viajantes do fim do seculo x v i: «Os
homens da cidade de Lisboa e de todo o Portugal são
de mediana estatura, mais baixos que altos, magros,
de côr ferrenha, cabellos e barba preta, olhos negrís­
simos e mui similhantes no exterior aos gregos.— As
mulheres portuguezas são singulares na formosura e
proporcionadas no corpo; a côr natural dos seus ca­
bellos é a preta, mas algumas tingem-no de côr loura;
o seu gesto é delicado, os lineamentos graciosos, os
olhos negros e scintillantes, o que lhes accrescenta a
belleza; e podemos affirmar, com verdade, que em
toda a viagem da Peninsula as mulheres que nos pare­
ceram mais formosas foram as de Lisboa.» (1) Gabriel
Pereira, nas suas, Notas de descreve o
typo dos habitantes da aldeia de Palheiros a uma legua
de Ourique, e por elle quasi que se reconstitue o typo
primitivo na sua pureza: «casas rudes e negras sem
reboco nem cal, assentam no schisto do solo, calçada
natural das ruas ou antes dos espaços irregulares
entre as casas.— Nada que denote civilisação, tudo
pobre, mesquinho, primitivo; algumas mulheres fia­
vam á roda, outras ajudavam a atar fardos de cortiça.
O aspecto d’aquella gente pareceu-me differir da outra
alemtejana; domina a côr trigueira, o iris preto, o
cabello negro e corredio; corpos delgados, seccos, ner­
vosos mas sem recordar o typo arabe; pouca viveza,
gestos sobrios; notei mesmo differença considerável
entre o aspecto d’esta gente e o da de Ourique. Ha
por alli usos com seus laivos de primitivos; ás danças
de bodas concorre a rapaziada de Ourique e arredo­
res ; pela beira do caminho vi alguns poços, e em
todos havia caldeiras para tirar agua, caldeiras que
(1) Tron e Lippomani, Viagem em 1580 (Panorama de 1843).

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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 4 9
ninguém furta, porque fica perdido para todo o sem­
pre o que furta uma caldeira; nos muros toscos das
casas e quinxorros vi pedras rudemente faciadas, del­
gadas, com buracos ou para couçoeiras das cancellas
ou só destinadas a prender cavalgaduras, pedras que
me fizeram lembrar algumas da Citania.» (1)
A esta raça primitiva pertenceu o culto das mon­
tanhas e das Deusas hetairistas, que prevaleceu em
todo o Occidente; é nas superstições e culto dos san-
ctuarios populares que ainda persistem esses primi­
tivos costumes. Gabriel Pereira descreve o templo da
Senhora da Cola no planalto impraticável por todos
os lados na juncção das Ribeiras de Odemira e Ma-
riscão, que corresponde ao typo dos templos chtonia-
nos, feitos em planaltos arti: (2) <Á r
festividade de 8 de setembro concorrem os povos de
muitas leguas em redor: recebe grande numero de
esmolas em cereaes, azeite, cera e dinheiro... emfim
é um dos sanctuarios de maior devoção no sul do Alem-
tejo, e isto constitue um dado importante no ponto de
vista ethnographico.» (3) Da mesma descripção pode­
mos tirar outros caracteres que definem bem a indole
do culto hetairista: «o povo das romarias diverte-se
a trepar por este lado (encosta do sul).» (Ib. p. 21 )
Ali se acha a Cisterna ou caverna do culto kteista, (p. 22)
o penedo de escorregar, á margem do ribeiro (p. 24):
«Começo a achar singulares estas pedras de escorre­
gar, pois que não são raras juncto dos sanctuarios
afamados, porque a devoção de deslizar pela pedra
está associada a muitas romarias; em algumas de taes
pedras a face não é natural, e porque em alguns sitios
á maneira de escorregar, aos incidentes da descida se
(1) Notas archeologicas, p. 17, Evora, 1879.
(2) lbidem,p. 19.
(3) lbidem, p. 20.
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50 LIVRO I, CAPITULO I
ligam symbolismos e interpretações.» (1) As povoa­
ções estabelecidas no alto de montanhas, ás vezes
formadas artificialmente, são um resto d’esta occupa-
ção primitiva: «Castello, chama-se em Ourique ao
cume do monte onde a villa assenta, espaço sem edi­
fícios nem cultura... 0 solo, a elevação na verdade,
não parece completamente .» (2) Chamam-se
tambem Citanias,no Minho, ás reliquias archeolog
cas d’estas povoações; o nome de Citania acha-se
escripto pelo padre Torquato Peixoto de Azevedo, em
1692, com a fórma Acitania; assim aproxima-se do
nome dos Audi, Ausci, ou Aquitanios, essa raça ante­
rior aos Celtas, que desceu do norte da Europa, sendo
por isso este nome generalisado a todos os centros
de população pertencentes áquella raça, que na pe­
nínsula se designa pelo nome de Euskariana e que
Humboldt distingue dos Iberos. D’esta raça, que pre­
cedeu os Arias na Europa, conservam-se ainda costu­
mes notáveis ; as danças, que, segundo Diodoro Siculo
e Silio Itálico, acompanhavam os cantos epicos, estão
representadas na dances de Aragão, na Muinéra da
Galliza, e na Danza prima das Asturias. 0 ulutatu,
a que se refere Silio Itálico, é o renchilido asturiano,
ou o apupo minhoto nos arraiaes e malhadas. (3) As
hibemae naeniae, que ainda existem nos atitidos e
voceros populares da Italia insular, conservaram-se em
Portugal durante o seculo xv, como se vê pelos can­
tos em roda da sepultura do Condestavel, e pelo ro­
mance fúnebre á morte do principe Dom Affonso. Ou­
tros costumes, como os celleiros communs no Alemtejo,
que se encontram tambem entre os Berberes, indicam-
nos a persistência ethnica d’esse primitivo elemento
ibérico, que entrou na Hespanha pelo sul.
(1) Notas, archeologicas, p. 24.
(2) bdmIie, p. 25.
(3) D. Joaquin Costa, Poesia popular p. 402.

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As duas invasões celticas de leste a oéste ou dos
Ligurios, e de norte a sul, ou dos Celtas propriamente
ditos, aqui penetraram em Portugal, deixando-nos
certos typos morphologicos e um grande numero de
qualidades ethnicas. O nariz aquilino, considerado por
W. Edwards como kymryco, é frequente em Portugal,
e designado pelo povo nariz de cavalleie. Os costumes
festinantes dos Celtas persistem nos nossos banque­
tes, taes como os descreve Sá de Miranda e Gaspar
Fructuoso, nos bodos e festas do Espirito Sancto. Os
Ligurios eram chamados Keltoi , celtas das praias
(TimagenesePlutarcho) distinguindo-se pelo seu amor
pela novidade. Tito Livio caracterisava por esta fórma
o hespanhol primitivo: «Hispanarum inquieta
que in novas res ingenia.» Este mesmo caracter é
notado no portuguez nas celebres quintilhas de Simão
Machado:
E quam varios vos mostraes
No trajo e na condição,
Tam constantes sois e mais
Na praga e murmuração
Para os vossos naturaes.
Se um extranho á terra vem
Dizeis todos em geral,
Nunca aqui chegou ninguém,
E do vosso natural
Nada vos parece bem.
Emfim que por natureza
E constelação do clima,
Esta nação portugueza,
O nada estrangeiro estima,
O muito dos seus despreza. (1)
O genio imitativo é uma das qualidades mais pre­
ponderantes do portuguez, como verèmos ao descre-
(1) Comedias portuguezas, p. 143. Ed. 1706.
/
• t

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52 LITRO I, CAPITULO I
ver as industrias locaes ; o genio amoroso, é esse •
calidum gentis com que Florus define o celta, e com
que o portuguez é retratado por Lope de Yega, Cer­
vantes, Espinel, Quevedo, Sevigné e outros escripto-
res. Garcia d’Orta define em dois traços o caracter
dos portuguezes como poucoespeculativos, ( 1) e Vieira
insiste sobre a sua passividade : «Somos como crian­
ças os portuguezes n’esta parte : admiramo-nos do que
nunca vimos, e estimamos só o que vem de fóra... (2)
Não podemos accumular aqui todos os factos de
persistência e recorrência ethnica, para os não des­
locar da classificação em que estão ordenados, mas é
este fundo ibérico e celtico que prepondera através
da successão das raças históricas que occuparam a pe­
nínsula e de que receberam apenas fôrmas exteriores
de cultura. Antes de tudo é conveniente esboçar o
encadeamento succeseivo d’essas raças como um pro­
specto anthropologico, que nos deve servir de guia
na critica comparativa dos costumes.
A mais antiga das raças históricas que occuparam
a Peninsula pertence ao ramo allophylo do tronco
branco, designação vaga que substitue o nome de
twraniano; esta raça entrou no sul da Europa, vindo
da Asia, tendo estacionado na Africa, onde ainda sub­
siste o Berber, cujo cruzamento com o Arabe veiu a
produzir o typo mauresco. Além d’este elemento ibé­
rico, chegou à peninsula hispanica um outro ramo
d’esta mesma raça, que se fixou na Gallia, conhecido
pelo nome de Scythas, e que Guilherme Humboldt
distingue do Ibero denominando-o Euske. Esta dedu-
cção ethnologica foi confirmada pela anthropologia,
que determinou as differenças morphologies entre o
basco hespanhol e o basco francez. Tal é a primeira
(1) Colloquios dos Simplices, p. 41. Ed. Varnhagen.
(2) Arte de Furtar, p. 300.

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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 53
base para a unidade dá civilisação Occidental, que se
verifica na homogeneidade das tradições lyricas, epicas,
novellescas, e nas superstições populares communs
a Portugal, Hespanha, França, Italia e Grecia mo­
derna.
Sobre esta primeira camada da migração asiatica,
estabelecem-se os Celtas, por duas migr
epocas differentes, dos Ligurios, que avançam de leste
para oésle, e são conhecidos pela designação de Celtas
marítimos, e depois pela migração de norte a sul, dos
Celtas louros que supplantam pelo seu numero a civi­
lisação ibérica. O genio amoroso dos portuguezes,
notado por todos os escriptores hespanhoes, e o gosto
pelas aventuras marítimas, persistem como um cara­
cterístico da nossa nacionalidade em todas as suas
epocas históricas. As tradições maravilhosas das Ilhas
encantadas e do Quinto Império do Mundo foram o
estimulo dos nossos navegadores e poetas, que como
descreve Camões, levavam «n’uma mão sempre a es­
pada e na outra a penna.»
Os Celtiberos foram o producto da cohabitação dos
Ligurios com os Iberos, e da ligação com os Celtas
para resistirem contra as invasões dos povos aventu­
reiros do Mediterrâneo.
Os Celtas não chegaram a constituir uma unidade
nacional, porém receberam dos exploradores pheni-
cios alguns progressos industriaes, formando assim
uma civilisação rudimentar Bastulo-phenicia. O topo-
nomastico revela esta influencia activa dos phenicios,
cujos processos de colonisação e feitorias apparecem
reproduzidos nas navegações dos portuguezes, como
o notara Michelet. Os Carthaginezes aproveitaram as
vantagens da exploração dos phenicios, apoiando-se
nas pequenas povoações federadas contra os Roma­
nos. Os cultos da prostituição sagrada, que subsistem
em fórma de superstições entre o povo, são os restos

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54 LIVRO I, CAPITÜLO 1
d’esta communhão primitiva, bem como o costume
da guerrilha.
As colonias e feitorias mercantis dos Jonios com-
prehendem não só este fundo pelasgico das popula­
ções italicas, que fez com que o latim se propagasse
facilmente na península, mas esse ramo hellenico
occidental, que no Mediterrâneo acompanhou e sub­
stituiu a actividade dos phenicios, como notou Curtius.
Esses exploradores jonicos lixaram-se nas costas de
Portugal, nas fozes do Douro, Lima e Minho; Plinio
caractérisa certas povoações d’esta região norte con-
siderando-as graecorum soboles omnium, e Strabão
compara muitos dos seus costumes aos dos Gregos,
more graeco. No typo popular existe a belleza grega
nas mulheres de Aveiro até Yianna, e n’essa região
prepondera o genio architectonico, que Raczynski
explicava por causa da existencia do granito n’aquella
região.
O conflicto dos gregos com os phenicios na ex­
ploração do Mediterrâneo occidental fez com que
os Romanos os substituissem na lucta, que veiu a
localisar-se na peninsula hispanica. Para vencer as
resistências das populações sedentárias, o Romano
recorreu ao systema do colonato, e n’este intuito intro­
duziu aqui tribus italicas e hordas germanicas, e se­
gundo as necessidades administrativas desenvolveu as
instituições locaes municipalistas. Esses elementos do
colonato eram tribus de alanos e velhos elementos
pelasgicos, que facilitavam a recorrência ao antigo typo
ibérico e a mais facil propagação do latim. A proprie­
dade agricola recebeu a fórma da emphyteuse, que
ainda hoje prevalece, e desenvolveu-se o trabalho das
minas iniciado pelos phenicios.
Na invasão germanica da peninsula antes da unifi­
cação politica dos visigodos, preponderou o elemento
scythico dos alanos e de outras tribus que andavam

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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 55
confundidas com o ramo árico. É na península que
bem se observa a separação entre as tribus germâ­
nicas pastoraes e agrícolas e a tribu , de cuja
supremacia social e politica resultou a decadencia dos
homens-livres na servidão e dependencia do lite con­
fundindo-se com os leutes (Arm-leutes, ou Arlotes, como
ainda se acha uma allusão no Cancioneiro da Vaticana).
A banda guerreira, tornada senhorial, imitou a cultura
romana e a unidade politica imperial; eram os Arimani,
cujo nome se conserva em Aramenha e Germania. A
banda pastoral conservou os seus costumes, e desen­
volveu-se fortificando as instituições locaes, vindo mais
tarde a redigir o seu direito tradicional nas cartas de
Foral. É esta classe que sob a tolerancia do domínio
dos Arabes vem a formar o nucleo orgânico do povo
hispânico, esse elemento livre que na civilisação mo­
derna da Europa se conhece pelo nome de terceiro
estado. O encontro da civilisação romana na Península
e o desenvolvimento da civilisação visigothica deter­
minaram a creação d’esta classe, que hoje abrange
tudo sob o nome generico de povo. O colonato romano
desenvolveu-se principalmente na dissolução do Im­
pério, tornando-se uma fórma de direito publico pro­
vincial ; com a invasão germanica, e principalmente
no começo do império visigothico, o colonato toma a
fórma da clientela romana, vindo sob a conquista
arabe a formar a liga communal, que reage contra a
prepotência senhorial que se impunha nos logares
reconquistados, organisando-se em Concelhos e Behe-
trias. É entre esta grande classe que se conservam
as tradições e symbolos jurídicos, que se transmitti-
ram nas instituições foraleiras; e a ella deram os Ara­
bes o nome de Mosarabe, que synthetisa historica­
mente esta individualidade ethnica persistente, pela
sua dupla recorrência. Da raça germanica, o ramo
senhorial trazia elementos aquitanicos, bem como o

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56 LIVRO I, CAPITOLO I
ramo ligio facilmente se fusionou com as tribus ber­
beres e maurescas, trazidas pelos arabes á peninsula.
O elemento visigothico que entrou na Peninsula
hispanica já não era germano puro; os Visigodos ha­
viam permanecido durante um seculo na Aquitania,
e pela sua posse de dois terços da propriedade terri­
torial, e de um terço dos escravos, vê-se que a fusão
com o elemento autoctone, ou ibérico, se operava pela
força das circumstancias. A população da Aquitania é
bem caracterisada nos Commentarios de Cesar, como
distinguindo-se dos outros povos das Gallias ; estava
confinada em um triângulo formado pelo Garonna,
pelos Pyreneos e pelo Oceano ; a esta situação deveu
a gente da Aquitania a sua resistência contra as inva­
sões de tribus áricas na Europa. Segundo Paul Broca,
um dos mais eminentes representantes da anthropo-
logia moderna : «Tudo induz a crer que os Aquitanos
pertencem a esta raça de cabellos negros cujo typo
se conserva quasi sem mistura entre os Bascos actuaes
(Gascões, Vascone, Bascos).» (1) Este facto positivo
leva a importantes deducções ; sendo o Basco o repre­
sentante modificado do primitivo typo ibérico da penin­
sula, o contacto de um seculo dos Visigodos com os
Aquitanos bastou para modificar esse elemento ger­
mânico, não só pâra coexistir na conquista com os
Alanos (de raça scythica) e para facilitar o seu cru­
zamento com as populações ibéricas, como tambem
para fazer regressar ás qualidades do typo turaniano
os productos da nova povoação. Foi na Aquitania que
primeiro se manifestou o genio poético, nas formas
lyricas das canções provençaes analogas na sua stru­
ctura strophica ás canções accadicas e chinezas; foi
facil a propagação d’esse lyrismo á Italia e á Hespanha,
nos pontos mais proximos da Aquitania, como Galliza
(I) Mémoires d3Anthropologie, 1.1, p. 282.

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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 57
e Catalunha. Se os Yisigodos da península imitaram
a cultura romana foi simplesmente a banda guerreira
ou senhorial, no que essa cultura tinha de exterior,
linguagem, codigos e categorias; a banda
os trabalhadores da terra, os ligios, com as suas
modificações recebidas na Aquitania, e com a mis­
tura com os Alanos, e com colonos scythas recebi­
dos pelos romanos, facilmente regressaram ao typo
ibérico, e deram um maior relevo ás suas qualidades
ethnicas.
Na invasão dos Arabes o numero pertencia ao ele­
mento berber ou Mauresco, com que occuparam o
territorio, desenvolvendo uma extraordinaria activi­
dade industrial e agrícola. Assim foi facil a fusão com
essas duas raças, imitando o viver dos Arabes, (
rabe) que representavam então a civilisação mais es­
plendida da Humanidade. Este facto concilia-se per­
feitamente com a incommunicabilidade do semita e
com a assimilação da sua cultura material. Escreve
Frederico Diez, observando os phenomenos da lingua­
gem resultantes d’esta situação social: «Quasi todas
estas palavras extrangeiras (facilmente reconhecíveis)
designam objectos sensíveis ou ideias scientificas refe­
rindo-se especialmente aos reinos da natureza, á medi­
cina, ás mathematicas, á astronomia, á musica; muitas
alludem a instituições políticas, especialmente os em­
pregos e dignidades; outras aos pesos e medidas;
algumas tambem são concernentes á guerra. Não ha
uma unica que seja tomada da esphera dos sentimen­
tos, como se o commercio entre Christãos e Mahome-
tanos se restringisse ás relações exteriores, e não per-
mittisse nenhuma das approximações amigaveis que
existiam entre os Romanos e os Godos.» (1) A este
facto positivo contrapõe-se outro facto positivo, o da
(1) Gramm. das Linguas romanica

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58 LIVRO I, CAPITULO I
mistura dos nomes godos e arabes no mesmo indiví­
duo e familia, signal de um cruzamento incessante.
De facto o cruzamento dava-se entre as populações
dos ligios com as tribus maurescas, produzindo-se
assim esse phenomeno importante da revivescencia
do elemento ibérico, caracterisado pelos arabes e pelos
chronistas ecclesiasticos pelo nome de Mosarabe. É
entre esta numerosíssima classe social, que se dá a
persistência do lyrismo tradicional, (as Serranilhas e
Villanellas)dos cantos épicos, (as ou Roman­
ces) dos Symbolos jurídicos, das Superstições e de
crenças que remontam á civilisação accadica, a qual
fôra o primeiro estimulo da cultura dos Arabes. O povo
portuguez representa a antiguidade pela phrase gene-
rica — o tempo dos Mouros, ignorando completamente
o facto histórico da occupação dos Arabes. Os vestí­
gios pre-historicos da peninsula são referidos pelo povo
ao elemento mauresco. Diz Gabriel Pereira : «O Dol­
men é chamado pelos povos visinhos (da Villa do Re­
dondo) a casa da Moira, designação vulgar entre nós
para indicar velhas construcções não portuguezas,
quer sejam arabes, romanas, celticas ou absolutamente
pre-historicas ; por isso que foram os agarenos os
últimos dominadores da peninsula e dominadores de
raça diversa. É facto analogo ao que se passa na Alle-
manha e Scandinavia, onde todos os velhos ediflcios
não nacionaes são attribuidos aos hunnos e aos finni-
cos, tal foi a impressão, que estes povos de outros
costumes, de outra raça e de outro aspecto gravaram
na mente do povo aryano.» (i) Gil Vicente falia da
tradição dos thesouros enterrados do tempo dos Mou­
ros, e como nota Gabriel Pereira : «No povo rude per­
siste a ideia de procurar thesouros n’estes mysteriosos
monumentos ; creio ser esta a principal causa da des-
(i) Notas archeologicas, p. 26.

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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 5 9
locação dos esteios n’esta e em muitas outras antas. » (1 )
0 typo anthropologico d’este cruzamento conservou-se
mais bem caracterisado nos logares em que mais se
demorou a occupaçâo arabe ; é conhecido entre nós
pelo nome de Saloio. Escreve o Marquez de Rezende:
«Têm os habitantes d’aquelle espaço que occupa qua­
tro léguas em roda d’esta capital (Lisboa) o nome de
saloios... São os saloios, em geral, esquivos e gros­
seiros no tracto, e tão astutos nos seus negocios, como
tenazes nos seus sentimentos, propositos e hábitos... (2)
A linguagem é o documento mais persistente das
civilisações que se extinguiram ou' que foram substi­
tuídas ; assim como os nomes de logares se conser­
vam apesar das sobreposições das raças sobre o mes­
mo solo, assim as locuções são os últimos restos dos
costumes que se transformam, são os vestígios histó­
ricos por onde se recompõem as camadas ethnicas
sobre que se estabelece a unidade politica de uma
nação. Apesar da profunda assimilação do catholicismo
que se confundiu com a civilisação peninsular romano-
gothica, tentando apagar da sua ethnologia e da sua
historia a importância do elemento arabe, por todos
os lados surgem os documentos d’esse periodo activo
que deu á península a sua cultura scientifica e o seu
desenvolvimento agricola e industrial. Avançando do
sul para o norte, as raças que vieram á peninsula
trouxeram uma civilisação ou desenvolveram-na, como
a dos Iberos com relação á dos Celtas, ou dos Árabes
com relação á dosVisigodos. «Os Arabes, como escreve
Le Bon, ao deixarem as áridas regiões onde viviam
quasi no estado selvagem para conquistar o mundo,
tornaram-se sob o céo da Hespanha, uma das nações
mais cultas que a Historia conhece, uma d’aquellas
(1) Notas arrheologicas, p. 28.
(2) Panorama, t. xr, p. 366.

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60 LIVRO I, CAPITULO I
onde as lettras, as sciencias e as artes foram cultiva­
das com o maior brilhantismo.» (1) Na lingua portu-
gueza ainda sâo de uso corrente palavras arabes que
revelam osyncretismo religioso das duas.civilisações,
a nossa cultura intellectual, a proveniência dos cantos
e danças populares, as fórmas de certas industrias,
não fallando já dos nomes de terras e de indivíduos,
em que a sociedade arabe se manifesta em toda a sua
força e extensão como a base mais fecunda sobre que
se constituiu esta pequena nacionalidade. Combatida
pela organisação intolerante do Catholicismo, a civili-
sação arabe persistiu apesar das constantes condemna-
ções da egreja ; mas as palavras arabes, que signifi­
cavam productos serios d’essa grande civilisação, trans-
mittiram-se com um caracter pejorativo, com um sen­
tido irrisorio proveniente de uma perversão systematica
que fez com que essas palavras cahissem na giria
inferior. No Cancioneiro provençal portuguez da Bi-
bliotheca do Vaticano ainda se acham as interjeições
arabes M a s h a l l a h ,(Deos o quer) como se
canção de Pero Gonçalves de Porto Carrero :
Poys nom vem de Castella,
nom é viv’, ay meselal
Os prégadores catholicos ainda empregam nas im­
precações rhetoricas do púlpito a interjeição Oxalá,
(de Ins-Allah, se aprouver a Allah) que na tendencia
fatalista do povo se exprime tambem pela locução:
Se Deus quizer. Observando os glossários das palavras
arabes conservadas no portuguez e castelhano, nota-se
que preponderam aquellas que exprimiam cousas
technicas ; mas tambem ha outras que exprimem uma
certa communhão moral. Essa communicação senti-
(i) L’Homme et les Sociétés, t. il, p. 63.

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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 61
mental acha-se nos dialectos vulgares, como a Aravia
ou Algarabia,e nos cantos lyricos, ou leilas. Em Gil
Vicente encontram-se preciosas allusões :
Ui ! e elle falia aravia. (Obr. m, 99)
Fallou comigo aravia. ui, 513)
E tambem este vestigio de um canto arabe, citado
anteriormente pelo Arcipreste de Hita entre a serie
dos cantares arabicos do povo :
Este es el Calbi ora bi,
El Calbi sol fa melhorado. (Ib., u, 227)
No Cancioneiro da Vaticana acha-Se uma canção
com o estribilho Lelia, vae lelia, resto por ventura do
genero lyrico das Leilas. Janer, na obra sobre a Con­
dition de los Moriscos, falia da terrível ordem que
Filippe ii promulgou em 1566, prohibindo o escrever
e faliar arabe, bem como o usar trajos e cantar can­
tigas mouriscas: «y tambien en los de fiesta, no ha-
ciendo zambras, ni leylas, con instrumientos ni can­
tares moriscos, aunque no dijesen en ellos cosas con­
trarias à la religion cristiana.» Estas prohibições eram
acompanhadas de violências corporaes, mas as cousas
mantinham-se pelo automatismo do costume; d’onde
eram extirpadas pela falsificação catholica ; assim ainda
hoje usamos a locução popular : deixe-se de lerias,
simultanea com : deixe-se de cantigas. Do baile mou­
risco da zambra, ficou-nos a palavra de giria azam-
brado, para designar o corpo ou o gesto desengraçado.
No Cancioneiro de Rezende ainda se allude com fre­
quência ao «doce bailo da mourisca,d e Gil Vicente
escreve :
E balhando á mourisca,
D’entre gente portuguez. (Obr., ui, 53)
Não praza a Deos co’a viola,
Que assi se tomou mourisca. (Ib., 181)

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62 LIVRO I, CAPITULO I
O intuito da deturpação revela-se nas palavras per­
vertidas do seu sentido originário; Medresch, que signi­
ficava academia, ficou nas escholas catholicas e no
uso commum significando o priguiçoso, o madraço;
o nome do philosopho arabe do seculo x Alfarabi ficou
designando vulgarmente os livros velhos inúteis e ille-
giveis, os Alfarábios, queimados a montes pelos padres
catholicos. O primeiro surate do Koran, que
se dava como um exercício de eschola, ficou signifi­
cando uma cousa material, a fatia de pão, que se dá
á criança. Quando a Egreja não podia desnaturar o
ugo popular, assimilava-o a si, como se nota na san­
tificação de Mahomed ou Mafoma, em Sam Mamede,
significando ao mesmo tempo m
aacara horrenda.
Apesar d’isto, as artes technologicas e misteres con­
servaram as suas designações originarias, como
tar, alfaiate (em Hespanha sastre, da fórma latina
sator) alvener,calafate, etc.; na agricultura a inven
ção arabe das Noras (noria) com os seus alcatruzes
persiste com toda a vivacidade na cultura hortense;
o divertimento das cartas de jogar conserva a sua
designação arabe de Naipes (Naib) de que falia Gil
Vicente: « Naipesvem de Andaluzia.» O instrumento
musico popular é ainda a guitarra, a quitara arabe,
e os cantos conhecidos pelo nome de Huda, pelo Ar­
cipreste de Hita, são ainda os nossos Fados, que usa­
dos pelos tropeiros do Brasil coincidem com a descri-
pção feita pelo arabista Caussin de Perceval. A lin­
guagem é um campo inesgotável de paleontologia
ethnica, e o primeiro documento social, ao qual o cri­
tério da filiação histórica restitue a sua verdadeira
importância.
As invasões normandas e scandinavas na Hespanha
cooperaram tambem para a persistência dos caracte­
res primitivos do godo, que acceitou com facilidade as
colonias frankas. Na povoação da nova nacionalidade
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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 63
portugueza essas numerosas colonias frankas tiveram
um direito privilegiado ou franquias, que se estendia
ás colonias gaulezas da França meridional, flamengas,
e outras que ficaram aqui pela passagem dos Cruza­
dos. Todos estes elementos deram uma certa revi-
vescencia ethnica, que se revela pela activa elaboração
dos Romanceiros. Ao norte de Portugal, no seculo x
e xi, é que se deram as invasões dos piratas scandi-
navos, que chegaram tambem a fixar-se em pequenas
povoações, deixando vestígios no onomástico local e
no Nobiliário. Sabe-se que o Scandinavo conservou na
sua pureza as tradições germanicas; existem entre
nòs tradições scandinavas como a do bastão runico e
lendas de ferreiros mágicos.
No meio d’este tropel de raças mongoloides, semitas
e áricas, nas suas diversas variedades, é possivel esta­
belecer uma coordenação anthropologica, determi­
nando os elementos persistentes, já por effeito das
sobrevivencias e das recorrências, segundo este prin­
cipio do physiologista Müller: «Uma raça, nascida da
fusão de duas raças, propaga-se pela união do seu
similhante; ao passo que quando ella se une com as
raças que concorreram para produzil-a, ao fim de mui­
tas gerações torna ao typo de uma d’estas ultimas.» (1)
Applicando este principio, explicaremos por elle a con­
stituição anthropologica dos povos peninsulares, bem
como a differenciação entre Portugal e Hespanfia:
Ligurios, Celtas
g IGregos, xiuiuoiiua,
Romanos, ^Coloniasu iu iu a a nitalicas
a u ta s
■ £ )Germanos : Alanos, Suevos, Vandalos,
Yisigodos
I b e r o -E u s k b ............. , . . .L y b io s , B a s t a d o s , B b r b b r e s , M o u r o s
(Raça mongoloïde) I*•»§ íPhenicios, A rn R a a
Carthaginezes

(1) Man. de Physiologie, t. n, p. 762. (1845.)

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64 LIVRO I, CAPITULO I
Vemos por este schema a persistência e recorrência
de um elemento primitivo, que nunca chegou a ser
extincto, e ao mesmo tempo a sua oscillação já para
os caracteres ethnicos dos semitas, já para os dos ramos
áricos. A distincção notada pelos estrangeiros entre
a população portugueza do norte e do sul, explica-se
pelo facto de sobre esse fundo ibérico se cruzar no
norte o elemento àrico, ao passo que no sul estacio­
nou o elemento semita.
Tendo até aqui indicado a importância do critério
ethnico para a comprehensão do genio ou da civili-
sação de um povo, vamos applicar esses resultados á
peninsula hispanica, tomando da successão das suas
raças históricas o meio de explicarmos um certo nu­
mero de qualidades que differenciam a nacionalidade
hespanhola e a portugueza, e a persistência das tradi­
ções communs, que até certo ponto as identificam.
O primeiro facto de differenciação fundamental e
histórica é a maior facilidade com que o portuguez
no principio do seculo xn constituiu a sua unificação
nacional, que se conservou inabalavel até hoje; ao
passo que a Hespanha só conseguiu a sua unificação
política no fim do seculo xv. Ao percorrer a serie das
raças históricas da peninsula, surge uma facil explica­
ção d’este phenomeno de cohesão tardia, pela prepon­
derância de elementos semitas na raça hespanhola;
assim os phenicios, os carthaginezes, os arabes e os
judeus formaram a maior parte dos habitantes com
hábitos de isolamento, ao passo que Portugal se con­
stituiu na região de nordeste, aonde não chegaram os
exploi adores phenicios, nem os invasores arabes. O
elemento celtico introduzido na peninsula pelo norte,
e occupando de preferencia a fronteira maritima, man­
têm no caracter portuguez uma certa brandura, o
genio aventureiro e a tendencia para as explorações
marítimas. Na historia de Hespanha descobre-se um

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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 65
constante movimento de oscillação entre os esforços
para uma unificação nacional e as circumstancias que
fomentam a desmembração. Exemplifiquemos: os ibe­
ros, os celtas, os phenicios, as feitorias carthaginezas
e gregas, são unificadas sob a acção dos romanos pela
primeira vez; dá-se porém a invasão gothica, e tudo
volta por esta perturbação accidental á desmembração
primitiva. Augmentando o poder dos godos, estes esta­
belecem a unificação politica submettendo outra vez
as populações romanisadas e os differentes ramos da in­
vasão germanica. Subsistem comtudo restos primitivos
em um isolamento de resistência, taes como os Astu-
ros, os Cantabros e os Bascos, restos que, aprovei­
tando o accidente da invasão dos Arabes, determinam
pelo seu esforço outra vez 3 desmembração da Penín­
sula. O arabe enfraqueceu 0 seu dominio pela multi­
plicação de numerosas monarchias; e a reconquista
christã, inspirada pelo fanatismo catholico, emprehen-
deu a unificação nacional em Sancho 0 Magno, em
Affonso vii, em Fernando 0 Magno, mas estes mesmòs
monarchas não podendo vencer 0 espirito da desmem­
bração local, que preponderava nas Asturias e na
Navarra, elles mesmos destruíam a sua obra de uni­
ficação distribuindo os retalhos de territórios a seus
filhos nos testamentos. Se é necessário conhecer a
successão e os caracteres das raças da peninsula para
comprehender as differenças entre Hespanha e Portu­
gal como a sua historia as revela, mais importante
ainda é esse estudo para descobrir as mutuas analo­
gias, que até certo ponto pertencem ás características
da civilisação dos povos meridionaes, taes como as
fôrmas primitivas de religião, de superstições, de costu­
mes e até de poesia.
Olhando para a carta geographica da peninsula hispâ­
nica, não se acha uma fronteira natural que sirva de
fundamento ao facto secular da separação entre Por-
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66 LIVRO I, CAPITULO I
tugal e Hespanha. Mas o facto da separação existe e
mantem-se, portanto devem existir outras causas que
suppram a acção differenciadora do territorio. Na suc-
cessão das différentes raças que occuparam a penín­
sula hispanica deu-se a preponderância ora do ele­
mento ibérico, ora do elemento semita, ora do elemento
árico, e as combinações do ibero-semita e ibero-árico
bastam para estabelecer diversidades etbnicas capazes
de se conservarem por qualquer circumstancia. De
facto a proximidade do mar assim como fez distinguir
o Hollandez do Allemão, tambem contribuiu para sepa­
rar mais profundamente o Portuguez do Hespanhol.
O mar, considerado como uma barreira defensiva e
como um estimulo de actividade, fazendo-nos mais cedo
entrar na vida histórica pela unificação nacional, e pela
riqueza, fez de nós um povo navegador cioso da sua
liberdade. Desde D. Affonso ni que Portugal se de­
fende da absorpção hespanbola, já com combinações
políticas, como casamentos reaes, já com mão armada,
como Aljubarrota e Montes Claros ; estes odios e am­
bições dynasticas têm sido incutidos no povo, extranho
a elles, e com o tempo veiu a adquirir um sentimento
instinctivo de rancor e animadversão contra o hespa­
nhol. Enumerámos até aqui tres causas, apparente-
mente fracas, mas todas convergindo para o fim da dif-
ferenciação. Ás vezes os paizes, mais bem confinados
pelas grandes divisões naturaes, acham-se absurda­
mente fragmentados por aberrações politicas. Assim
a cadeia central dos Álpes não bastou para unificar a
Italia, e não obstante a aspiração moral d’esse povo,
ainda existe uma Italia estrangeira. Algumas partes
do territorio francez são da Suissa, da Bélgica, da
Prússia por effeito de formações históricas. Se estes
factos nos mostram em duas grandes nações a inefli-
cacia das fronteiras naturaes, a nacionalidade portu-
gueza tem outras razões de ser para que pelo acci-

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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 67
dente do territorio fique mais do que uma província
da Hespanha. Theorias políticas de conquista, ou de
annexação diplomática, ou de aspiração ibérica, tudo
é absurdo querendo-se annullar o producto consciente
•da historia, dispendendo séculos em conflictos internos
de uma grande nacionalidade artificial. Importa reco­
nhecer o facto das differenciações ethnicas, aproveitar
as suas diversas energias locaes, e por isso a civili-
sação da Península só entrará em um curso definitivo,
quando todas essas diíferenças provinciaes forem reco­
nhecidas em uma unificação consciente por meio da
fórma politica da federação.
O espirito local renasce na península, como vêmos
pelo estudo dos seus dialectos, como o gallego, o va-
lenciano; estudar as características do povo portuguez,
que se reflectem nos seus costumes, crenças e tra­
dições é coadjuvar essa obra futura de unificação
consciente.

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CAPITULO II
Rudimentos da actividade espontanea
Restos da vida nomada nos costumes da Caça: O furão.— Pe­
dir com pelle de lobo. — A altenaria nos romances popula­
res. — Armadilhas aos pássaros nos brinquedos infantis.—
Caça das cabras montezas no Suajo. — Festas religiosas :
Montaria do Porco Preto, e a Mesnie furieuse. Correr o
Montujo, na Vieira.— Costumes da Pèsca: Bateis conduzi­
dos por mulheres.—Rêdes de arrastar ou acéderes.—O lanço
da Cruz — Organisação das companhas.— O pilado e o mo­
liço.— As linhas de pescar.—Os bois empregados na pesca.
Fórmas tradicionaes das rêdes.— Os marroteiros e a indus­
tria do sal.— Perder a tramontana.—Uso da fava do mar nos
Açores.—As fórmas naturaes da Guerra defensiva: Os chu­
ços, as guerrilhas e almenáras.— Omalato ou cliente.— Cos­
tumes aos chefes militares na aristocracia — O bafordo.— Os
duellos. — Introducção do arcabuz. — O sino da revolta na
lucta dos concelhos.—As persistências guerreiras nas Hos­
tilidades nacionaes, locaes e individuaes: Sentido pejorativo
de certos nomes de povos. — As injurias das terras umas
contra as outras.— Os apodos de classe e os chascos aos no­
mes individuaes.
A diferenciação entre o homem das montanhas e o
das orlas marítimas, jà notada por Strabão, persiste
nos costumes da caça e da pèsca, esboço espontâneo
da primeira actividade industrial. A caça, além de um a
necessidade da vida nómada, desenvolveu-se como um a
fórma da guerra defensiva, e tornou-se um passatempo
aristocrático quando as classes guerreiras se acharam
sem destino na concorrência social; a pésca, organi-
sada na vida sedentaria das populações lacustres,
alliou-se desde muito cedo á industria agrícola, como
ainda actualmente se observa em Portugal. As diffe-

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 69
renças ethnicas persistem nas designações emprega­
das, no Minho, ao pé de Briteiros, entre da planí­
cie e os montanhões, na Beira Alta entre os da serra
e da ribeira; ( 1) mas revelam-se mais profundamente
nas hostilidades locaes e injurias com que as povoa­
ções limitrophes se apodam. Indicaremos alguns cos­
tumes d’estas tres categorias, conservados ainda na
vida moderna.
ACaça.— Na sua Geographia descreve Strabão a
caçada por meio do furão, e sendo empregada como
um exercício para a guerra: «nos tempos normaes em­
pregam-se para os combates varios generos de caça,
principalmente as caçadas com gatos bravos. Este
animal, originário da Lybia, ensina-se expressamente;
depois de estar ençaimado, larga-se no covil da lebre,
se a apanha, arrasta-a para fóra nas garras, ou então
obriga o animal a fugir, a reapparecer fóra do buraco,
e os caçadores que esperam a saida, agarram-na fa­
cilmente.» (Liv. in, c. 6.) Este costume persiste em
toda a sua vitalidade, e deu logar á locução sarcastica
tAndar com um furão morto á caça.» A caçada aos
lobos tambem se faz por meio de cães adestrados, como
usavam os Gaulezes: «Assegura-nos Plinio (vm, 61)
que os Gaulezes cruzavam as suas cadellas com lobos,
para obter atravessados, que elles davam por chefes
e guias das suas matilhas, obedecendo-lhes e seguin­
do-os os outros cães.» (2) Os cães da serra da Estrella
têm a reputação de serem cruzados com lobos. A
morte de um lobo entendia-se como um serviço á com-
munidade, e por isso aquelle que mata algum, tira-
lhe a pelle para pretexto de receber uma gratificação
pelas aldeias por onde a vae mostrar. Dom Francisco
(1) Leite de Vasconcellos, Estudo ethnographico a respeito
da ornamentação, p. 14.
(2) Belloguet, Ethnogénie gauloise, t. iu, p. 466.

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70 LIVRO I, CAPITULO II
Manuel de Mello allude a este costume do campo:
«como quem pede com pelle de lobo.» (1) Em um
anexim do seculo x v ii diz-se de um modo figurado :
«O lobo faz pela semana com que não vá ao domingo
á missa.» Derivava-se do costume de levar a pelle do
lobo ao ajuntamento da missa, para ali contar como
fôra morto e receber a gratificação. A caça tornou-se
um modo de vida e uma industria, cujos complicados
apparelhos se designavam collectivamente pela palavra
Apeiro. Diz Viterbo, no Elucidário : «Porém antiga­
mente parece que esta voz Apeiro se estendia a todos
e quaesquer instrumentos que eram proprios de um
caçador de coelhos, como rêdes, laços, armadi­
lhas, cães, furões, carcazes, dardos, reclamos, apitos...
E a todo este trem levada ao monte se chamou Apeiro.
Com effeito as grandes brenhas e dilatados matagaes,
que principalmente em Traz os Montes, Beira alta e
baixa, havia no tempo dos nossos primeiros reis, de­
ram occasião a que grande numero de homens vives­
sem de colher mel e matar coelhos pelos montes, cha­
mados por isso Coelheiros e Melleiros. As frequentes
pensões de cêra, mel e coelhos ou as suas pelles, que
nos foraes antigos se encontram, não permittem hesi­
tar sobre este ponto, que o reflexionado conhecimento
da nossa população põe fóra da mais leve duvida. Era
principalmente de noite que os Coelheiros faziam as
suas caçadas ; e assim não passando de tres ameijoa-
das ou esperas, poucas vezes eram obrigados a pagar
do seu maneio. Mas se eram effectivos e aturados
n’esta occupação, indo á sua geira ou soieira, que era
o mesmo que levar para a caça todo o apeiro de ca­
çador, então ficavam responsáveis de certo fôro ao
senhorio, se expressamente não eram isentos.» (2)
(1) Apologos dia, p. 65.
(2) Elucidário, vb.° A p e ir o .

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 71
Das matilhas dos coelheiros, diz Viterbo: «hoje cha­
mam Adua,no Alemtejo e outras partes, uma mati­
lha de cães empregada em caçar coelhos, em cujo
exercício reciprocamente se ajudavam.» ( 1 )
Com a generalisação das armas de fogo a caça re­
cebeu uma transformação radical nos seus processos,
perdendo-se o uso da caça ao falcão ou altenaria, cuja
origem é remotíssima e se tornara até ao seculo xv
uma distincção da nobreza. Diz Belloguet, da falcoa-
ria entre os povos gaulezes: «Póde-se acreditar com
Reynier, que elles, se não inventaram pelo menos im­
portaram na Gallia a arte da falcoaria praticada por
um povo da Thracia no'tempo de Plinio, que falia
d’isso como de uma cousa desconhecida dos Roma­
nos. (x, 10.) Não ha menção nem em Gratius, con­
temporâneo de Ovidio, nem no tratado de Aniano,
nem no poema de Nemesiano, pelo fim do ni seculo
da nossa éra; ao passo que muitas passagens de Si-
donio Apollinario ( Epistih , 3; iv, 9) provam
nossos avós deviam estar de ha muito tempo familiari-
sados com este genero de caça no meio do seculo v. »(2)
Nos cantos populares portuguezes conserva-se a refe­
rencia a este genero de caça, como fórma typica ou
ideal:
A caçar se vae Dom Jorge,
A caçar como solia,
Seus perros leva cansados,
Seu falcao perdido havia. (3)
Em outra versão, substitue-se o costume moderno:
Seus cães leva cansados,
Sua forôa perdida.
Nos cantos populares são frequentes as allusões aos
MJ Elucid.^ vb.° A d u a .
(2) Ethnogénie gauloise, t. ih, p. 468.
(3) Cantos populares do Archipelago açoriano, n.°* 1 e 3; e 20.
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72 LIVRO I, CAPITULO II
costumes da caça; no romance da Moreninha, diz a
mulher ao marido que se levante cedo,
Que o melhor coelhinho
E o que sae de madrugada, (i)
No Nobiliário cita-se a lenda da Dama pé de Ca­
bra, onde vem descripto o costume da caça ao porco
montez, com que se sustentavam os fidalgos da epoca
neo-gothica.
Na farça do Clérigo da Beira descreve Gil Vicente a
monomania da caça, tal como a que ainda se observa
em alguns parochos ruraes. Diz o filho do clérigo :
F r a n c is c o : Sabeis pae, que esqueceu lá
A furôa?
C l é r ig o : Vae por ella.
F r a n c is c o : De hüa legua hei d’ir trazel-a ?
Melhor viva eu, que lá vá.
C l é r ig o : Pesar da ida e da vinda
Vae, torna pela furôa.
F r a n c is c o : Yá lá quem tiver corôa,
Que eu não na tenho ainda.

C l é r ig o : Yae, que já está no cortiço,


Senão, tomal-a e trazel-a.
F r a n c is c o : Já má hora vou por ella
Mas hei de furtar chouriço.
Depois d’esta scena, pae e filho rezam as matinas,
segundo a farsiture medieval:
C l é r ig o : Venite, exultemus,
Que cães e furão que temos
Para tempo de mister.
(1) Romanceiro gerai n.° 56.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 73
F r a n c is c o : Domine Deus noster
Nos dô com que os manter,
E coelhos que levemos.
C l é r ig o : Oremos.
F r a n c is c o : , Bem faremos.
C l é r ig o :Venham-me os cães,
As rêdes e o furão,
Mas o coelheiro não...
Depois cTesta scena o clérigo falia ao cães com os
gritos apropriados, fazendo um rythmo com os la­
tidos :
Anda Tejo á Fragueira.
CÃo: Ham, ham.
C l é r ig o : Guard’o cabrão.
CÃo : Ham, ham.
C l é r ig o : Ora, cadella.
Ca d e l l a : Hão, háo.
C l é r ig o : Eil-ovae pela portella.
Em outras passagens d’esta farça Gil Vicente allude
a uma outra fórma de caça, ainda adoptada pelos
rapazes: «é um viscoj — que caça toda a manada.»
Conserva-se esta fórma de caça no Minho, por meio
de Armdos com visco, descripta pelo sr. Leite de
Vasconcellos, nas Tradições populares de Portugal,
(p. 192,) onde cita as differentes armadilhas empre­
gadas pelos rapazes para apanharem os passaros, taes
como o Alçapão, os Caniços ou Naças, a que nos Aço­
res se dá o nome de Cestilhas; o Caixão, para os
pombos, o Castellão, para as sombrias, a Rède, o Laço,
as Costellas, (1) Abuizes e Inxozes: «Para apanhar
(1) D. Francisco Manuel de Mello descreve este uso no sé­
culo x v i i : «cahiu na costella. O diabo péga como visgo; não lhe
escapa nada pela malha.» Feira de Anexins, p. 156. E no Can­
cioneiro geral (t. i, 184):
Rodeam por não cairem
em costellas.

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74 LIVRO I, CAPITULO II
os passaros usam-se na Sortelha (Beira Baixa) umas
armadilhas (chamadas costellas) de rède, com um pin­
cho onde se põem aúdes(formigas de a
os tralhões vêm apanhar os , a armadilha cae
e elles ficam prezos.— Os Abuizes, são uma especie
de armadilha com um laço de cabello e aúdes.* As­
sim como a caça serviu para as populações sedentá­
rias como um exercicio de guerra, tambem se tornou
um desenvolvimento do ardil. O padre Torquato de
Azevedo descreve a caça das cabras montezes no
Suajo, no fim do seculo xvii: «Matam estes animaes
com tiros de cima das arvores; mas como são muito
fortes, é necessário que o tiro dê em parte vital, por­
que de outra sorte ferido vae perder a vida aonde
se não pôde achar: o modo com que vão á caça d e s­
tes animaes é armando-lhe sobre as penhas um taboão
com herva fresca em uma ponta, o qual está de tal
sorte equilibrado, que caminhando por ella a cabra
ao pasto da herva, perdendo o equilíbrio se despenha
com ella, a qual na queda arrebenta, e os que arma­
ram o taboão, que estão esperando a queda, a vão bus­
car m orta: o gosto da carne é semelhante á do veado,
e o couro é mui util para o calçado da gente do
campo.» (1) A caça foi idealisada nas cosmogonias e
mythos primitivos; no Genesis, Nemrod é «o grande
caçador diante de Deus,» e nos mythos indo-euro
a Caçada furiosa refere-se ao pheiiomeno solar da
saida do verão e da entrada do inverno, ou vice-versa.
Com este caracter se allegorisava na Procissão de
Corpus, coqjo se vê pelo Alvará de 1621: «Primeira­
mente os hortelãos e moradores da freguezia de
S. lldefonso, com seu Bey, Emperador, Urso, carro
e montaria, e acompanharão o urso pelo menos oito ho-
(1) Memórias resuscitadas da antiga , p.
(1692.)

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 75
mens com suaslanças eqchuçasuatro de cada cousa.»
Frei Bernardo de Brito descreve o costume da Mon­
taria com o Porco prelo, que os habitantes de Braga
faziam na vespera de S. João, sendo prohibido por
D. Affonso Furtado de Mendonça. Ao tratarmos da
festa de S. João seremos mais explícitos sobre este
costume do mytho solar, representado na fôrma da
Caçada, a qual em alguns povos europeus degenera
em uma Cavalgada ou Mesnie furieuse, identificando-se
com as lendas guerreiras do rei Arthur, do rei Klint,
do rei Waldemar, de Barba Roxa e Dom Sebastião.
A fôrma popular d’este costume chama-se Correr o
montujo, e acha-se assim descripto: *Correr (escorra­
çar) o montujo, é uma caçada phantastica, que se rea-
lisa na Vieira pela seguinte fôrma: Na quinta feira da
Ascensão, depois do sol posto, o povo, com grande
berraria, tocando buzinas, e dando tiros, começa a
afugentar o montujo. Por montujo entende-se todo o
animal damninho.» (1)
A Pésca.— Esta fôrma primitiva da actividade espon­
tânea deu origem á divinisação dos lagos e dos rios,
e nas civilisações insulares ás lendas dos Peixes-Sal-
vadores, como os Oanes do Golfo pérsico, que inicia­
ram os progressos industriaes da Chaldéa. Nos contos
populares portuguezes ainda existe o Peixe que dá
fortuna àquelle que o pescar e o tornar a atirar á
agua. O trabalho da pésca conserva-se em Portugal
na sua fôrma rudimentar, e os que a exploram for­
mam uma classe profundamente atrazada, imprevi­
dente, confinada em uma rotina secular aggravada pela
espoliação do fisco. Muitos dos seus costumes têm
uma importância singular. As mulheres de Avintes
(i) Z. Pedroso, Superstições populares, n.a 702. no Positi­
vismo.

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76 LIVRO I, CAPITULO II
remam pelo Douro abaixo e vão pescar no alto m ar;
M.“e D’Aulnoy notou este mesmo costume na ribeira
d’Andaye: «Os nossos pequenos bateis eram condu­
zidos por moças de uma habilidade e de uma genti­
leza encantadora; ha tres em cada um, duas que
remam e uma que vae ao lême.» (1) Em uma Memória
sobre Pescarias, pelo dr. Lacerda Lobo, descreve-se
o processo rotineiro das rêdes de conhecidas
no seculo xvi com o nome de acederes, e prohibidas
aos pescadores de Setúbal, por destruírem a sardinha
miuda ou enxaqueques. Esta prohibição estendeu-se
pouco depois aos pescadores de Sines, Odemira, La­
gos e Tavira. Dom Sebastião deu licença aos mora­
dores de Ponte do Lima para pescarem no rio saveis
e lampreias, porém com a malha da rède determinada
pela Camara municipal. As rêdes de arrastar continua­
ram a ser sempre usadas, máo grado as disposições
policiaes; acham-se prohibidas outra vez em 1607
sob o nome, que então tinham, de Chinchorros, e em
1615 as que se chamavam repetindo-se
a prohibição no alvará de 3 de maio de 1800. (2) A
rotina imprevidente tem resistido sempre com a sua
invencivel força de inércia, que é explorada pela su­
perstição. Os barcos da pésca depois de promptos são
baptisados, bem como se abençôa com agua benta o
local onde se lançam as rêdes. Lêmos em um jornal
da província: «É costume em algumas terras do paiz
fazer-se na Paschoa uma cerimonia que tem o nome
de Lanço da Cruz, e que consiste em os parochos de
algumas freguezias, com a cruz e a caldeirinha, irem
espargir com agua benta o logar onde é costume lan­
çar as rêdes. Na semana passada realisou-se no logar
de Segadães, freguezia de Christello-Côvo, esta ceri-
(1) Voyage en Espagne,p. 14. Ed. Carey.
(2) Panorama, t. iv, p. 184.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 77
monia, sendo o resultado d’esta pésca um savel, que,
como é costume, foi offerecido em acção de graças
a sua reverendíssima. » (1) Existem irmandades de
pescadores, tendo por patrono S. Pedro Gonçalves ou
a Senhora da Lapa, que se festejam com arraiaes e
procissões; estas irmandades tomam o caracter de
pequenos monte-pios.
A industria da pésca apresenta duas fórmas : a de
pequena exploração por meio de Companhas, como
ao norte de Portugal, e as que dependem da alliança
com o capital, como as pescarias do atum no Algarve.
No Relatorio do Inquérito industrial de 1881, formu­
lado pela subcommissão do Porto, acham-se noticias
importantes sobre as pescarias em Gaya, Gondomar,
Bouças, Villa do Conde e Povoa, no districto do Porto:
«A pescaria existe em todo o districto nas condições
mais primitivas, chegando a ser a colonia de pesca­
dores da Povoa um interessante exemplo de archaismo
industrial e talvez ethnologico.— Á pésca do rio ac­
cumula a apanha do caranguejo na foz do Douro...
Sob o nome de pilado os lavradores do norte e do
sul do Douro compram o caranguejo para usarem d’elle
como adubo das terras.— Se em Gaya e na Povoa a
apanha do caranguejo constitue uma industria de pes­
cadores, os lavradores de toda a costa ao norte do
Douro, alternando as suas occupações, vão em pes­
soa buscar ás praias os adubos para as proprias ter-
’ ras.» (2) É ao que em Aveiro se chama moliço; alguns
lavradores colhem o musgo trazido á praia pela maré,
com engaços e o carreiam para os campos, onde o
deixam fermentar em pilhas ao àr livre.
A classe dos pescadores tem outras industrias sub­
sidiarias da pésca, como a feitura das rêdes de ma-
(1) Actualidade, n.* 73 (x anno.)
(2) Relatorio, p. 19.

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78 LIVRO I, CAPITULO II
lha, a torcedura das linhas e sua preparação tornan­
do-as imputresciveis por meio da erva de ensayão. A
actividade acha-se também distribuída: «os pescado­
res de Mathosinhos são os rapazes ou marinheiros
inválidos, ou marítimos que descansam no intervallo
das viagens. Quer em Bouças, quer em Villa do Conde,
a pésca sempre teve um caracter apenas subsidiário
da principal occupação marítima dos seus habitantes
— a navegação. A pésca era e é ainda (embora essa
navegação se possa dizer extincta) a aprendizagem ou
a reforma dos marinheiros è moços de bordo.» (1)
As mulheres têm tambem uma parte activa, reali-
sando a venda do pescado, tanto em Lisboa como no
Porto: «e na Foz como na Povoa são as mulheres
quem toma conta do peixe e o vende logo que o barco
chega.» (2)
Na Povoa: «acha-se ahi uma verdadeira colonia de
gente pescadora por tradição e officio exclusivo.» A
industria apresenta a fórma associativa de Companha:
«cada barco é uma sociedade ou corporação funccio-
nando associada ou mutualistamente. O barco é uma
construcção primitiva, na plena accepção da palavra;
a sua armação é simples, e equipado com as rédes e
outros utensílios pobres e rudes, constitue o pequeno
capital da industria. Entretanto, nem todos os pesca­
dores são donos dos barcos; quando os não possuem,
porém, nem por isso trabalham sob o salario de
algum emprezario. Na distribuição das partes do pro-
ducto {quinhões), o barco, quer seja proprio quer alu­
gado, entra por uma parte, que n’um caso serve para
as reparações e no outro para ellas e para o aluguer.
(1) Relatorio, p. 19 e 20.
(2) Ihidem, p. 309.- «São estas quem vende o peixe e cura
dos aprestos dos barcos. O pescador desembarcado terminou
o seu trabalho : a esposa é quem dirige a economia da indus­
tria.» Pag. 22.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 79
Além da quota do barco, a parte da Senhora da Lapa
entra sempre na repartição do producto; e o pecúlio
formado com essas quotas constitue o fundo da irman­
dade, que attende ao culto da supposta protectora
dos ingênuos pescadores, além de lhes ministrar cer­
tos soccorros nas occasiões de crise. A irmandade
da Lapa, segundo o typo vulgar historico, é ao mesmo
tempo um monte-pio; e a organisação social dos pes­
cadores da Povoa apresenta-nos ainda de pé um espe-
cimen archaico d’essas corporações de oflicios que
passaram dos costumes da Antiguidade para os da
Edade média...» (1) Esta mesma organisação se acha
na Ilha de S. Miguel, nas irmandades dos pescadores
sob o titulo de S. Pedro Gonçalves, personificação do
fogo meteorico do Santelmo. Tirado o primeiro qui­
nhão, que é o do santo patrono: «o producto é ainda
dividido pela companha na proporção do merecimento
dos tripulantes, mestre, pescadores, moços, segundo
a capacidade, mais ainda segundo a edade, e segundo
o numero de rédes que cada um possue. Um tem
uma parte, outro meia, outro um quarto.— O produ-
cto da pésca é porém cerceado, antes da divisão, pelo
fisco, na decima sexta parte; imposto de uma voraci­
dade unica entre nós, e tanto mais abusivo quanto a
população vive n’um estado primitivo e isolado, em
que, póde dizer-se, nada pede, nem nada recebe do
Estado.» (2) «O producto liquido da industria é roido
ainda pela usura. Os compradores do peixe, mulhe­
res regateiras que por via de regra enriquecem, são
como as harpias do trabalhador. Cerceiam os preços
que lhe pagam pelo peixe com a usura dos emprésti­
mos que lhe fazem no invèrno, quando o mar bravio
condemna o pescador á fome. Empenham-se então as
(1) Relatorio, p. 2i.
(2) Ibidem, p. zl.

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80 LIVRO I, CAPITULO II
rêdes.— Na sua imprevidência natural e excitado por
um alimento aphrodisiaco, o pescador é prolífico: as
crianças enxameiam nas ruas, e esta circumstancia
vem aggravar ainda as occasiões de crise no in­
verno.» (1)
Na industria da pésca em alguns pontos do paiz,
empregam-se bois, para puxarem as rêdes. O histo­
riador Henri Martin observou com espanto este facto,
quando veiu a Portugal ao Congresso anthropologico
de 1880: «Um dia, passando proximo de um porto-
sinho, não longe da cidade do Porto, avistámos uma
immensa fileira de bois, que iam por entre as dunas
para o mar.— Então, que fazem elles para ali? per­
guntámos. Vão por ventura lavrar o oceano?— Não;
vão á pésca t Estavam ali immensas rêdes, que se
estendiam pelo mar quasi uma milha; iam jungir-lhes
os bois para puxar para terra essas prodigiosas mas­
sas com a enorme quantidade de peixe que envolvem.
Aqui tudo surprehende, tudo diverge dos aspectos a
que os nossos olhos andam acostumados; o rio, a
capital, as outras cidades muito mais ainda, as casas,
os hábitos, a vegetação.» Alguns costumes remon­
tam-se aos povos primitivos; assim no Algarve ali­
mentam-se os porcos, e os burros com sardinha, da
mesma fórma que os antigos Gaulezes, como conta
Belloguet: «É difficil de acreditar, posto que Hero-
doto faça menção de um tal costume em um povo da
Thracia, (v. 16) o que diz Eliano, ( xv, 25) de
alimentarem os Celtas os seus cavallos com peixe, e
bem assim os seus bois.» (2) No commercio, os por­
cos e gallinhas vindos das povoações ribeirinhas cha­
mam-se sardinheiros, e a sua carne tem um gosto
especial desagradavel.
(1) Relatorio, p. 23.
(2) Ethnogenie gauloise, p. 464.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 81
No livro das Tradições populares de Portugal, o
sr. Leite de Vasconcellos cita alguns apparelhos de
pésca bastante característicos, taes como a Chumbeira,
rêde em fórma de saia cosida pela cintura e a que
no Marvão se chama Tarrafa. Usa-se no Minho, Douro,
Beira e Açores. A oçaN, semelha-se á rèd
tellão, cosida em um arco e em fórma conica, e col-
loca-se na parte mais estreita do rio; a ,é
uma rêde que se atravessa no rio, ou se colloca nos
aloques, batendo-se a agua, para os peixes irem para
a rède; o anÂhór , assim denominado pela fórma da
téa da aranha emprega-se para os saveis e lampreas
do Tamega e Douro; ha outras especies de rèdes,
como boqueiro, estremalho, barbai, lampreeiro e caba­
ceira. ( 1 )
Á industria da pésca, ligam-se a das salinas e sal­
garias. Sobre a industria do sal escreve o dr. Ma­
nuel da Maia Alcoforado: «Os nossos marroteiros e
os proprios donos das marinhas ignoram, quasi todos,
os princípios rudimentares de physica em que repousa
o phenomeno da salinação... As nossas salinas, quanto
ás differenças dos methodos usados na fabricação do
sal, dividem-se em dois unicos grupos: o primeiro
abrange as que têm o solo mineral tornado duro arti­
ficialmente, e o segundo as que são revestidas por
um tapete vegetal naturalmente resistente.— Perten­
cem ao primeiro grupo as Marinhas de Aveiro e as
da Figueira; e fazem parte do segundo as de Setúbal,
as de Lisboa e as do Algarve » (2) A linguagem te-
chnica dos serviços das salinas é riquíssima e immen-
samente pittoresca. O pescador apresenta tambem um
typo característico de classe, como o o
veiro, o Algarvio,e o Mamoto. Dá-se este nome ao
íi) Op. cit., p, 193.
(2) Museu technologico, p. 47.
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82 LIVRO 1, CAPITULO II
que trabalha nas salinas de Aveiro, mas em especial
ao homem que trabalha em bateiras no Mamei junto
do Vouga. (1)
Nas grandes pescarias, emprega-se os galeões, a que
nos Açores (ilhas de baixo) se chamam Barcos de
boca aberta; navegam para o mar alto, em geral ainda
guiados pelas estrellas, de cujo costume proveiu a
antiga locução perder a tramontana. (2) A pésca acha-se
também idealisada na poesia popular, dando logar
(1) Não existe o culto da Deusa Mama, mas ainda se chama
ao campo alagadiço Mamei
(2) Na antiga navegação, anterior ainda ao seculo xir, cha­
mava-se tramontana a estrella polar; eomo por ella ainda se
dirigiam os marinheiros, d aqui figuradamente a expressão das
dificuldades em que se achava o que a perdia; eis a lingua­
gem de um poema francez do seculo xn em que se authentica
este faeto:
De nostre pere l’apostoile
Yonsisse qu’il semblast l’estoile
Qui ne se meut; mont bien la voient,
Li marinier qui si navoient.
Par cete estoile vont et vienent
Et lor sens et lor voie tienent ;
11 l’appellent la tresmontaigne,
Celle est atachi et certaine :
Toutes les autres se removent,
Et lor leus eschangeat et meuvent,
Mais cele estoile ne se meut.
(Ms. doi/ xn
vj-d« u a u siècle, Ap.
üivviu^ n p « Becquerel,
U vU ijuu i Re-
? xtv*
sumé de l’Hist. de Electricité, p. 58.)
Nas praias açorianas, apparecem sementes de Dolichos urens
e de Mimosa scandens trazidas pela corrente do golpho do Mé­
xico, quando recebe as aguas do Mississipi. Estas sementes,
que para os navegadores antigos eram os indicios de uma terra
ao occidente dos Açores, são hoje aproveitadas pelos pesca­
dores açorianos para guardarem n’ellas o simonte. Diz o Dr.
Ernesto do Canto: «Nos Açores dá-se-lhe vulgarmente o nome
de Favas do mar; os maritimos servem-se todos d’ellas para
guardarem o tabaco em pó que usam para cheirar.» (Arehivo
dos Açores, t. iv, p. 582.)

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 83
á creação do genero das B,de que temos
magníficos especimens no Cancioneiro da Vaticana.
A guerra defensiva.— Um capitão donosso exer­
cito, fallando do recrutamento em um jornal, con­
fessou que a ninguém repugnava tanto o serviço
militar como aos portuguezes. De facto para não ser
soldado o aldeão ainda córta os dedos da mão eom o
machado, para não poder puchar o gatilho da es­
pingarda; este costume acha-se entre os gaulezes,
que davam o nome de Murcusáquelle que cortava o
dedo polegar para se isentar do serviço militar. (1)
No Minho temos ouvido a palavra Murcão empregada
como injuria á pessoa desageitada; de facto o murcus
não podia sustentar a bésta. Com este caracter os
povos antigos da Luzitania recorriam á guerra como
defeza, dando-lhe a fórma de embuscadas; a naciona­
lidade portugueza, acabado o periodo das guerras
defensivas da sua independencia, accentuou-se na his­
toria pela actividade das grandes navegações. Nenhum
povo se soube defender com mais bravura do que o
portuguez, repellindo a occupação hespanhola e a
invasão franceza. DizStrabão: «OsLuzitanos, segundo
contam, são excellentes para armar embuscadas e
descobrir pistas; são ageis, rápidos, dextros. Ar­
mam-se de punhal ou grande faca; alguns servem-se
de lanças com pontas de bronze...» Eram assim os
chuços na epoca da invasão franceza. A guerra defen­
siva apresenta uma fórma peculiar.
A fórma das batalhas por meio de que
tanto tem distinguido o povo hespanhol e portuguez
nas luctas pela sua independencia, é um costume das
primitivas tribus germanicas. Cesar nos seus Com-
(1) Ammiano Marcellino, xv, 12: Belloguet, Glossaire gau-
lois, p. 114.

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84 LIVRO I, CAPITULO II

mentarios diz d’estas escaramuças: «genero de com­


bate no qual os Germanos alcançaram uma grande
habilidade.» (Livro i, § x l v ii i .)
Por outro lado o costume das altnenaras, ou fogos
de aviso, já se encontrava tambem nos costumes da
milicia romana; diz Cesar, nos seus Commentarios:
«do nosso lado, tendo-se dado o alarme por grandes
fogueiras, que era o signal prescripto e acostumado,...»
(Liv. ii, § xxxiii.) Por estes dois factos se conhecem
os caracteres do romano-gothico nos costumes penin­
sulares. Mas nos usos consuetudinarios, o fogo é signal
de paz, tal como se acha no provérbio juridico Fogo
e logo; tambem nos monumentos egypcios, nas escul-
pturas das batalhas, o fogo é o signal da fortaleza
sitiada quando pede paz; é portanto o mais antigo, e
de origem turaniana.
Não é sem influencia a organisação militar primi­
tiva na vida social. A dependencia do soldado para
com o seu chefe territorial apparece na vida civil sob
varios aspectos, jà como clientella, já como commen-
sal. A palavra Malado, que ainda hoje se emprega jà
sem sentido nos romances populares, deriva segundo
Munoz y Romero, da: «Palavra arabe maulat, que si­
gnifica patrocínio, clientella, e ao que estava sob a
encommenda de outro, homem de benefactoria (de Be-
hetria) ou altus,que equivaleria a maulá, nome
m
com que os Arabes designavam o cliente.» (1) No ro­
mance da Infantina, ainda se diz:
Eu sou filha de um
Da maior malataria;
Homem que a mim se chegasse
Malato se tomaria.
D’esta dependencia do cliente resultavam certas
(1) Del Estado de las P
neor,p.
sa 44.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 85
obrigações feudaes; da parte dos nobres havia tam­
bém a obrigação de sustentar os soldados em cam­
panha, por isso á sua insígnia do Pendão andava
annexa a da Caldeira. Este costume manteve-se pela
fidalguia em epocas pacificas, tendo as suas casas com
meza franca e como azylo de quem queria recolher-se
a ellas. Diz Gaspar Fructuoso, fallando do Conde da
Calheta Simão Gonçalves da Camara: «Era inclinado
a ter sua casa em que morava sempre
para o que mandou fazer dos muros a dentro um jogo
de bola, em que gastou mais de quinhentos cruzados,
onde biam folgar muitos da cidade e de toda a ilha;
e por este respeito e por outros desenfadamentos que
tinha e ordenava das portas a dentro, sempre estava
cheia sua casa de gente de toda a sorte, etc.» (1) Como
se estava já fóra da epoca da guerra privada do feu­
dalismo, essa actividade bellica convertia-se em jogos
de força e de presteza. Continua Fructuoso: «Era o
capitão Simão Gonçalves affeiçoado a vêr folgares,
touros, luctas, e jogar cannas e todas as mais festas
e jogos para alegrar o povo; nos dias de luctas, prin­
cipalmente nos de S. Sebastião e de S. Braz, ajuntava
no terreiro, defronte de suas casas, muita gente de
toda a ilha; e se vinha algum grande luctador, e ha­
via outro que lhe dava duas quedas, lhe mandava dar
a capa que o tinha coberto, além de grandes fogaças,
que de sua casa estavam prestes, como marrãs mor­
tas, e tambem algum dinheiro para todos os luctado-
res.» (2) Já Strabão fallava dos jogos dos Luzitanos
como fôrma da actividade militar defensiva: «Cele­
bram jogos gymnicos, hopliticos e hippicos, nos quaes
se exercem no pugilato, e na carreira, e simulam esca­
ramuças e batalhas campaes.» Assim essa lucta pri-
(1) Saudades da Terra,p. 297. Ed. Funchal.
(2) Ibidem, p. 298.

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86 LIVRO I, CAPITULO II

mitiva conservou-se no bafordo, a carreira no aléo, e


os jogos hippicos nas cavalhadas. O serviço dos che­
fes militares era uma distincção, e por isso o capitão
Simão Gonçalves conservava na sua casa esse costume
que ficou privativo da realeza moderna: «Servía-se
este capitão com os filhos dos melhores e mais hon­
rados da terra, e, se eram taes, fazia-lhes muito
bem assi no tratamento de suas pessoas, como em os
casar rica e honradamente, etc.» (4) Na sociedade civil
a aristocracia conservou os restos d’esta actividade
guerreira nos trajos, recebendo a sua classe a desi­
gnação de Capa e Espada; lê-se em um viajante do
seculo xviii em Portugal: «Vê-se andarem os homens
pela rua trazendo uma espada , a maior parte
do tempo debaixo do braço, e um rosário na mão,
fallando ácerca de negocios e divertimentos, mas não
deixando de resar, ou pelo menos de o fingir, parti­
cularmente quando estão uns com outros.» (2) O mi­
litar portuguez era simultaneamente bravo e fanatico,
como o Condestavel Nuno Alvares, ou esse outro typo
tambem popular do Saldanha. O duello, resto da guerra
privada do feudalismo, que passou para a sociedade
civil na fórma de Combate jé recl
seculo xvi pelo velho Conde de Marialva contra o
Marquez de Torres Novas, invocando o F&ro velho de
Castella. No meio da sociedade pacifica do seculo xvi,
quando estava terminada a reconquista neo-gothica,
a aristocracia continuou a desenvolver a sua capaci­
dade guerreira n’essa monomania dos Valentões, com-
mum a Portugal e Hespanha, como se conhece pelos
versos de Camões, e pela morte do joven D. Tello de
Menezes. A Valentia, depois das arruaças nocturnas,
exercia-se nas corridas de touros; lê-se na Description
(1) Saudades da Terra, p. 298.
(2) Description de la Ville de Lisbonne, 1778.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 87
de Lisbonne: «Antigamente os dias de grande gala
eram festejados com corridas de touros, que duravam
alguns dias ; foram porém supprimidas no fim do
ultimo reinado, pela influencia da rainha. Como o rei
D. Pedro seu marido, que tinha uma força extraordi­
nária, gostava immenso de ir n’estas occasiões agar­
rar um touro á unha, a rainha receiando que lhe
acontecesse alguma desgraça, tanto trabalhou que
obteve d’elle a suppresslo d’estas corridas, e conten­
taram-se depois com dal-as por occasião do nasci­
mento dos principes e princezas.» Ainda hoje as cor­
ridas de touros se fazem como uma distincção, e como
passatempo ao domingo, ás vezes com intuito de cari­
dade.
A descoberta das armas de fogo veiu tornar mais
expedita a guerra, dando-se uma recrudescencia na
Europa sob a fôrma de guerras dynasticas. Fernão
d’Oliveira, indica o anno em que o arcabuz começou
a ser usado em Portugal : «E arcabuz ha sete ou oito
annos (1528-1529) pouco mais ou menos, que veiu
ter a esta terra com seu nome d’antes nunca conhe­
cido n’ella.» (1) O povo até á entrada dos francezes
conservou a arma tradicional do chuço, com que fazia
a sua defesa territorial.
A terra é tambem um vinculo que chama os mora­
dores à defesa commum, mais ainda do que o per-
stigio pessoal de um chefe. O sino da torre do Conce­
lho é que chamava o burguez para o combate. No
Cancioneiro da Vaticana lê-se este verso precioso :
«Tal Concelho tal cam
pn®. Gaspar Fructuoso,
creve : «em cima da qual (torre) está um sino de relo-
gio tão grande que levava em sua concavidade trinta
alqueires de trigo, e de tão soberbo e grande som,
que se ouve de duas léguas, onde acode a gente a
(1) Grammatica, cap. xxxn. Foi publicada em 1536.

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88 LIVRO I, CAPITULO II

qualquer rebate de guerra, quando elle se tange.» (1)


Quando o Funchal foi atacado por um corsário fran-
cez, á primeira suspeita «deram rebate ao Capitão,
o qual mandou dar repique no sino; e, ainda que era
meia noite, em que todos ordinariamente repousam,
em menos de uma hora se ajuntaram com seu capi­
tam quasi quatro mil pessoas...» (2) Depois d’esta
narrativa do seculo xvi, vêmos o costume repetir-se
no começo do presente seculo na lucta defensiva con­
tra as tropas da invasão napoleonica; diz Nayles, fal-
lando da resistência de Penafiel: «O toque de rebate
fazia ouvir-se por toda a parte, o som lugubre e pavo­
roso do sino imprimiam uma especie de espanto, que
nunca fôra inspirado pelo rebombar da artilheria e
da espingardaria.» (3) É esse mesmo sino do rebate,
que o povo emprega para afugentar as tempestades,
segundo aquella epigraphe de Schiller: Vivos voco,
mortuos plango, fulgura frango.
Do estado de guerra primitivo, persistem apenas
na epoca pacifica da industria a fórma das hostilida­
des locaes, e as antipathias de classe.
As hostilidades nacionaes e locaes.— Os povos anti­
gos eram naturalmente inimigos uns dos outros, se­
gundo a phrase de Hobbes, guerra omnium contra
omnes. O progresso da civilisação consistiu na dimi­
nuição crescente d’esta insociabilidade, manifestan-
do-se gradualmente pelas confratemidades e pelas
federações. Comtudo, ficou um resto de desconfiança
tradicional contra o estrangeiro. As hostilidades na­
cionaes e locaes são os vestigios de epocas históricas
de separação entre os diversos estados, quando a
(1) Saudades da Terra, p. 86.
(2) Ibidem, p. 298.
(3) Memoires sur la Guerre, p. 109. Ap. Bemardes Branco,
Portugal e os Estrangeiros, t. i, p. 524.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 89
relação de estrangeiro se exprimia pela ideia de in­
imigo, hostis. Segundo Diodoro Siculo (Diod., iv, 19)
chamava-se xenoctonia o costume de dar a morte a
todos os estrangeiros, que existissem na Geltica; os
Ligurios são chamados por Tito Livio, et in-
sociabiles (Tit. Liv., xxvii, 39); os Bretões eram tam­
bém crueis para com os estrangeiros, caracter a que
allude Horacio, chamando-lhes : Britanos hospilibtts
feros (Od.j iu, 4). No seculo xvii, os estrangeiros ainda
conservavam em Portugal uma designação de descon­
fiança ; diz o padre Vieira : «Ha perto da nossa barra
de Lisboa uns ilheos, que chamamos Berlengas, e por­
que passam por elles todos os estrangeiros que vêm
do Norte, chamamos a todos (1)
As hostilidades locaes foram sempre vivissimas na
Italia ; d’onde Giusti fez o ditado : «Trez castellos, trez
punhaes.» Accrescenta Marc Monnier : «Em tempo de
paz as communas que não se amavam continuavam a
guerra pelo chasco, e para não fallar senão da Sicilia,
Salaparuta e Gibellina, apodam Pastanna que lhes paga
bem ; Palermo que foi capital escarnece os provincia­
nos, que por seu turno retrucam aos Palermitanos ;
e Mont Erix acha Trapani completamente ridiculo, e
Trapani vinga-se cantando as victorias dos seus habi­
tantes sobre os maridos do Mont Eryx. Em revindi-
cta todos os Sicilianos estão conformes em amesqui-
nharem os Calabrezes, e sobretudo os Napolitanos que
os dominaram. » (2) Este facto que se dá nos estados
extremamente divididos, repete-se na península hispâ­
nica, conservando-se depois da unificação política ainda
nas antipathias de classe. Dunoyer, na sua importante
obra da Liberdade do ,Trablho descrevendo a
dos privilégios e das desegualdades feudaes, quando
(1) Arte de Furtar,p. 299.
(2) Les Contes populaires d’Italie. (Rev. des Deux Mondes,
15 de agosto, 1875, p. 835.)

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90 LIVRO I, CAPITULO II

as localidades possuiam no seu separatismo um certo


numero de immunidades, quando a Egreja tinha di­
reito seu, quando as classes operarias formavam Juran-
das em lucta aberta entre si porque reduziam a indus­
tria á fórma exclusiva dos monopolios, quando as
familias se tornavam inconciliáveis entre si pelo orgu­
lho genealógico, o eminente economista deduz que,
as hostilidades locaes eram a consequência immediata
d’esta organisação social, hostilidades que persistiram
na tradição mesmo depois d’esses privilégios separa­
tistas terem sido incorporados no centralismo do es­
tado. Em um documento do seculo x iii encontramos
um vestigio d’essas hostilidades, que ainda hoje se
repetem : «Em signal de se ter posto termo aos mui­
tos damnos e aggravos dos dois concelhos, nós ordena­
mos que o Alcaide da Covilhã désse um osculo de paz
ao mestre do Templo, e que o mesmo fizessem os
alcaides da dita villa aos alcaides de Castello Branco,
o que immediatamente se cumpriu.» (1) Um docu­
mento de 1266, allude a grandes discórdias entre os
Concelhos de Aguiar da Beira e Cernancelhe : «mui­
tas baralhas.» (2) Ainda em 1884 referiram os jornaes
grandes conflictos entre os habitantes da parte alta
de Alemquer com os da parte baixa.
0 espirito satyrico da Edade media, que inspira os
fabliaux e as farças, foi em parte o reflexo d’esses
antagonismos sociaes e locaes. Entre as nações do
Occidente, que chegaram a desconhecer a sua solida­
riedade histórica, essa hostilidade exprimiu-se tam­
bém nas suas litteraturas. A Italia parodia de um modo
grotésco as Gestas francezas ; a Hespanha ridicularisa
o typo grandioso de Carlos Magno; os Provençaes
chasqueam dos trovadores allemães, e os troveiros
(1) De 1230. Ap. Herculano, Uist. de Portugal, t. iv, p. 444.
(2) Elucidário de Viterbo.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 91
frankos chamam os guerreiros para a cruzada san­
grenta contra a França meridional. O povo ridicula-
risa a aristocracia no seu poema de , e os Go-
liardos ridicularisam em farsiture os cantos ecclesias-
ticos, e trazem para a scena os Reis e os Papas, e
as figuras do evangelho. Este espirito cáustico espa­
lhou-se nas conversas, e nos apodos locaes ou ditados
topicos, a que os francezes chamam chanter pouiUe.
Na Grecia chamava-se a certos logares públicos onde
os ociosos se ajuntavam para conversarem e bisbilho­
tar ao calor do sol, lesche; este mesmo costume se
observava em Roma nas stationes e tonstrina. É ao
que em Portugal se chama o soalheiro; nas aldeias
chama-se-lhe o raposeiro, e em algumas cidades o pas-
matorio. Cambes cita este costume no prologo da sua
comedia de El rey Seleuco : «E diz que quem se d’ella
não contentar, querendo outros novos acontecimentos,
que se và aos soalheiros dos escudeiros da Casta-
nheira, ou de Alhos Yedros e Barreiro, ou converse
na Rua Nova em casa do Boticário ; e não lhe faltará
que conte.» O sequeiro das Chagas e o alto de Santa
Catherina eram no começo do seculo xvni afamados
pela concorrência dos caturras, como se lê no Fo­
lheto d’ambas Lisboas. Os apódos pessoaes são im-
mensamente variados, apresentando ás vezes o cara­
cter de recorrência ethnica ; M.me D’Aulnoy, na sua
viagem a Hespanha, diz dos apódos dos barqueiros :
«Vim de Dax embarcada, e notei que os barqueiros
do Adon têm o mesmo costume que os do Garonna,
isto é, quando passam ao lado uns dos outros inju­
riam-se ( ilsse chantent pouille) e elles antes queriam
não receber o seu frete, do que o calarem-se diante
d’estes apupos, ainda que espantem os que não estão
acostumados a isso.» (!) Ainda persiste este costume
(1) Relation du Voyage d’Espagne, p. 2. Ed. 1874.

r ' r v r v n O r i g i n a l from *
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92 LIVRO I, CAPITULO □

entre os pescadores portuguezes; no rio Douro cha­


mam-se r a b e l l o s ,e na ilha de S. Miguel chama
cas aos da freguezia de S. Pedro. Tambem certos
nomes proprios tém ligados na tradição popular apo­
dos sarcásticos, pela circumstancia que quasi sempre
os nomes eram o ultimo vestigio da fusão de certos
elementos ethnicos. Vejamos cada um d’estes grupos
de hostilidades.
Os nomes de povos, em geral, apresentam-se com
um sentido hostil ou malévolo; o significa o
astuto, o sagaz, tradição evidente de quando o Latim
era o vehiculo de toda a civilisação Occidental, e quando
o maior elogio ácerca da capacidade de um homem
era o chamar-lhe — bom latino. A lingua vulgar cha­
mava-se ladinha,e nos poetas da Edade media a lin­
guagem era designada pela expressão generica de
latim: «Cantam as aves em seu latim.»
O nome de Grego tem um sentido completamente
separado da historia, mas liga-se às tradições do fim
da Edade media ácerca do terror dos Ciganos; em
geral os Ciganos foram denominados no seculo xv
g r e g o s , como se vê pelo Cancioneiro geral de Garcia de
Rezende e pelos Autos de Gil Vicente. (1) Na lingua­
gem popular temos ainda a locução Ver-se signi­
ficando : achar-se em difficuldades, perseguido, como
acontecia aos ciganos por onde elles passavam.
O nome de Gothico é empregado no sentido de obse-
leto, atrazado, mas unicamente na linguagem culta.
O Mouro, que os escriptores ecclesiasticos pintavam
como odioso ás populações christãs, é um synonimo
de trabalhador, do que leva uma vida afanosa. É vul­
gar o proloquio Trabalhar como um mouro, e moure­
jar, por ventura da epoca em que os mudjares fica-
(1) Vid. o nosso estudo sobre A Origem dos Ciganos, no Po­
sitivismo, 1 . 1, p. 269.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 93
ram captivos na reconquista christã. Referindo-se ao
tempo dos Mouros, e aos thezouros enterrados que dei­
xaram em Portugal, a tradição popular diz do sitio de
Castro e de Santa Maria de UI :
Entre Castro e Castril
Cá deixaram seu ouril. (1)
O nome de Sarraceno apparece-nos na fórma inju­
riosa de Sarrasina, o teimoso, impertinente, com o
mesmo sentido empregado na poesia franceza medie­
val, nielles sarrasines. (2) A palavra Aravia significou
a linguagem do vulgo, e ainda modernamente desi­
gna nas ilhas dos Açores o canto heroico ou romance
cavalheiresco. O nome de GaUego é synonimo de gros­
seiro, sórdido, brutal, como se vè nos versos de Gil
Vicente, Sá de Miranda, Antonio Prestes e Camões.
O povo portuguez esqueceu as suas origens communs
com o gallego, e a fidalguia a sua principal prove­
niência. No Alemtejo chama-se gallegos a todos os povos
do Ribatejo, como uma réminiscencia vaga da antiga
unidade territorial da Galliza, que se estendia até ao
Tejo. Aldeia GaUega envergonha-se do seu nome, e
chegou a representar ao governo para mudar de de­
signação (
«Nas províncias do Minho, Reira Alta e Traz os Mon­
tes se chamam gallegas as cousas fracas, pequenas ou
pouco aproveitadas, v. g., gados, linhos, fructas, etc.
Da mesma sorte disseram antigamente gal­
lego, o que era de caracter miudo e nada magestoso.
Aquella antipathia das nações limitrophes e que repe­
tidas vezes se tem combatido fez que os portuguezes
olhassem com indifferença ou menos affecto para as
il) Panorama,t. vu, p. 344.
(2) Du Méril, Hist. de la Poésie Scandinave, p. 479.

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94 LIVRO I , CAPITULO O

cousas da Galliza como não frisando com os seus gê­


nios briosos e altivos.» (1)
É notável a hostilidade instinctiva entre o povo
hespanhol e a pequena nacionalidade portugueza, que
tem sempre resistido á incorporação politica; dizem
os hespanboes:
Portuguezes pocos,
Y eses locos.
Os portuguezes, que conheceram as consequências
dos casamentos reaes da filha de D. Fernando i, de
D. Affonso v, do principe D. Affonso, de D. Manuel
e D. João ui, e tambem de Carlos v com uma prin-
ceza portugueza, dizem ainda:
De Hespanha, nem bom vento
Nem bom casamento.
Nos ditados topicos hespanhoes, acha-se a fôrma
original:
De Jerez
Ni buen viento,
Ni buen casamiento,
Ni mujer que tenga asiento. (2)
Este mesmo ditado é applicado a outras povoações,
tal como a Granja de Torrehermosa, da província de
Badajoz: «Em todos os ditados que se referem a ven­
tos é regra constante que cada povo tenha má dispo­
sição contra o que está do lado do vento que mais
(!) Elucid., t. ti, p, 166. Ed. Innocencio.
Temos um proloquio popular:
Duzentos gallegos, não fazem um homem,
Senão quando comem.
(2) El Folk Lore frexnense, p. 67.

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RUDIMENTOS DÁ ACTIVIDADE ESPONTANEA 95
nocivo lhe possa vir para a saude publica e para a
agricultura. Por isso este ditado applicam-no á Granja
os visinhos de Berlanga e Ahillones, que recebem do
lado d’ella o desastroso solano; e pela mesma razão
deve encontrar-se entre os visinhos de Fregenal, Oliva,
ou Zahinos.» (1)É esta a razão porque o nome de
lego significa brutal, insolente, por que esse é o nome
do vento norte:
El viento gallego
Es la escoba dei cielo. (2)
Santa Rosa de Viterbo, traz no Elucidário a antiga
designação injuriosa que os portuguezes davam aos
hespanhoes: «Já conta alguns séculos o prejuizo louco
com que o vulgo portuguez chama aos castelhanos
Rdbudos, como se nascessem com um grande e ver­
gonhoso rabo. Mas não ha que admirar n’isto, pois
todas as nações confinantes entre quem houve guer­
ras, odios, invejas, etc., se costumam reciprocamente
injuriar com anexins e apódos, ou bem ou mal fun­
dados. E se os portuguezes chamam aos hespanhoes
RabudoSj estes os tratam de .» Nos ditados to-
picos hespanhoes os moradores de Calera chamam-se
por apódo Rabudos. (3) No tempo de D. João i, tam­
bém os hespanhoes nos chamavam Chamôrros (4)
(1) El FolkLoreBetico-Estremeno,p. H4.
(2) Ibidem, p. 85. «Ha um vento particular chamado vento
gallego; quando elle sopra, diz-se que foi algum gallego que
morreu arrebentado.» (Torre de D. Chama) Leite de Vascon-
cellos, Tradições, p. 47.
(3) Folk Lore frexnense, p. 66,
(4) «O nome de Chamôrro deram os castelhanos por des­
prezo aos portuguezes, resentidos da batalha de Aljubarrota...
0 mesmo rei D. João i de Castella dizia, que não tivera tanto
sentimento, se oveneera outra qualquer nação do inundo, mas
que não podia soffrer que assim o derrotassem uns poucos de
Chamorros.» (Elucidário.)

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96 LIVRO I , CAPITULO II

O nome de Francez emprega-se no sentido de falso


e cortez, e francesismo é essa qualidade moral que
repugna ao povo nà sua franqueza. As palavras Franco
e Franquias tém o sentido qualificativo de liberal, e
de garantias locaes. Yè-se que sobrevivem da epoca
em que varias colonias do norte da França se estabe­
leceram em Portugal com fôro privilegiado, ao passo
que as palavras com sentido pejorativo datam do odio
nascido pela invasão napoleonica. D’esta epoca da
anarchia militar ficou o grito de guerra : Mata, que
6 francez t e essa locução Roupa de francezes, como um
objecto que se destróe impunemente, era já popular
no seculo x v ii :
dizei por que tantas vezes
fazeis roupa de francezes
a de um triste portuguez. (1)
«Ha um fado antigo que pésa sobre este mesqui­
nho Portugal, e que, segundo crémos, a experiencia
de muitos séculos converteu n’um d’esses rifões, que
representam e resumem a -sabedoria popular. Tudo
quanto é rapinavel e rapinado tem entre nós uma de­
nominação característica : chama-se-lhe roupa de fran­
cezes; porque os successos da nossa historia nos hão
bem á nossa custa provado que no meio d’aquella na­
ção, aliás generosa e honesta, ha muitos homens prom-
ptos sempre a lançar mão de tudo o que podem tirar
sem resistência e convertel-o em substancia propria.
Os saltos dos Normandos e Lotharingios nas costas
do Minho e da Beira durante o seculo xn ; as depre­
dações de Du-Guesclin e de seus homens de armas,
a soldo dos reis de Castella, no fim do xiv ; as pira­
tarias dos armadores da Bretanha e Normandia que
no xvi infestaram os nossos mares da Europa e da
(1) Antonio Serrão de Castro, Os ratos da >p. Ü3.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 97
Africa; o sacco do Rio de Janeiro nos primeiros annos
do xviii; a invasão do principio do xix, em que fica­
ram as egrejas de Portugal sem um lampadario, sem
uma custodia, sem um vaso sagrado; todos estes fa­
ctos sanctiflcaram o rifão, e levaram até á ultima evi­
dencia que sobre nós pesava o fatal destino symbo
lisado na phrase popular.» (d) Herculano, apesar da
sua erudição, não tinha o sentimento da historia; a
phrase Roupa de Francezes exprime o fervor das nos­
sas represálias, que inspirou esse outro grito das guer­
rilhas nacionaes no principio d’este seculo: Mata, que
é francezI Beckford, em uma das suas Cartas, conta
que recebera um insulto chamando-se-lhe Francez; e
Manique nas suas Contas para as Secretarias allude á
hostilidade das mulheres do povo no tempo da Revo­
lução, que ameaçavam os estrangeiros chamando-lhes
Diabo de Francez. Tambem quando os Jesuitas entra­
ram em Portugal em 1542, chamavam-lhes em Coim­
bra Franchinotes, nome que ficou uma injuria banal.
Diz o padre Balthazar Telles: «por desprezo e zom­
baria lhes chamavam commumente os Franchinotes,
nome que em Portugal costumam dar a alguns pobres
estrangeiros que vêm do norte e andam pedindo es­
molas cantando pelas portas.» (2) Em menos de qua­
renta annos esses pobres Franchinotes, apupados em
Coimbra, tinham minado a independencia da naciona­
lidade portugueza.
É frequente no nosso pòvo empregar o nome de
outros povos como uma das maiores injurias: Cafre,
significa malvado, Alarve, comilão, Cigano, usurário,
Chino, um porco, Maltez, o trabalhador ambulante,
que vai para as cavas e apanha da azeitona no Alem-
tejo. Picardia significa a pirraça ou acto aggressivo
(1) Herculano, Pan., t. v ii , p. 19.
(2) Chronica da Companhia, Livro i, cap. 21.
7
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98 LIVRO I, CAPITULO II

recebido de quem menos se esperava; aliçantina (sub.


Alicante) exprime uma traficancia industriosa;
lerma, é o broma ou imbecil. O nome de Flamengo
acha-se com sentido hostil na locução: Não conheço
Flamengos á meia noite. (1) Em Hespanha achamos o
nome de Flamenco no mesmo sentido de cigano e aciga-
nado; Machado y Alvares não deriva este nome dos
Flamengos que vieram á Hespanha sob Carlos i. D’esta
epoca data a palavra Frandunagem, ou frandulagem,
significando a linguagem misturada com vocábulos de
Flandres. O nome de Tartaro tambem apparece com
um sentido grotesco, degeneração do antigo terror
que o movimento dos Tartaros no seculo xiii produ­
zia na Europa; no Cancioneiro da Yaticana allude-se
a este terror. No seu livro do Pays Basque, traz Fran-
cisque Michel: «Nos Pyrenneus, o que não se encon­
tra em outros pontos, chamavam aos herejes albigen-
ses Tartaríus.»(2) O nome de Tartaro tornou-se sy-
nonymo de um gigante malévolo; em Portugal
ranho designa o desageitado, desastrado e vacillante
nos seus movimentos. Na linguagem popular tambem
se conserva a palavra ansoT,designando o
um influxo sinistro; o povo de Hiongnou, antepassado
dos Chinezes, dava ao seu chefe o nome de Tanshu
(filho de Deus, isto é, Tian-shu). É crivei que esta
(i) E para ser meu açoite
Conheceis á meia noite
Flamengos se queijos são.
Sertão de Castro, Os Ratos, p. 139.
(2) Op. cit., p. 223. «Em S. Martinho de Recesinhos (Pena-
fiel) diz o povo que, quando ha nevoeiro, se sente um cheiro
a azeite, que é produzido pelo Tatro azeiteiro. As tecedeiras
espantam o Tatro de noite, ao acabar do serão, fazendo mover
o caneleiro do tear.» ( Tradiçõespopulares de
n.# 115.) Evidentemente liga-se á ideia de Tartaro, como per­
sonificação metereologica.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 99
palavra entrasse com os Hunnos na Europa, como se
infere pelo seu sentido pejorativo. Finalmente a pala­
vra Turca emprega-se na giria popular como syno-
nymo de bebedeira.
As hostilidades locaes e os ditados topicos em Por­
tugal são extremamente pittorescos, como consequên­
cia de uma longa incommunicabilidade das povoações
por falta de estradas. No Cancioneiro daVaticana,
canção n.° 401, já se cita o ditado: «D’essa cidade
tam b o a , Lisboa.» Na viagem dos dois embaixadores
venezianos Tron e Lippomani a Portugal em 1580 vem
como vulgar o proloquio ácerca da belleza de Lisboa :
«Celebram Lisboa com tal copia de palavras, que a
fazem egual ás primeiras cidades do mundo, e por
isso costumam dizer :
Quem não vé Lisboa
Não vô cousa boa.» (1)
Comtudo nas hostilidades locaes os habitantes de
Lisboa são apodados de Alfacinhas, por se alimenta­
rem frugalmente, dispendendo as economias em osten­
tação exterior, como no seculo xvi o notara Nicolào
Clenardo, descrevendo a sua alimentação de rabanetes.
O Porto tem o apódo de , por serem as tri­
pas guisadas um prato característico da culinaria local ;
a independencia burgueza do Porto antigo suscitou o
odio, que transparece n’este ditado :
Deus me livre do Mouro
E do Judeu,
E da pente de Vizeu;
Mas la vem o Braguez,
Que é peor que todos trez ;
E o Porto no seu contrato
É peor que tod’os quatro.
(1) Ap. Herculano, Panorama, t. vu, p. 84.
631048
O rigin a l from
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100 LIVRO I, CAPITULO II

Nos sens Ditados topicos traz Leite de Vasconcellos


o seguinte:
Coimbra, cousa linda 1
Lá vem o Porto,
Que lhe dá pelo rosto.
Ser de Braga ao pé um equivoco injurio
designar que se anda com grilheta. Diz Antonio José,
em uma comedia: *Braga é má terra para cultivar.»(1)
Ha uma locução: Vêr Braga por um canudo. Em um
jornal encontrámos:
Lá diz o rifão:
Braga para padres,
Porto para commercio,
Lisboa para doutores.
A locução Ir a Aveiro sem sapatos, refere-se ao
costume antigo de aterrar as ruas em Aveiro com
cascas de bnbigões. O costume ainda se conserva,
como vemos por este trecho de um folhetim: «Este
anno (1883) uma chuva desabrida ensopou ferozmente
os toldos das barracas e empoçou o chão por fórma
tão abysmada, que não houve casca de bribigão que
bastasse para deseccamento dos vastos charcos dos
arruamentos.— É fabuloso: mas um exemplo stento-
rico do carinho dos edis para os pés dos munícipes
e ao mesmo tempo um documento do humano poder
inventivo e da variedade das applicações do bribigão.
Denunciar essa maravilha do genio do homem é vul-
garisar esta nova utilidade do lamellibranchio, é hon­
rar o município aveirense...» (2) Como esta locução
traz D. Francisco Manuel de Mello uma analoga: «/r a
Setúbal e não comer .vesugo» (3) Seguir a estrad
(1) Operas portuguezas, 1. 1, p. 120.
(2) O Povo da Guarda, n.® 2o.
(3) Cartas, p. 268.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 101
brã era já vulgar no seculo x v ii , como se vê pelo Fi­
dalgo aprendiz. (1) Jorge Ferreira traz mEufrosina uma
locução referente ás hostilidades locaes: «
tiu Santarém com Torres Novas.* E nos Apophthegmas
de Supico se lê esta outra: «Tir-te-lá, que Almeida
está dada.» (2) Da tradição popular do Alemtejo col-
ligimos o seguinte proloquio toponymico:
Lisboa, cousa boa, Mulatos de Alter do Chão;
E o Porto dá-lhe pelo rosto. Pisa-barros de Fronteira,
Barquinha , oh, minha menina; Lavradores de Cabeço de Vide,
Tancos, baila nos bancos. Partidários de Monforte
Punhete, bello ramilhete. Ladrões de Souzel;
Passamos a Redemoinhos, Altas sobreiras de Povoa
E Abrantes está como d’antes; Dão peleja a Montalvão;
Sardoal, vai-lhe muito mal. Enxota pardaes de Marvão,
Surra pelles de Moção. Lagarteiros de Escusa,
Saboeiros do Carvoeiro ; Cardadores de Castello deVide;
Gavião, Bêbados de Portalegre,
Altas mezas, pouco pão. Alfacinhas dos Fortizes,
Muita agua leva Margem, Balseiros da Alagoa,
Em proveito da Polverosa; Papa-solas de Alpalhão,
Cargueijeiros da Commenda, Queimadinhos de Nisa,
Santieirinhos de Gáfete, Fraca-Justiça de Aviz
Bugalho de Vai de Pezo ; Dá combate a Villa-Flor,
Louceiros de Flor da Rosa, Bagaceiros da Amieira,
Escalda-favaes do Crato. Tronchos da Ponte-Sor.
Ha outros apódos locaes alemtejanos, como:
Os de Alvor
Mataram a Nosso Senhor.
— Ah cães de Nisa
Que mataram o seu Dôs!
«Não fomos nós,
Foram os de Arez.
Gáfete, Tolosa e Arez,
Oh que trez!
(1) Op. cit., p. 66.
(2) Apoph., Part, nr, liv. ï, p. 70.

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102 LIVRO I, CAPITULO II

Na província do Algarve abundam os apódos lo-


caes. Os habitantes da Lagoa são chamados Lingua­
reiros. tOs de (Mhão, em lhe fallando nos Santos
gãosj arrenegam-se.— Os habitantes d’esta povoação
(Armação de Pera), em se lhe dizendo: Larga oprégot
zangam-se e correm atraz de quem tal dissér, baten­
do-lhe se podem.— Os de Alwr são Os que roubarem
o Senhor... Os de Budeus são Casmurros.— As mulhe­
res de Estoy, em se lhe fallando no Garrocho, insul­
tam e excommungam a quem o diz.» ( 1 )
Na Extremadura temos tambem abundantíssimos
ditados:
S a l v a t e r r a , Benevente Correr Seca e Meca
Gericó fica no meio, E olivaes de Santarém.
Pinheiral de Escaropim,
Balada, Porto de Moz_ A Cascaes
Santarém e Almeirim Uma vez e não mais.
Estas terras que eu nomeio,
É que deram cabo de mim. Oh cães de Camide,
Cadellas do
Quem vai a Santarém Acudi ás de Bem/ica
Se burro vai, burro vem. Que se querem afogar.
Os habitantes do logar de Pedreiro são apodados
pelos de Thomar com o nome de Batoteiros; os de
Carregueiros, com o de Mantas-rotas. Tem caracter
injurioso a locução Meu amigo de Peniche, e Seu criado
Mathias de Alverca.
Da Beira e Douro colligiu o sr. Leite de Vasconcellos
muitos apódos locaes, e com especialidade o Minho é
a província mais bem representada na sua collecção:
É como os da Mealhada, É como os de Campanhã,
O que dizem á noite Casam á noite
Pela manhã não é nada. E descansam de manhã.
(1) Reis Damaso, no Amuario das Tradições
p. 51.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 103
Os da Balga (Oliv. de Azem.) Gondiães,
Bebem o vinbo, Esfola cabras,
E quebram a malga. E capa cães.
ZagãeSj (Oliveira de Azemeis) Guimarães
Perna curta A cada porta
Pae dos cães. Sete cães.
S. Martiriho de Leitões (Minho) Guimarães,
Vinte e nove freguezes, Perna torta,
Trinta ladrões. Pae dos cães.
Mirandeüa, Bem te conheço;
Mira-a de longe É de Villa Nova,
E foge d’ella. Chamas-te Loirenço.
Oh de Vizeu, Em Barrô
Larga o rabo De cem homens
Que não ó teu. Nem um boo.
Os apódos locaes têm uma fórma estrophica desde
o distico simples, ou de parelha, até à fórma dythiram-
bica:
Valdigem, Os de Nagosa, (Beira Alta)
É terra que Deus non quige. Tem rabo como raposa.
Pesqueira, Chavães, (Ib.)
Linda roseira. Terra de cães.
Ervedosa, (Ib.)
Sam Joaneiros, (S. João de Ta- Porca ranhosa.
rouca)
Comem cornos de carneiro. Taboaco (Ib.)
Rilha bagaço.
S. Joaneiro (da Foz do Douro) Vinho de Ayró,
Resingueiro. Não o dês, bebe-o só.
Os habitantes da freguezia de Sobrado, concelho de
Vallongo, são chamados Os dabrôa de unto; explica-se
pela mesma injuria: Rema que é queijo applicada aos
algarvios. Um homem de Sobrado, tendo visto no rio

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10 4 LIVRO I, CAPITULO II

a imagem da lua, metteu-se pela agua para ver se


apanhava aquillo que lhe parecia um unto. ( 1 )
Os habitantes de Cabaços são apodados de lobos;
os de Leomil de judeus; os de Riodades, gatos mon-
tezes; os de Escurquella lagarteiros; os de Longa ma­
lhados; os de Mondim, meieios de
de Villar, Pica-peixes; Mileu, terra de atacas. «Os ha­
bitantes de Guiiheiro, em lhes perguntando Pelo
vão logo atraz de quem faz a pergunta.» (2) Os habi­
tantes da Granjinha são chamados batoteiros; os de
Cabaços, lobeiros. «Os de Granjal, em lhes pergun­
tando pelo páo da cruz, arrenegam-se todos e batem
em quem faz a pergunta.» (3) Os de Coimbrões são
apodados de panelleiros; de Santo André, mariolas;
de Valladares, capadeiras; os de Sarzedo zangam-se
quando lhes dizem que são da terra dos cucos; e os
de Penajoia e de Tavora enfurecem-se quando se lhes
pergunta: Â espada vai na burra ? Na ilha de S. Mi­
guel, os habitantes de Agua de Páo arrenegam-se ao
perguntarem-lhe: A porca já furou o pico? Os de Murça
tambem se zangam ao perguntarem-lhe pela barca.
Os de Samodães são chamados judeus. Na Redinha
enfurecem-se ao perguntarem pela sepultura de Pila-
tos, e em Sernache ao perguntarem-lhe pela musica.
Os homens das ilhas são egualmente apodados: «O
ühéo, dá coice trez dias depois de morto.» E tambem:
É das Ilhas
E conta maravilhas;
Come favas
E diz que são ervilhas.
(1) J. Leite de Vasconcellos, Tradições, p. 18.
(2) J. Leite de Vasconcellos, Ditados tópicos em Portugal.
Porto, 1882; d’esta collecção extraímos muitos materiaes do
presente capitulo.
(3) Idem, Ibidem, p. 12.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 105
»
Os habitantes da ilha de Santa Maria são alcunha­
dos de cagárros; os de S. Miguel unha na palma, e
os da Terceira, rabos tortos, e Faca sem ponta. O
padre Antonio Cordeiro na Historia insulana explica
a origem histórica d’este apódo, do tempo da occupa-
ção castelhana. Nos Cantos do Archipelago acham-se
estes apódos insulanos:
Sam Miguel, unha na palma, Na Terceira são alferes,
Terceira, faca sem ponta, Em S. Jorge capitães,
Pico, Fayal, Graciosa, No Pico são picarotos,
Tudo vai na mesma conta. No Fayal finos ladrões.
(Op. cit., p. 83.)
Dos habitantes da ilha da Madeira, dizem:
Um, dois, trez, filho de inglez;
Um, dois, trez, quatro, filho de mulato.
O espirito das hostilidades locaes aproveita-se das
cantigas, para transmittir-se no meio da improvisação
popular; é um genero poético bem característico:
Casar em Vallongo, Os homens de Vouzella
É melhor que ser Bispo ; Alguns que são
Tem mulher para a cama Tambem tocam na trombeta
E burro para o serviço. Na procissão.
Vou-me cazar a Salzedas, Bois de Ramalde,
Que me deram por degredo ; Homes de Silvalde,
Que é terra de muito padre, Mulheres de Santo André,
Canta lá o cuco cedo. Lib’ra nos e dominé.
Perguntas-me d’onde eu moro, Não vás ao serão a Avintes
Minha terra ê Serzedo, Nem p’ra lá botes o geito,
Terra de muito ramalho Olha que as moças de Avintes
Onde canta o cuco cedo. Tem-na semente do feito.
Se Armental tivera renda
Como tem de gravidade,
Carregosa fora villa
E Arrifaninha cidade.

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106 LIVRO I, CAPITULO ÎI

Certas terras são apontadas como injuriosas: «Ser


como as de Beja» isto é prostitutas; ou notadas como
foco da idiotia: Sier da Lourinhã; ou do Ermetto,
em Celorico de Basto. (1) Os moradores de Perosinho
são leiteiros; os de Avintes, porqueiros; os de Ser-
zedo, polainas: «quem quizer fazer zangar os de Ser-
zedo, diga-lhes: Virae a porta para o mar.* (2) Os mo­
radores de Villar do Paraiso são gravatinhas; os de
Oliveira do Douro, rabões; os de S. Christovam, cei-
rinhas; as mulheres de Magdalena, são amazonas;
as de Canellas, bruxas. Os povos de Miranda do Douro,
vêem as aguias pelas costas.
Assim como as localidades, tambem as classes so-
ciaes têm a sua hostilidade mutua, apodando-se com
acrimonia: «Sete alfaiates para matar uma aranha.*
Alfaiates não são homens, Alfaiate das mentiras
Carpinteiros tambem não, Todo o pano faz ás tiras.
Homens são os Lavradores
Que enchem a casa de pão. Sapateiro mangoneiro,
Come tripas de carneiro.
Aqui d’elrei quem accode
Ao fogo de Santarém! Ferreiro da maldição,
Accudam os Alfaiates Quando tem ferro
Em quanto os homens nãovem. Não tem carvão.
(4) No seculo xvi o habitante de Rates era tido como o typo
da ingenuidade lorpa; Gil Vicente introduz nos seus Autos o
personagem nacional do Ratinho, descripto tambem por Mi­
guel Leitão de Andrade e Balthazar Dias. Serrão de Castro,
nos Ratos da Inquisição, diz d’elles :
Com ser a gente de Rates
tão simples e boa gente...
quando tão aproveitados
da Beira são os Ratinhos, (p. 1Í7.)
(2) Amuario das Tradições populares portuguezas, p. 50.

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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 107
Trolha, mirolha, Pedreiro, pedreirete,
Rabo de sôlba. Hade ser sempre
Pobrete e alegrete. (1)
Estudante, bargante,
Chapéo de alguidar,
Caldeireiro na terra, Com o sentido nas moças
Chuva na serra. Não póde estudar.
Os barqueiros tambem se apodam, como acima no­
támos : «Os rebellos (barqueiros do Douro,) zangam-se
egualmente, quando alguem lhes diz: , car­
rega o prego t carrega o prego I a panella tem cominhos ;
a panella estoirou.* No Mondego dá-se o mesmo, di­
zendo: «Oh Zézinho, ferraa unha.* Os moleiros são
desprezados por se pagarem por suas mãos tirando
a maquia á moenda. (2)
Depois das hostilidades locaes seguem-se por fim
os chascos pessoaes, ligados ao nome do indivíduo,
ou ao seu appellido:
Antão, Anna, Magana,
Guardava ovelhas, Rabeca, Susana,
Umas suas Pariste um menino
Outras alheias. Debaixo da cama;
Não come2 nem môja
Antão, Nem vae a egreja.
Era moleiro,
Fazia anzoes Oh Augusto,
E pescava caracoes. Lava a cara com escupo.
(1) Leite de Yasconcellos, Tradições, p. 250.
(2) Diz uma parlenda popular :
Lá vem a minha mulher,
Tirará o que quizer;
A minha filha Maria,
E tira a sua maquia;
Yem o meu filho Manoel,
Tambem leva o seu farnel;
E no fim diz o meu criado:
— Este saco ainda não foi maquiado.
(Porto.)

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108 LIVRO I, CAPITULO II

João, garanhão, Sam Luiz


Focinho de cão ; Perdeu o nariz
Vae com a ceira No jogo da bola;
Ao camarão. Quem lh’o achar
Que lh’o dé por esmola.
Oh José,
Carramé, Oh Maria,
Bota os gatos Fia, fia,
Á maré ; Sete massarocas ao dia,
Enfiados n’uma linha Que lá vem a tua tia.
P’ra tocar a campainha.
Oh José, Fragaté Oh Rita
Clemente, té, é, té ! Caganita,
Teu pae é d’Angola Quando meija
Tua mãe de Guiné. Yae de bicca. (1)
Teu pae é carneiro,
Tua mãe é mé.
Accudi sapateiros Magalhães,
Ao largo da Sé, Esfola gatos
Com fôrmas e buchas E mata cães;
E seu tira-pé, Leva a pelle a Guimarães
Pra fazer mais botas Enfiada n’uma linha
Ao nosso José. P’ra tocar a campainha.
Todos os factos aqui accumulados são a prova do
principio abstracto, formulado por Kant ácerca da m-
sociabilidade sociável, que actua no aperfeiçoamento
das relações humanas.

(i) Muitos d’estes apódos nominaes foram pela primeira vez


publicados na Zeitschrifte fur romanische Philologie.

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CAPITULO III
As industrias locaes e tradicionaes
A s fórmas primitivas da aggregação local expressas pelo Fogo
e Logo.— A Casa : Persistência das casas ae cólmo í a Berga,
Cardenha, a Palhoça ou Cabana.— As Verandas.— O uso do
Sino corrido.— A s com idas: Uso das glandes de carvalho.—
A s castanhas ou bilhós. Milho cosido, Michas ou Mondas.
— Os moinhos de mão ou Cambas.— O alho.— O vinho doce.
— A vicera ou antiga cerveja.— Os Bodos.— As refeições do
dia. — A actividade agricola e pa sto ra l: Epocas do anno
tiradas do trabalho dos campos — As fórmas aa constituição
da propriedade segundo as aifferenciações ethnicas.—Os mo­
ços da lavoura.—Costumes romanos e arabes na agricultura
portugueza.— As queimadas no Alemteio.— As tulhas ou
Matmorras.— As hortas ou Onias.— A aebulha do trigo.—
Os carros.— A Mesta arabe e a deambulação dos gados.—
Typos da raça dos carneiros portuguezes.— A mangra. In-
troducção do milho.— O costume ae deitar as milhas, e de
cavalgar o cambão.— A cultura da vinha no seculo xiv : Cos­
tumes das cavas.— O vinho da Madeira. Relações da Agri­
cultura com a Industria.— A s Industrias locaes e dom esti­
cas: A exploração das minas.— O trabalho da Ourivesaria
e da Serralharia.— Leis sumptuárias. — Estado actual das
industrias locaes. — Differenças do trabalho no norte e sul
de Portugal.— Os Azulejos e a Ceramica. — Tecidos, borda­
dos, rendas.— As lãs portuguezas — As Feiras, sua origem
religiosa.— Ideia moral do trabalho entre o povo.
0 trabalho é uma fórma de actividade que corre­
sponde á estabilidade social em que se organisam as
instituições civis e políticas, depois de ter decahido
a exclusiva occupação guerreira. No onomástico penin­
sular, como notaram George Philipps e Jubainville,
as fórmas em di, ili e iri entram na composição dos
nomes de logares com o sentido de cidade, dado pelas

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140 LIVRO I , CAPITULO UI

populações ibéricas. Os romanos enumeraram muitís­


simas cidades ua Terraconense, na Betica e Lusitâ­
nia, e foi pelo apoio das suas cidades, que as tribus
ibéricas resistiram á conquista. Os casaes, po-
brase aldeias foram os núcleos da população que veiu
a formar os concelhos, em que se creou a liberdade
civil e a independencia política, por meio das suas
Behetrias. D’esta organisação rudimentar ficaram cer­
tas fôrmas dos costumes, como a pastagem dos gados
em commum, na Serra Amarella, a divisão das terras
ou Sortes, como no Suajo, os Celleiros communs, como
no Alemtejo. O loguo,onde se enterravam
da familia (lug,o heroe) e onde se levantav
Mamôas, Antellas ou Dolmens para os sacrificios fune­
rários, subsistiu na phrase Fogo e loguo. A Behetria,
formada pelo pacto defensivo das cidades visinbas,
distinguia-se por um monte natural ou artificial, croa,
arca (arx) ou c a s t r o , no alto do qual e
(como boje a egreja da freguezia) e onde se fazia a
assembleia dos homens bons, como se conservou nos
usos da Edade media com o malhom junto da carva­
lheira da egreja. No onomástico portuguez existem
estes vestígios nos nomes de Castros, CastreUos, Cam­
pos, Campellos, etc. (1) Com o elemento árico, que
entrou na Hespanha com a raça celtica, misturaram-se
com as instituições locaes a organisação civil baseada
em elementos pessoaes da gentes, com a propriedade
individual, confundindo-se a communidade domestica
com o regimen da linhagem. Com estes elementos
podemos comprehender muitas fôrmas dos costumes
actuaes das diferentes povoações provinciaes.
A Casa.— As habitações gaulezas eram redondas,
(1) Elementos da Nacionalidade portuguesa, $ 6. Revista de
Estudos livres.

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AS INDUSTRIA? UOCAKS F TRADIC10NAES

como nota Belloguet, (1) de uma iuferencia de Strabão,


fortalecida pela representação das casas da columna
de Antompo; é este tambem o typo da casa da Cita-
nia de Briteiros. Segundo Strabão, as casas gaulezas
eram feitas de côlmo ou de canas, com que cobriam
os tectos empinados, tecta alta, para que as neves se
não demorassem ali. Viterbo no Elucidário notou a
persistência d’este costume: «Ainda hoje, e principal­
mente na provipcia do Minho, se conservam alguns
vestigios do antigo costume de serem as casas, ainda
honradas e distinctas, cobertas de côlmo ou giestas e
não de telha: pois no Tombo do Aro de Lamego, de
1346, se acha que alguns logares de Mugeja eram
obrigados a uns tantos feixes de giestas negraes para
se cobrirem as casas que elrei tinha no castello d’a-
quella cidade. Sobre o côlmo ou giesta punham uma
certa jangada de páos atravessados, para que os ven­
tos as não deixassem expostas á inclemência dos tempo-
raes. Era pois cangar a casapôr-lhe este repa
Gaspar Fructuoso, fallando da ilha da Madeira, diz:
«Ha tambem muitos folhados, que crescem muito di­
reitos e grossos, de que se faz a armação para as
casas, e muitas vezes de um só páo se fazem trez e
quatro pernas de asnas; mas não é tão rijo como o
d’esta ilha de S. Miguel, etc.» (3) Nos documentos
portuguezes da Edade media Viterbo encontrou as
palavras Berga, Bergança, Cardenha e Palhoça, signi­
ficando a casa coberta de palha, como as Virgeas ca­
sas, que Strabão attribue aos Gaulezes. Isidoro de
Sevilha, (Etym., xv, 12) dá o nome de Cabana à cafua
em que se abrigavam os que guardavam as vinhas,
designação que apparece com sentido mais geral nos
(1) Ethnogénie gauloise, p. 471.
(2) Elucidário, vb.° D escan g ar, Doc. de 1308.
(3) Saudades da Terra, cap. xix.
s'
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112 LIVRO I, CAPITULO IQ

dialectos celticos ; (1) nas Inquirições de D. Áffonso m


«com moita frequencia se chamam Cabaneros os ho­
mens brabeiros e que vivem do seu trabalho e ma­
neio, e que boje mesmo se chamam Cabaneiros.»
(Yiterbo.) Esta designação está ainda em todo o seu
vigor no Minho'. Junto da casa isolada ainda se con­
serva um pequeno campo ou beira ; diz Yiterbo : «Nos
documentos de Lamego, de 1416,1418,1422 e 1444,
se acha já Eixido, já Enxido. Na provincia do Minho
ainda hoje chamam Enxido a estes cerrados que ficam
juntos das casas em que moram; porém a palavra
Eido ampliaram a todo o assento das casas, hortas e
quintaes, e a todo o recinto que pertence a qualquer
vivenda.» (2) O costume das casas isoladas ainda per­
siste : «N’este paiz vêem-se as casas de campo isola­
das ; nas cabanas encontra-se louça ingleza, chicaras
de louça do Japão e chá verde, etc.» (3) A Aldea
significou primeiramente o casal ou «casa de lavoura
ou abegoaria em que se recolhiam os fructos do
campo» e tambem as casas ou palheiros, na epoca em
que colonisámos o Brazil, como nota Yiterbo. Dava-se
tambem a estas casas isoladas o nome de Alcheria ou
Alqueria: «E nada mais eram do que umas quintas
mais ou menos extensas, onde os caseiros viviam com
a sua família, pascendo os gados, lavrando, e reco­
lhendo os fructos com que deviam responder ao di­
reito senhor.» (Viterbo.) A mudança de habitação é
um facto que ainda se observa no alto Minho, cha­
mando-se Vérandas aos sitios só habitados no verão.
Este costume de proximo de Melgaço é notado entre
os Fullahs por Eichthal : «occupados do cuidado dos
rebanhos e particularmente do gado, vivem em caba-
(1) Belloguet, Gloss. g a u l o i s ,p. 240.
(2) Elucid., vb.* E ix id o .
(3) Mémoires sur les opérations militaires des Français en
Gallicie et Portugal, 1808. (Ap. Bemades Branco, 1.1, p. 490.)

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 113
nas de folhagem e mudam de habitação, segundo o
curso das estações e as necessidades da pastagem. » (1)
Em algumas terras de Portugal ainda existe o sino
corrido, em que não era permittido andar por fóra de
casa depois das oito ou nove horas da noite, passando
depois a prohibição só para as lojas de negocio; é
uma persistência do Couvre feu, do tempo de Gui­
lherme o Conquistador, que ordenava aos cidadãos
que apagassem o fogo, porque então as casas eram
geralmente de madeira.
ils comidas.— Strabão, faltando dos costumes dos
antigos Lusitanos, diz d’elles : «Nas trez quartas par­
tes do anno o unico alimento na montanha são as
glandes de carvalho, que sêccas, quebradas e pisadas
servem para fazer pão ; este pão póde guardar-se por
muito tempo.» Hoje no Alemtejo a glande ou bolota
ainda é comida, sendo préviamente torrada. Na Beira
alta predominava a castanha, com a qual depois de
assada se faziam as Bilhós ou Beilhoós, como encon­
trou Viterbo em um documento da Universidade, de
1508 ; a generalidade d’este alimento conhece-se por
um documento de Salzedas e pelo Foral de S. Marti-
nho de Mouros de 1513; descrevendo o modo como
as castanhas são descascadas com os pés na eira, diz
Viterbo : «que na Beira se chama riscar; aos fragmen­
tos da casca... se chama » Avançando para o
norte de Portugal, começa a alimentação pelo milho e
centeio, notada pelos antigos geographos. Diz Plinio,
que na Aquitania o pão era feito de uma especie de
milho chamado panicum;no Minho, Madeira e Açores
o pão é geralmente de milho ; ao carro que leva á
feira os saccos de milho chama-se no Minho um carro
de pão. Na ilha de S. Miguel come-se milho cosido,
(1) Histoire des Fullahs, p. 5.
8

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114 LIVRO I , CAPÍTULO UI

segundo o costume das mulheres gaiatas, de que falia


Plínio ; e comem favas cozidasomo os antig
tantes da Circumpadana. Em um documento de 1417
encontrou Yiterbo, a borôa, significando «o pão de
painço, de que usavam os pobres;» no Minho ainda
persiste a borôa de milho, misturada com o painço ou
milho alvo, e em fórma grande. As eram um
pão pequeno, ou Michas «de centeio ou milho e de
toda a peneira, que ainda hoje se costuma dar aos
pobres nas portarias das ordens monachaes. » (Viterbo.)
Felizmente jà passou esta epoca, em que o povo se
despojava do que tinha para viver das esmolas dos
frades. Na antiga cultura gauleza o Bracé ou trigo
blanzé era frequentemente usado por causa da alvura
do pão; ( 1) o povo ainda chama pão ao que é
feito de trigo, e no Minho ás sôpas d’elle chamam-se
berças, e talvez da comida dada aos trabalhadores que
vem gratuitamente á lavrada do milho ou do centeio
bessada. O grão era moido em casa em pequenos moi­
nhos de mão, como se usa ainda nos Açores, nas
povoações isoladas; apparecem citados nos antigos
documentos portuguezes com o nome de Cambai:
«Outros se persuadem que estas cambas eram moinhos
de mão, a que chamam zangas... E não falta mesmo
quem diga que eram moinhos pequenos, mdinheiras,
ou picameis (como lhe chamam na Beira alta), que
fazendo-se annualmente na vêa dos rios, e durante
só o tempo da seccura, se lhe deve alterar a maquia
em attenção aos perigos, trabalhos e dispêndios.» (2)
O anexim: *Quem tem fome cardos » já não
é hoje comprehendido ; mas ainda no seculo xvi en­
contramos em Fructuoso, ácerca da ilha da Madeira :
«ha muitos cardos de espinhos, de muito bom sabor,
(1) Belloguet, Ethnogénie gauloise, p. 458.
(2) Yiterbo, Elucidário, vb.° A z e n h a .

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 415
os quaes alporcados vendem muitos e bem baratos
pela terra.» «E succedia valer um vintem um sacco
d’elles alporcados.» (4)
Nas aldeias ainda se come junto do exactamente
como Diodoro Siculo descreve os repastos dos Trans-
alpinos ; e o peixe é assado na braza ( um pucha
a braza para a sua sardinha) temperado com vinagre,
como refere Sulpicio Severo dos que habitavam no
litoral do Mediterrâneo e do Oceano. Nos anexins
populares exprime-se a pobreza pela locução : «
ter onde embrulhar cinco réis de .» Belloguet,
na Ethnogenia g a u l e z a ,descreve o uso
nas comidas d’essa primitiva raça que occupou o occi-
dente. O alho é tambem do uso exclusivo do povo ;
Sá de Miranda allude a esse cheiro característico :
E podem cheirar ao alho
Bicos homens e InfançÕes. (2)
A comida de carneiro dos antigos Lusitanos ainda
se conservava no seculo xv e xvi, em fórma de cal­
deirada a que se dava o nome de Badulaque, como
nota Viterbo. Na provincia do Minho é mais frequente
a carne de porco, a que se dá o nome de e
na Beira alta Àpeguilho.(Viterbo.) Na Descript
la Ville de Lisbonne, de 4738, falla-se dos «
de Lamego,quesão melhores que os de Bayona e de
Mayence.» Assim as terras vão-se tambem differen-
ciando pela especialidade de suas comidas. No Can­
cioneiro de Rezende, citam-se as castanhas da
E por fruita das castanhas
das colharínhas da Beira, (ui, 94.)
(1) Saudades da Terra, p. 49 e 50. Ed. Funchal.
(2) Memorial do Marquez de Montebello, p. 248.

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116 LIVRO I, CAPITULO III

Tolentino tarabem allude á especialidade do


jar branco de Cellas:
Da bolsa os bofes lhe arranco
No fresco pateo de
Pedindo com genio franco
Doces, gratuitas tigelas
Do famoso manjar branco.
(Obras, p. 173.)
O vinho doce, que ainda se fabrica em Abrantes
com o nome de mustella,era usado pelos antigos Gau-
lezes na província Narboneza, onde lhe davam o nome
de hdvenaque, como observa Plinio. (1) O uso da cer­
veja, tambem peculiar dos povos gaulezes, era ainda
vulgar nos primeiros tempos da monarchia portugueza,
segundo affirma João Pedro Ribeiro, nos retoques ao
Elucidário de Viterbo: era conhecida pelo nome vul­
gar de Vicera, e a cevada com que a fabricavam era
moida nos cambões ou moinhos de mão. Strabão de­
screvendo os costumes festinantes dos Lusitanos, falia
«dos grandes banquetes de família tão frequentes entre
estes povos.» Este costume persistiu nas Bodas, ou
banquetes já com caracter religioso, como os Bodos do
Espirito Santo, de Alemquer e ilhas dos Açores, já
com caracter funerário como os bodivos, ceras e obra­
das do Minho, ou como os tamos, das festas de casa­
mento.
As comidas do nosso povo, são a parva, que se dá
aos trabalhadores na Beira alta, tendo pão e azeito­
nas por peguilho ou condoito; depois vem o almoço;
entre este e o jantar, ha em Carrezeda de Anciães a
refeição chamada côdea, ou fatiga; segue-se o jantar
ao meio dia, geralmente, e a c t o a o sol posto. Entre
25 de março e 8 de setembro, ou os dias grandes,
(1) Belloguet, Ethnogénie gauloise, p. 461.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 117
ha a merenda; no Minho o trabalho das eiras faz-se
muitas vezes de noite, e gratuitamente, dando-se na
despedida o ceiinho, a que se chama ceióte em Ta-
boaço, e compõe-se de pão e uma sardinha. (1) A
relação entre a comida e o trabalho acha-se n’aquella
locução do seculo xvi, que mais tarde apparece na
satyra de Serrão de Castro:
Olhai que quem quer comer
trabalha, lida e trabuca;
que quem trabuca manduca,
mil vezes ouvi dizer.
como quem siia e trabalha,
beba quem na eira malha
ao sol e calma o centeio. (2)
A principal comida da gente do campo consiste em
couves cosidas, com borôa, e por isso junto das caba­
nas existe sempre um pequeno couval, e a sua cul­
tura acha-se mythificada na imaginação do povo: «Disse
a couve quando fallava:
Esterca-me de uma vez,
Sacha-me cada mez,
E rega-me de cada vez.» (3)
A alimentação do povo portuguez é insufliciente,
como se verifica pelos dados statisticos, influindo isso
na sua existencia valetudinaria, apathica e sem inicia­
tivas, e ao mesmo tempo no desenvolvimento moro-
sissimo da população. Nos Relatorios médicos ácerca
do Colera-morbus em 1855 acham-se indicações pre-
(1) J. Leite de Vasconcellos, Tradições populares de Portu­
gal, p. 228.
(2) Os ratos da Inquisição, p. 135.
(3) Ap. J. Pedro Ribeiro, Reflexões históricas, Part. n, p. 17.

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118 LIVRO I, CAPITULO III

ciosas sobre a alimentação do povo portuguez, e d’onde


se inferem considerações fundamentaes :
R e gi ão mon tan ho sa : ( Disda Gua
mentação de pão de centeio e batatas ( e
dró), o mesmo, com algum trigo ( do Bispo e
Aldeia Velha); o mesmo com pão de milho, hortaliças
e alguns fructos. ( Cortiçô).
Re gi ão do nort e : Districto do Porto : «a gente de
campo usa muito de legumes, de peixe secco, sal­
gado ou defumado, carne de porco, borôa em abun-
dancia, e em algumas localidades batata em logar de
pão.»— Districto de Braga: «Na grande maioria o
povo é mal alimentado, principalmente em relação á
quantidade dos alimentos, que se reduzem a pão de
milho, legumes e peixe salgado.»— Districto de Aveiro:
«A alimentação é na maior parte de milho, feijão,
batatas» hortaliça, assim como de peixe para os que
vivem perto da costa, e carne para os que se dão á
cultura da terra.»— Districto de Coimbra: «O pão de
milho, legumes, batatas, hortaliças, algum vinho ordi­
nário, etc., formam a base da alimentação dos menos
abastados.»
R e gi ão do c e nt ro : Districto de Santarém (Rio Maior):
«Alimentação em regra composta de pescada salgada
e de vegetaes.»— Districto de Leiria: «pão de milho,
batatas, peixe salgado, legumes e hortaliças adubadas
com azeite.»— Districto de Lisboa : «A alimentação da
classe pobre consiste em pão de milho, legumes, hor­
taliças, bacalháo e sardinhas (Azambuja);» e «cavalla
salgada, bacalháo, sardinha e legumes ( Franca
de Xira.)»
R egi ão do su l : Districto de Faro : «Os habitantes
são pobres, e alimentam-se ordinariamente de bata­
tas, papas de farinha de centeio, feitas com mel ou
gordura, e de fructas muitas vezes verdes (Algezur.)
— Na Fuzeta: «alimentam-se ordinariamente de peixe,

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 119
mariscos, milho, couve, abobora, favas, figos e uvas.»
Em Tavira e freguezias vizinhas: «marisco, peixe,
papas de milho com marisco ou azeite, e raras vezes
comem pão.» No concelho de Faro: «Os trabalhadores
pobres raras vezes comem pão de trigo e o alimento
ordinário é no inverno: couve em abundancia e papas
de milho; na primavera, favas; no estio, abobora,
uvas e figos; e no outomno, figos seccos, e peixe de
má qualidade.— As mesmas observações se repetem
àcerca de muitos outros concelhos.»—
talegre: «O commum do povo faz grande uso de legu­
mes e de carne de porco muito apimentada (
Maior.)» Em Assumar e Montalvam: «Sustentam-se
os habitantes quasi exclusivamente de legumes e carne
de porco.» ( 1 )
A locução popular portugueza enganar o estomago
synthetisa esta alimentação insufficiente na qualidade
e na quantidade.
A actividade agricola e pastoral.— A vida do campo
tira dos trabalhos das culturas e das colheitas as
epocas chronologicas da divisão do anno e da sua pró­
pria orientação no tempo. No Minho diz-se Pelas bes-
sadas, para designar o tempo em que se lavram as
terras para a sementeira do milho (em maio); Pelo
sacho, designa a epoca em que o milho recebe a pri­
meira cava; Pelas malhadas, isto é no tempo em que
se recolhe o centeio das eiras (em agosto); tambem
se diz Pelos linhos, e nas E No
segue-se a mesma chronologia com outras colheitas,
como Pela azeitona, quando vêm os maltezes ou cara-
mellos da Beira para o trabalho da apanha. No trabalho
da terra conservam-se as feições ethnicas da raça, e
pelas fórmas da agricultura na Península pôde Firmin
(t) Relatorio sobre o Commercio dos Cereaes, p. 32 a 34.

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s
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120 LIVRO I, CAPITULO III
Caballero, na sua obra da População rural, estabelecer
as analogias dos seus primitivos habitantes. Como typo
da primitiva população rural figuram em primeiro logar
Navarra e Rioja com o systema beneficiário das Cose­
rias, immensamente vulgarisado em Portugal com o
nome de Casaes e Cabdal, como descreve Santa Rosa
de Viterbo. Depois segue-se Asturias e Galliza, com
os seus complicados foros e subforos, a que em Por­
tugal correspondem os emprazamentos na província
do Minho, e em todas estas províncias a população é
devorada pela paixão demandista e pela exploração dos
advogados e escrivães. Para Firmin Caballero, Catalu­
nha, Aragão e Raleares constituem um terceiro grupo;
Valência e Murcia, onde prepondera a tradição agrí­
cola mauresca, fórma um quarto grupo digno de ser
imitado; a Audaluzia com as suas encortijadas, dis­
tingue-se pelo defeito da grande accumulação de pro­
priedade ; na Extremadura conserva-se a reminiscência
das Encommiendas, e da hostilidade contra a organi-
sação da Mesta, e é por isso a província mais atra-
zada; Castella e Leão ainda apresentam os estragos
da reacção neo-gothica contra a antiga povoação mus­
sulmana. Criticando este livro de Caballero, diz Sancbez
Ruano: «O auctor da Memória, instruído a fundo nos
annaes da nossa historia, recorda mui opportunamente,
para explicar o estado agricola das províncias, as ori­
gens de raça de cada uma. No byscainho encontra o
antigo vasco, independente até à ferocidade nos anti­
gos tempos; no cantabro indouto, de erguida cerviz,
indócil mesmo para supportar o jugo dourado de Roma;
no astur, o aguerrido e incontrastavel descendente de
Pelayo...; no valencianoyè reminiscências do laborioso
e pittoresco moúro; e no andaluz, tão molle, tão fata­
lista, movendo-se em um clima delicioso, de prima­
vera sem fim, não é diflicil contemplar os traços cara­
cterísticos do arabe indolente e leviano.— Quem não

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 121
admira nos nataraes d’estas províncias e
Galisa) aquella raça goda, religiosa, frugal, dura e
perseverante, que ousou iniciar a guerra contra a
mourisma...» ( 1) Estas diíferenças ethnicas accen-
tuam-se com a especialidade das danças e instrumen­
tos músicos de cada província. (Vid. p. 31.)
A persistência do costume nota-se principalmente
nas praticas agrícolas; ainda hoje se conservam em
Portugal os potes de barro untados de pez, em que
se guardava o vinho, apezar dos Celtas e Romanos
terem preferido as cubas. No Alemtejo, onde prepon­
derou o elemento bastulo-phenicio, as adegas são for­
madas com esses potes. Ainda hoje se usam as rodas
dos carros fixas aos grossíssimos eixos moveis; ainda
se fazem as sebes de ramos entrelaçados e se usam
os trilhos para a debulha do trigo. Na provincia do
Minho os costumes da vida agrícola ainda são os
mesmos do tempo de D. Affonso ui; quando se con­
tracta um criado ao anno, ajusta-se tanto em dinheiro,
e os usos e costumes; estes usos e costumes compre-
hendem a comida e o vestir e calçar. João Pedro
Ribeiro remonta estes usos e até ao tempo
de D. Affonso ui, porque na lei de 7 das kalendas de
janeiro de 1291, (2) os cita, estabelecendo as taxas
para a provincia do Minho secundum consuetudinem
terrae. (3) Os romanos já acharam na Península as
boas praticas agrícolas, e Columella, o auctor da Re
Rústica, era natural de Cadiz e grande proprietário
na Betica; os arabes, deviam os seus conhecimentos
agronomicos á civilisação da Chaldêa, e é a esse tronco
commum aos accadicos (os turanianos) que pertencem
as tribus ibéricas da Península. Portanto esta persis­
ti) La Democrácia, de 22, 23 e 26 de fev. de 1864.
(2) Veja-se nas Dissertações chronologicas, t. in, P. n, pag. 8 9
e segg.
(3) Repositorio literao,do Porto, n.# iO, ann. 1834.
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m LIVRO I, CAPITULO III
tencia revela-nos o fundo ethnico primitivo que tendia
para uma revivescencia todas as vezes que novas raças
trouxessem as suas qualidades, como os lybio-pheni-
cios, os romanos, os colonos germanos e os arabes.
Para que estes paizes tão ricos sob o regimen agri-
cola dos Arabes se tornassem estereis e miseráveis,
foi precisa a acção diuturna de abusos systematicos,
como a devastação estratégica, as doações regias ás
Ordens religiosas, a introducção da emphytheuse ro­
mana, emfim a escravidão da terra depois da escra­
vidão das pessoas. Onde o territorio está ainda hoje
sáfaro e abandonado é justamente o que em menos
de meio seculo foi absorvido pelas Ordens religiosas
dos Templários, Hospitalarios, Spatharios, e Monges
cistercienses de Alcobaça, que por doações regias se
apoderaram da Extremadura, do Alemtejo e do Al­
garve. A esterilidade da terra trouxe as fomes perió­
dicas, com o seu séquito da peste, e portanto uma
subserviência do povo ás Ordens religiosas, que o
conservavam na sua estupidez pelo terror supersti­
cioso d’estas calamidades attribuidas á colera divina.
Os que ainda possuiam terras doavam-nas às Ordens
para applacarem as iras divinas, e a miséria publica
não dava aso a pensar para descobrir a origem do
m al; as Ordens religiosas faziam tambem o monopolio
das lettras e das vocações, e só por um systema tão
habilmente montado de perversão das leis economicas
é que o catholicismo pôde fazer da Peninsula um
reducto de prepotência clerical. Por isso podemos
dizer que a feição essencial do caracter portuguez é
uma hesitação constante, incapacidade de uma deter­
minação prompta, que faz do povo soffredor, contem-
porisador e visionário, sem espirito de empreza, nem
originalidade industrial. Tiraram-lhe os conventos,
contrariaram-lhe o genio solitário; acabou o direito de
conquista, deixou de ser aventuroso e ficou miserável.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 123
0 portuguez foi sempre um precioso colonisador,
e a sua tendencia para a emigração um caracter de
todas as epocas históricas, em que se viu sempre
despojado da propriedade accumulada nas mãos dos
grandes senhores. Escreve Rebello da Silva, sobre a
situação do povo no seculo xvi: «bandos immensos
de mendigos e de vadios válidos, homens e mulheres,
percorriam as villas e os campos, pedindo esmola e
allegando que não achavam occupação. Muitos passa­
vam aos reinos estrangeiros e principalmente a Cas-
tella pela facilidade da vizinhança, e fundavam verda­
deiras colonias em algumas cidades. A quarta parte
da população de Sevilha nascera em Portugal, e nas
suas ruas não se ouvia quasi senão a nossa lingua.
O mesmo se podia dizer de Madrid. Nas províncias
de Castella Velha e da Extremadura o maior numero
dos mestres ou officiaes de artes manuaes eram por-
tuguezes.» (1) Estas relações dos dois povos sentiam-se
na agricultura; Fructuoso faltando da ilha da Madeira
escreve: «tem muita hortaliça, muitas couves mur-
cianas, mas espigam; pelo que sempre vem a semente
de Castella.» (2) Com estas relações dos dois povos
explica-se a persistência de certos costumes agrícolas.
O costume das queimadas do Alemtejo, acha-se
entre os Fullahs, o que prova a sua origem primitiva;
diz Gustave d’Eichthal, citando Leander: «Este pro­
gresso da industria pastoral reagiu felizmente sobre
a agricultura dos Fullahs ;'cada anno antes das semen­
teiras arrancam e queimam as más hervas, e depois
misturam as cinzas, com o estrume que têm em abun-
dancia.» (3) As queimadas foram no começo do se­
culo xvi regularisadas pela Ordenação Manuelina, por-
(1) Rebello da Silva, Mem. sobre a População e a Agricul­
tura de Portugal, p. 68; cita Severim de Faria.
(21 Saudades da Terra, p. 106. Ed. Funchal.
(3) Histoire des Fullahs, p. 249,

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124 LIVRO I, CAPITULO III
que existia uma rivalidade entre os que apascentavam
o gado e os que lavravam a terra. ( 1)
Certos costumes populares, como os silos ou
subterrâneos, acham-se simultaneamente entre os ger­
manos e arabes. Escreve Tacito, no seu livro De Ger-
mania : «As famílias vivem isoladas. Habitam dispersas
por aqui e além, conforme uma floresta, um campo,
uma fonte as fixou.— É tambem um dos seus costu­
mes cavar subterrâneos, que enchem de estrume. Dos
subterrâneos fazem tulhas para as sementes, e ahi se
refugiam dos frios excessivos, bem como das incur­
sões do inimigo...» (§ xvi.) Os Arabes tambem tinham
este mesmo costume dos Silos (2) ou Atamorrhas, ou
Matmorras, que se conservou em Portugal ; em um
documento do seculo xiv citado por Viterbo, perten­
cente a S. Vicente de Fóra, se lê : «Ha mais a dita
Capella cinco Covas de ter pão, que estão na dita aldea
da Cuba no terreiro, que está diante das portas da
dita casa : e são duas d’ellas grandes, que levarão
ambas vu moios pouco mais ou menos: convem a
saber, huma iv moios, e outra m.» (3) No terreno
de Monte-Fragoso, antigo Ferragial de Cima, achou o
architecto José Valentim masmorras arabes ou covaes
para guardar os cereaes. (4) As duas correntes ger­
mânica e arabe fundiram-se na sociedade mosarabe;
muitas designações territoriaes são germanicas, tal
como o Scire, que entre nós se conservou em Xira,
Cira, Xara e Enxara, o matagal, e se repete já sem
sentido na parlenda infantil:
Sarra madira (madeira)
Da ponta da eira...
(1) Rebello da Silva, op. cit., p. 191.
(2) Rossew Saint Hilaire, Hist. d'Espagne, t. m, p. 141. '
(3) Elucidário, vb.° C o v a .
(4) Dr. Guimarães, Sumtmrio de Varia historia, t. i, p. 92.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 425
«O que porém é admiravel é que os trigos e outros
fructos da ilha (Terceira) não duram além do anno
em perfeito estado. Os que restam corrompidos no
fim do anno não têm valor algum. Para que, pois,
preservem o trigo, guardam-no os habitantes debaixo
da terra por espaço de quatro a cinco mezes. Para
este effeito, cada cidadão abre n’um certo largo ou
praça um poço redondo, tirada a terra com pequeno
trabalho, deixando-lhe uma abertura por onde á von­
tade pôde descer um homem, e com uma tapadeira
onde se inscreve o nome do dono. D’esta fórma cada
um guarda na sua cova o trigo que tem, depois da
ceifa em julho, e coberto com a terra e com a tapa­
deira o conserva até o tempo do Natal. Então os
habitantes o tiram inteiro e são, por parte, só aquelle
de que querem usar, deixando o resto no mencionado
poço. Passado o tempo em que se gastou o outro, este
que desenterraram dura por todo o resto do anno em
cestos ou cabazes de canna, sem nenhuma necessidade
de lhe tocarem.» (4)
A palavra Wilari, o burgo, conservou-se nos an­
tigos villares, como Gardo nome de uma
povoação ; o magistrado germânico electivo abaixo
dos Condes, o Tunginus, conserva-se na fórma de
uma entidade malévola o Tanganho ou Tanganhão.
Os costumes arabes da agricultura conservam as
suas antigas designações, taes como o systema de
régas por meio das nóras, (Norias) e pelas prezas ou
poças, como no Minho, a que os arabes chamavam
albuheras. (2) As hortas, a que os arabes chamavam
Almonias ou Almmias,conservam este mesmo
ainda hoje, e Yiterbo diz : «As hortas e pomares de
Santarém... se chamam Omno que
(1) Itinerário de Lintschoten, de 1592: Descripção dos Aço­
res, (Trad. de J. de Torres, Pan., t. 14, p. 39.)
(2) Rossew Saint Hilaire, Hist. d’Espagne, t ui, p. 140.

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126 LIVRO I, CAPITULO III
pção de Almonias ou Almunias. » No Cancioneiro da
Ajmja citam-se as Almenas, e é este o nome das ter­
ras planas ou de veiga nos campos da Gollegã, ribei­
ras da Torre, Brescos, S. Thiago de Cacem, no se-
culo xv e xvi ; ainda no Alemtejo, como nota Viterbo,
chama-se alcacel (de Alchazar) o campo de herva com
ferra ou cevada. Rebello da Silva, na citada Memoria
diz dos Arabes : «Na disposição e amanho das hortas
e pomares eram insignes, e da enxertia das arvores
de fructo possuiam noções adiantadas... Muitas horta­
liças mimosas e raras foram introduzidas por elles,
entre outras as alcaparras e os .» ( 1 ) O sys-
tema da debulha do trigo pela unha do boi na eira,
usado pelos Arabes, persiste ainda na Hespanha (2 )
e na nossa província da Extremadura. Nas eiras em
que se debulha o trigo, nos Açores, emprega-se um
carro puxado a bois, e nas tabuas lascas de pedras
basalticas encravadas para desfazerem a espiga ; na
Beira usa-se um cylindro com dentes de ferro. Sobre
estes processos différentes transcrevemos aqui as pa­
lavras de Roulin : «Segundo Wilkinson, a especie de
traîneau que empregam ainda agora os fellahs egy-
pcios para bater o cereal, e que segundo duas pas­
sagens da Biblia era conhecido entre os hebreus no
tempo de Isaias, teria sido antigamente armado por
baixo com pontas de silex, pontas hoje substituídas
por laminas de metal fazendo saliência na face infe­
rior, e sobre os eixos que giram á medida que a
machina avança. É certo que na Italia, pouco antes
do começo da éra christã, e provavelmente muito
depois havia em certas províncias um apparelho simi-
lhante, chamado iribulum.—Id fit e tabula ,
ut ferro asperata—, como descreve Varrão. O sabio
(1) Memória sobre a População, p. 95.
(2) Saint Hilaire, Hist. d’Espagne, t. ni, p. 141.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 127
agronomo nos diz mais que na Hespanha citerior se
estava melhor provido, porque as laminas cortantes
estavam como no traineau egypcio sobre cylindros
moveis ; o nome pelo qual o designa é poe-
nicum, o que parece indicar que os hispanos o rece­
beram directamente dos Carthaginezes, tão superiores
em agricultura aos seus vencedores, como estes o
confessaram assás quando traduziram para seu uso o
tratado de Magon.» (1) O general Loysel viu usado
na ilha da Madeira o tribulum similhante ao descripto
por Varrão ; (2) nas proximidades de Lisboa vimos o
trilho com laminas de ferro, e com certeza a coexis­
tência d’estes trez processos correspondem a trez
civilisações différentes.
No Minho para a debulha do centeio emprega-se
o mangoal,ou malho, formado de um cabo de pào de
salgueiro e um pirtego preso a elle por couro cru. Na
lavoura conservam-se instrumentos e aprestos cara­
cterísticos pela sua remontissima antiguidade ; o carro
gaulez de duas rodas, o essedutn (3) é o que se usa
em Portugal em todas as províncias, e no Minho dá-se
o nome de Chéda a uma peça do carro de bois, que
entre os gaulezes tambem se chamava Carrus e era
commum á Italia. (4) Ainda se usam as rodas ffxas
(1) Rapport à l’Académie des Sciences sur une collection
d’instruments de piêrre découverts à Java. Compt. rend., t. l x t i i .
(2) Lenormant, Premières Civilisations, 1. 1, p. i69.
(3) Belloguet, Ethnogénie gauloise, p. 492.
(4) Ibidem, Glossaire gaulois, p. Í2S e 226.— M." d’Aulnoy,
na sua Viagem a Hespanha, p. 9, descreve uns carros e usos
communs a Portugal : «Eu notei em todo o caminho, desde
Bayona até ali (Bidassoa) pequenos carros, nos quaes se car­
regam todas as cousas que se transporta - não os ha senão de
duos rodas, que são de ferro, e a sua chiadeira é tão grande,
que se ouve a um quarto de légua, quando vão muitos juntos,
o que acontece ás vezes, encontrando-se sessenta e oitenta
simultaneamente. São puxados a bois. Vi-os similhantes nas

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128 LIVRO I, CAPITULO III
e mossiças, como entre os celtas. (1) A corda do carro,
a qual media doze braças, era chamada Adival na
Beira, e servia de nnidade de medida territorial no
seculo xiii, como a Aguilhada (de dezoito palmos) em
Coimbra no seculo xv, ou o Astil, (de vinte e cinco
palmos nos campos de Santarém.) (2) No Minho o
carro é unidade de medida, ou quarenta alqueires de
milho, e quando alguem tem mais de quarenta annos,
diz-se : Já passa de um carro; se tem sessenta annos,
diz-se : anda lá pelo carrameio.
«O typo o mais antigo dos carros de transporte dos
romanos, o p l a u s t r u m ,tinha tambem
apresentava esta particularidade, digna de ser notada,
que as duasr o d a s , munidas cada uma de uma aber­
tura central, de forma quadrada, eram espetadas sobre
os eixos de páo, os quaes eram guarnecidos de pinos
(tourillons) redondos, permittindo-lhes girar sob o
carro. Este modo de construcção tem-se conservado até
hoje em Portugal, e é ainda sobre este typo que os indí­
genas da ilha Formosa construem os seus carros.» (3)
A grade, que ainda se usa nas lavradas e bessadas,
a que os romanos chamavam crates dentatae, e de que
falia Plinio (xvui, 50), eram, segundo Reynier e Can-
calcan, de invenção gauleza ; (4) o engaço, a foice, o
crivo feito de crina, eram tambem usados pelos gau-
lezes (5) e persistem na nossa lavoura. No Minho os
landes de Bordéus e particularmente do lado de Dax.» Em
Portugal os carros chiam nas estradas pela falsa ideia de que
isso alenta os bois, e tambem por causa de espantar as cousas
ruins.
(1) Rebello da Silva, Memória sobre a População e a Agri­
cultura de Portugal, p. 4.
(2) Viterbo, Elucia.,vb.° A d iv a l , A s t im , etc.
(3) Reuleaux, Coup d’oeil sur l’Hist. du développements des
Machines dans l’Humanité, p. 15.
(4) Bellognet, Ethnogénie gaul., p. 460.
(5) Elucid., p. 222, ed. Inn.

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ÁS INDÜSMUAS LOCAES E TRADICIONAES 129
bois são jungidos com a canga no pescoço, e n’isto
differe no Alemtejo que junge o boi pela cabeça como
se usava antigamente na Italia (Plinio, viu, 70.) Ainda
hoje se conservam os potes de barro untados de pez
por dentro, em que se guarda o vinho na Extrema-
dura e Alemtejo, apezar dos Celtas e Romanos terem
preferido as cubas, as quaes no seculo x i i i e xiv se
chamavam coleira, layoneza, frona, chaslelar,
lha sacudida, castanha. (1 )
A cultura dos cereaes nas suas differenças demar­
cam as zonas agrícolas de Portugal; na região do norte,
comprehendida pelos districtos de Vianna, Braga,
Porto, Aveiro, Viseu e Coimbra, predomina a pro-
ducção do milho; na região do centro, abrangida
pelos districtos de Leiria, Santarém e Lisboa, o milho
e o trigo contrabalançam-se em uma producção quasi
egual; na região do sul, que se extende pelos distri­
ctos de Portalegre, Evora, Beja e Faro, domina a cul­
tura exclusiva do trigo; na região das terras altas e
montanhosas, dos districtos de Villa Real, Bragança,
Guarda e Castello Branco, prevalece em primeiro logar
a producção do centeio. (2) Além das condições clima-
tologicas que differenciam estas culturas cerealíferas,
a própria constituição da propriedade influe na pre­
ferencia dada a algumas d’estas frumentaceas. Lê-se
no Relatorio sobre os Cereaes: «Occupa o milho a
quasi totalidade das terras cultivadas de cereaes na
região do norte, e tem um logar igual ao do trigo na
região do centro. É na porção mais povoada do reino
que esta planta frumentacea predomina. O milho é o
cereal da pequena cultura; é a planta sachada que se
intercala ao trigo nas medianas e grandes culturas;
(1) Elucid.,p. 222. Ed. Inn.
(2) Relatorio e Projecto de lei sobre 0 rcíow* Cmmt
p. a.
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130 LIVRO I, CAPITULO Itl
é o recurso do lavrador quando não póde agricultar
as suas terras no tempo opportuno para a sementeira
do trigo.» (1) Cultivam-se vinte e trez variedades de
milhos em todo o paiz, variando as colheitas segundo
ellas são de regadio ou de sequeiro. Effectivamente
na região norte de Portugal é onde a propriedade se
acha mais dividida pela preponderância do regimen
emphyteutico. No Minho a cultura do milho é inter­
calada com a do centeio, própria das terras altas; e
por isso diz-se nas parlendas populares, que o milho
chasqueara do centeio barroso, pela seguinte fórma:
Gandarella, gandarella
Que andas cinco mezes na terra t
Respondeu-lhe o centeio:
Cala-te lá, meu gadelhudo,
Quando te acabas, sou eu que te accudo.»
Em outras regiões cerealíferas repete-se este mesmo
dialogo entre o trigo e o centeio. Diz o citado Rela­
tório : «A cultura do centeio tem importância na região
montanhosa, onde este cereal representa, em relação
á alimentação, papel egual áquelle que o trigo repre­
senta na região do sul.» (2) Na tradição popular, em
Villa Nova de Gaya, repete-se:
O trigo disse para o centeio:
— Cala-te lá, centeio, centeiaço,
Que tu não fazes as funcções que eu faço.
O centeio disse para o trigo:
«Cala-te lá, trigo espadanudo,
Que não accodes ao que eu accudo.» (3)
(1) Relat.e P r o j e c t o deleisobreoCommeCereaes
(2) Ibidem, p. 14.
(3) Leite de Vasconcellos, Trad,p. 128.— Ha preciosas
variantes no Ms. E 5-29, fl. 70, da Bibl. Nac. de Lisboa.

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ÀS INDUSTRIAS LOCAGS E TRADICIONAES 134
Aqui o nome de espadanudo é um epitheto injurioso,
significando a sua qualidade inferior; das vinte e nove
qualidades de trigos portuguezes que se cultivam,
prevalecem quatorze variedades inferiores do triticum
dururn ou durazio na maior área do paiz. Lè-se no
citado Relatorio: «Este predomínio dos trigos durazios
é o resultado em parte do clima, em parte de antigos
usos tradicionaes, em parte do máo amanho e pouca
riqueza do solo. É no centro e no sul do reino que
domina a producção do trigo, e ahi abundam sobre
todos os trigos durazios.» (1) A cultura da aveia, que
se alastra por todas as regiões da Europa, «tem entre
nós importância unicamente em relação á alimentação
dos animaes.» (2) Este seu destino ordinário, acha-se
na parlenda popular, em que a aveia disse:
—Eu sou a avêa,
Negra e feia;
Mas quem me tiver em casa,
Não vai pr’a cama sem céa. (3)
A situação da agricultura está dependente da crea-
ção dos gados, e da falta ou diminuição d’estes pro­
vém a esterilidade da terra, e a insufficiente alimen­
tação do povo que decahe na sua constituição physica
e individualidade moral. Diz o citado Relatorio: «Infe­
lizmente em Portugal é limitadíssimo (o uso da carne),
e o nosso povo dos campos póde dizer-se que usa quasi
exclusivamente de uma alimentação vegetal.» (4). «Te­
mos muito pouco gado para a extensão do nosso ter­
ritório, e d ahi resulta não crescer, antes diminuir a
fertilidade do solo aravel, principalmente nas duas
(1) Relatorio, p. 9.
(2) Ibidem, p. 16.
(3) I. Leito de Vasconcellos, ibidem
(4) Relatorio, p. 19,
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l ivr o i, Ca pi t u l o i íi

regiões do centro e do sul, onde a cultura exige do


solo muito mais do que lhe restitue.« (1 )
Na actividade pastoral é maior a persistência dos
costumes arabes, começando mesmo pelas designações
vulgares ; o rebanho, manada, fato, e até o proprio
curral chamam-se Alfeire; o maioral do gado é o
Alganáme, o guarda dos rebanhos é o Almocouvar;
a enxada ou picaveque da cultura hortense é a Alferce,
como á colheita dos fructos se chamava Alacir. Os
Arabes pastoraes passavam a estação do verão
saifa) no Irak ou na Chaldêa, e a estação do inverno,
(Mesta) no Egypto e terras do ponente ; Mr. Dela-
borde não attribue este costume privativamente aos
Arabes com o intuito de tornar mais Una a lã dos seus
gados, (2) e Rossew Saint-Hilaire considera-o como
commum a outros povos pastoraes antes da entrada
dos Arabes na península hispanica. (3) Spencer explica
este costume pela necessidade de livrar os gados das
picadellas das moscas, como se observa entre os Kir-
guisses que levam no mez de maio os gados para as
montanhas, quando os steppes estão cheios de fartas
pastagens. (4) Em França os carneiros das províncias
meridionaes viajam cada anno, e já no tempo de Pli-
nio (xxi, 31) vinham procurar o thymo aos campos
da Narboneza ; o costume dos gaulezes tem-se conser­
vado no sul da França. (5) Em Portugal este costume
foi observado por alguns estrangeiros, como Hoffman-
segg, na sua Viagem, á serra da «Não têm
alguns outro meio de subsistência senão seus rebanhos,
mas vêem-se obrigados a mandal-os durante cinco
mezes do anno para o Alemtejo, e a carestia das pas-*
(1) Relatorio,p. 23.
(2) M. Delaborde, Voyage pittoresque en Espagne, t U, p. 41.
(3) Histoire d’Espagne, t. ni, p. 142.
(4Í Sociologie, 1. 1, p. 49. Ed. franc,
(3) Belloguet, Ethnogén., p. 463.

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ÀS INDÜSHUÀ9 LOCAES E TRADICIONAES 133
tagens bem como as despezas da viagem quasi que
absorvem o valor da 15.» (1) A Mesta da Hespanha
mudava annualmente os seus enormes rebanhos das
planícies da Andaluzia e Extremadura para as monta­
nhas de Aragão; sobre este ponto lê-se no Panorama:
«Entre nós se imita isso pelo mesmo principio, e
duas vezes no anno passam e repassam o Tejo os
rebanhos do Alemtejo para a Serra da Estrella.» (2)
A deambulação dos gados tambem se costuma fazer
nas povoações para as saniflcar em tempo de peste:
«Quando o povo da villa (Guimarães, 1509) se quiz
recolher a suas casas por estar applacado o contagio
da peste, primeiro encheram a povoação por alguns
dias de gados dos contornos, para que com seu bafo
sanassem as partes infeccionadas.» (3) As raparigas
que guardam o gado chamam-se doeiras em Vouzella
e Mortagua.
As raças dos carneiros portuguezes, em quanto ás
suas qualidades lanígeras, correspondem aos trez typos
das raças hespanholas, a ribeirinha ou churra ou lacha,
(Leão, Castella Velha e Mancha) a merina, estante
(Extremadura, Andalusia, Cordova e Aragão) e trans-
humante (de Leão á Extremadura). Segundo estes
typos, temos o carneiro bordaleiro, o merino e o estam-
brino.
O carneiro bordaleiro é de pequeno corpo, com
pontas voltadas em spiral, ou sem ellas, distinguindo-se
pelos pellos cabrios, ( churo)ou pelos pello
empastados ( bordaleiroféltroso). E esta a raça mais
generalisada no paiz, mas sobretudo em Vianna, Braga,
Viseu, Coimbra, Leiria, Santarém e Lisboa, e é geral­
mente preta. Nas serras do norte de Lisboa, chamam-se

3 1) Ap. Bernardes Branco, Portugal e os Estrangeiros, 1. 1,


96.
(2) Panorama, t. viu, p. 127.
(3) Memórias resuscitadasda antiga Guimarães, p.
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134 LIVRO 1, CAPITULO III
caréos, chamequeiros e gaüegos. N’este primeiro typo
ha uma terceira variedade, em que os pellos cabrios
diminuem, prevalecendo o vello em mechas, ou
daleiros communs; estes constituem a raça alemtejana,
das areias e dos matos, (transhumantes da Serra da
Estrella, do planalto de Miranda de Traz os Montes,
campinas e encostas dos valles do Tejo e Mondego).
D’esta variedade, os das areias (Portalegre) e os pretos
(Serpa e Moura) approximam-se do typo merino, for­
necendo a melhor lã.
O segundo typo, ou o carneiro ou que não
tem pellos cabrios, apresenta as seguintes variedades:
dos barros(Eivas, Campo Maior e Mourão) similhantes
aos merinos estantes da Extremadura hespanhola ;
raça fina saloia ou brancos fin, (car
cercanias de Lisboa, concelho de Oeiras); e os bada-
nosj da terra quente do districto de Bragança (entre
Torre de D. Chama e Torre de Moncorvo).
O terceiro typo, chamado é o que pro- .
duz a lã de pente, dividindo-se em grande churro ou
lacha hespanhol pouco vulgar ; os churros nas serra­
nias de Yiauna, e os bordedeircom
Branco, Guarda, Yiseu e Bragança). O typo borda-
leiro predomina nas ilhas da Madeira e Açores; e o
estambrino em Angola e Moçambique, e mestiçado em
Cabo Verde e S. Thomé e Principe. (1)
As persistências na vida agricola são verdadeira­
mente notáveis ; na citada Memória sobre a Popidação
e Agricultura de Portugal escreve Bebello da Silva :
«Todos os individuos, hoje empregados n’uma grande
lavoura, nos apparecem já em acção no seculo x i i i
desde o abegão, (abegom) o lavrador, ( de
lavoura) o azemel ou conductoi* das cavalgaduras
(1) A. J. Teixeira, Relatoriodo Conselho gera
gas,nos annos de 1876 e 1877, p. 37 a 41.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRABICIONAES 135
(azamel) e o moço da lavoura (cachopiusvaceis) até
ao maioral dos vaqueiros, (maior mancipius vaccis)
ao conhecedor dos porcos ( cporeis)
lhas, (cognitorde ovibus) aos azagaes e porcariços
( mancipiide ovibus et poreis) ao rapaz do gado (cacho­
pius de ganato), e á creada do campo, (mancipia.)»( 1)
«No Alemtejo já subsistia o uso, ainda hoje em vigor,
dos lavradores darem a certos creados pequenas cea­
ras para cultivarem por conta própria e colherem para
si o produeto.» (2) O regimen do trabalho agricola
ainda hoje apresenta singularidades notáveis; ha
indivíduos que contractam operários da Beira para
virem trabalhar durante trez ou quatro mezes nas
carvoarias no Alemtejo; esses contractadores são cha­
mados Manajeiros, e os conlractados Maltezes, cujos
costumes desregrados se acham parodiados em uma
oração popular cominum a Portugal e á Andaluzia.
O antigo trabalho agricola estava sob a intervenção
directa do poder real, que prohibia ou impunha cer­
tas culturas; uma lei de 12 de fevereiro de 1564
determina: «que se monde o trigo, o centeio e cevada
nos mezes de março, abril e maio, e se faça o mesmo
aos milhos nos tempos que for necessário. E que se
sacudam os pães da agua e neve que n’elles houver
cahido com um cordel de lã comprido, da grossura de
um dedo, que cada lavrador deve ter para o referido
fim: Ordenando mesmo que os Juizes e Vereadores
em cada anno vão ver os termos dos seus logares
antes que se recolham as novidades, e provejam sobre
as ditas cousas, etc.» (3) O orvalho que embaraça o
crescimento das cearas era chamado Mangra, e de o
modo de sacudil-o com o cordel de lã, diz Viterbo:
«em a villa de Sanceriz junto a Bragança, em cuja
(1) Op. cit., p. 103.
(2) Ibidem, p. 104.
(3) Ap. Elucidário, vb.° Mangra.
O rigin a l from
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136 LIVRO I, c a p it u l o in
camara se guardam ainda estes longos cordéis com
que se sacudiam os pSes; mas sem a lembrança ou
memória de que tivessem algum uso.» Junto com a
mangratnella das cearas, cita-se em um documento
do seculo xv a alforra,e esta palavra subsis
nos Açores como chiste sarcastico que se diz a quem
espirra :
Viva, até que morra,
Com a barriga cheia de alforra.
 cultura do milho é considerada como do seculo xm,
em Portugal; no Minho ainda se chama milhão, tal
como em um documento de S. Simão da Junqueira de
1289 ; diz Viterbo : «D’aqui se podia inferir, que j á
então havia em Portugal milho maiz, ou grosso, a que
hoje chamam n’aquella terra .» Depois accres-
centa um facto ácerca da introducção tardia do milho :
«no seculo x v ii um certo Paulo de Braga o trouxe á
sua terra, vindo da índia. Ao principio, dizem, se
prohibiu o semeal-o, e só alguns semearam poucos
pés nas suas hortas e jardins. Hoje é o mais frequente
pão n’aquella província, e lhe chamam milho zaburro,
milho grande, milho graúdo, milho maiz, milhão, ou
milho grosso e milho de maçaroca.» (1 ) Existe de facto
um certo milho arredondado, que predomina no Minho
e um milho grado, de cana alta, que é exclusivo das
ilhas dos Açores ; este é que ainda se chama ali milho
de maçaroca, ao passo que no Minho é a espiga. Viterbo
aponta o facto, depois da descoberta da Guiné, de ser
trazido para Portugal o milho grosso de maçaroca «e
que se principiou a cultivar nos campos de Coimbra,
d’onde passou a todo o reino.» (2) A sementeira do
milho é uma festa em casa de cada lavrador do Minho ;
(1) Ap. Elucidário, vb.° M il h a n .
(2) Ibidem, vb.° M açaroca.

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ÀS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAËS 13?
é a bessada, a que concorrem todos os visinhos com
os seus bois, á maneira do Potirum ainda usado no
Brazil. Depois da b e s s a d a , segue-se
mulheres cobrir ou enterrar os grãos do milho que
estão fòra do rego. (1) Depois do milho nascido ha a
monda, depois a sacha, a réga, a escava, ou descrôa,
até que depois de maduro o milho no pé este é cor­
tado, trazido para a eira, onde se faz a esfolhada ou
descamisada, ao som de cantigas e de colloquios dos
embuçados, sendo por fim malhado a mangoal (Mon-
dim da Beira) ou debulhado á mão como nos Açores,
dando-se em paga ás mulheres o carrilho ou carôlo.
Nos Açores, na esfolhada do milho ficam algumas folhas
na maçaroca, por onde ellas se atam com um vencilho
formando um mancho; e logo que estão muitos for­
mados guarnecem-se com elle trez páos que se espe­
tam no campo em fórma de barraca, a que se chama
tolda. Ali sécca o milho ao ár livre, d’onde é tirado
antes das chuvas para ser debulhado. Quando na esfo­
lhada se acha uma maçaroca vermelha, fica-se com
direito a dar um abraço em cada uma das moças.
A sementeira e colheita do centeio tem tambem suas
praticas especiaes ; na epoca da sementeira procura-se
uma rapariga que seja Maria e que esteja donzella
para lançar os primeiros grãos á terra, para que os
campos dêem maior novidade ; é uma reminiscência
do culto de Demeter. Na colheita usa-se uma cere-
monia logo que acaba a malhada, em que os malha-
dores apuparam (acclamaram) os donos da casa: re­
unem-se todos em volta de uma padiola, onde deitam
um mono de palha, vestido de velha, e junto d’elle
chora um dos malhadores fazendo de viuvo, os outros
levam a padiola e fogem com ella para os campos, e
o viuvo põe-se em altos berros e com graçolas diz que
(i) Leite de Vasconcellos, Tradições, p. 236,

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138 LIVRO I, CAPITULO Id
lhe querem roubar a sua velha, agarra-a e vai pen-
dural-a no cimo de uma cerejeira. No desafio dos
malhadores, aquelles que não sabem ou nem têm força
para fazer zoaro mangoal, são vencidos, e ao
da palha gritam-lhes : Leva a gata I Leoa a gata I O
grito, que é injurioso, allude a um costume de perto
de Yianna do Castello em que no fim da malhada se
queima uma méda de palha moida, em cima da qual
se collocava uma panella com um gato dentro, que
fugia pelos campos quando a panella estourava. (1)
A colheita da azeitona na Beira e Extremadura é
em geral feita por mulheres, e tambem ao som de
cantigas, sendo esta epoca do anno aquella em que
as modas (melodias) passam de uma terra para outra.
No trabalho do campo existem costumes supersti­
ciosos verdadeiramente extraordinários ; tal é o que
se chama Deitar as milhas: « as milhãs (más
hervas que prejudicam as sementeiras) é uma ope­
ração que consiste no seguinte: É na vespera de
entrudo. O que quer deitar as milhãs, chama o visi-
nho em voz alta pelo nome, e grita logo em seguida:
Milhas para nós ;
Milhãs para vós !
Levae o burro
Corregidos sereis vós.
«E desata logo a tocar n’uma buzina com toda a
força e de modo que não possa ouvir a. resposta do
visinho. Se ouvir a resposta do visinho (que é o mesmo
palavriado), a efficacia d’este esconjuro ou imprecação
perde-se. Pelo contrario, o que primeiro deitar as
milhãs fica com ellas. O visinho que ficou com as
milhãs o remedio que tem é passal-as a outro visinho.
De sorte que n’esta noite muitas aldeias até á meia
(1) Leite de Vasconcellos, Tradições, p. 237.
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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 139
noite não fazem mais do que deitar milhãs (ás vezes
para um comparochiano de longe) e tocar buzina.» (1 )
O lavrador, para guardar o seu campo das influen­
cias maléficas, espeta n’elle um corno de carneiro,
uma ferradura cahida de uma mula, e na noite de
S. João atira ao campo com trez pitadas de sal di­
zendo :
Trista com trista,
Sam João Evangelista!
Ao derredor
D’este renôvo assista;
Porque se alguma bruxa
M’o quizer levar,
Ha de contar as estrellas
E as areias do mar,
Com a cabeça para o chão
, E as pernas para o ar,
E este sal ha de apanhar. (2)
(Minho.)
Para afugentar a passarada o dono da ceara mette
fel de boi em um púcaro novo e pendura-o no campo;
depois do que uma moça chamada Maria e que esteja
em folha, dá trez voltas á roda do campo, dizendo:
Passarinhos 1 ao monte, ao monte,
Que o meu campo tem fel,
E o do meu visinho mel.
(Briteiros)
Ou indo a mulher em fralda:
Passarinhos, deixae o meu painço
Que tem fel!
Ide para o monte
Que tem mel.
(1) Superstições populares, n.° 642, coll. Z. Pedroso.
(2) Tambem em Pedroso, Superstições, u.° 647; Jjeitc de
Vasconcellos, Tradições, p. 235,

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A
140 LIVRO I, CAPITULO 111
No tempo da ceifa é preciso tirar o púcaro de fel
para que o painço não fique amargo. (1) Nas aldeias
ha um ditado, que se applica áquelle lavrador que
teve bons milhos : Aquelle andou no cambão. Allude
a locução ao costume que ha de montar o lavrador
em um cambão na noite de S. João e atravessar o
campo do seu visinho proferindo esta fórmula :
Aqui estou n’este cambão
Na noite de S. João,
P'ra trazer atraz de mim
Pipas de vinho e carros de pão.
*
Depois d’isto, g campo do visinho não viça e o
d’aquelle que montou no cambão fica abundante.
Aquelle que for, depois de ter andado no cambão,
bater com malho ou mangoal nas médas do centeio
do visinho, vem-lhe o grão cair na caixa em casa. (2 )
Antes d’isto, ao ter cavalgado no cambão de sete cha­
velhas, deve ter dito, simulando fustigal-o :
Vae boi, vae vacca,
Esta terra é fraca ;
O renovo que erila der
Gahirá na minha arca. (3)
Os moços de gado, quando andam no monte e se
espalha o nevoeiro, sóbem acima de um penedo, e
d’ali proclamam uma fórmula de imprecação :
Neboa, neboeiro
Vae p’ra traz d’aquelle outeiro,
Que lá anda João Cabreiro
Com as calças queimadas.
Quem Ih’as queimou foi o fogo;
(1) Pedroso, Superstições, n.° 657; Leite de Vasconcellos,
Trad. 165.
Í2) J. Leite de Vasconcellos, Tradições, p. 234.
(3) Z. Pedrozo, Superstições, q.° 644.

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AS iNDüStRÎÀâ LÒCAfeâ Ê thAblCloNAÈã Í41
O fogo anda na mata;
Que a mata deu a cabra,
E a cabra deu o leite,
E o leite é para as velhas,
E as velhas dão o milho,
E o milho come-o a gallinha;
A gallinha põe os ovos,
E os ovos come-os o cura, *
E o cura diz a missa
Atraz d’aquella arrabiça. (1)
(Serra da Estreita.)
Em um Auto de Gil Vicente este João das Calças
queimadas, apparece na fórmula :
No penedo, João preto
E no penedo.
Quaes foram os pêrros
Que mataram os lobos,
Que comiam as cabras,
Que roeram o bacello
Que puzera João preto
No penedo. (2)
É evidentemente uma imprecação contra o nevoeiro,
usada pelos pastores no seculo xvi.
A cultura da vinha foi devida á influencia arabe ;
uma canção de Estevam da Guarda, privado do rei
D. Diniz, descreve minuciosamente esta cultura :
D’uma gram vinha que tem em Vaiada,
Alvar Rodriguis nom pod’aver prol,
vedes porquê, ca el non eura sol
de a querer per seu tempo cavar;
et a mays d’ela jaz por adubar,
pero que têm á mourisca podada.
El s’entende que a tem adubada,
pois lh’a podaram et sen razon,
e tan menguado ficòu o torçom
(1) Leite de Vasconcellos, Tradições, p. 60«
(2) Obras, t» n, p. 448.

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Uâ LIVRO I, CAPITULO UI
que a copa nom pode bem deytar;
cá em tal tempo a mandou podar
que sempre lhe ficou decepada«
S entom de cabo nom for rechamtada
nenhum proveyto nom pod’end’aver,
ca per aly per hu a fez reer
já em dezembro está para secar;
et mays valeria já pera queymar,
que de jazer como jaz mal parada. (1)
O assumpto d’esta canção com intenção satyrica
bem nos revela os assumptos das conversas da côrte
do rei lavrador; a allusão a Vaiada, por ventura
encerra o facto do costume da divisão annual das ter-
‘ ras de Vaiada, no tempo de D. Affonso Henriques. (2)
Na cava das vinhas o ultimo da direita é chamado o
rei da c a v a d a o, da esquerda é a e o ,que
anda no meio é o vassallo. O rei da cavada é o que
dá o signal para as comidas, dizendo a fórmula:
Comam e vamos,
Limpem as barbas
E atem os pannos.
O vinho que se distribue é mandado vir pelo
sallo, e a rainha só dá ordens no sabbado á noite. À
segunda cava é chamada redar e stravessar. (3) Na
satyra Os ratos da Inquisição, lê*se:
Eu empo, cavo e podo
~ E vós vindimaes a vinha. (4)
O trabalho das vindimas, como as esfolkadas do
milho e espadelladas do linho são feitos entre cantigas
e risadas.
(1) Cancioneiro portuguez da Vaticana, n.° 905.
(í) Viterbo, Elucid., vb.° B a l a t a .

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AS iNtoUâTMAS LOCAES E TRAtUClONAES 143
A producção do vinho na ilha da Madeira foi pre­
cedida pela do assucar, que d’ali se propagou para o
Brazil, onde se tornou a sua principal riqueza; escreve
Fructuoso: «o infante D. Henrique mandou as canas
de Cecilia para se povoarem na ilha, e de man­
dou trazer bacellos de malvasia para se plantarem.» ( 1 )
Depois da decadencia da cultura da cana do assucar
é que os vinhedos tiveram o seu maior desenvolvi­
mento, creando-se as seguintes qualidades o sercial,
considerado como superior, o boal e o tinta
afamado e o séco. (2)
As terras tambem se differenciam ou são conheci­
das pela especialidade dos seus fructos; de uma Sa-
tyra do seculo x v ii tiramos algumas indicações, pre­
ciosas pela tenacidade da sua persistência :
são as pêras que levaes as de Oeiras tão galantes,
Conicaora e carvalhal,as da Lourinhã chainhas,
as de Monte-mór rainhas,
A pêra parda na cama e as de Alcobaça brilhantes. (3)
de vós não está segura;
e em vós fazeis dependura N5 escanam nnr n(i„
da bergamota de fama: ininhls c S T r « ^ P
.aquequeé pigarça
pêra de se chama
estimaçao, ainias garrafais...
gmjas aarrafais
tanto que vos chega a mão,
logo d ella fazeis farça, As laranjas extremadas
e sendo pêra çigarça da China ricas e bellas...
vós a fazeis pera pão.
........................................... A fructa fresca çostaes,
na canastra não se esconde e para desenfastiar
nem minha pêra de conde ides a sêca buscar
nem pêra de Rio frio; e inda d’esta gostaes mais:
A de Alcobaça levaes,
............................ a do Algarve estremada,
as ricas maçãs de Abrantes, a das Pias tão gabada, etc.
(1) Saudades da Terra, p. Ü3.
(2) Dr. Alvaro Rod. d’Azevedo, Ed. Fruct. p. 707.
(3) Ratos da Inquisição, p, 147 a 150.

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144 Li VRO t, CAhlTÜLO tlt
Os trabalhos do campo conduzem a um certo numero
de industrias locaes e tradicionaes, como vêmos por
esses productos já celebrados desde o seculo x v i;
podemos apontar ainda outros que estão no seu vigor:
O meu queijo do Alemtejo
que quando vou mui contente
comel-o por ser frescal.
Aos queijos do termo nosso
que chamamos de Saloias...
e até os de Monte-már
que tém graça por salgados. (1)
Ao descrever a situação das pequenas industrias
na região do norte de Portugal, a Commissão do inqué­
rito de 1881 apresentou o facto da regressão dos
operários fabris para o trabalho dos campos, ou m ui­
tas vezes a alternancia do trabalho da lavoura com
qualquer officio: «todos os operários das industrias
locaes ruraes alternam o exercício da profissão com
o trabalho agricola conforme as construcções são mais
ou menos abundantes, e tanto mais quanto menor é
a sua aptidão profissional.» (2) «Em grande parte os
operários são tambem lavradores, pequenos proprie­
tários, e as economias do salario consolidam-se n a
terra.» Fallando-se dos fabricantes de telha, diz o
mesmo Relatorio: «alternam este serviço com o rural,
como succede a uma grande parte das industrias do
campo.» (3) Dos calafates de Villa do Conde, Porto e
Gaya, diz: «uns trabalham nos campos, outros emi­
gram para o Brazil.» (4) Na deçadencia lamentavel
(1) Ratos da Inquisição, p. 139 6 140,
(2) Relatorio, p. 26 e 27,
(3) Ibidm, p. 32.
(4) Ibüem, p. 34,
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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES * 145
das pequenas industrias, os operários que não emi­
gram pedem ao trabalho agrícola os recursos imme-
diatos da subsistência ; os officiaes de ourives, dos
concelhos de Gaya e Gondomar, depois da entrada
do ouro francez, tiveram de ir trabalhar nos campos,
ou, como se diz na locução chula: «foram plantar
tas.» O mesmo aconteceu aos officiaes de marceneiro
no concelho de Paredes. (1) A Agricultura torna-se
assim um trabalho secundário, um succedaneo da emi­
gração.
As industrias locaes e domesticas.— É este um dos
quadros mais pittorescos da nossa vida nacional ; em
Portugal a pequena industria apresenta o caracter
singular de ser mais activa e fecunda do que a grande
industria. Lê-se no Relatorio da Sub-commissão do
Inquérito industrial de 1881 : «Ainda hoje porém no
districto do Porto e em todos os do reino a chamada
pequena industria é numérica e economicamente mui­
tas vezes maior do que a grande.» (2) Ella lucta com
o elemento capitalista, com a celeridade das machinas
e com a inconsciência do regimen das pautas e trata­
dos de commercio. Não acompanharemos o quadro
doloroso do seu atrophiamento, mas limitar-nos-hemos
a esboçar as feições tradicionaes dos seus processos.
A riqueza metallurgica da Península, explorada pela
raça ibérica, attrahiu os navegadores phenicios, e
continuou a ser explorada sob o dominio dos Koma-
nos ; deu-se porém um facto importantíssimo para se
deduzir d’elle uma conclusão histórica. E vem a ser :
o conhecimento da industria metallurgica perdeu-se e
as minas ficaram por largos séculos abandonadas. (3)
(1) Ibidem, p. 52 e 53.
(2) Relatorio, Offlcio ao Governador Civil.
(3) Buckle nota este facto importante no capitulo sobre a
Civilisação m Hespanha.
10
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146 LIVRO I, CAPITULO UI

O trabalho de mineração substituiu-se pelo trabalho


agrícola. Ha n’este facto a revelação de uma caracte­
rística ethnica ; entre as raças ibéricas da Península
o ramo berber era essencialmente agrícola, e é a agri­
cultura que ainda hoje prepondera entre as povoações
vascongadas ; os elementos lybio-phenicios, introduzi­
dos pelos Carthaginezes emHespanha, eram tambem
agrícolas, bem como os Liti, que se offereciam como
colonos agricultores à administração romana. Quando
os Arabes vieram a occupar a Península, o elemento
berber, que differenciava o mouro do arabe, veiu tam­
bem influir no desenvolvimento exclusivo da agricul­
tura. Pôde dizer-se, que estas causas, ligadas a outras
mais fundamentaes da marcha da civilisação da Europa,
faziam que a industria agricola se tornasse-uma nova
fonte de riqueza para a Península ; porém as d'eva'àta-
ções do territorio, usadas como tactica militar na recon­
quista christã, tornaram este vasto territorio deserto
e miserável: mineração e agricultura tudo se esqueceu.
Fallando das riquezas metallurgicas do territorio por-
tuguez exploradas por Iberos, Phenicios e Romanos,
não podemos deixar de dar aqui um leve esboço da sua
extensão. Abundam em todo o territorio os jazigos de
cobre, nos granitos e porphyros, nos schistos crystal-
linos e argilosos e grauwackes devonianos, nos trias
e calcareos jurasicos. (1) Onde se extendeu a civili­
sação phenicia ahi se encontra a maior abundancia
de minereo e os vestígios de uma exploração primitiva
continuada pelos Romanos ; na parte central do Alem-
tejo, os veios de cobre apresentam uma uniformidade
de structura e de composição, e de direcção, que os
ligam a um unico systema. Esta região está compre-
hendida entre a Serra d’Ossa, Serra de Portei, Serra
de Yianna e Serra de S. Thiago do Escoriai ; as explo­
di) Exposition portugaise (de 1867) Grupo V.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 147
rações primitivas fizeram-se á superfície do solo e
somente nas planicies. Sobre a margem direita do
Guadiana existe o jazigo de cobre de Xeres e Barcas
abandonado apesar da sua riqueza; e na zona dos
porphyros feldspathicos de Alcaçovas, entre Villa-Nova
de Baronia e Alcaçovas, existem os filões de cobre em
uma abundancia tal, que justifica os vestígios de largas
explorações primitivas.
A região schistosa, que comprehende as villas de
Estremoz, Borba e Villa-Viçosa, Alandroal e outras, é
de uma riqueza metallifera tal que não escapou á explo­
ração dos antigos, sendo continuada pelos Bomanos,
pelos Arabes e até pelos reis portuguezes. As minas
de ferro, egualmente abundantes em todo o territorio
portuguez, chegaram tambem a ser exploradas pelos
Romanos, como se vê pela grande quantidade de esco­
rias e vestígios de fornos e restos de construcções do
jazigo de ferro da Moita do Arnal. O Romano não fez
mais do que continuar uma industria que já estava
montada, e aproveitar a actividade de povoações sub-
mettidas, empregando-as no trabalho das minas. O
abandono successivo d’essa industria póde em parte
explicar-se como uma reacção á violência empregada
pelos Romanos nas suas explorações. Depois da queda
do império e sob o dominio gothico e arabe, a Penín­
sula tornou-se especialmente agricola. O trabalho das
minas só renasceu em Portugal de um modo progres­
sivo em 1853, regularisando-se este trabalho pela lei
de 1854, imitada da lei franceza de 1810. Em 1853
havia em Portugal apenas duas minas em exploração;
em 1862 já se exploravam mais ou menos activamente
vinte e quatro minas; e em 1866 já se contavam cin-
coenta e seis em exploração, noventa e quatro con­
cessões, e cento e setenta e um pedidos de concessão. \
Á decadencia da industria metallurgica, ligada a
causas históricas das antigas civilisações peninsulares,
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448 uvao I, CAMTÜLO nt
seguiu-se tambem a decadencia da agricultura, sub­
stituída pela rapina systematica sobre as riquezas dos
Arabes. Quando essa riqueza se annullou completa­
mente nas mãos dos dominadores neo-catholicos, isto
é, terminada a reconquista christã, tanto Castella como
Portugal se lançaram na corrente das expedições ma­
rítimas, á descoberta e conquista de novos territórios.
Pôde estabelecer-se que, além dos estímulos orgânicos,
e da provocação do territorio, esta extincção de recur­
sos economicos foi um impulso que nos levou para o
mar.
O trabalho dos metaes, especialmente o do ouro e
do aço, tornou-se um característico do genio portu-
guez, e apesar de todas as vicissitudes porque tem
passado a nossa nacionalidade, a ourivesaria e a serra­
lharia conservam a sua tenacidade local e tradicional.
É certo que nos falta a originalidade, mas isso resulta
do proprio caracter da estabilidade da tradição, que a
tem mantido a despeito de todas as causas que lhe
atacam a existencia.
De todas as fôrmas da Arte portugueza é a Ourive­
saria a que tem uma evolução completa, podendo,
pelas suas relações com a Architectura e com a Escul-
ptura, com a opulência cultual e com a sumptuaria
civil, e mesmo ainda com os ornatos populares, for­
mar-se porella asynthese do genio artístico portuguez.
A Ourivesaria entre nós foi o reflexo passivo da Archi­
tectura, imitando mesmo a sua polychromia nos esmal­
tes ; o gosto ou estylo byzantino, as creações da con-
strucção gothica ou ogival, o mixto da renascença
greco-romana produzindo o gothico florido (a que em
Portugal se cnama o estylo manuelino), o baroco e
recócó da epoca jesuítica e pombalina, tudo isto appa-
rece imitado nos innumeros productos da Ourivesaria
portugueza, conservados nos mosteiros, nos paços e
pas casas fidalgas. Este phenomeno não é exclusivo
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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 149
a Portugal ; Renan, fallando da Arte na Edade
accentua este caracter absorvente da Architectura :
«ella teve a desgraça de prejudicar muito as outras
artes plasticas, condemnando-as a uma condição subal­
terna. Como a theologia matava a sciencia racional
reduzindo-a á situação de ancilla, a architectura go-
thica, sendo só por si a arte, tornava impossível o
progresso da pintura e da esculptura. Que diria Phi­
dias, se elle se visse sujeito ás ordens de architectes
que lhe tivessem encommendado uma estatua desti­
nada a ser collocada a duzentos pés de altura?» ( 1)
A esse fervor religioso e político, que espalhou pela
Europa as Cathedraes gothicas, apparece a Ourivesa­
ria como parte complementar e accidentai da ornamen­
tação d’esses portentosos monumentos. Se a Escul­
ptura teve de se amesquinhar em minudencias, a Ou­
rivesaria, para ser vista de perto e como um meio de
deslumbramento da sumptuosidade cultual, tornou-se
um desenho de miniatura, reproduzindo o estylo e o
aspecto da propria cathedral que ornamentava. É por
isso que a influencia da Renascença da Italia sobre a
Architectura gothica é a mesma na Ourivesaria ; Bra-
mante e Miguel Angelo são continuados no mesmo
espirito por Benevenuto Cellini. Em Portugal deu-se a
lucta da Architectura gothica com a nova eschola gre-
co-romana da Renascença, não só pela transacção do
góthico florido, como pela preponderância das doutri­
nas de Francisco de Hollanda ; na Ourivesaria o estylo
gothico de Gil Vicente é indirectamente satyrisado por
Garcia de Resende nos seus versos da Miscdlanea :
Ourives e Escultores (sc. italianos)
São mais sutis e melhores.
N’um paiz em que o povo só muito tarde teve exis­
ti) L’Art auMoyen-Âge, {Rev. des Deux Mondes, 1862.)

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150 LIVRO I, CAPITULO III

tencia civil, a arte apresenta apesar d’isso uma certa


feição democrática na Ourivesaria, que ainda hoje per­
siste nos ornatos de filagranna, em arrecadas das ore­
lhas, dixes e ruminas ou veneras. A Ourivesaria foi
quasi que exclusivamente religiosa, porque as ordens
claustraes absorveram em si todas as riquezas e ener­
gias durante séculos ; a sumptuaria civil só se desen­
volveu segundo a intervenção dos decretos reaes, e
por isso sem um plano tão manifesto.
0 facto da existencia de fórmas populares na Ouri­
vesaria leva-nos a suppôr a existencia de um veio
tradicional n’esta fôrma de Arte portugueza. A fila­
granna é um resto do dominio dos Arabes na Penín­
sula ; a civilisação bastulo-phenicia, que precedeu aqui
a cultura jónica e romana, aproveitou-se da industria
metallurgica dos povos ibéricos. Os phenicios tinham
caracteres artísticos proprios, que as colonias mau-
rescas renovavam, e um d’esses é a industria metal­
lurgica, em que o genio esculptural se manifesta. Diz
Renan : «Em geral os antigos Phenicios parecem ter
sido mais esculptores do que architectos.» (1) D’este
caracter deduz o eminente critico o typo e o gosto
da architectura phenicia : «Um obreiro costumado a
trabalhar em metaes ou em marfim, se se applicar á
pedra, trahirá os seus primeiros hábitos; assim nos
fragmentos de Um-el-Awamid sente-se o estylo for­
mado sobre outros materiaes e nascido em um outro
meio. A apparencia grosseira de todos os antigos mo­
numentos phenicios vem de que os seus muros rece­
biam toda a ornamentação de placagem e de revesti­
mentos.» (2) É este gosto semita, que nos explica o
azulejo na architectura e essa ornamentação de fitas
e linhas geométricas do estylo arabe, de que a Hespa-
nha ainda apresenta assombrosos monumentos.
(1) Mission de Phénicie, p. 829.
(2) Ibidem, p. 819.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 151
É entre esta dupla corrente da Architectura, ora
absorvendo como subalternas todas as outras artes,
como a esculptura e a pintura na Edade media da
Europa, ora sendo apenas um pretexto para a orna­
mentação da esculptura, como na tradição semitica
peninsular, que se deve procurar a razão dos estylos
e da fecundidade da Ourivesaria portugueza.
A Egreja popular da Edade media aristocratisa-se
em Portugal, luctando contra o poder real pelas im-
munidades dos seus bispos, verdadeiros barões feu-
d aes; a classe senhorial serviu-lhe de instrumento,
que ella conservou sempre em uma submissão fana-
tica, perdeu a sua resistência e tornou-se um appa-
rato da monarchia absoluta. É por isso que a Egreja
deu ao culto essa sumptuosidade deslumbrante, em­
pregando montes de ouro nas suas Custodias, Cruzes,
Báculos, Lampadarios,Cálices, Relicários, Fronta
Sacras, Thuribulos, Tocheiras, e outros objectos litur-
gicos que excediam a opulência desvairada dos gran­
des príncipes. Os Ourives trabalhavam para as Ordens
religiosas e para os reis que as presenteavam, quando
lhes compravam indulgências para os seus crimes. É
uma arte especial, profundamente ligada ao espirito das
classes e ás transformações das grandes epocas sociaes.
No Livro v, tit. 56, das Ordenações Philippinas,
publicado em 1603, encontramos estas curiosas dis­
posições : «Mandamos que nenhum Ourives lavre ouro
em obra sua ou alhea, de menos quilate, do que se
lavra na moeda. Mas, as peças que comprarem de
ouro, que forem feitas fora do reino, e que notoria­
mente parece que são de obra estrangeira, poderão
vender, postoque não sejam de ouro dos ditos quila­
tes que corre. E primeiro que as vendam as mostra­
rão aos Juizes do seu Officio, para verem a qualidade
d’ellas. E quando as venderem, será por a lei do ouro
de que as taes peças forem.

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m LIVRO I, CAPITULO III

«1 Nem outrosi venderão peças de prata, ou ouro


a olho, senão a peso, nem farão manilhas de prata
ou ouro sobre outro metal algum, qualquer que seja.
«2 E mandamos que Ourives algum, ou outra alguma
pessoa não engaste nem ponha pedra alguma falsa
ou contrafeita, assi como são Robis, Diamantes, Esme­
raldas, Safiras, Torquezas, Balaes, Jacinthos, Pérolas,
Aljôfar grosso ou miudo, nem outra alguma pedra em
annel de ouro ou de prata, nem em outra cousa nem
peça alguma. O que se não entenderá nas cousas que
lhe mandarem fazer para serviço das Egrejas.
«3 E quem fizer o contrario em cada um dos casos
acima ditos, perderá todos os seus bens, ametade para
a Arca da Piedade, e a outra para quem o accusar.
«4 E nenhum Ourives de ouro, ou de prata faça
falsidade nas obras de ouro ou prata que fizer para
vender mettendo-lhes alguma liga porque a lei, bon­
dade e valia do ouro ou prata seja abatida, nem mettam
nas obras, que lhe mandarem fazer, mais baxo ouro
ou prata do que os donos das obras mandarem. E
qualquer que maliciosamente o contrario fizer, se a
falsidade que tiver feita chegar á verdadeira valia de
um Marco de prata, morra por isso. E não chegando
á dita valia, seja degradado para sempre para o Bra-
zil. E em cada um d’estes casos sua fazenda será
confiscada.»
Por esta lei se descobre um topico para conhecer
os objectos da Ourivesaria portugueza, pela analogia
com os quilates da moeda; além d’isso, a eschola por­
tugueza era tão distincta na sua feição, que para dis­
tinguir os objectos estrangeiros, se appellava para o
confronto da sua notoriedade. Nos objectos de ornato
das Egrejas é que era somente permittido o engaste
de pedras falsas. Esta ultima clausula explica a ex-
tincção da Ourivesaria religiosa, porque mostra que
acabara essa crença que inspirava os artistas da Cus-

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 153
todia de Belem, ou da offerecida á Senhora da Oli­
veira.
É nas provindas do norte que se conserva a tradi­
ção industrial da Ourivesaria, em S. Cosme, Valbom,
Rio Tinto, Jovin, S. Pedro da Cova e Fanzeres, onde
ainda existem noventa e cinco officinas. A situação
d’esta industria acha-se curiosamente descripta no
Relatorio da subcommissão do Inquérito industrial de
1881: «São os concelhos de Gaya e Gondomar que se
occupam n’esta industria local e histórica:— o fóco
industrial d’esta especie é Gondomar. Todo o concelho,
à excepção das freguezias serranas, possue mais ou
menos officinas onde trabalham operários hospedados
e alimentados pelos patrões, ou officiaes que trabalham
domesticamente por tarefa e por conta dos mestres
das officinas.» Depois de definir bem a organisação
d’esta industria, continua: «Os officiaes que trabalham
em suas casas recebem por peça. Fabricam principal­
mente cordão, e a unidade da obra é o cordão de gros­
suras ordinarias com oito palmos de comprimento,
cujo feitio é pago a razão de 320 réis. Cada operário
póde fazer meio cordão por dia... A industria decae
desde 1870 pela introducção do ouro francez. O numero
dos ourives era ha dez annos triplo. Setecentas ou
oitocentas pessoas foram expulsas pela concorrência,
indo trabalhar para os campos, emigrando muitas.
Assim se despedaçam gradualmente as pequenas in­
dustrias históricas e tradicionaes, diminuindo os ele­
mentos da riqueza tradicional.» (1) Além d’esta causa
de decadencia da Ourivesaria, o auctor do Relatorio
apresenta uma de caracter social : «é a alteração dos
hábitos da população rural. As populações primitivas
thesaurisam sob a fôrma de alfaias de ouro, e o Minho
era e ainda é um typo curioso d’esta especie. Mas á
(i) Relatorio, p. 5i e 52.

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154 LIVRO I, CAPITULO III

maneira que as novas noções chrematisticas vão en­


trando no espirito do povo, as economias preferem
empregos lucrativos.» (1) Para luctar com a bijuteria
franceza, falta aos nossos operários o essencial, igno­
ram o desenho, e poucos sabem 1er, e apenas habeis
em Teproduzir os modelos estrangeiros, têm em seu
favor a barateza dos salarios proveniente da sua orga-
nisação domestica. O ouro em que trabalham é fun­
dido das antigas peças do seculo xvni ou de D. João v,
das aguias americanas, ou de obras velhas.
Na industria da prata, a organisação é a mesma
que na do ouro ; trabalham em prata importada da
Inglaterra e na dos pintos, hoje retirados da circula­
ção, e a oitava parte da sua producção é destinada
ao culto catholico e o restante á sumptuaria civil. (2)
A serralharia teve o seu esplendor no seculo xvi,
como se infere d’este quadro traçado por Fructuoso:
«A Justiça e o Capitão (da Ilha da Madeira) lhe encarre­
garam (a Gaspar Borges) a arcabuzaria, e ensinou
certos serralheiros do Funchal a concertal-a. Ensinou
a todos os serralheiros da cidade de Ponta Delgada
o concerto e feitio da arcabuzaria e armas, tanto que
o que d’elle não apprendeu não as sabe bem fazer,
como é notorio. Fez as balanças da Alfandega d’esta
ilha e da Terceira, que são peças reaes e de grande
desengano... Fez o relogio da cidade e de Villa Franca,
e renovou o da Ribeira Grande, tudo em baixos pre­
ços a respeito da delicada obra que fez... Fez alguns
ferros de hóstias... o que cumpre de armas, espin­
gardas novas, assim de pederneira como de fogo;
grades para a Alfandega e para a capella do Santo
Sacramento da villa da Ribeira Grande, que não aca­
bou e outras obras... e comtudo vive pobre, tendo tão
57.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 155
rico engenho.» (1) No Relatório do Inquérito indu­
strial de 1881 lè-se tambem: «Em torno do Porto,
nos concelhos de Bouças e de Gaya, vê-se ainda o
resto das antigas eraisF, já de todo extinctas
daMaia;» (2) «na Povoa repara as ferragens dos bar­
cos, por toda a parte as alfaias agricolas e os acces-
sorios da construcção de casas. Em Penafiel o cara­
cter da ferraria é tambem este, mas já foi outro.
Ainda resta uma velha officina, onde trabalham dois
homens no fabrico de candéas de ferro estanhadas, de
que outr’ora se fazia uma exportação importante para
o Brazil.— Porque morreu esta pequena industria?
Porque essas antigas candêas passaram de moda,
especialmente depois da introducção do petroleo.— A
causa do atrophiamento da antiga industria do
no concelho da Maia é outra. Vêem-se ainda hoje ao
longo da estrada de Braga, fechadas, arruinando-se,
as numerosas casinhas dos antigos ferreiros condemna-
dos pela concorrência do prégo de arame fabricado
mechanicamente em Lisboa e no Porto, etc.» (3) «As
officinas de prégo batido e de fechaduras de Gaya estão
localisadas ao sul do concelho, na Bandeira, no Pa­
drão, no Marco, e em Avintes ha trez que funccionam
exclusivamente para a exportação. Pequenas e mise­
ráveis officinas, os mestres recebem a matéria prima
da mão dos negociantes do Porto, aos quaes vendem
o producto depois de fabricado : existem nas condi­
ções typicas da pequena industria.» (4)
Um dos caracteres do povo portuguez é a habili­
dade com que trabalha a pedra ; escreve Hautford :
«Merece especial menção a maneira como em Portugal
trabalham apedra produzida n’este paiz. Nenhum outro
(1) Saudades da ea,p.
rT 294.
(2) Relatorio, prologo.
(3) I p., 29.
bidem
(4) Ibidem, p. 3i.
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156 LIVRO I, CAPITULO III

possue melhores materiaes para as construcções. Esta


pedra é calcarea, é o mármore nobile de Linneo. A
pericia dos habitantes para a lavrarem é pouco vul­
gar, e as obras que sabem das suas mios são de uma
perfeição admiravel.» (1) Comprovaremos esta obser­
vação por estas palavras de um director da Academia
de Bellas Artes de Lisboa: «Os nossos operários foram
sempre tidos na conta de mui babeis canteiros e
rives, e com effeito é inexcedivel a perfeição com que
sabem reproduzir os modelos que lhes são apresen­
tados. Na execução são admiraveis, e todas as vezes
que se trata de levar a cabo uma obra para que te­
nham bons modelos, podem os seus productos correr
parelhas com os de qualquer outra nação. O caso
porém é differente, quando se lhe pede algum traba­
lho original, quando se lhe pede não só que repro­
duzam senão que inventem quando lhes falta um guia
seguro para o que respeita á concepção. A razão d’este
phenomeno é facil de encontrar. Os operários portu-
guezes têm boa educação technica, mas não a têm
artistica; e esta falta é por tal fórma importante, que
lhes não valem sua natural propensão e facilidade
para supprir o que lhes não deu o estudo.» (2)
A primeira influencia a que obedeceu a industria
da construcção foi franceza; ainda em um documento
de S. Thiago de Coimbra, de 1324, as paredes de
taipa eram chamadas muro , como o notou
Viterbo; as descobertas marítimas actuaram directa­
mente sobre o typo da construcção civil, como obser­
vou Azurara, «e as grandes alturas das que se
vão ao ceeo, que se fezeram com a madeira d’aquel-
las partes.» (3) Os portuguezes que regressam do
(1) Coup à*oeil sur Lisbonne et Madrid, en 1814, p. 13.
(2) Observações sobre o actual Estudo do Ensino das Bellas
Artes em Portugal, p. 39.
(3) Chronica da Conquista de Guiné, p. 14. Ed. Paris.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 15 7
Brazil com os seus capitaes têm modificado tambem
as fórmas da construcção, como se reconhece no Rela­
tório do Inquérito industrial de 1881: «O concelho de
Felgueiras, por exemplo, onde a abundancia de capi­
taes dos repatriados é tanta... apparece mosqueado
de verdadeiros palacios bordando as estradas.» (1)
Os costumes e fórma do trabalho são primitivos: «O
operário dos arrabaldes (do Porto) vem aos "bandos
á segunda feira de madrugada, carregado com a sacca
onde traz a brôa para toda a semana; vive durante
ella arranchando pelas obras ao caldo; e ao sabbado
regressa a passar o domingo em casa com a familia,
que entretanto cuida da lavoura e da engorda dos
bois. Em parte os operários são tambem lavradores,
pequenos proprietários, e as economias do salario con-
solidam-se na terra. Lêr não sabem, em geral, nem
têm rudimentos sequer das artes do desenho: copiam
com certa habilidade os modelos tradicionaes, e tra­
balham sob o commando dos mestres d’obras que ou
dirigem as construcções por conta de seus donos ou
as tomam de «mpreitada. O mestre, formada a sua
turma de carpinteiros ou pedreiros, procura o traba­
lho para conservar esses que são e ficam como seus
clientes, e do salario de cada um cobra 40 réis, além
do que mette em conta ao proprietário como jornal dos
apprendizes, a quem nada paga. É um regimen de tra­
balho primitivo, em que o operário paga um premio
excessivo a quem lhe angaria trabalho, e no qual a
apprendizagem é brutal, impedindo as crianças de
apprenderem as primeiras letras.» (2) Precisamos mais
uma vez transcrever as próprias palavras do Relató­
rio official, para definir o caracter tradicional da in­
dustria constructora, e que differencia as duas regiões
(1) Op. cit., p. 26.
(2) Relatorio, p. 27,
/
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1 58 LIVRO I, CAPITULO III

portuguezas : «O systema diverso das construcções


faz com que a natureza do trabalho dos oflicios de
pedreiro e estucador seja différente no norte e no sul
do reino. Na região dos granitos os muros fazem-se
ordinariamente com parallelipipedos, mais ou menos
regulares, que vem desbastados das pedreiras e são
assentes em fiadas que o operário cimenta com arga­
massa: no Porto e seus arredores sob o nome de
perpeanho usa-se de lages que têm em regra Om,28
de espessura, e com as quaes se levantam panos de
muro de casas de trez e quatro andares. A construcção
das paredes é mais simples e mais facil do que no
sul, onde se necessita estudar o assentamento de cada
pedra, de dimensões e fórma variaveis ; mas o pe­
dreiro do norte é ao mesmo tempo canteiro, isto é,
lavra a pedra das vergas e umbreiras, das cornijas
e mais adornos das casas, trabalho que nos calcareos
do sul compete a um officio particular. No sul é o
pedreiro que enche e reboca os muros que fez ; aqui
(norte) esse trabalho compete ao trolha ou estucador,
que, depois de encher com argamassa, guarnece de
cal fina ou gêsso nos tectos. Assim a construcção em­
prega no sul pedreiros, canteiros e estucadores; e
no norte só pedreiros e trolhas.— Mas a pedra que
vem para as obras, chega já apparelhada de modo que
entra directamente na construcção dos muros, se é
destinada a elles, ou carece apenas de ser acabada
se é destinada a vergas, umbreiras, cunhaes ou cor­
nijas isto é o que se chama esquadria. Esse primeiro
apparelho da pedra é o officio dos chamados montan­
tes que trabalham nas pedreiras d’onde se abastece
a cidade.» (1) Além d’esta organisação e fórma do tra­
balho, existem costumes particulares da classe, taes
como esconder as ferramentas na obra ao sabbado,
(1) Relatório, p. 373.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 159
quando retiram os operários; não as levam comsigo,
para que a obra não fique interrompida. Em Lisboa,
assim que se acabou de armar a gaiola de madeira
para se revestir de maçame, lançam-se foguetes, em­
bandeira-se tudo, e dá-se um beberete aos operários;
é ao que se chama collocar o páo fileira. Tanto
no norte como no sul de Portugal os estucadores vêm
de Afife e de Yianna.
Gabe tratarmos aqui das fórmas tradicionaes da
construcção naval; Azurara fala no Barinel, (1) do
qual ainda no seculo dizia D. Francisco Manuel
x v ii
de Mello: «era uma embarcação de remo, que então
se usava, cujo nome ainda retemos nas Varinas subtis,
de que hoje nos servimos.» (2)
Na ria de Aveiro usam-se os barcos moliceiros «con-
strucções obesas, de prôa e ré contrahidas e que ser­
vem para o transporte das algas impropriamente cha­
madas moliço, pois que ellas não podem servir para
as palhoças e constituem apenas um riquíssimo adubo
para a agricultura, etc.— Estes barcos apparecem por
centenas na sua feira (25 de março) sarapintados na
pôpa e proa com pessoas reaes e animaes disfor­
mes.» (3)
Diz o Relatorio do Inquérito industrial de 1881:
«A construcção naval póde dizer-se extincta: os esta­
leiros de Villa do Conde, do Porto, de Gaya, não têm
a quilha de um navio;— é a cabotagem e a pésca que
alimenta esses operários. Os constructores de Villa
do Conde sumiram-se; uns trabalham nos campos,
outros emigraram para o Brazil.— A decadencia da
marinha é a da construcção naval, porque os dois
factos são correlativos, etc.» (4) A cordoaria apenas
(1) Chron., p. 59.
(2) Epamphoras, p. 317 e seg.
(3) Carlos Faria, Folhetimno
, Povo Portwjuez, da Guard
(4) RelatoriOj p. 34.

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160 LIVRO I, CAPITULO III

se conserva na Povoa de Varzim por causa das pes­


carias.
Os trabalhos da carpinteria levam-nos a falar da in­
dustria da louça de páo, da qual já no seculo xvi escre­
via Fructuoso, referindo-se á habilidade dos habitan­
tes da ilha da Madeira: «Em muitas partes d’esta ilha
produziu a natureza muitos dragoeiros do tronco dos
quaes se faz muita louça, e muitos são tão grossos,
que se fabricam de um só páo barcos, que hoje em
dia ha, que são capazes de seis ou sete homens, que
vão pescar n’elles; e gamellas, que levam um moio
de trigo.» (1) No Minho ainda se conservam estes
costumes na fabricação de concas, maceiras epás para
as eiras, sócos ou tamancos. Lê-se n’um estudo sobre
a Reforma do Ensino das Bellas Artes: «Todos os que
viveram em Coimbra conhecem a habilidade dos filhos
da terra nos trabalhos de esculptura em madeira; essa
aptidão natural póde e deve servir para alguma cousa
mais do que fazer palitos mais ou menos frisados. É
egualmente triste ver o modo como nas localidades
do Minho os operários malbaratam a sua natural habi­
lidade na esculptura em madeira, cortando dentro de
uma garrafa de vidro estreito uns castellos phantas-
ticos de madeira, que são abortos de uma phantasia
artística inculta.» (2) Â industria dos marchetados e
obras de vime da ilha da Madeira, que hoje sáe da sua
estreiteza local, já nosapparece celebrada no seculo xvi:
«e nas faldras da serra, da banda do sul, muita giesta,
que é mato baixo como urzes, que dá flor amarella,
de que gastam nos fornos, e d elia se colhe a verga,
que esburgam como vimes, de que se fazem cestos
brancos mui galantes e frescos para serviço de meza
e offerta de baptismos e outras cousas, por serem mui
(1) Saudades da Terra, p. 50.
(2) Reforma cit., p. 197.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 461
alvas e limpas, e se vendem para muitas partes fóra
da ilha e do reino de Portugal, porque se fazem mui­
tas invenções de cestos mui polidos e custosos, arman-
do-se ás vezes sobre um, dez e doze diversos, flcando
todos juntos em uma peça só; e para se fazerem mais
alvos do que a verga é de sua natureza, ainda que
muito branca, se defumam com enxofre.» (1) Na Via­
gem a Portugal de Tron e Lippomani, em 1580, já se
elogia a habilidade dos artistas portuguezes, para o
torno: «trabalham delicadamente ao torno, em que
fazem guarda-sóes de barba de balea, obra acabada,
e côcos lavrados a modo de taças com embutidos de
madeira do Brazil. Vasos de estanho e mais objectos
d ’este metal se fabricam abundantemente, e se carre­
gam para a Índia, onde dão grande lucro.» Este typo
de guarda-sol ainda se conserva no Minho.
A industria do barro é a que conserva no seu
typo tradicional o caracter de um importantíssimo
documento ethnico; Viterbo cita um documento de
Penacova de 1192, em que a palavra infusa tem
ainda o sentido actual: «Era a infusa, como hoje,
um vaso de barro com egual disposição para servir
a agua e ao vinho, e sem determinada grandeza.» Os
púcaros de Estremoz já eram citados no seculo xvi
pelos viajantes estrangeiros; na Relação da Viagem
do Cardeal Alexandrino em 1571 lê-se: «Sobre a
meza estava sempre um grande vaso de prata, cheio
de agua, do qual se deitava em um jarro, chamado
na lingua portugueza púcaro, do feitio de uma uma
antiga, de altura de um palmo, e feito de certo
barro vermelho, subtilissimo e luzidio, que chamavam
barro de Estremoz, pelo que el-rei bebeu seis ve­
zes.» Madame d’Aulnoy, na sua Viagem a Hespanha,
falia d’estes pucarinhos notados pela sua porosi-
(1) Fructuoso, Saudades da Terra, p. 106,
11
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162 LITRO I, CAPITULO III

dade, (1) que produz pela vaporisação a frescura da


agua. A louça preta que se consome nos campos é
produzida nos fornos de Bayão e de Gaya.
Na Revista de Instrucção, do Porto, lê-se ácerca da
ceramica nacional : «Em Coimbra conservou-se tradi­
cionalmente o fabrico de uma faiança barata, popular,
cuja ornamentação é summamente característica. O
barro é de boa qualidade, o esmalte delgado, bastante
claro, e funde-se bem com a massa ; a cozedura é
satisfactoria, porque a louça dá um toque metallico,
as côres são vivas, resistentes e bastante variadas,
n’uma palavra : o producto agrada ;... Para o archeo-
logo essa louça de Coimbra tem um valor especial,
porque é a unica faiança nacional que representa hoje
claramente a tradição oriental, e diremos, particular­
mente a influencia do estylo arabe. Se fossemos a
escolher entre os estylos do Oriente, diríamos que é
a arte persa popular a que tem com a arte de oleiro
de Coimbra maior semelhança. É sabida a intima liga­
ção que existe entre o estylo persa e o estylo hispa-
no-arabe da Edade media ; isto é corrente para aquel-
les que estudam a historia da Arte, mas n’este logar
convém accentuar a ligação, para que não haja duvidas.
Não deve admirar esta remota affinidade através dos
séculos e dos mares, quando na olaria das aldeias,
tanto na louça preta como na vermelha tosca (não vi­
drada), achamos fôrmas de vasilhame e motivos de
ornamentação puramente pre-historicos e que pode­
riam ter sido achados tanto nas habitações lacustres
da Suissa, como na Asia menor, como na Bretanha
(1) «D semble quelle d’eau) bouille quand elle est dedans,
au moins on la voit agitée, et qui frissone (je ne sais si cela
se peut dire,) mais quand on l’y la laisse un peu de temps, la
tasse se vuide, tant cette terre est poreuse; elle sent fort bien.»
Camões, na sua primeira Carta da India, diz das damas que
Hhiam mais do que pucarintw .n»

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 163
ou na Scandinavia.— Essa pintura da louça de Coim­
bra, simulando pennas e pennachos de aves raras, de
plumagem avelludada, deslumbrante, de caudas de
pavão, traçadas sobre um fundo formado por grandes
fétos verdes, produz um effeito tão singular, dá á
louça um aspecto tão archaico, tão característico, que
é impossível confundil-a com a de outra qualquer
região.» (1)
O historiador francez Henri Martin, ao visitar Por­
tugal pela occasião do Congresso antbropologico de
18SÍO, descreve em uma das suas cartas o nosso genio
colorista a proposito do aspecto das casas: «O pitto-
resco aspecto não está só na grandeza e na diversi­
dade dos locaes, está tambem na decoração d’estas
elevadas casas brancas, muitas d’ellas revestidas de
{azulejo) faianças azul-claro, com taboinhas verdes,
beiraes e telhados encarnados. Este povo é colorista
por instincto; nos campos as mulheres e as rapari­
gas, quando se juntam, agrupam as côres vistosas e
variegadas dos seus trajos com uma harmonia que
poupava a qualquer pintor o trabalho de compôr o
seu quadro. É singular cousa, que um povo que n’este
gráo tem o sentimento da côr, não possua eschola de
pintura, elle, tão visinho da grande arte de Andalu­
sia.» Ao tratarmos da ourivesaria já caracterisámos
uma das fórmas da arte popular; o trabalho dos azu­
lejos é a transição da industria para a invenção artís­
tica, e provém das mais remotas orientações das raças
peninsulares. As civilisações da Mesopotamia empre­
garam o tijolo esmaltado para o revestimento dos seus
muros, como em Erek, com côres vermelha, branca
e negra; sabe-se que a liga do bronze dos povos
hispânicos era egual á da civilisação da Chaldea, e
(1) í. de Vascoacellos, Revista da Sociedade de
t. w, p. 379.
«>
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164 LITRO I, CAPITULO III

que um ramo ibérico veiu da Asia occidental através


da Africa até entrar na Hespanha. Aqui temos esta­
belecida a linha de continuidade, pela qual se póde
explicar o desenvolvimento exclusivo que teve a orna­
mentação dos azulejos na Hespanha, logo com o pri­
meiro contacto com os Arabes, e a sua invencível per­
sistência depois de terminada a reconquista christã.
As casas, os templos, as columnas, em tudo se em­
pregava o azulejo segundo o gosto mauresco, como
um luxo proprio da gente abastada ; d’onde vem o
ditado hespanhol, applicado por Sancho a um indiví­
duo pobre : No tiara casa con azulejos. No seu livro
sobre as Artes em Portugal, Raczynski escrevia em
4845: «Os azulejos constituem em parte a physio-
nomia de Portugal.— Ha poucas egrejas, poucas casas
que os não tenham. Umas vezes circumdam as portas
dos edifícios, outras vezes ornam os vestíbulos e as
escadarias. Na maior parte das casas, mesmo nas mais
pobres, as paredes interiores são guarnecidas d’elles
até á altura de trez pés ou mais. Ha casas que são
revestidas exteriormente desde a sua base até ao
tecto.» (4) Os azulejos antigos, como observa Ceule-
neer, são caracterisados pelo seu reflexo metálico,
sendo o mais vermelho das fabricas de Valência e
Majorca, e os mais dourados da Andalusia formam
o typo hispano-mauresco. Depois temos o azulejo em
camafeu, em que predomina a côr azul sobre fundo
branco, do seculo x v ii e xvin ; d’esta categoria diz
Raczynski : «Os mais bellos azulejos são aquelles que
pertencem ao seculo x v ii e xvni, e que representam
caçadas, assumptos sagrados, factos referentes á his­
toria de Portugal, scenas campestres, paizagens, vasos
de flores, arabescos, ornamentos architectonicos da
epoca de Le Notre. Estes assumptos são muitas vezes
(1) Op. cit., p. 427,

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 165
tratados com talento.» Os azulejos em que predomina
a côr amarella são os que se consideram fabricados
sob a influencia italiana. O gosto do reflexo metallico
foi decahindo com a influencia arabe, ou mudjar, con­
servando-se até ao seculo x v i i , em que a Pragmatica
real de 1566 prohibiu em Hespanha o trabalhar á mou­
risca. (1) Comprehende-se como n’um paiz catholico,
e sob a intolerância da Inquisição se operasse esta
revolução repentina no gosto, e em Portugal se imi­
tasse a faiança hollandeza, como na Hespanha se imitava
o estylo italiano. Diz Ceuleneer: «Os melhores azu­
lejos, no genero hollandez datam em Portugal do x v ii
e x v i ii séculos. O fundo é branco e o desenho em
camafeo é de um brilho azul ferrete; alguns d’estes
azulejos têm uma côr violeta, como nos corredores
do Convento de Christo de Thomar. A principio estes
azulejos vinham de Delft; até que se começaram a
fabricar em Portugal. — Foram mais longe que os
hollandezes. Não se contentaram com fazer azulejos
ornados de alguns pequenos desenhos, mas quizeram
produzir verdadeiros quadros de faiança.— Estes qua­
dros são muito mais raros em Hespanha do que em
Portugal.— Os azulejos em relêvo são sobretudo vul-
garissimos em Portugal; e actualmente ainda em Lis­
boa, Porto e outras localidades, as fachadas das casas
são revestidas com estas faianças. O ornato que n’ellas
se encontra mais frequentemente é o cacho de uvas,
e as côres dominantes são o amarello e o verde. Estes
productos são em geral de uma próducção pouco
esmerada, e de um valor artístico relativo; porém
esta polychromia dá ás casas um cunho e apparencia
de alegria...» (2) Vê-se que o periodo de florescência
da ceramica dos Azulejos coincidiu com a influencia
(1) Ceuleneer, Le Portugal, p. 55 e 56.
(2) Ibidem, p. 59.

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166 LIVRO I, CAPITULO III

hollandeza, que tantas relações tinha com a arte antiga


de Portugal; desde que a influencia italiana entrou cá
tardiamente, acabaram essas côres vivas que conso­
lam a vista, predominando o verde e o amarello, e
extinguindo-se as composições largas da pintura
mural. (1)
O mosaico transformado pelos Arabes em azulejo,
recebeu tambem em Portugal uma fórma caracterís­
tica, a que se chama Embrexados, dos quaes escreveu
o Visconde de Juromenha: «que se compõe de pedri-
nhas de diversas côres, misturadas com conchas e
cacos de faiança. Tambem se empregavam os embre­
xados para ornar com elles os muros, as fontes, as
salas de jantar, os refeitórios, etc.» (2)
As industrias locaes acham-se tambem reforçadas
por notáveis industrias caseiras; sobre este ponto
observa o sr. Vasconcellos, entre a extraordinaria
actividade das províncias do Douro e Minho: «Gui­
marães com a sua ourivesaria e os seus rmgnificos
linhos, o seu bellissimo aço;... Faro, ha ali uma in­
dustria unica no paiz, e de grande futuro: a dos
tecidos de crina, não fallando na das rendas de Olhão,
e outros pontos.— A ilha da Madeira e as dos Açores
(Angra) florescem ali numerosas industrias caseiras,
que se podem transformar facilmente em industrias
de concorrência; citaremos somente as industrias de
vime e junco, dos tecidos de palha, das rendas e bor­
dados, das madeiras intarsiadas, (embutidas) das flo-
(1) Em um estudo sobre a Pintura moderna em Lisboa, Ra-
malho Ortigão lamenta: «que tão deploravelmente se houvesse
quebrado no seculo xvit, juntamente eom a nossa tradição ma­
rítima e commercial, a nossa tradição de arte tão estreitamente
ligada á tradição flamenga no tempo de Van Eyek e de Fran­
cisco de Hollanda, de Joao Flamengo e de Grão Vasco, unica
epoca da nossa historia em que a pintura nacional teve o seu
clarão no mundo.» Revista ae Estudos livres, 1.1, p. 540.
(2) Ap. Raczynski, Les Arts en Portugal, p. 429.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 167
res de petmas e de cêra, etc.» (1) No Minho são muito
geraes os teares, em que se tecem os pannos de linho,
os bragaes, e d’ali o singular phenomeno de abandona­
rem os trabalhadores do campo a labutação da lavoura
pela tecelagem dos cotins. As raças pre-celticas do
occidente da Europa distinguiam-se pela sua grande
habilidade para a tecelagem; Plinio (xxx, 2) enu­
m era entre os tecidos mais estimados, que supplan-
tavam os dos Romanos, os fabricados pelos
pelos Ruthens, pelos Bituriges, pelos Calètes e pelos
Marins; (2) entre os nomes antigos dos pannos, temos
ainda o cadrço, ocadoxo,as », as ,as
chitas e os marins que coincidem com estes nomes
de povos. O aceio de uma casa, ainda hoje entre o
povo consiste na abundancia das roupas brancas, e
em ter na arca têas de linho. Na sua Viagem a Hes-
panha, M.me de Aulnoy, observou este mesmo facto:
«é preciso que me não esqueça dizer-vos, que se não
póde achar linho mais bello do que o que se tece n’este
paiz (Bayona) — a têa é feita de um fio mais fino que
os cabellos, e o bello linho é ali tão commum que toco
n’isto accidentalmente.» (3) Já no seculo xvi, na rela­
ção da Viagem a Portugal de Trou e Lippomani, se
citavam os pannos portuguezes pela sua superioridade:
«as teias portuguezas, são na verdade bellas; algumas
chamadas casiquino, mui alvas e finas, e alguns len-
çoes á mourisca, que são baratos e lindos.» Alguns
d’esses pannos acham-se citados nos Foraes antigos
e emprazamentos com o nome de e da sua
persistência diz Viterbo : «Na Beira e Traz os Montes
ainda hoje chamam Bragal a umpanno de linho grosso
atravessado com muitos cordões.» Da habilidade de
mãos das mulheres falia tambem no seculo xvi Fru-
(1) A Reforma daEnsino das Bellas , p. 194.
(2) Belloguet, Ethnogénie uga,p. 482.
(3) Op. cit., p. 5.
y
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108 LIVRO I, CAPITULO III

ctuoso, indicando a causa do vigor das industrias


caseiras : «exquisitos manjares de toda a sorte como
os sabem fazer as delicadas mulheres da ilha da
Madeira, que além de serem mui bem assombradas,
mui fermosas e discretas e virtuosas, são extremadas
na perfeição d’elles, e em todas as invenções de ricas
cousas que fazem não tão.sômente em pannos com
polidosI c m r e s , mas tambem em assucar com delica­
das fructas.» (1)
Da manufactura do linho, lê-se no Relatorio do
Inquérito de 1881: «É esta uma das industrias mais
geraes e mais características de todo o Minho. Não
ha concelho do districto do Porto onde mais ou menos
se não cultive, se não amasse, se não fie e se não
teça o linho.— Ha cêrca de duzentos teares, especial­
mente nas freguezias de S. Cosme e Fanzeres, distri-
buidos pelas casas ; e além dos pannos lisos, ou do»
atoalhados, tecem-se riscados tintos e cobertas de um
typo característico em que a lã de varias côres entra
como ornato em desenhos mais ou menos bárbaros. »(2)
Em Gondomar e Penafiel esta industria caseira já se
alargou em officinas, tendo entrado em um período
de concorrência de que decahiu haverá dez annos.
A fianderia do algodão desenvolveu-se na Maia e em
Bouças, tornando-se a sua tecelagem uma pequena
industria local dos colins e riscados. (3) Em Santo
Thyrso «fabricam as baetas carriças, de um uso local
tradicional.» (4) Na Povoa e em Felgueiras tecem-se
«mantas para a gente do campo.» As camisolas de
malha de lã grossa dos marinheiros e camponezes que
se produziam em Bouças, ainda são objecto de uma
industria domestica em Villa do Conde, onde se man-
(1) Saudades da Terra, p. 200.
(2) Relatorio, p. 44.
(3) Ibidem, p. 45.
(4) Ibidem, p. 47.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 169
tem a industria das r e n d a s ,definha
cia da navegação. As rendas ainda são uma fórma da
actividade domestica em Villa do Conde e Azurara,
sustentando-se por causa da bella linha de Guimarães,
e pelo commercio de mulheres que as exportam para
o Brazil e as vendem pelas portas. Os costumes do­
mésticos da fiação e da tecelagem, acham-se determi­
nados desde os tempos mais antigos da nossa nacio­
nalidade ; no Cancioneiro da Yaticana, lê-se:
Sédia la fremosa seu fuso
sa voz manselinha fremosa dizendo
cantigas de amor.
(Canç. n.# 321.)
Vy boas donas laurar e tecer
cordas e cintas, nem as vy teer
berç’ant’o fogo a dona muy honrada,...
(Canç. 786.)
Á industria das lãs anda ligada a actividade pasto­
ral, e as suas qualidades são tambem características
em cada província, segundo as raças ovidias que ahi
estacionam; ellas apresentam as qualidades typicas
das trez variedades de carneiros portuguezes, dividin­
do-se em lãs merinas, feltreiras e longaes, communs
ás lãs brancas e pretas, As lãs brancas apresentam
as seis qualidades merino fino, entrefino, ordinário,
grosseiro, feltroso ordinário e entrefino, entre-merino e
longal-lustrino, todas do typo merino. Ao typo feltreiro
pertencem as qualidades feltreiro ordinário, entre-fino
e fino; ao typo longal pertencem o Ivstrino,
simples e feltroso, e o longal churro simples e feltroso.
Nas lãs pretas tambem ha divisões especiaes segundo
os trez typos; ao merino, pertencem as qualidades do
merino entre-simples fino, surrubeca e mesclado ; merino
ordinário simples, crespão e feltroso, e merino -

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170 LIVRO I, CAPITULO III

seiro. Ao typo feltreiro, pertencem o feltreiro mtre-fino


simples, altoso e mesclado, feltreiro ordinário simples,
mesclado e altoso; entre-feltreiro e merino. Ao typo
longal, pertencem o entre-longal e merino, ordinário
e grosseiro, longal lustrino e longal churro
fãtroso. (1) A 15 suja (i churdoelurdo) ou com
de Traz os Montes lava-se em agua para a exporta­
ção ; a do Alemtejo lava-se com urina ou soda (ou
sugarda) (2) e seccam-a em ramblas.
A industria da seda tem em algumas províncias a
fórma domestica, criando-se o bicho e vendendo-se o
casulo às razas; florescente no tempo da administração
do Marquez de Pombal, «foi rapidamente decrescendo
até chegar ao estado em que hoje se acha, permane­
cendo a cultura reduzida quasi ás províncias de Traz
os Montes e das Beiras, e ahi bastante decadente agora
em resultado da moléstia que atacou o sirgo, etc.» (3)
Em Santo Thyrso e Penafiel refina-se a cêra; em
Paços de Ferreira, na freguezia da Carvalhosa fabri-
cam-se as croças ou palhoças; em Penafiel as chancas
ou tamancos; no concelho de Paços de Ferreira os
fusos. A fabricação do pão é ainda nas províncias uma
industria caseira, tornando-se jà fabril no concelho
de Gaya, do Marco e de Vallongo, e com o emprego
de mulheres; governar o pão consiste em peneiral-o
e amassal-o; quando começa a fermentação da massa,
diz-se que está finto ou lêvedo, tendo-se-lhe prévia-
mente feito trez cruzes na massa, com as seguintes
fórmulas:
á primeira cruz: O Senhor te accrescente,
O Senhor te levéde.
(1) A. J. Teixeira, Relatorio do Conselho geral das Alfânde­
gas, em 1^76 e 1877, p. 41.
(2) Relatorio da Suo-commissãodo Inquérito,
(3) A. J. Teixeira, op. cit., p. 43.

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 171
á segunda : Sam Mamede
Te levéde.
á terceira : Sam Vicente
Te accrescente. (1)
Do fermento que se mette na massa fez o povo a
entidade Sam Crescente,e nos Açores chama-
crescente; o sr. Leite de Vasconcellos descrevendo os
costumes supersticiosos ligados â cosedura do pão,
cita uma fórmula italiana aualoga à nossa:
Pani, crisci,
Come Diu ti binidissi ;
Crisci, pani, ’uta la furau
Comu Diu crisciu a lu munno.

Se a massa não levéda, põe-se-lhe em cima um


rosário ou roupa de homem, ou passa-se com um tição
por cima; para que a massa não azede mette-se uma
faca na cruz, ou um copo d’agua; o bolo que se faz
da massa das rapaduras chama-se neto ou brindeiro,
e costuma dar-se ás crianças. Quando ha forno com-
mum n’uma terra o homem que trabalha n’elle recebe
uma poia (Taboaço) ou pão que lhe é destinado em
cada fornada.
Vejamos agora o typo tradicional do pequeno com-
mercio que é coexistente com a pequena industria;
as Feiras andam correlacionadas com certos dias da
semana e com as festas religiosas do anno.
Os nomes dos dias da semana perderam em Por­
tugal a sua designação polytheista; apenas se encon­
tra dia martes em uma poesia de Luiz de Azevedo, do
meado do seculo x v ; sob a pressão catholica íicou-se
chamando por ferias, derivado das rezas canô
(i) Tradições populares de Portugal, p. 230. -

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172 LIVRO I, CAPITULO III

Os mercados permanentes e os annuaes tambem se


chamam feiras; fazem-se por occasião dos ajuntamentos
populares nas ferias religiosas de commémoração de
templos ou dos patronos, ou da exposição de relíquias ;
em uma feira de Coimbra, no campo de Santa Clara
era a abbadeça que vinha almotaçar os generos, como
se usava em muitas feiras de França. Diz o abbade
Corblet na sua Notice historique sur la Foire de la
Saint J e a n à, Amiens: «O anniversario da dedicaçã
das egrejas, as festas patronaes dos mosteiros e das
parochias, o culto de certas relíquias veneradas, attra-
hiam annualmente uma grande afBuencia de fieis a
certas localidades. Os mercadores eram ali attrahidos
pela esperança de uma venda facil, e as festas da
egreja, como diz S. Basilio, tornavam-se para de logo
festas de commercio... Quando se conhece a origem
religiosa das F e i r a s , não ha que admirar v
representar n’ellas uma parte tão importante durante
o curso da Edade media. Em Ruão a abertura da
feira era inaugurada pelo prior e pelos religiosos de
Notre Dame. Na feira de S. Germain dizia-se missa
todas as manhãs...» Isto mesmo se vê em Portugal
ainda agora ; as feiras são sempre por occasião de
festas de Santos, como de S. Bartholomeu, em Coim­
bra, ou da Agonia em Yianna do Castello. 0 Auto da
F e i r a d, e Gil Vicente é n’este ponto curiosissimo para
a historia dos costumes portuguezes. No Auto da Mo­
fina Mendes, Gil Vicente fala na Feira de Trancoso,
e em um documento de 1395, em que D. João i con­
cede uma Feira franca em 15 de maio á Torre de
Mem Corvo, diz-se ahi com os privilégios da Feira de
Trancoso; no seculo x i i i jà existia a Feira franca
annual de Mem Corvo quinze dias antes da Paschoa e
quinze dias depois para pão, gados e marchandia
( i ) V ite rb o , Elucid., v j).° A g ik h a .

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AS INDUSTRIAS LOCAGS E TRADICIÔNAES 173
Uma feira tradicional, destinada ás cousas velhas, é a
da Ladra, em Lisboa, da qual escrevia no seculo x v i i ,
Serrão de Castro:
Se essa pobreza que tem
Tanto, ratinhos vos quadra,
Para que a Feira da Ladra
Vós delia fazeis também? (1)

Transcrevemos aqui algumas linhas que pintam


esta feição do commercio local: «A Feira de Março
é o grande acontecimento annual d’esta localidade
(Aveiro.) É a exposição do que Guimarães dá em
bons e duradoiros guardanapos, do que Braga produz
em espantosos e invencíveis tamancos e guarda-chu­
vas, do que Penafiel inventa em albardas com as respe­
ctivas retrancas, do que as nômadas lojas de capella
e quinquilherias contêm de mais avariado e vendável.
— É a unica epoca em que as familias convivem e
conversam na rua, em que sáem diariamente e em
que se vestem desaffectadamente com as melhores rou­
pagens.— A 19, no muito catholico, technico e allu-
sivo dia de S. José, ha a Feira de madeira de pinho,
carvalho e castanho e de charruas, arados e cabeça­
lhos, o que tudo representa uns trez contos de con­
tractos pecuniários. A 25 faz-se a venda de barcos
moliceiros...» (2) Ha tambem as feiras especiaes de
porcos, de gado, de milho, e no Porto a feira dos moços
todas as terças feiras de abril enj que se contractam
os creados para a lavoura. Não levamos mais longe
estas indicações, porque nos parecem já bastante para
(1) Ratos da Inquisição, p. 125.
(2) Carlos Faria, Folhetim, cit.

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174 l iv r o i, c a p it u l o iii

se determinar a feição da actividade local. Gil Vicente


allude ao caracter festivo das Feiras:
Eu não vejo aqui cantar
Nem gaita, nem tamboril
E outros folgores mil
Que nas feiras sóem destar.
(Obr., 1.1, p. 175.)
Na sna actividade, em geral, o homem do povo pouco
confia na eificacia do trabalho e da economia; cré na
entidade da fortuna, da sorte, ou de qualquer poder
magico, e procura obter o seu favor. É porisso que
em todos os processos do trabalho se encontram su­
perstições ou agouros, praticados para alcançar um
bom resultado. A planta do jarro indica se o anno
será esteril ou abundante (Ucanha); a de Nossa
Senhora, apanhada no dia de S. João, conserva-se
sempre verde como signal de ser feliz a pessoa por
cuja sorte foi colhida; a Feitelha, ou o feto-real colhido
á meia noite em ponto na festa de S. João, dá àquelle
que o apanhou todas as venturas que desejar. A mesma
virtude se attribue á herva moliana, á qual Gil Vicente
allude entre as cantigas da Rubena. Colhida esta planta,
dispõe-se n’um vaso onde se deitará um pedacinho de
ouro, outro de prata e outro de cobre; todos os dias
quando o indivíduo se levantar da cama deve ir sau­
dar a herva moliana (nos Açores diz-se: Cantar a
moliana) com a seguinte oração:
Deus te salve, moliana,
Onde Nosso Senhor Jesus Christo
Poz os pés e fez a cama.
Assim como Nosso Senhor
Te encheu de verdura,
Assim tu me enchas de fortuna
No comprar e no vender,

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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 178
E em todos os negocios
Que eu pretender fazer;
Assim como te eu dei prata e cobre,
Assim tu me dés ouro
Para eu dar esmola ao pobre. (1)
Em quanto a herva se conservar verde ha felicidade
na casa ; quem tiver a moliana e a dér a alguem perde
a sua fortuna. Os dias da semana têm certas virtudes
especiaes, como determinadas horas do dia (das onze
para a meia noite, pino do meio dia) e como os mezes
no ultimo dia. N’este estado de espirito a actividade
do homem do povo está subordinada a uma disciplina
affectiva de agouros, de esconjuros e de superstições,
que torna quasi necessaria uma classe de pessoas de
virtude, que o dirijam n’esse dédalo da credulidade.
A falta de confiança nos proprios recursos faz com que
(1) Z. Pedrozo, 'Superstições populares, n.° 595, no Positi­
vismo.— Esta mesma crença se applica tambem ao Azevinho,
que se borrifa com vinho no momento de ser colhido, dizen­
do-se :
Azevinho, meu menino,
Aqui te venho colher
Para que me dês boa fortuna
No comprar e no vender,
E em todos os negocios
Em que me eu metter.
(Ibid., n.° 247 e 600.)
O mesmo se dá com a Laranja para dar fortuna, colhida
nas mesmas condições, e dizendo-se voltado para o nascente :
Laranjinha redondinha,
Cortada por minha mào ;
Dae-me fortuna
No comprar e no vender, %
E em tudo o que eu pretender.
(Ibid. 63 L)

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176 LIVRO I, CAPITULO III

a maior parte das vezes se illuda o trabalho, ou se


aproveite o primeiro pretexto para a ociosidade. Na
parlenda dos dias da Semana da mulher priguiçosa, de
Traz os Montes, diz-se:
Na Segunda me eu deito,
Na Terça me levanto,
Na Quarta é dia santo;
Na Quinta vou para a feira
Na Sexta venho da feira,
Sabbado vou-me confessar
Domingo vou commungar,
Diz-m’agora comadrinha
Quando hei de trabalhar? (1)

(i) Leite de Vasconcellos, Folk Lôre andahiz, p. 211.—Na


tradição hespanhola ha esta fórmula applicada á semana do
sapateiro; ib., p. 186,

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CAPITULO IV
Estados sociaes representados
nos costumes portuguezes
Relação entre os ritos funerários, as ceremonias do casamento
e as formas symbolicas do direito, derivada da constituição
primitiva da Familia.— Dos ritos funerários em Portugal :
Actos por occasiào do fallecimento.— Despenadeiras.—Mon­
tes de pedras.— Poços seccos.— Fórmas aa incineração e da
inhumaçào. — O banquete funerário.— Obradas, Bodivos ;
Pão, vinho e candèas ; Ofifertas aos meninos. — A encom-
mendaçâo : Nenias e Dansa funeral. —O pranto e as carpi­
deiras.— Os Clamores e Yoceros.— O luto nas suas fórmas
popular e official. — Tosquiar o cabello. — Fórmas do culto
ou Commemoração dos mortos: — Almas santas.— O ghilde
ou banquete sobre as sepulturas.— Mamôas e Antellas.— A
Tripudia hispana.— O toque dos sinos.— Consequências da
falta do culto dos mortos: Almas penadas. — Baptismo de
cinza.— Semear o morto.—Requer alma, e ter esprito.— A
evocação dos mortos. — O burborinho e a Procissão dos
defunctos. — Das fô rm a s populares do Casamento : Epoca
do Familismo, e fórmas hetairistas da Promiscuidade e da
Gynecocracia. — União temporaria, Prostituição sagrada, e
Virgindade ignóbil.—Polyandria, escolha pela mulher e Ce­
libato — Epoca da Tribu patriarchal, ou casamentos endo-
f eamico e exogamico. — Sacrifício á communidade ; Compra
corpo, Dote paternal, Cohabitação.— O Rapto da mulher,
o Comlbate simulado e a Confarreação.— Na epoca Nacional :
Ceremonias no lar do pae, na transição e no lar do marido.
— Comparações com os costumes gregos e romanos.—Costu­
mes c symbolos jurídicos: As duas formas sociaes do esta­
tuto territorial e pessoal. — Os Pelourinhos e a liberdade
municipal.— As Irmandades.— A justiça local e a do Fôro do
rei . — Systema tradicional da penalidade. — As penas infa­
mantes. — Os estados das pessoas nos costumes populares.
— Fórmas dos contractos.

No nosso trabalho intitulado Systema de Sociologia,


apresentámos o seguinte principio geral que nos sef-
12

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178 LIVRO I, CAPITULO IV

virá de guia na coordenação dos complicados mate-


riaes d’este estudo: «Emquanto a sociedade estava
embryonaria no typo de familia, a religião era o vin­
culo de unificação, acòmpanhando todos os actos col­
lectives, como os ritos funerários pelos antepassados,
as ceremonias do casamento, a consagração da proprie­
dade, a propiciação para as sementeiras e colheitas. » (1)
Todos estes actos tão variados e quasi sempre pratica­
dos sem consciência do seu intuito primitivo, acham-se
relacionados entre si pela sua origem religiosa. Com
a successão e cruzamento das raças, com a elevação
dos estados sociaes, que passam do familismo rudi­
mentar para o cantonalismo ou para os aggregados
nacionaes, alteram-se as concepções religiosas, os
dogmas substituem-se, mas ficam os actos exteriores,
como a ultima cousa que se perde. Bem diz Fustel
de Coulanges : «se é preciso muito tempo para que
as crenças humanas se transformem, é preciso muito
mais ainda para que as praticas exteriores e as leis
se modifiquem.» (2) Os ritos funerários em Portugal
apresentam actos isolados e incomprehendidos que
pertencem a um systema primitivo do culto dos mor­
tos; as ceremonias do casamento, praticadas na vida
provincial, derivam d’esse mesmo systema, que trans­
parece em muitos dos seus elementos através da
crusta catholica. A relação entre estes dois grandes
actos da vida social é a principal luz para a coorde­
nação de elementos tão desconnexos e para a intelli-
gencia do seu espirito tradicional ; a falta d’este ponto
de vista faz com que espiritos subalternos se limitem
a compilar sem plano os usos locaes, condemnando
como inutil e aprioristica toda a tentativa de recon-
strucção dos estados sociaes antigos. Fecham a scien-
(i) Op. cit., p. 311.
(2j La Cité antique, p. 17.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 179
cia no limite da sua incapacidade, envolvendo no seu
azedume os que avançam.
Partindo dos estados sociaes superiores, como o de
nacionalidade, vamos encontrar nos costumes os ves­
tígios primordiaes da aggregação no typo de familia.
Na Grécia a palavra que designa a familia, significa
— aquelles que estão juntos do mesmo lar; e essa uni­
dade rudimentar da familia não se funda socialmente
no parentesco do sangue, mas na obrigação moral de
venerar os antepassados que ella representa. (1) Esta
veneração não podia manter-se por um sentimento
abstracto de dever, incompatível com o estado da
consciência de civilisações nascentes, mas sim por
meio de actos, praticas ou diligencias cultuaes de
fórma concreta, constituindo um rito obrigatorio para
os parentes, e excluindo de um modo absoluto d’essa
participação todos aquelles que não pertencessem á
familia. Na aggregação social dos povos áricos pre­
ponderou o typo de Familia, e por isso em todòs os
ramos d!este tronco anthropologico, na índia, Grecia
e Italia, o culto mais antigo e geral é o dos mortos,
conservando através de todos os accidentes historicos
as suas fórmas ritualisticas. Diz Fustel de Coulanges,
observando esta similaridade fundamental, derivada
de uma mesma ordem de concepções: «os dogmas
podem ter-se extincto muito cedo, mas os ritos têm
durado até ao triumpho do christianismo.» (2) Os
costumes funerários em Portugal confirmam este prin­
cipio, apesar da cruzada catholica durante cinco sécu­
los contra o islamismo na Hespanha, em que se envol­
via tambem o polytheismo greco-romano, e apesar de
(1) Diz Fustel de Coulanges: «Uma familia era um grupo
de pessoas ás quaes a religião permittia o invocar o mesmo
lar, e o ofTerecer o mesmo banquete fúnebre aos antepassa­
dos.» La Cité ue,ntiqa p. 41.
(2) Op. cit., p. 15.
«I
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180 LTVRO I, CAPITULO IV

trez séculos de canibalismo da intolerância inquisito-


rial. Ligado ao primeiro rudimento social do familismo,
o culto dos mortos antecedeu todas as outras fôrmas
religiosas, e na nossa raça àrica, como observa Fus-
tel de Coulanges: «antes de conbecer e adorar Indra
ou Zeus, o bomem adorou os mortos, etc.» É esta
orientação primordial da credulidade que persiste
ainda entre o povo nas suas praticas de veneração
pelos mortos, e que fez com que a Egreja convertesse
os Deuses Manes e os Penates nos Fieis defunctos da sua
hierologia. Estabelecido o culto dos mortos em cada
familia, o pae era o pontífice da religião domestica e
d’aqui derivava a força ou poder moral e material
sobre os que se reuniam em volta do mesmo lar.
A mulher que passava in manu mariti, que casava,
tinha por uma ceremonia particular de abjurar do
culto dos seus antepassados, para ser admittida sem
profanação aos actos cultuaes da familia do seu ma­
rido. Nas superstições e agouros populares tanto de
Portugal como da Hespanha, ainda existe uma vaga
relação entre o culto dos mortos e o acto de casa­
mento ; dizem os nossos anexins:
Á terça feira
Não cases a filha,
Nem lances a téa.
E no refraneiro hespanhol:
En Martes,
No te cases,
Ni te embarques. (1)
Basta lembrar que o deus Marte, consagrado na
terça feira (Dia martes, no Canc. de Resende; no
(1) El FolkLore andaluz, p. 153.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 181
mardi, francez, etc.) era o que dirigia as almas dos
mortos como psychopompo, e este caracter aziago de
tal dia liga-se inconscientemente á consagração dos
mortos. A phrase biblica, por mim deixarás pae e
mãe, allude a esta substituição do culto domestico no
casamento, como notou Fustel de Coulanges: «Desde
o casamento a mulher nada tem de commum com a
religião domestica de seus paes; ella sacrifica ao lar
do marido.» (1) Quando Strabão observa, que os cos­
tumes do casamento entre os Lusitanos se pareciam
com os dos gregos, podia estabelecer logo a correlação
para com os ritos funerários.
A propriedade era tambem primitivamente demar­
cada pela ceremonia religiosa da implantação do termo
ou marco sobre os carvões do lar, em todos os povos
indo-europeus; a propriedade tornava-se tão indivi­
dual e inamovível como o culto da familia, que lhe
confiava o deposito dos seus antepassados. A medida
que as familias se associam sobre o mesmo «territorio,
organisa-se um culto publico dos antepassados que
serviram a communidade, e são esses os heroes o
genius loci,centro de convergência das instituições
municipaes; o Picus, ou Pilus, dos povos itálicos, con­
servou-se longos séculos nos Municípios portuguezes
na columna chamada Picota ou Pelourinho.
Nos costumes populares portuguezes existem ves­
tígios de outras raças que não pertencem ao grupo
indo-europeu; por isso na coordenação dos elementos
consuetudinarios importa agrupar em systemas isola­
dos esses fragmentos, recompondo com elles os esta­
dos sociaes que se sobrepuzeram ou confundiram. É
, esta a principal condição para a clareza descriptiva,
e para as conclusões sociologicas. Dividiremos, por­
tanto, este capitulo de uma maneira logica, seguindo
(i) Op. cit., p. 42.

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182 LIVRO I, CAPITULO IV

as relações ethnicas que existem entre os Ritos fune­


rários com as Cerimonias dos casamentos e com os
Symbolos do direito consuetudinario.
Dosritos funerários em Portugal.— A complexidade
e variedade de actos praticados pelo povo quando
morre alguem, ou quando commemora algum falle-
cimento, organisam-se em trez grupos independen­
tes : a) o que respeita á occasião de ser sepultado o
defuncto; b) o que se refere ã consagração da sua
memória em epocas annuaes; c) e o que resulta do
abandono completo do culto, em que os mortos se
tornam Séres malévolos de que se tem medo, e que
importa tornal-os propícios por meio de determinados
agouros. Por esta divisão podemos agrupar as fôrmas
rituaes pertencentes ás diversas camadas ethnicas que
constituem o povo portuguez.
O antigo costume de dar a morte aos velhos ou
enfermos incuráveis pela mão dos proprios parentes
com um intuito de piedade, é um facto que remonta
á epoca mais atrazada das sociedades, quando a falta
de subsistência ou os accidentes da guerra forçavam
a tribu a este recurso violento. Robertson, na Histo­
ria da America, descreve este costume do assassinato
dos velhos existindo entre todas as tribus do conti­
nente desde a bahia de Hudson até ao rio da Prata;
Jacob Grimm tambem em numerosas Sagas scandi-
navas comprovou este costume entre os povos do
norte da Europa antiga; Koenigswarter colligiu do­
cumentos por onde comprova este costume entre os
Hérulos, os Iazyges, os Cantabros (Silio Itálico, Pú­
nica, ui, 328) e bem ainda na raça slava de leste da
Europa, os Vagrianos, os Wendes, os Wilzas e os
Prussianos. (1) Era preciso que este costume tivesse
(1) Etudes historiques sur le de la Societé hu-
maine, p. 9.

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ESTADOS SOGIAES REPRESENTADOS, ETC. 183
raizes ethnicas muito profundas para existir nos con­
tos populares a sua reminiscência, e para se praticar
ainda excepcionalmente. Nos contos do povo conta-se
que um filho ia abandonar o pae para a morte volun­
tária ; e ao deixar-lhe uma manta velha, observara o
pequeno que désse ao avô só metade, porque a outra
metade da manta serviria para quando lhe tocasse a
vez de ser atirado ao escampado. Porém mais do que
esta reminiscência existem pelas aldeias certas mu­
lheres, que vão ás casas ajudar a morrer os doentes
que estão na agonia, gritando-lhes á cabeceira, para
afugentar o diabo: «Ande, diga commigo do fundo
do seu estamego: Hi, Jesus, que morro.» O caracter
d’este acto acha-se na sua fôrma primitiva em Nisa,
onde estas mulheres eram chamadas as
ras, as quaes para abreviarem a agonia do moribundo,
cravavam-lhe os cotovelos sobre o peito, cumprimin-
do-lhe a caixa toraxica I Ainda ha bem poucos annos
se passava isto assim, como o observou uma testemu­
nha insuspeita que nol-o garantiu ; ás vezes os doentes
pediam por misericórdia que os não despenassem
da1(i)É evidentemente a persistência d’esse costume
das antigas raças da Europa, que apparece na Hespa-
nha entre os Cantabros. Da freguezia de Cabreira,
relata J. Avellino de Almeida, no seu Diccionario cho-
rographico, o seguinte costume : «No tempo da pri­
mitiva egreja, os filhos, tanto que os paes não podiam
trabalhar para se sustentarem, levavam-nos ás costas
a uma lage corrediça, e os precipitavam no Poço de
Portocales, acima da Ponte, no rio que vem de Ou­
teiro maior...» (2)
O modo de tratar os cadaveres, enterrando-os,
queimando-os, ou abandonando-os, corresponde a de-
(1) Communicaçâo do digno juiz de direito CelestMo Emy-
gdio.
(2) Op. cit., 1. 1, p. 200.

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184 LIVRO I, CAPITULO IV

terminadas raças e epocas de civilisação, e por isso


trataremos das fôrmas da inhumação, da ,
e do abandono em covas descobertas segundo esta
coordenação ethnica bem evidente entre as raças anti­
gas da America. A inhumação era de preferencia
usada na America do sul, e em especial no P erú ; a
incineração acha-se como peculiar do Mexico, sobre­
tudo applicada ás pessoas de distincção; na America
do norte dava-se o abandono dos cadaveres.
A incineração dos cadaveres ataviados com vestes
e joias era uma ceremonia dos Lusitanos e dos Gal-
legos, ou propriamente celtica. Sibelo e Murguia refe­
rem-se a urnas cinerarias achadas nos tumulos ou
mamôas da Galliza. Como a incineração caiu em des­
uso entre os Gregos e Romanos, veiu tambem este
costume a decair na civilisação peninsular sob a influên­
cia jónica e pela incorporação romana. Appiano, ao
descrever a incineração de Yiriato, chama a este rito
funerário costume barbaro; Tito Livio, descrevendo
as danças funeraes ordenadas por Annibal em honra
de Graccbo, chama-lhes tripudia Os
Romanos estavam já na edade de ferro quando oc-
cuparam a península, e porisso consideravam como
nefando esse uso da incineração característica da
edade de bronze. Existe uma profunda differença
entre os povos primitivos que enterravam os seus
mortos e aquelles que os queimavam; Lubbock no
seu livro O Homem antes da Historia tenta apresentar
esta característica: «Não se pôde duvidar que durante
o periodo neolithico da edade de pedra enterravaje
ordinariamente o corpo na posição de assentado. E m
resumo, parece provável, embora nada possamos afür-
mar positivamente, que na Europa Occidental, esta
posição do cadaver caracterisa a edade de pedra, e
a incineração a edade de bronze; ao passo que, quando
o esqueleto está extendido, pode-se sem muita hesita­

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 48S
ção attribuir o tumulo à edade de bronze. (4) O que
se conclue é que a incineração é um facto muito
especial das raças amarellas ou mongoloides, (2) e
que sendo ellas que introduziram o bronze na Europa,
os vestígios da incineração são documentos d’esta
camada ethnica, odiada pelos elementos áricos. Na
linguagem popular ainda se diz as cinzas como syno-
nymo dos despojos mortaes de um indivíduo. Como
costume de uma raça detestadâ, e ao mesmo tempo
como dispendioso, e tanto que se tornou um distin-
ctivo das pessoas elevadas, a incineração, que succé­
dera ao abandono dos cadaveres, foi por seu turno
substituída pela inhumação.
O abandono dos cadaveres apparece simultâneo com
a incineração, prevalecendo sobretudo aquella fórma
primeira nas classes inferiores ; diz Finlayson isto das
classes pobres dos Mongoloides. Pausanias diz que os
Celtas abandonavam os seus mortos no campo da
batalha, e Silio Itálico diz effectivamente «que este
uso de abandonar os mortos existia entre os mais
antigos Celtas que nós conhecemos, derivado da sua
fé religiosa.» (3) Belloguet pergunta se não será isto
consequência do Mazdeismo ? E afasta-se da verdadeira
origem ibérica, isto é, da sua proveniência de uma
raça amarella, que precedeu na Europa os ramos
áricos. O facto dos poços seccos é a prova do systema
do abandono dos cadaveres, que ahi se deixavam;
tanto na Inglaterra como em França existem largos
boqueirões excavados, cujo destino, em terrenos sem
agua, «parece ter sido unicamente funerário, pelo que
se vê dos ossos de animaes e esqueletos de homens
que ahi se encontram.» (4) Este'costume apparece
(1) Op. cit., p. 107, Trad. Barbier.
(2) Letoumeau, Sociologie, p. 226 e 227.
(3) Belloguet, Ethnogénie gauloise, t. m, p. 141.
(4) Ibidem, p. 476.

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186 LIVRO I, CAPITULO IV

ainda entre os Romanos, no cemiterio da plebe do


Monte Esquilino, onde os escravos eram abandonados
em puticuli «especie de pequenos poços, que existiam
na mesma collina, e de que as valias nos cemiterios
de hoje são uma tristíssima recordação, etc.» (1) Do
Archivo da Gamara municipal de Lisboa extrahiu o
auctor do Relatorio sobre os Cemiterios d’esta cidade
um documento importante sobre o abandono dos cadá­
veres ; é uma carta do rei D. Manuel dirigida áquella
corporação, que aqui transcrevemos pela sua impor­
tância :
«Vereadores procurador e procuradores dos mes­
teres. Nos elrey vos emviamos muyto saudar. Nos so­
mos certificado, que os escravos que falecem nessa
cidade asy dos tractadores de guynee como outros
(nam sam asy bem soterrados como devem nos lloga-
res omde sam llançados e que se llançam sobre a
teerra em tall maneira que fiquam descubertos ou de
todo sobre a teerra sem cousa algua delles se cubryr,
e que os cães os comem, e que a maior parte d’estes
escravos se llançam no monturo que estaa junto da
cruz que estaa no caminho que vay da porta de Santa
Catherina para Santos, e asy tambem em outros lloga-
res pilas herdades dhi da redor. E que posto que
nyso tenhaaes provido com pnnas e provejaaes todo
ho posivell, por a corruçam que se se segiria da po-
dridam dos ditos corpos. Consyramos que o melhor
remedio seria fazerse hum poço o mais fundo que
podesse ser no llugar que fosse mais convinhavell e
de menos inconvyniente no quall se lançasem os ditos
escravos e que fose llançado de tempo em tempo no
dito poço allgua cantidade de call virgem pera si me­
lhor gastarem os corpos e se escusar o mais que pos-
sivell for a dita coruçam e que a este poço fose feito
(1) O* Cemiteriosd* Lisboa, Relatorio, p. 9.1880.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 187
ao redor da boca hu cercuyto de parede de pedra e
call e que qualquer que escravo fiançasse ou man­
dasse llançar em outro cabo salvo no dito poço, pa-
gáse huua certa pnna qual se vos bem pareçese, porem
vos encomendamos e mandamos que lloguo nysto
entendaees e vejaees o llugar que será mais convy-
nyente para o dito poço se fazer e ascentay a pnna
que se pohera e todo o que nyso fizerdes nos escre­
vei cumpridamente para o vermos e averdes nosa
resposta. E encomendamovos que llogo nysto enten-
daaes porque ho avemos por cousa de muito noso
serviço. Escripta em allmeyrim a xm de novembro de
1515. Rey. p.a a çidade sobre o poço p.a se llançarem
escravos.» (1) O sitio hoje denominado de Poço dos
negros coincide com o local em que se abandonavam
os cadaveres no tempo de D. Manuel.
A sepultura no mar, era tambem uma antiga tra­
dição hindu, usada por necessidade pelos marinheiros,
quando lhe morria alguem a bordo; no Naufragio
da Não S. Paulo relata-se a morte de uma menina :
«encommendou-a o padre, e em uma alcatifa, com um
pelouro aos pés, tornou ao mar, etc.» (2)
O systema da inhumação veiu a prevalecer nas mais
elevadas civilisações, como entre os semitas talvez
pelo seu cruzamento com o elemento negroide, como
entre os Arias vedicos e os Persas, ou coexistindo com
a incineração como entre os Germanos. A locução A
terra lhe seja leve é uma noção moral derivada d’esle
costume generalisado com o christianismo. Os montí­
culos funerários são frequentes em varios pontos de
Portugal, restos de uma população ante-historica ; têm
. na linguagem popular o nome de , antellas e
antinhasj não obstante uma grande parte d’elles ter
(1) Archivo da Camara de Lisboa : Provimento de saude,
Liv. i, fl. SI.— Ap. Relat. cit., p. 14.
(2) Hist. tragico-maritima,1 .1. p. 411.—Barros, Décoda
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AiisuuaeuBHnui^^ SENTADOS, ETC. 189

*> ______ ou guia das almas dos


rem ontam os á origem
i o de P ctit Poucet, a
lo caminho por onde a
e, e por ellas descobre
i. No mytho de Pyrrha,
z nascem os homens,
a tem portanto um sen-
perança da resurreição
a p ara achar no mundo
a luz e a bcmaventu-
um e entre os Tartaros
i viagem atiram para a
t a » -

strada pedras com um


: (1) este m esm o uso é
indo na Italia meridio-
tre os antigos gregos,
, Scandinavos e Celtas
do-os tam bem á índia,
H ottentotes. (2)
as sobre as sepulturas
is, entre os povos que

1 inentar, e persiste ainda
i lanidade, como vestigio
a Africa existem mon-
accum ulam sobre as
e anngos, augm entan-
ialton descreve o mesmo
• Spencer nota-o entre os
na sua Viagem de um
mm rra de las Animas, em
p. 71, descreve o uso celtico
(uras dos justiçados.
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^
188 UVRO I, CAPITULO IV

sido destruída pela exploração agrícola, e também


pelos rabuscadores de thezouros. O dr. Martius Sar­
mento dá uma curiosa noticia d’estes montículos do
Valle Ancora, alguns d’elles em grupos : «O exame
dos Dolmens e dos tumulos de Ancora mostra mais
que os Dolmens e tumulos são sempre ou foram
cobertos por uma mamôa maior ou menor, conforme
o tamanho da sepultura que escondia, mas composta
sempre do mesmo jnodo, terra e .» (1) O
terreno entre a Gitania e Sabroso, onde está um mon­
tículo sepulcral, ainda conserva o nome de Monte
d’Antella ; e em Pamplide o Campo das Antinhas tem
algumas sepulturas contíguas abertas em rocha. (2)
Estes montes formavam-se por um acto cultual, ati­
rando pedras para cima da sepultura ; quando novas
praticas religiosas atacaram este uso, alterando as
fórmas da crença, ficou ainda o costume de lançar
pedras nas sepulturas, porém considerando-as como
de justiçados ou abandonados. Na epoca christã, em
Portugal, quando se não enterrava o morto em sa­
grado, isto é nas egrejas e adros, lançavam-lhes pedras
sobre a sepultura, fazendo montículos chamados Fieis
de Deus, ou na linguagem popular Montes
No Elucidário deViterbo falla-se d’este uso : «Em todo
este reino vêmos d’estes pedregulhos junto das estra­
das, sem que nos fique a mais leve duvida que ali
foram advertidamente postos e não por acaso.» E cita
um documento de Pinhel, de 1473, em que se refere
este titulo «que o povo tambem chama Montes Gau­
dios.-o Santa Rosa de Yiterbo attribue este uso a ori­
gem grega, derivado do costume de se atirarem pedras
para honrarem Hermes ou Mercúrio para tornar pro­
picia a viagem ; mas o deus dos viandantes era pri-
(1) Revista O Panthéon, p. 4.
(2) Ibidem, p. 21.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 189
mitivamente um psychopompos,ou guia das almas dos
mortos, e por este aspecto nos remontamos á origem
mythica d’este uso funerário.
Nos contos populares, como o de Petit Poucet, a
criança atira as pedrinhaspelo caminho
levam para a exporem á morte, e por ellas descobre
o caminho para voltar para casa. No mytho de Pyrrha,
das pedras atiradas para traz nascem os homens,
durum genus. A pedra funeraria tem portanto um sen­
tido mythico a que se liga a esperança da resurreição
do morto, ou pelo menos a guia para achar no mundo
subterrâneo o caminho para a luz e a bemaventu-
rança. Gubernatis cita este costume entre os Tartaros
da Pequena Russia, que em viagem atiram para a
sepultura que encontram na estrada pedras com um
sentido religioso propiciatorio; (1) este mesmo uso é
indicado em Servio como existindo na Italia meridio­
nal ; Liebrecht encontrou-o entre os antigos gregos,
bem como entre os Germanos, Scandinavos e Celtas
da Gram Bretanha, remontando-os tambem á índia,
aos Chinezes, aos Japonezes e Hottentotes. (2)
O costume de collocar pedras sobre as sepulturas
acha-se entre as raças selvagens, entre os povos que
attingiram uma civilisação rudimentar, e persiste ainda
nas raças superiores da humanidade, como vestígio
de uma concepção primitiva.
Segundo Park, no interior da Africa existem mon­
tões de pedras, que os negros accumulam sobre as
sepulturas dos seus parentes e amigos, augmentan-
do-os quando por ali passam; Galton descreve o mesmo
costume entre os Damaras, e Spencer nota-o entre os
Bodos e os Dhimals. Darwin, na sua Viagem de um
Naturalista, observou na Sierra de las Animas, em
ti) Mitologia comparata, p. 102.
(2) Smith, Histoire des Druides, p. 71, descreve o uso celtico
dos montes de pedras nas sepulturas dos justiçados.

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190 LIVRO I, CAPITULO IV
Maldonado, montões de pedras, a que attribue um
intuito commemorativo historico, mas que em rigor
são exclusivamente de uso funerário ; basta o nome
de Sierra de las ,Anim
as e a relação já estabele
por Gubematis entre a pedra e o monte ( ) nos
mythos indianos (1), para se conhecer o intuito das
raças indigenas da America, e estabelecer mais um
ponto de contacto com a civilisação primitiva dos Arias.
Darwin compara estes montões de pedras da Sierra
de las Animas com os que commummente se encon­
tram nas montanhas do paiz de Galles. Os Arabes
tambem costumam atirar pedras ás sepulturas com
um fim religioso, prevenindo-se de longe com pedras
que acham pelo caminho para não faltarem a este
piedoso dever ; assim o observou em 1845 o viajante
Carrete, na Argélia meridional : «Viajando um dia
com muitos Arabes, admirei-me de os vêr apanhar
uma pedra cada um d’elles successi vãmente ; um
d’elles apresentou-me uma, e perguntei-lhe porque é
que procediam assim.— Devemos passar diante do nza
(tumulo) de Beel-Gassen. Nãocomprehendendo, peguei
na pedra; d’ahi a pouco chegámos a um montão
informe de pedras de metro e meio de altura. Cada
um dos companheiros foi lançando a pedra que trazia
na mão dizendo : — Ao nza de Bel-Gassen. Fiz como
elles.»
O nosso amigo Teixeira Bastos cita egual costume
na província do Minho, por informações recebidas de
Cabeceiras de Basto : «Quando um aldeão passa por
pé de uma cruz, que indica o sitio em que se com-
metteu um assassínio, apanha uma , e depois
de resar pelo descanso eterno do morto, atira-a para
o montão de pedras, que se vae formando em volta da
cruz. O mais interessante é que ás vezes, quando
(1) Mitologia comparataj p, 100.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 191
n’aquelle sitio não póde encontrar facilmente uma
pedra fóra do montão, tem o cuidado de a trazer de
longe, para não deixar de prestar aquelle preito su­
persticioso á alma do finado.» (1) Vê-se que o costume
primitivo foi particularisado para os mortos violenta­
mente, talvez para guiar as almas errantes dos que
não foram enterrados em sagrado ; e o intuito de des­
acreditar o costume popular fez com que as pedras
fossem atiradas por devoção para as sepulturas dos
justiçados. Comtudo o costume ainda persiste em Por­
tugal, ligada a tradição da pedra ao culto da monta­
nha ; diz O sr. Leite de Vasconcellos : «Ao pé do Rio
Tinto, junto á Serra da mulher morta (segundo infor­
mações que obtive do meu amigo o sr. Leite de Faria)
conserva-se o costume de deitar uma pedra e resar
um padre nosso ao pé de uma cruz de ferro que ahi
ha, e assignala morte. Ninguém póde tocar nos mon­
tículos de pedra.» (2) Em nota accrescenta: «Sabe­
mos que existe n’outras partes de Portugal.» A cruz
é ainda na linguagem metaphorica a arvore da redem-
pção ; nos mythos indianos, a palavra que signi­
fica a pedra e o m o n t e , exprime tam
origem da vida. Ha aqui dois systemas religiosos corre­
spondentes a duas concepções das origens do homem,
uma que o deriva da terra, ou argila animada, como
nas raças kuschito-semitas, e outra que o deriva das
arvores, como nas raças áricas ; portanto na esperança
de renovação do morto, o monte de terra e a pedra
pertencem á concepção rudimentar da raça sobre que
se desenvolveram os semitas ; e a arvore corresponde
ao dominio de uma raça superior, o ária, que substi­
tuiu na historia a hegemonia semita.
Hoje já se não atiram pedras á sepultura do morto,
(1) Ensaios sobre a Evolução da Humanidade, p. 19,
(2) Era Nova, p. 78: Tradições das .

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192 LIVRO I, CAPITULO IV

mas nos costumes provinciaes os indivíduos que acom­


panham o sahimento consideram como um dever reli­
gioso o atirar um punhado de terra para dentro da
cova. Gubernatis allia estes dois factos, dizendo que
a palavra indiana adri significa pedra e monte. Dio-
doro Siculo conta que Semiramis levantara sobre a
sepultura do marido uma collina de terra; o tumulo
de Heitor era de terra e de pedras, do mesmo modo
que o tumulo a Alyattes por Xenophonte; Pausanias
diz que o tumulo de Laius era feito por um monte de
pedras, e segundo Virgilio, o rei do Lacio Dercennus
foi enterrado sob uma collina de terra. Lubbock, traz
uma phrase proverbial dos montanhezes da Escossia,
colhida por Wilson, que é uma especie de cortezia:
«Hei de ajuntar uma pedra ao tumulo que te .»
(Curri mi clach er do cuirn.) São numerosíssimos os
factos colhgidos por Tylor, Lubbock, Liebrecht e ou­
tros, e porisso é facil a erudição, mas difficil um
systema de coordenação. A immensa generalidade
d’estes usos nas raças mais vetustas da Asia, da Africa
e da Europa, revela-nos a persistência de um fundo de
civilisação proto-historica, que se acha nos povos áricos
e indo-europeus, especialmente nos costumes. Qual o
povo que fórma este fundo ethnico da Europa ? As
raças ibérica, gauleza, scythica, finnica e tartara não
foram eliminadas pela migração indo-europêa, e sobre­
tudo no occidente da Europa é onde se conservam
mais evidentes restos de uma civilisação anárica rudi­
mentar. A Ethnogenia não deve ficar simplesmente
descriptiva, como aconteceu á Geographia antes dos
estudos de Ritter; precisa apoiar-se na Anthropologia
como primeiro elemento de coordenação e visar á
reconstrucção da historia social da humanidade, inter­
rompida entre a vida das cavernas e a extraordi­
nária civilisação do Egypto.
Nos contos populares portuguezes ençontra-se ainda

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 193
um vestigio das Arvores funerários, com todo o seu
sentido mythico anthropologico ; nos costumes actuaes,
planta-se nos cemiterios os cyprestes com o sentido
funerário como no tempo dos romanos, em que se
plantavam á porta das casas dos patrícios que esta­
vam de lucto. (1) A arvore funerário acha-se descri-
pta no romance do Conde Ninho:
Morreu um e morreu outro
Já lá vão a enterrar;
D’um nascera um pinheirinho,
Do outro um lindo pinheiral ;
Cresceu um e cresceu outro
As pontas foram juntar,
Que quando el-rei ia á missa
Não o deixavam passar.
Pelo que o rei maldito
Logo os mandara cortar ;
D’um correra leite puro
E do outro sangue real !
D’um fugira uma pomba,
E do outro um pombo trocai... (2)
Temos aqui preciosos elementos mythicos, taescomo
a arvore phálica da vida, a arvore que deita sangue,
o pinheiro essencialmente funerário, e a pomba como
fórma concreta da alma do finado. Discutindo o sen­
tido das arvores do Vttarakuru, junto da qual habita
o deus da morte Yania, e do junto da qual
habita o rei dos mortos Mimir, conclue Gubernatis :
«A arvore plantada sobre o tumulo considera-se re­
presentando a alma tornada immortal, e pensa-se
mesmo que a arvore rebenta espontaneamente do
corpo. Quem se não recorda do celebre episodio de
Polydoro, em Virgílio, e da imitação que d’elle fez
Dante no canto de Pietro delle Vigne, o terceiro do
(1) Gubernatis, La Mythologie des plantes, L n, p. 118.
(2) Romanceiro geral, n.* 15; Cantos populares do
lago, s.* 32; Cantos populares do Brazil, n.° 4.
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194 LIVRO I, CAPITULO IV

Inferno.» (1) As arvores que vertem sangue são fre­


quentes nos contos indo-europeus ; representam o céo
alumiado, idealisado em fórma de arvore «d’onde
póde correr a ambrosia, ou tambem o sangue, con­
forme a arvore é considerada como arvore de vida ou
arvore de morte.» (2) Estas duas concepções primiti­
vas apparecem no romance portuguez, em que de uma
arvore corre leite puro e da outra sangue real. O cara­
cter funerário do p i n h e i r o ,acha-s
nio, e na Bussia ainda cobrem o defuncto que vae a
enterrar com ramos de pinheiro. (3) A alma deixando
o corpo em fórma de pomba perpetuou-se nas lendas
christãs da Edade media, (4) e vêmol-a no mytho de
Semiramis; nos jogos funeraes atirava-se á pomba
presa n’um mastro, e é com o caracter funereo que
apparece no RigVeda. As concepções animistas do
homem antigo acham-se expressas ainda em um grande
numero de actos que se praticam actualmente nos
enterros.
A mesma ideia da relação entre a vida e a morte,
que se exprime pelas pedras atiradas e pelas arvores
f u n e r á r i o s , que vertem o amrita ou o sangue,
que inspira os cantos e as dansas lugubres das inci­
nerações e inhumações antigas. Estes cantos tristes
e alegres eram tambem o elemento cultual dos phe-
nomenos sidericos dos solsticios estival e hibernal ; e
com egual sentido religioso se ampliavam ás ceremo-
nias funerarias. Ghamavam-se Nenias os cantos acom­
panhados de dansa em volta da pyra em que se incine­
rava o morto, e a que os romanos deram o nome de
Laudes. Tito Livio descrevendo o funeral de Graccho or­
denado em sua honra por Hanibal, chama-lhes tripudia
(1) Myth. des Plantes, 1. 1, p. 161.
(2) Ibidem, p. 284.
- <3) Ibidem, t. ii, p. 289.
(4) Alfred Haury, Essai sur les Legendes pieuses, p. 184.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 495
Jiispanorum; e Silio Itálico allude aos barbara carmina
dos Lusitanos, os quaes eram tão característicos para
os Romanos que lhes chamavam como
se acha em um proloquio latino colligido por Erasmo.
Estes cantos persistiram em toda a tradição Occiden­
tal, transmittidos nos costumes populares dos Voceros,
dos C l a m o r e s , das Carpideiras; a Egreja, que
profundamente os costumes do povo, prohibiu essas
ceremonias que eram o vinculo moral entre a familia
o a patria. No Concilio m de Toledo se diz: «Prohi-
bimos completamente o cantar carmes , que
o povo costuma entoar aos mortos.» Apesar d’isso,
nas linguas vulgares continuaram a ser entoados esses
.cantos, que ainda hoje se repetem napeninsula. Costa,
na Poesia popular espafiol, consigna o facto: «Y t
via hoy existem poblaciones à uno y otro lado dei
Pirineo, donde permanece la costumbre de formar el
duelo los hijos, los padres, la esposa etc. dei defuncto,
y hacer en el públicos extremos de dolor y ponderar
las excellencias dei defuncto.» (1) Os cantos popula­
res de Hespanha e Portugal, que se elaboraram por
occasião da morte do filho unico de Affonso vi, pela do
•Condestavel D. Nuno Alvares Pereira, e pela morte
do príncipe D. Affonso, filho unico de D. João u,
ligando-se a este costume, são a localisação das primi­
tivas tradições da melica elegiaca Occidental renovadas
entre o povo por uma impressão casual da realidade.
O canto da morte de Maneros,dos Eg
ficado por Herodoto ao Linos, era segundo a lenda
dedicado à morte prematura do filho unico de um rei;
as relações d’este canto com o mytho syriaco de Adó­
nis, alargando-se pela universalidade da tradição a
Hylas dos Bithynios, a Bormos dos Mariandynes, à
elegia dos Lityerses da Phrygia, ao Skephros de Tagea,
(1) Op. cit, p. 281.

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196 U V RO I, CAPITULO IV

e ao Iálemos da Asia menor, vieram achar na penin^


sula as circumstancias que o transformaram na Endexa.
A morte prematura do principe herdeiro e filho unico*
de Affonso vi, no seculo xi, provocou ao proprio paD
este pranto, que traz Sandoval:
Ay meu flllo 1 Ay meu filio
Alegria de mi corazon,
Et lume de meus ollos,
Solaz de mina vellez.
Ay meu espello,
En que yo me soía veer,
E con que tomaba
Muy gran praeer.
Ay meu herdero mayor,
Cavalleros hu me lo lexastes?
Dadme meu filio, Condes, (i)
Também na morte do rei trovador D. Diniz, fez um
jogral esta endexa:
Os namorados que trobam d’amor,
Todos deviam gram doo fazer,
Et nom tomar en si nenhum prazer,
Porque perderom tarn boo senhor,
Com’ é elrey Dom Denis de Portugal.
Os cavalleyros e cidadãos
Que d’este rey aviam dinheiros,
Et outrosi donas e escudeiros
Matar-se deviam com suas mãos,
Porque perderom a tam boo senhor. (2)
Ha aqui uma allusão aos sacrifícios funerários dos
reis barbaros, em que lhes immolavam as mulheres.
íi) Ap. D. Manoel Morguia, Hist. de Galicia.
(2) Canc. da Vaticana, n.» 708.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 497
o s amigos mais intimos e os escravos, como se vê dos
costumes dos Mexicanos, e do Peru, como conta Bal-
, boa dos funeraes do inca Yupangi, ou nos de Huagu-
€apac. (1) Em um dos contos do Orto do escri-
pto no tempo de D. Diniz, ba um sobre este costume
referido na canção do jogral. (2) Os cantos e as dansas
funeraes apparecem-nos com um caracter commemo-
rativo, na romaria que todos os annos o povo dos
arredores de Lisboa fazia á sepultura do Condestavel;
porém a vitalidade do costume acha-se indicada no
Alvará de 14 de agosto de 4423: «Porque o carpir
e depenar sobre finados he costume que descende dos
gentios e huma especie de idolatria, e he contra os
mandamentos de Deus, ordenam e estabelecem os
sobreditos, que d’aqui em diante em esta cidade, nem
em seu termo nenhum homem, nem mulher nom se
carpa nem depene, nem brade sobre algum finado, nem
por el, ainda que seja padre, madre ou filho, irmão
•ou irmã, ou marido, ou molher, nem per outra ne­
nhuma perda nem nojo, nom tolhendo a qualquer que
nom traga o seu doo, e chore se quizer; e qualquer
que o contrario fezer pague cincoenta libras para as
obras e tenha o finado por outo dias na casa, e quem
nom tever per hu pague, seja degradado da cidade
e termo até mercee d’el-rey.» (3) O brado do costume
popular apparece-nos na fôrma de que che­
gou a penetrar na litteratura, como se infere do titulo
de uma composição o Baladro de Merlim sepultado
pela fada Yiviana; a balata, que era uma pantomima
funeraria dos gregos, acha-se prohibida por uma lei
de Solon, e o lessus era tambem condemnado pelas
Doze Taboas, como um costume barbaro. Apezar da
prohibição do Alvará de 1423, no fim do seculo xv
(1) Letoumeau, Sociologie, p. 221 e 222.
(2) Contos tradiciomes do Povo t. n.
(3) Memórias de Dom João i, t. iv, p. 335.
S
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498 LIVRO I, CAPITULO IV

vamos encontrar estes costumes no seu vigor, mani­


festando-se pela morte do príncipe D. Alfonso em 42
de julho de 4491. As Endexas e Clamores chegaram
até nós, como se vê pelos cantos insulanos e brazi-
leiros. (1)
Garcia de Resende descreve esse successo com as
emoções que despertou no povo: «E com isto se levan­
tou entre todos um muito grande e muito triste e-
desventurado pranto, dando todos em si muitas bofe­
tadas, depenando muitas e mui honradas barbas e
cabellos; e as mulheres desfazendo com as mãos a
formosura de seus rostos, que lhe corriam em san­
gue, coisa tam espantosa e triste, que se não viu
nem cuidou. El rei por tamanha perda e tamanho nojo
se tosquiou. E a princeza tosquiou seus prezados cabel­
los e se vestiu toda de almafega, e a cabeça coberta
de negro vazo. E na corte e em todo o reino não ficou
senhor, nem pessoa principal, nem homem conhecido
que se não tosquiasse... E a gente pobre que não tinha
com que comprar burel, que valia a 300 réis a vara,
muito tempo andou com os vestidos virados do aves­
so... e porque se não achava tanto burel, os lavrado­
res e gente baixa vendiam os cobertores de suas
camas a preço de pannos finos, e os homens se ves­
tiam de sacos e cobertas de bestas.«
Eis como se manifestou o pezaí das pessoas mais
importantes que assistiram ás exequias no mosteiro
da Batalha: «vendo-lhes muito cruamente dar na eça
tamanhas cabeçadas, que parecia que quebravam as
cabeças, depenando todos suas barbas e cabellos, dando
em si muitas bofetadas, e assim homens como mulhe­
res, velhos e moços, cousa tão espantosa e de tanta
dor e tristeza que não se viu, e durou tanto que os
não podiam fazer calar.«
(1) Cantos populares do Archipelago , n.° 54 e 55.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 199
É cnriosissima a Endexa que então se cantou sobre
a morte do príncipe D. Affonso, achada por M. Gas­
ton Paris, em um manuscripto do seculo xvi:
Ay, ay, ay, ay I que ítaertes penas!
Ay, ay, ay, ay t que íuerte mal I
Hablando estava la Reyna,
En su palacio real,
Con la infante de Castilla
Princeza de Portugal, etc. (1)
Seguem-se mais quatro strophes narrativas, sem­
pre acompanhadas do estribilho lugubre; Gregorovius,
descrevendo os costumes funerários, diz que as mu­
lheres fazem um improviso dythirambico e «O côro
berra a cada estrophe: Deht Deh! Dehh Na Endexa
do príncipe D. Affonso:
Lloran todas las mugeres
Casadas y por casar.
Pelos costumes populares da Córsega, em que as
mulheres é que cantam os Voceros junto do cadaver,
se comprehende o costume das mulheres de Lisboa
cantarem pela paschoa florida sobre a sepultura do
Condestavel, no Convento do Carmo, como se vê pelos
Tersos tradicionaes conservados por Azurara, e publi­
cados pelo chronista José Pereira de Sant’Anna. Gre­
gorovius, descrevendo estas mesmas ceremonias nos
costumes actuaes da Córsega, diz: «nas montanhas
do interior, sobretudo no Niolo, ellas subsistem na
sua força antiga e pagã, e parecem-se com as dansas
funerarias da Sardenha. A sua rivalidade dramatica
(1) Publicada na Romania, 1.1, p. 373; e depois nos Cantos
populares do Brazil, t. n, p. 170, annotando a versão brazi-
Ieira, n.* 10.

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200 LIVRO I , CAPITULO IV

e o seu extasis furioso agita e amedronta. Sio só as


mulheres que dansam, que se lamentam e cantam.»
No seculo xvi repete-se ainda a ceremonia do pranto,
mas o costume obliterado que se refugiava nas aldeias,
persistiu na côrte pela immobilidade da etiqueta;
escreve Frei Luiz de Sousa ácerca da morte do rei
D. Manuel : «Ao quarto dia depois do fallecimento se
ordenou a ceremonia antiga do pranto, que está á
conta dos que prezidem no governo popular da cidade.
A ordem é sahirem os Vereadores da Camara a pé,
arrastando grandes capuzes de dó, e com varas negras
nas mãos, acompanhando uma grande bandeira negra,
que hindo aos hombros do Alferes da cidade, que a
leva a cavallo, vae arrastando as pontas por terra;...
n’esta ordem passeiam as ruas principaes da cidade,
seguida dos senhores e fidalgos mais nobres da côrte.
Passam em trez logares notáveis, onde se quebram
trez escudos, que levam sobre as cabeças ministros
honrados da Camara. Os escudos negros e as que­
bras de cada um sôa uma voz alta e triste lembrando
ao povo que saiba sentir a falta de um Senhor, que
nos annos de seu governo foi valeroso escudo de suas
terras, e contra os enemigos d’elles trouxe sempre
bandeiras levantadas.» (1) Gil Vicente allude a estes
prantos. Quando em 1578 morreu o rei D. Sebastião,
repetiram-se os prantos populares, como se narra em
uma carta contemporânea : «Aos vinte e outo de agosto,
os cidadãos fizeram os costumados prantos, ainda que
algum tanto enchutos, e ao dia seguinte levantaram
rei ao cardeal...» (2) Por este tempo vulgarisou-se
(1) Annaes de Dom João m, pag. 20. É tal a immobilidade
da etiqueta, que isto mesmo se praticou pela morte de D. Ma­
ria ii em 1853, e de D. Pedro v em 1861; o que confirma a
observação de Spencer.
(2) Apud Ribeiro Guimarães, Summario de varia Historia,
t. iv, p. 133.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 201
um canto á morte de Dom Sebastião, cuja musica se
acha impressa na Miscellanea de Miguel Leitão de
Ándrada. (1) O que se fazia pela etiqueta palaciana,
cra ainda tomado a serio pelo povo das aldeias; d’a-
qui veiu o prohibirem-se os prantos nas Constituições
•dos Bispados, como vèmos em 1621: «Prohibimos,
que nos ditos acompanhamentos e enterramentos, e
nas Igrejas em que os defuntos se enterrarem, se não
•consintam pessoas que vão dando vozes decompostas ou
fazendo extraordinários edesordenados (2)
Estes acompanhamentos aqui referidos, correspondem
ao que nos costumes da Córsega se chama o
escreve Gregorovius: «Das aldeias visinhas chegam
para o enterro os amigos e os parentes. Esta multi­
dão reunida chama-se o coou es
rata ; e tambem se diz: Andare alia quando
as mulheres vão juntas á casa do morto.» A palavra
ensarrado usa-se ainda no Minho para significar o
lucto de familia, e no romance de D. as mu­
lheres vão alia scirrata:
Ella depois que o viu morto
Logo se poz a chorar:
— Chamem-me padres e frades
Para o vir enterrar,
Eu mando chamar senhoras
P*ra me ajudar a chorar. (3)
Nos cantos populares conservam-se as reminiscên­
cias de costumes ás vezes extinctos; ha uns versos
chamados Maravilhas do meu velho, que são uma espe-
cie de parodia dos Voceros ou Clamores e Endexas dos
mortos, com preciosas referencias, como ás despenor
(1) Vide a letra em o nosso Cancioneiro popular.
(2) Constituições do Bispado da Guarda, liv. ui, cap. 13.—
O mesmo nas do Porto.
(3) Ap. L. de Vasconcellos, Tradições, p. 244.

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202 LIVRO I, CAPITULO IV

dtiras, às carpideiras e ás pedras atiradas à sepul­


tura :
Vou dar c’o meu velho morto
Antre as pedras do lagar,
Atirei-le c’um fueiro
Acabei-o de matar ;
Fui chamar as choradeiras
Que o viesse chorar;
Bem choi'ado ou mal chorado
Vá o velho a enterrar.
A pedra que \e botares
De péso de cem quintaes.
(Maia.)
No romance da Dona Infanta, versão da Beira
Baixa, se lê:
— Ai, triste de mim viuva,
Ai triste de mim coitada!
Ir-me-hei por esse mundo
Chamando-me desgraçada.
Ai triste da só viuva
De mim, que nanja de nada. (1)
No romance da Faustina, ha tambem uma endexa
funeraria:
Nossa Senhora do Pranto
Era quem a pranteava,
No seu pranto que dizia:
— Domingo de madrugada
Yieram, etc.
No romance do Casamento maüogrado, cantado na
morte do principe D. Affonso, conserva-se a allusão ao
costume :
Cobrira-se com o seu manto,
Tratara de caminhar;
As servas iam traz ella
(i) Romanceiro geral, n.° 1.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 203

Cuidando-se de a não alcançar;


O pranto que ella fazia
Pedras fazia abrandar.«
O costume das mulheres que faziam profissão de
andar alia sárrata ainda vigora em Portugal: — «Na
freguezia do Suajo (Arcos) costumam ir as
ras, mulheres com saia pela cabeça a chorar ao pé
do morto, para o que recebem uma pósta de baca-
Iháo, um vintem de pão, e vinho ou dinheiro corre­
spondente a um quartilho.» (1) Existia tambem ainda
ha pouco em Villa Chã de Cangueiros, e da sua gene­
ralidade veiu o anexim, que se refere ao seu senti­
mento :
Choram o meu e o alheio
Por uma quarta de centeio. (2)
A saia pela cabeça corresponde ao antigo vaso ou
signal de lucto.
Na freguezia de Deão achamos indicado o seguinte
costume: «Quando algum morria, ao outro dia vinham
os parentes á Egreja embuçados em uma capa, e os
chapéos com as abas baixas, braços cruzados, com as
mãos debaixo dos sovacos, assentavam-se em bancos,
e nem á elevação da ostia e calix se levantavam, nem
descobriam; as mulheres em altas vozes queixavam-se
do Santo Padroeiro (S. Pedro) por tão cedo lhes tirar
d’este mundo aquella pessoa fallecida.» (3)
Em um documento do seculo xiv cita-se duas espe-
cies de lucto, o que era usado pelos serviçaes da casa
durante um anno, e se chamava dó de almafega, ou
burel branco e grosseiro, e o o que com-
(1) Leite de Vasconcellos, Tp
ra
d. 245.
(2) Yid. Contos tradicionaes do Povo t. n.
(3) Dicc. chorographico de J. Avellino de Almeida, 1.1, p. 339.

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204 LIVRO I, CAPITULO IV

petia aos proximos parentes. (4) Este facto nos ex­


plica a razão do lucto decretado pela morte dos reis,
ijue consideravam os povos como seus vassallos ; (2)
pelo fallecimento de D. João v em 31 de julho de 1750,
o Senado de Lisboa decretou em 1 de agosto <que os
homens pobres usassem górra e as mulheres de toa­
lha não encrespada. » (3) Além d’isto o lucto devia
<lurar dois annos, um pesado, outro alliviado. Em
alvará de 8 de agosto de 1750, ordenou mais a Ca-
mara, que todos os cidadãos assistissem á quebra dos
■escudas vestidos de lucto rigoroso, sob pena de paga­
rem dois mil réis de multa! No fallecimento do rei
D. José, renovou-se ainda a multa, mas já reduzida
a 400 réis !
Quando morre alguem, toca-se o , no sino da
freguezia, e ao dobre dos sinos ao sair do enterro
chama-se os signaes ; no romance insulano do Pobre
preso, conhecendo que não sairá vivo da prisão, diz:
E dizei ao thezoureiro
Que me toque o meu
E no romance do Toureiro namorado : «Não me to­
quem a campana.» Na Beira Alta toca-se trez vezes,
se é homem, duas quando é mulher, e repique sendo
■criança. O sino occupa um logar importante n’estes
ritos : «Em Basto ha duas freguezias limitrophes ; no
limite d’ellas está um páo, onde póde içar-se uma
bandeira. Quando n’uma das ditas freguezias morre
alguem, na outra iça-se uma bandeira, preta se o
(1) Testamento de Maria Esteves, em 1372. Ap. Summario
de varia Historia, t. n, p. 118.
(2) Ainda no Tratado de Gôa feito com a Inglaterra os Por-
Xuguezes são ali chamados Vassalos do rei de PortugalI
(3) Summario de varia Historia, t. u, p. 136.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 205
I
defuncto é homem, branca se é mulher, vermelha se
é anjinho. A primeira pessoa que conseguir n’esta
freguezia tocar o sino, ou a defuncto ou a anjinho
salva-se necessariamente. Isto dá logar a différentes
conflictos. Se o fallecimento é na segunda freguezia,
na primeira repetem-se as mesmas scenas.» (1) Ha
algumas superstições relativas ao sino, como: «Quando
um sino que está a tocar a finados se prolonga mnito
o dobre, é signal que chama por outro defuncto.» (2)
Nos arredores do Porto, quando uma pessoa está para
morrer e não póde (i. é, na agonia) é costume das
pessoas da familia ou amigos mandarem tocar sete
badaladas a um sino de Egreja...» (3) É o ultimo resto
do costume da morte dada pelos parentes.
Alguns ritos subsistem conservando-se como va-
gas superstições, como se vê por este costume ou
agouro de Bragança: «É bom trazer sempre uma
moeda de cruz na algibeira, porque morrendo a gente
n’um caminho deserto póde ser enterrado em chão
sagrado por isso que mostra ser christão; e se o
defuncto for justo, S. Pedro abre-lhe a porta do céo
sem nenhum sacramento.» (4) Que é isto senão o
dinheiro funeral com um sentido catholico, mas tendo
ainda o poder mythico de dar entrada na porta do céo.
O nosso amigo Leite de Vasconcellos, sollicito inves­
tigador dos usos das nossas localidades, allude ao
costume primitivo do dinheiro de Charente, que se
conserva ainda no Jura e no Dorvam, como nota
Alfred Maury, e que em Portugal se lança no caixão
do defuncto, para passar o rio dos mortos : «Na fre­
guezia de Guifões, perto de Mathosinhos, deita-se no
caixão do morto dinheiro de cruzes para o morto pas­
sar S. Tbiago de Galliza, onde ha um buraco a que
(1) Z. Pedrozo, Superstições populares, n.“ 629. No Positi­
vismo.
(2-3-4) Ibidem,n.* 43 e 113; Positivismo, iv, p. 53.

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206 LIVRO I, CAPITULO IV

toda a gente tem de ir vivo on morto. Em Cimbres,


concelho de Mondim da Beira, deita-se no caixão di­
nheiro para o morto passar a barca (ou a ponte). O
mesmo costume existe em Sinfães e creio que no
Minho. No Porto e em Villa Real sei que se espeta um
alfinete no habito do morto para este se lembrar dos
vivos perante Deus.» (1) A crença da barca chegou a
inspirar na litteratura portugueza os trez Autos hie­
ráticos de Gil Vicente, A Barca do Inferno, do Purga­
tório e do Paraizo; a crença da Ponte da passagem
das almas é fixada na via-lactea, ou na linguagem
popular, Carreiro de Sam Thiago, por onde as almas
partem d’este mundo. (2)
A Psychostasia, ou pesagem das almas para julgar
dos seus merecimentos pelo archanjo S. Miguel, é
vulgar no povo portuguez, e acha-se descripta em uma
Oração tradicional do Porto:
Sam Miguel, pezae as almas,
Ponde pezos na balança.
Os peccados eram tantos
Foram com elles ao chão!
Poz Nossa Senhora o manto,
Ficaram pezos suspensos:
Com a graça de Maria
Ficou a alminha contente. (3)
Estas concepções acham-se geralmente representa­
das em todas as manifestações da arte christã. Por aqui
se vè como os costumes são a expressão de noções
primitivas, sendo o seu estudo um meio directo para
(1) Notas sobre os Pumeraes, Pantheon, p. 97; e Tradições,
p. z42.
(2) Nas crenças dos antigos Parsis é pela ponte de
vad, que o morto entra no céo. Estas relações parecem expli­
car o agouro do cão que uiva presentindo que o moribundo
expira.
(3) Romanceiro geral, n.* 49. .

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 207
se recompôr o estado psychologico d’onde o homem
se elevou ás concepções philosophicas.
A ideia de que o morto revive em outro mundo,
levou os povos primitivos a enterrarem com o cadaver
não só os instrumentos da sua actividade, como tam­
bém os alimentos necessários para manter-se longe
dos seus parentes. João Muller, citando na sua Histo­
ria universal o costume chinez de servir á mesa o
rei morto, como fazem tambem os Hiongnu ao seu
Tanso, diz : «Este uso, que se pratica ainda na China,
praticava-se outr’ora em França, onde até ao tempo
de Luiz XIV, eram servidos os reis defunctos durante
quarenta dias depois da sua morte.» (1) Este resto
das noções animistas existe em Portugal no enterro
do rei, o qual para ser levado do palacio espera pela voz
do parente mais proximo, que vem dizer á carruagem:
Vossa magestade póde parti.» 0 banquet
morto, ou a comida enterrada com o morto, passou a
distribuir-se por aquelles que vinham acompanhal-o ;
e depois que estes banquetes funerários decahifam
por alguma fórma entre os povos catholicos, o padre
é que ficou recebendo esses comestíveis a titulo de
Offertorio e de Obradas. É esta a fórma da transfor­
mação de um costume tão universal. Os Egypcios usa­
vam os banquetes fúnebres por occasião do enterro;
os Gregos offereciam as suas Colybes, que consistiam
em uma distribuição de fructos e legumes. 0 funeral
romano acabava tambem por um banquete, e distri­
buía-se carne pelo povo. Entre os Lithuanos bebia-se
hydromel, leite e cerveja junto da fogueira em volta
da qual se dansava ; na Russia este mesmo banquete
subsiste com o nome de trizna. (2) Bastam-nos estas
rapidas indicações para comprebendermos o valor de
il) Op. cit., 1. 1, p. 267.
(2) Abb. Bertrand, Dicáonaire des Religions, vb.* F u né ­
r a il l e s .

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208 LIVBO I, CAPITULO IV

certos costumes portuguezes. No testamento de Jolo


Affonso Barbadão, do dm do seculo xrv, se lé : «e ao
dia de minha sepultura me façam officio de ânado de
trez lições, e ladaynha com sua officiada, mando a
officiar com pão evinho ecandeas segundo se costuma...-»
E mais abaixo accrescenta : «e ao anno saiam sobre
mim com senhas missas officiadas, e mando-as offer-
tar com pão e vinho e candeas, segundo meu testamen­
teiro vir.» (1)
Temos aqui um facto que abaixo desenvolveremos,
é o banquete commemorativo ligado ao culto dos mor­
tos. Ainda boje no Minho se usa este offertorio nos
enterros, levando-se ao abbade da freguezia um aça­
fate com um bacalháo com o rabo de fóra ; a famUia
do morto dá um jantar aos convidados que assistem
ao enterro, e que pagam a leitura de um responso
a que se dá o nome de Clamores. Distribue-se pão
molete por todos os que estão presentes, e o jantar é
em geral composto de feijões, favas ou outros legur
mes. Sobre o sentido d’este uso, escreve Gubernatis :
<0 uso d’este legume (ervilhas) nas ceremonias fúne­
bres refere-se a um antigo costume. Os rituaes vedi-
cos fazem já menção d’elle a proposito dos funeraes;
nas crenças gregas, os mortos deviam levar comsigo
aos infernos legumes que lhes servissem quer para
pagar a passagem, quer para os sustentar durante
a viagem. No Piemonte é ainda usança fazer no 2 de
Novembro, Dia de Finados, uma grande distribuição
de feijões á gente pobre, que resa pela alma dos
defunctos. Os legumes, ervilhas, e feijões são sym-
bolos da abundancia, e póde ligar-se a esta ideia
numerosas legendas indo-europêas nas quaes se faz
menção de favas que se multiplicam por si mesmas
na panella, ou de ervilhas que trepam até ao céo, de
(1) Memórias de D. João i, t. iv, p. 120; Dec. 18.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 209
cujo caule se serve o beroe para ali subir. Os legu­
mes necessários para ser introduzido no reino aos
mortos, e o caule do feijão por meio do qual o beroe
penetra no céo, são variantes do mesmo tbema my-
thico.» (1) Nos costumes populares das ilhas dos Aço­
res (S. Miguel) é de uso comer-se caldo de lentilhas
no Dia de Finados. E com relação ao sentido prolifico
dos legumes, os anexins em que elles se emprejgam
têm sempre um intuito affrontoso. Assim: Vae á
em quanto a ervilha enche, é uma injuria, tanto como
Aboborai é uma imprecação de insulto; Pagar as
favas é uma ameaça popular.
Á distribuição do molete,no Minho,
Pademorts da Catalunha, segundo escreve Labròs; (2)
no banquete funerário da Catalunha usa-se o grão de
bico ou gravanços. Na Italia (Monferrato) e na Grecia
moderna, dá-se pão aos pobres nos enterros, como
descreve Ferraro. (3) No Itinerário de Rozmital, em
1465-1467, vem descriptos os seguintes usos fune­
rários portuguezes, observados em Thomar: «Ha tam­
bém ali esta costumeira: morrendo alguem, levam
para a egreja v i n h o c, arne, pão e outras
parentes do morto acompanham o funeral vestidos de
roupas brancas próprias dos enterros, com capuzes á
maneira de monges, com o qual vestuário se vestem
de um modo admiravel. Aquelles, porém, que são
assalariados para carpirem o defuncto vão vestidos
com roupa preta, e fazem um pranto como os d’aquel-
les que entre nós pulam de contentes ou estão ale­
gres por terem bebido.» Na Ordenação Manuelina,
(liv. v, tit. 33, § 6) prohibe-se os Vodos de comer e
beber, permittindo-se os banquetes funerários: «Po­
rém nos luguáres onde costumam comer quando
(1) Gubematis, Mythologie zoologique, 1. 1, p. 177.
(2) Rivista di Letteratura popolare, de Sabatini, p. 53. Roma.
(3) Ibidem, p. 151.
14
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210 LITRO I, CAPITULO IV

levam os finados, o poderám fazer, e poderám fazer


sem pena alguma, nan comendo dentro do corpo das
Igrejas.» (Ib., § 7.) Em uma memória da Peste grande
de 1569 se lé sobre este costume: «mas nem esta
diligencia bastou para deixarem de tomar muitas pes­
soas os seus mortos ás costas e il-os sepultar até o
campo da forca, que tambem sagraram, onde também
davam as offertas aos qm
eniosue em sua santa
cencia iam vèr, o que fazia pasmar.» (1) Nos costu­
mes antigos da egreja franceza acham-se tambem as
crianças intervindo nos ritos funerários: «Na egreja
de S. Quentin, durante o ofiQcio da noite, as crianças
do povo percorriam as turmas dos fieis pedindo a
esmola dos mortos, sacudindo bacias de cobre, que
enchiam de pequenas moedas.» (2) Em Coimbra as
crianças tomam parte nas cerimonias tradicionaes
da commemoração, pedindo com grande algazarra
pelas portas. Falando dos Bodivos, ou refeição, jantar
ou comedoria, que se dava aos pobres pelas almas
dos defunctos, escreve Viterbo: «Nas províncias do
Minho, Beira e Traz os Montes ainda se não esqueceu
inteiramente a disciplina das cêras e (assim
chamam hoje as oblações e offertas) pois não só quando
morre alguem levam de casa do defuncto suas offer­
tas de céra,pão, vinho e outras cousas, aos Parochos
segundo os costumes da terra; mas tambem durante
o anno, nos domingos e dias festivos se offerecem
por devoção, picheis ou frascos de vinho, e certos pães
que põem em uma toalha estendida sobre a sepultura
do defuncto e uma vela accesa. Então resa o parocho
um responso pelo tal defuncto, e faz recolher a Obrada.
A esta ceremonia chama-se Ementar, talvez pela cor­
rupção da palavra Memento, com que principia o re-
(1) Ap. Ribeiro Guimarães, Stmm. de varia Historia, t. n,
p. 169.
(2) Reme de VArt chrétien, 1.1, p. 820.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 211

sponso.» (1) João Pedro Ribeiro, tambem consignou


estas observações : «É nos enterros, que nas aldeas
tambem se notam praticas não menos ridiculas que
supersticiosas : em algumas a o parocho
é conduzida por um homem, diante do mesmo en­
terro, embrulhado em um capote e chapéo desabado,
levando uma canna levantada, e n’esta espetada uma
laranja em que vae enterrada a offerta em dinheiro.
Em outras é a offerta conduzida por uma mulher, que
tenha a circumstancia de se chamar Maria, e ser erra­
da, isto é, ter tido filhos que não sejam de matrimo­
nio. Em outras a offerta, que se compõe de pão, vinho,
e um cordeiro vivo, de tal forma se arruma em uma
canastra, que se observa a etiqueta de se poderem
vêr as pernas amarradas do cordeiro, dispondo-se
para isso a toalha que cobre a mesma canastra.» (2)
No banquete funerário antigo da peninsula, comia-se
um anho, ou cabrito de um anno, d’onde veiu o di­
zer-se que está de enojo ou anejo a familia do morto.
Em 1843, escrevia-se no Panorama, enumerando-se
as superstições vivazes do povo: «Finalmente, nos
lobishomens, agouros, encantamentos e sortes nas
offertas de pão, vinho, e gallinhas, que vão na frente
dos saimentos representando ao vivo as comezainas
da antiguidade, n’isto e no mais que se pratica com
tanto descaro, particularmente nas aldeas, desejamos
vêr descarregar a espada da illustração, perseguindo
a justiça os embusteiros como fomentadores da idola­
tria, contra os quaes não faltam leis, etc.» (3) Em
Ois da Ribeira, juncto de Agueda, a familia do morto
paga ao parocho um carneiro se o fallecido é homem,
e uma gattinha, se é mulher ; aqui vèmos uma dis-
(1) Elucidário, t. r, p. 139. Ed. Innocencio.
(2) Reflexões históricas.
(3) N. P. de Sousa Moura (Pan., t. vn, p. 408.)

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242 LIVRO I , CAPITULO IV

tincção entre as offertas descriptas por João Pedro


Ribeiro e Sousa Moura. A marcha do saimento tem
tambem seus ritos especiaes: «Em Basto (Minho)
quando um defuncto tem de atravessar a ponte para
ser enterrado na freguezia limitrophe, o seu padre
acompanha-o até ao meio da ponte. Ahi pousa-se o
corpo. Todos os que o acompanham, parentes ou ami­
gos (só do sexo masculino) levam punhados de areia
fina, e cada um por sua vez atira a areia ao rio, di­
zendo:— F... (nome do morto) tantos anjos te acom­
panhem para o céo, como areias caem na agua.— Ao
atirarem as areias tapam os ouvidos de modo que n3o
ouçam o barulho da queda na agua. Em seguida o
parocho da outra freguezia, que vem do lado opposto
da ponte, levanta o cadaver e condul-o á egreja.» (1)
Os anojados tambem praticam actos especiaes : «Em
Paraduça, ao pé de Leomil, o dorido fica um mez com
a camisa suja no corpo. No fim d’este tempo vae o
povo acompanhal-o á missa.— Em Gondifellos (Fama-
licão) o dorido fica um mez sem fazer a barba.» (2)
«E costume n’esta ilha, (do Maio) quando morre
alguem, começar logo o choro (guisa) como na maior
parte das ilhas do Archipelago de Cabo Verde ; porém,
n’esta tem mais o apparato da esteira, a qual se con­
serva por sete ou quinze dias, conforme os haveres
do espolio. A festança ou funeral consiste no seguinte:
A um canto da casa, em completa escuridão, jaz a
viuva, embiocada, coberta com um panno pela cabeça,
emquanto que as visitas (que são numerosas) jogam
a bisca, no centro da casa, sendo a importância da
perda paga em padre-nossos em frente de um imper-
feitissimo crucifixo ( S.Mand). A casa
é mais que o rendez-vous, de moços e moças, e em
(1) Leite de Vasconcellos, rTp. 243.
(2) Ibidem, p. 242.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 243

noites de reza não é raro encontral-os em colloquios


amorosos. No ultimo dia do nojo, ha a verdadeira
esteira, grande festa, cnjo menu é cabra, cherem,
abobora, e a nunca esquecida aguardente, que sem
ella não ba festa possivel.» (1)
«Os enterros dos fieis faziam-se (em Nisa) com grande
apparato: nas classes pobres, iam os parentes do fi­
nado em roda da tumba com muitos prantos e alari­
dos acompanhando-o até á sepultura, onde soltavam
grandes e descompassados gritos, recitando os seus
louvores, e fazendo um minucioso relatorio de suas
prendas e virtudes; e d’ali voltavam tão sentidos e
ennojados, que se mettiam em casa, chorando no
maior recolhimento; e d’ella não sahiam sem passa­
rem nove dias para os homens e trinta para as mulhe­
res ; e as portas e janellas da casa, onde o defuncto
habitara, conservavam-se rigorosamente fechadas por
um anno inteiro: e em todo aquelle período de rigo­
roso lucto, nem recebiam pessoa extranha, nem assis­
tiam aos officios divinos; o que foi severamente cen­
surado e prohibido no anno de 1708 pelo bispo D. Do­
mingos Barata.
«Nas classes ricas não ia a familia acompanhar o
féretro, nem pranteavam com tanto estrondo a sua
dor e amargura, mas pagavam a trez ou quatro mu­
lheres, que vestidas de preto o rodeavam e seguiam
até á sepultura gritando e chorando; e depois no
setimo dia collocavam-se sobre ella durante as exe-
quias, que se lhe faziam, recitando-lhe elogios, no
meio de grandes prantos e gemidos... Mas porque ellas
interrompiam os cânticos sagrados, e desviavam a
attenção dos espectadores do verdadeiro fim que alli
os levava, foram tambem severamente prohibidas pelo
referido prelado no mesmo anno de 1708; mas era
1) Almanach de Lembr. para 1877, p. 263.

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214 LIVRO I, CAPITULO IV

tal a sympathia popular por este aso, que continuou


por muitos annos, ainda depois da prohibição...
«Hoje, na classe indigente e artista e nos lavrado­
res ainda, as pessoas do sexo masculino acompanham
seus parentes e mulheres até á sepultura, e estas em
casa fazem seus prantos em voz alta e sonora, àsr
vezes com tal incompetência e extranheza, que mais
excita o riso que o choro; por isso tambem aquelles
que sabem chorar os seus defunctos adquirem fama
e reputação, e são invejados e conhecidos, e quando
os tém em casa, ha grande concorrência para os
ouvir e desfructar.» (1)
Na ilha da Madeira, nos Louraes, pequenas povoa­
ções do concelho da Calheta, quando morre alguma
criança amortalham-na de branco, com laços de fita,
collocam-na sobre uma meza, e convidam os visinhos
para virem dansar ao anginho, tocando viola e bai­
lando até ao outro dia, em que levam a criança a
enterrar. (2) O dr. Mattos e Moura, descrevendo o
facto extraordinário das despmadeiras de Nisa, falia
tambem da satisfação com que ficam naquella villa
quando morrem os filhos em qualquer familia. (3)
Depois das praticas correspondentes ao fallecimento
e enterro, segue-se o systema de ritos commemora-
tivos annuaes, que são o resto do culto dos 3
admittido pela egreja sob o nome de Fieis defunctos.
Esses ritos consistem tambem em cantos, dansas e
banquetes sobre as sepulturas. As cantigas sobre as
sepulturas e os banquetes fúnebres eram as Dadsila
gaulezas ( Dihsila,segundo acorrecção de Belloguet,)
condemnadas pelas Capitulares de Carlos Magno, e
que segundo Gregorio de Tours existiam no Auvergne,
degeneradas em ritos mágicos, da mesma forma que
(1) Dr. Mattos e Moura, Mem.hist. da Villa de Niza, L i, p. 123'
(2) Almanach de Lembranças para 1870, p. 287.
(3) Mm. histórica da Villa de Niza, L u, p. 135.

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ESTADOS SOCJAES REPRESENTADOS, ETC. 215
na Allemanha do secnlo xi. (1) Este rito commemo-
rativo acha-se entre os Hebreus, como se vê do aviso
de Tobias a seu filho: Panem tuum et vim m tuum
super sepulturam justi constitue. (Tob., iv, f. 18.) Na
Egreja primitiva conservou-se o costume, como se vê
pela phrase de Santo Agostinho que recommenda
acerca dos banquetes funerários: Non sint sumptuosae.
Importa bem definir o caracter d’este culto com cara­
cter publico.
Os banquetes sobre as sepulturas apparecem entre
os povos scandinavos como formando parte das suas
festas religiosas; Agostinho Thierry deriva d’este uso
os banquetes communs das Irmandades da Edade-Me-
dia, em que se renova a liga defensiva: «o terceiro
copo era bebido pelos parentes e amigos cujas sepul­
turas, notadas por monticulos de relva se viam aqui
e ali na planicie. O nome de amisade, minne, era
dado algumas vezes á reunião d’aquelles que offere-
ciam em commum o sacrifício, e de ordinário esta
reunião era chamada ghilde, isto é, banquete pago em
commum, palavra que significava tambem associação
ou Confraria, porque os co-sacrificantes promettiam
por juramento defenderem-se uns aos outros e de se
coadjuvarem como irmãos.» (2) As saúdes com vinho
são ainda hoje um signal de amisade, bem como os
bodos nas festas dos santos, são o vestígio do culto
dos heroes, da antiga festa da ghilde. Agostinho Thierry
descreve a transformação do costume, que na penín­
sula se liga á existencia das Irmandades: «Os Germa­
nos, nas suas migrações levaram este costume por
toda a parte; conservaram-o depois da sua conver­
são ao christianismo, substituindo a invocação dos
Santos á dos deuses e heroes, e ajuntando certas
(1) Ethnogénie gauloise, 1.1, p. 216.
(2) Considérations sur l’Hist de France, cap. 6.

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216 LIVRO I, CAPITULO IV

obras pias aos interesses positivos que tinham sido o


objecto d’este genero de associações. De resto, a in ­
stituição original e fundamental, o subsistiu;
o cópo dos bravos,bebeu-se em honra de algum s
reverenciado ou de algum patrono terrestre; o dos
amigos bebeu-se, como outr’ora, em commemoração
dos mortos por alma dos quaes se resava reunidos
depois da alegria do festim. A gbilde christã teve
muito vigor entre os Anglo-Saxões, e vê-se apparecer
na Dinamarca, na Noruega e na Suecia, pela extincção
do paganismo.» A historia das associações fraternaes,
das Germanias, A r i m a n i a s ,lrman
em que a liberdade individual se defendeu contra a
prepotência do feudalismo, está ligada a este costume
social, que ainda persiste nos usos funerários, mas
já sem consciência do seu intuito. É preciso portanto
separar os Obradorios ou blaOque o pov
enterros, officios, exequias e trintarios (ex. Villa de
Garros, etc.) dos banquetes sobre as sepulturas, que
correspondem a uma phase social mais elevada, como
vimos pelo uso scandinavo e germânico.
Este caracter achamol-o bem definido no importan­
tíssimo documento das Seguidilhas cantadas pelo povo
sobre a sepultura do Gondestavel; no nosso Cancio­
neiro popular transcrevemol-as pela seguinte ordem:
Seguidilha que as mulheres de Lisboa cantavam pela
Paschoa florida na sepultura do Condestavel; — Can­
tigas que os moradores do RasteUo, (Belem) cantavam
na segunda outava do Espirito Santo na sepultura do
Condestavel; — Cantigas dos moradores de Socavem no
anniversario do Condestavel. Eis um pequeno excer-
pto, de um dos cantos que era pretexto de uma dansa
religiosa:
Guia só , e depois todos:
No me lo digades, none,
(3 Que Santo es el Conde.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 217
Guia só : O gram Condestabre
Nun’Alves Pereira,
Defendeu Portugale
Com sua bandeira,
E com seu pendone.
To d o s : No me la digades none,
Que santo es el Conde. (1)
Parece-oos que a prohibição nos índices Expurga-
torios da Oração do Conde se refere a estes cantos
inapreciáveis pelo seu valor ethnologico e social. Com
valor commemorativo ainda se usa na Russia o canto
do Pesni pogrebalniae o Nad-mertrinsi:«Cantam-n
cada domingo, dnrante nm certo tempo sobre as
sepnlturas dos sens parentes mais proximos, e depois
durante os grandes dias de festa por algum tempo
ainda. Mas o que é mais notável, é que cada vez que
vão visitar os tumulos dos seus parentes, põem em
cima pequenos bolos, á maneira das colyva dos gregos
modernos e dâ feralia e salicemium dos antigos; acom­
panham as suas offerendas da conclamatio ou lamen­
tações usadas na antiguidade.» (2) As dansas fúnebres
russas ou Trisna, são como as que se usavam entre
nós na sepultura do Condestavel. É notável a persi­
stência dos cantos funerários, como as Dadsila, e com
o caracter de irmandade, como existe em Santarém:
«Durante a quaresma de todos os annos andam nove
homens do campo a cantar de noite pelas portas, pe­
dindo esmolas para as almas. Finda a quaresma, o
dinheiro junto é entregue ao prior para dizer missas
pelas almas do purgatorio. O prior tem que dar no
dia da recepção do dinheiro um jantar aos cantores,
cujo preço sae d’aquelle dinheiro e o remanescente é
(1) Vid. Cancioneiro popular, n.°* 8, 9 e 10. — Sant’Anna,
Chronica dos Carmelitas, 1.1, P. 3.*, p. 466.
(2) Guthrie, Antiquités de Russip. 42;

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218 LIVRO I , CÀPITÜLÒ IV

destinado ás missas. Juntos então todos os nove can­


tam em côro:
Rezemos, que todos rezam
Este bemdito louvado;
Tambem os anjos rezam
Na capella do sagrado.
Oh que bella perfeição
De ouro tão desejado,
Tambem Jesus Christo andou
Nove mezes em sagrado.
«Em seguida separam-se em dois grupos, um de
seis, outro de trez; aquelles postados á primeira porta
cantam cada uma das quadras seguintes, e os outros
repetem postados junto da porta immediata:
Á porta das almas santas
Bate Deus a toda a hora;
Almas santas lhe perguntam:
«Oh meu Deus I que queres agora?»
— Quero que deixes o mundo,
Que venhas para a gloria.
«Oh meu Deus 1 oh meu Senhor,
Ai Jesus I quem me la vira,
Na companhia dos anjos
Tambem da Virgem Maria.
Das almas do purgatorio
É bem que nos alembremos,
Nós havemos de morrer,
Sabe Deus p’ra onde iremos, etc.»
As vozes tornam-se a ajuntar no seguinte côro final:
Nós devemos ir ao céo
Por umas continhas brancas;
Nós somos os devotos
Das bemditas almas santas.
Nós devemos ir ao céo
Por umas continhas de cheiro,

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 219

Em nossa companhia venha


Jesos Christo verdadeiro. (1)
N’este canto ha ainda uma allusão inconsciente ao
rito de atirar pedrinhas,qne são as continhas brancas
Os banqnetes funerários no cemiterio eram ainda usa­
dos em 1872 em Lisboa. Viterbo no Elucidário de­
screve estes banquetes, que se usam nas festas dos
Santos com o nome de Bodos: «O juiz e irmãos de
muitas Irmandades e Confrarias se ajuntavam em certo
dia do anno, e á custa do rendimento d’estas socieda­
des santas, davam aos pobres um abastado jantar de
carnes e outras cousas comestíveis, de que elles me­
smos e outros seus amigos participavam. Muitos em
seus testamentos deixaram grossos legados para insti­
tuir ou manter estes bodos.» (2) Viterbo attribue este
nome de Bodo aos dos banquetes germânicos bodanos,
dados em honra deWodan. Nas antigas associações
mortuarias, a que em Roma se chamavam
ria ou Coüegia compitalitia, entre as quaes se estabe­
leceu a Egreja christã, já existiam estes banquetes
commemorativos com o intuito cultual que ainda con­
servam, bem como na visita aos cemiterios e orna­
mentação das sepulturas, como no Porto e Lisboa,
Catalunha e Sicilia. (3)
Assim como para os povos áricos os mortos apre­
sentavam um caracter sagrado, sendo adorados e vene­
rados pelos gregos com o nome de deuses subterrâ­
neos, e pelos romanos com de deuses manes, e entre
os povos christãos pelo de Fieis defunctos, eram tam­
bém considerados como entidades malévolas quando
se não satisfaziam os ritos commemorativos. A alma
(ï) Ap. Z. Pédroso, Positivismo, X. iv, p. 408,
(2) Elucidário, 1. 1, p. 140 Ed. Inn.
(3) Rivista de Letteratura popolare, p. 47.

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220 LIVRO I, CAPITULO IV

penada é esse sêr malévolo, que anda errante por lhe


não terem cumprido a ultima vontade, ou como entre
os greco-romanos, porque ao enterrarem o cadaver
não se cumpriram perfeitamente os ritos funerários.
Fustel de Goulanges descreve estes dois extremos da
mesma crença na nossa raça: <0 Hindu como o Grego
considerava os mortos como sères divinos que gosa-
vam de uma existencia bemaventurada. Mas, havia uma
condição para a sua felicidade, e é que as offerendas
lhes fossem regularmente' levadas pelos vivos. Se se
deixava de cumprir o sraddha por um morto, a sua
alma saia da mansão pacifica e tornava-se uma alma
errante que atormentava os vivos; de sorte que se os
manes eram verdadeiramente deuses, era só em quanto
os vivos os honravam com um culto.— Os Gregos e
os Romanos tinham exactamente as mesmas crenças.
Se se deixasse de offerecer aos mortos o banquete
fúnebre, immediatamente os mortos saiam de seus
tumulos; sombras errantes, ouviam-nas carpir por
noites silenciosas. Elles increpavam os vivos da sua
negligencia impia, procurando punil-os com doenças,
ou esterilisando os campos.» (1) É este lado malévolo
do culto dos mortos que mais subsiste entre o povo
portuguez, a que se chama medo das almas do outro
mundo. São innumeras as superstições que se ligam
ao passamento, enterro e sufifragio, sob a crença de
um poder malévolo do finado. Transcrevemos aqui
algumas d’essas superstições colligidas por Consiglieri
Pedroso:
cQuando uma pessoa morre, é bom queimar-lhe a
cama, para não voltar a este mundo. (N.°96.)— Ebom
quando uma pessoa está para morrer, abrir a janella
do quarto em que ella está. (N.°* 124 e 294.)— Quando
uma pessoa morre, o seu carnal não volta m ais; mas
(1) La Cité antique, p. 17.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 221

pode apparecer ama sombra oa uma estatua. (N.°588.)


Quando se vae amortalhar um defuncto, se elle está
molle (i. é, sem rigidez) e não custa a vestir, é signal
que leva atraz de si pessoa da familia. (N.° 213.)—
Quando se vae acompanhar uni defuncto, para elle não
lembrar mais, ou a alma d’elle não apparecer, deve
deitar-se-lhe na cova uma mão cheia de terra. (N.° 29
e 589.) — Quando morre alguem, não se devem apa­
gar as luzes que estiverem a alumiar o morto, até que
o corpo chegue á egreja. (N.° 44.)— Segundo algumas
pessoas, quando um defuncto vae para a egreja sem
ser acompanhado por um padre, a alma do fallecido
fica pelo caminho, e anda errante pelo sitio por onde
se perdeu. (N.° 466.) — A alma dos indivíduos que
morrem, apparece ás vezes debaixo da forma de um
cão preto. (N.# 447.)— As almas do outro mundo, se
ficam devendo alguma cousa n’este, e lh’o não perdoam
á hora da morte, tem que vir entre os vivos para o
ganharem. (N.°592.)— Quando lembra uma alma do
outro mundo, deve resar-se-lhe um padre-nosso e di­
zer : Toma lá este, mas não é para avesar. (N.° 95.)
Quando se falia n’alguma pessoa morta, deve dizer-se:
Deus te chame lá, que ninguém te chama cá. (N.° 185.)
— Quando uma criança ao morrer fica com os olhos
meio abertos, morre atraz d’ella a pessoa que mais a
estimava. (N.° 101,)— É bom pregar alfinetes no ves­
tido dos anjinhos (crianças fallecidas em tenra edade)
porque ellas vão pedir pela pessoa que os pregou.
(N.° 654 e 378.)— Quem tem uma ferida, livra-se d’ella
facilmente. Para isso limpa a ferida a um panno, mette
o panno por baixo da cabeça do defuncto, dizendo-lhe:
On fulano ( pelonome) leva-me isto para o outro mund
(N.° 652.) O povo tambem cura as alporcas (escró­
fulas) fazendo-as coçar com as unhas de um morto.
Para que o morto não volte a este mundo, além da
pratica rigorosa de certos ritos propiciatorios, ha tam-
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222 LIVRO I, CAPITULO IV

bem a cerimonia de semear o morto. Lêmos recente­


mente em um jornal da ilha de S. Miguel: «quando
passava para o cemiterio o acompanhamento que con­
duzia o cadaver de Francisco Vicente, saiu á rua uma
mulher trazendo uma porção de cinza, e dizem que
misturada com sal torrado, que deitou por cima do
morto, dizendo estas palavrinhas:
Quando esta cinza embarrelar,
E este sal temperar,
É que hasde ca voltar. (1)
A esta cerimonia chama-se propriamente o bapti-
sado de cinza; para semear o morto é preciso ir atraz
do caixão até ao cemiterio deixando cair escondida­
mente sal misturado com cevada. Quando morre algu­
ma pessoa, que em vida inquietou outra, a que foi
inquietada, tórra tremoço, cevada e sal, moe tudo
junto e acompanha o préstito do defuncto lançando nà
terra, durante o caminho á maneira de quem semeia,
alguns pós, dizendo:
Quando este tremoço nascer,
Esta cevada enrelvar,
E este sal temperar,
Seja quando me voltes
A inquietar. (2)
No Minho espalha-se um alqueire de painço, para
afastar o espirito que vem inquietar alguem; porque
elle como subsiste com um graeiro por anno, fica para
muito tempo occupado.
Uma das crendices do enterro é a ideia da bem-
aventurança ligada ao facto de crescer a terra que
(1) A Republica f e d e r a l ,n.° 135 (anno ni, (
gada (Açores.)
(2) Almanachdo Archipelago açoriano, de F. M. Supico, para
1868, p. 108.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 223

torna a encber a sepultara; nos Cantos populares do


Alemtejo observa-se:
Abre-se uma sepultura
Na terra mais recalcada,
Enterra-se a criatura,
Fica a terra como estava. (N.° 1316.)
Ás vezes a almapenada torna inhabitavel um
ou um sitio qualquer: «Gentes ha, que não duvidam
despender com benzedeiras e impostores todo seu
haver, como se lhe figure que em sua casa anda alma
do outro mundo.* (4) D. João h julgava-se perseguido
pela alma do Duque de Bragança, que elle mandara
executar em Evora em 4483; e o Duque Dom Jayme
ouvia os gemidos da alma de Dona Leonor de Gusmão
que elle assassinara por estúpidas suspeitas de infide­
lidade. Segundo a crença veneziana, catalã e portu-
gueza, as almas fazem-se lembradas puchando pelos
pés aos que estão na cama. (2)
No direito portuguez, sob o titulo de instituição da
alma por herdeira, chegou a influir este terror deter­
minando um culto propiciatorio, sendo extincta essa
instituição pelas leis de 25 de junho de 4766 e de 9 de
septembro de 4769. As almas que vem a este mundo
fazem um ruido como o de correntes arrastadas, ou
enfronham a roupa de algumas pessoas, sendo então
necessário requerd-as,para sesaber qual é a sua von­
tade ; «logo que apparece um espectro a alguem deve
gritar-se-lhe: Da parte de Deus te requeiro digas o que
queres, porque se hade fazer, podendo ser.— Não se
dizendo isto, principalmente as ultimas palavras é muito
perigoso; póde a pessoa viva ficar com a alma do morto
(1) Sonsa Moura, Panorama, t vn, p. 408.
(2) Sabatini, Rivista di Letteratura popolare, 1.1, p. 48.

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LIVRO I, CAPITULO IV

até se cumprirem as ordens do outro mundo. (1) As


almas dos mortos tambem costumam cor­
pos dos vivos, a que vulgarmente se chama ter esprito,
e que corresponde aos phenomenos pathologicos do
bysterismo e da epilepsia; quando falia uma em
alguem, é para pedir o cumprimento de alguma pro­
messa, e crè-se que ella abandona o corpo na forma
de uma pomba. '
O poder dos mortos acha-se sobretudo nas evoca­
ções, como vemos entre os hebreus, na evocação de
Samuel, ou na Jlliada na apparição da sombra de Pa-
troculo. A evocação é um processo magico, empregado
para conhecer o futuro ou para exercer vinganças; é
ainda empregado na bruxaria portugueza; nos roman­
ces e lendas populares Santo Antonio evoca a alma do
morto para confessar quem foi que o matou. Ha fór­
mulas magicas para estas evocações.
No processo de Luiz de la Penha (Inquisição d’Evora,
de 1626) vem a seguinte indicação para chamar uma
alma: «Por-se-ha huma pessoa em pé huma hora com
um rollo acceso diante de si, de cera; hade resar
trinta e trez crédos e trinta e trez ave-marias, e trinta
e trez padres-nossos, e antes que rese isto, dirá d’esta
maneira:
Deus he luz,
Luz he Deus
Requiescant in pace
Pefos fieis de Deus.
E isto trez vezes; depois hade dizer isto:
Alma santa desamparada
a este mundo sejas tornada
e de Deus sejas desconjurada;
(1) Consiglieri Pedroso, As almas do outro mundo. No Posi­
tivismo, t. iv, p. 387.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 22 5
Por aqaelles desejos, ardores e fervores
que tendes de vêr a Deus nosso senhor,
vos peço me venhaes falar,
me respondeis ao que souberdes;
e isto que aqui reso .•
nam vol-o ouereço, nem vol-o dou
até me não virdes falar;
e se me vierdes falar
dar-vos-hei tudo
o que atégora resei,
e me pedirdes: en.
am
«Isto é para saber o que está por vir, e para sa­
ber se está uma alma em bom logar, ou onde estará,
e isto ha-se de fazer todas as noutes até que a alma
lbe venha fallar e apparecer.», (1) Em Guimarães, no
adro da Egreja do campo da Feira ajuntavam-se ainda
ha pouco varias mulheres chamando as almas do pur­
gatório. (2)
Alem «restas apparições, ha outras formas com que
apparecem os mortos, e que dão logar a um vasto
cyclo de lendas e contos das almas do outro mundo;
em todas ellas predomina o caracter malévolo: «O
balborinho(redemoinho de vento) são as almas perdi­
das «pie não puderam entrar no céo, por deverem
restituição aos vivos. O poVo foge de ser apanhado
por elle (o balborinho) mas vae-o seguindo e gritando
sempre. O grito mais favorito é : Yae-te para «piem
te comeu as leiras! — Quando o redemoinho se des­
faz e começam a cair as palhas que elle sorveu para
o alto, seguem-se com muita attenção estas palhas,
e onde ellas cáem sabe-se logo que uma das almas
perdidas fez em vida roubo n’aquelle campo. (Mi­
nho.)» (3) A lenda de D. João tem uma parte popular
(1) Apud Positivismo, t. m, p. 203.
(2) Ibidem, t. iv, p. 399.
(3) Ibid., t. iv, p. 391; na Beira chama-se-lhe besbrinho.
15
r^ r^ r\\r> Original from
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226 LIVRO I, CAPITULO IV

commum a muitos paizes da Europa, relativa ao ban­


quete para que foi convidado o morto; em Portugal
é muito geral a crença conhecida pelo nome de Pro­
cissão dos defunctos,da qual apresentamos uma ver-
slo do Algarve no conto da Mulher curiosa, (1) e se
acham outros na forma de lenda em Ponte de Lima,
Guimarães, S. Christovam de Mafamude, Yalença e
Galliza: «Uma pessoa antes de morrer já se vê sete
annos antes na Procissão dos defunctos. A Procissão
dos defunctos faz-se todos os dias ás trindades; nin­
guém a vê senão as pessoas que têm uma palavra de
menos no baptismo. E estas são as que sabem as pes­
soas que hão de morrer, porque as vêem na procis­
são.» (2) Uma das manifestações das almas penadas
é uma ave imaginaria, que de sete em sete annos se
ouve piar no Alemtejo e Algarve, a que se chama a
Zorra da Odeloca, tornando-se o seu grito mais p er­
ceptível á meia noite e ao pino do meio dia. Como as
crenças no poder malévolo dos defunctos subsistem no
seu vigor entre o povo, não acharia limites este estudo
se tivessemos simplesmente em vista uma compilação
material; para a recomposição de um systema cultual
tão importante, e das noções psychologicas animistas
bastam-nos os factos que ahi ficam coordenados.
Terminando este estudo dos ritos funerários portu-
guezes accrescentaremos alguns factos sobre o assas­
sinato voluntário dos moribundos, mais vulgar e per­
sistente do que pensavamos.
Em uma aldêa do concelho de Tondella, estava uma
velha, alcunhada de bruxa, nas vascas da morte; como
se prolongasse o paroxismo, disseram as visinhas:
«que não esperassem que ella morresse antes de lhe
íl) Contos tradicionaes do Povo portuguez, 1.1, p. 148.
(2) Pedroso, ibidem, p. 395.— Parece-nos ser esta a origem
popular da grande tradição da Dansa da Morte, idealisada na
pintara, na poesia e no drama medieval.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 237
darem com o páo da cruz, porque, diziam ellas, ao
contacto do páo sagrado, se afastava o demonio, que
n’aque)la hora tentava de novo sujeital-a ao seu domi-
nio... Com effeito, dentro em pouco, nove pancadas,
capazes de produzirem o milagre, lhe eram applica-
das com o páo da cruz, por uma vigorosa pythonissa
(analoga á despenadeira de e passados alguns
minutos a pobre succumbia, ou victima da pancadaria,
ou porque a sua hora tinha soado I Estes casos e que­
jandos dão-se por aqui (Viseu) ainda a cada passo.» (1)
O uso geral primitivo foi-se particularisando ás pes­
soas que tinham pacto com o diabo, cujos paroxismos
eram demorados. Na ilha de S. Miguel, o que tem
pacto não pode morrer, á espera de que alguem queira
acceitar os seus poderes; no estertor julgam que essa
pessoa diz: — Quem péga, que eu largo t E preciso que
alguem diga: — Péga aquella tranca da portal para
que ella possa morrer. Aqui ainda figura a tranca,
mas não já de um modo tão directo como nos arredo­
res de Viseu. Em uma Memória Dos enterros precipi­
tados e seus inconvenientes, publicada pelo dr. Assiz,
em 1837, lè-se este facto explicável pela tradição:
«Entre nós, os indivíduos que parece haverem exha-
lado o ultimo suspiro, são logo escandalosamente aban­
donados ; e é pratica geral tirarem-lhes o travesseiro,
ainda quando agonisantes, circumstancia que pode
contribuir para augmentar a congestão cerebral, já
determinada para a cabeça.» (2)
(11 Almanach de brançis para 1865, p. 213.
Lem
(2) Annaes da Sociedade Litteraria portuense, n.# 2, p. 57.
(1837). Na obra do dr. Mattos e Moura, vem esta importante
revelação dos costumes de Niza: «quando alguem está por
muito tempo nos transes da agonia sem poder acabar, vão cha­
mar certas mulheres mais desembaraçadas e resolutas, ás quaes
chamam despenadeiras, que acabam de a matar e depenar, jul­
gando praticarem um acto de grande caridade poupando-lhes
os soffrimentos e agonia.» Op. cit., t. ii, p. 135.
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228 LIVRO I, CAPITULO IV

As relações entre os ritos fnnerarios e os nnpciaes,


que observámos nos anexins populares, principalmente
n’este que está ainda em todo o seu vigor : «O casa­
mento e a halrtm
o>no céo se talha» acham-se mani­
festas em certos costumes provinciaes : «Em muitas
freguezias ruraes de Traz os Montes existe desde tem­
pos immemoriaes a costumeira de tocar a finados quando
algum casa.* (1)
Formas populares primitivas do Casamento. — 0
estudo das complicadas formas do casamento entre os
povos selvagens, e ainda entre as raças superiores
que iniciaram a civilisação humana, como os semitas
e os árias, tem sido largamente desenvolvido pelos
ethnologistas sob o ponto de vista da comparação,
mas bem pouco emquanto á relação, d’esses ritos e
cerimonias com os estados sociaes. É este ponto de
vista social o esboço de coordenação synthetica pelo
qual se devem relacionar tão complicados elementos,
alguns dos quaes persistem desde a vida selvagem
até ás civilisações mais elevadas. Sob esta ideia es­
creve Lubbock: «O casamento por comptio entre os
Romanos indica uma epoca na sua historia em que se
comprava habitualmente as mulheres, como tantas tri­
bus selvagens o fazem ainda boje. O simulacro do
rapto da mulher na cerimonia do casamento, entre
todos os povos, não se pode explicar senão pela hy­
pothèse, que o rapto das mulheres era outr’ora a triste
realidade.» (2) Estas duas formas do casamento ainda
existem em Portugal, o que nos não espanta em rela­
ção da sua universalidade ; o casamento pelo rapto
ou captura acha-se usado na Australia, entre os Papus
e Esquimaux, nas Philippinas, na China, e entre os
(1) Almanach de Lembranças para 1860, p. 299.
(2) Origines de la a sl ,p. 2.
ovitC
n

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 229
Romanos e os povos Slavos; o casamento pela com­
pra ou dotepratica-se na Cafraria, no Gabon, Tima-
nis, entre os Bongos, na America, na Mongolia, na
China, e existiu na Grecia e em Roma. (1) Por isto
se vè que é immensamente necessário recompôr com
estes elementos os estados sociaes primitivos, de que
elles são a expressão actual, ou tambem, como diz
Lubbock: «as reliquias das edades passadas.» Segui­
remos este processo racional na coordenação dos cos­
tumes portuguezes. Partindo do estado presente da
sociedade até nos remontarmos ás suas crustas ou
constituição primitiva, vêmos com a forma de nação
coexistirem os vestígios da organisação da tribu, e do
isolamento egoista do familismo. As relações sexuaes
do homem com a mulher transformaram-se successi-
vamente e aperfeiçoaram-se moralmente á medida que
a sociedade se elevou do estado familista ao estado
de tribu, e d’este ao estado de nação.
A forma mais remota da organisação social é aquella
em que a aggregação da familia se estabelecia pela
vida sedentaria da mulher, isto é, em o regimen do
parentesco derivado da Maternidade. Este estado de
organisação social é conhecido em ethnographia pelo
nome de Matriarcado, persistente nas raças inferio­
res da Africa, entre os povos de raça amarella, como
no Thibet, na China, no Peru, e entre os Cossacos,
e mesmo em povos áricos como na Grecia. Lenor-
mant determina no Genesis, uma allusão evidente a
este regimen social do Matriarcado, no odio entre a
Serpente (symbolo das populações agrícolas) e a
da mulher. (2) Na linguagem popular conserva-se na
phrase Filho da mãe um caracter insultuoso, attri-
buido a esse estado de um hetairismo inicial corre-
(1) Letoumeau, Sociologie, p. 311 a 354.
(2) Yid. o nosso Systema de Sociologia, p. 332.

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330 LIVRO I, CAPITULO IV

spondente a nm culto chtoniano ou de prostituição


sagrada, de que temos abundantíssimos vestígios nas
nossas superstições populares. Este culto celebrava-se
nos valles pantanosos, cujos templos eram
lustri; (1) é em relação com estas formas cultuaes,
que o filho sem pae conhecido se chamava Filho das
hervas, e a mulher da sociedade hetairista hervoeira.
Na canção da Engeitada, do Algarve, acha-se :
Eu não tenho pae, nem mãe,
Nem n’esta terra parentes;
Son filha das pobres
Neta das aguas correntes. (2)
Tambem no Elucidário traz Viterbo um trecho de
um documento de Thomar de 4388, em que se cita a
palavra hervoeira como uma injuria : «E se o confrade
chamar á confrada Hervoeira... pague v soldos á Con­
fraria.» Viterbo na sua explicação accrescenta : «Ainda
hoje dizemos: filho das hervas, aquelle cujo pae se
ignora, por sua mãe tratar deshonestamente com mui­
tos.» Este estado social do Familismo hetairista, apre­
senta duas formas geraes de aggregação, a que resulta
da Promiscuidade, e a que deriva da preponderância
da mulher no regimen da Gynecocracia. De ambas estas
formas rudimentares temos abundantes vestígios con-
suetudinarios. Do estado espontâneo da Promiscuidade,
tejnos costumes praticados pela união temporaria,
pela prostituição religiosa, e pela consideração da vir­
gindade como ignóbil.
No casamento symbolico no Bouro acha-se a consa­
gração do costume da união temporaria : «Nos montes
criam-se muitos gados que são guardados por moços
(1) J. Baissac, Origine de la Religion, 1.1, p. 143.
(2) Na sua linguagem popular diz Antonio José : «já me não
basta ser um Saramago nascido das ervas...» Operas, 1 1, p. 320.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 231

e moças, que se desregram por causa das occasiões


próximas; e por isso quando se effectua algum casa­
mento, no acto de irem receber-se vem um dos prin-
cipaes parentes do noivo á porta do sogro, onde está
um outro dos principaes parentes da noiva, e tirando
ambos os cbapéos, pergunta o da casa ao de fóra:
— Que procuraes ?
«Responde este: — Mulher, honra, fazenda e di­
nheiro.
«Logo o de dentro toma a esposada pela mio, e
apresentando-lh’a, diz:
Ella cabras guardou,
Sebes saltou,
Se em alguma se espetou,
È a quereis;
Assim como é,
Assim vol-a dou.
«Dito isto dirigem-se todos á egreja e celebra-se o
matrimonio; e nlo pode haver desunião, nem questão
alguma ainda que haja defeito, porque ella se vale da
força d’aquellas palavras trocadas entre os parentes
de um e outro, que são um baptismo que lava de
todas as culpas passadas.» (1) Esta fórmula portugueza
apparece em um refrem hespanhol com o mesmo sen­
tido:
A Castilla fué,
De Castilla volvió,
Barranco saltó,
Garrancho le entró,
Tal cual está
Tal te la doy. (2)
É importante a circumstancia de referir-se este
(t) J. A. d’Almeida, Dicc. ábrev. de Chorograpkia, 1.1, p. 157.
(2) D. Joaquin Costa, Poesia popular , p. 54.

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232 LIVRO I, CAPITULO IV

costume á vida pastoral. Em uma cantiga popular ha


uma referencia ao culto das p na for
da dansa com que se faziam os casamentos ou unioes
temporárias:
Trez voltas dei ao penedo
Para namorar José,
Namorei-o em trez dias,
Valen-me a mim dar ao pé.
É evidentemente um costume das raças ante-histo-
ricas da Europa; Girard de Riale cita trabalhos de
Piette e de Lacaze sobre as superstições relativas aos
monumentos megalithicos, nas regiões pyrenaicas, em
que as rochas phalicas conservaram a confiança dos
aldeões: «tal é a pedra de Pourbeau, á sombra da qual
as uniões entre raparigas e rapazes se concluem antes
de se apresentarem ao maire ou ao cura, em volta da
qual se dansava na noite de terça feira gorda em uma
dansa obscena; tal é tambem o menhir de Bourg d’Ou-
vil, que as mulheres abraçam e tocam de um certo
modo para serem fecundas.» (1) O antigo casamento
portuguez era feito religiosamente e chamava-se de
Recabedo, e tinha uma forma civil, chamada de Marido
Conoçudo; conserva-se porém nos costumes uma forma
natural, a que se chamava de Morganheira. D’este
casamento, em que não era conhecido o marido, e era
de caracter temporário, diz Yiterbo: «Entre as pes­
soas mais distinctas e nobres, e talvez reaes, se acha­
ram estes matrimônios, que aqui se oppõem ao ma­
rido conozudo; pois n’elles se occultava o marido e
só por acaso se vinha a conhecer. Estes eram os casa­
mentos celebrados, como diziam, à morganheira...
— Eis aqui os matrimônios , que entre nós
francamente grassaram até aos fins do seculo xv.» (2)
(1) Mythologie comparte, 1 1, p. 173.
(2) Elucid., vb.° Marido conozudo.

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ESTADOS SOGIAES REPRESENTADOS, ETC. 233
No casamento à morganheira conservava-se o paren­
tesco pelas mães, e o direito civil reconheceu pela
avomga, esse parentesco invocado na compra dos bens
tanto por tanto. Nas Constituições dos Bispados, de
Portugal, prohibe-se a cohabitação antes do casamento,
o que leva a inferir pela sua persistência, a pratica do
primitivo costume hetairista. Em uma breve commu-
nicação ao Congresso anthropologico de 1880, traz o
sr. Pedroso: «Asseguraram-me que em um sitio cha­
mado a Magdalena, nos arredores do Porto, alguns
noivos observam ainda o uso de cohabitarem antes do
casamento. Mas onde o costume se apresenta sob uma
forma verdadeiramente característica, sem sombra de
duvida, quanto á sua importância tradicional, é em
uma pequena aldeia, nas cercanias de Lisboa. Esta
aldeia está comprehendida na zona ethnographica co­
nhecida sob o nome de Saloios, cuja população con­
serva um grande numero de usos antigos e interes­
santes no mais alto gráo. As raparigas que chegam à
edade de dezeseis annos, pouco mais ou menos achan­
do-se ainda virgens, são ali objecto de mofa conti­
nuada, a ponto que pára fugirem a esta vergonha, se
entregam com grande facilidade ao primeiro que as
requesta, e estas uniões ephemeras e pouco recom-
mendaveis em quanto á pureza dos costumes,' conti­
nuam de ordinário até ao momento em que ellas se
acham gravidas. Então uma nova forma de viver
começa para ellas, esquecendo o seu passado aquel-
les que se julgam o pae da criança, desposando-as.
Pela sua parte ellas tornam-se em geral honestas e
passam d’ahi por diante por boas mulheres.» A ideia
da virgindade ignóbil é commum a certos povos selva­
gens como os Sakkalaves de Madagascar; na lingua­
gem popular temos ainda uma locução affrontosa que
se diz á mulher que não teve relação sexual: Ficou
para tia.

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234 LIYBO I , CAPITULO IV

A gynecocracia,conhecida vulgarmente pela tradição


das Amazonas, é um esboço de regimen social pro­
vocado pela estabilidade das mulheres e pela depen-
dencia dos filhos por effeito de uma morosa criação.
Lubbock conheceu a importância d’este facto natural:
«A força do laço de parentesco derivando do aleita­
mento pela mesma ama, tal como existe nos monta-
nbezes da Escossia, é para nós um exemplo familiar
dos laços de parentesco bem differentes d’aquelles que
existem entre nós.» (1) Em Portugal, ainda se reco­
nhece este parentesco por via da mesma ama, cha-
mando-se Collaços ou irmãos de leite aquelles que foram
amamentados pela mesma mulher, embora de classes
diversas. (2) Do regimen da gynecocracia, ficaram na
civilisação humana os seguintes costumes: a
dria, ou casamento de uma mulher com muitos ho­
mens, a escolha do marido pela mulher, e o facto de
caracter essencialmente religioso no celibato da mu­
lher. A polyandria tornou-se repugnante, e ha apenas
uma reminiscência affrontosa no Nobiliário e no Can­
cioneiro de Garcia de Resende na palavra Burreüa; no
direito anglo-saxão chama-se Birele a mulher que en­
che os copos no banquete para os homens beberem,
e o symbolo da offerta do copo era o signal da esco­
lha do marido feita pela mulher. Entre os Celtas Li-
gurios, as raparigas é que escolhiam os maridos, como
se sabe pela lenda da fundação de Marselha, revelando
ellas a preferencia no fim do banquete dado pelos paes
aos pretendentes. (3) Achamos esta forma de casa­
mento completamente conservada em Vermoil, descri-
(1) Origines de la Civilisation, p. 136.
(2) Segundo a Ord. Affons., liv. v, tit. 139, chamava-se col-
lacia, o privilegio concedido aos que tinham o parentesco de
leite com os cavalleiros o não poderem ser açoutados ou ter
pena vil. (Vid. Viterbo, Elucid., vb.° C .)
o l l a c ia
(3) Belloguet, Ethnogénie gauloise, t. ut, p. 391.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 335
pta no Dicdonario abreviado de As
mães de família d’esta freguezia, quando pretendem
casar as filhas, levam-as a trez especies de romarias
que os habitantes d’aquelles arredores costumam fazer,
e são Conceição, Espirito Santo e Bôdo de Vermoil.
Perto da tarde, mães e filhas, todas vestidas de esta­
menha e em corpo, com chapéo de aba larga na
cabeça, apparecem no arraial, e chegando perto dos
rapazes a que já têm deitado o fito, chamam-os para
a venda, onde lhes pagam o vinho, bebendo elles jun­
tamente com as filhas: estas indo já preparadas com
dez réis e um guardanapo lavado, compram tremoços
e dizem: Dá a mim, dm a ti. Os maneis todos tafues
com seu calção de tripe e camisa de linho com seus
collarinhos altos, abrem a jaleca e mostram ás namo­
radas o bolso furtado, dizendo-lhes: Dou a ti. Elias
tiram os tremoços dos bolsos, e elles do guardanapo.
D’ahi a pouco ouvem-se ás vezes as denunciações de
um casamento que não teve outros princípios senão
esta simples troca de palavras e favores com que reci­
procamente se brindaram os dois contrahentes.» (1)
No casamento na freguezia de Bomfim, a mulher offe-
rece ao homem uma pequena moeda, por ventura allu-
siva a um acto praticado em outras povoações, como
este da compra dos tremoços. O celibato da mulher
apparece nos costumes de muitos povos antigos, como
no Mexico e em Roma: entre nós foi aproveitado para
os votos da clausura, e quando uma mulher resolve
ficar solteira ainda se diz: Ficou para vestir imagens.
Entre os Iberos, segundo Strabão, predominava o re­
gimen do matriarcado, ou do parentesco pelas m ães:
«Tal é o costume entre os Cantabros de cazarem os
homens dotando as mulheres, sem que ellas levem
cousa alguma. As filhas são ali herdeiras de tudo, de
(i) J. A. d’Almeida, op. cit., t. ni, p. 190.

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236 LIVRO I, CAPITULO IV

modo que ellas são as que se encarregam da colloca-


ção e casamento dos irmãos, resultando d’aqui um a
especie de ginecocracia,ou aristocracia mulheril, q
em verdade não é cousa bem pensada em politica.» (1)
Além d’este testemunho de Strabão, (ui, iv, 18) Dio-
doro Sicnlo indica o mesmo regimen social nas Balea­
res, e Cesar entre os Bretões. A organisação gyneco-
cratica é característica dos povos mongoloides, e isto
nos define bem o typo anthropologico do Ibero.
A sobreposição de outras raças fizera preponde­
rar na civilisação peninsular o regimen
assim á organisação familista, seguiu-se a organisação
social da tribu, nas suas diversas relações endogami-
cas e exogamicas. A transição do regimen do matriar­
cado para o patriarchal observa-se nos vestígios consue-
tudinarios da Couvade,e nos symbolos jurídic
Adopção. A Couvade,costume tão particular dos povos
selvagens, existia entre os povos Ibéricos, como se vê
por esta passagem terminante de Strabão: «As mu­
lheres são tão fortes como os homens, mesmo para os
serviços mais pezados; ellas trabalham na lavoura; e
apenas acabam de parir começam a servir os homens e
são estes os que ficam na cama em logar d’ellas.» Em
certas terras de Portugal, o pae do recemnascido come
marmellada ou molete, para que a criança se fortifi­
que. A simulação do parto, como fundamento mate­
rial da paternidade, conservou-se no symbolo juridico
da adopção, entre os romanos, e no adagio portuguez
ainda se diz: «Filho alheio, mette-o pela manga e
sahir-te-ha pelo seio.» (2)
No regimen da tribu patriarchal, as formas do casa­
mento variaram segundo o casamento era effectuado
dentro da mesma tribu, ou ee fóra
(1) r,. p.
g
eo
G 116.
(2) Delicado, Adágios,p. 79.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 237
ou exogamico. O casamento fóra da tribu teve formas
violentas de rapto e bate,e ainda hoje os
com
conservam esse espirito de hostilidade:
Quem ao longe vae casar,
Ou vae enganado,
Ou vae enganar.
No casamento dentro da tribu ha certas relações
com as formas familistas anteriores, taes como o Sa-
crificio á communidade pelo marido e a promiscuidade
antes do casamento ou prelibação. Frei Bernardo de
Brito allude a este costume: «Se algum homem do
Porto quizesse receber mulher de Braga, e houvesse
consentimento dos parentes para esse fim, a não le­
vasse de sua honra, mas qualquer dos parentes que
elia escolhesse; e a graça era que acabados os con­
vites e jantar que se dava n’aquellas festas, o triste
noivo cobria a cabeça com um panno, e tomando a
noiva sobre os hombros, a levava té a camera, onde
o parente os estava esperándo, etc.» (1) Brito paro­
diava n’isto as velhas tradições da Coullage, da
bage ou Marcheta. Em Hespanha ainda em 18ÍO o
deputado por Valência Lloret allude ao direito de
nada, usado em Verdum, segundo um impresso de
1786. (2) A communidade contentava-se com a paga
pelo marido do seu direito exclusivo á mulher; é assim
que se explicam variadíssimos costumes: «Em Tho-
mar... o que queria casar n’aquella villa cavalgava um
cavallo, com uma lança na mão, e levando um alqueire
de pão cosido e um almude de vinho, chegando ao
castello dava com a lança na porta, dizendo: Caval-
(1) Monarchia luzüana, 1.1, p. 535.
(2) Soriano, Hist. da Guerra , 2.* Epoca, t. ui, p. 643.

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LIVRO I, CAPITULO IV

leiro quero ser t Sahia o alcaide do castello a esta voz,


e cobrava a pilança, voltando o noivo para casa habi­
litado para poder casar-se; e se algum não satisfazia
esta cerimonia, nem pagava aquelle emolumento, o
alcaide por via de multa levava-lhe o outavo.» (1)
Ainda modernamente em Thomar, o noivo vae buscar
a noiva a casa da madrinha; a noiva esconde-se detraz
da porta, e sómente depois de ter o noivo respondido
a certas perguntas é que se apresenta; este mesmo
costume observa-se na população do Barroso. Na Guarda
a noiva fecha-se em um quarto com algumas das suas
amigas solteiras; quando o noivo bate á porta não lhe
abrem sem que elle tenha primeiramente respondido
a dadas perguntas, e depois de aberta a porta a noiva
esconde-se, e logo que o noivo a acha vão todos para
a egreja. O respeito pela communidade acha-se em
algumas aldeias da Beira: quando o cortejo do noi­
vado vem da egreja, os convidados vem atirando pelo
caminho fatias de pão de rala para conseguirem pas­
sar por entre o povo que finge querer arrebatar a
noiva. (2) O sacrifício á communidade é ainda evidente
no costume de demorar a consummação do acto matri­
monial ; em Manteigas o casamento só se consumma
quatro dias depois de celebrado; nos arredores da
Covilhã ao fim de trez dias, bem como na povoação
de Lavos junto da Figueira; no Peral, proximo das
Caldas da Rainha, não se mantem o costume da sepa­
ração ; mas faz-se durante trez noites um charivari
desesperado á porta dos noivos para os não deixar
dormir; na Villa da Feira, depois do casamento o noivo
sae por uma porta e a noiva por outra. Na Extrema-

(1) Panorama, t. iv, doc. da epoca de D. João i.
(2) Ap. Pedroso, De quelques formes du Mariage populaire
en Portugal.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 239

dnfa e Alemtejo, o padrinho tem de atirar aos rapa­


zes confeitos e dinheiro, e se o não faz apodam o casa­
mento com chufas:
Desde que morreu o Felix,
Nunca vi casamento tão reles. (1)
Nas formas do casamento em Germello é mais evi­
dente o sacrifício á communidade: «Primeiramente o
noivo com os seus parentes vae buscar a noiva, que
não deixam sair de casa sem alguma difliculdade; vão
d ’alli para a egreja, e ao voltar para casa tudo são
obstáculos a vencer: uns põem-lhe na frente mezas,
com açafates de flores, e só dão passagem depois de
lhes darem alguma cousa; outros atravessam a rua
com fitas, exigindo uma certa portagem, emflm todos
os obstáculos se vencem com offertas; chegados a
casa da noiva ella recolhe-se e o noivo vae para sua
casa. Findo isto, de casa da noiva saem trez mulheres
a offerecerem ao povo taboleiros com papas cortadas
em quartos; de casa do noivo saem trez homens dis­
tribuindo cuscureis em um açafate, e dando copos de
vinho. Acabada esta ceremonia entram os convidados,
assentando-se á meza sem distincção de pessoa; no
fim do banquete apparece o noivo com a phalange dos
seus convidados, que vem buscar a noiva; os de fóra
querem entrar á força, os de dentro defendem-se, tra­
va-se a lucta, e n’isto os poetas lançam seus versos,
pedindo a entrega da noiva, outros retrucam às can­
tigas, que não a devem dar, até que passado o tempo
conveniente vence o que tem de ser. A noiva é logo
arrebatada em triumpho e termina tudo.» (2) Embora
(1) Leite de Vasconcellos, rTp. 218.
(2) Dicc. chorographico,1 .1, p. 460.— Almanach de Lembran­
ças para 1858, p. 360.—Leite de Vasconcellos, Tradições, p. 221.

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240 LIVRO I, CAPITULO IV

já appareça aqui o combate e o rapto, a cerimonia é


essencialmente allusiva a nm resgate e satisfação á
communidade. No Foral de Pesqueira, Paredes, Souto,
Linhares, Anciães, dado por D. Affonso Henriques e
reformado por D. Affonso n em 1218, pagava-se o
direito de Osas á communidade; este tributo veiu a
cahir especialmente sobre as viuvas que jconvolavam
a segundas núpcias, como se sabe pelaslnquirições
de D. Affonso m; o tributo das Osas (abreviação de
Goyosa, e contraposto a L)equi
tradição popular ao costume da Viterbo
allude á tradição, que dura nas margens do rio Lima,
dizendo: «que um Florentim Barreto, senbor absoluto
da freguezia de Cardiellos, e fundador da Torre, que
hoje mesmo se conserva com o nome de Torre de
Dom Sapo', extorquia dos seus vassalos recemcasados
a infernal marcheta...» (1) De facto a confusão das
Osas com a prelibação resulta de uma relação primi­
tiva com um costume social que se transformou na
prestação em tributo de generos ou dinheiro. O dote
paternal e a compra de corpo, são formas do casa­
mento endogamico na tribu patriarchal. 0 dote tem
tambem as suas formas populares: «Em Lanhezes e
suburbios (Minho) na dia do casamento, a noiva faz-se
acompanhar do seu dote (geralmente uma caixa com
muita roupa) n’um carro de bois: ao chegar o préstito
á porta da egreja, desapparecem os bois, e puxam os
dois noivos o carro para dentro da egreja até chega­
rem ao local do casamento: terminada a ceremonia,
tornam os noivos a levar o carro para a porta, onde
de novo se põem os bois ao carro.» (2) Vemos aqui
a realidade d’aquella fórmula já symbolica no direito
(1) Elucidário, vb.* Osas.—A goiosa apparece em documen­
tos do seculo xvi na fórmula: Casamento e hutn contentamento.
(2) Leite de Vasconcellos, Tradições, p. 220.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 241

romano : übi tugaius ego


marido ; na linguagem vulgar, quando os casados se
dão bem diz-se que pucham certos.
No Cancioneiro de Resende citam os poetas palacia­
nos da côrte de D. Affonso v e D. João n, o acto fre­
quente de offerecermulas ajaezadas ás damas ;
galanteria para nós hoje incomprehendida, esclarece-se
pelo costume aristocrático estatuído no Fôro velho de
Castella, pelo qual o fidalgo deyia dar a sua mulher
*umamula ensilhada e nfreia»(1)
. E accr
« isto soiam usar e.» Nos Foros de Aragão
antigm
tambem vem o mesmo costume : « mulam de
cabalgar.n (2) Na forma popular dos casamentos em
Cabo Yerde ha ainda esta reminiscências «Quando
casa uma donzella, vae sempre a cavállo n’uma égua
até á porta da egreja, para ser fecunda ; e, não sendo
donzella, a pé ; o noivo vae a cavallo de calça branca,
lenço branco na mão direita com as pontas cahidas
para o chão, e ao pescoço cordão de ouro, que o pa­
drinho é obrigado a pedir emprestado quando o não
tenha. É-lhes prohibido rirem e comerem n’este dia,
salvo se os padrinhos lhes mettem alguma cousa na
bocca, sempre em pequena quantidade. Desde que
chegam á egreja até serem conduzidos pelos padrinhos
á casa em que devem dormir, ficam os noivos senta­
dos n’uma especie de tribuna no interior da casa. Pela
noite adiante ouve-se um tiro, esperado com ancie-
dade pelos paes e parentes, que então parecem dou­
dos de contentes, batem as palmas, dão guinchos e
pinotes, ha batuque e chaveta (toca-se e canta-se.)
Pela manhã vão os padrinhos acordar os noivos e
acompanham-os até á rua, onde já está uma meza e
duas cadeiras para estes se sentarem ; vem uma mu-
(1) Liv. v, tit. i, leis 1, 2, e 8.
(2) Ap. D. Joaquin Gosta, Poesia popular espahola, p. 277«
16

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242 LITHO I, CAPITULO IT
lher, põe em cima da meza um córte de camisa, ou­
tra um córte de panno, outra um córte de saia de
chita; os homens uns dão 240, outros, 320, outros,
480 conforme suas posses.» (1)
0 dote confundiu-se com a ideia de um resgate,
como se vê pela identificação entre arras e compra
de corpo. No Cancioneiro da Vaticana, do seculo xrv,
encontra-se esta preciosa referencia jurídica:
Se m’elrey desse algo, já m’iria
pera mha terra de bom grado,
e sse chegasse, compraria
dona fremosa de grammerc
Eu cuytado, nom chegaria
por comprar corpo tam bem talhado.
(Canç. n.* 962.)
Viterbo, no Elucidário, cita uma doação de Martim
Pires a sua mulher com a fórmula: «por compra de
vosso corpo» que identifica com o costume de Aragão
da therança do marido» e que João Pedro Ribeiro
julga que deve entender-se por arrhas. Segundo Jacob
Grimm, nas Antiguidades do Direito attemão, a palavra
que significava comprar veiu a substituir no fim da
Edade media a palavra casar. No casamento de D. Af-
fonso v com D. Isabel, e no contracto de casamento
do rei D. Manuel com a infanta D. Maria, a antiga
phrase « porcompra de corpfoi substituída «por
honra de sua pessoa.» E nas Ordenações manuelinas,
(liv. iv, tit. 9, § 4) a doação do marido á mulher, de
quantia certa, depois de consummado o casamento
tinha o nome de Comera çarrada, costume identifi­
cado por Levy Maria Jordão com o Morgengabe ger­
mânico. (2)
(1) Almanach de Lembranças, de 1861, p. 67.
(2) Vide a minha Historia do Direito portuguez (os Foraes)
p. 58 a 62, onde vem este assumpto mais largamente tratado.

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ESTADOS SOCIÁES REPRESENTADOS, ETC. 343
A cohabitação era uma das formas mais frequentes
do casamento endogamico, conservando-se nas socie­
dades que se elevaram até á unificação de nacionali­
dade. Herculano, nos seus Estudos sobre o Casa­
mento civil, interpretando pelos costumes do reino o
titulo 46 do livro iv das Ordenações, diz : «Este titulo
estatuía que, convivendo um homem e uma mulher,
com fama de cônjuges pelo tempo estabelecido no
antigo direito, (vimos já que esse praso era de sete
annos) presumir-se-hia haver matrimonio entre elles
para os effeitos civis.» (1) A intervenção do clero na
sociedade civil, fez com que nas Constituições dos Bis­
pados portuguezes se condemnem estes casamentos
por cohabitação, e diversos dos casamentos clandesti­
nos em que havia sponsaes. Na Magdalena, nos arre­
dores do Porto, conserva-se ainda o casamento pela
forma da cohabitação. (3)
A cohabitação conservou-se como um acto simulado
ou symbolico nos casamentos por procuração, entre
as familias reaes, sobretudo na Allemanha e Ingla­
terra. O velho João Rodrigues de Sá, casando por
procuração de D. João i com D. Filippa de Lencastre,
mette-se com ella na cama, como conta Froissart:
«comme procureur du roi de Portugal... et furent sur
un lit courtoisement, ainsi comme époux et épousée doi­
vent être.*(3) Nas Cartas de Lopo de Almeida a D. Af-
fonso v, de 1450, dando-lhe conta do casamento da
infanta D. Leonor com Frederico m, imperador da
Allemanha, vem descripta a cerimonia da cohabitação,
como complemento do casamento : «levou elrey a dita
Senhora áquella mesmà camara com poucos, salvo mu­
lheres, e acharam-no já lançado vestido entre os lan-

f(3) Chron., Liv. m, cap. 53.


Op. cit., p. 108.
Pedroso, De quelques formes du mariage en Portugal,

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244 LIVRO I, CAPITULO IV

çóes, e tomarão vossa Irmãa, e lançaram-na na cama


com elle tambem vestida, e cobriram-lhes as cabeças
e beijaram-se, e feito isto, alevantaram-se, e tornou-se
a ditta Senhora á sua camara, e ficou o ditto Senhor
na sua, e isto foi assim feito usança de Alemanha,
porque assi foy acordado com EIRey de se fazer.» (1)
Ha aqui tambem um leve simulacro de forma
ainda persistente entre as tribus da Australia, como
descreve Eyre. Na interessante narrativa do casamento
do fidalgo Antonio Gonçalves com D. Isabel de Abreu,
escreve Fructuoso : «Teve elle traças com que entrou
de noite com aquella tenção de a receber por mulher.
Vendo-se D. Isabel salteada d’elle, como era mui vir­
tuosa e discreta, dissimulou com elle, dizendo : Que lhe
não convinha fazer casamento d'aquella sorte...» (2)
Na constituição das sociedades primitivas em que
preponderava a organisação da tribu, os casamentos
eram celebrados tambem buscando a mulber em ou­
tras tribus visinhas ; d’este facto resultam caracteres
e formas especiaes que se designam pelo nome gene-
rico de casamento exogamico. Sob este titulo a Exo-
gamia, comprebende-se o casamento celebrado pelo
r a p t o , pela lucta, e ainda pela confarreatio ; nas socie­
dades modernas já não existe a separação das tribus,
mas inda se conservam na forma de menções ou actos
symbolicos as praticas primitivas do casamento exo­
gamico. Em Sindim (arredores da Regoa,) simula-se
a hostilidade das tribus : quando um rapaz de fóra da
aldêa vae pedir uma moça para casar correm-no á
pedrada, e ao casar, quando vem da egreja, embara­
çam o caminho por onde elle tem de passar, tendo
necessidade de resgatar-se com algum dinheiro. Ainda
hoje se usa o rapto da mulher, quando os paes não
(1) Sousa, nas Provas de Hist. , 1. 1, p. 643.
(2) Fructuoso, Saudades da Terra, p. 498. Ed. Azev.

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ESTADOS SOCLA.ES REPRESENTADOS, ETC. 245

dão o consentimento para o casamento; a phrase vul­


gar furtar uma mulher corresponde a uma realidade
frequente em que a auctorisação paterna é substituída
pela auctoridade do juiz. Nas Saudades da Terra, de­
screve Gaspar Fructuoso o casamento de Antonio Gon-
salves da Camara com D. Isabel de Abreu, em 1531,
por meio do rapto: «Aconteceu bum dia que, fazendo
D. Isabel uma romaria, ou como dizem, indo de sua
casa ricamente ataviada e muito acompanhada para a
Calheta a um baptismo a que a convidaram, passando
por junto da fazenda de Antonio Gonçalves por ser por
ali o caminho, e sabendo-o elle, e tendo para si que
ella se lhe mostrava, e queria jà consentir no casa­
mento (porque quem ama tudo suspeita) ajuntando
prestes muita gente, com muitas armas que lhe n3o fal­
tavam, se foi ao caminho, e tomando pelas redeas a
mulla em que ella ia, levou D. Isabel e a metteu em suas
casas contra vontade dos parentes seus e d’ella...» (1)
Toda esta narrativa é cheia das mais violentas peripé­
cias, e «se começou a travar uma escaramuça peri­
gosa entré ambas as partes, pondo-se a risco de haver
entre uns e outros muitas mortes. O que vendo An­
tonio Gonçalves e D. Isabel, por evitar tanto damno
de que seriam causadores, sahiram ambos a umas
varandas donde falaram ao Ouvidor, perguntando-lhe:
Que queria ? Que elle estava com sua mulher! e di-
dizendo D. Isabel o mesmo: Que estava com seu ma­
rido, e bem se podia tornar embora.» A peripecia não
acaba aqui, mas isto nos basta para comprehender a
indole do r a p t o , a que anda ligado o combat
Em Miranda do Douro o casamento celebra-se pela
forma de um c o m b a t e ,entre o noivo e
cerimonia prévia dias antes de irem á egreja; o com­
bate faz-se em um logar aprazado, a sôco, e diante
(1) Saudades da Terra, p. 197.

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246 LIVRO I, CAPITULO IV

de gente, nãopodendo ninguém intervir no combate. ( 4 )


Na linguagem popular ainda se diz: «Pancadinhas d e
amor não doem.» No Jarmello, na Extremadura, h a
tambem o combate: «Vai o noivo com os seus paren­
tes e convidados buscar a noiva a casa, onde os p aren ­
tes e amigos d’esta mostram resistência em a deixar
sair, cedendo porém a final, e partindo todos a cam i­
nho da egreja. Concluída ahi a cerimonia, voltam todos
para casa, tendo grandes dificuldades a vencer p elo
caminho fóra, etc.» (2) Na Beira Alta, em Villa-Nova
á Coelheira, as duas comitivas dos noivos chamam-se
patrulhas; quando vão para a egreja, os visinhos ajun­
tam-se em manadas para roubarem a noiva, e é e m
uma Iucta simulada que as patrulhas a defendem, p e r­
seguindo-os tambem simuladamente o povo, que lh e s
atira com açafates de trigo, com grandes e alegres
algazarras. (3)
Os symbolos da confarreação persistem nas formas
populares do casamento. Em Campello, «depois d a
cerimonia, para que fique o casamento completo, noi­
vos e convidados devem comer na sacristia com o
c h o ,pão, queijo e vinho; ao irem para casa os convi­
dados mandam sair-lhes ao encontro borrachas d e
vinho; â meza o noivo e a noiva comem no mesmo
prato. Passados outo dias, a noiva é vestida pelas suas
amigas, que lhe levam presentes de cousas necessá­
rias para o arranjo da casa.» (4) Em S. Thiago d a
Cruz, no Minho, penduram em um arco um limão e
uma maçã; a noiva apanha o limão e entrega-o ao
marido, e este apanha a maçã e entrega-a á despo-
(1) Pedroso, op. cit., p. 2.
(2) Almanach deLembranças para 1859, p. 309. A ceremo-
nia do rapto ainda se encontra em Leão. Folk Lore andaluz.
p. 157.
(3) Leite de Vasconcellos, Tradições, p. 222.
(4) J. Avellino d’Almeida, Dicc. chorographico, 1.1, p. 214.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 247

sada.» (1) As formas da confarreação são as mais


geraes: em Sinfães, junto do arco sob que passam os
noivos, ha uma meza onde elles comem e bebem, dei­
xando algum dinheiro; em Trancoso, tambem no cami­
nho dos noivos lhe põem mezas com doces; em Pom-
balinho, a quatro leguas de Coimbra, estendem guar­
danapos sobre as pedras por onde passam os noivos,
e quando estes vem da egreja trazem sacas que enchem
com ervilhas, favas e batatas que lhe vem offerecer
ao caminho. Na Pederneira, depois do banquete, a
casa dos noivos fica franca para todos dansarem ali
o tempo que quizerem.
Chegámos ao alto período historico em que os ele­
mentos primordiaes do Fcmüimo e da Tribu se con­
substanciam em uma unidade social chamada Nação:
aqui ainda persistem differenças tradicionaes reco­
nhecidas pelo nome de classes. Entre o povo dos cam­
pos e a gente fidalga as formas do casamento varia­
ram : nos arrebaldes de Soure (Minho) os noivos vão
para a egreja em um carro de bois, enfeitado e armado
de campainhas; (2) nos casamentos da velha fidalguia,
a noiva recebia uma mula ajaezada e n’ella ia para a
egreja. Na côrte conservaram-se costumes primitivos
da tribu genealógica; os fidalgos mandavam as suas
filhas para a côrte, servindo e acompanhando a rainha
como açafatas, e o rei é que se encarregava de as
dotar e casar; comprehende-se este costume palaciano
comparando-o com o que existia na Cochinchina no
secifio xiii, em que os paes levavam as filhas ao rei
para prelibal-as, e casal-as depois dotando-as. «Quando
um fidalgo tem seu casamento justo com alguma das
damas do paço, deve trazer na abotoadura uma fita,
que é um dos signaes da sua promessa; além d’isto
(1) Leite de Vasconcellos, Trai., p. 218.
(2) Id.,ib., p. 220.

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248 LIVRO I, CAPITULO IV

é obrigado pelo espaço de seis mezes a apresentar-se


no palacio todas as vezes que as damas saem o u
entram com a rainha, e a seguil-as de longe, sem q u e
lhes seja permittido fallar á sua namorada senão p o r
meio de signaes até ao dia da consummação do casa­
mento.» (1)
Além das formas tradicionaes do casamento q u e
correspondem a certos estados sociaes extinctos, exis­
tem tambem ritos matrimoniaes relativos a um typo
cultual já obliterado. Coordenaremos esses ritos s e ­
gundo o que se usava no polytheismo greco-romano,
pelo fundamento de que Strabão considerava os casa­
mentos dos luzitanos similhantes aos dos gregos: more
graeco. (2) O casamento (gamos) sob o ponto de vista
de um sacramento religioso (telos) era a abjuração do
culto do pae pela mulher que ia entrar no segredo d o
culto domestico do marido; tal é o sentido das ceri­
monias, que se podem dividir em trez actos liturgicos
bem distinctos: i.° a engyesisdos greg
tio dos romanos, que se passava no lar paternal; 2 .°
a pompe ou a deductio in domum, em que a mulher
passa para a casa de seu marido; 3.° a iniciação d o
culto da sua nova casa, a telos ou confarreatio, em casa
do esposo.
Das cerimonias em casa do pae da noiva, citaremos
o que se usa nas Covas de Barroso: «Na manhã das
bodas vem o noivo com os seus á habitação da noiva,
onde se acham reunidos os parentes e amigos; bate
repetidas vezes á porta que está fechada, e trava-se
um dialogo rythmado entre os de dentro e os recem-
chegados; apparece depois a esposa e cinge a cintura
do noivo com a cinta symbolica. No Um do banquete
as donzellas apresentam á casada um ramalhete de
(1) Descriptionde laVille de L1738.
(2) Elementos da Nacionalidade § 6.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 249

flores e um pombo. Afóra a cinta symbolica e o pombo,


observa-se ainda aqui hoje a mesma usança; o dia­
logo porém é mais prosaico e é assim:
«— Quem é, e o que quer?
«É F... que aqui vem procurar gente, honra e fa­
zenda.
— Entre que tudo encontrará.
«Os presentes offerecidos pelas donzellas á esposada
constam, além de flores, de doces de diversas quali­
dades dispostos em forma pyramidal; são encetados
pelos esposados e depois servem os padrinhos e mais
convivas; no offerecimento ha versos d’este gosto:
Aqui tens, menina este ramo
Que da minha mão se offerece;
Não é como eu desejava,
Nem como a senhora merece.» (i)
No Cadaval este ramo tem um effectivo sentido sym-
bolico. Os vestidos da noiva tem tambem um talho
especial; em um documento dePendurada, de 1480
descreve-se o trajo obrigado: «He ella dita noiva ves­
tida de vestidos novos, de dia de voda, s. hua man­
tilha de meni, (baeta usada no campo) e hua
de courtanai, e bua fraldilha de brestoll.» (2) Da fre-
guezia de Dão encontramos estes dados curiosos:
«todas as mulheres casadas, quando os maridos esta­
vam na terra, traziam á missa a mantilha debaixo do
braço, e as que a não tinham um rodilhão; e estando
elles ausentes traziam as mantilhas aos hombros, como
capas, e as viuvas á cabeça.» (3)
A passagem da noiva de casa do pae para a do
noivo faz-se pela egreja: a locução levar á signi-
(1) J. Avellino d’Almeida, Dicc. 1.1, p. 340.
(2) Viterbo, Elucid., vb.° Mkni.
(3) Almeida, Dicc., 1.1, p. 339.

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230 LIVRO I , CAPITULO IV

fica casar; á ida e á volta passam por debaixo de


arcos, com symbolos, como em Marco de Canavezes,
e atiram-se confeitos e trigo á noiva, ou á gente qne
acompanha os noivos, como nos Açores e Beira Alta.
O sr. Leite de Vasconcellos mostra a persistência d’este
uso com um trecho da farçq de Pereira (1323)
de Gil Vicente:
E tendes vós aqui trigo
Para nos geitar por riba f
G aproxima-o da descripção doRomancero dei Cid:
Por las rejas y ventanas
Arrojaban trigo tanto,
Que el rey llevaba en a gorra
Que era ancha, un gran punado.
Gstes elementos foram rimados por João d’Escobar
no fim do seculo xvi, mas a sua universalidade mostra
a sua antiguidade remotíssima. Na Sicilia tambem se
atira trigo na passagem dos noivos, bem como farinha
e às vezes pão, como o descreve Pitré; em Sevilha
atiram amêndoas e confeitos. (1) As cantigas dos noi­
vados, que se usavam na epoca visigothica, e foram
prohibidas pelo concilio ilerdense do seculo vi como
pagãs, persistem em Portugal, e ligadas a certos actos
symbolicos. Em Moura, no Alemtejo, canta-se:
Quem quizer comprar, eu vendo
Um ramo que estou guardando;
O estado de solteira
Para mim ’stá-se acabando.
Nos costumes do Cadaval: «Chama-se ramo matri-
(i) Folk Lore andaluz,p. 206. Em Nisa, a no
apregoada não saia mais a rua. Dr. Mattos e Moura, op. cit.,
t.i,p. 129.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 251

monial ao ramo de flores seccas que a noiva recebe


da ultima rapariga que se casou, que n’esse dia deixa
de estar de noivado; é entregue á recem-casada no
fim do baile das bodas. Tambem quando o noivo sáe
da egreja, passa por debaixo de um arco de canas
verdes enfeitado com symbolos allegoricos á profissão
dos nubentes; sustentam-no duas raparigas.» (1)
Santo Isidoro cita ( tym
E, .vi, cap. 18) os epüh
cantados por escholares em louvor dos noivos. (2) Nas
Comedias portuguezas de Simão Macbado descreve-se
a persistência d’este uso:
Gil : Vamo-nos para o logar.
Pato : Vamos; seja com cantar,
Thom.: E por mayor prazer e festa
Eyá I a cantiga seja esta:
Thom.: Tambem ea heide ajudar.
Cantiga:
Com muitos contentamentos
Muitos annos melhorados
Se logrem os esposados. (3)
Muitos dos costumes conservados ainda pelas aldeias
acham-se descriptos na cerimonia do casamento de
D. João i com D. Filippa de Lencastre, na prosa ingê­
nua de Fernão Lopes: «E todo prestes pera aquelle
dia, partiu-se Elrey á quarta feira donde pousava, e
foyse aos paços do bispo, hu pousava a Infanta, e á
quinta feira foram as gentes da cidade juntas em des-
(1) Almeida, Dicc. chor., 1.1, p. 202.
(2) Sobre a persistência d’estes cantos nos costumes penin­
sulares achámos: «Los yoglares é tanedores non son para la
guerra, mas para la paz.,, e para honrar bodas. • Madrigal, Eu-
sebió de los Tiempos,cap. 502, ed. 1507. Ap. Amador d
Rios, Hist. da Litt. hespan.,t. vu. p. 429.
(3) Comedias portuguezas, p. 182,

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m LITRO I, CAPITULO IV

mirados bandos de jogos e dansas per todalas praças


com muitos trebelhos que faziam. As principaes ruas,
per hu estas festas aviam de ser, todas eram semea­
das de desvairadas verduras e cheiros. Elrey saiu
d’aquelles paços em sima de hu branco, em pa­
nos de ouro realmente vestido, e a rainha em outro
tal muy nobremente guarnida.... Diante hiam pipias
e trombetas, e outros muitos instrumentos, tantos que
se nom podiom ouvir, donas filhas d!algo, e isso me­
smo da cidade cantavam indo de traz, como he costume
de vodas.t (1) Era assim a Mascarada nos casamentos
da Areosa. (2)
Segundo o Tombo do Aro de Lamego, de 1346, se
se tocava adufe em Fevereiro, nas bodas, pagava-se a
melhor fogaça ao mordomo do réi. As superstições e
agouros ligam-se aqui ao esquecimento do antigo culto
domestico: se chove no dia do casamento é signal de
felicidade para os noivos; o primeiro que entra para
a cama é o primeiro que morre.
Em casa do noivo termina-se a ceremonia pelo ban­
quete e dansas. O padre Fernõo Cardim descreve os
costumes do casamento na colonia portugueza de Per­
nambuco (1583-1590): «Casando uma moça honrada
com um vianez, que s5o os principaes da terra, os
parentes e amigos se vestiram uns de veludo crame-
sim, outros de verde e outros de damasco e sedas de
varias côres e os guiões e sellas dos cavallos eram
das mesmas sedas de que iam vestidos. Aquelle dia
correram touros, jogaram canas,pato, argolinha, etc.»
No casamento de Cabo Verde, depois do banquete,
e quando os noivos se unem, «ouve-se um tiro espe­
rado com anciedade pelos parentes;» pelo casamento
nos arrabaldes de Soure, no Minho, se a noiva é reco-
(1) Chronica de D. João i, P. u, cap. 96.
(2) J. P. Ribeiro, Reflex. hist., 1 1, p. 39.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 253
nhecida como estando pnra tambem se atiram muitos
foguetes. Nas segundas núpcias costuma-se fazer as-
suada á porta de noite, a que em Hespanha se chama
as Cencerradas,e em França o charivari, costume a
que já alludem Macrobio e Plutarcho como existente
em Roma. (1) Em Portugal a viuva que convolava a
segundas núpcias, segundo os Foraes pagava uma
multa; o odio contra estes casamentos provinha da
ideia da abjuração do culto domestico pelo de um outro
lar. O fogo do lar já não figura como objecto de culto
nos ritos do casamento, porém nas superstições popu­
lares o fogo ainda conserva um caracter augurai:
«Quando n’um casamento a vela mais pequena está
do lado da noiva, é signal que ella morre primeiro ;
se está do lado do noivo é elle quem morre.— Na
noite do casamento aquelle que no quarto apaga a
luz primeiro, é o primeiro que morre.— Para saber
se duas pessoas casarão, põe-se um par de flocos de
linho, muito fofos, na pedra do lar. Um dos flocos
representa o rapaz e outro a rapariga cuja sorte se
pretende conhecer. Em seguida pega-se fogo ao linho.
Se os dois flocos ao arder sobem ao mesmo tempo
ou mesmo se sobem ambos, é signal de casamento
certo; se um d’elles porém se eleva não acompa­
nhando o outro, a pessoa que elle representa não
corresponde ao amor.— Se na casa onde entram pela
primeira vez os noivos ha luz accesa, nenhum d’elles
vive muito tempo.— Trez luzes n’uma casa, é signal
de casamento da pessoa mais nova d’essa casa.» (2)
Segundo Homero, as donzellas eram chamadas na
Grecia aiphesibeas, as que trazem bois em dote ; em
Roma, a esposada ao entrar em casa do marido sen­
tava-se sobre uma pelle e dizia : Ubi tu gains, ego gaia.
(1) Folk Lore andaluz, p. 207.
(2) Pedroso, Superstições, n."83,333,475,512,520, na nossa
revista O Positivismo,

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254 LIVRO I, CAPITULO IV

Segando Michelet «Gaia quer dizer a vacca, e a terra


aravel.» (1) No Fôro de Castella o marido dava a sua
mulher uma capa de pelle de cordeiro. Todos estes
symbolos desappareceram nos costumes portuguezes,
persistindo a sua reminiscência nas superstições popu­
lares : «Quando uma pessoa passa por diante de uma
abegoaria de vaccas e ellas mugem, é signal de casa­
mento.—Vacca que berra, é signal de casamento na
terra; mette-se logo a mão na algibeira para casar
cedo.» (2) Depois que os costumes se extinguem ainda
se mencionam em actos e formas emblemáticas; é a
este phenomeno ethnologico que se dá o nome de Sym-
bolo. (3)
Costumes e Symbolos jurídicos.— As concepções pri­
mitivas na sua forma emocional exprimiram-se por
manifestações concretas, ou significadas; á medida que
ellas se foram generalisando pela abstracção, esses
signaes simplificaram-se em e esses mesmos
symbolos foram-se subtilisando em ficções allegoricas
e em menções sacramentaes. (4) É este fundo psycho-
logico commum, a universalidade do sentimento pre­
valecendo sobre o particularismo das ideias, ou me­
lhor a situação emocional da multidão supprindo a
falta de desenvolvimento da capacidade racional, que
faz que em todos os povos se encontrem as formas
poéticas do Direito, as tautologias rythmicas, o sym-
bolismo dos contractos e da penalidade, essas antiquis
(1) Origines du Droit {rançais, cap. 2.
(2) Pedroso, Superst., n." 334, 330,315.
(3) Em Abrantes existe uma locução: Levar com o saco nas
pernas, para significar que alguem vae casar, alludiüdo á obri­
gação de sustentar a familia indo muitas vezes ao celeiro bus­
car o grão fiado.
(4) Tratámos pela primeira vez este problema psycbologico
0 etbnico na Poesia ao Direito, Porto, 1865.

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ESTADOS SOC1AE8 REPRESENTADOS, ETC. 255
juris fabulas, que os Jurisconsultos romanos acatavam
no seu Direito. Mais tarde quando na sociedade vem
a prevalecer o direito escripto sobre a forma consue-
tudinaria e tradicional, ainda o costume se impõe com
uma vitalidade inextinguivel. É o que verêmos nas
instituições portuguezas. Conta Asclepias de Mirleo,
que viveu na Andaluzia, ter ouvido aos Turdetanos
poemas e leis ;rythm
icas (1) nas leis celticas de Moel-
mud, encontra Summer Maine vestígios rythmicos, e
na Irlanda os vates (files) eram tambem juizes (bre-
hon) (2); as tribus germanicas, como observa Jacob
Grimm, transmittiam em versos cantados as suas leis
e memórias históricas. (3) Tendo entrado na consti­
tuição anthropologica dos povos peninsulares todos
estes elementos de mestiçagem, não admira que se
conservassem formas symbolicas de direito segundo
estas diferentes camadas ethnicas. Ainda do nosso
povo se repetem certas fórmulas de direito em verso
rythmado:
Morte e casamento
Desfaz o arrendamento.
Boa demanda, ruim demanda
O escrivão pela nossa banda.
Mãos atadas
Terras abrasadas. (4)
Um anexim de Jorge Ferreira de Yasconcellos allude
ao espirito do direito consuetudinario:
No fôro em que um homem se põe
N’esse o tem. (5)
íi) Strab., ni, cap. 3, 6.
(2) Joaquin Costa, Poesia popular espanola, p. 271.
(3) Poesia do Direto, § 5.
(4j Noticias recônditas da qIunp. 94.
(5) Eufrosina, p. 43.

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256 LIVRO I, CAPITULO IV

O fároé evidentemente o direito derivado do con­


senso do costume ; na legislação e historia antiga dis­
tingue-se entre leis e fóros. Lê-se nas Memórias avul­
sas de Santa Cruz, ácerca do governo de D. Affonso
Henriques : <E pero tanto tempo senhorezasse e re-
gese, tanto foy o seu cuidado de acrescentar a onrra
do reyno que ante de sua morte emcommendou a sen
filho que fizesse as teæ e foros que visse que compriam
pera boo regimento do reino, mostrando que em toda
sua vida nunqua tevera tempo ocioso em que as
podesse fazer.» (1)
Ha aqui allusão ás leis pessoaes derivadas da aucto-
ridade real, e aos estatutos locaes reconhecidos on
validados pelo rei. Os Lombardos tambem tinham leis
consuetudinarias não escriptas a que chamavam War-
frida, contrapondo-se a esta a palavra Ewa signifi­
cando lei escripta. (2) O caracter territorial apparece
na designação de Fara ou Foral; a Fara era o terri­
tório livre, onde habitava o Faraman (borguinhão) ou
o Ariman (lombardo). (3) N’este encontro de raças
que se invadem e subjugam, o invasor impõe a sua
vontade ou lei pessoal, e o vencido fortifica-se nos seus
costumes ou lei territorial. Em uma carta de Agobard,
a Luiz le Debonaire, se affirma este facto : «Vêem-se
muitas vezes conversarem cinco pessoas sem que
obedeçam ás mesmas leis.» (&) O direito local manti­
nha-se na forma generosa dos azylos e coutos, qne
os nobres e a egreja observaram como privilegio
pessoal; a herança do crime e a vindicta particular

(1) Mon. hist. (Scriptores) fasc. i, p. 25.


(2) Davond Oghlon, Hist. de la Législation des Anciens Ger­
mains, t h, p. 5.
(3) Savigny, Hist. du Droit romain au Moyen âge, 1.1, p. 159.
(4) Dom Bouquet, Rer. gail., t. ir, p. 356.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 25 7
foram as formas mais preponderantes do direito
pessoal :
Que s’eu moir’assi d’esta vegada
Que a vol-o demande meu linhage.
(Canç., n.* 668 daVat.)
O nltimo vestígio das povoações azylos apparece-nos
na pequena aldeia de Pereiro, no Algarve : «Era conto
para pessoas endividadas, ás quaes bastava virem
assignar termo na Camãra de Âlcoutim, a que chama­
vam assentar praça de buirão; e não podiam mais ser
citados nem demandados por dividas anteriores.» (1)
O antagonismo d’estes dois direitos representa o
encontro de duas classes sociaes, o homem livre de-
cahido em servidlo e que se eleva até á independen-
cia burgueza, e o senhor feudal que conserva as for­
mas da tribu genealógica. Assim nos antigos burgos
portuguezes não podiam pernoitar fidalgos, como se
vê no romance popular de Santa Iria :
Eu estava cosendo em minha almofada,
Vem um cavalleiro e pede pousada.
Se meu pae lh’a nega, bem me pesaria,
Se eu ali não fôra, meu pae negaria. (2)
Este direito local é o de visinhança ou das povoa­
ções próximas, ipici) e ligam-se entre si os pobres
habitantes em com
panhi,(de com-paganus) para se
defenderem contra os assaltos dos cavalleiros prepo­
tentes. É d’esse terreno livre ou Arimania, que deriva
a segurança da Germania, Germaydade ou Irmandade.
Em uma canção de Ayres Nunes allude-se á Yrmai-
dade, (n.# 455) cujo typo historico mais completo se
acha nas ligas dos habitantes de Aiusa e de Sobrarbe.
(1) Silva Lopes, Chorogr. do Algarve, p. 397.
(2) Romanceiro do Archipelago da Madeira, p. 19.
17

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258 LIVRO I, CAPITULO IV

Viterbo não soube explicar certos termos archaicos


por não conhecer a primitiva organisação social; assim
diz da palavra Hermenhoe (Â
«Dizem que na linguagem antiga de Hespanha signi­
ficava aspero, duro, intratável. E taes eram os mon­
tes da Serra da Estrella, e os da Serra da Haramenha
junto á cidade de Meidobriga (não longe do sitio onde
hoje está Marvão); e não menos o eram os seus habi­
tadores em quanto se não fizeram trataveis...» (1)
Esta resistência das garantias locaes era representada
no Portugal antigo pelo Pelourinho ou Picota. Datava
esse costume do tempo dos Romanos, mas com cer­
teza o Pelourinho era já a representação artificial de
um costume mais vetusto. A liberdade local exercia-se
no monticulo natural, o Malhão, citado no Foral de
Gernancelbe, (do maUum germânico) ou monticulo arti­
ficial ou Arca, (de arx) onde se reunia a assemblea
dos homens livres. O carn celtico era o monticulo for­
mado por pedras, sagrado por cobrir a sepultura do
chefe, e tambem infamante segundo se atiravam pe­
dras á sepultura do condemnado. Nós temos ainda a
locução sem sentido Pedra de escandalo, e tambem a
pena infamante de ser amarrado ao que
hoje se tornou uma figura de rhetorica. Quando Roma
se organisou sob a forma imperial, as províncias rece­
beram um grande impulso impondo-se aos povos con­
quistados as formas municipaes ; esta organisação
local robusteceu-se com a crença polytheista dos genius
loci, de que o Pelourinho foi a representação. Hercu-
lano entreviu este facto incompletamente, dizendo que
essas cidades municipaes podiam «levantar na praça
a estatua de Marsyas ou Sileno, com a mão erguida,
symbolo da liberdade burgueza.» Em nota acrescenta:
«Esta é quanto a nós a origem dos Pelourinhos. Abo-
(i) Elucid., vb.° II e r mk n h o .

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 259
lido o polytheismo, nada mais natural do que substi­
tuir-se aquelle symbolo por uma pilastra ou columna,
a qual com o decurso do tempo foi tomando diversas
formas caprichosas.» (1) A ideia de costume locát ligada
ao Pelourinho conserva-se n’aquélla phrase do Mai^tíez1
de Pombal a um Juiz de Fóra, dizendo-lhe cofoo hatfa
de administrar justiça: *Nãose meta
lourinho.* Gil Vicente tambem se refere á Picota-da
Ribeira; este nome explica-nos a relação com a divim
dade romana Picus Picumnus ou Pilutnnus. (2)Rac-
zynski, na obra Les Arts en considera "os
Pelourinhos como uma das nossas manifestaçõeá artís­
ticas. (3) A collocação dó Pelourinho diante 'dâJcasa
ou palacio da Municipalidade, leva a reconhecer qtie
o seu sentido de franquia local é anterior ao uso1de
instrumento da penalidade difamante. Lê-sé em uma
informação do visconde de Juromenba a Raczynski:
«No antigo livro das Fortalezas do reitío depositado
no archivo nacional, feito por Duarte de Armas, pintor
do rei D. Manuel, eu encontro muitos pelourinhos.
São elles o de Sabugal, de Castelto de Mendo, do
Mogàdouro e de Penaroia. Têm a mesma forma que
os Piloris francezes, o que para mim foi uma novi­
dade. Vêem-se ali as gaiolas ou guaritas para a expoéi-
ção dos criminosos. Quasi todos os que eu tenho Vlstò;
consistem em uma columna mais ou menostrabalhada
collocada perpendicularmente sobre uma base rodeada
de degràos. Do ponto superior d’esta columna saem
quatro braços de ferro tendo na suá extremidade um
annel e uma cadeia. Ella é terminada por uma corda
ou um capitel. O Pelourinho de Coimbra terminava
em cutello. A guarita do de Arruda é quadrada', os
íi) Hist. de Portugal, t. iv, p. 11.
(2) Preler, Les Dieux de Vandenne Rome, p. 237.
(3) Op. cit., p. 330.
• •

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260 UVBO I, CAPITULO IT

seus arcos são lavrados, e se bem me lembro termina


por um escudo. 0 Pelourinho da Batalha é bastante
lavrado, como o de. Alverca e Cintra.» (1)
Bastava terem os Pelourinhos um sentido religioso,
representando o genius loci,patrono
cia municipal, para ficarem diante do catholicismo
como monumentos de ignominia; assim á medida que
o poder real prevaleceu sobre a autonomia foraleira,
os Pelourinhos converteram-se em instrumento de uma
penalidade infamante reservada para as classes popu­
lares, porque os fidalgos, representantes do direito
pessoal, não eram sujeitos a essa categoria de penas.
Em França os Pilorisforam empregados
intuito, e a nossa Ordenação Affonsina (Liv. i, tit. 28)
mandava expor nos Pelourinhos os padeiros e carni­
ceiros que iurtavam na venda. A transformação da
penalidade actuou na decadencia dos Pelourinhos; diz
o sr. visconde de Juromenha: «Em 1834, para imitar
a revolução da França, arrancaram-se os braços de
ferro a alguns Pelourinhos com o fim de apagar a
memória de seu antigo destifio, ou melhor de seu
atrazado emprego; porque nos últimos tempos elles
já não eram senão o emblema da jurisdicção munici­
pal.» Na linguagem popular ainda se conserva a tra­
dição das duas formas de justiça, derivadas do direito
territorial e do direito pessoal tornado real; Yiterbo
cita a phrase Justiça de Montemár, empregada na
Ordenação Affonsina (Liv. i, tit. 12, § 2) como signi­
ficando a pena da despenhação. 0 condemnado era
lançado de uma rocha abaixo, e esta pena passou para
Santarém e outras terras do reino; (2) também se
usa já sem sentido a phrase Justiça de Fafe. Contra
esta jurisdicção local, e ainda contra a guerra privada
(1) Les Arts en Portugal, p. 426.
(2) Elucid., vb.* Ju stiça db Mo n t e m ó r .

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 261

e vindicta pessoal conservadas nos costumes da aris­


tocracia, estabeleceu-se a Justiça de elrei; na lingua­
gem popular temos ainda uma interjeição caracterís­
tica, o grito Aqui d’el rei, forma abreviada da phrase
Aqui justiça de Elrei, (1) quando já o poder judiciário
é reconhecido como independente do poder execu­
tivo.
Do espirito do direito territorial se deduz um sys-
tema de penalidade: a banição. O condemnado era
lançado fòra da terra; nos Foraes velhos mandava-se
que as suas casas fossem derrubadas. Temos ainda na
linguagem popular a locução: Sem eira, nem beira,
nem ramo de figueira, para significar a extrema misé­
ria. A demolição das casas conservou-se até muito
tarde nos costumes portuguezes. Na Sentença do
Santo Officio de Coimbra contra o dr. Antonio Ho­
mem, lê-se: «mandam que as casas em que se faziam
as ditas solemnidades e ajuntamentos, em detestação
de tão grande crime, se derrubem, ponham por terra
e seméem de sal, e nunca mais se tornem a reedificar,
e para constar e ficar em memória para sempre, se
levante no sitio d’ellas umi padrão alto com o letreiro
que declare a causa pela qual se derrubaram e
ram.»(2) Este symbolo penal foraleiro renovado em
(1) «Na linguagem popular das nossas províncias ainda hoje
se conserva em uso a exclamação de soccorro Aqui d’el rei,
que outr’ora era o reconhecimento dajurisdicção suprema do
monarcha, e que na actualidade perdeu toda a propriedade,
porque o poder judicial é independente da realeza. Este brado,
simples vestígio agora de antigas epocas, era no tempo de
Dom Manoel uma imposição legal:— Nenhuu nom seja tam
ousado que por arroido que se alevante chame outro appellido,
salvo Aque d’ElRey;e o que outro apellido chamar seja deg
dado por cinco annos fóra do Logar e Termo onde esto acon­
tecer com hum preguam na Audiência. (Ord. Man., Liv. v,
t. 61.)»—Teixeira Bastos, Rev.de Estudos L
(2) Sentença publicada no Antiquário de Coimbra.

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262 LIVRO I, CAPITULO IV

1624, repete-se nas execuções do Marquez de Pom­


bal uos paços do Duque de Aveiro em 1759; em Be-
lem existe ainda um marco de pedra, ou columna com
um fogaréo no ápice, no logar onde fôra o palacio cujo
chão fôra salgado, prohibindo-se o levantarem-se de
futuro ali quaesquer construcções ; a pedra existe hoje
escondida detraz de uns casebres, e o povo chama-
lhe o Marco salgado. Temos ainda a locução Pedra de
escandalo, que se referirá a estes usos ^primitivos.
A, penalidade antiga era atrocíssima., No Foral da
Lourinhã, confirmado em 1218, estabeleceu-se á ma-
peira do direito germânico, que: <0 matador, £e se
poder prender, seja sepultado vivo, e o morto lançado
em cima,d’elle...» Sobre este symbolo jurídico fez o
jogral Johan Ayras, a seguinte canção trobadoresca :
‘’ 1 ‘‘Ay justiça, mal fazedes que nom
queredes ora dereito filhar
de Mór de Cava, porque foy matar
Johau Ayras, ca fez muy sem razon;
inayç se dereyto queredes fazer
ela sô el devedes a meter,
ca o manda o Livro de Leom.
Ca lhe queria gram bem, e desy
nunca lhi chamava senom senor,
e quando-lh’el queria muy melhor
foy:o ela logo matar aly ;
mays, justiça, poys tam gram torto fez,
metede-a ja sô el hua vez,
en o mando é dereyto assy.
E quando mays Johan Ayras cuidou
que ouvesse de Mor de Cava ben,
foy-o ela logo matar por en,
tanto qu’el en seu poder entrou;
mays, justiça, pois que assy é já,
metan-a sô el et padecerá
a que o a muy gram torto matou.
E quen nós ambos vir jazer, dirá
beeyto seja aquel que o julgou, (i)
(1) Canç. da Vaticana, n.° 1076.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 263
O adultério era punido por uma forma degradante;
no Livro velho das Linhagens, um marido, D. Gonçalo,
por esse crim e: «filhou sa mulher e trosquiou-a e...
posea em cima d’hum sendeiro dalbarda o rostro con­
tra o rabo do sendeiro e hum home com ella...» (1)
No Cancioneiro de Resende ainda se allude no fim do
seculo xv a este symbolo:
Por fazer cousa ennovada
hireis ô revés da sela,
ó rabo mui bem pegada
escanchada,
faça quem quizer burrella. (2)

A defeza do accusado fazia-se pelos


ainda hoje entre o povo é frequente a defeza a qual­
quer increpação por fórmulas vulgares de juramento,
taes como: Assim, Deus me Diabos me levem;
Não chegue a amanhã;Raios me partam, etc
feza fazia-se segundo os velhos foraes pelo ordalio, ou
ferro quente; lê-se no Leal Conselheiro: «E o ferro
caldo, que n’aquella terra tantos certificam que o vy-
rom filhar.» (3) Cardoso, no Agiologio Luzitano conta
a lenda da mulher de um ferreiro que prova a sua
innocencia levando na mão um ferro de arado em
braza. Ainda hoje se diz Andar sobre brazas, Comer
brazas de lume, allusivo á forma do ordalio usado
pelos Druidas, e conhecido pelo nome de Breithnei-
hme; (4) a rainha D. Leonor Telles, como conta Fer-
não Lopes, tambem queria provar a sua innocencia
promettendo atravessar uma fogueira. A porca de
(1) Mon. hist., t. ii, p. 190.
(2) Canc. ger., t. ui, p. 98.
(3) Op. cit., p. 211. Ed. Paris.
(4) Smith, Hist. des Druides, p. 65.

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264 LIVRO I , CAPITULO IV

Murça serviu de ordalio, porque sendo uma figura


de pedra vermelha, mudava decôr em certos crimes
como prova de innocencia do accusado.
A pena da decalvação, acha-se imposta pelo Foral
de Arganil; nós achamos uma allusão a ella, na can­
ção (n.# 1037) do Conde D. Pedro:
Alvar Ruiz, monteyro mayor
sabe bem qu’a-lhe el rey desamor,
porque lhe dizem que he malfeytor;
na ssa terra est’é cousa certa,
ca diz que se quer hyr, et per for
levará cabeça descoberta.
E em uma canção de Martim Soares, acha-se uma
allusão á pena infamante da tosquia:
praz-me con el, pero tregoa lhes dey,
que o nom mate, mays trosquiarey
como quem trosquia falso traedor.
Nas parlendas infantis a tosquia tem um sentido
degradante, e á criança que apparece com o cabello
cortado dizem-lhe as outras:
Quem te tosquiou
Que as orelhas te
Por traz e por diente
Como o burro do Vicente?
No Foral de Santa Cruz de Villariça estabelecia-se
que se cortasse as orelhas ao ladrão, como nos Esta­
belecimentos de S. Luiz; na Ordenação Affonsina,
mandava-se que fosse desorelhado o que se achava a
furtar uma bolsa. (Liv. v, t. 60, § 11.) Outras formas
da penalidade conservam-se entre o povo com um
caracter particular ou de vindicta; tal é o costume de
Moer com um saco de areia. Viterbo cita um documento
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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 26 5
de Recião, de 1458: «huma noite com uma calça de
areia deram tantas calçadas, de que segundo fama
m orreu.» (1) A pena tambem se estendia aos animaes,
como vêmos pelos Foros de Torres Novas: «He cos­
tum e, que se alguem achar porco em sas vinhas
m aduras, matal-os-ha, se quizer, e cortarlhysha as
cabeças quanto tanger o bico da orelha pelo pescoço,
e havelas h a ; e seu dono dos porcos levará os toros,
e tc .» (2) Ha aqui um resto da vindicta pessoal e da
guerra privada, que se dava tanto entre as terras
como entre as familias. Nos Foraes portuguezes existe
a Faida germanica sob as designações de Homisio
(homicídio) e calumnia, e consequentemente as formas
jurídicas que submetteram este arbitrio a uma deter­
minação equitativa: 1.° as tréguas (treugae) em que
se interrompiam as hostilidades em certas epocas
do anno; 2.° os azylos ou coutos, em solares nobres,
ou no adro de egreja; 3.° a composição a dinheiro,
(werget) que veiu a dar a multa judicial. Na canção de
Martim Soares vimos a referencia ás tréguas; no Foral
de Seia aponta-se a egreja como couto ou azylo. A
phrase de ameaça popular hade-m’as pagar, encerra
a ideia primitiva de Wergeld e o espirito da vindicta.
A vendettatão característica dos costumes da Cór­
sega, é como a vindicta pessoal do direito consuetudina-
rio germânico, pelo qual os parentes da victima tinham
de castigar o criminoso. A vendetta nem é exclusiva
da Córsega, nem germanica; pertence a um estado
social em que não ha ainda a justiça publica regu­
lando as relações individuaes, mas sim um certo fami-
lismo, de sorte que a offensa a um dos seus membros
affecta todos os que o compõem. Por isso diz Grego-
rovius: «a vendetta não se encontra só na Córsega
(1) Elucid., vb.« C a i .ç a .
(2) Inéditos da Academia, t. iv, p. 623.
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266 LIVRO I, CAPITULO IV

acba-se tambem em outros paizes, na Sardenha, nas


Galabrias, na Sicília, entre os Albanezes e Montene-
grinos, entre os Circassianos, os Drusos, os Bédüinos,
etc.» O estado de guerra em que persistiu a Europa
durante as conquistas romanas, invasões germanicas
e arabes, manteve este costume de uma raça inferior
á raça àrica; em Portugal, existe ainda hoje a ven­
detta, entre a clastse intima do povo, sòb o nome de
Fadistas: os que vingam as proprias offensas^ Este
nome é um vestigio da designação germanica a Faida,
ou vindicta pessoal, do direito consuetudinario ; na
linguagem do povo pronuncia-se o que leva
à aproximação phonetica da Faida. Em um povo rela­
tivamente mais atrazado do <que nós, emquanto á
suavidade dos costumes, a vendetta perpetua-se em
um systema de bandidismo, que em Portugal se des­
conhece mesmo nas epocas de violências politicas. A
vindicta foi regularisada na forma do
ciario, de que temos ainda a palavra campar de va­
lente, campar por esperto, e terminou no costume civil
do duello, e no desafio. Canta Sá de Miranda :
Entre os Lombardos havia
Ley escripta e Ley usada,
Como se sabe hoje em dia
Que onde a prova falecia
Que o provasse a espada.
Ali no campo ás singelas
Emfim morrer ou vencer,
Fosse qual quizesse d’ellas
Não era melhor morrer
A ferro que de cautellas. (1)
As cautellas significam aqui as allegações e subti­
lezas do processo judiciário da jurisdicção real, que
(1) Obras, p. 194. Ed. 1677.

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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 267
t * ' \ . * ' S ' ,
prevaleceu no seculo xvi. No velho direito symbolico
dos estatutos terrRoriaes ou foraleiros, a mulher des­
ignava o seu estado de solteira trazendo os cabeUos
soltos, de casada trazendo-os atados, e de viuva tra-
zendo-os dentro de uma tou(1) no
Yaticana encontramos preciosas referencias a estes
symbolos, a que alludem ainda as cantigas populares :
Par deus coytada vivo,
poys nom vem meu amiga
poys nom vem, que farey?
meus cabellos com sirgo
eu nom vos liarey. (2)
Queria dizer, segundo a eloquencia dos symbolos
junidicos, que ficaria solteira ; n’esta outra canção ha
a esperança do casamento: i
E com sabor d’ellos
lavey meus cabellos,
meu amigo !
Des que vos lavey
dtouro los liey
meu amigo.
(Canç. n.# 794.)
Buscade quem vos entouque melhor,
e vos correja pelo meu amor,
as feyturas e o cós que avedes.
(Canç. 4)81.)
A mulher sem estado, no velho direito germânico
era chamada arga, como se lê nas Leis de Rothario :
«Aquelle que chamar arga a uma mulher, deve jurar
que o disse em um accesso de cólera...» Não será a
(1) Hist. do Direito portuguez, p. 53.
(2) Canc. da Vaticana, n.° 505.

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268 LIVRO I, CAPITULO IV

nossa injuria de Hervoeira uma derivação d’esta forma.


Muitas palavras, que significam uma situação moral
desprezível designaram um estado social; assim o
vadio era primitivamente o vadium, ou penhor que
se pagava para conferir a liberdade ao servo, entre­
gando este de mão em mão até que um quarto homem
livre o conduzisse a uma encruzilhada, dizendo-lhe
que escolhesse o caminho que bem lhe aprouvesse
porque era livre. O aldius era o servo que se liber­
tava por uma carta, como se vè pelas leis lombardas:
«Aquelle que quizer fazer do seu escravo um aldius
ou uma aldia, não deve seguir a cerimonia da encru­
zilhada, nem conduzil-o á egreja, mas escrever sim­
plesmente uma carta na qual serão inscriptas as con­
dições que se reserva, ou o libertará de viva voz.» (1)
Não será este facto, de um modo mais extensivo, a
origem da doação de Cartas de Foral, ou Cartas-pue-
blas dadas a certas aldeas ? Á adscripção á gleba ainda
existia no tempo de D. Manuel, e a palavra terra tem
ainda um sentido extensissimo, como patria. O liberto
tambem recebia a liberdade sendo novamente vestido,
segundo Grimm, impanatus; assim os jograes cobra­
vam pamos nas festas reaes, como vêmos pela canção
á morte do rei D. Diniz, e pelos costumes dos lavra­
dores do Minho de vestirem os seus criados. A pena
da desnudação deriva da antithese de impans; usa­
va-se nas leis de Lamego. (2)
Não admira que quando tantos vestigios de uma
organisação social persistem nos costumes, se conser­
vem tambem formas antiquíssimas dos contractos; sob
a palavra lborguesA,traz Viterbo esta curiosa noticia:
«Hoje se praticam em algumas das nossas províncias
os Alborgues entre, os que compram e vendem e os
íi) Rotharis, 227; Luitprandio, 4, S.
(2) Hist. do Direito portuguei, p. 65.
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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS , ETC. 269
que servem de testemunhas: consiste em pagar algum
dos contratantes (que ordinariamente é o comprador,)
uma vez de vinho para cada um dos presentes. E por
esta alegre cerimonia dão por feito e solemnisado o
contracto, de sorte que já o vendedor não pode variar
ainda que lhe offereçam maior preço.» (1) Este cos­
tume apparece em todos os povos em que ha elemento
germânico; Du Cange cita-o sob o nome de
gium, Laurière e Galland sob o de e
ainda nas leis francezas do principio d’este seculo a
stipulação do potde vin. (2) Nos costumes da A
nha chamava-se o Weintrunk, e de que falia
Reyscher, na Symbolica do Direito germânico. O sym-
bolo da stipulação, pela troca da palha (stipula festuca)
apparece nos nossos Foraes, nos Capítulos especiaes
de Santarém, de 1323 sob a designação de Palha de
fuste, a qual se dividia entre o credor e o devedor;
já se não pratica o acto, mas ainda existe a expressão
abstracta allusiva, como arrematação e entregar o ramo,
e na Ordenação affonsina (liv. i, tit. 19) ha a citação
per palha. Na linguagem popular encontramos a locu­
ção referente á pessoa que se enfurece por dá cá
aquellapalha,usada por Jorge Ferreira, (3) e tambem
Tirar palha com alguem, significando puchar palavra,
inquietar.
Assim como os costumes persistem adaptando-se a
diversos estados de civilisação, tambem convem con­
siderar a influencia da vontade individual nas trans­
formações sociaes; a lei derivou-se do costume, e por
fim proveiu da intervenção da vontade dos chefes tem-
poraes. Para exemplificar este caso, basta-nos citar
o documento da Camara do Porto, de 1401, que esta-
(1) Elucid., vb.* Rbbora.
(2) Chassan, Essai sur la Sym du Dr
(3) Eufrosina, p. 97.

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270 LTTBO I, CAPITULO IV

belece: «que os mesteiraes da mesma cidade não


fizessem obra alguma desde sabbado ao sol posto até
á segunda feira sol sabido.» As leis sumptuárias de­
cretadas peio poder real são a forma mais evidente
d’esta intervenção discricionária que muitas vezes se
annulla diante da estabilidade do conservantismo.

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CAPITULO V
I. •• ■
Automatismo orgânico na Imitação e na Tradição
Da ethnogenia ou elaboração natural dos Costumes: Acção
das crianças, das mulheres e dos velhos: A linguagem emo­
cio n a l — Parlendas e Joaos infantis. — Phenomenos de
Philologia generativa. — Os gestos, como manifestação de
um período de mutismo. — As intonações: as interjeições
populares e palavras expletivas.— Imitações dos sons natu-
raes e vozes dos animaes, nas parlendas infantis.— O genero
do Traba-lenguas em Portugal.—As neumas das cantigas,
e a creação da linguagem de giria. — Os Jogos infantis e
p opulares: sua origem organica, sentidosmythicos erepre­
sentação de estados sociaes.— Bases da critica comparativa
dos jogos populares communs ao occidente da Europa:—A
Cabra-cega, o Dou-te-lo vivo. Contagem dos dedos.—Jogos
numera ti vos, de addição e de eliminação.— Dansa e ele­
mento dramatico dos jogos populares.— O jogo da Condessa
e da Viuvinha.—Jogos ae aaivinhação como restos cultuaes.
—*Ennumeração dos Jogos populares nos escriptores por-
tuguezes, desde o seculo xiv a x ix .— Modas, Trajos e fo r ­
m as cerimoniaes. — Unidade Occidental nos trajos primiti­
vos : o mandil, o barrete, a cuia e a mantilha.— Persistên­
cias de certos trajos ibéricos no uso actual.— As vestes po­
pulares descriptas por Villas-Boas e Rodrigues Lobo.— Os
trajos do seculo e xiv descriptos no Cancioneiro por-
tuguez daVaticana.— Como os antigos escriptores portugue-
x i i i

zes contribuem para a descripção aos trajos nacionaes.—As


leis sumptuárias.— Modas francezas em Portugal.—Titulos
e cumprimentos. — A s Dansas e instrumentos músicos : —
A s dansas são documentos de differenciação ethnica, como
se observa na Hespanha e França.— Typos das dansas por-
tuguezas.— Evolução histórica das dansas, determinada pe­
las allusõe8 dos escriptores portuguezes.— Uma scena do
Fidalgo aprendiz, de D. Francisco Manuel de Mello.— In­
fluencia franceza e hespanhola nas dansas portuguezas: os
Tordiões e as Sarabandas.— Os instrumentos músicos: suas
relações com o elemento cultual. — Instrumentos músicos
populares. — Transição da vida domestica para a vida pu-

A razão de certos costumes sociaes, nas suas for­


mas e universalidade deriva dos antecedentes biolo-
gicos, quer pelo determinismo orgânico da evolução

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272 LIVRO I , CAPITULO V

individual do sexoe edade, quer pelos gráos


envolvimento ou regressão physiologica, como se ob­
serva nas crianças e nos velhos. A persistência d’estas
causas através de todos os estados sociaes, desde a
barbarie á civilisação, obriga o ethnologista a agrupar
um grande numero de factos consuetudinarios, mani­
festados historicamente, sob a sua dependencia bio­
lógica. Na Ethnogenia, ou elaboração natural dos costu­
mes da humanidade, a criança, a mulher e os velhos
são factores immediatos, embora inconscientes, que
actuam nos modos de sér de cada sociedade pela imi­
tação do que vêem praticar, pela especificidade de cer­
tos actos, ou pela transmissão automatica em forma
cerimoniosa e affectiva de tradição.
A criança na sua evolução organica representa pha­
ses extinctas do homem emocional primitivo : é assim
que pelo estudo da linguagem infantil se chegou i
descoberta do processo generativo da linguagem dos
povos civilisados. A criança tende por instincto para
a imitação do que se pratica á sua vista, macaquêa,
finge, reproduz tudo ; mas o objecto dilecto que leva
a criança á imitação é fazer como os grandes, como
os homens que a cercam. Já o poeta Lucilio notara
este importantíssimo caracter psychologico:
Ut pueri infantes credunt siçna omnia aliena
Vivere et esse homines, sic istic omnia ficta
Vera putant......................
Citando estes versos, accrescenta Lactancio: «Illi
enim simulacra homines putant esse, hi deos.» Sob
o ponto de vista da imitação dos actos do homem, é
que se devem agrupar os Jogos e as Parlendas infan­
tis; alguns d’esses jogos foram actos sociaes que se
obliteraram, persistindo apenas a sua macaqueação
sem sentido.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 273
A mulher é também um elemento essencial da acti­
vidade ethnogenica, coadjuvado pelas condições so-
ciaes. Nas relações da mulher com o homem brutal
das edades primitivas ou barbaras, uma das qualida­
des desenvolvidas como meio de resistência foi a se-
ducção, a necessidade de agradar. Spencer, na
ducção á Sciencia social, fez sentir esta importante
característica: «Nós podemos apresentar em primeira
linha o talento de agradar e o gosto do successo que
o acompanha. É evidente que, em condições eguaes,
aliás, entre mulheres vivendo segundo o capricho dos
homens, aquellas que sabiam agradar, eram as que
tinham mais probabilidades de viver e de deixar uma
posteridade.» (4) Em epocas elevadas de cultura so­
cial, esta orientação imposta pela situação do passado
da mulher revela-se na preoccupação do parecer bem ;
tal é a razão da moda, a modificação constante dos
trajos no sentido de agradar. A dama e o canto
ligam-se tambem a este instincto de seducção; Sha-
kespeare, para representar a belleza invencível de
Desdémona põe na bocca de Othelo, como motivo da
sua paixão: «uma mulher que canta.» As formas femi­
nis acham na dansa o relêvo que os trajos muitas
vezes prejudicam. A admiração que a mulher sente
pela força é tambem uma das causas de desenvolvi­
mento e conservação dos jogos de valentia entre as
classes populares, em epocas em que a ordem para
manter-se já não carece da intervenção da bravura.
Os velhos obedecem a um importante phenomeno
psychologico de regressão moral ao passado. Esque­
cem-se muitas vezes dos successos do dia de hoje,
e descrevem com pasmosa minuciosidade accidentes
remotos da sua mocidade. É esta tendencia que os
torna os depositários do formalismo cerimonial, do
(1) Op. cit., p. 405.
i8
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274 LIVRO I, CAPITULO V

respeito pelo passado (laudator tmporis acti e o ini­


ciador junto das novas gerações da tradição domes­
tica ou nacional. Aristóteles procurando as causas da
Eloquência na natureza humana, retrata assim os
velhos: «Os velhos que já passaram a força da edade,
têm um caracter quasi opposto ao dos mancebos.—
Elles vivem mais pela recordação do que pela espe­
rança ; porque o que lhes resta para viver é breve,
e o seu passado é longo; ora, a esperança reporta-se
ao futuro, e a memória para o passado; é por isso
que elles são narradores; elles passam o tempo a
repetir o que aconteceu, porque elles gostam de re­
cordar-se.» (1) As observações de Aristóteles foram
comprovadas physiologicamente por Erasmo Darwin
na sua Zoonomia. E assim no estndo das transmissões
tradicionaes, verêmos como os velhos conservam a
sabedoria popular derivada de uma pratica anterior.
Fóra da acção pela invalidez, exercem o resto da sua
vida nas especulações moraes, doutrinando; os
xinssão estas rapidas syntheses especulativas dedu­
zidas da similaridade de casos particulares; as Adivi­
nhas são os problemas espontâneos que estimulam a
primeira actividade mental; os segredos médicos e
os agouros,são o elemento de transição do culto
domestico para o culto publico. Seguindo o caracter de
cada um d’estes factores, é que os agruparemos tendo
até aqui sido observados de um modo desconnexo.
A linguagem emocional— Parlendas e Jogos infantis.
— O phenomeno da linguagem é um dos mais impor­
tantes problemas ethnologicos; homens de sciencia,
como Bopp e Grimm, pela filiação dos grupos de lín­
guas indo-europeas e germanicas alargaram o campo
da investigação histórica da grande raça àrica. Antes
(i) Bhetorica, ii, 12.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 278

porém do processo historico da filiação existiu o pro­


cesso orgânico de elaboração natural da linguagem,
presentido por De Brosses e Wedyood, a que jà hoje
se chama philologia generativa. É este periodo que
investigamos segundo o pensamento de Tylor : «A lin­
guagem das crianças estabelece de mais de uma ma­
neira decisiva, como é que a sociedade fez entrar
palavras no uso sem lhe pedir a indicação histórica.
É certo que o tom emocional e imitativo é muitíssimo
familiar ás crianças, e suas communicações vocaes
compõem-se quasi sempre d’este modo de expres­
são.» (1) A observação da linguagem das crianças
conduz a uma mais clara comprehensão da linguagem
emocional do povo, e a fixar os contornos do pro­
cesso philologico generativo. A linguagem emocional,
divide-se nos seguintes periodos : a) dos Gestos, cor­
respondendo a um estado de mutismo, e em que as
cousas se significam por uma representação mate­
rial ; b) da ntoaçã,Jnotada genialiíiente por Vico,
alludindo ao canto para vencer a gaguez do homem
primitivo, a que a anthropologia chama alálo ; c) final­
mente a da Articulação, em que a reproducção imi-
tativa ou onomatopaica dos sons, constituindo um certo
numero de radicaes, estes se ligam formando os the-
mas fundamentaes em que se elabora o periodo histo­
rico da linguagem.
Indicaremos a linguagem dos gestos, em geral com
caracter pejorativo ou insultuoso, muitos d’elles : A
affirmação ou negação faz-se abanando a cabeça para
os lados e de cima para baixo. Voltar a cara para a
banda, exprime desprezo, ou terror. Franzir a testa,
exprime severidade, ameaça; carregar as sobrance­
lhas, rigor ; piscar o olho, intenção comica, e aviso ;
afilar o nariz, desdem, e indicação de máo cheiro ;
(1) La Civilisation primitive, 1.1, p. 265.

r \r \r * \o Original from
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276 LIVRO I, CAPITULO V

morder o beiço, colera e desejo; fungar com força,


desconfiança; encher as bochechas de vento, simular
importância; arregalar um olho com o dedo, signal
de que se não é enganado; dar estalo com a bocca,
irrisão, e contentamento; dar um estalido com a unha
nos dentes, signal de determinação, perda irremediá­
vel ; mão pegando na barba e torcendo-a, grande de­
speito e ameaça para de futuro; levantar os hombros,
indifferença pelo que se está passando; curvar a cabeça,
submissão; olhar para océo, esperança, recordação;
dedo no canto da bocca, concentração de espirito; dedo
sobre os labios, silencio imposto ou pedido; antebraço
tapando os olhos, descontentamento de criança, e
somno; os dedos exprimem actos de indicação, de di­
recção, simulam furar, cortar; sacudindo-os é expres­
são de dôr, de queimadura; o indicador tambem
exprime negação e movendo-se de alto a baixo, aucto-
ridade e imposição; braços abertos, amizade, fran­
queza; um braço apoiado sobre o peito, affirmação de
sinceridade ou dedicação. Passar a mão por sobre
uma cousa, é expressão de carinho; em movimento
de cima a baixo, socego e assento; o punho cerrado,
é ameaça; a mão aberta, é justificação de impotência.
Ha gestos populares que são convencionalmente obsce­
nos. O estudo dos gestos é objecto da arte scenica da
Mimica, e um dos elementos principaes da Eloquen-
.cia; tanto Aristóteles como Quintiliano, bem como os
escriptores gregos estudaram esta forma da lingua­
gem emocional enascida nos tempos heroicos» como
diz Quintiliano. Os gestos occuparam uma parte im­
portantíssima nas praticas religiosos auguraes, os
quaes persistem ainda no modo de benzer e abençoar,
do catholicismo. Quanto mais dificuldade existe em
nos exprimirmos por sons, tanto mais se recorre aos
gestos, como se observa com os estrangeiros. Nos
contos populares existem situações expressas por ges-

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 277
to s, nas quaes incide a intenção graciosa. «Um homem
estava á meza com sna mulher, e precisou partir um
queijo; a mulher trouxe-lhe uma thezoura em vez de
faca. O homem exprobou-lhe que se não partia queijo
com thezoura, a mulher teimou na sua, e no accésso
de desespero o marido atirou a mulher a um poço.
Quando ella estava na agonia de se afogar, o marido
perguntou-lhe:— Com que se costuma cortar o queijo?
A mulher sem poder fallar ergueu a mão e fez com
os dedos o signal de cortar com uma tezoura.» (Porto.)
A maior parte dos Jogos infantis, tambem são um
desenvolvimento da linguagem gesticulada, imitando
actos. Sobre este ponto escreve Tylor: «O que os
homens civilisados fazem e os seus filhos no berço,
acha o seu analogo no esforço mental do selvagem e
consequentemente das tribus primitivas.» (i) Nos par­
lamentos e assembleias actuaes ainda se vota por ges­
tos, levantando-se ou sentando-se, erguendo o braço, e
jura-se estendendo o braço com a mão aberta. É evi­
dentemente um automatismo natural.
A linguagem das intonações é, como observa Wi-
theney, independente da das palavras; os sons expri­
mem intenções, taes como a intimação de pergunta,
de insistência, de invocação, de exortação; ha intima­
ções exprobatorias, ameaçatorias, irrisórias; fala-se
em tom pavoroso, lamentoso, pathetico e comico. Nos
jogos infantis conservam-se formas destacadas segundo
as intonações. No Jogo das Visinhas, temos a intona-
ção da pergunta:
—’Nhora visinha ? —Tem lá patinhos?
«Senhora minha. «Mas não são meus.
— Tem lá panella? — Elles que comem ?
«Cahiu-l’o fundo. «Milho miudo.
— Tem uma saia ? —Elles que bebem?
«Falta-lhe o coz. «Agua do rio.
(1) Op. cit., 1.1, p. 211,

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278 LITRO I , CAPITULO V

— D’onde vieram ? — Quem los comprou?


«D’alem, da feira. «Foi meu compadre.
Nisto ambas as crianças trocam de indo de
cócoras aos saltos, e grasnando d imitação dos
dizem:
—*Quá, quá, quá, quá.
E dialogando continuam:
— Elle que mais trouxe?
«Comprou-me um gabão.
—- E ae que côr é?
«É côr de limão.
E logo as duas crianças voltam de pé aos primitivos
logares, e fazendo gestos como quem toca viola, concluem
cantando:
«Ferram, fum, fum;
Ferram, fum, fão.» (1)
N’este exemplo da intonação de pergunta, do phe-
nomeno generativo da linguagem, observa-se o grande
processo da linguagem desenvolvendo-se das formas
imitativas espontâneas, ou onomatopêas. Imita-se a
linguagem dos patos, quá quá; e as vozes de uma
viola ferrum, fum, fum; sobre a importância ethnica
d’este facto diz Tylor: «Verifica-se que todas as lín­
guas contêm alguns sons articulados naturaes e dire­
ctamente intelligiveis. Estes sons apresentam um cara­
cter interjectivo ou imitativo, e a sua significação não
provém de herança nem de importação, mas é devida
á passagem directa do mundo dos sons para o mundo
das ideias. Assim como os gestos mimicos, elles têm
(i) Dr. Azevedo, Romanceiro do Archipelago da Madeira,
p. 491.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 279
em si mesmo sua significação, a qual é independente
da linguagem particular que os utilisa.» (1) N’esta
categoria de palavras, classificamos : as interjeições
tradicionaes, os nomes dos animaes e vozes para os
chamar, a reproducção de vozes da natureza, a desi­
gnação de instrumentos, as neumas das cantigas e
as aliterações conservadas nas phrases feitas e ane-
xins.
A interjeição Arret que se diz nos grande
tos de colera, e que se repete no jogo infantil :
Arre burrinho
Para a Mealhada,
Sete vinténs
De levar a carrada,
apresenta uma genealogia vasta ; segundo Tylor, o
capitão Wils achou-a em uso nas ilhas Pelew, onde
os remadores eram animados ao som de arree t arreei
como fazem os arreeiros em Hespanha ás mulas. Na
linguagem australiana ari,é empre
mente, e no quichua significa sim ; Tylor julga que
esta voz Arre ! empregada em toda a Arabia é usada
na Europa até onde se estendeu a conquista dos Mou­
ros, apontando assim o arri da Provença. (2) Em Por­
tugal tambem se emprega a interjeição lira I A inter­
jeição Hun-hun, que pode exprimir increpação e apro­
vação, acha-se entre os Caraibas, e entre os Yoru-
bas da Africa ; Puf e Pfhu, expressão de desdemcomo
o assobio que imita, acha-se entre os australianos sel­
vagens, e usaram-na os gaulezes; escreve Tylor:
«Rochefort descreve os Caraibas ouvindo o discurso
do seu chefe em um respeitoso silencio e testemu­
nhando a sua aprovação por hun-hml justamente
(1) La Civilisation primitive, 1.1, p. Í8Í\
(2) Ibidem, p. 224.

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280 LIVRO I, CAPITULO V

como na mesma epoca, (seculo ) uma congregação


x v ii
ingleza saudava um prégador popular. 0 gesto de
soprar é tambem uma expressão familiar de desprezo
e de desgosto, e quando ella é vocalisada produz
interjeições labiaes, que se escrevem baht pughl
pooht em gaulez pw,no baixo latim e segundo
a relação dos viajantes, entre os selvagens da Austrá­
lia, paoht E estas interjeições correspondem á massa
das palavras imitativas que exprimem a acção de
soprar, taes como o puput dos Malaios. Este gesto
labial que acompanha a acção de soprar transforma-se
no gesto que acompanha a acção de cuspir.» (1)
Á interjeição portugueza de impor silencio, Schu I
TchuI Chiton tapparece em outros povos: «Empre­
gam-se sons similhantes para ordenar silencio, para
impedir de fallar, para obstar a avançar-se; no inglez
husht l whist l em gaulez ust I em francez chut t em
italiano zittol em sueco ty (2) P
animaes, especialmente aves, diz-se CAd;Viterbo traz
no Elucidário, Ruxoxó,voz do seculo xv para
tar a passarada (velho grito allemão schu! schu!) que
hoje se emprega no Porto como synonimo de repri­
menda. A interjeição de aviso, e ao mesmo tempo
impeditiva, Olét Olá ét um grito de alarme
mulheres fidjianas, onde oilé veiu a significar lamen­
tar-se. (3)
Liga-se tambem á neuma ailé, e Ido, Ido das
cantigas populares da península ibérica. A interjeição
Jh! Ui, e Ai, é frequente em composição lh Jesus t ou •
Ai Jesus! Na ilha de Santa Maria diz-se Uei! nas ilhas
de Tonga ui! equivale a fi ot u exprobaç
Zelandia, hé, exprime a surpreza por um engano. (4)
(1) Op. cit., 1. 1, p. 218.
(2) miem, p. 229 e 208.
(3) Ibidem, p. 220.
(4) Ibidem, p. 221.

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AUTOMATISMQ DA DOTAÇÃO E TRADIÇÃO 281

Citámos apenas as interjeições mais características


e nniversaes; apontaremos a imitação das vozes dos
animaes, cnjas onomatopêas vieram a servir de desi­
gnação nominativa. Sobre este processo generativo
da linguagem, escreve Tylor: «Os selvagens possuem
em alto gráo a faculdade de exprimirem directamente
as suas ideias por tons emocionaes e interjeições,
faculdade implicando tambem a de reproduzir os sons
que lhes fazem emittir espontaneamente certas emo­
ções ; estes tons emocionaes e estas interjeições ser­
vem-lhes para traduzir ideias e se introduzirem sob a
forma de palavras na liDguagem grammatical. Elles
possuem eminentemente o meio e a faculdade de
criarem a linguagem.»(1) Na vida portugueza as crian­
ças conservam esta faculdade generativa: Miáo, é o
gato, tal como pelo mesmo processo o designam os
chinezes maou; (2) o cão é o nome imitado
do seu latido; o galo é o como no ma-
laio, onde kaluruk kukuh significa o canto do galo, e
em Inglaterra cockcrow um momento de dia; (3) en­
tre os Zulus, o kukuluku exprime tambem o canto
do galo; (4) a.gallinha, na linguagem infantil é o
Pipij e no magyar pipe significa frango; (5) o boi, é
o Bó ou Bu,imitação do seu mugido, como no gaulez
bu. O carneiro é o Mé, o cão um To-tó. Na comedia
de Antonio José, Vidado grande D.
Mancha vem imitações das vozes dos animaes:
Se hoje o meu cantar E se dos Poetas
Um zurro hade ser, Gallo posso ser,
Quero começar : Cantarei aqui
An! an! an l an! Qui, quiri, qui!
(1) La Civilisation primitive, p. 192.
(2) Ibidem, p. 240.
(3) Ibidem, p. 241.
(4) Ibidem, p. 388.
(8) Os australianos chamam os frangos pelo som de pi-pi.
Tylor, ibid., p. 209.

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282 LIVRO I, CAPITULO V

E logo acolá
Cá,cará, cál
Porque canto só
Có, coró, cól (1)
Moitas vezes a interjeição é derivada do nome do
animal: Cuchetcuchet serve para chamar o por
por ventura do nome de cochon; Bich-bich e bichano;
serve para chamar o gato, como no hespanhol miz-
miz; em Saxe chama-se ao gato pus-pust no inglez
puss puss I Tylor diz-nos que este nome veio com o
gato do Oriente, como se vé no tamil no afgh
pusha, no persa pushak; Cock diz, que nas ilhas de
Tonga se chama ao gato boosi husi) e as tribos do
noroeste da America chamam-lhe tambem pwsh, pish-
pish. (2) Enfurecem-se os cães com a voz Aça! d’onde
veiu a formação do verbo açular, ou metter os cães
á bulha ; diz Tylor : «Na Suissa parece que se grita
huso! para excitar os cães.a bulharem ; tambem temos
ks ! ks !e na Inglaterra, segundo Tylor, emprega-se
kiss-kiss ! como em França. Para fazer parar as bestas,
diz-se : Ucha ! e Uchta ! no allemão existe a expressão
wist I applicada no mesmo sentido. (3)
As cousas tambem são designadas por expressões
onomatopaicas, como vêmos entre os selvagens : as
crianças chamam ao tambor tam-lam, como os orien-
taes; o tiro de polvora é o Pum! Diz Tylor:
«Quando os selvagens viram as espingardas europêas,
designaram-as com o som pu ! indicando não o effeito
mas o fumo que saia do cano.» (4) O som da trom­
beta é imitada na voz tu, tu, tu! Sobre este facto
escreve Tylor: «O som da corneta é imitado nas nur-
serias inglezas, por toot-toot,que serv
(i) Operas portuguezas, 1.1, p. 63.
(2) Tylor, op. cit., 1.1, p.p. 201.
(3) Ibidem> p. 213.
(4) Ibidem, p. 238,
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 283

designar o omnibus de que a corneta é signal.» (1)


Nos jogos infantis é frequente esta imitação:
Tan,taran, tana,
Minha carapaça I
T a n , ta ra n ,tana,
Que assim baiiha a raça 1
Por este facto se vê que certas neumas que acom­
panham as cantigas, como e Lari, lolé, são a
imitação dos instrumentos músicos, como a flauta ou
o tambor, que foram substituídos pela bocca.
Imitando os passos do cavallo, ou os do burro:
Catrapoz! catrapozt
Vamos até á Foz.
Tique I tique! toque!
Vamos a Sam Roque,
Ver os peraltiuhas
Que andam de capote.
Os sons imitativos da linguagem infantil tornam-se
palavras, como o gró-gró, que vem a significar bebida
e grogue. As designações de parentesco, papá, mamã,
bébe, néné pertencem por assim dizer á linguagem
emocional de um grande numero de povos. Os nomes
infantis de pae e de mãe não devem ser estudados
em uma só lingua; diz Tylor: «Elles são membros
importantes de uma grande classe de palavras, per­
tencendo a todos os tempos e a todos os paizes, e
formando uma lingua infantil cujo caracter commum
consiste em permanecer no limite das ideias por que
se interessam as crianças, e a exprimir estas ideias
por uma serie de articulações apropriadas aos primei-
(1) La Civilisation primitive, 1.1, p. 243.

Original from ^
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284 LIVRO I , CAPITULO V

ros ensaios da criança para falar.» (1) Tylor exem ­


plifica este principio com as palavras papi, pae e n tre
os selvagens australianos, em tamil appá, pae, e
mie, em bodo aphâ, pae, e âyá, m ie ; os caraibas e
insulares das Carolinas dizem papa, e no anglo-in-
diano babá,o pae. As relações de alimento ligadas á
ideia de pae ou de mie slo apontadas por Tylor: «Estão
perfeitamente indicadas como taes na antiga Roma e
na Inglaterra moderna: papas, nutricius, nutritor,
pappus, senex: = cum cibum et potum buas ac papas
dicunt, et matrem mammam, patrem latam (ou pa­
pam. )»(2) Os negros do Congo chamam ao pae lata, como
os do paiz de Galles tad. No jogo das Palminhas, vêm es­
tes nomes generativos ligados á ideia de comida: (Porto.)
Palmas e palminhas,
A mamã dará mamminhas ;
O papá quando vier
Papará ao que trouxer.
A criança é tambem chamada o o como
no anglo-indiano bábú, no indiano dariano ninah, filha,
no italiano ninna, neta; no milanez ninim, leito, cor­
responde ao nosso fazer nana, ou dormir, e manar,
embalar, como no italiano ninrnre. A boneca com que
a criança brinca é a nena, que nos explica a palavra
anão (mano) para significar o que ficou pequeno.
Pertencem à categoria da linguagem emocional as
cantigas para embalar ao berço. No Auto da Sibüla
Cassandra, Gil Vicente traz a neuma Ró, Ró, das can­
tigas para adormentar as crianças, a qual ainda sub­
siste na tradiçlo actual:
Oh meu menino, ru, ru,
Cantam os anjos, dormirás tu.

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N E W Y O R K P U B L IC L IB R A R Y
AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 285
E ainda derivada da antiga neuma:
Róla, róla, meu menino,
Quem te hade dar a mama?
O teu gae foi p’ro moinho,
Tua mae caiu na cama.
Na Feira de Aneocins, traz D. Francisco Manuel de
Mello uma referencia a esta cantiga, em que a neuma
do Rú rú, é substituída pela nana:
Ora nana meu menino,
Que teu pae foi ao moinho. (1)
É conhecida a passagem da Comedia de Rubena de
Gil Vicente, em que a ama diz o primeiro verso das
cantigas que sabe para embalar crianças. Estas can­
tigas, a que os gregos chamavam Nanarissaf variam
segundo se embala ou passeia as crianças:
Tinglrn-tin, «Varre-lhe a casa,
Tinglm-tó, Sacode-lhe o pó,
Que faz o netinho E cata-lhe as pulgas
Em casa da avó? Do berço ç-o çó. (2)
Quasi todos os actos das crianças sSo expressos
pelos paes com linguagem emocional; ao primeiro
dente que rompe as gengives, chama-se um ratinho:
Quando em rapaz me nascia
Em minha bocca um dentinho,
Que me nascia um ratinho
Então minha mãe dizia; (3)
(1) Feira de Anexins, p. 164.
(2) No Romanceiro do Archipelago da Madeira, (p. 484) vem:
Gatál-os piolhos,
Fazél-o co-có.
(3) Serrão de Castro, Os ratos da Inquisição, p. 129. (sé­
culo XVII.)

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386 LIVRO I, CAPITULO V

Os sons da natureza, as vozes dos animaes, as


orações religiosas são reproduzidas com palavras nas
suas impressões aproximativas. Parece que o estado
de fetichismo inicial persiste na mente da criança, que
reduz á sua linguagem a voz de todas as cousas.
Apresentamos aqui algumas d’essas imitações da lin­
guagem. Quando passam soldados ao compasso dos
tambores, dizem os rapazes:
Ram,cataplam,
Mata aquella ratazana. A ramela fica atraz.
E tambem, com outro passo de marcha:
Ratos com couves,
Lagartixa com feijão,
Cá p’ro nosso, cá p’ro nosso
Cá pr’o nosso capitão.
Um cabo de tambores ensinando um recruta dizia,
que para rufar bem no tambor era preciso fazer:« Um
réo, um téo, com dois catapléos.O to
nos arraiaes é imitado no verso:
Zé Freira, Zé Freira,
Zé P’reira, Zé-Pum;
Casaco de chita
Remendo no tum.
Na linguagem chula o bumbo é chamado Zé Pereira.
O toque das cornetas é imitado: Ai Victorino, Victo-
rino, ai, dó. E tambem: Hade-se chamar Gonçalves,
olé; inda que leu pae não queira.
O toque dos sinos é pittorescamente imitado; diz
o dobre de finados (Porto):
— Morreu uma velha!
Morreu uma velha I

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 287

«Que nos deixou ella?


— Uma manta velha.
«Como a partiremos ?
— De lombo a lombo.
Quando o sino grande dos Bernardos, do Porto,
tocava ao côro, ou quando a garrida das freiras bene-
dictinas chamava a vesperas, o povo percebia n’esses
sons graves e estridentes iim singular dialogo; dizia
o sino grande:
— Nóstemos boa sópa t Nós temos boa sópa t Respon­
dia a garrida: — Porque tendes orelheira! Porque ten­
des orelheira.
Proximo de Coimbra, o sino de Torres dizia: Tem
lendeas I Tem lendeas / E o de uma povoação visinba
responde-lhe: — Mata-as com um páo! Mata-as com
um páol
Os sinos de Santa Cruz de Coimbra, quando toca­
vam diziam:
Somos fidalgos, Minha mãe tem pão
Temos dinheiro; Bacalháo, feijão;
Pão e queijo O frade está á porta
Para dar ao sineiro. C’o chapéo na mão. (1)
As crianças usam o Jogo do sino, unindo-se costas
com costas, e oscilando, levantando cada um por sua
vez os pés, dizendo:
Tão, balalão I Tão, balalão
Morreu o Simão, Morreu o Simão t
Na terra dos mouros Ficaram os filhos,
Senhor capitão. Comeram o pão.
Uma parlenda do Minho, para ensinar as crianças
a fallar, imita o repique dos sinos:
Dim, dim, doml
Vamos ao som
(1) Jogos infantis, p. 32.

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288 LIVRO I, CAPITULO V

D'este repique;
Vinho sem pique
É melhor qu’a pom.
Quando antigamente os frades começavam as rezas
do côro, o povo que vivia adormentado por esse latim
mortuário, traduzia os accentos soturnos do canto­
chão psalmodeando por esta forma irrisória :— Ervast
ervas t tudo eram ervast Mudando de intonação: — E
alguns feijões também. E augmentando o som grave :
— É verdade t É verdade!
Por esta mesma forma traduz o officio de defun-
ctos, imitando os padres nos enterros :
Se fôres para o céo
Bem irás 1
Se fôres para o purgatorio
De lá sairás;
Se fôres para o inferno
Lá ficarás!
Quer vás, quer não,
O pinto e a vella
Cá para a mão.
E esta outra imitando o latim :
Ingrola, ingrola,
Vae para a cova ;
Seis vinténs e a vella,
E vamos embora, (i)
As vozes dos animaes dão logar a imitações dra-
maticas, a jogos, a parlendas poéticas de alto valor.
Eis a imitação do canto dos sapos, no Minho :
— Oh Lucas !
«Uh.
— Tu vás?
«Eu vou;
E tu?
(i) Ap. Sequeira Ferraz (Actualidade, n.* 207, de 1882,)

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AUTOMATISMO DA ÍMlTAÇÁO E TRADIÇÃO 28Ô
Dizem os melros no seu canto: O pipo do meu com­
padre, escorropicha-o, picha-o bem. (Minho.) E m ais:
Nós somos muito ricos, temos cerejas; lá vem as pretas
molles que dizem: forrico, forrico. (Coimbra.) E em
Monte-Mór-o-novo:
Minha mãe, minha mãe, minha mãe
Me disse, me disse, me disse,
Que á noite não sahisse,
Que havia de vir o milhano
Que me havia de comer.
Pois não comestes I pois não comestes!
Comeu, comeu, comeu.
A voz do gallo é imitada, n’esta quadra :
Cá, cará, cát
Põe-te na pá,
Faz um bolinho
E bota-m*o cá.
Eis a imitação do que se passa no.gallinheiro : Canta
o gallo velho — Quem virá lá ? Responde o gallo novo :
— Um cavalheiro. Diz a gallinha : Jantará cá ? Pia um
frango : Triste de mim ! Pia outro mais pequeno : Tri­
pas ó soit '(Minho.) (1)
Simulando a bulha que fazem os porcos quando
comem :
Lambão, lambeu,
Tal a coma quem m’a deu.
E os gatos ás bulhas; diz a g ata:— Bernardot
Bernardo t Quero uma saia. Responde o gato : — Não
(i) Na tradição hespanhola tambem ha estas vozes imitati-
vas : «Um çallo cantando : — Cristo murió. Otro que le con­
testa : —Vamoslo á ver. El i° No tengo camisa. El 2o Yo tengo
tres. El Io: Empréstame una. El 2o: No tengo ninguma. Vid.
Folk Lore Betico-Extremeno, p. 214. 1884.
19
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290 LIVRO I, CAPITULO V

tenho dinheirotA gata assanhada : Ah máo, máo.


(Lisboa.)
Depois das imitações temos o phenomeno domes­
tico de desenvencilhar a lingua, a que os hespanhoes
chamam Traba-lenguas, e que dá logar a um grande
numero de fórmulas mais ou menos poéticas:
—Pardal pardo, porque palras?
«Eu palro e palrarei,
Porque sou o pardal pardo,
Sou o palrador de elrei.
Assim espontaneamente se produz a aliteração,
uma das formas poéticas mais primitivas:
Debaixo d’aquella pipa
Está uma pita;
A pipa pinga,
A pita pia.
A troca de letras é tambem um ensaio de traba-
lenguas:
Quem pouco panno pardo tem,
Escassa capa parda faz. (i)
Na linguagem infantil é costume juntar a cada syl-
laba da palavra uma expletiva pler (Garrazeda de An­
ciães,) ou greg (Porto) ou o funfer maracot (Coimbra,
Açores.) Apresentaremos alguns exemplos mais vul-
garisados; sobre este ponto notou Leite de Vascon-
cellos: «Na Beira Alta, os rapazes costumam juntar
(1) Jogos e Rimas infantis, p. 24.—Nos Cantos populares
espanoles, 1.1, p. 84, vem esta formula :
Compadre, compr’usté poca capa parda;
Que’l que poca capa parda compra,
Poca capa parda paga.
Yo que poca capa parda compré
Poca capa parda pagué.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 291

á vogal ou diphthongo de cada syllaba um por


ex.: estamos satisfeitos,diz-se : — es-pis-tâ-pá-mos-piis
sa-pa-ús-pis-M-pei-los-pus.
«No Minho, segundo me informa um meu condiscí­
pulo, os rapazes costumam juntar, tambem por brin­
cadeira greg...,o citado exemplo diz assim: — es
grés-ta-gregá-mos-gregus sa-gregá-tis greguis-iú-greguei
tos -gregós. Não se cuide que estas formações de lin­
guagem são sem importância ou exclusivas do nosso
paiz.i (1) O illustre philologo Paulo Meyer discutindo
um phenomeno analogo no dialecto italiano de Yal-
Soana, considera-o como um processo generativo da
linguagem «sur le quel est fondé le javanais.» O pa-
tois de Yal-Soana é modificado pelos habitantes quando
não querem ser entendidos por extranhos, introdu­
zindo oth, ath, ith diante da primeira syllaba da pa­
lavra (ex.: por-tcr, diz-se port-oíA-jer). Em Hespanha
dá-se egual phenomeno generativo, como observa Cabi
y Soler: «en castellano vemos que los ninos se for-
man una jerigonza que consiste en la introduction
dei sonido guede, gada.,etc. en medio de cad
Para decir, v. g. Como estamos? se expresan assi
co-godo-mo-godo es-guedes-ia-gades-mo-godos ? En cata-
lan se usa por lo comon la x...: co-xo-mo-xo es-xes
ia-xorvao-xos ?» (2) Sequeira Ferraz cita uma cantiga
de Carrazedà de Anciães, em que os rapazes inter-
callam a expletiva greg. (3) Os Contos infantis tam­
bem apresentam a seguinte forma generativa: «Era
uma vez uma velha, fumfurrumfelsaracotelha,
racotelha, e tinha um gato , saracotato,
maracotato, etc.» Nos Jogos e Rimas infantis, n.° 44,
achamos o seguinte: «Era uma vez um caçador fu-
(1) ODialecto mirandez, p. 8. Porto, Í882.
(2) En---------- **— en dialecto berciano,
Ensayos poéticos
■ — p.- xiii, not.; apud
Leité de Vasconcellos, op. c i t p. 8, nota 3.
(3) Folk-Lore Betico-extremeno, p. 217.
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292 LIVRO I, CAPITULO V

runfunfor, triunfunfor,misericuntor;e foià caça,


furunfunfaça, tnunfunfaça, misericuntaçae caçou um
coelho furunfunfélho, triunfunfelho,
etc.» (1)
Estas formas dão logar ás neumas dos cantos lyii-
cos e a varias manifestações da giria de certas clas­
ses populares. É conhecida a canção basca leio,
neuma personificada em um heroe, e que se repete
na Irlanda na forma leoi; Philarète Chasles cita um
estribilho dos cantos populares da Suissa, que é simi-
lhante a esta neuma peninsular : «o eterno lo-lo-loi do
canto helvetico vos perseguirá por muito tempo sobre
a estada com os seus risonhos adeuses e seu grito
amigavel.» (2) Em uma estampie do Cancioneiro Douce,
acha-se o verso Heró I Heró I k’en ferai ? — É a mesma
neuma que se repete nos romances hespanhoes : Helol
helo I por do viene, etc. (3) Nas antigas canções pro-
vençaes portuguezas temos a neuma lelia edoy lelia. (4)
Nos cantos populares do Archipelago da Madeira con-
serva-se um genero particular chamado as
g a s ,da expletiva de que é formado; citaremos um
exemplo :
-Lingue-lingue, tu que fazes ?
•Lingue-lingue faço papas.
— Lingue-lingue, que e das papas?
•Lingue-lingue não tem sal.
—Lingue-lingue, que é do sal ?
•Lingue-lingue tem rendeiro.
—Lingue-lingue, lo rendeiro ?
•Lingue-lingue foi ao mato.
—Lingue-lingue, que é do mato?
•Lingue-lingue lume o queimou, etc. (S)
(1) Jogos e Rimas, p. 24. Porto, 1884.
(2) Voyages, Philosophie et Beaux-Arts, p. 272.
(3) P. Meyer, Rapport, p. 227.
(4) Questões de Litteratwra e Arte portugueza, p. 46.
(5) Dr. Azevedo, Romanceiro do Archipelago da Madeira,
p. 473.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 293

No Porto ouvimos esta parlenda com a expletiva


Ninguerinim;porém a designação de lenga-lenga em­
prega-se vulgarmente para significar uma linguagem
monotona e prolongada. Não desenvolveremos as nos­
sas observações sobre o pheuomeno generativo da
linguagem chamado giria; sobre este ponto diz João
Pedro Ribeiro: «Bluteau lhe chama giria, palavra que
é desconhecida a todas as edades da lingua, signifi­
cando aquella as expressões que os ciganos usavam
entre si, para não serem dos mais entendidos. Assim
nem pintos por cruzados novos, nem patacos, por
moeda de 40 réis, se precisam mencionar.» (1) Leite
de Vasconcellos tambem indica o facto: «Os pedrei­
ros, os ciganos, os contrabandistas, etc., usam entre
si uma giria notável.» E accrescenta: «os pedreiros
em Paredes e S. Martinho de Moiros dizem mói por
eu, toi, por tu, soi, por elle, por chapeo, gam-
bias, por pernas (este termo é usado vulgarmente).»(2)
O trabalho mais desenvolvido que possuímos sobre
este problema é o livro do seculo passado que se
intitula Enfermidades da lingua. Depois da giria, a
linguagem dialectal ainda se liga com o processo ge­
nerativo. (3)
É nos Jogos infantis e populares que se observa a
synthese d’estas trez fórmas de linguagem que temos
indicado, a Gesticulação, a Inlonação e a Articulação.
(1) Reflexões philologicas, n.° 1.
(2) Dialecto mirandez, loc. cit.
(3) «... ou tambem se faz em terras esta particularidade,
porque os da Beira tem umas falas e os Dalentejo outras; e
os homens da Extremadura são diiferentes dos Dantre Douro
e Minho : porque assim como os tempos, assim tambem as
terras cnão diversas condições e conceitos: e o velho como
tem o entender mais firme com o que mais sabe tambem suas
falas são de peso, e as do mancebo mais levesFem ão ^Oli­
veira, Gram., cap. 38.

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294 LIVRO I, CAPITULO V

Antes de qualquer intenção taxonomica, os Jogos tradi-


cionaes devem ser organicamente classificados segundo
estas trez formas primitivas da linguagem. As parti­
cularidades d’este problema obrigam-nos a estabe­
lecer préviamente algumas considerações ethnoge-
nicas.
A vida do homem não se compõe somente de fun-
cções de relação; um grande numero de actos são
praticados sem terem o estimulo das necessidades or­
gânicas, ou das suggestões do instincto, nem das deter­
minações da vontade; praticam-se esses actos sem
intuito, sem um destino, e, segundo a perfeita expres­
são dos physiologistas, são manifestações especificas
do funccionalismo orgânico, que caracterisam os ani-
maes superiores, sobretudo o homem. Exemplifique­
mos essa actividade especifica: o passaro que gorgeia
e que saltita de ramo em ramo, o cão que corre,
latindo e mordendo de leve sem tentar fazer mal,
exercem especificamente funcções de relação indepen-
4dentes dos seus estímulos naturaes. Quasi todas as
funcções do homem adquiriram um uso e desenvol­
vimento especifico, que as tornaram manifestações ar­
tísticas : assim a locomoção, independente do seu uso
funccional, deu logar á dansa; a voz dá logar ao canto;
o ouvido ao rythmo, e os movimentos em geral a um
grande numero de actos específicos, como a panto­
mima. Esta tendencia observa-se sobretudo nas con­
dições da edade; os animaes superiores, quanto mais
novos mais exercem as suas funcções de relação com
certa especificidade, brincando. No estudo da ethno-
genia popular é n’esta categoria que entram os Jogos,
as Parlendas, as Dansas, e os divertimentos domésti­
cos infantis; é este o critério para serem avaliados
estes factos apparentemente frívolos. Depois d’este
processo convém estabelecer comparações pelas quaes
o jogo ou divertimento pueril adquire importância

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 295
pela sua relação com o estado de um outro povo, que
ás vezes sem communicação histórica conserva o me­
smo uso. D’aqui a necessidade de attribuir essa simi­
laridade a um fundo commum de raça, attribuição que
se torna uma palingenesia histórica á medida que os
paradigmas augmentam. É então que os factos com­
pilados adquirem um caracter scientifico; são um ma­
terial que reclama applicação. Segundo a concepção
da philosophia positiva e a sua terminação hierarchica
na sociologia, tudo se subordina ao conhecimento do
homem. Os dados ethnicos são então os factos con­
cretos da psychologia, que deixa de ser individual ou
intraspectiva para tornar-se humana e objectiva. O
automatismo orgânico será explicado pelos phenome-
nos sociologicos da tradição, que se transmitte como
que inconscientemente; os velhos, que se vão tor­
nando alheios ao seu meio social, e que perdem a
memória das cousas quotidianas, reagem com inten­
sidade avivando as suas emoções tradicionaes. As
crianças, tambem alheias ao meio social em que se
desenvolvem, e que não comprehendem, imitam os
actos que observam, parodiam o que notam, fazem
como os grandes. Os Jogos populares tem esta dupla
origem; uns são actos tradicionaes, que se praticam
pela persistência dos costumes, quando já não corre­
spondem effectivamente ao estado social que os produ­
zira ; outros são a imitação de actos que se pratica­
ram, e que se repetiram durante algum tempo para
glorificação ou perpetuação na memória, vindo a de-
cahir de importância nas parodias infantis. Os jogos
populares simulam batalhas, assaltos de pontes, ata­
ques contra grandes monstros, paradas triumphaes,
e esta actividade especifica das relações sociaes é tam­
bem parodiada pelas crianças que nos seus folguedos
imitam combates, procissões e sermões com parlen-
das inintelligiveis. Para exemplo do primeiro caso

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296 LIVRO I, CAPITULO V

temos os Bafordos, as Alcanzias, os torneios de


as Tarascas, as figurações da procissão de Corpus, as
Cavalhadas, as Mouriscadas e outros jogos que pelo sen
caracter se tornaram nacionaes ; do segundo caso
apontamos as Charolas, o Dou,a Cabr
e outros jogos infantis cujas raizes tradicionaes se vão
encontrar ainda nas sociedades selvagens actuaes, ou
na vida civil de Àthenas, em Roma no tempo de Pe-
tronio, em França, na Italia, Hespanba e Portugal, e
entre a plebe da Russia, emfim com uma universali­
dade que espanta.
N’estas duas categorias de jogos ha um desenvol­
vimento artístico, que vem a parar nos jogos de cal­
culo e de sociedade, como os do Xadrez e da sua sim­
plificação nos aipesN, introduzidos na civilisação
Europa pelos Arabes, e os jogos com fim educativo
como os que consistem em exercícios espontâneos a
que as amas submettem as crianças, como são os
jogos de tautologias, os de números, como a contagem
dos dedos, os de perguntas e respostas. Os jogos
infantis complicam-se com a edade, e assim passam
do isolamento domestico para a convivência da rua ;
é ahi que variam segundo o calendario annual paro­
diando as commemorações religiosas. Para muita gente
os jogos infantis adquirem um caracter prophetico,
como quando dos seus combates simulados deduzem-se
prognosticos de guerra. Os Jogos populares e infantis
foram em grande parte desnaturados pela egreja nos
Ludi, ligando esses actos específicos tradicionaes á sua
liturgia como os jogos do Maio e de S. João ; mas a
importância d’este campo ethnico é extraordinaria,
porque elle é o ponto de convergência de muitos actos
que se desenvolveram em formas artísticas, como a
Dansa, o Momo ou Colloquio que se tornou theatral,
como a ária, como a propria canção.
No seu estudo Dei Giuochi fancciulleschi, o illustre

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 297

Pitré apresenta algumas ideias geraes em que se


evidencia a importância d’estes phenomenos para a
historia social da humanidade. A criança representa
transitoriamente a situação do homem primitivo, re­
produzindo formas da actividade do selvagem nos seus
jogos, em que imita as vozes dos animaes e em que
os parodia, dialogando em um fetichismo espontâneo.
A caçae a guerra, as duas preoccupações do selva­
gem, são o thema inicial de uma grande parte dos
jogos infantis.
Os velhos cultos esconjuratorios, subsistem em mui­
tas parlendas que acompanham os jogos das crianças,
como notou Eugène Rolland; a sorte e o acaso, essa
entidade deslumbrante de todas as classes atrazadas,
figuram como parte fundamental dos jogos das crian­
ças, vindo a constituir o genero das Adivinhas ou
Enigmas. As ideias primitivas sobre o nosso cosmos,
acham-se representadas nas doze casas do jogo do
Homem, que Pitré equipara ás do zodiaco, explicando
assim a universalidade d’este jogo. O Jogo da Con­
dessa é considerado por Gubernatis como uma persi­
stência do costume celtico do casamento em que o
padrinho ou emissário é uma figura principal. As
formas da penalidade acham-se no jogo do Quei­
mado, como as do processo judiciário no jogo das
Prendas.
Os resultados comparativos conduzem tambem a
recompôr um fundo ethnico que explica a continuidade
da civilisação Occidental.
Começaremos um esboço comparativo dos Jogos tra-
dicionaes portuguezes, partindo do solo hispânico para
apontar as similaridades que temos com os jogos itá­
licos, da Roma antiga, e com os da Grecia; conhe­
cida esta unidade, é que se poderá explicar porque
razão os jogos da Russia acham similares em Portu­
gal, da mesma forma que um grande numero de con­

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208 u v n o I, CAPITULO V
tos russos tem variantes curiosas na Sicilia, como
notou Gubernatis.
Nos Cantos populares espafíoles, do meu amigo Ro­
drigues Marin, a par das cantigas do berço, rimas
infantis, adivinhas, orações, ensalmos e esconjuras,
communs á tradição andaluza e portugueza, ha um
grande numero de Jogos, em que se nos impõe este
problema ethnologico. A tradição nos levou a procurar
na historia as relações etbnicas primitivas que na rea­
lidade tinham existido entre Portugal e Andaluzia e
que ainda sobreviviam no ultimo vestígio da sua poe­
sia,— as parlendas e jogos infantis. Portugal e a
Andaluzia pertenceram a essa unidade territorial da
antiga Lusitania, unidade que se conservou durante
todo o dominio dos Arabes. Strabão diz que «
tas lusitanos eram da mesma familia dos que vivem
junto ao Anas» ou os Celtas da Beturia. Plinio accen­
tua esta unidade ethnica, dizendo que os Lusitanos
se estendem do Nerio até o Sacrum. N’este facto não
deixou de influir tambem de um modo directo a trans­
plantação pelos conquistadores romanos dos Celtas da
Lusitania para a Betica ou esse territorio limitado
pelo Guadalquivír e Guadiana. Este contacto forçado
dos dois povos, Lusitanos e Turdulos, unificando os
seus costumes e cultura, operou-se sobretudo, como
entende Polybio, pelo facto do parentesco ou simila­
ridade de raça. Don Joaquin Costa, no seu impor­
tante livro da Poesia popular espatíola, restabelece
com um grande tino critico essa região media entre
a Betica e a Celtiberia, a que chama Lusitano-Extre-
mena em que a cultura romana pouco penetrou e em
que se conservaram mais puros os vestigios da cul­
tura dos primitivos hispanos, (t) As inferências tira­
das das inscripções e do direito consuetudidario com-
(t) Op. cit., p. 348.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 299

pletam-se com este elemento commnm á tradição poé­


tica de Portugal e Andaluzia. Fixado este ponto de
vista, a aproximação d’esses fragmentos poéticos de
uma antiga existencia e unidade social adquire a im­
portância de um documento, que nos pode remontar
a um passado ainda mais recondito, desde que a com­
paração com as tradições italiana e franceza nos reve­
lem a existencia de uma raça pre-celtica commum a
todo o occidente da Europa. É este o intuito que nos
dirige em todos os nossos estudos da tradição por-
tugueza ; preferimos, no processo de analyse compa­
rativa dos Jogos populares, a marcha histórica á clas­
sificação physiologica e racional, para melhor fazer
sentir a verdade d’essa grande these.
Os Jogos ainda hoje universaes conservam um pri­
mitivo caracter mythico; tal é o da 1) Cabra-cega, por
onde encetamos o estudo comparativo. Diz Guberna-
tis, na Mythologia zoologica, fallando d’este jogo com­
mum a toda a Europa : «Este jogo tão popular, tem
evidentemente uma origem e uma significação mythi-
cas : cada noite o Sol diverte-se a jogar a Cobra-cega
(Collin Maillard); venda os olhos e corre velado atra­
vés da noite onde elle deve encontrar a noiva predes­
tinada ou a esposa que elle perdeu, isto é, a Aurora.
Este jogo chama-se em allemão em inglez
blind-maris ebuf. m italiano mosca cieca, e em fran
cez collin-maillard ou cligne-musette. » (1) Este jogo era
conhecido pelos gregos sob o nome de e
Julio Polux, no Onomasticom (ix, H<j) cita-o com o
titulo O Cegp ; diz Guthrie, comparando este jogo com
o Sijon posijon dos Russos : «As regras d’este jogo,
usado pelos gregos, obrigavam uma das aldeãs a
agarrar a que corria em volta d’ella, e de lhe dar,
se ella se deixava apanhar, não sómente o lenço que
' /

(1) Myth. zoologique, 1.11, p. 73,

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300 LIVRO I , CAPITULO V

lhe vendava os olhos, mas tambem um pucarinho que


tinba em uma das mãos, etc.» (1) No divertimento
russo ba ainda outra disposição: «As aldeãs assen-
tam-se com uma do grupo no meio, tendo os olbos
vendados por um lenço; esta vae ás apalpadellas para
assentar-se no regaço da primeira que encontra, di­
zendo sijon, posijon,isto é, assento-me para descan­
çar ; é preciso que adivinhe o nome d’aquella em cujo
regaço se vae assentar. Se acerta, a que foi apanhada
toma o lenço e vae ás cegas fazer as mesmas tenta­
tivas.» Guthrie compara este jogo ao Collin-maiUard.
Na Suecia este jogo tem o nome de Blind-bock; na
Finlandia OUa sokkosilla,e na Grecia mode
írinda.
No livro de Rodrigo Caro, Dias geniales ò ludricos,
escripto em 1625, citam-se entre outros jogos com-
muns a Portugal e Hespanha a Gallineta ciega (Dial. v,
i 6), e na tradição popular de Andaluzia traz a se­
guinte parlenda:
— Gainita ciega
4 Qué to s’ha perdío ?
«Una’buja y un deá.
— Pos échalo á buscá. (2)
Nos Conceptos espirítuales de Alonso de Ledesma,
impressos em 1605, vem esta outra parlenda:
— 4Qué venden en la tienda?
«Espadas.
— 4Qué venden en la plaza ?
«Escaramojos
— Con ellos te saquen los ojos
Si vieres, Amen.
(1) Aníiquités de Russie,p. 96.
(2) Rodrigues Marin, Cantos populares espanoles, 1. 1, p. 100.
—Tambem se joga na Extremadura hespanhola, Bibl. de las
Tradiciones, t. n, p. 144.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 301

Em Portugal o jogo da Cabra-cega apparece-nos


desde o principio do seculo xvi, com a forma de dia­
logo ; eil-o como o traz Gil Vicente :
— D’onde vindes ?
«D’Almolina.
— Que me trazedes ?
«Farinha.
— Tomae lá, que não é minha. (1)
O nome vulgar d’este jogo no seculo xvi era a
Almolina, como se infere d’este outro logar de Gil
Vicente :
Tu agora á derradeira
Jogas commego Almolina. (2)
O jogo conserva constantes referencias na tradição
litteraria, como vêmos em Sá de Miranda e outros
escriptores :
O que não experimentares
Não cuides que o sabes bem;
E ás vezes quando cuidamos
Que experimentado o já temos,
A cabra-cega jogamos. (3)
No entremez dos Novos encantos do amor, de Anto­
nio José, attribuido tambem a Alexandre Antonio de
Lima, vem uma scena do jogo popular da Cabra-cega:
«— Hades-te fazer Cabra-cega, e aquelle que apanha-
(1) Obras, t m, p. 107. Ed. de Hamburgo.
(2) Ibidem, 1.1, p. 133. Serrão de Castro, nos Ratos da In­
quisição, p. 127, aiz :
N’este jogo da almoninha
tomae lá que não é minha.
(3) Obras de Sá de Miranda, p. 234. Ed. 1804.

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302 LIVRO I, CAPITULO V
res, hade perder ; ata-lhe ta hum lenço pelos olhos.
— Zapete:Sim, vossès querem-me cegar para faze­
rem as suas poucas vergonhas ; mas ainda que me
vendam os olhos, não me hão de tapar a bocca. —
Aperta bem, olha não enxergue. ( de uma scena
amorosa, diz Zapete: 0 diabo da gente como está cal-
lada. Quem me dera apanhar algum.» (1) Nicoláo
Tolentino, tambem allude a este jogo :
Fôra na Cabra das melhores pernas,
Hoje joga tres setes nas tavernas. (2)
I

Ainda nos escriptores contemporâneos se continuam


as referencias, como n’esta copla de Faustino Xavier
de Novaes :
Não jogues a Cabra-ceaa
Com moços, de amor dilectos ;
Dos que podem ser teus netos
Não pretendas ser collega. (3)
Eis a fórmula infantil d’este jogo segundo a tradi­
ção açoriana ;
— Cabra-cega, d’onde vens ?
«De Castella.
— Que me trazes ?
«Pão e canella.
— Dás-me d’ella ?
«Não que é para mim
E para a minha velha.
— Pica-me n’ella. (4)
(1) Theatro comico portuguez, t. ui, p. 267. No tomo i, p. 236.
(2) Obras, p. 277. Ed. Castro Irmão.
(3) Poesias, p. 166.
(4) Cantos populares do Archipelago açoriano, p. Í79.— Nos
Jogos populares e infantis vem uma variante sem importância,
n.° iOl.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 303

Na Italia, o jogo da Cabra-cega é ainda um diver­


timento das crianças ; na Marche é denominado II
uoco dette lepre; (1) e tambem se chama Mosca cieca
e gatta-céca; na Toscana chamam-lhe A
apparecendo com este nome referido no
de Lippi. (c. h, st. 48.) O illustre Pitré, nos seus
Giuochi fanciuUeschi (volume xiii daBibliotheca das Tra­
dições populares sicilianas) descreve este jogo usado
em Palermo com a denominação Ad Allupa-occhi, em
Polizzi Ad ammuccia-tiochi ; em Avola A uocci ’utup-
p a t i , em Gianciana, A lu jocu di Vorvi, em Messina A
1’augghia Vasciá; na Calabria La trintindaru, em
Nápoles A ceccatella, e em Milão A martin b'ê, e em
geral A suona-norva. (2) A universalidade d’este jogo
explica a razão das suas relações mythicas, consti­
tuindo o centro de um grupo de jogos d’elle deriva­
dos, como o de Adivinha quem te deu. (3)
Depois d’este jogo um dos mais universalisados é
o 2) Dou-te-lovivo. Nas Comedias de Jorge Ferreira
de Vasconcellos e nos Autos de Gil Vicente allude-se
' a este jogo domestico, que consiste em passar de mão
em mão um páo acceso, e na mão de quem se apaga
essa pessoa tem de pagar uma prenda ; lê-se na
legraphia : «Minha madrinha é azougue, joga o Dou-
(1) Gianandrea, Saggio di Giuochi, na Rivista di Letteraiura
popolare,1.1, p. 223; e p. 225.
(2) Pitré, op.cit., p. 187, n.* 96.
(3) O jogo do ardevm citado na grande listados
Colin-m
jogos francezes do fim do seculoxv apontados no capitulo xxn
do Gargantua de Rabelais. São ao todo duzentos e dezeseis
jogos; indicaremos aqui alguns dos que são communs a Por­
tugal : Au flux, A trente et un, Au cocu, A pille, nade, joque
fore, A coqumbert,qui gagne perd, A la mourre, (anel) Aux cla­
mes, Aux clefs, A pair ou non, Á croix ou pile, A la bille, A
souffler le charbon, (Dou-te-lo vivo) Au casse pot, (Panellinha)
Au furon, (Anel) A la fossette, Au pont chen (Minha ponte der­
reada?) Esta lista dos duzentos e dezeseis jogos do Gargantua
bem carecia de um commentario dos demographos francezes.

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304 LIVRO I, CAPITULO V
che-lo vivocom quantos aqui ancoram.» (1) Tambem
o costume popular em algumas festas de santos, de
correr com fogaréos ou fachos accesos pertence a este
mesmo divertimento, que teve intuito religioso e au­
gurai, por isso que nas Constituições dos Bispados se
prohibe o queimar candéas. Os Gregos usavam este
divertimento nas festas dos casamentos, e chamavam-
lhe Lampadophorein;corriam até certa distancia com
um facho acceso, e logo que elle se apagava pagavam
uma prenda ao rei do jogo. Pausanias descreve-o como
usado pelos rapazes junto do altar de Prometheu. Na
Russia O Jio, jivkurilka,ou o tição vive aind
siste em passar de mão em mão um tição acceso;
aquelle que o tem é obrigado a cantar a cançoneta:
O tição vive ainda; o tição vive ainda, e quando se
apaga antes de terminada a cantiga, paga-se a prenda.
Na Russia tem este jogo logar por occasião das festas
do Natal. (2) Em eguaes condições era usado no sé­
culo xvi em Hespanha, como se vê pelas glosas de
Alonso de Ledesma aos ditados populares dos jogos
da noite de Natal.
Sópla; vivo te lo dó
para dó. (3)
Este jogo é usual ainda hoje em Hespanha, acom-
panhando-o com a fórmula:
— Soplo, y vivo te le doy.
«Sy muerto me lo das,
tú me lo pagarás. (4)
Em França denominava-se este jogo Petit bonhomme,
(1) Aulegr., fl. 59 v.
(2Í Guthrie, Les antiquitésde Rimie, p. 39.
(3) Cancionero sagrado, p. 155 (Coll. Ribadaneyra.)
(4) Folk-Lore anaaluz, p. 317.

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AUTOMATISMO BA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 305
vil encore, e actualmente Je vous vends mon allumette,
dizendo o que recebe :
—Je prends votre allumette
toute vivante, toute vivelette.
0 que entrega diz :
Je vous vends mon allumete
toute vivante, toute vivellette.
Na tradição popular do Minho ainda temos a lenda
do Homem bom, conservada em uma oração con­
tra as dadas ou inflammação dos peitos. Uma tal
universalidade prova a sua antiguidade; o jogo do
Dou-te-lo vivo é conhecido na Europa desde o seculo viu;
d ’elle falia Tylor ligando-o a uma superstição de que
foram accusados os Manicheos : «Um innocente brin­
quedo de crianças da nossa epoca, acha-se misturado
a uma terrível historia de ha mil annos. Eis aqui como
este jogo se pratica em França : as crianças formam
circulo ; uma d’ellas accende um palito e passa-o ao
seu visinho dizendo : Petit Bonhomme vit encore; con­
tinua-se assim seguindo o circulo, cada um repetindo
as mesmas palavras e passando o objecto acceso tão
depressa quanto possivel, porque aquelle em cuja mão
se apaga tem de pagar uma prenda, e então diz-se :
Petit Bonhomme est mort. Grimm menciona um jogo
similhante como usado na Allemanha, em que se em­
prega um pào acceso, e Halliwell traz a canção de
que se acompanha em Inglaterra : Jack está vivo e
corn boa saude; se elle morre na vossa mão, tende cau-
tella comvosco. ®Tylor cita uma diatribe do patriarcha
da Armênia, João d’Osun, escripta no seculo vm con­
tra os Manicheos accusando-os de fazerem o jogo do
Petit Bonhomme com uma criança ferida, que era pas-
20
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306 LIVRO I, CAPITULO V
sada de mão em mão, ficando venerado como pri­
meira dignidade da seita aquelle em cnjas mãos mor­
ria. Esta mesma accusação fora feita pelos polytheis-
tas contra os Judeus, por estes contra os christãos, e
pelos christãos contra a seita dissidente dos Manicheos,
chamada dos Bons ens, por ventura assim
om
H
gnados desde o seculo vm por uma allusão infamante
á forma do jogo com que os calumniavam. (1) Este
jogo existe em Irkoutsk, na Sibéria, com o nome de
kurtüka, descripto por Bolakof. (2)
Um outro jogo tambem universal e antigo é o dos
3) Dedos; consiste este jogo infantil em perguntar
quantos dedos estão abertos na mão que se mostra
de repente ; a criança tem de responder de prompto,
e se erra submette-se novamente á prova, que é acom­
panhada da seguinte parlenda :
— Chi-coítnAo, chi - c
Bella corda, cordavão,
Adivinha machacaz
Quantos dedos estão p’ro ár.
«Estão............
— Se dissesses que eram... (2, 3 ou 4)
Não perdias, nem ganhavas,
Nem levavas cutilada.
Cutelinho, cutelãot
Quantos aedos estao n’esta mão ?
Nos Conceptos espirituales de Ledesma acha-se este
jogo como popular na Hespanba, usado na noite de
Natal, e com a primeira parte já obliterada na tradi­
ção portugueza; é o jogo de « , codont cuantos
(1) Tylor, Civilisation primitive,1 .1, p. 88.
do nosso mytho popular do Bom Homem.
(2) Pitré, Giuochi fanciulleschi, p. xxxix.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 307
dedos tienes m tu corazon ?» (1) Na tradição corrente
da Andaluzia, diz-se esta fórmula:
— Recotin, recotán,
Las campanas de San Juan;
Unas piden bino
Y otras piden pan.
El pan está ’n la cocina.
4 Cuantos dedos tiene ’n cima f
Depois da resposta continua-se:
— Si hubieras dicho (tantos)
No pasaras tanto mal
Gomo tienes que pasar. (2)
0 nome hespanhol de Codin, codon corresponde ao
nome de côto dado em portuguez á mão fechada, e
couto (de cubitus); na Galliza é tambem chamado De
codin e de codan, com a seguinte fórmula:
De codin e de codan
E dá cabra cordoban;
Barquilleiro, barquilleiro
Cantos dedos hay n’o medio?
No Beam tambem se usa este jogo dizendo a fór­
mula :
De coutin, de coutan,
De las craben d’Aleman;
De cisèl
De pourrèl
Quant de comes has daré ?
Na tradição popular de Catalunha joga-se dizendo:
— Pim, pam,
Cunillan,
(!) Cancionero sagrado, p. 152.
(2) Cantos populares espanoles de R. Marin, 1.1, p. 54. Biblio­
teca de las Traaidones populares espanolas, t. iv, p. 119 e 150.
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308 LIVRO I, CAPITULO V
de la terra dei aram,
la cistella
ballestera,
quantas banyas tem derrera ?
— Si... haguesis dit
de penas haurias exit.
Na tradição popular italiana, colligiu Imbriani a
parlenda:
— Venga, venga, Nicolel — E si quatte avisse ritte,
E si’belle e sibone, ’E cavalfe fosse scritte
E si’bona a maretà ’E cavalle re lu pape
Quanta corne tiene ’ncape ? Quanta come tiene ’ncape ?
«Ne tenghe treje. — Ne tenghe seje, etc. (i)

Ás crianças quando promettem uma cousa, levan­


tam o dedopara o ár, como garantia ; nas Operas do
Judeu vem : *Esopo : Promette-me a liberdade ? Yeja
lá o que diz. Xanto: Prometto! Esopo: Levante o
dedo para o ár.» (2)
Sobre este jogo do dedo para o ár encontramos
um precioso estudo comparativo na Civilisação primi­
tiva, de Tylor : «Quando, lançando os olhos sobre o
primitivo desenvolvimento da arte de contar, vêmos
da maneira a mais evidente todas as tribus por seu
turno passarem, para adquirirem a noção da numera­
ção, por este estádio inicial, a contagem dos dedos,
comprehendemos o interesse que tem para o ethno-
grapho os jogos que nos podem representar este cal­
culo rudimentar. O jogo do ti, na Nova Zelandia, se­
gundo os viajantes, joga-se contando os dedos : o que
joga diz um numero, devendo de repente tocar o
dedo correspondente. No jogo das ilhas Samôa, um
(1) Apud Rodrigues Marin, op. cit., p. 121.
(2) Operas portuguezas,1 .1, p. 147.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 30 9
dos jogadores estende um certo numero de dedos, e
o seu parceiro deve tambem de repente mostrar o
mesmo numero, ou então perde um ponto.» É o jogo
de liagi. Deppis de mostrar a existencia d’este jogo
entre os povos selvagens, Tylor indica-o tambem en­
tre os Chinezes, e simultaneamente na antiga Roma,
em França, Italia e Inglaterra: «Este jogo presta-se
a um divertimento sem fim na China, onde é chamado
tsoey moey; e na Europa meridional conhecem-no os
Italianos sob o nome de morra, e os Francezes sob
o de mourre. Um jogo tão particular não podia ser
inventado duas vezes, uma na Europa e outra na
Asia... Os antigos Egypcios, como o provam os seus
baixos relêvos e pinturas, conheciam um jogo analogo
de dedos, e a expressão latina micare digitis alludia
a um jogo a que os magarefes de Roma se entrega­
vam com suas praticas, e em que as prendas eram
pedaços de carne.» Tylor descreve este costume nas
nursery inglezas, onde as amas ensinam ás crianças a
contar os dedos, perguntando: Buck I Buch! quantos
cornos mostra ? e tambem como é usado pelos garotos
da rua, que saltam ás cavalleiras de outro que tem
de responder quantos dedos estão para o á r ; e acres­
centa : «É curioso notar a ampla diffusão d’estes na­
das e a sua longa persistência na historia, quando se
lê esta passagem de Petronio, escripta no reinado de
N ero:'— Trimalcião não parecia sentir esta perda;
abraçou a criança e disse-lhe que se puzesse ás suas
cavalleiras. O rapaz saltou-lhe immediatamente para
cima das costas, e bateu-lhe com a mão nos hombros,
gritando e rindo: Bucca! Buccat quot sunt ?» (1)
Na Suecia chama-se a este jogo Bultal bockhorn. A
esta especie de jogo dos dedos, ou calculo rudimentar
(t) La civilisation primitive,1 . 1, p. 86.

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310 LIYRO I, CAPITULO V
pertencem tambem as personificações mythicas dos
dedos nas parlendas infantis:
4) Dedo mendinho (o auricular)
Seu visinho (o annular)
Pae de todos (o mediano)
Fura bolos (o index)
Mata-piolhos (o pollegar.)
No fim do seculo xvi, D. Francisco Manuel de Mello
conheceu estas designações populares, vindo a escre­
ver na sua Feira de Anexins: nErga o dedo para o
ár.— O senhor aqui é o maior de todos.— Cuidei que
era o mata-piolhos.— Á vista de vossemecê sou o men­
dinho.— E eu o seu visinho.— Pois eu serei o furar
bolos.» No Parocho da Aldeia allude Herculano a esta
nomenclatura: «afastar da bocca o charuto entre o pae
de todos e o fura-bolos...» As parlendas ou diálogos
dos dedos são communs á Europa Occidental :
Este diz que quer comer; Dedo mendinho quer pão;
Este diz que nào tem quê; O visinho diz que não;
Este diz que Deus dará; O pae diz que dará ;
Este diz que furtará; Este diz que furtará;
E este diz : Alto lá. E este diz alto lá.
(Açores.) (Coimbra.)
Questo dice, che ha fame, Este nino pide pan;
Questo dice, non c’è’l pane, Este dice que no hay;
Questo dice : como faremo ? Este dice : iQué jaremos ?
Questo dice : rubbaremo. Este dice : Robaremos.
Questo dice : Nicca, nicca, Y este dice : No, eso nó,
Chi rubba s’ampica. (1) Que nos mata Dios. (2)
(1) Gianandrea, Saggio di giuochi e canti fanciulleschi dette
Marche, p. 25.
(2) Rodrigues Marin, Cantos populares espanoles, t. i, p. 46.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃÒ 311
Este menino um ovo achou; Este nino pedió un güebo,
Este o assou; Este lo puso á asá;
Este sal lhe deitou; Este Techo la sà;
Este o provou, Este lo sasonó
Este o papou. (1) Yeste picariyo gordo se locomió.(2)
Análogo ao jogo dos dedos também se costuma fa­
zer a contagem das pernas, no jogo da 5) Pimpolhinha,
commum a varias províncias da Italia. Os rapazes
sentam-se com as pernas estendidas, encolhendo-as
á medida que a fórmula acaba :
Um, dois, trez e argolinha,
Finca o pé na pimpolhinha;
— O rapaz que jogo faz ?
«Faz o jogo licotão.
— Conta tu, Mané João;
Se contares e não errares
Vinte e quatro has d’achar.
Diz a velha do bordão,
Que recolha o seu pésinho,
Que recolha o seu pernão.
Na primeira metade do seculo xvni apparece-nos
este jogo citado pelo poeta arcade Garção. (3) Gian-
andrea, reproduz este jogo usado na Marche com o
titulo de Piede e Pieddla, e termina a fórmula:
Fa uno, fa due, fa tre
Rtira *1 piede, che locca ate. (4)
Os jogos numerativos são já um desenvolvimento
(1) Jogos e Rimas infantis, p. 14.— Romanceiro do Archipe-
lago da Madeira, p. 483.
(2) Marin, op cit., p. 60.— Pitré, p. 55. Bibl. de las Tradicio-
nes espanoles, t u, p. 126: El guevo.
(3) Obras, p. 241.
(4) Rivista di Letteratura vopolare, p. 222; Pitré, nos CarUi
popolari siciliani, vol. n, p. 20, traz este jogo Pisa pesedda.

r^ r^ rA o Original from
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312 LIVRO I, CAPITULO V
abstracto da contagem dos dedos ; muitos d’elles são
communs ao Occidente, como o do Vinte e trez :
Um, dois, trez, Una, una, una.
Aqui vae o inglez Una, dos y très,
Pela barra de Viana, Contaban, que contaban
Com uma gata Contaban del rêvés,
Castelhana. Contaban dos amantes
Sápe gato portuguez. Contaban vintitres. (1)
Oh terlim, tim, tim,
Aqui estão os vinte e trez.
Contando as palavras portuguezas somma effecti-
vamente vinte e trez ; n’esta outra parlenda perdeu-se
a noção numérica, analoga à que se repete na Anda­
luzia:
Una, una, una,
Una, duna, tena,
Eram dois irmãos
Mataram duas rezes,
Depois d’ellas mortas
Contaram vinte e trez. (2)
Nos jogos da Sicilia colligiu Pitré um analogo ao
portuguez e hespanhol, cuja fórmula é :
Quinnic, quinnici vogghhin fari,
Ca li sacciu ben contari :
Pi lu nomu di vintitri
Unu, dui, tri. (3)
A contagem dos dez é tambem notável pela sua
universalidade :
Una, duna, Una, duna, Una, duna
Tena, catana Tena, catena, Tena, catena,
(1) Marin, Cantos populares espanoles, 1. 1, p. 69.
(2) Jogos e Rimas infantis, p. 26.
(3) Giuochi fanciulleschi, n.° 25.—Bemoni, Sabatini e outros
tambem colligiram jogos numéricos.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 3 13
Sincela, Romana, Sam Paulo, Cigarra,
De bico de pés, Sam Maulo, Migalha,
Catanove, Do bico dos pés, Cupida dos pés,
São dez. São nove Conte, bem
São dez. Que são dez.
Nas rimas infantis da Andaluzia e Catalunha repe­
tem-se com modificações; servem de sorte a muitos
outros jogos:
Una, duna, Uni, dori,
Tena, catena, Teri, quateri,
Quina, quineta, Mata la veri,
Estando la reina Viri, viron,
En su gabineta, Contais bé
Vino Gil Que dotze hi son. (2)
Apagó el candil,
Candil, candon,
Cuentalas bien
Que las veinte son. (1)
Aos jogos numéricos de somma, como o vinte e trez
e o dez, seguem-se os jogos de diminuição ou elimi­
nação.' O mais generalisado é o da 6) Vassourinha, ou
o Sorrobico. que se acha na Andaluzia e Galliza. As
crianças sentam-se diante umas das outras com as mãos
abertas pousadas, e uma simula varrel-as dizendo:
—Vassourinha, vassourinha,
Varre-me esta casinha.
«Muito bem a varrerei
Como a casa de el-rei.
E tambem :
Buraca, buraquinha,
Barre-me esta casinha;
Se m’a barreres bem
(1) Marin, Cantos populares espanoles, i, n.° 164.
(2) Maspons y Labros, Jochs de la infanda, 23.

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314 LIVRO I, CAPITULO V
Dou-te um vintem;
Se m*a barreres mal
Nem um real.
Depois começa a beliscar as costas das mios di­
zendo :
Sorrobico, massarico,
Quem te deu tamanho bico ?
«Foi nosso senhor Jesus Christo.
— Os de ouro e os de prata
Este entra pr’a buraca.
N’este ponto a criança cuja mão foi beliscada reco­
lhe um dedo. A eliminação tambem se faz com a par-
lenda :
Piolho na lama,
Pulga na cama,
Dá um pincho
Põe-se em França.
Gil Vicente allude a este antiquíssimo jogo, em uma
das suas farsas :
Quem te deu tamanho bico,
Rostinho de Celorico.
(Obras, t m, p. 22.)
D. Manuel Murguia cita esta parlenda como extre­
mamente vulgar na Galliza :
Pico, pico, E ramallos.
Mazanco, E piquei (i)
Quen che deu E repiquei
Tamano bico? Tres granemos
«Doumo Dios A topei,
E Sam Francisco, E leveinos
Para picar 0 mohino
Nos carballos, Á moer,
Antre poulas Os ratinos
(1) Historia de Galicia, 1. 1, p. 580.

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AUTOMATISMO DA IM ITAÇÃO E TRADIÇÃO 315
A comer; A cunca estaba
E collin Fendida,
Un polo rabo Y á cullerina
E leveino Partida.
Ó mercado: Fum po-la
Canto me dades Corredoirina
Senores Que tocaba
Por este porco Que rabiaba;
Cebado ? E saliron-me
— Cen reás, Os ladrones
E un oehavo. E roubarón-me
«Fun por cas Os calzons;
De mina tia, Acudide
Cando ó sol Aeá mulleres
Amanecia, Con gadanas
Doume unha conca E colíeres. (1)
De leite
Na tradição andaluza traz a fórmula:
Pin, zaropin Vendendo las jabas
La ceca A seis marabeis.
La meca Mariquiya la jonda,
La tuturubeca. Este que se quede
El hijo dei rey Y este que se esconda. (2)
Paso por aqui
Na tradição portugueza ha uma parlenda analoga á
andaluza:
Pim pim, sarramacotin
La pega
La meda
La torta llega,
Um bom rei por aqui passou,
Todas as aves convidou,
Menos uma que aqui deixou;
Sape d’aqui, vae-te acostar. (3)
(1) Nos Cantos populares do Archipelago açoriano, p. 177,
vem uma parlenda, que merece ser confrontada com o texto
gall ego.
(2) Folk Lore andaluz, p. 56. Na tradição da Extremadura
hespanhola, este jogo intitula-se Pipirigana, em que as crian­
ças que o jogam vão escondendo as mãos. (Bibl. do las Trad,
espanolas, t. n, p. 134.)
(3) Jogos e Rimas infantis, n.** 94 e 95.
O rig inal from
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n \ n >
D ig itize d
316 LIVRO I, CAPITULO V

No Folk Lore andaluz, p. 167, vem o começo (Testa


parlenda :
Pin, pin, Sal menuda
Salamacatin. Para la cuba;
Vino la pollita Cuba de barro
Por su sabanita; Tapa caballo;
Sabana redonda Caballo morisco
Polia dei pollar, Tapa tubisco.
Vino por lasal;
Vé-se que na assimilação popular, a palavra hespa-
nhola jabas foi substituída por aves; porém em esta
outra parlenda apparece conforme a parlenda anda-
luza:
Maria fura-gatos
Apanhou um grillo,
Para a boca de seu filho.
Fava redonda
Aqui se esconda.
Se n’estas eliminações é a mão quê se esconde no
seio, então a Vassourinha, transforma-se no jogo do Pão
quente. No jogo do 7) Sola sapata, ha a eliminação da
pessoa que tem de procurar as outras que se escon­
dem ; a eliminação faz-se dizendo a fórmula :
Sola, sapata, Dá um pincho
Rei, rainha Põe-se em França.
Yae ao mar Cavalleiros
Pescar sardinha, A correr,
Para dar As meninas
Ao pae Luiz A prender :
Preso á ordem — Á que for a mais bonita
Do juiz. Manda a velha responder
Salta a pulga Que se vá arrecolher. (1)
Na balança,
(1) No Periodico dos Pobres do Porto, de 1857, n.° 46, vem:
É melhor ir para casa
Jogar a Sola Sapata.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO fi TRADIÇÃO 317

O jogo do 8) Queimado, ou do Senhor ViUão do


Cabo, que se usa nos Açores, Algarve e Coimbra,
apparece-nos citado no Cancionero espiritual de Le-
desma, com a seguinte fórmula dialògada:
— Ah fray Juan de las Cadenetas!
«Que mandais, senor ?
— Cuantos panes hay en la arca?
«Veinte y un queimados.
— Quien los quemó?
«Ese ladron que está cabe vos.
— Pues pase las penas que nunca pasó. (i)
D. Francisco Manuel de Mello, nas suas Cartas
(p. 402) allude a este jogo: «Já me começou a danar
este Villão do Cabo.» Eis como os rapazes o praticam;
põem-se em fileira de mãos dadas e o de um ex­
tremo pergunta ao outro:
— Senhor villão do cabo!
«Senhor meu.
— Quantos pães estão na arca ?
«Vinte e um queimados.
— Quem n’os queimou.
«Um ladrão que por’qui passou.
— Enloirado, enloirado,
«Esse ladrão seja enforcado.
Passam então todos os rapazes por baixo do braço
do que faz de Villão do Cabo, e depois de ficarem
todos em fila mas com os braços torcidos, continua o
dialogo :
— Senhor villão do Cabo!
«Senhor meu.
—Empresta-me as suas cordas?
«Elias estão podres.
—Vamos cpmpol-as.
(i) Op. cit., p. 159.

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318 LIVRO 1, CAPITULO V

Começam então em movimentos forçados até que


se rompe a cádéa dos braços, perdendo o jogo aquelle
que solta uma das mãos. Esse vae então para o in­
ferno, d’onde só é tirado se sendo levantado pela
cabeça se ergue inteiriçado. Este final do jogo prati-
ca-se ás vezes separadamente ; Ledesma traz a se­
guinte fórmula :
— En que estás, compaáero ?
«En penas.
— Pues sácote delias. (1)
Nas tradições populares da Andaluzia, Extremadura,
Catalunha e da ítalia, apparece este mesmo jogo, que
Rodrigo Caro vae determinar tambem nos costumes
romanos : eis as versões occidentaes :
— Compadre ajo.
«£ Qué manda mi amo ?
— I Cuantos paneciyos hay en er tejao ?
«Trinta y unoer quemáo.
—I Quien loquemó ?
«La perryia treinta y dos.
— Quién da la güerta ?
«La perryia tuerta.
— Pos dala por otro lao,
Que tiene’r pana c.» (2)
»
Dizem as crianças na Catalunha :
— Mosen João de las Abadessas.
«4 Que mana mi senyó?
— Quántas fullas hi ha al arbe ?
Trenta mil y un canó.
— I Per quin pont passaren?
«Pel pont de las formigas. (3)
(D Rom. y Canc., p. 475.
(ï) Marin, Cantos populares espanoles, t ï, n.° 226 e 227.
(3) Maspons y Labros, Jochs infantiles, p. 37.— Pitré, Giuo-
<M, n.° 132.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 319
Em Sevilha, cbama-se LaCadena, ná Extremadura
La Sigo, na Calabria, La Calina. Este jogo é conhe­
cido na Italia pelo nome de AUonga-catene e II For-
naio; colligiu-o Vittorio Imbriani. Rodrigues Marin,
transcreve uma passagem do manuscripto de Rodrigo
Caro, Dias geniales ó ludrices (dial. i, § iv) em que
compara o jogo de Juan de las Cadenas ahaa com a
referencia de Lucrecio:
Quos memorant Phrygios inter se forte catenas
Ludunt..........
Os jogos de movimento, semelham luctas, corridas,
escondidas, dansas e imitações de cerimonias sociaes.
Subordinaremos a sua exposição aos dados compara­
tivos, sobretudo no que respeita ás fórmulas poéticas
que os acompanham.
O jogo da 9) V i u v i n h a ,é propri
uma variante de Gualdir e Gualdar; cercam uma me­
nina que fica no meio, dansando ao redor d’ella, a qual
escolhe a que a bade substituir depois que acaba esta
fórmula:
— Eu sou viuvinha Nem comtigo,
Da banda d’alem; Nem comtigo,
Quero casar, Só comtigo
Nem tenho com quem. Que és meu bem.
«Minha viuvinha
Do meu coração,
Casada sim, sim,
Viuva não, não.
Abraça-se então a uma d’ellas; todas as outras
fazem o mesmo, e aquella que fica sem par é que é
a Viuvinha, que vae para o meio da roda tornar a
começar o jogo. Na Andaluzia ha este jogo a que se

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320 LIVRO I, CAPITULO V

diz esta fórmula, commum á Extremadura hespanhola


{Bibl. delasTradiciones,t. m, p. 94:)
Soy biudita Ni contigo,
La manda la ley, Ni contigo
l « W U H g U ,A

Quiero casarme Sino contigo


Y no hay con quien. Qu’eres nu bien. (1)
Também se dansa o jogo da Viuvinha na Italia, com
o titulo 1’Ambasciatur, como o colligiu Ferraro, (2) e
Pitré ( Giuochifane., n.“ 150, 151 e 152.)
0 jogo dos Quatro cantos, é acompanhado da fór­
mula : «Tem lume ? — Porta mais abaixo.» Usa-se tam­
bém na Andaluzia com o nome de Cuatro cantillas, e
Cuatro esquinas; na Catalunha, é o Quatre cantons,
e na Italia cita-o Giuseppe Ferraro com o titulo Qua-
tir cantun, como o denominam no Monferrat. Eis a
formula andaluza:
—Hay candeia?
• Aya’n frente jumea.
Variante : A’la otra escuela. (3)
Nos jogos com animaes, como morcègos, grilos,
gafanhotos, caracoes, é tambem notável esta univer­
salidade, proveniente de um fundo primordial feti-
chista, que as crianças conservam. Para pedirem bom
tempo, dizem:
10) Caracol, caracol,
Deita os cominhos ao sol.
Meu caracol,
Meu caracolinho,
Meu anel (Touro
No dedo mendinho.
(1) Marin, op. cit., p. 50.
(2) Folk Lore andaluz, p. 56.
(3) Marin, op. cit., n.# 238.— Bibl. de las Tradiciones popu­
lares espanolas, t. n, p. 147. Pitré, Giuochi fanciulleschi, n.° 146.

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a u t o m a t is m o d a im it a ç ã o e t r a d iç ã o 324
Já no fim do seculo xvi, Alonso de Ledesma fallava
d’este jogo, colligindo a parlenda :
Caracol, col, col,
Saca tu hijuelos
Al rayo dei sol. (i)
E D. Francisco Manuel de Mello, na sua Feira de
Aneorins, allude a elle : «Olhem o caracol que busca
para dizer a graça.— Já vae deitando os cominhos ao
sol.» Na tradição franceza e italiana existe tambem
este jogo. Diz-se na Andaluzia :
Caracol, caracol,
Saca los cuemos al sol
Que si nó, biene tu agüela
Con un paio de jijera
Y te rompe la cabeza. (2)
Canta-se na Provença :
Colimaçon borgne,
Montre-moi ta corne.
Si tu ne me la montre pas,
J’irai chez ton papá
Qui est dans la fosse
A cueillir des roses.
Gubernatis traz factos comparativos ácerca do brin­
quedo infantil do caracol. No Piemonte dizem-lhe as
seguintes palavras :
Lümassa, lümassora,
Tira fora i tu corn,
Dass no, i vad dal barbé
E it tje fass taié.
(1) Romancero y Cancionero espirituales, p. 174. (Ribada-
neyra.)
(2) Marin, Cantos populares esparíoles, ï, n.° 119.
21

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322 LtYRO I, CAPITULO V

Na Sicilia, dizem:
Nesci li coma ch'a mamma veni,
£ fadduma lu cannileri.
Na Toscana:
Chiocciola marinella
Ura fuori le tue coraella,
E se tu non le tirerai
Calei e pugni tu buscherai.
Paul Regnaud, traz esta parienda infantil dô Fran-
che-Comté:
Escergeut, virégeut,
Montre mè tes cônes,
Si tu ne les montres pas
I le dira è ton père et mère
Que te casserân les os. *
Na Àllemanha ha uma analoga parienda infantU.
No Pentamerone (liv. 11, conto y ii ) vem esta parienda
popnlar:
lesce, iesce coma,
Ca mammata te scoraa,
Te scoma *ncoppa Fastreco
Che fa lo fíglio mascolo. (1)
O jogo infantil das 11) Palmas e palminhas acha se
por esta forma na tradição hespanhola:
Las tortitas
Y las tortitas,
Para madre, que son muy bonitas,
Y con azucar
Para madre, que se las manduca;
Y con miei
v Pera que le sepan bien. (2)
(1) Apud Mytholoaie zoologique, t. ir, p. 78.
(2) Folk Lore andaluz, p. 164.— Na Bibl. de las Tradiciones
espanolas, t. n, p. 121, ha uma versão extremenha.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO Ê TRADIÇÃO 323
Na Itáliâ chama-sè à este jogo Matou-manüzti. (1)
Quando a criança começa a prestar attehção énsi-
na-se-lhe a bater com a ponta do dedo indicador na
palma da tnão, on à fazer um circulo, dizendo:
12) Põe aqui pilinha o ovo
P’ro menino papar todo.
Pilinha, pilinha
Rosquinha, rosquinha.
Na tradição hespanhola repete-se este jogo com a
fórmula ;
El pon-pon,
El dinerito en el bolson,
Pónmelo aqui
El ochavo y el maravedí. (2)
O jogo do 1Ò) Bichinho gato, que as amas tiSam
batendo nas mãos das crianças, é commum á tradição
da Andaluzia; eis as duas versões em formá de dia­
logo è com intonaçao:
— Bichinho gato,
Comeste já hoje ?
«Sopinhas de leite.
— Guardaste-me d’ellas ?
«Guardei, guardei.
— Onde as puzeste ?
*Atraz da caixà.
— Com que as cobriste ?
«C’o rabo do gato.
—Vamos enxotai-o?
«Sápe 1 sápe i sápe!
A estes dois jogos allude Antonio José nas suas
comedias: «porque isto de trazer um homem annel,
faz deitar as mãos de fóra, fazer palminhas ás crian-
(1) Pitré, Giuochi fanciulleschi, p. 48.
(2) Folk Lore andaluz, p. 164.
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324 LIVRO I, CAPITULO V

ças, jogar o Sápe na barba, tudo com a mão esquer­


da...» (Operas, t. i, p. 224.)
— Mizo gatito, Mizo gato
Pan conejito 1 Fué á la plaza;
iQue comiste? Compró una calabaza
«Sopitas de olla. Le dió de comer,
— ; Con qué las tapaste Sopitas de miei
Con el rabo del gato. En un rico plato.
Zape, zape, zape ] j Zape, zape, zape. (1)
Sergio Hernandes de Soto colligiu uma outra ver­
são na Extremadura hespanhola, (Bibl. de las Trad.,
t. ii, p. 125) com o titulo El Gatito.
Comparemos o jogo do 14) Arre burrinho, que se
faz abanando com a criança sobre os joelhos:
Arre burrinho Tique, tique, toque,
Vamos a Belem, Vamos a Sam Roque,
Que os outros burrinhos Ver os peraltinhas,
Eil-os jà lá vém. Que anaam de capote.
Iarre cabayito Trique, trique
Bamos a Belem, Los maderos de San Rique
Que manana es íiesta (2)
Y passao tambien.
Marin, nos seus Cantos populares espafíoks apre­
senta duas parlendas catalans, e duas italianas, por
onde se vê a generalidade d’este jogo domestico:
Arri, arri tatabet, Arre ! arre ! a Napule,
Anirém á Sant Benet, A truvare mastu Ghiacule.
Comprarém un panallet Mastu Ghiacule, cusetore,
Per ainá, per sopá, Nce ha custe n’u bellu’ppone,
Per en Francisco no n’hi ha. (3) Nu bellu’ppone e n’avunnella!
E curre Porzia e Menechella. (4)
(1) Marin, op. cit., 1. 1, p. 43.
(2) Ibidem, p. 44.—Na Bibliotheca de las Tradiciones popu­
lares espanolas, t. n, p. 120, vem uma versão da Extremadura
com o titulo El Borriquito.
(3) Ap. Marin, Labrós, Jochs de la Infancia, 10-11.
(4) Imbriani, Le Canzonette infantili, n.° vi.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 325
Na Italia chama-se a este jogo do Arre-burrinho,
Mmè, mmè, mmè, e entre as diversas fórmulas poéticas
que o acompanha, Pitré colligiu esta :
A cavai, a cavai,
E lu re de Portugal,
Che ti port la trumett
Bu, bu cavallet. (i)
E tambem, quasi com a neuma portugueza :
Arri, arri cavallino
Piglia la soma
E va al molino....
O jogo do 45) Punho é j á citado no seculo xvi e x v ii
por Antonio Prestes, D. Francisco Manuel de Mello e
Gregorio de Mattos. As crianças vão pondo as mãos
fechadas umas sobre outras, e perguntando :
— Que é isto ? — £ Cómo se llama este ?
«Punho, punhete. «Pun-punete.
— Eisto? — Eeste?
«Cabeça d’alfinete. «Cascabalete.
— E isto ? — £ Qué hay aqui dentro ?
«Uma arca fechada. «Oro y plata.
— Que está por dentro? —Al que se ria
«Pào bolorento. La matraca. (2)
— Que está por fóra ?
«Cordas de viola.
Este final já se converteu em provérbio popular ;
Antonio Prestes escreve :
Como diz o rifão :
Por ahi meninos da eschola :
— De
^ fóra
» cordas de viola. (3)
(1) Giuochi fanciulleschi, n.° 7, p. 52.
(2) El Folk-Lore andaluz, p. 57 e 170.
(3) Na Madeira joga-se de outro modo; vid. Romanceiro do
Archipelago da Madeira, p. 494.

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226 LIYRO I, CAPITULO V

Na tradição hespanhola é conhecido pelo nome de


Pun punhete. Este jogo na Sicilia é chamado A scarfar
manu; Pitré traz numerosas provas do seu uso em
Girgenti, Riesi, Menfi, Milazzo, Messina; na Toscana,
e em geral em toda a Italia chama-a A scaldamani,
e no Piemonte tem o mesmo nome que na Hespanha
A pan pugnet, e joga-se com a formula:
Manatole,
Patatole,
Sul ponte de la Guera,
Ghe giera ’na putela
Che beveva un goto de vin
Yiva, viva San Martin ! (i)
Na Extremadura hespanhola tambem se chama a
este jogo Calienta-mams, (2) como na Italia, onde
Ferraro o colligiu com o titulo Mano-calda.
O jogo da \6) Cadeira de mãos já em Portugal não
tem fórmula poética, mas conserva-a ainda na Anda­
luzia:
Carrion,
Trencilla y cordon
Cordon de Valencia;
i Donde vas, amor mio,
Sin mi licencia? (3)
O jogo de 17) Santeiro é um modo como as amas
ensinam ás crianças o nome das varias feições do
rosto:
Esta barba barbadeira,
Esta bocca comedeira,
Este nariz narigjuete,
Estes olhos de pisquete,
Esta testa de melâò.
Chitãot
(1) Pitré, Giuochi fanciulleschi, n.# 13, p.' 61.
(2) Bibl. de las Tradiciones populares espanolas, t. if, p. 143
e 149.
(3) Marin, op. cit., 1.1, p. 83.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 327

Eis a formula tambem usada ua Itajia:


Varvarutteddu;
’Ucca d’aneddu,
Nasu affilatu;
Occhi di stiddi;
Frunti quatrata
E te’ cca ’na timpulata. (i)
As amas jogam a 18) Mão morta com as crianças ba­
tendo-lhes com a própria mãosinha levemente na cara,
dizendo:
Mão morta, mão morta
Te bate na porta;
Se não tens que lhe dar,
Dá-lhe do sal do mar. (2)
É vulgarissima na Italia:
Manu morta, manu morta,
Chi Deus ti dda porta,
Chi Deus ti dda jada,
Manu morta cancarada. (3)
O jogo das 19) Pedrinhas de taixoso pertence à
classe dos que desenvolvem a presteza dos movimen­
tos : consiste em aparar uma pedrinha que se lança
ao ár, levantando outras em quanto aquella cae, e
segurando-a nas costas da mão. Diz-se a parleuda;
Pedrinhas de taixoso.
Comer pão com queijo,
Sóro de ovelha,
Leite de cabra;
Tem-te homem
Que não caias. (4)
(i) Pitré, Giuochi fanciulleschi, p. 45.
,
S
2) Azevedo, Romanceiro do Arcnipelago da Madeira p. 482.
3) Pitré, Ibidem, p. 48.
4) Jogos e Rimas infantis, p. 58.
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328 LIVRO I, CAPITULO V

Julio Pollux descreve este jogo da antiguidade com


o nome de Penthalita, no seu Onomástico. (1) É tam­
bém usado na Andaluzia com o nome de Las Chi­
nas, (2) e Giuseppe Ferraro descreve-o como peculiar
das crianças de Monferrat com o titulo Oss, (
ossi) e Pitré, da Sicilia com o nome de A
ta. (3) O jogo das Estopinhas, consiste em um movi­
mento cadenciado das mãos batendo nas do visinho,
ao som do verso: E s t o p a , linlã, e e
aquecer as mãos no inverno. O 20) Ferro quente é
um jogo de escondidas, assim denominado pelas crian­
ças nos Açores. Nos jogos infantis italianos da Mar­
che é denominado este jogo Tocca-ferro, e Gianandrea
considera-o como allusivo ao direito de azylo para
os fugitivos que se refugiavam em certos logares. (4)
Faustino Xavier de Novaes descreve o jogo infantil:
21) E em grosso páo a
Mais orgulhoso que um rei. (5)
Este divertimento já apparece citado nos Dias ge-
niaks de Rodrigo Caro, de 1625 (Dial. vi, § 4) de­
screvendo o costume de correr en cabalitos de cana.
Pitré descreve este mesmo divertimento dos rapazes
da Sicilia, Lu Cavaddu,e de outras províncias
lia, como o descrevem Malaspina, Cherubini, Boerio e
Sant’Albino. (6)
(1) «Pentalita autem sive lapilli sint, sive calculi, seu astra-
gali, quinque sursum ejiciuntur, ut manus conversa ea quae
projecta sunt, in posteriorem manus partem recipiuntur; vel
si non omnia potest, ea saltim quere novit, et in manu jece-
runt digitis denuo reciperc.»
(2) El Folk Lore anaaluz,p. 56.
(3) Giuochi fanciulleschi, n.° 55 e 56.
(4) Rivista de Letteratura popolare, p. 139.
(5) Poesias, p. 55.
(6) Giuochi fanciulleschi, n.® 12, p. 61.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 329
O jogo de se equilibrar n’um pé só é ao que se
chama fazer 22) Pédegallinha; Pitré des
Sicilia com o nome de AlliZoppi. (
volvimento d’este jogo é o do Homem, para o qual se
fazem dois grandes riscos paralellos, dividindo-os em
secções por outras linhas, que repartem a figura em
Ceo, ou Paraiso, Inferno e Purgatorio. Os rapazes tem
de empurrar uma pedra para fóra da figura equili­
brando-se em um pé só, e impellindo-a com elle para
diante. O que se não equilibra perde o jogo. Machado
y Alvares descreve a fórma hespanhola; Pitré traz
uma longa descripção com o titulo A Nnicchia ou Pá-
lasu; o jogo do Homem, na Toscana chama-se A truc-
cino, na Marche, LaCampam, no Piemo
gna. (1)
A 23) Cacholéta é uma pancada com as costas das
mãos na cabeça d’aquelle recem-tosquiado; é este jogo
acompanhado da fórmula:
Quem te tosquiou,
Que as orelhas te deixou?
Por traz e por diente
Como o burro do Vicente ?
Na Andaluzia, chama-se-lhe cobrar la renta dei pe­
lado. (2)
Nos jogos de adivinhação, o 24) Pares ou Nones ?
já não conserva a fórmula completa como ainda se
encontra na tradição da Andaluzia:
Pares ó nones,
O’ santos varones ? (3)
(1) Ibidem, p. 143, n.° 76.— O jogo do Homem, chama-se na
Extremadura hespanhola La Rayuela e Del Pico; em França
La Marelle; em Inglaterra Hof scolna Suecia hage;
e na Finlandia Hoppa morsgryta. Pitré no seu estudo sobre os
jogos infantis attribue-lhe um sentido astronomico primitivo.
Gitwchi fane., p. xxxvu.
(2) El Folíc-Loreandaluz, p. 319.
(3) Marin, op. cit., 1.1, p. 51.

\o Original from
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330 LIVRO I, CAPITULO V
Rodrigues Marin transcreve sobre este jogo a noti­
cia do manuscripto de Rodrigo Caro, Dias geniales ó
ludricos (Dial. m, § 1) por onde se vê que jà era usado
na Grecia com o nome de Artiasmos, e em Roma, com
o nome de Par impar. 0 nome de impar na lingua­
gem popular portugueza é pemão, forma agglutinada
de par não. Na Italia chama-se A Sívaleri e A Paru e
sparu. (1)
O jogo infantil 25) Adivinha quem te dm, apparece
nos costumes hespanhoes, como se vê pela citação de
Rodrigo Caro, no Dialogo v, § 6 dos Dias geniales, e
na Italia é conhecido pelo nome de Santuccia, (2)
descripto por Gianandrea.
O jogo dos 26) Estalos com folhas de flores já não
tem sentido divinatório; comtudo Theocrito descreve
um pastor arrebentando folhas de papoula em cima
de uma mão para tirar do estalo o presagio de se é
amado. (3) Este jogo é ainda usado na Russia com o
nome de Schalka; Guthrie, diz: «Nas aldeas russas
é usado com o nome de schalka ou khlapouschta.» (4)
0 arrancar folhas de bonina, dizendo Mal-me quer,
Bem ms quer, é um jogo divinatório, ao qual allude
Camões no verso:
Assim como a bonina que cortada
Antes do tempo foi, candida e bella,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capella...
Este mesmo costume, se encontra na Italia, descri­
pto por Pitré, e na Hespanha por Marin. (5)
O jogo do 27) Annel pertence aos jogos de adivi-
(1) Pitré, Giuoclii, p. 21 e 27.
(2) Rivista de Lctteratura popolare, p. 142.
(3) J. J. Ampère, Grèce, Rome et Dante, p. 64.
(4) Antiquites de Russie, p. 102.
(5) Op. cit.j t. i, p. 123.
O riginal from
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 331
nhação; consiste em ir uma criança cóm um annel de
palha entre as mãos percorrendo um circulo de crian­
ças e simulando deixal-o cahir na mão de um a; de­
pois trata-se de perguntar o que se faria a quem tem
o annel, e quaes os castigos que se darão a quem
não acertou, ao que se chama sentenciar. Os antigos
chamavam a este jogo Dirae; entre o povo russo cha­
ma-se-lhe o saloto horonite, isto é, esconder o annel.
Guthrie descreve-o: «As raparigas sentam-se em roda
no chão, tendo uma rainha no meio coroada de flores;
anda em roda tendo um annel na mão, que ella finge
deixar cahir na de cada uma das companheiras, mas
occulta-o realmente deixando cahir na da pessoa que
ella escolhe; acompanha esta cerimonia com uma can­
tiga, que diz pouco mais ou m enos:— Escondi o
annel; adivinhae, lindas pastorinhas, em que mão está
o annel.— Faz então sair do grupo uma rapariga para
lhe fazer adivinhar quem tem o annel; se não adivi­
nha vão-se succedendo as outras. Emfim a que adi­
vinha é coroada de flores e substitue-a.» (1) Gianan-
drea descreve tambem este jogo na Marche, onde tem
o nome de Mazza-mem,(2) e H giuocho dell’a
Pitré descreve-o na Sicília com o titulo AlTAneddu, e
tambem se lhe chama A la chiave. (3)
Nas locuções populares do seculo xvi, como se vê
nas comedias de Jorge Ferreira, é corrente a de 28) Ti-
(1) Antiquités de Russie,p. 101.
(2) RivistadeLetteratura, po,p. 224 e 226.
(3) Giuochi fmcMleschi, n.° 40 e 41.—Na Extremadura hes-
panhola chama-se a este jogo La Sortijila, (Rtbl. de las Trad.,
t. ii, p. 176) e na Catalunha denomina-se segundo Maspons y
Labrós L,anell picapadrell,que não é sem relação com a desi­
gnação italiana Pitronella. Em França chama-se o Furon,
nome que corresponde ao Huron de Hespanha; na Silesia é o
Rinqelchen eintheilen, na Suissa tèdesca é o SteinH-gd, existindo
tambem na Hungria, Eumania, Grecia e Turquia, como o prova
Pitré, op. cit., p. xli.

Original from
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332 LIVRO I, CAPITULO V
rar palha com algum. Refere-se a um jogo ainda hoje
usual, que consiste em pegar n’uma palha, dobral-a
juntando as duas extremidades, e reunindo-lhe outra
palha do tamanho da dobra, mas solta. Apresentam-se
assim estas palhas, e a pessoa que tira a palha solta
perde o jogo, ou fica viuva, e as que ficam juntas pela
palha que se desdobra, abraçam-se ou casam. Guber-
natis falia de um jogo divinatório com a palha no Pie­
monte : «a criança que tira a palha mais comprida é
a privilegiada da sorte.» (1) Chama-se a este jogo
AU’ Uschidda. (2) Em alguns jogos perde-se o acto e
fica a locução; n’outros perde-se a fórmula poética e
fica simplesmente o acto. O jogo da 29) con­
siste em queimar um papel, e ver qual é a faúla, que
percorrendo-o depois de carbonisado se apaga por
ultimo; essa é que é a Abbadessa. Na Andaluzia ha
tambem este divertimento infantil com a parlenda:
Todas las monjas
Se van acostar,
La madre abadessa
Se queda à resar. (3)
Nos jogos de adivinhação a parte dramatica, que
consiste na variedade das prendas que pagam os que
se enganam, vem a prevalecer, formando um genero
especial; tal é o jogo do 30) Castello de Bimberimbelo
(de Chuchurumel) que consiste em entregar uma chave
de mão em mão, dizendo uma parlenda que cada qual
repete acrescentando-a á maneira dos contos de ac-
cumulação, e paga prenda no caso de engano:
— Aqui está a chave Do castello
Que abre a porta De Bimberimbelo.
(1) Mythologie des Plantes,1.1, p. 39.
(2) Pitré, Giuochi fancitdleschi,p. 79. Tambem
Extremadura hespanhola (Vibl. n, p. 67.)
(3) Marin, Cantos populares espanoles n.° 32, p. 133,1.1.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 333
— Aqui está o cordel — Aqui está o páo
Que prende a chave, Que bateu no cão.
Que abre a porta
Do Castello — Aqui está o lume
De Bimberimbello. Que bateu no páo,
— Aqui está o cebo — Aqui está a agua
Que unta o cordel Que apagou o lume,
Que prende na chave
Que abre a porta — Aqui está o boi
Do Castello Que bebeu a agua,
De Bimberimbello.
— Aqui está o rato — Aqui está o carniceiro
Que roeu o cebo Que matou o boi,
Aqui está o gato — Aqui está a morte
Que comeu o rato, Que levou o carniceiro,
E que entrega a chave
—Aqui está o cão Que abre a porta
Que mordeu o gato. Do Castello
De Bimberimbello. (1)
N’este jogo vêmos a confusão de duas variantes
hespanholas :
Esta es la llave de Roma y toma.
En Roma hay una calle,
En la calle hay una casa,
En la casa hay un patio,
En el patio hay una alcoba
En la alcoba hay una cama
(2)

Comprehende-se porque este jogo confundido com


o do Annel é denominado em Italia A la chiam, e A la
chiavuzza.
Jogos e Rimas in
(2) Marin, op. cit., 1.1, p.8; e Bibl. das Trad, espan., t. h,
p. 189.

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334 l i Vrò i, c a Mt ul o v
O jogò do Casteilo de BirnberimbeUo, apresenta a
seguinte fórmula (versão de Torres Yedras):
3i) — Motis senhores, — Meus sehhorèá,
Aqui está a corda Cá está o cebo
Que prende a bota (pipo) Que unta a corda
2ue leva o vinho
ribeira Mota.
Que prende a bota
Que leva o vinho
A ribeira Mota
— Ml)
Rodrigues Marin traz a seguinte versão andaluza:
— Esta es la bota — Este es el eordon
8ue buen vino porta
eCádizáRota.
— Aqui está el tapon
Que tiene na bota
Que amarró el tapou.
................................
Este es el raton
Que royó el eordon
Que buen vino porta (2)
De Cádiz á Rota.
Pertence a esta classe o jogo a que âílude Gil Vi­
cente:
Quaes foram os perros
Que mataram òs lobos
Que comeram as cabras
Que roeram o bacello
Que puzera João Preto
No penedo. (3)
Por ventura a tradição judaica influiu na imagina­
ção portugueza; no Sepher Haggadak vem uma par-
lenda Khadgadiá, que começa pelo cabrito corrido
pelo gato, que foi mordido pelo cão, em quem bateu
o pào, que queimou o fogo, a quem apagou a agua
que o boi bebeu, etc. (4)
El Folk Lore andaluz, p. 208.
82)3) Cantos populares espanoles, 1. 1, p. 148.
Obras, t. u, p. 448.
4) Tylor, Civilisation primitive, 1. 1, p. 101.

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AUTOMATISMO DA IMÍTAÇÃO fc TRADIÇÃO 335

Contraposto ào jogo das accumulaçóes de palavras


ha o jogo do 33) Silencio,sendo castigado
não soube sustentar; é acompanhado da fórmula:
Era e não era Ao primeiro
No tempo da éra Que aqui fallar;
' . Trez Fóra eu que sou juiz
N’uma panella; Como perna de perdizj
Trez para ti, Fóra eu que sou capitao
E mais para ella, Como perna de leitão. (1)
Que são para dar
Na collecção de Ledesma, do secnlo x v ii, vem uma
variante:
Era-se, que se era, Y el mal para quien
Que norabuena sea, Se fuere a buscar,
El bien que me veniere Y para la manceba
Para todos sea De tenor abad.
O jogo do Annd, e o do CasteUo de Bhnberimbello
revelam-nos o phenomenó espontâneo da creação do
tfaeatro nos divertimentos populares; o jogo da 33) Con­
dessa é verdadeiramente um drama, digno de ser estu­
dado como um elemento orgânico do theatro português.
Transcrevemol-ó Segundo a versão colhida na ilha da
Madeira, pelo dr. Âzevêdo:
«Sete raparigas, de mãos dadas, são filhas da Con­
dessa, já entradas no mosteiro para professar. Junto
d’ellas está uma rapariga, a quem por sorte coube ser
a Condessa. Sete rapazes, tambem de mãos dadas,
se dirigem para a Condessa; são cavalleiros que lhe
vêm pedir as filhas em casamento:
Dizem elles: Aqui as vimos pedir
Pera com elias casar.
(1) Cantos popularés do Archipelago ; e Jogos e Ri­
mas infantis, p. 56.

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LIVRO I . CAPITULO V

Responde eüa : Nem por ouro, nem por prata,


Nem por sangue de dragão,
Eu não dou as minhas filhas
Do mosteiro ond’estão.
Respondem elles : Tão alegres que vinhemos 1
Tão triste que voltaremos I
Que las fílhas da Condessa
Por mulheres não levaremos.
Pois sabei que todos temos
Senhorio sem egual;
Que todos semos fidalgos,
Que nem de sangue real.
E vão-se retirando, mas detem-os a
Condessa: , Volvei a mim cavalleiros
Por serdes homens de paz;
Idq cada um á grade,
Escolhei la que vos 'praz.
Elles voltam, acceitam, e cada qual, por sua ordem
observando cada uma das filhas da Condessa de per
si, vae tomando para noiva a que lhe agrada. Diz o :
Primeiro cavalleiro : Esta não, nem esta quero;
Esta coma pão de cento;
Esta, vinho de cabaça;
Esta, carne do assento;
Esta, carne do assem.
Esta é de meu contento;
Andae commigo, meu bem.
Diz o segundo: Esta não, nem esta quero,
Esta coma pão de cento;
Esta, vinho de cabaça;
Esta, carne do assento.
Esta é de meu contento
Andae commigo, meu bem.
Diz o terceiro : Esta não, nem esta quero;
Esta coma pão de cento;

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 33 7
Esta, vinho de cabaça;
Esta é de meu contento;
Andae commigo meu bem.
Diz o quarto : Esta não, nem esta quero;
Esta coma pão de cento ;
Esta é de meu contento,
Andae commigo meu bem.
Diz o quinto : Esta não, nem esta quero,
Esta é de meu contento ;
Andae commigo, meu bem.
Diz o sexto : Esta não, nem esta quero;
Esta é de meu contento;
Andae commigo, meu bem.
Diz o setimo: Esta é de meu contento
Andae commigo, meu bem.
«Á proporção que as noivas são escolhidas, vae cada
par, de mãos dadas, enfileirando com o antecedente;
por fim, dansando e cantando, fazem todos roda á
Condessa, e acaba o jogo. Para o recomeçar é tirada
nova sorte a vêr qual das outras raparigas será Con­
dessa, ou á occasião da roda e dansa final, é vendada
a Condessa do jogo findo e a rapariga a quem ella
lançar mão fica sendo a Condessa do jogo seguinte;
e ainda este processo pode ser modificado: vendada
a Condessa escondem-se as filhas; o primeiro caval-
leiro dá um apupo e desvenda a Condessa; esta pro­
cura as foragidas e a primeira que acha, fica sendo
Condessa.» (1)
Merecem confrontar-se as variantes d’este impor­
tante jogo. Eis como elle se usa em Penafiel: «Põem-se
(1) Romanceiro do Archipelago da , p. 496.
22
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338 UV RO I, CAPITULO V
treze raparigas atraz de uma cortina cada uma d’ellas,
e a mãe na frente; e depois chega um :
que diz : Manda dizer elrei de Obudo
E mb a ix a d o r ,
Se lhe manda uma das filhas
P’ra juntal-a seda toda.
A Mak, responde: Eu não dou as minhas filhas,
Nem por ouro, nem por prata,
Nem por sangue de alicata;
Poil-a heide meter freira
No convento de Jesus;
Lá Theide pôr o nome
De Therezinha da Cruz.
«Ouyindo isto o Embaixador vae-se indo embora,
muito desconsolado, mas a Mãe tem pena e chama-o
atraz de novamente e diz:
Toma atraz cavalheiro
Por seres homem de bem;
Levanta aquella cortina
Péga n’aquella d’além.
«Depois o Embaixador leva-a embora, e vem depois
buscar outra; a Mãe responde a mesma palavra, elle
torna a ir, e ella torna a chamal-o, e leva outra, e
vae assim levando todas até ao fim. Quando tem
levado a derradeira, vêm todas ellas gritar que mais
gritarão, com o Embaixador na frente e com grandes
mangas de palha a arder, e vem todas a queimar a
Mãe.» (1)
Ha ainda uma outra versão intitulada A Condessi-
nha de Aragão, que se joga com meninas sentadas em
(1) J. de Araújo, Folk Lore andaluz, p. 216.— Allude a uma
outra versão em prosa, do concelho de Louzada, que começa:
«Manda dizer el rei de Cima do Douro...»

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 339
volta de outra que fica de pé e a quem seguram a
saia. Diz uma que entra:
— Móra aqui a Gondessinha d’Aragão ?
«Móra, sim senhor 1 que lhe quer T
— Que me dô a melhor filha que tiver.
«Eu não dou as minhas filhas,
Nem por ouro nem por prata,
Nem por fio de algodão;
Que ellas são as minhas filhas
Filhas do meu coração.
Ao sair a que pede, diz a que está de p é :
«Venha cá, homem das calças pardas,
Eu lhe dou as minhas filhas,
Se ellas forem bem tratadas.
— Bem tratadas hão de ser,
Tecendo fiinhos de ouro.
Venha a minha desposada. (1)
Eis uma outra versão do jogo da Condessa (Povoa
de Lanhoso): «Ao domingo juntam-se as crianças em
qualquer casa conhecida, collocam-se dez ou onze
d’um lado, todas em fileira; e do outro lado duas,
que vem aproximando-se do grupo, entoando a se­
guinte cantiga :
Senhora Condessa,
senhora abbadessa,
se tem muitas filhas
dé cá uma d’essas.
Respondem-lhe as do grupo:
Minhas filhas não as dou
nem por ouro, nem por prata,
nem por sangue de lagarta,
(i) Jogos e Rimas infantis, p. 69.
y
• *

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340 LIVRO I, CAPITULO V
porque as heide meter freiras
no convento de Jesus;
lá lhe hão de pôr o nome
Donas Prudencias da Cruz.
Voltam as duas para traz muito tristes, dizendo:
Tão contentes que nós fomos,
tão triste que ja tomamos I
Tristes filhas da Condessa,
Já com ellas não casamos.
Dizem de cá outra vez as do grupo:
Volta atraz, oh cavalleiro,
entra por esses portaes,
entra e escolhe a mais formosa
que n’este ranchinho achaes.
Ouvindo isto voltam então contentes, e chegando-se
ao pê d’eUas, cantam:
Quero esta
que me tira o pão da césta,
mais o vinho da borracha.
Melhor que ella não se acha.
Já disse a meu pae
quero esta.
Aquella que se escolheu sae da fieira e junta-se ás
duas; e logo as trez seguem cantando: Senhora con­
dessa, senhora abbadessa, etc., repetindo ojogo até tira­
rem a fileira toda.» (1)
Na tradição popular da Corunha, acha-se este jogo
em forma de romance:
—De Francia vengo, senora,
de um polido (2) portuguéz,
(1) Novo Almanach de Lembranças, para 4878, p. 366.
(2) Aqui já se acha perdida a noticia histórica do fio das
fiandeiras portuguezas, a que allude ainda em 4605 o auctor
da Picara Justina: «en enredos hilo português» para significar
os elementos delicados de uma intriga. Relatorio da Exposição
industrial de Guimarães, p. 146.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 341

en el camino me ha dicho
que lindas hijas tenéis.
«Si las tengo ó no las tengo,
no las tengo para dar,
con el pan que yo comiere
también ellas comerán.
— Yo me voy muy enojado
á los palacios dei rey,
á contarle á mi senor
lo que vos me respondeis.
«Yuelva, vuelva, caballero
no sea tan descortês,
que de tres hijas que tengo
escoged la que queréis.
— Esta escojo por hermosa,
por esposa y por mujer,
que me parece una rosa
acabada de nacer.
«Téngala uested bien guardada.
— Bien guardada la tendré,
sentadita en silla de oro
bordando panos al rey,
Azotitos con correa
cuando lo haya menester,
mojadita con vinagre
para que le sepan bien. (1)
Na versão madeirense faltam versos iniciaes, mas
conserva-se a forma eliminativa; na versão de Pena-
fiel o jogo perde a sua forma de dansa, para se con­
verter em um Auto de fé. Machado y Alvares apro­
xima este jogo que se usa na Andaluzia, chamado
nina de los ojos negros, da forma minhota:
«Collocam-se varias meninas em lileira, sentadas
no chão, cada uma tendo entre pernas a anterior, a
quem vira naturalmente as costas; a ultima da fila faz
o papel de Mãe, e as demais em numero indetermi­
nado são suas filhas. Assim collocada chega um me-
(I) Biblioteca de las Tradicionespopulares
p. 136.

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342 l i\ r o i, c a p it u l o y
nino, que faz de Embaixador, entre o qual e a Mãe
se trava o dialogo seguinte:
Bmbajador: De Francia vengo, senora,
De un pulido mercador,
Y en eí camino me han dicho
Quántas hijas tiene usted ?
Madre: Tenga las que tuviere
Con ellas me quedaré,
Con el pan que yo comiere
Comeran ellas tambien.
Embajador : A Francia vuelvo enoiado.
Madre : Yuelva, vuelva, caballero.
No sea usted tan descortês;
De Ias hijas que yo tengo
Escoja la mas mujer.
Embajador : Esta escojo por esposa,
Por esposa y por mujer;
Me ha pareciao una rosa
Acabada de nacer.
(Dirigiéndose à la nifla que esta al lado) :
Levanta rosa.
La Nifía: Estoy enrosada.
Embajador: Levanta clavo.
La Nina: Estoy enclavada.
Embajador: Levanta clavel.
La Nina: Ahora si, que me levanté.
«O Embajador ou os Embaixadores, porque às vezes
são dois meninos que fazem este papel, levam a Me­
nina que está na dianteira e põem-na a um lado; vão
fazendo o mesmo com todas as outras, á excepção da
ultima que é La Nifía de los ojos negros.» Esta ultima
é pedida pelos embaixadores, mas a Mãe desculpa-se
sempre dizendo que a está lavando, penteando, ves­
tindo ; por ultimo é raptada, e a Mãe vae á procura
da filha soffrendo muitos trabalhos. (1)
(i) El Folk Lore andaluz, p. 218.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 343
Rodrigues Marin, traz esta outra versão extreme-
nha, achada em fragmento:
— De Francia vengo, senores,
De por hilo portuguez,
Y en el cammo m han dicho
Cuantas hijas tiene usté.
«Que tenga las que tuviere
Nada se le importa usté
Con un pan que Dios m’ha dado
Y otro que yo ganaré... (i)
Aversão andaluza(n.°209) é representada, levando
em cadeirinha de mãos a noiva. Maspons y Labros
traz tambem este jogo usado na Catalunha com o titulo
La Conversa dei Rey moro:
— Tres passos n’he fet en terra
Ne se *1 rey si *ne dirá res.
Aqui t’envio la conversa
La conversa dei rey moro :
De dos hijas que tu tienes
Si me quieres dar la una ?
«Si las tengo, no las tengo,
No las tengo para dar.
Si las tengo, no las tengo,
No las tengo para ti.
Que dei pan que yo he comido
Elias tambien comerán. #
— Je men vaig mal descontenta,
Dret ’1 palacio dei rey.
«Torna, torna escudereta,
La mes linda te’n daré,
La mes linda y la mas guapa,
La mas guapa dei roser.
— Aquesta li ’n prench per esposa,
Per esposa y per mullé.
(1) Cantos populares espanoles, t, p. 160.—Bibl. de las Tradi-
ciones populares espan., t. ni, p. 108.

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344 LIVRO I, CAPITULO V
Depois de levada a menina em cadeirinha de mãos,
prosegue o dialogo :
«Lo que ’t supplico escudera
Que me le goberais be.
— Ben ’n será contemplada,
En cadira d'or sentada,
Dormirá en brassos dei rey,
A Deu perla y clavell. (i)
É esta versão catalã a que mais se aproxima da
variante portugueza intitulada A Condessinha de Ara-
gão. Não podemos explicar esta similaridade pela sim­
ples propagação de povo a povo ; (2) a extensão d’es-
tes paradigmas é immensa, e por isso, á parte uma
ou outra renovação, tudo deriva de um fundo ethnico
primordial. Jogos simplicissimos, como a nossa 34)
Bilharda, acham-se emHespanha, a VtUarda, e na Ita-
lia com o nome de Lippa-Lippa. (3) O jogo que os
rapazes fazem com as pedrinhas de côres différentes
cada trez, em uma figura quadrada com riscas dia-
gonaes, é chamado na Hespanha o Trincarro, ou jogo
de trez em carro. (4)
(1) Jochs infantile, p. 47 e seg.
(2) Assim como na Catalunha o jogo da Condessa se modi­
ficou na Conversa dei rey Moro, na Italia este mesmo jogo se
chama A Santa Catarina di Sena, colligido por Pitré nos Giuo-
chi fanciullesehi, n.° 137; Sergio Hamandes de Soto, no seu
estudo sobre os Jogos da Extremadura hespanhola, aproxima
a forma italiana do typo castelhano. (Bibl. de las Tradiciones
populares espanolas, t. m, p. 115.) O jogo do Ambasciatore, col­
ligido por Ferraro, pertence a este grupo ; Bideri tambem o
colligiu na Albania.
(3) Usado na Extremadura hespanhola; (Bibliotheca de las
Tradiciones, t. iu, p. 136.) Em Merida, chamam-lhe a Picota ;
em Sevilha, Pinganet ; na Sicilia intitula-se A Manciugghia.
(Pitré, op. cit., n.° 83.) É tambem usado na Gironda.
(4) El Folk Lore andaluz, p. 80.— Bibl. de las Trad., t. m,
p. 190.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 345
Do passatempo dos jogos na sociedade portugueza
antiga podem-se colligir bastantes factos nos livros de
legislação, de litteratura e dos moralistas. No Cancio­
neiro da Vaticana acham-se preciosas indicações de
trebelhos, bafordos, tavolado e dados, usados no sé­
culo xiii e xiv:
Nem de lançar de tavolado
pagado nom som, se deus m’ampare lá,
e nem de bafordar e andar de noite armado.
(Canç. 63.)
Podedes en bafordar
e o tavolado britar. (Canç. 965.)
Fostes amigo oje vencer
na voda em bafordar bem
todolos outros e praz-m’en; (Ib. 355.)
Pela ribeira do rio salido
trebelhey, madre, com meu amigo. (Ib., 760.)
De trebelhar m’ha el gram sabor
e eu pesar nunca tive mayor,
ca non dormo de noite com pavor,
ca me trebelha sempre ao luar;
demo o fezo tam trebelhador
por sempre migo querer trebelhar. (Ib. U9i.)
Maria Balteyra porque jogades
os dedos, pois a eles descredes ? (Ib. 982.)
Torto non faz o taful
quando os dados acha algur
de os jogar uma vez... (Ib., 1184.)
Matheus de Coucy, na historia do tempo de Car­
los vii, descreve uma festa passada em Milão na qual
figurou um funambulo portuguez: «Iceluy duc de Milon
fit tendre une corde du travers de soudit palais, envi-
ron de 150 pieds de hauteur et de longueur, et là fut
veu un Portingalois, qui monta sur la dite corde et

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346 LIVRO I, CAPITULO V
chemina sur icelle tout droit; puis alla à rebours,
dansa sur icelle corde au son du tambourin, se pen­
dit à la dite corde la teste dessoubs, et fit sur icelle
corde toutes les habiletez que l’on pourrait désirer,
tellement que les dames, qui le regardoient, mu-
choient leurs yeux, de grand paour qu’elles avoient
qu’il ne se tuast.» (1)
No Cancioneiro de Rezende e nas Ordenações Affon-
sinas acham-se apontados alguns jogos de sociedade
do seculo xv ; eis alguns dos que eram necessários
para figurar na côrte :
Item, manha de louvar Saber bem o pega-chuna,
he jugar bem o malham, e o cubre bem jogar,
e o jogo do piam sam duas para medrar
favor se lhe deve dar. galante contra fortuna.
Nem sei porque mais vos gabe Nem saberia a um filho
ser gram pescador de vasa; escolher melhor conselho,
mas jugar a badalassa senão que jogue o fitelho,
em qualquer galante cabe. jaldeta, conca, sarilho.
(Canc. ger., i, 447.)
Na Ordenação Affonsina(liv. v, t. 41, §
bem-se outros jogos: «Mandou que nenbum nom ju-
gasse dinheiros seccos, nem molhados a torrelha, nem
a dados femeas, nem a vacca, nem a jaldeta, nem a
bulir, nem aa porca, nem a outro jogo que agora se
chama curre-curre, nem a outro jogo nenhum de qual­
quer nome que seja chamado, postoque esse jogo nom
aja nome.» Foi tambem ainda no seculo xv que mor­
reu o príncipe D. Affonso, quando estava correndo o
paréo no areal de Santarém; era então usual o aléo,
ou vara grossa, especie de cajado com que se jogava
a bola ou a choca. (Viterbo.)
Não podemos explicar todos estes jogos do seculo xv;
^ (l)Ap.^Bibliophile Jacob, Moeurs, Usages et CostumesauMoyen-

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 347
a badalassa é o jogo ainda vulgar na Sicília A bad-
duzza, especie de roleta popular. (1) A conca persiste
no jogo da Panellinha usado em Uhavo: «e atiram os
torrões de uns para os outros, como fazem as rapa­
rigas no tão popular jogo da paneUinha.» (2) O ma­
lham é o jogo da M a l h a , conhecido n
França pelo nome do Mail, e que hoje se chama entre
nós a chapa; substituiu o biliart, a que na ilha de
S. Miguel se chama o jogo da bilharda. O jogo do
(toupie) apparece-nos citado no seculo x v ii pelo P.
Bento Pereira nas Frases portuguezas, e está em grande
vigor entre os rapazes, como o nota J. da Costa Cas-
caes:
E n’isto um gaiato
Doutor no pião,
Em péla, em bilharda
Lhe chega um tição. (3)
O jogo da Jaldeta é ainda popular em Coimbra com
o nome de Gualdir e Gualdaré uma
ninas, cercando uma que está no meio, que diz a uma
d ’ellas:
—Mariquitas, mui bella mocita
Mui gosta d’usted;
Meia volta darás.
N’isto tira uma menina, e dá meia volta dentro da
roda, dizendo:
— Se a quizeres dar,
Gualdir e gualdar,
Passarás ao meu logar.
(1) Pitré, Giuochi fanciulleschi,n.° 32.
(2) Maia Alcoforado, Museu technologico, p. 56. A Panellinha
é um jogo de entrudo, usado tambem na Extremadura hespa-
nhola com a designação de Antrojar; nós temos a palavra
intrujar, mas sem relação com o jogo. Bibl. de las Trad. espan.,
t. ii, p. 176.)
(3) Panorama, t. x ii, p. 117.

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348 LIYRO I, CAPITULO V

E continua cantando, e dando voltas :


— Não ha melhor prazer Passarás ao meu logar ;
Que meu doce bailar ; Outra pelos hespanhoes,
Uma çelos portuguezes Que são uns heroes
Que sao mui cortezes, E sabem bailar,
Que sabem bailar, Gualdir e gualdar
Gualdir e gualdar, Passarás ao meu logar. (1)
Acabando de dizer isto, mistnra-se na roda, e deixa
no meio d’ella a que tirou para par, a qual faz o
mesmo, seguindo-se successivamente as outras todas
,que dansam pela sua vez. Este jogo é similhante ao
da V i u v i n h a , e por ventura é uma adaptação
aos usos da côrte quando Portugal e Hespanha rea­
taram as suas relações politicas sob o governo do
infante D. Pedro, duque de Coimbra. O jogo do
rilho ainda frequente, usa-se com a parlenda :
Sarrilho Descobre-te sol
Bondilho, Das aguas do mar,
Que andaes ao redor Que eu sou pequenino
Pedindo a Deus E quero brincar. (2;
Que descubra o sol 1
O jogo do fitelho é usado actualmente com o nome
de f i t o ,ou pedra a que se atira com pedras chatas
ou lascas para a derrubar, ganhando quatro pontos
aquelle que a faz tombar, e no caso de nenhum acer­
tar, ganhando um ponto o que lançou a pedra mais
proximo do fito. (3) O jogo da péga-chuna, parece-nos
um jogo de fugida, ou Pira,que ap
comedia de Giordano Bruno contra Avareza e o Pe­
dantismo, entre outros jogos italianos do seculo xvi,
(1) Jogos populares e pinfats . 63.
(2) Ibidem, p. 12.
(3) Ibidem, p. 77.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 349
como o gamão, a bola, a malha, o pião (1) e a car­
reira. Este ultimo vem prohibido na Ordenação Affon-
sina com o nome de curre-curre. Os dinheiros seccos
são o jogo popular da marralha; a vacca usa-se ainda
no jogo do monte ; o jogo de butir é o jogo italiano
A bota e sbota, especie de ou cunho ou cruzes, sorte
que se faz com o dinheiro. (2)
No seculo xvi, Portugal alarga as suas relações com
as principaes nações da Europa, operando-se um grande
desenvolvimento nos costumes. Nos jogos a sua varie­
dade revela o facto de uma maior sociabilidade ; te­
mos jogos francezes, italianos, hespànhoes e indianos.
Por alvará de 8 de julho de 1521, ordenou D. Ma­
nuel «que qualquer pessoa que ao domingo ou dia de
festa, antes da missa do dia jogasse a bola, pagasse
quinhentos reaes da cadeia ; e n’esta mesma pena
incorresse qualquer official mechanico ou homem de
trabalho, que na côrte ou em Lisboa pela semana em
qualquer dia que não fosse de guarda a jogasse.» (3)
Sá de Miranda tira uma imagem d’este jogo :
Que não leva o jogador
Mais páos por mais se torcer,
Se lança a bóia peor. (4)
Em um manuscripto onde se descreve a Peste grande
de 1569, lê-se: «Corria-se toda a cidade, e muitas
vezes se não topava em toda ella cinco pessoas vivas
e sãs, e alguns se se topavam, era de côr de finado,
(1) Opião na Extremadura hespanhola chama-se El
na Andaluzia El trompo ; na Sicilia é a Strûmmula. Pitre traz
um importante estudo sobre este jogo já conhecido dos gre­
gos, o strombos, e dos latinos no turbo. Giuochi, n.* 86, de pa­
gina 158 a 169. Na Allemanha é o ; na Inglaterra o Top,
e entre os Berberes é o Tahudicht.
(2) Pitré, Giuochi, n.° 33.
(3) Extravagantes de Leão, p. 417.
(4) Carta, no Memorial do Marquez de Montebello, p. 249.

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350 LTVBO I, CAPITULO V
e alguns maráos se serviam de jogar a bolq, na Rua
Nova, mas deviam ser tão poucos, que não fezeram
estorvo a deixar crescer muita erva e de grande altu­
ra.» (1) No citado alvará de 1521 se estabelece : «que
qualquer homem ou moço, que dentro do paço ou
varandas d’elle fosse achado jogando o tintinini, pa­
gasse da cadêa trezentos reaes para o meirinho do
paço...» 0 nome d’este jogo leva-nos a aproximal-o
do jogo italiano de Tintirinti, em que um rapaz salta
ás cavalleiras de outro dizendo uma longa parlenda. (2)
Prohibe-se mais: «que qualquer escravo que fosse
achado jogando na côrte ou na cidade de Lisboa qual­
quer jogo, fosse preso e açoutado ao pé do pelouri­
nho...» Em uma carta do padre Fernão Gardim, fal-
la-se dos jogos usados pelos portuguezes em Pernam­
buco em uma festa de casamento : «Aquelle dia cor­
reram touros, jogaram canas, pato, argolinha,... e por
esta festa se pode julgar o que farão nas mais, que
são communs e ordinarias.» 0 correr touros vulga-
risou-se extremamente no seculo xv, estendendo-se
ás ilhas da Madeira e Açores ; diz Fructuoso : «tem
um campo (junto á egrejá) tão grande que correm
n’elles touros e cavallos, e jogam as canas e fazem
outras festas.» (3) 0 jogo do tornou-se peculiar
dos divertimentos escholares. (4) Garcia d’Orta, no
Colloquio dos Simples e Drogas, falia do jogo do En-
xadrez (5) que encontramos moralisado em questões
de amores por D. Luiz de Menezes :
No jogo do tavoleiro
tem na dama jurdiçam
(1) Ap. Ribeiro Guimarães, Summario de Varia Historia,
t li, p. 162.
Í 2) Pitré, Giuochi fanciulleschi, n.° 117.
3) Saudades da Terra, p. 86.
4) Balthazar Telles, Chronicada Compa
(6) Coll., fl. 37.
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO £ TRADIÇÃO 351
tem todo o poder inteiro
desno rey at’oo pyam.
Mas s’ os lanços não vam certos,
ou sse cegua o entender,
pode muyto bem perder
por trebelhos encubertos.
Emquanto esteve queda
nunca o jogo se guanhou;
mas como s’ela mudou,
foy logo mate na sseda.
Porque como be tocada
e d’algum máo juguador,
perde todo seu pnmor,
perde o ser muyto presada. (i)
O jogo oriental do Xadrez, não tinha condições de
popularidade; comtudo a antiga locução ainda hoje
vulgar Sem Rei nem Roque, derivou-se do seu uso. Diz
Prestes, no Auto do Mouro encantado :
Dir-lhe-hei que não viu amor
Nem se é Roque, nem se é rei. (2)
O Roque é o nome do Dromedário, (Roch) que pas­
sou a ser a Torre, no jogo adoptado na Europa; o
Rei (S’ckack) perdeu tambem a sua designação orien­
tal, significando um lance do jogo, o Xeque, e por fim
o proprio jogo Échec. No antigo portuguez a denomi­
nação d’este jogo é oriental; chamava-se Acedrenche,
Enxadrez e abreviadamente Xadrez, do epitheto Ssed-
Renge, ou cem cuidados, como notou Breitkopf: «Ha
ainda uma grande verosimilhança de derivação do
arabe da palavra nmbi e naipes, quando se compara
o jogo das Cartas com o Xadrez, que provavelmente
nos foi communicado pelos Arabes: o nome SsedrRenge,
(1) Canc. geral, t. it, p. 473. Ed. Stuttgard.
(2) Autos, p. 464. Ed. do Porto.

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352 LIVRO I, CAPITULO V
cem cuidados, que os Arabes deram a este jogo, é uma
expressão tão oriental como .» (1)
A introducção dos Naipes em Portugal foi devida aos
Arabes de Hespanha, e só no fim do seculo xv é que
ba noticia do seu uso na sociedade portugueza ; Gil
Vicente dil-o de um modo claro: vem de
Andaluzia ;» e tambem no Auto da em que se
condemna este jogo, falia o Diabo :
Ás vezes vendo virotes
E trago de Andaluzia
Naipes,com que os sacerdotes
Arrenegam cada dia,
E jogam té os pelotes. (Ob., i, 270.)
Na popularisação d’este jogo em Portugal conhe­
ce-se a dupla influencia italiana e franceza do reinado
de D. Manuel com a côrte de Saboya, e de D. João in
com a côrte de Francisco i. Os Naipes arabes com-
municados a Viterbo, modificaram-se no
Tarocchi, e na trappola; na linguagem popular por­
tugueza, sobretudo na giria, ainda se conservam as
palavras t r a q u i n a ,tareco, e trapolla com se
rativo, derivado da condemnação d’este divertimento.
A palavra picardia, no sentido de engano malévolo
provém dos muitos jogos de cartas assim denomina­
dos ; o flux, que Luiz xn jogava diante dos seus sol­
dados, acha-se tambem citado por Gil Vicente no Auto
da Barca do Purgatorio:
Taf ul : Eis aqui flux de um metal.
D ia b o: Pois sabe que te ganhei.
Taf ul : Mostra se tens jogo tal.
D ia b o : Tu perdes um enxoval.
T a f u l : Não é isto flux com rei f
D ia b o : Baralha o jogo e partamos.
(i) Versuch denUrsprung der ap. Bibl. Jacob,
Curiosités de l’Histoire des Arts, p. 42.

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AUTOMATISMO bA IMITAÇÃO è TRADIÇÃO âS 3
O jogo das Cartas simulava um combate, como a
palavra Baralha o significava na linguagem antiga ;
esta ideia foi moralisada na Dansa da Morte, que foi
um thema figurado da pintura, da comedia e dos bai­
les, bem como das superstições populares. Para nós
o pensamento do Auto das Barcas, de Gil Vicente,
liga-se a esta elaboração da arte europêa no fim do
primeiro quartel do seculo xv. Á influencia franceza
se deve a generalisação das Cartasna côrtedeD. Joãom.
Em uma quadra epigrammatica de Camões vem a ru­
brica : «A umas Senhoras, que jogando perto de uma
janeUa lhes cahiram trez páos, e deram na cabeça de
Camões:
Para evitar dias máos,
Da triste vida que passo,
Mandem-me dar um baraço,
Que já cá tenho trez páos.»
N’este epigramma, o chiste é sobre a designação de
páos, que não corresponde á figura das cartas que é
uma folha de trévo, a que no jogo francez se chama
trèfle; a designação hespanhola basto, é tambem con­
servada por Antonio Prestes, no Auto do Mouro encan­
tado. Os nomes das cartas differem das figuras : cópas
em Hespanha designa o calix, e este nome é dado em
Portugal á figura que os francezes chamam coeur ; os
ouros figuram-se nas cartas hespanholas por moedas
redondas, e em Portugal este nome designa a figura
que os francezes chamam carreau. A figura de valete
é a apropriação do francez varlet. O jogo das Cartas
teve uma grande influencia na Arte europêa, como
notou o Bibliophilo Jacob, activando a descoberta das
duas bellas invenções a Gravura e a Imprensa.
No Auto do Mouro encantado, de Antonio Prestes,
acha-se uma longa scena em que se representa um
jogo de Cartas entre gente do povo ; abi se empregam
as principaes phrases do jogo, como o trunfo, ganhar
23
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354 LIVRO I, CAPITULO V
duas mãos, espadas, prohibição de fallar ao jogo, ma­
tador, sota, cortar, cópas,gorilas de páos,
Rei, baldar carta, basto, az de páos, etc. Este jogo
descripto por Prestes tinha no seculo xvi o nome de
trunfo esgalhado. (1)
Nas coionias portuguezas da Asia o jogo das Cartas
chegou ao maior desvairamento; Camões, na celebre
Satyra do Torneio, verbera as cartas falsificadas, apon­
tadas, com que se jogava em Goa. Na preciosa Viagem
de Pyrard (1601 a 1611) acha-se uma curiosissima
descripção dos jogos em Goa, digno commentario da
Satyra de Camões: «No que respeita a jogos de car­
tas e de dados e outros de azar são permittidos, e
ha casas depntadas para isso, cujos donos pagam tri­
butos a el-rei, e ninguém ousaria jogar em outra parte
fóra d’ali sob pena de grossa multa. Os que têm por
conta essas casas e bancas de jogo, tiram grossos lucros,
porque é cousa admiravel o grande numero de joga­
dores que ordinariamente ahi se juntam, de que a
maior parte até comem, bebem e dormem ali por não
terem outra occupação fóra esta.— Nunca vi jogado­
res mais liberaes e bisarros do que aquelles, porque
os que ganham dão voluntariamente dinheiro aos que
estão de fóra do jogo, isto é, áquelles que se entretem
a vêr jogar e querem entrar no jogo. Chamam a esta
bisarria barato. Enão é vergonha acceitar esta dadiva,
porque passa mais por um honrado presente, que por
uma esmola.— Em quanto jogam, ha raparigas servas
e escravas do dono da casa, que tangem instrumen­
tos e cantam arias para recrear os parceiros, e no­
te-se que para isto se buscam as mais bellas rapari­
gas que se podem encontrar. — Gostam muito do
Xadrez e das Damas e de todos os outros jogos de
taboleiro. Não usam do jogo da péla mas somente
(1) Autos, p. 392.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 355
jogam a bola com a m ão; e tambem usam muito do
jogo dos páos e da bóia.* Este ultimo jogo era no
seculo xYiii conhecido em Portugal: «Jogou o amor
commigo o toque emboque», (1) e nas ilhas dos Açores
ainda se lhe chama o embôca.
Os escriptores portuguezes do seculo x v ii alludem
com frequencia aos jogos populares e de sociedade,
o que nos serve para notar a sua successão. D. Fran­
cisco Manuel, na Feira de Anexins, diz: «e vossês a
fazerem lourinhas.» (p. 166.) É uma imitação infantil
das touradas. Allude tambem á parlenda ainda vulgar
denominada Prégação de Sam Coelho: «Assim conver­
sam os coelhos, quando entra uma senhora muito com­
posta e mui rebuçada, perguntando se era a pratica
de Sam Coelho.»(2) Eis como ella ainda corre na tra­
dição oral do Minho:
Estando eu no meu poleiro,
Com meu barrete vermelho,
Minha espada de cortiça
Para matar a Carriça,
A Carriça deu um grito,
Toda a gente se espantou;
Só uma velha íicou
Embrulhada n’um chinello,
Para mandar de presente
Ao abbade de Sam Vicente 1
É de gorique tá-tâ,
São palavras que eu sei,
E mais ninguém saberá. (3)
Serrão de Castro nos Ratos da Inquisição, allude ao
(1) Antonio José, Operas, 1.1, p. 397.
(2) Feira de Anexins, p. 210.
(3) Eis uma variante madeirense digna de comparar-se com
a lição do Minho:
Lo sino está a tocar,
Que sermão se vae prégar;

r^ r^ rA o Original from
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356 LIVRO I, CAPITULO V
jogo dos Arrioses (p. 167.) Em uma lôa de Natal, do
seculo xvii encontramos referencia ao jogo de Martin
Cortez:
Porem, olhar não tombar,
Nem jogar Martin Cortez. (i)
No livro de Rodrigo Caro, Dias geniales, (§ in, do
Dial. iv) vem citado este jogo de Martin Cortez como
usado em Hespanba. D. Francisco Manuel allude ao
jogo ainda vulgar nos Açores: «Eu creio que por isso
os deixei Passarinho á orelha. (2) No continente cha­
ma-se-lhe hoje Passarinho a olhar. Bernardes, nos
Últimos fins do H o m e m ,não condemn
mésticos como os outros moralistas: «Em casa dêem-
lhe alguns alivios e jogos honestos, em que se entre-
tenham...» (p. 418.)
O padre Bento Pereira, nas Frases
allude ao jogo dos Despropositos, e ao do Algarve (com
pedras de varias côres.) Antonio José da Silva, o Ju­
deu, allude nas suas Comedias aos jogos de galhofa
Depressa, P a s s a r , Cabra cegCoe aqui,
É o sermão de Sam Coelho
Que lo diz este fedelho :
— Lo meu Santo, Sam Coelho,
De seu barrete vermelho,
Com espada de cortiça
Vem matar la Carriça :
Logo que puchou do ferro,
A Carriça deu um berro;
La Carriça arrebentou,
Tôdala gente espantou,
E la Carriça morreu I
E quem no prégou fui eu.
(Romanceiro do Archipelago da Madeira, p. 460.)
(!) Cancioneiro popular, p. 166.
(2) Op. cit., p. 184.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 357
cae acolá, e as Escondidas. (1) Nicoláo Tolentino traça
este mimoso esboço de alguns jogos de sociedade:
Com que graças vem trazidas
Fingindo-se envergonhadas,
Tenras faces escondidas,
Por destros galgos achadas
No jogo das Escondidas ?
Musa, abre os olhos escassos,
Não te enganes com a apparencia;
Se não torcesses os passos,
Acharás a innocencia
Té no jogo dos Abraços. (2)
No Entremez da grande bulha de dois Marujos, (1787)
lê-se: «Eu, inda em pequeno, sendo garoto de chu­
peta, sempre fugi de jogar a bilharda, só por não
andar ao rabio...» Madureira na sua Ortographia.,
descreve a *Corrióla— um jogo de um pausinho com
um laço em que se diz quando está dentro ou fóra.
E como os ciganos com isto enganam, cahir em cor-
rióla é deixar-se enganar.» (p. 138.) Tolentino diz:
Já lá deve ter dado conta estreita
Quem inventou a triste corrióla,
Que a cega mocidade a perder deita. (3)
Tolentino descreve outros jogos de sociedade; e
descompondo a paixão pelo jogo do isque, diz :
Eu nunca o jógo; só me traz tentado
Bisca coberta, truque fraudulento
Que são os jogos com que fui creado.
(Ib., p. 40.)
(1) Operas, 1. 1, p. 236; e t. m, p. 258 a 263 e 3ii.
(2) Obras, p. 251. Ed. Castro Irmão.
(3) lbidem, p. 41.

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358 LITHO I, CAPITULO T
De ti, senhora illustre, ouvido e honrado
Do Trinta e um i meza me assentava...
É conhecidissima a descripção do gamão :
Em escura botica encantoados,
Ao som da grossa chuva que cahia,
Passavam de janeiro um triste dia
Dois ginjas no gamão encarniçados.
Corra, visinho, corra-me esses dados,
Gritava um d’elles, que nem boia via;
De sangue frio o outro lhe dizia
Mil anexins n’aquelle jogo usados.
No Entremez da grande contenda da mulher com o
m a r i d o ,4792, vem: «Teu pae é um gothico; quer
unicamente jogar comnosco dois jogos, que são o dos
Sisudos e o das Escondidas ; tudo o mais para elle é
máo...» E adiante: «Sem duvida que temos desem­
penhado o jogo da Arrenegada, são trez parceiros dia­
bólicos : eu levo os codilhos, ponho os bolos, e sem­
pre perco de xalupa ; he preciso emendar a mão e
fazer jogo novo ; e como agora se usa o eu
quero vér como me dou com este jogosinho.» José
Daniel chegou a imprimir um Jogo dos Ditos para
recreio das sociedades. Os epigones do Romantismo
em Portugal alludem por vezes aos jogos populares;
Garrett, na legislatura de 4844, ouvindo Agostinho
Albano da Silveira Pinto fallar durante horas contra
a instituição do Conservátorio da Arte dramatica, mur­
murava entre dentes :
Serra madeira
Carapinteira.;. (1) I
(1) Gomes de Amorim, Mem. de Garrett, t. n, p. 638.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 359

Esta parlenda termina assim na versão de Lisboa:


Serremos a nós,
Venha de cós
Apanhar uma noz. (1)
Transcrevemos aqui outras versões provinciaes:
Sarra madeiro Serra madeira
Carapeteiro; Da ponta da ceira;
Sarremos nós Serrar e andar,
E sarrae vós Que lá vem o jantar
Los cavaquinhos Para o menino papar.
P’ra fritar íilhós. Serremos,
Sarrae compadre, Andemos
Sarrae comadre, Que logo jantaremos.
No madeirinho (Coimbra.)
Do senhor padre.
(Ilha da Madeira.)
Serra mad’ira Serra compadre,
Da ponta da eira; Serra comadre,
Serra, serra, Tu com a serra
Torna a serrar, E eu com a grade ;
Com o pó, co’a mão, Serra as pontinhas
C’o calcanhar, Do senhor abbade.
Schi, schi, schi t (Porto.)
(Alqueidão das Olaias.)
O poeta satyrico Faustino Xavier de Novaes, nas
suas Poesias, descreve muitos jogos infantis do Porto:
Saudades ! tenho saudades
D’esses tempos que lá vão I
Quando á porta do quinteiro
Eu jogava o meu pião.
Quando no campo corria
Com um papagaio na mão.
(2) Jogos e Rimas infantis, p. 10.

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360 LIVRO I, CAPITULO V
Por entre os prados amenos
Como contente saltei,
Com meu chapéo de dois biccos,
Que de um papel arranjei;
E em grosso páo a cavallo, (i)
Mais orgulhoso que um rei.
De ser christão n*essa edade,
Tendo já nobre altivez,
De papelão com a mitra
Que o mano Antonio me fez
Ao pé da minha Egrejinha 4.
Bispo fui por muita vez. (2) , i
Na sua Comedia do Campo, Teixeira de Queiroz
descreve alguns jogos infantis do Minho: «Se em
quanto o senhor professor andava ás perdizes, elles
se divertiam na eira a jogar o talo ou ás escondidas...
Quiz antes os seus divertimentos: ír para o campo
com os filhos dos lavradores que andavam com o
gado, e não estavam para aprender a lèr, jogar o
talo com elles, abrir covas á mão para enterrar pedras
que fingissem de mortos, comprar aos outros gaitas com
o pão que levava de casa...— Para se entreterem mais
algum tempo, lembraram-se de jogar o botão. A sorte
marcou o rei e o fossa, o primeiro e o ultimo a ati­
rar á buraca; porque este foi o jogo preferido.» (3)
Não entraremos na descripção de outros jogos; basta
simplesmente indicar a sua grande variedade: a Cama
de gato, que se faz com linhas como o descreve Pitré
nos jogos italianos, recortar papel, a réla, roda na
ponta de um páo, moinho de papel, peixe-rei, arredoi-
ça9 (4) estrella, lançar um pêlo ao vento, como na An­
il) Plutarcho falia d’este jogo, bem como Valerio Maximo.
Vid. Bibl. de las Tradiciones populares esp., t. ui, p. 177.
(2) Novaes, Poesias, p. 263.
(3) Comedia do Campo, t. ui, p. 9, 11 e 17.
(4) Na Extremadura hespanhola chama-se El Columpio ;
Becq de Fouquières diz que este jogo era conhecido dos gre­
gos e persas.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 361
daluzia, siringas de cana, bolas de sabão, pintar com
summo de ervas, cacboleta e passarinho á orelha, bar­
cos, palha e bolinha, cabrioida, amassar barro, bicho
mão, fontinhas, merendas, riscas no chão, dinheiro
de cacos, salto na vara, fazer de sino, zorras ou car­
rileis, birimbáos, o rapa, (1) mata-moscas, espigas de
cana para zumbir, alvos, alfinetes, bumbarqueiro, bus-
ca-trez, castellos, canastras, chapas, choca, cochicho,
cucame e ganiços, guardimão, laranjinha, Ga-
ravoto, Minha ponte derreada, Páos mandados,
nha na bocca, petisca, roda de altos couces, Saca la
mano, talinhos, Vae-te a elle, Tocadilho, oca, xafarraz,
imitações dos animaes, dos officios e parodias.
Modas, trajos e formas cerimoniaes.— Os costumes
populares são os restos persistentes de raças e esta­
dos sociaes que se transformaram; a sua aproxima­
ção e comparação offerece uma immensa luz histórica,
e leva o espirito ao encontro dos processos espontâ­
neos do desenvolvimento da civilisação humana. Ex­
plica-se a unidade da Civilisação Occidental não só pela
influencia da incorporação romana, mas porque essa
civilisação se basêa sobre um fundo etbnico commum,
o qual se reconstrue pela comparação dos costumes,
das tradições, das superstições e dos cantos nacio-
naes. Os trajos tão variaveis segundo os recursos
industriaes, o bem-estar social e a communicação com
outros povos, ainda assim obedecem a esta lei da per­
sistência ethnica. Um anexim portuguez diz: «Abril,
aguas mil, coadas por um mCom
appareceu este trajo, e ficou a rima, que por ultimo
foi substituída: «coadas por um funil.» O mandil ainda
hoje se usa na Córsega, onde se conservam os costu-
(1) É a Perinola na Extremadura hespanhola. (Bibl. das
Trad., t. ii, p. 163.)

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362 Limo i, c a p itu lo v
mes das povoações proto-italianas; diz Gregorovius:
«As mulheres da Córsega trazem um mandil, um
pedaço de panno de côr que lhes cobre os rostos, que
se põe liso no alto da cabeça e é enrolado em volta
do picho, de modo que se lhe não vê os cabellos. O
mandil apparece em toda a Córsega; tem alguma cousa
de oriental e de mauresco, mas é aborigene, porque nos
proprios usos etruscos se vêem mulheres com elles.»
Este autoctonismo e mesmo a relação com os costu­
mes maurescos, notados por Gregorovius, conforma-se
com a origem dos iberos, de que os berberes são um
ramo atrazado tendo estacionado na Africa, na grande
migração para a Europa. 0 mandil é no Algarve cha­
mado o rebuço, propriamente mauresco; no norte de
Portugal é o lenço de côres vivas amarrado na cabeça
deixando o rosto a descoberto. Tambem o barrete pon-
teagudo, preto ou vermelho (de birretum) peculiar do
homem da Córsega, é ainda usado em Portugal pelos
pescadores, campinos e saloios; Gregorovius equipa­
ra-o ao barrete phrygio, e com os que trajam os Da-
cios na columna de Trajano. Estes dados exteriores
correspondem a costumes mais intimos, como o de
carregarem as mulheres á cabeça; diz Gregorovius:
«As mulheres na Córsega, levam todos os carretos
á cabeça, e são incríveis os pezos que ellas transpor­
tam. Assim carregadas ellas levam ainda muitas vezes
a roca na mão e fiam andando.» São assim as mulhe­
res ao norte de Portugal, cruzando nas estradas, ou
acarretando lenha e agua para casa. Strabão allude
ao costume ibérico de se lavarem com ourina; (1) este
uso subsiste em S. João de Airão, como nol-o affir-
maram. Conta mais Strabão: «Tem de commum com
outras gentes os iberos, o montarem dois em um só
cavallo...» É frequente ainda este uso no Minho. O
(1) Dizem o mesmo, Catulo, Epigr. 36: Diod. Slc., lib. in.
(J) Strab., p. 114. Trad. Gabr.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 363

costnme da cuia e da mantilha tão peculiar das nlu-


Iheres peninsulares, acha-se também notado por Stra-
bão entre as mulheres ibéricas, chamando a essa espe-
cie de açafate de cabello sobre o occiput, limpanulum,
e à mantilha véo negro. A mantilha acabou ha poucos
annos no Porto.
Certos costumes desceram ás classes mui atrazadas
da sociedade, onde persistem; tal é a tatuagem. Diz
Solino (cap. 23): «Desde a sua infancia os Caledonios
figuram sobre seus corpos por incisões voluntárias
diversas espeçies de animaes, cujos desenhos embe­
bidos de côres differentes crescem depois com elles.»
Belloguet commenta este facto: «Parece comtudo ter
sido na antiga Europa particular ás raças septentrio-
naes, porque é falseando Tacito (Agric., 11) e abu­
sando, ao que parece, de uma passagem de Justino,
( , 4 ) que se affirma que os Iberos ou os hispanos
x l iv
se tatuavam. Os Bretões trouxeram sem duvida do
Oriente este costume dos Mossynoekes da Asia Menor,
dos Sarmatas, dos Thracios, dos Agathyrses, dos
Arias da Germania.» (1) A tatuagem é vulgar entre os
marinheiros, soldados, e mulheres perdidas, entre os
que andam na Borga ou são Bargantes. (2) Na lingua­
gem popular ha uma phrase injuriosa, Calças de ,
frequpnte na ilha de S. Miguel; sem duvida é uma
persistência da éra em que se usavam vestimentas de
pelle, mencionadas ainda em uma lei de 1253; (3)
este uso era geral entre os Ligurios dos Alpes, e os
Bretões insulares, (4) e a estas vestes chamavam os
Gaulezes Barakakai. As bragas (de brdkai, braciae,
(1) Ethnogeiúe gauloise, t. ni, p. 84.
(2) Palavras gaulezas, citadas por Sid. Apoll., Epist. iv, 4:
o ladrão, o vagabundo. Belloguet, Glossaire, p. 144.
(31 Panorama, t. xiii, p. 120.
(4) Belloguet, Ethnogenie, p. 78,

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364 LIVRO I, CAPITULO V
e braies) descriptas por Diodoro Siculo (v, 30) são
ainda synonimas de calças; estas bragas gaulezas
eram uma vestimenta de todo o corpo para os Scy-
thas ; n’este sentido ainda nos campos se lhe chama
o bragal.0 briche, nos dialectos celticos e germâni­
cos, significava tambem as calças (1) e hoje designa
o panno com que ellas se fazem. Os capotes de palha,
Coroça ou croça «assim se chamam hoje em algu­
mas terras de Portugal a um albornoz, capa ou casa­
cão de junco ou palha.» (2) Falia tambem d’este uso,
Naylies, nas Memórias sobre a guerra de Hespanha nos
annos de 1808 a 1811. As (de gallicae, de
que faliam Cicero e Aulo Gellio) e as sandalias ou
alpergatas e abarcas são ainda usadas pelo nosso povo;
umas são de páo, cobrindo o couro a ponta do pé,
as outras são uma sola na planta do pé, prêsa ao
artelho com cordéis ; (3) o calçado prêso ás calças ou
polainas é tambem descripto por Guilherme Hum-
boldt como ibérico com o nome de chapima, de que
deriva o nosso chapim. 0 sagum (sagoi gaulez) é o
saio, de chita ou de cotim, e o cucullus é o capuz,
usado em muitas aldeias, e ainda com a sua maior
persistência na ilha de S. Miguel ; na Madeira ha uma
feição egualmente archaica : «o trajar das raparigas
madeirenses não pode dizer-se absolutamente desele­
gante, mas não se distinguiria com facilidade do que
se usa em algumas províncias de Portugal, se não
fôra a celebre carapuça, que constitue o seu caracter
distinctivo. A forma d’este singularissimo toucado é
a de um funil, sem mais fita, nem enfeite.» (4) Em
(1) Belloguet, Gloss., p. 135.
(2j Viterbo, confirmado por J. P. Ribeiro.
(3) Belloguet, Ethnogenie, gauL, p. 81.
(4) Panorama, t. x, p. 141.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 365
uma cantiga popular refere-se este uso nos arredores
de Lisboa, mas já sem realidade :
Sou saloia, trago botas,
Também trago o meu manteo,
Tambem tiro a carapuça
A quem me tira o chapéo.
Sobre as côres das vestimentas dos antigos povos
peninsulares, diz Strabão : «Todos os homens vestem
de preto, e a dizer a verdade não deixam os seus
servindo-se d’elles como cobertores nos seus leitos
de palha secca.» Ainda hoje dorme-se vestido nas
barras, onde está recolhida a palha para os gados.
«Ás mulheres só usam mantos e vestidos de côr, fei­
tos de fios cruzados.» (1) A paixão pela côr manifes­
ta-se n’esta locução popular: Vermelhinha, senhora
mãe, custe o que custar. Os mantos citados por Strabão
são os capotilhos, das nossas aldeias. Os fios cruzados
é ao que se chama sarja e sergelim. Nos documentos
do seculo xiii cita-se com frequencia a Sarja da villa,
«O que se deve lêr sarja pois ainda hoje é
formosa a muita e boa que n’esta cidade se fabrica.
Nos documentos d’este tempo se acha a cada passo
memória d’esta sarja e pannos d’Avila, ainda que com
alguma insignificante mudança em o nome.» (2)
O cabello comprido, que distinguia as solteiras, era
formado em anneis e chamava-se-lhe Cachouceira; (3)
nas aldeias as raparigas que tem o seu erro, cortam
o cabello, como por desprezo de si mesmas. Chamor­
ros, era o nome que davam os castelhanos aos por-
tuguezes que em Aljubarrota appareceram com o
cabello cortado, e no Monferrat, na epoca da revolu-
(1) Geographia, Liv. ni, cap. 3.
(2 )Eludi., vb.° A .b o v il a
(3) Idem, ibid.

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366 LIVRO I, CAPITULO V
ção franceza, chamava-se com desprezo tusun, ao que
tinha o cabello cortado. (1) Fructuoso descreve um
typo madeirense com os cabellos á antiga: «Foi o
corregedor a S. Sebastião, onde estava morto o João
Calaça... o qual tinha os cabellos feitos em tranças.» (2)
As joias populares apresentam singulares caracte­
rísticos : «No Portugal antigo houve arrecadas de pen­
samentos, pela sua demasiada finura; de bicka, pela
figura de uma cobrinha; e de alfinete, que se metiam
nos buracos das orelhas e se não fechavam.» (3) No
testamento de D. Sancho i, de 1209, citam-se as
arrecadas, e na ilha de S. Miguel ainda lhes chamam
Bichas. Tambem se lhes dava o nome de Arriei, com-
mum aos anneis. A paixão pelas joias é um caracte­
rístico popular portuguez: «As peixeiras distinguem-se
pelo seu aceio e ricos ornatos, consistindo em bra­
celetes de ouro que trazem nos braços, cordões,
anneis, cruzes, de sorte que se vêem algumas tra­
zendo em cima de si até um marco d’este metal.» (4)
No Auto da Lavradeira de Airó (1678) de Sampaio
Villas Boas, descreve-se o trajo da rapariga do povo:
Hia Leonor pela sésta
Para a fonte, basear agua,
Leva o cabello em rolete,
Melenas dependuradas,
Gargantilha de belorios,
Com relicário de prata.
Colete de serafina,
Figa de azeviche á banda;
Ramal de coraes no braço
E camisa debuxada.
No Cancioneiro da Vaticana, existe um grandis-
(1) Rivista di Letteratura popolare, p. 150.
(2) Saudades da Terra, p. 60 (1533.)
(3) Viterbo, Eluc.
(4) Description de la Ville de Lisbonne, 1738.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO fi TRADIÇÃO 367
simo numero de referencias aos trajos portuguezes
do seculo xii a xiv; transcreveremos aqui alguns
excerptos, sobre as cintas, cordas da camisa, solyas9
baraços, tornas de Esteia, tabardos, grãs e abanos, fi-
vellas, prez de Cambray, fustam, gonella9 pannos de
ugrós, mangas de ascari, pennas veyras, coteiffe orpe-
lado, brial de alvão, balandráo, capeirete, jaquetão,
cerame de Chartres, calças, gualdrapas, çapatos dou­
rados, etc.:
Yi um coteyffe de muy gram granhom
com seu porponto, mais um d'algodom,
e com sas calças velhas de branqueta ;
e dixe eu logo : poil-as guerras som,
ay que coteyffe pera a corneta.
(Canç. 61.)
N’esta canção falia-se no coteyffe valdi, e :
Com seu perponto todo de panil,
e o cordom drouro tal por joeta.
E juro per Deus lo santo
que manto nom trazerey, nem granhom. (Ib. 63.)
e quero-me oy guardar do alacrá...
alacrá negro ou veeiro. (Ib. 63.)
da gris furtaram tanto, que por en
nom lh’y leixarom que possa cobrir ;
e sol non cata como gris non tem
nunca cousa de que se cobrir ;
cá todo quanto el despendeu
et deu d ali foy tod’aquesto, sey eu,
e quant el foy levar e vistir. (Ib. 66.)
Vi coteyffes orpelados
Vi coteyffes com arminhos. (Ib. 74.)
De grado queria ora saber
d’estes que tráem sayas encordadas,

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368 LITRO I, CAPITULO T
em que s’apertam muy promptas vegadas
se o fazem pol os ventres mostrar.
Ay deus se me quizesse alguem dizer
porque trazem estas cintas cirgadas
muyt’anchasy como mulheres prenhadas...
Outrosy lhis ar vejo trager
mangas mui curtas e enfunadas,
bem como se adubassem quartadas,
ou se quizessem tortas amassar. (Ib. 75.)
Fuy eu madre, levar mhas garceras
a la fonte, e paguei-m’eu d’ellas...
(Ib. 291.)
De pram nom sou tarn louca,
que já esse preyto faça,
mays deu-me esta baraça,
guardad’ a eint' e a touca... (It. 346.)
Ali me desbulharom do tabardo e dos panos,
nem me derom por ende gras nem abanos.
(Ib. 468.)
Puys non vem de Castela,
non é viv’, ay mesela;
ou m* o detem el rey :
mhas toucas de Estela
eu nom vos tragerei. (Ib. 505.)
em vos, ay meu espelho,
eu nom me verey,
mhas cintas das fivelas
eu nom vos cingirei. (Ib.)
O anel do meu amigo
perdi-o sol-o verde pino,
e chor’ eu bella. (Ib. 507.)
a que x’en tem sua mua baya,
vestida d’um prez de Cambray,
deus que bem lh’estä manto e saya.
(Ib. 547.)
Ay mha filha, por deus, guysade-vos
que vos veja, se fustam trager

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 369
voss’amigo, e tod’a vosso poder
veja-vos ben con el estar em cós;
cá se vos vir sey eu cá morrerá
por vós, filha, ca mui bem vos está.
(Eb. 599.)
Dix’eu logo: Fremosa poncela,
queredes vós mim por entendedor,
que vos darey boas toucas d*Estelía,
e boas cintas de Rocamador ;
e d’outras doas a vosso sabor,
e fremoso pano pera goneüa f (Ib. 689.)
Madre, moiro d’amores que mi deu meu amigo,
quando vejo esta cinta que por seu amor cinjo,
alva e vay liero.
Madre, moiro d’amores, que mi deu meu amado,
quando vejo esta cinta que por seu amor trago;
alva e vai liero. (Ib. 170.)
Quando eu vi esta cinta que m’ el leixou,
chorando com gram coita e me nembrou
a corda da camisa que m’el filhou...
Nunca molher tal cuyta ouv’a sofrer
com’ eu, quando me lembra o gram prazer
que lh’eu fiz, huma cinta veu a dnger...
(Ib. 309.)
Amigas, o meu amigo
dizedes que faz enfinta
em cas dei rey, da mha cinta. (Ib. 347.)
Vistes, mhas donas, quando n’outro dia
o meu amigo comigo falou
foy muy queixos’ e pero se queixou,
dei-lh’eu entom a cinta que tragia
mays el demanda-m’ outra solya.
E vistes que nunca, quem nunca tal visse,
Í)or s’ir queixar, mhas donas, tan sen guisa,
èz-m’i tirar a corda da camisa
e dei-lh’eu d’ela bem quanta m’el disse.. •
(Ib. 348.)
E já cobrad’ é seu coraçom
poys el ficou hu lh’a mha cinta dei...
(Ib. 350.)
2*
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370 LIVÜO I, CAPITULO V
ca hum amigo que eu sempr’amey,
pediu-m’i cinta e já lh’a er dey;
mays eles, cuido que al lhis demandam.
(lb. 359.)
Fostes, filha, em o baylar,
e rompestes hi o brial. (Ib. 796.)
A hun corretor a quem vy
vender panos que conhoci,
com penas veyras, diss’assi:
Da molher som de Dom Foam...
E diss’eu; Ficará en cós,
sem estes panos do ungrós. (lb. 904.)
Pois ela trage camisa
de sargo, mui bem lavrada. (Ib. 911.)
O caparom do marvy,
que vos a testa bem cobre,
com pena veyra tan nobre,
alfayat’, ou pelyteiro,
diz ’ora cavalleiro,
qual vol-a postou asy ? (lb. 927.)
Da esteyra vermelha cantarey,
e das mangas do ascari farey
e o brial hy mentar-vos-hei. (Ib. 945.)
e pesa-m’en, e é-mi mal,
que lh’ escarniron seu brial,
que era novo e de cendal. (Tb. 948.)
O seu brial de cdvão. (Ib. 956.)
Joham Fernandes, que mal vos talharon
essa saya que tragedes aqui
que nunca eu peyor talhada vi,
e siquer muito vol-a encortaron
cá lhi talharon cabo de gibon,
muito corta, si deus me perdonl...
saya tan corta non convem a vós
cá muitas vezes ficades en cós
e faz-vos peior talhad’ o jaqueton. (Ib. 978.)
Don Bernaldo, pesa me que tragedes
mal aguadeyr* e esse balandráo...

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO P TRADIÇÃO 371

só uma muy boa capa dobrada. ..


aved’uma capa d’un capeyrete. (Ib. 1069.)
mais vejo-lhi capelo d’ultra-mar,
e traj* aluso bende MompiUer. (Ib. 1116.)
Moytos s'enfingem que ham gaanhado
doas das donas a'que amor ham,
e tragem cintas que lhys elas dam,.«
(Ib. 1125.)
Chegou Payo de maas artes
com seu cerame de Chartes...
Semelha-me busuardo,
viindo en ceramen pardo.. •
log* ouve manto e tabardo... (Ib. 1132.)
Soer* Femandis, si veja prazer,
veste-se ben a todo seu poder,
e outra cousa lhe vejo fazer
que fazem outrosjpontos no reinado ;
sempr' eu no verao lhe vejo trager
e no inverno çapato dourado. (Ib. 1146.)
Dom Pedro é cunhado d’elrei
que chegou ora aqui d’Aragon,
com um espelho grande de leitom... (Ib. 1147.)
Pero da Ponte ou eu nom vejo ben,
de pram essa calça non he
o que vos antano per boa fé
levastes quando fomos alem... (Ib. 1148.)
e as calças seram de melhor pano
feytas seram de nevoa d’antano... (Ib. 1154.)
E prometeu-m’ el uma boa capa,
ca non d’estas maas feytas de luyto,
mays outra bona feita de gualdrapa
cintada, e de nem pouco nem muyto.
(Ib. 1154.)
Antes do regresso dos cavalleiros portuguezes que
se refugiaram na côrte de S. Luiz, predominavam as

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372 LIVRO I, CAPITULO V

modas arabes, como se vé pelas seguintes designa­


ções : alfanbar, cobertor de 13, almadraque, almadra-
quexa, almaffega, ou burel branco para lucto, almo-
freixe, almoceUa, etc. Na côrte de D. Affonso m come­
çaram a prevalecer as modas francezas, como.se vê
pelas passagens supracitadas do Cancioneiro da Va-
ticana: o fustão, o prez de Cambray, cintas de Roca-
madar, gonella, jaquetom, cerame de Chartes, e capeüo
de Mmpilher. Viterbo chama á cocedra (culcitrum) col­
cha franceza barrada.
No seculo xv as modas tornaram a derivar-se da
França, e d$ outros pontos da Europa, segundo o
cosmopolitismo dominante. No Cancioneiro de Re­
sende, ha preciosas referencias aos trajos :
Vós ireis embuçada
de alfareme de cendal.
Os moços irão vestidos
de pelotes gyronados,
muy largos e muy compridos,
guarnecidos
ae tarramaques bordados.
Cada hum sa carapuça
de goalteira com penacho; . . .
Cada bum com sua chuça. (1)
Sete varas de bragal,
senhora, vos dou por touca,
Mantüha color de telha,
como costumam na Beyra ;
e por vos dar a conteyra,
mas inteira
levay pobaina vermelha. (Ib. 95.)
Em tempo delrei Duarte,
dizem que foram usadas
muy grandes caperutadas. (Ib. 117.)
(i) (Jane. geral, t. in, p. 93.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 373

Nos versos de FernSo da Silveira a seu sobrinho


ensina-lhe como deve vestir-se para figurar no paço:
Çapatos de Basiléa,
pontylhas sobolo mole,
as calças tirem de fole,
roscadas como obrêa.
Tragam-n’as de marear
forradas d’yrlanda parda,
cá cous’è que muyt alarda,
pera gram bamborrear.
O gybam de qualquer pano
na barriga bem folgado...
De pelote se guarneça
S ouco menos do artelho.
i capello ande no hombro
feyto como o do cintrão...
Luvas de um só polegar
feitas de pele de lontra...
pejada com capaeorja...
De grandes bugalhos traga
ao pescoço um ramal... (l)j
Duarte da Gama descreve em umas trovas as gran­
des mudanças que se deram nos trajos no fim do sé­
culo x v :
Outros vão trazer atados
uns lencinhos no pescoço ...
As donas por competir
em terem cousas de Frandes
as fazendas muyto grandes
querem fazer destruir.
Os desvairados vestidos
que se mudam cada dia,
nom vejo nenhuma via
para serem comedidos.
Que se um galante traz
hum vestido que elle córte,
qualquer homem de outra sorte
outro faz.
(i) Canc. geral, 1.1, p. 145.

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374 LIVRO I, CAPITULO V
Na Chamusca vi um dia
uma filha de um villão,
lavrando d’almarafâo,
o qual pera sy fazia..
D’aqui virão os chapins,
e tambem os verdugados,
e após elles os trançados
e coxins. (1)
A locação velho e râho parece-nos derivar-se d’esta
alteração dos trajos no seculo xv ; o rêlho era «o fecho
ou fivellão com que antigamente se apertavam as
preciosas cintas das senhoras portuguezas. O serem
de feição triangular e quasi da feição das râhas que
ainda hoje na provincia do Minho estão em uso, deu
o nome a este ornamento do cinto ou faixa peitoral.»
(Viterbo.) Nos Annaes de D. João ui, desòreve Frei
Luiz de Sousa esta mudança dos trajos : «E devemos-
lhe os portuguezes, que trocando n’esta conjuncção
quasi toda a côrte e até a pessoa de elrei o trajo por-
tuguez pollo castelhano e framengo, elle (o principe
D. João) nem agora nem depois quiz acceitar nunca
tal mudança.» (2) «Só não pôde acabar comsigo dei­
xar o trajo natural polo estrangeiro, como então fez
quasi toda a côrte. Ficou em lembrança que bia de-
traz d’elle, vestido em pelote de brocado de pelo, com
mangas trançadas cortado sobre setim pardo : espada
de ouro cingida, e cuberta uma capa frisada : gorro
de duas voltas sem firmai de preço. Tudo ao usopor-
tuguez d’aquella idade.» (Ib.) Fernão d’Oliveira tam­
bem nota as alterações da moda : «Nem os lavradores
D’antre Douro e Minho entendem as novas vozes que
est’anno vieram de Tunes com suas gorras.» (3) E o
mesmo : «o costume novo traz á terra novos vocabu-
(1) Canc. geral, t. m, p. 508.
2) Ann., p. 18.
(3) Grammatica,cap. xxxn (1536.)

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 37 5
los: como agora pouco ba, trouxe este nome picote,
que quer dizer burel; do qual, porque de fóra trou­
xeram os malgalautes o costume, ou para melhor di­
zer, o desdem de vestir o tal panno, trouxeram tam­
bém o uome com esse costume: e alquice tam pouco
be vestido da nossa terra, por isso tambem traz o
nome estrangeiro comsigo.» A pragmatica de 3 de
junho de 1535 probibia o trazer luvas perfumadas aos
bomens.
Lê-se em uma Relação de Viagem de 1580: cOs
homens da cidade de Lisboa e de todo o Portugal são
de mediana estatura, mais baixos que altos, magros,
de côr ferrenha, cabellos e barba pretos, olhos negrís­
simos, e mui similhantes no exterior aos gregos. O
seu trajo, antes da morte do Gardeal-rei, era mui mes­
quinho, em consequência da pragmatica, que não con­
sentia usassem vestidos de seda, pelo que, trajavam
um saio de baeta preta, calções de panno escocez,
borzeguins de marroquim, chapéo de feltro e capa
comprida da mesma baeta. Com a chegada de elrei
catholico (Philippe n) alteraram o seu antigo trajo,
porque, postoque conservaram a capa de baéta, come­
çaram a usar do gibão de raso (i. é, panno de lã
sem felpa) bragas e calções de velludo e meias de
seda, cousa que nunca tinham calçado, bem como
escarpins, dos quaes não era possivel achar um só
par antes da entrada de elrei, porque todos, sem
excepção, calçavam borzeguins.» (1)
«O trajo feminino em Lisboa é o commum de toda
a Hespanha; isto é, o manto grande de lan ou de
seda, segundo a qualidade da pessoa. Com elles co­
brem o rosto e o corpo inteiro, e vão aonde querem,
tão disfarçadas, que nem os proprios maridos as conhe­
cem, vantagem esta que lhes dá maior liberdade do
(1) Viagem de Tron e Lippomani a Portugal (Pan., t. vn, 83.)

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376 LIVRO I, CAPITULO V
que convem a mulheres bem nascidas e bem morige-
radas.» (i) Este trajo, evidentemente dç origem
arabe, conservou-se no Algarve com o nome de re­
buço, e no Porto com o nome de até ba bem
poucos annos.
Em uma Estatística manuscripta de 1552 cita-se «a
Feira do Rocio, que se conserva ainda sob o nome de
Feira da Ladra em outros locaes; n’essa feira ven-
diam-se artigos de sumptuaria, coufas de gara-
vis trançados, gorgeiras, lenços, tranças e cabeções,
soltas ustedas, chamalotes, fustões, selins falsos.» (2)
As gorgeiras tambem se chamaram abanico: «Com­
punha-se de uma tira de garça ou volante de largura
de uma mão travessa tomada em prega.» (Viterbo.)
Junto dos Paços da Ribeira, e em volta da Capella
real, sob as arcadas do palacio é que estavam arrua­
dos os que vendiam estes artigos; d aqui ficou o nome
de Capellistas aos commerciantes d’esta especialidade,
e que ainda hoje persiste já sem conhecimento da
sua origem. (3) As descripções dos trajos e modas
pode fazer-se pelas Pragmaticas ou leis com que os
reis intervinham no modo de vestir dos seus súbdi­
tos ; tal é a Pragmatica de 9 de junho de 1643, e a
Pragmatica das sedas, de D. João v.
Francisco Rodrigues Lobo, no seu Pastor peregrino,
traz a seguinte descripção do trajo de uma serrana:
Huma fraldilha vestida De velludo debruado
Trazia ella de pombinho; Com pestanas;
Com pespontos um saitiho Que era inveja das sarranas,
De arenoso. E dos pegureiros falia;
Hum corpinho mui custoso de bengala
De chamalote encarnado, Mui singela;
(1) Pan., t. iv, p. 98.
(2) Ap. Ribeiro Guimarães, , t. vu, p. 71.
(3) Ratton, Recordações, p. 305. — Conde de Villa Franca,
D. Jotto l e aAUiança ingleza, p. 82, not.

Original from
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 377

Fitade seda amarella com mil boninas


Que por baixo reluzia, Debuxado ;
Que acinte tudo a fazia Capirote laranjada,
Mais fermosa ; Çurrão de branco cordeiro;
Continhas de páo de rosa, Cajadinho de salgueiro
Cordão de linhas bem finas, Traz na mão etc. (1)
D. Francisco Manuel de Mello, na sua Carta de guia
de casados descreve muitos costumes intimos da socie­
dade portugueza no seculo x v ii : «Contra a antiga
modéstia portugueza, introduziu o costume que as
criadas andassem no mesmo trajo que suas senho­
ras.» (2) Censura o trajo das senhoras: «O uso dos
guarda-infantes, e cousas d’esta maneira, ponho entre
aquellas que de si não são más nem boas, e o cos­
tume lhe dá o sêr, ou lh’o tira. Eu vi andarem as
francezas com semelhante trajo, a que então chama­
vam verdugadins, parecerem muito bem e não lhes
ser extranhado. Depois, as vi sem elles e parecerem
da mesma sorte. » (3) «Âborrece-me umas Maias muito
enfeitadas sempre de bordados e joias, que parecem
Fama de Procissão ou Rainha moura de comedias,
etc.» (4) «Estão de candeias ás avessas com umas
capinhas, que não sei d’onde vieram ; porque me não
lembra que tal visse em nenhuma parte. Ora seja ou
não seja de outra nação, elle não é trajo authorisado,
nem, a meu juizo, decente ; e já tão vulgar, que isso
mesmo pudera ser o seu desprezo. Podendo-se com
mais razão dizer das taes capinhas o que dizia um
pechoso pelas violas, que sendo um excellente instru­
mento, bastava saberem-no tanger os negros e pati­
fes, para que nenhum honrado o puzesse nos pei-
(1) Fim da Jornada n.
(2) Op. cit., p. 92. Ed. 1873.
(3) Ibid., p. 101.
(4) Ibid., p. 106.
\o Original from
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378 LTTRO I, CAPITULO T I
tos.» (1) Censurando o uso dos perfumes, accrescenta: 1
«Os nossos velhos diziam tambem: Que o homem I
havia de cheirar a polvora, e a mulher a incenso.
Alhidiam á religião e á milicia, em que os queriam a
elles e a ellas occupados.» (2) E condemnando a va­
riedade dos nomes de baptismo: «Tenho por grande
leviandade esta ladainha de nomes (dissera melhor,
carta de nomes) que hoje se usa, pondo em camouço
uns sobre outros, deixando os de mais barafunda para
o cabo. Deram as mulheres n’esta nova casta de de­
masia ; e acontece, que a que nasceu méra Domingas
ou Francisca, lança sobre si meia duzia de Jacintas,
Leocadias, Michaelas, Hypolitas, e outros nomes ex-
druxulos, só porque viram chamarem-se assim pouco
mais ou menos as suas visinhas.» (3) O uso das Co­
medias representadas em familia era corrente no
seculo xvii pelo que se deprehende da moralidade de
D. Francisco Manuel: «o casado, por alegrar sua
mulher e familia, mesmo de seu movimento, mande
(se as houvesse) fazer em sua casa duas e trez come­
dias cada anno. Seja elle proprio o que convide;
tem-se aquillo em muito, etc.» (4) O uso dos cosmé­
ticos é tambem reprovado ; é ao que elle chama pôr
no rosto (p. 181.) Quasi todos estes costumes são pro­
venientes do seculo xv como se vê pela Miscellanea
de Garcia de Resende, que se refere ao poer na face
e trazer averdugadas.«Asverdugadas chamaram-se
depois gtiardas-infantes, donaires, merinaqnes e balões,
e tudo é a mesma cousa.» (5) A lei sumptuaria de
1643 prohibiu os pannos de linho desfiados, com que
(1) Carta de guia de casados, p. 131.
(2) Ibid., p. 142.
Ibid., p. 147.
(4) Ibid., p. 171.
(5) Ribeiro Guimarães, Summario de varia historia, t. i,
p. 127. ’

r^ r^ rA o Original from
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 379
faziam as sanefas das camas ; em 4672 a Gamara de
Lisboa pedia a D. Pedro n qne prohibisse as cabel-
leiras postiças, e em nma consulta de 49 de outubro
d ’esse anno pondéra : «que o uso das cabelleiras se
tem desordenado de modo, que é preciso moderar a
demasia em que se pratica.— É considerável o dinheiro
que boje n’ellas se gasta, e se leva para fóra do reino,
saindo d’elle prata por cabellos. Ha cabelleira que
custa cincoenta e sessenta mil réis ; e consta que para
o estado da India se tem mandado, ha annos a esta
parte, grande quantidade d’ellas, que se venderam
por preços excessivos, etc.— Passa esta desordem do
adorno da cabeça ao mimo das mãos, trazendo-as
muito resguardadas em regalos. Convém que V. A.
atalhe este damno, prohibindo todo o genero de
leirasj permittindo-as sómente aos que por razão de
achaque necessitem d’ellas ; prohibindo outrosim, que
os homens tragam regalos nas mãos e leques. Os
regalos prohibiu V. A. já na Pragmatica de 8 de junho
de 4668, como prohibiu tambem o andar'desabotoa­
dos, que de novo se deve prohibir.» Na Pragmatica
de 43 de abril de 4668 fora prohibido o usar regalos
nas mãos e o trazer bengalas. Ha outras Pragmaticas,
de 9 de agosto de 4686, de 44 de novembro de 4698,
de 6 de maio de 4708 e de 24 de maio de 4749, em
que o poder real absoluto intervinha directamente na
regulamentação do que cada pessoa podia vestir.
Alguns folhetos do seculo xvm satyrisando os cos­
tumes da epoca deixam-nos preciosas indicações sobre
os trajos e modas; a Definição da de 4746, e
o Testamento de uma frança, repartindo pelos conven­
tos pobres as suas melhores galas e fazendo outras obras
pias, por causa da Pragmatica, impresso em 4754,
accumulam traços pittorescos de uma inapreciável
realidade. O dr. Ribeiro Guimarães compilou d’esses
folhetos noticias que organisou no artigo Çostumes e

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380 LIVRO I, CAPITULO V
modas velhas, de que extrahiremos algumas passagens
que completam este quadro. As procissões e as fes­
tas de egreja eram então o principal pretexto para a
ostentação do luxo; os galanteadores tinham o nome
de faceiras e as mulheres eram as sécias. Segundo o
folheto citado, de 1746, a secia obedecia aos seguin­
tes preceitos: «Se for vêr procissão de janella, và
toucada á allemôa,que é a côr que agora anda na
dansa das modas. Leve broches, manilhas, signaes em
quantidade, pondo-os n’aquellas partes em que fize­
rem o rosto engraçado.» Os signaes eram uma espe-
cie de tatuagem, que Bluteau descreve: «é um pe­
queno retalho de tafetá negro, qne a engenhosa vai­
dade das mulheres inventou para realce da alvura
do rosto ou para cobrir borbulhas e outros atrevidos
desdouros da formosura.» Conforme o logar em que
se collocavam os signaes assim elles tinham varias
designações: <0 signal da testa chama-se magestoso;
o das fontes proximo da orelha, discreto; o do canto
do olho, apaixonado; o do nariz, atrevido; o da face,
galante; o da covinha da face, folgasão; o do canto
da bocca, beijocador; o dos labios, garrido; o do pes­
coço, por detraz da orelha, tentador; o da barba, pro­
vocador; o do riso, magano; sobre uma borbulhinha,
encobridor; debaixo dos olhos, desatinado; no canto
do nariz, louquinho.» (1) A côrte franceza foi o ponto
de irradiação das modas por toda a Europa: «As fran­
ças e as sécias imitavam as modas importadas de
França com afan egual ao com que as nossas elegantes
senhoras do tom hoje as copiam. Todas as exagera­
ções, todos os disparates, todos os ridiculos eram
abraçados com enthusiasmo, e a tal ponto chegou,
que ás elegantes do tempo de D. João v se dava o
nome de franças; francezia, francezismo, se chamava
(1) Ribeiro Guimarães, Summario de varia hist., 1.1, p. 125.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 381

á moda.» (1) Pelo folheto de 1751, se sabe qual era o


inventario de uma frança : «meias bordadas, esparti­
lhos, fitas de cintura com ricas bordaduras, saias de
veludo, contas de ouro, roupinhas bordadas de prata
e ouro, charpas bordadas de ouro e prata, guarda-pés
matisados de ouro e prata, leques de marnm, pelati-
nas de arminho, pulseiras, manguitos riquissimos,
sapatos bordados, caixinhas de signaes, frasqueiras
de agua de flor, alcanfor, circilios, borla de polvilhos,
frascos de oleo de jasmim, papelinhos de pós de França,
frascos de agua de Cordova e de Hungria, caixinhas
de macilha, sabonetes de cheiro, pomadas, etc.» (2)
Um alvará do Intendente geral da Policia de 26 de
março de 1804, do celebre Pina Manique, reagiu con­
tra as modas do seculo xvni, por causa da sua des­
envoltura; transcrevemos os principaes trechos do
alvará : «N’esta Intendência consta que algumas alfaya-
tas, denominadas modistas, inventam diariamente mo­
das de vestidos para pessoas do sexo feminino, espa­
lhando bonecas que fazem, e outras figurinhas em
pintura, para cujo fim tem ganhado alguns artistas;
cujas modas tem levado ao ponto de fazerem com que
algumas das mesmas pessoas appareçam no publico
quasi nuas, e em trajes tão indecentes que escanda-
lisam a modéstia e provocam os homens a fins libidi­
nosos.» O Intendente impunha logo a reclusão na casa
da correcção do castello de S. Jorge. Ribeiro Guima­
rães compara as modas do fim do seculo xvni com
as do meado d’este seculo : «Os vestidos que em 1804
se levantavam do chão um ou dois palmos, hoje são
roçagantes e vão varrendo as ruas. Os vestidos são
afogados, e os chailes ou capas occultam cuidadosa­
mente os hombros e as espaduas. O pé, que n’outras
(1) Simm., 1.1, p. 128.
(2) Ibid., p. 128.

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382 LIVRO I, CAPITULO V
éras se deixava vêr com singular coqnetismo, agora
esconde-se envergonhado. Os braços ostentavam as
snas formas esbeltas, agora somem-se nas mangui-
nhas e nas mangas dos casacos e das capas.» (1) Á
actividade especifica da moda continua a sua evolução,
conservando comtudo os característicos da immobili-
dade do costume; assim a blusa, significa o homem
do trabalho, um casaca, o indivíduo que vive dos
seus rendimentos; o capote e lenço, designa a mnlber
do povo. A moda na sua parte movei, torna os trajos
allusivos aos acontecimentos políticos do tempo, como
os raglan e os pio-nono, ou imita certas regressões
como a statopygia da mulher hottentote na toumure
ou anca postiça. (2)
A proposito d’este estudo das modas, poderíamos
tratar dos títulos e comprimentos cerimoniaes usados
pelo povo; como porém nos levaria longe esse traba­
lho, deixaremos apenas consignadas algumas indica­
ções mais pittorescas. O antigo tratamento de Vossa
Mercê, abreviado em vossemecê, tomou um caracter
offensivo na forma de você. De Carrazeda de Anciães,
diz o sr. Sequeira Ferraz: «Na minha terra ninguém
gosta que lhe dêem tratamento de você, nem mesmo
se dá senão quando os interlocutores estão zanga-
(1) Summ., 1.1, p. 133.
(2) O fallecido calligrapho Godinho emprehendeu a collec-
cionaçãode todas as Modas etrajos poedque n
gou a publicar senão alguns especimens. No prospecto d’essa
obra dizia: «Parece-nos que em dar à estampa esta obra pres-
tamos um valioso serviço ao nosso paiz, porque esses trajos,
que tão bellas tomam as nossas provincianas, vão desappare-
cendo da maior parte das povoações, que trocam a serguilha
pela lustrina, pelo zuarte e até (algumas) pela seda etc.; mas
quando de todo não possamos remediar este mal, cingir-nos-
nemos ao que virmos e buscaremos por todos os modos apro-
ximarmo-nos o mais possivel do typo verdadeiramente na-
cional.*

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO B TRADIÇÃO 383
dos.» (1) Nas ilhas dos Açores existe o mesmo me­
lindre, e quando se recebe o tratamento de você, ce-
truca-se:
Você, é estrearia,
N’ella come e n’eíla se cria,
Com dez reis de palha por dia.

G povo não conserva as gradações da pragmatica


■dos tratamentos; no romance do Conde da
versão da Beira baixa, diz o conde para o re i: — Que
me quer a Vossa Alteza, Vossa Alteza senhoria ? (2) •
Os velhos têm o tratamento de tio; os novos são mo­
ços, cachopas e ponceüas (contraposto a donzella, de
dotninicella) como se vê nos Romanceiros do Algarve
-e do Archipelagoda Madeira. As classes sociaes são
-também denominadas de sangue azul ou a fidalguia;
de meia tijela ou a burguezia, e arraia miuda ou
plebe, como em Barcelona o Ma major, Ma mitjana
e Ma menor. A pessoa extranha e indiferente e de
quem se falia é um gajo. (3) No velho romance do
Conde Alarcos, a mãe ensina ao filho como ha de
comprknentar a madrasta:
Anda cá filho mais velho
Que te quero ensinar,
A toa mae, a rainha,
Como lhe haveis de chamar
Com o joelho no chão,
E o chapeosinho no ár.
( Rom.ger., n.* 28.)
No norte de Portugal o povo sauda-se com a phrase:
Louvado seja Deus, traducção do arabe Maschallah t
(1) Actualidade, n.* 206, de 1882. Porto.
(2) Rom. geral, p. 72.
(3) Segundo Nerucci, deriva do cigano-rumelico gadgio.
Folk Lore andaluz, n.° 4, p. 140.

r^ r^ rA o Original from
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384 LIVBO I, CAPITULO V
Os parentescos também s3o expressos nos anexins
com as suas relações moraes: Cunha­
das, são unhadas; Madrasta, nem de pasta; Sogra,
nem de barro á porta; Quanto mais prima, mais se
lhe arrima; Parentes, são os dentes.
Dansas e instrumentos músicos.— Um grande nu­
mero de actos sociaes, a que se ligou um caracter
religioso, como os funeraes, os casamentos, as com*
memorações históricas, tinham a dansa como uma
parte essencial das praticas cerimoniosas. É como de­
rivada do rito, <}ue a dansa apparece como germen
das formas dramaticas ou do theatro hierático; e por
isso mesmo conserva através de todas as transforma­
ções a sua physionomia nacional. Na peninsula hispâ­
nica, a dansa distingue ainda os seus diversos ele­
mentos ethnicos; diz Tubino: «Segui os costumes
populares, vereis a enorme distancia que divide os
hespanhoes entre si. Em quanto o basco dansa o Zor-
zico e canta o Gamicaco arbola, acompanhado da tibia,
o galego dansará acompanhado da gaita a monotona
muifieira, saturada de melancholicas recordações das
raparigas namoradas. Entre os Aragonezes a jata e
a rondaüa, com o auxilio do pandeiro, desenharão o
caracter viril e marcial dos indigenas; o Andaluz,
embalado pelas influencias e recordações do Oriente
e do Occidente, executa ao som da guitarra estes bai­
les de encanto supremo que misturam as inebriantes
seducções das dansas das almêas e das bayadéras
aos refinamentos delicados de uma civilisação idea­
lista e cavalleiresca.» (1) As dansas portuguezas par-
(1) Recherches d’Anthrop6logie sociale,p. 15.0 mesmo fa
se observa com a França; diz o Bibl. Jacob: «Cada provín-
cia de França tinha a sua dança nacional, e todas estas dan-
sas, as bowrrées de Auvergne, os trioris da Bretanha, as -

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 385

ticipam dos caracteres provenientes da nossa situação:


sensuaes, como os Fados,os Batuques receb
arabes e das possessões africanas, e as Modinhas rece­
bidas das colonias do Brazil. Dirigido n’esta descri-
pção pelo critério ethnico, importa investigar o que
os escriptores antigos nos deixaram ácerca das dan­
sas dos povos peninsulares. Strabão cita as dansas e
cantos dos Celtiberos no plenilúnio (lib. m, cap. 4,
§ 16); este costume passou para as vigilias dos san­
tos, prohibido pelo xvi Concilio de Toledo, sendo com-
mum á Bretanba e ainda vivíssimo em Portugal. Os
cantos beroicos e coraes eram acompanhados de dan­
sas como referem Diodoro Siculo e Silio Itálico, de
que são representantes actuaes a dances de Aragão,
a Muifieira da Galliza e a Danza prima das Asturias.
Plinio o Moço e Marcial referem-se ás puelas gadita-
nas, que dansavam e cantavam lascivamente, segundo
os costumes peculiares da Turdetania. Como em outro
logar vimos os Tripúdios hispânicos eram uma dansa
funeral. Strabão, na sua Geographia (liv. m, cap. 3)
descreve esta paixão pela dansa : «Mesmo bebendo os
homens põem-se a dansar, ora formando córos ao som
da flauta e da bea,ora saltando cada um de pe
trom
si a vêr quem salta mais alto, e mais graciosamente
cae de joelhos. Na Bastetania as mulheres dansam
também misturadas com os homens, cada uma tendo
o seu par de frente, a quem de vez em quando dá
as mãos.» Parece-nos um esboço da vida actual, so­
bretudo nos campos. No elemento popular que se acha
no Cancioneiro portuguezda Vaticana abu
documentos sobre as dansas usadas no seculo xn
e xiii em Portugal ; as cantigas que se diziam ao
les do Poitou, as valsas da Lorraine, formavam uma arte en-
cantadora em que os francezes supplantaram os outros povos.»
Moeurs, Usages, p. 266.

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386 LTVRO I, CAPITULO ¥
compasso dessas dansas dèram o nome a um genero
lyrico especial, a baylata ou balada:
Mha madr’ é velyda,
vou-m' a la baylia
do amor.
Mha madr’ é loada,
vou-me a la baylada
do amor. (Gone. da Vat., 19S.)
Nossos amigos hiram por cousir
como baylamos,e podem veer
baylar moças die bom parecer...
(Ib. 336.)
Baylmos nós já todas, todaã ay amigas,
só aquestas avelaneyras frolidas. ..
(Ibid. 462.)
Baylade oje, ay fllha, qne prazer vejades,
ant’ o vosso amigo, qne vós muit’amades. . .
(Ib. 464.)

Os instrumentos músicos a que alludem as canções


provençalescas d’esta epoca, eram o citolom ou citola
e o adufe. Já transpareee aqui o elemento mauresco.
Nas cerimonias que se executavam ao conferir o grào
de cavallaria, simulavam-se combates com Mouros, e
d’aqui vein a sua degeneração nos bailes de Mourisca;
esta dansa agonistica dos Mouros, que nos Açores
conserva a forma dramatica popular sob o titulo de
Mouriscadas, era conhecida em França por 1458, (1)
e encontral-a-hemos na sociedade portugueza com uma
singular persistência. Fernão Lopes, descrevendo o
caracter do rei D. Pedro i, o Justiceiro, diz d’elle:
«era muy querençoso e em dansas e festas, segundo
aquel tempo, em que tomava gram sabor, que adur
(i) Bibliophile Jacob, Moeurs et Usages au Moyen-Age, p. 261.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 387
é agora para ser crendo ; e estas dansas eram e som
dhumas longas que entonce husavom sem curando
d’outro estormento, posto que o hi ouvesse, e se al­
guma rez lh’o queriam tanger logo se enfadava d’el­
les, e dizia que o dessem ao demo, e lhe chamassem
os trombeiros.»(cap. xiv.) «Vinha el rei em batees
D’almada para Lisboa, e saiam-no a receber os cida­
dãos e todollos dos mesteres, com dansas e trebelhos,
segundo entonce husavom, e el saia dos batees e
metiasse na dansa com elles e assi hia ataa o paço.»
Quando foi armado cavalleiro João Affonso Tello, na
egreja de Sam Domingos, tambem houve dansas pe­
las ruas. Nas festas do casamento de D. João i com
D. Philippa de Lencastre, diz Fernão Lopes : «Em
quanto o espaço de comer durou, faziam jogos à vista
de todos os homens, que o bem sabiom fazer, assi
como trepar em cordas, e tomos de mezas, e salto real
e outras cousas de sabor ; as quaes acabadas alça-
romse todos e começarom a dansar e as donas em
seu bando cantando arredor com grande prazer.» (1)
Na linguagem popular ainda existe a locução com que
se exprime boa vontade : Heide-te bailar na boda. No
casamento da imperatriz Dona Leonor, encontramos
apontadas dansas portuguezas, como a ,a
cota, a Mourisca e o Vülão, que no seculo xvi appa-
recem como populares nos Autos de Gil Vicente.
Lopo de Almeida que acompanhou a infanta D. Leo­
nor, irmã de D. Affonso v, para a Allemanha, pelo
casamento com o imperador Frederico m, em 1451,
descreve as dansas das festas reaes :
«N’estes tempos houve grandes e fremosas justas
e outras festas, a que sempre elrei levava sua irmã,
e assim a acompanha sempre a duqueza de Calabria,
e Lucrecia, que a estas festas sahia mui louçã, e á
(1) Chron. de D. João i, P. n, cap. 96.
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388 LIVRO I, CAPITULO V
noite pelo serão, dançavam a dita senhora a Baixa,
e elrei com ella pela mão, e o imperador com a irmã
de Lucrecia, e veiu a mim o príncipe de Rosano,
genro de elrei, que dançasse, pois elle dançava, e
assim dançámos todos os vossos que aqui eramos, e
o sabiamos fazer, e quando veiu a Alta, dançavam
todos os ditos cinco sós, assim como Chacota, e vossa
irmã a guiar a dança ; e acabada, mandavam bailar
meu sobrinho com Beatriz Lopes baile mourisco, e
depois o Vilão, e espantou-se el rei do seu bailar, e
fez-me entender que lhe prazeria que ficasse alguns
dias com elle...» ( Provasda Hist. genealóg
dalgo Aprendiz, ainda se cita no seculo x v i i a Baixa,
e o Vilão; e na procissão que em 16H se fazia com-
memorando a tomada de Lisboa, tambem saia ama
Chacota. Gil Vicente diz :
E bailando á mourisca
D’entre gente portuguez...
{Ob., t. m, 53.)
Não praza a Deus co’a viola,
Que assi se torna mourisca,
E eu fico á carraquisca :
En los campos verdes sola. (Ib. 181.)

A Baixa era um genero especial, que comprehen-


dia muitas outras dansas ; no Cancioneiro de Resende,
fala-se no Tordião, citado por Gil Vicente: «Sabeis
tambem o ordiãt». (Obras, i, 227.) O novellista fran-
cez Bonaventure des Perriers allude a esta dansa, (1)
tordion ou tourdion, designação derivada de tour, mo.
vimento lascivo dos rins, e a que se chamava figura-'
damente les basses danses. No Cancioneiro de Resende
(1) Les Nouvelles Récréations, nouvelle xxxix.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 389
ha referencias a dansas, que ainda persistem entre
o povo:
E eu dou-vos um pandeiro
alcancareyro,
que leveis na mão tangendo. (1)
guayteiro de tiro-liro.

No Fidalgo aprendiz chama-se a esta dansa o


léro, e na ilha de S. Miguel conserva-se com o nome
de Tiroleio, sendo acompanhada ao som de duas pe­
dras batendo uma na outra. Gil Vicente, no Auto pas­
toril portuguez, allude a um personagem «Que sabe
os bailes da Beira;» (2) e os seus Autos remata-os
com Chacotas e Ensaiadas. As Chacoulas do Alemtejo
e a Chacoina de Friellas são porventura a persistên­
cia da Chacota do seculo xvi. Sá de Miranda, descreve
nas suas Éclogas:
Nas villas hum bailo dansam
Em que todos ao som andam,
Uns cá, outros lá se lançam,
Como o tanger não alcançam,
Mais pés, nem braços se mandam.

Não obstante a paixão do povo pela dansa, prohi-


biu-se no alvará de 28 de agosto de 1559 «que na
cidade de Lisboa e uma legua de redor d’ella se não
faça ajuntamento de escravos, nem nem tange­
res seus, de dia nem de noite, em dias de festa, nem
pela semana, sob pena de serem presos, e de os que
tangerem ou bailarem, pagarem cada um mil reaes
para quem os prender...» (3) As festas religiosas tor-
(1) Ed. Stuttgard, t. ui, p. 99 e 648.
(2) Obras, 1. 1, p. 131.
(3) Nunes de Leão, Extravagantes, p. 423.

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390 LIVRO I, CAPITULO V
naram-se o principal pretexto das dansas, como ainda
boje se vê com os Charambas,nos feste
rio do Espirito Santo, na ilha de S. Miguel. Na festa
de S. Sebastião, no Rio de Janeiro, no fim do seculo xvi
descreve o padre Fern5o Cardim ; «Era para vêr uma
dansa de meninos indios, o mais velho seria de outo
annos, todos nüsinhos, pintados de certas côres apra­
zíveis, com seus cascavéis nos pés e braços, cintas e
cabeças, com varias invenções de diademas de pennas,
collares e bracelletes; parece-me que se os viram n’esse
reino, que andaram todo o dia atraz d’elles. Foi a mais
aprazível dansa que d’estes meninos cá vi, etc.» Na
Madeira era tambem usual este espectáculo na festa de
S. Sebastião : «Era o capitão Simão Gonsalves affei-
çoado a vêr folgares, touros, luctas e jogos de canas,
e todas as mais festas e jogos para alegrar o povo ;
nos dias de luctas, principalmente nos de S. Sebas­
tião e de S. Braz, ajuntava no terreno defronte de
suas casas muita gente de toda a ilha, etc.» (1) As
dansas hieraticas eram espectaculosas sobretudo na
procissão de Corpus Christi. Em 1588 os Mendigos de
Lisboa estavam arregimentados em uma confraria in­
titulada de Santo Aleixo, e foram visitar umas relí­
quias aos Jesuitas de S. Roque, homens a um lado e
mulheres a outro com cannas verdes na mão, em ca-
pella de canto de orgão, charamellas, e a imagem do
patrono em uma charolla. (2) No dia 13 de maio com-
memorava-se a tomada de Lisboa em uma procissão
que saía da Egreja dos Martyres ; em uma relação de
1611, vem as despezas da procissão com as chara­
mellas, 2000 rs.; com a Chacota, 1600 rs.; com as
trombetas, 1200 rs.; com as ciganas, 1000 rs.; com
(1) Saudades da Terra, p. 299.
fv
(2)
f7 pT
Ribeiro Guimarães, Summario de varia historia. t.3 ii,

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 391
a folia, 1000 rs.; com as 1000 rs., etc.» (1)
No culto era a dansa peculiar da liturgia tradicional
popular; Dillon, na sua Viagem, de 1711, diz dos
costumes religiosos de Goa: «Nas festas mais sole-
mnes, depois de acabar o serviço divino, fazem vir
para dentro da egreja as mulheres ricamente enfei­
tadas, as quaes na presença do Santíssimo Sacra­
mento, que fica exposto, dansam ao som de guitarras
e castanholas, cantam modinhas profanas, tomam mil
posturas indecentes e impudicas, que mais conviriam
para logares públicos que para egrejas...» (2) Com­
provando este facto, diz Bernardes Branco: «Não se
passaram ainda muitos annos, que taes dansas impu­
dicas foram prohibidas dentro da Sé do Porto, por
occasião da festa de S. Gonçalo, chamada a Festa das
Begateiras.*
Nicoláo Tolentino, nas suas salgadas quintilhas
allude á persistência das dansas hieraticas:
Em solemne procissão,
Une a frieleira casta,
O fandango e a devoção;
Mas emfim de exemplo basta
E tomemos à questão. (3)

Da procissão de Corpus, no começo d’este seculo


diz Ribeiro Guimarães: «Tambem concorriam nume­
rosas dansas de saloios, como a dos Foliões da Arruda,
a das mulheres de Friellas, de Viallonga, etc. Os
Foliões da Arruda levavam um pandeiro, que iam
tocando com muito estrondo e faziam grandes maca­
quices. As frielleiras dansavam uma dansa mourisca,
a que chamavam Chamna, dansa antiga e até usada
(11 Summ., 11, p. 91.
(2) Ap. Bernardes Branco, Portugal e os Estrangeiros, 1. 1,
p. 296.
(3) Obras, p. 231. Ed. Castro Irmão.

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392 UVRO I, CAPITULO V
nas salas em tempos mais remotos.» (1) A
foi primitivamente um canto, a Ciecone; no seculoxvi
era unicamente uma dansa, conhecida na Italia e na
Hespanha; faliam d’ella Salvator Rosa, Quevedo, Cer­
vantes, e chegou a formar o provérbio:
Ay la chacona
Es la vida bona. (2)
O domínio hespanhol de 1580 a 16&0 propagou em
Portugal um grande numero de dansas que ainda per­
sistem, tendo decahido dos hábitos e modas palacia­
nas ; a paixão das dansas na vida domestica conhe­
ce-se por este conselho de D. Francisco Manuel na
Carta da guia de Casados: «Não louvo o trazer cas­
tanhetas na algibeira, o saber jdcaras e entender de
mudanças de sarambeque, por serem indícios de des­
envoltura.» (3) Yê-se que a decadencia das dansas
populares descripta por Gil Vicente, cessou com o
domínio castelhano.
A dansa tornou-se uma monomania da côrte de
Filippe iv (e iu de Portugal) onde o seu primeiro mi­
nistro o duque de Lerma, que veiu a ser cardeal,
se distinguia por ser o primeiro bailarino do seu
tempo; Juan de Esquivei, no folheto ou opusculo Dis­
cursos sobre el Arte dei danzado, de 1642, elogia o
monarcha hespanhol pelo seu grande talento e gosto
pela dansa, aprendida com o mestre Antonio de Al­
meida. Os mestres de dansa eram então afamados,
como José Rodrigues Tirado, com eschola publica em
Sevilha; Antonio de Rurgos e João de Pastrana, cita­
dos como eminentes no opusculo de Esquivei. Esta
(1) Summario deVaria Historia, t. iv, p. 18.
(2) Formação do Amadiz de Gaida,j). 55. Na Fenis (t. i, 314)
lé-se : «ia cantando a chacoyna.»
(3) Ed. do Porto, p. 100.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 393
monomania da classe aristocratica do seculo , x v ii
acha-se ridicularisada por D. Francisco Manuel de
Mello no magnifico Autodo Fidalgo apr
sentado na côrte de D. João iv ; n’elle se acha uma
riquissima scena com um mestre de Dansa, e a ennu-
meração das dansas mais vulgares em Portugal no
meado do seculo . Esta monomania estabeleceu
x v ii
uma separação entre as dansas populares e as corte-
zãs, como se nota no opusculo de Esquivei, que falia
das primeiras com desprezo e como indignas de serem
conhecidas de cavalleiros : «Todos los maestros abor-
recen á los de las danzas de cascabel, y con mucha
razon, porque és muy distinta á la quenta y de muy
inferior lugar, e ansi ningun maestro de reputacion
y con escuela abierta, se ha hallado jámás en seme-
jantes chapandacas y si alguno lo ha hecho, no habrá
sido teniendo escuela, ni llegado á noticia de sus
discípulos, porque elque lo supiese rehusará serio
de alli adelante, porque la danza de cascabel es para
gente que puede salir á dançar por las calles, y estas
danças llama por gracejo Francisco Ramos, la tarasca
dei dia de Dios...*(1) No Auto portuguez do Fidalgo
aprendiz, nota-se a influencia castelhana nas dansas
aristocraticas, e o desprezo pelas do povo : « o
Mestre da Dansa, muito polido fazendo mesuras, põe-se
de joelhos diante de D. Gil,e pega-lh
Ih’as beijar:
Me s t r e : Dai-me as mãos.
Gil : Não m’as comais,
Que não são mãos de carneiro.
Sois o Mestre ?
Me s t r e : E o Rei David
Mais antigo da cidade.
G il : Tereis grande habilidade.
(1) Esquivei, op. cit., cap. xii, Ap. annotadores de Tichnor,
Hist. da Litt. hesp., t. ui, p. 458

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394 l t vr o i, c a p it u l o t
Mkstri : Estive já em Madrid.
Gil : Oh! se fostes a Castella
Sabereis cem mil mudanças.
M b s t r b : Para mudanças e danças
Todos sabemos mais que ella.
Gil : Ora tiro o balandrao
Que o aprender sempre ó virtude (tira o capote.)
M e s t r e : Ha em casa algum laúdef
A l m e id a : Não h a mais que um birimbáo.
M b s t r b : Violasf
A .:
l m Sim, achareis.
Na botica.
Me s t r b : Harpa ?
A l m .: De c o u ro .
M e s t r e : Nem um sestro ?
A l m.: Um sestro agouro.
M e s t r e ; Nem sequer dous cascavéis ?
Eu vos tangerei co*a mão.
G il : Tangei, que eu não dou lição,
Assim, sem tom e sem som.
M e s t r e : Passeae por essa casa;
Que vos quero dar o ar.
Gil : Isso é q u e re r-m e a le ija r,
Dar-me o ár, estando em braza.
M e s t r e : Fazei mesuras. (Faça D. Gil muitas mesuras sem
feição.)
G il : A o s p a re s ,
M e s t r e : Este pé esse acompanha
Sempre.
A l m .: ' Não, ninguém lhe ganha
Em mostrar os calcanhares.
M e s t r e : Andae I parae, dae trez voltas,
Hi depressa, hide de passo,
Haveis de andar a compasso. (Faz D. Gil tudo
quanto o Mestre lhe manda.)
G il : Melhor he lançar-me soltas.
M e s t r e : Podeis entrar n’um saráo,
Segundo o bem que aprendeis.
G il : Pois, Mestre, que mais sabeis ?
M e s t r e : Uma Alta, um Pé de chibáo,
Galharda, Pavana rica,
E n’estas novas mudanças.
G il : Tende, que isso não são dansas,
Senão cousas de botica.

, ,,
V jO/ A / Ag rLt lCo Original from
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 395
Sabeis o Çapateado f
O Terollero f o Villão ?
O Mochachim ?
Senhor, não.
G il : Pois sois Mestre mui mingnado. (1)
" A Galharda era uma dansa franceza, e a Pavana
f (ou paduana) ainda persiste na locoção popular : tocar
a pavana, isto ó infligir um castigo corporal. A Ga­
lharda era uma especie de Tordião, menos accelerado
e caprichoso ; o Bibliophilo Jacob descreve-a : «A ver­
dadeira dansa franceza, que era uma baixa dansa de­
signada sob o nome de Gaillarde, regulava-se ao som
do hautbois e do tamboril, que lhe marcavam a caden­
cia; dansava-se na sua origem — com uma grande
discrição. Esta dansa, que Jean Tabourot descreveu,
começava pela cortezia (mesura) que faziam um ao
outro os dois dansadores, que iam depois e por sua
vez um para o outro dansando=e assim continua­
vam estas idas e vindas, o dito dansador fazia pas­
sagens novas, mostrando tudo quanto sabia fazer, até
que os tocadores acabassem de tocar ; então elle fazia
a cortezia, e tomando a donzella pela mão, e agrade­
cendo-lhe a levava para o logar d’onde a tinha tira­
do.—» (2) A Galharda conservou-se com o nome de
Menuete.
A Alta, a que allude D. Francisco Manoel, era a
dansa allemã, generalisada em França com o nome
de Hayes; as dansas vertiginosas, e irregulares cha­
mavam-se var haut, comprehendendo todos os gene-
ros dos Tordiões. Na linguagem popular ainda se chama
Estúrdia, ás brincadeiras mimicas e sapateados. Do
Villão diz Francisco Rodrigues Lobo :
Mandei toar o Villão,
Pasmaram todos então
(1) Obras Métricas, 1. 1>, p. 242 e 243.
(2) Moeurs, Usages et Costumes au Moyen-Age, p. 266.

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396 LIYRO I, CAPITULO V
De me vôr,
Que não se ouvia o tanger
Com o som das castanhetas.
Dei tão altas sapateias
Por taes modos,
Que estavam sem sangue todos. (1)
As Xacaras eram tambem dansadas, ás quaes chama
Cervantes Danzas habladas ; D. Francisco Manoel de
Mello, allude ás Xacaras em maneira de dialogo.
Á Sarabandasé conhecida emHespanha desde 1586,
implantada na península dascolonias americanas; a sna
popularidade fez personifical-a pelo seu caracter des­
envolto e lascivo em uma mulher, assumpto de ama
satyra celebre La vida y muerte de la
jer de Anton Pintado, de 1603. Nas colonias portu-
guezas da America eram populares as musicas da
Sarabanda, e este nome é ainda hoje usado em Por­
tugal como synonimo de descompostura, increpação
insultuosa.
A Alemana, já eslava em desuso no tempo de Lope
de Vega, que se queixa d’isso ( acto i, c. 5.)
A dansa de Alonso el Bueno, andava ligada a um
romance popular ; o Caballero, a Carretera, as Gam-
betas, o Hermano Bartolo e a Zapateta, acham-se cita­
das no Diabo Coxo. D. Francisco Manoel cita como
popular o Çapateado, e nas dansas insulares, ainda
persistentes, conserva-se o Çapatêa. Esquivei, no sen
citado Discurso caractérisa como Dansas populares
« Jacara,Rastro, Zarabanda y Tarraga son una misma
cosa.» (foi. 30, %)
As dansas populares portuguezas condemnadas pela
Inquisição e pela educação jesuítica, conservaram-se
nas colonias da America ; o Bispo do Gram Pará fala
de uma pratica que fez : «em louvor do canto honesto,
(1) Pastor peregrino, Jom. i, fine.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 397
e ao mesmo tempo invectiva contra o lascivo das Sa­
rabandas (1) e modas do tempo.» (Memórias, p. 210.)
Isto passava-se por 1761. Nas ilhas dos Açores ainda
se conserva o Lundum, citado por Sá de Miranda
desde o seculo xvi, e por Nicolào Tolentino no sé­
culo xvm :
Del ton me acuerdo, y dei cuento,
En busca dei cantar ando.
Ora atinenos al ton,
Amigo, que juro a mi,
Este era el tiempo y sazon,
El logar este era aqui,
Las palabras de london...
(Obras de Sá de Miranda,
p. 192, ed. 1804.)
Nicoláo Tolentino, que ridicnlarisou as modinhas do
seculo xvra, descreve:
Em bandolim marchetado,
Os ligeiros dedos promptos,
Louro peralta adamado,
Foi depois tocar por pontos
O doce Lundum chorado.
» (Obras, p. 250.)
Gil Vicente falia do baile da Sapateta, que é a Sa-
patea insulana moderna:
Estão-me proindo as mãos
Por dar uma çapateta,
Gomo nos bailhos villãos.
(Obr.9 ui, 184.)
(i) Serrão de Castro, escreve na satyra Os Ratos da Inqui­
sição, p. 131:
E tal dom vos heide fazer,
Que baileis a sarabanda.

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308 LIVRO 1, CAPITULO V

As festas reaes eram nm pretéxto para as dansas


figuradas, similhantes um pouco ás das procissões.
Nas festas pelo casamento de D. Maria i com seu
tio o infante D. Pedro em 6 de junho de 1760, appa-
receram varias dansas populares na villa de Nossa
Senhora da Purificação e Santo Amaro da comarca da
Bahia:
Dia 9 (dezembro) — «a primeira dança dos ofíiciaes
da Cutellaria e Carpintaria asseadamente vestidos com
forças mouriscas.»
Dia 10: — «trez contradanças dos alfaiates pelas
ruas ao som de accordes instrumentos.»
Dia 11: — «as danças dos Çapateirose Corrieiros.»
Dia 14: — «a dança dos que apresentaram
os Ourives em forma de embaixada.»
Dia 15: — «huma luzida mcamizada de vinte pare­
lhas, vestidos os cavalleiros á Mourisca.»
Dia 16: — €Reinado dos Congos, que se compunha
de mais de outenta mascaras, com farças ao seu modo
de trajar, riquissimas pelo muito ouro e diamantes
de que se ornavam» etc. Chegando aos Paços do Con­
selho, onde tomaram assento o rei e a rainha lhes
fizeram sala «os Sôbas e mais mascaras da sua guarda,
sahindo depois a dançar as e Quicumbis ao
som dos instrumentos proprios do seu uso e rito. Se­
guiu-se a dança dos Meninos cóm arco e frecha.»
Dia 17:— «huma magnifica Cavalleria de outo pa­
relhas» «bem. ordenada e vistosissima escaramuça.»
Dia 20: — «o espectáculo dos carneiros, que os
mesmos cavalleiros dextramente cortaram, concluindo
tudo com uma vistosa e especial escaramuça.» (1)
No nascimento do Príncipe da Beira, conforme se
descreve na Epanafora festiva, ou relação summaria
(1) Relação dasfaustissimasFestas... porFranciscoCalm
(Da Collecção de folhetos de Barbosa Machado.)

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AUTOMATISMO BA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 399
das festas que na cidade do Rio de Janeiro capital do
Brazil se celebrou... vem as seguintes dansas: (1761)
16 de Maio: — tas danças das Siganas, dos Caja-
dinhos, dos Alfayates, dos Ourives e mais officios.»
17: — «Cavalhadas, como era de estylo, tambem
começaram pela entrada das danças... «principiaram
a correr alcancias,camascabeças; acabaram com
parelhas e outra escaramuça diversa.»
Dia 1 9 :— «Saiu pela cidade o estado dos pardos
seguido de dansas varias na seguinte ordem: a de
um tsóba »m
agico composta de varios animaes; a de
doze Leões com Hercules por guia; a dos
a dos Ambacas, e dos Moleques, cada uma com doze
figuras; a de talheiras, a de negrinhas pequenas, a de
moleques pequeninos de Angola, e do e por fim
o baile do Congo. (Collecção de Barbosa.)
Nas festas que se fizeram na Bahia em 1729 por
occasião dos casamentos dos Príncipes de Portugal,
descriptos no Diario historico das celebridades que na
cidade da Bahia se fizeram, etc., se lê, que no dia 28
de julho, à noite na presença do Vice-Rei houve: «um
alegre divertimento musico de cantigas e modas da terra,
de que he abundante este paiz.» (Da collecc. de Bar­
bosa Machado, na Bibl. do Rio de Janeiro.)
As dansas populares do seculo xvui eram muito
desenvoltas, taes como a Fofa, o Batuque, a Arrepia
e o Fandango. Na Viagem a Portugal do Duque du
Chatelet (Desoteux) se lê : «O povo corria por aqui
e por acolá, cantando e dansando a Fofa, especie de
dansa nacional que se executa aos pares, com acom­
panhamento de uma guitarra ou d’outro qualquer
instrumento: dansa lasciva a tal ponto, que o pudor
córa ao ser testemunha d’ella.» Lê-se no Entremez da
Peregrina, de 1770:
Cantemos antes que vás,
Doas cantigas da Fofa.

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400 LIVRO I, CAPITULO V
Da Fofa não; se tu queres
Cantaremos outra moda.
Da Arrepia falia o padre Pacheco, no Divertimento
erudito; e no Entremez do Barbeiro, de 1769, se lê:
cmeu pae, que sabia mais do que uós, pegava em uma
viola e punha-se a tocar o outavado e o arrepia,
e outros sons d’aquelle tempo; e assim nos entreti-
nhamos até que adormecíamos.» O caracter lascivo
das dansas do seculo xvui deve attribuir-se á influen­
cia africana e brazileira; o lundum e o batuque, só se
conhecem bem seguindo as persistências brazileiras;
lê-se nas Cartas chilenas:
A ligeira mulata em traje de homem,
Dansa o quente lundú e o batuque.
Fingindo a moça que levanta a saia,
E voando nas pontas dos dedinhos,
Préga no machacaz de quem mais gósta
A lasciva embigada, abrindo os braços...
Então o machacaz torcendo o corpo,
Pondo uma mão na testa outra na ilharga,
Ou dando algum estalo com os dedos,
Seguindo das violas o compasso,
Lhe diz: Eu pago, Eu pago I e de repente
Sobre a torpe michela atira o salto...
Oh dansa venturosa, tu entravas
Nas humildes choupanas, aonde as negras
Aonde as vis mulatas apertando
Por baixo do bandulho a larga cinta
Te honravam com marotos e brejeiros,
Batendo sobre o chão o pé descalso.
Agora já consegues ter entrada
Nas casas mais honestas e palacios.
Estas dansas baixas, tem varios nomes no Brazil;
chiba na província do Rio de Janeiro, samba, no norte,
cateréte, em Minas Geraes, Fandango, nas províncias
do sul. O Bahiano é uma dansa formada com o ma-
racatu africano, as dansas selvagens e o fado portu-
guez. O Batuque dansa da província do Ceará, tal

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 401
como é, persiste na ilha de S. Miguel. No fim do seculo
passado, o Fandango era popular nos arredores de
Lisboa, como se vê pela descripção de Richard Twiss:
«Foi em Mafra que tive o prazer de vêr dnnsar o
Fandango. Foi n uma tasca. Foi dansado pelo dono
da tasca com sua mulher, e com o acompanhamento
de uma guitarra. 0 tocador dedilhava varias cordas
juntamente, a trez tempos, e batia com a mão o com­
passo no corpo do instrumento. O fandango que se
dansa aos pares parece-se muito com o que os hol-
landezes chamam plitgge dansen. Apparentemente
estes povos adoptaram esta dansa, bem como outros
usos no tempo em que se achavam debaixo da domi­
nação dos hespanhoes. Os dansantes estão n’um mo­
vimento geral com todo o corpo e todos os membros,
algumas vezes até indecentemente: marcam o com­
passo com o pé e com castanholas. Havendo falta d’este
instrumento, marca-se a cadencia com o estalo dos
dedos. O homem tem o chapéo posto na cabeça, e
dansa com sua dama chegando-se e afastando-se, e
fazendo numerosas reviravoltas e requebros. Dansa-se
o fandango no theatro com muita arte: toda a orches-
tra toca a musica, que é a mesma, quasi por toda a
parte. Depois que o meu estalajadeiro acabou de dan-
sar, correndo-lhes o suór em bica, um outro pár os
substituiu...» (1) O caracter d’esta dansa conserva-se
nos Fados actuaes; esta designação derivada do arabe
huda, apresenta na tradição franceza a forma de canto
e dansa figurada em fatiste.
As dansas populares contemporâneas poucas novi­
dades apresentam; as mais curiosas são as açorianas,
ou Bailhos. O insulano José de Torres descreve-os:
«Os balhos (corrupção de bailes, dansas) complemento
(1) Voyage en Portugal et en Espagne, en 1772 e 1773. Ap.
B. Branco, op. cit., t. u, 266.
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402 LIVRO I, CAPITULO V
de todos os seus festejos, são n’elle uma feição cara­
cterística, um elemento necessário à vida do coração.
— Homens e mulheres emparelhados, n’um circulo,
girando concentricamenle, cada pár fazendo sua mu­
tua frente, todos em pulo, todos raiantes de alegria,
caminhando n’uma e n’outra rotação, cruzando-se,
passando, e obedecendo n’estas evoluções aos descan­
tes singulares, que acompanham o agudissimo som
metálico da viola: que vos parece o balho açoriano?» (1)
Faustino Xavier de Novaes, descreve nas suas Poe­
sias satyricas; as dansas do Minho :
Dansa a chula e o pésinho,
A Canna verde, a chiquita,
Á Constanca e o Josesinho,
Tão insípidas na Invicta
Quanto engraçadas no Minho. (2)
Bem repinicada a chula
Tem p’ra mim maior valia;
Vêr a moça quando pula,
E a rabeca quando chia.
E a saranda na viola,
Isso é trigo sem mastúra :
Mas é moaa a cantarola,
Quem num vae num faz fügura. (3)
Novaes refere-se tambem ás musicas que acompa-
(1) Fastos açorianos. (Panorama, t. xiii. p. 190.) Vimos o
annuncio dos Cantos populares dos Açores, coordenados para
S iano por Eduardo Augusto de Sousa Ribeiro, em que se in-
ica o nome de muitos balhos insulanos; são elles, o Charam-
ba, Sam Miguel, Sam Macario, Tyrana, Chamarrita, o Pésinho,
Eu cá sei, o Meu bem, o Bravo, Os olhos prelos, o Fado dos
Estudantes, Os teus braços, o Sam Gonçalo, a Favorita, Mula-
tinhas, as Solteiras, a Viradinha, Os soluços, o Caracol, As Me­
ninas dyEivas, A Praia, a Infancia, O repete, repete... o Lan-
dum, a Saudade, a Sapateia.
(2) Poesias, p. 6i.
(3) Idem, ib., p. Í90.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 403
nham as dansas do Minho, e esboça o typo do canta­
dor popular :
Ouvir n’um serão tocar
Na rabeca de madeira
Que imita o carro a chiar,
A Canoa, a Ranuüdeira,
A Catma-verde no mar ;
E da garganta de um velho
Que por Cantador robusto
Vem de fóra do concelho,
A voz, que passa com custo
Como o carro pelo quélho. (1)
Instrumentos músicos populares.— k antiguidade de
certos instrumentos músicos do nosso povo estabele­
ce-se pela comparação ; uma grande parte d’elles per­
tence ainda a esse fundo de civilisação ante-árico,
como se infere pela sua existencia simultanea entre
povos afastados que se desconheceram nas epocas
históricas. Assim, ha instrumentos músicos que se
encontram na Finlandia, na Russia, na Irlanda, na
Grecia e em Portugal entre as camadas populares, o
que se não pode explicar senão por provirem d’essa
raça que foi subjugada pelas migrações áricas na sua
entrada na Europa.
A Charcmella, usada pela gente do campo, feita de
canna ou de páo, é a doçaína do tempo de D. João n,
a tibia dos antigos, tal como a descreve Horacio : «del­
gada, de uma só peça, tendo poucos buracos, bastante
para sustentar e acompanhar os córos.» Gutbrie, nas
Dissertações sobre as Antiguidades da Russia diz : «é
este precisamente o uso que d’ella fazem os Russos ;
servem-se da Dudka (charamella) para acompanhar
certas canções plangentes...» (2)
(1) Na Grinalda, t. n, p. 94.
(2) Op. cit., p. 20. Saint-Petersbourg, 1795.
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404 LIVRO I, CAPITULO V
A Flauta dePan, conhecida vulgarmente entre
pelo nome de Gaita de capadoporqu
d’este instrumento primitivo que os castradores se dão
a conhecer pelas aldeias, e tambem nas cidades usado
pelos amoladores de thesouras e navalhas, deve con-
siderar-se como pertencente ás povoações ante-áricas
da Europa; os povos da Grecia conservaram o Syrinx,
e com o nome de Swirelka ainda persistia entre os
Cossacos no fim do seculo passado, como notou Gu-
thrie.
A Gaita de foles, conhecida em toda a península
hispanica pelo nome de Gaita gattega, por se ter tor­
nado o instrumento nacional da Galliza, é usada ainda
em todos os arraiaes de devoção das nossas aldeias;
este instrumento tambem nacional na Irlanda e na
Escossia, não pertence á raça celtica como se pensava,
é anterior, e pela sua persistência na Finlandia e na
Russia, infere-se com certeza que pertence a essa raça
mongoloide representada na Europa pelos Eusk e
Iberos. Guthrie ignorando que as povoações inferiores
da Russia são de raça scythica, diz da Gaita de foles:
«Este instrumento, ( Volynka)postoque u
Russos em algumas províncias do império, pertence
propriamente aos Finlandezes, outra nação antiquís­
sima, e lhe chamam Pilai, e provavelmente não cede
em antiguidade a nenhum dos outros instrumentos de
que falíamos. 0 que deve tornal-o recommendavel aos
Escossezes e Irlandezes, é que elle é incontestavel­
mente o pae da sua gaita querida, cujo aperfeiçoa­
mento foi animado por meio de prêmios.» (1)
A guitarra e a viola são dois instrumentos de cordas
de arame com que o povo acompanha as suas dansas
e cantigas; a quitára arabe parece ter sido conser­
vada entre o povo, mas a existencia da baMaika, ou
(i) Antiquités de Russie,p. 27.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 405

viola de duas cordas, e o Goentre


especie de viola de arco, provenientes das camadas
scythicas dominadas pelos slavos, levam-nos á infe­
rência da origem ibérica d’estes instrumentos penin­
sulares. De facto os arabes receberam a poesia e o
canto do ramo turaniano; Guthrie, fallando d’estes
instrumentos diz: «É tambem o Gondok um instru­
mento da mais alta antiguidade entre os Russos, por­
que se faz menção assim como do Balalaika, em algu­
mas das suas canções antigas em honra das suas
divindades pagans.» (1)
As Campainhas, que apparecem em algumas phi-
larmonicas das aldeias, e que os gregos usavam com
o nome de crotola, são tambem usadas pelos aldeãos
russos com o nome de Loschki: «Este instrumento
com que os aldeãos russos batem o compasso nos seus
córos campestres, é certamente uma modificação da
crotola que os gregos empregavam para acompanhar
a sua musica no modo phrygioou g
phrygio indica a sua proveniência; as povoações phry-
gias eram ante-áricas. Na Edade media da Europa
apparecem outros instrumentos como a rhota ou chrota
britanica, usada pelos jograes, e o psalterio ou arpa
horisontal, que é ainda usado pelas povoações inferio­
res da Russia com o nome de Gousli.
No Cancioneiro portuguez da Yaticana, citam-se
alguns instrumentos músicos dos jograes:
A do muy boo parecer
mandou o aduffe tanger. (Canç. 883.)
Lourenço, poys te quitas de rascar
e desamparas o teu citoton. ■■
rogo-te que nunca digas meu son...
(Ib. 1106.)
(1) Antiq. de Russie, p. 30.
(2) Ibid.,p. 32.

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406 UYRO I, CAPITULO V
Foy a citola temprar
Lopo, que citolasse... (Ib. 971.)
bom citolom mui grande sobraçado
con que el sol muyto mal fazer.
(Ib. 972.),
No Poema de Alfonso Onceno, de Rodrigo Yanes,
vem descriptas as festas por occasião do casamento
da Infanta D. Maria, filha de D. Affonso , com iv
Affonso xi, de Castella; ahi se allude aos diversos
instrumentos músicos:
Estas Dalabras dezian
Donzeílas en sus cantares,
Los estormentos tannian
Por las Huelgas los Jograles.
El laud yvan tanniendo
Estormento fallagueiro;
La viuela tanniendo
El ralbê con el saltério.
La guitarra serranista
Estormento con razon
La enxabeba morisca
Allá en medio canon.
La gayta3 que é sotil
Con que todos plaser han,
Otros estormentos mill
Con la farpa de don Tristan,
Que dá los puntos doblados
Con que falaga el loçano,
E todos los enamorados
En el tiempo dei veràno.
(Est. 406-410.)
Segundo Du Cange o Laude vem do allemão Laute,
de lauten soar, ressoar; Scaligero deriva-o do arabe
allaud; o Arcipreste de Hita refere-se ao arpudo latid}
que equivale á phrase de Yenancio Fortunato «barba-
ros leudos harpa relidebat.» O instrumento é anterior
a estes dois povos. A guitarra serranista era popular,
porque o seu epitheto designa que servia para os

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E THADIÇÃO 407
cantares de serranilha, de que abundam os nossos
Cancioneiros. A gaita era propria dos cantares
d o s ,de que ainda falia Gil Vicente.
A harpa de Don Tristan era o instrumento a que
nò seculo xiv se cantava os lays bretãos ou dos amo­
res de Trisfâo e Yseult, de que ba uma amostra no
Cancioneiro Colocci-Braneuti. Nas Poesias do Arci­
preste de Hita descreve-se tambern um grande nu­
mero de instrumentos : La guitarra latina 1202)
assim designada por ser propria dos cantos de ledino ?
Falia tambem de :
La vihuela d’arco fas dulces bayladas.
A viola de a r c o ,nome que no seculo x
dava á rabeca, foi adoptada em Portugal no começo
do seculo xvi como se sabe pela vida de Sá de Mi­
randa por D. Gonçalo Coutinho. O Arcipreste falia do
instrumento a que se cantavam os Fados, no seculo xiv
ainda com o seu caracter arabe :
La adedura albardana entre ellos se entremette.
(t. 1206.)
No codice de Gayoso lê-se Hadedura, o que nos leva
a consideral-o como o instrumento a que se cantavam
as Hudas arabes, especie de lenga-lenga de tropeiros.
Nas Ordenações affonsinas e manuelinas citam-se tam­
bem alguns instrumentos músicos das dansas de Re­
torta, e das dansas dos Mouros e Judeus quando iam
esperar o rei.
No livro de Philippe de Carverel, Ambassade en
Espagne et en Portugal, en 1582, vem indicações curio­
sas sobre costumes portuguezes. Eis como refere o
gosto do povo pela musica':
«il se delecte bien fort au reste des instrumens mu-
r^ r^ rA o Original from
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408 LIVRO 1, CAPITULO V

sicaux et de la musique, mesme au cliquetis de ne


sçay quels iustrumens de petit pris et au battement
des doigts : etc. Si est-ce que la chose plaist bien au
commun de Lisbonne, ou les femmelettes se trouvent
souvent empeschées à aprendre leurs petits enfants
à danser à la morisque ou à la castillane avec certains
cliquetis des doigts et agitation des jarets remarquée,
par adventure, anciennement par Strabon. Les plus
polis se servent de la guitere:le la
luth, l’espinette, etc.»
«L’on conte, pour montrer que les Portugais sont
très grands amateurs de leurs guiteres, qu’il a été
trouvé ès dépouilles du camp du roy Sebastien, de
Portugal, après la déroute en la quelle il fut deffait par
le Roy de Fez, et de Marroc, environ dix mille guite­
res, chose incroyable, mais à laquelle aucuns don­
nent couleur, parce que les Portugais s’embarquans
jouoient ordinairement ce refrain:
Los Casteillanos mactan los toros ;
Los Portuguezes mactan los moros.» (1)
Os instrumentos músicos acham-se relacionados com
as praticas cultuaes ; da visita ao Rio de Janeiro falla
o padre Fernão Cardim, dizendo : «N’este Collegio tive­
mos o Natal com Presepio muito devoto, que fazia
esquecer os de Portugal. O irmão Rarnabé fez a Lapa
e à noite nos alegrou com seu .» Em uma
satyra anonyma contra Camões se lê : «Ao som de um
birimbáu Luiz cantava.» Na Sé de Lisboa conserva-
ram-se usos singulares, como este : «Logo que o
Patriarcha entrava na egreja, tocavam os timbales e
outros instrumentos chamados menestrins ; diz a rela­
ção d’onde extrahimos esta noticia, que eram mui
(1) Ap. Boletim de Bibliographia port., 1. 1, p. 167.

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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 409

antigos, e a que o vulgo chama vaccas. Os menestrim


eram as charamellas.» (1) Do destino liturgico dos
instrumentos músicos diz Herculano, referindo-se ao
zabumba dos arraiaes das romarias do Minho: «e em
vez do rebombo da procella accumulada sobre as agu­
lhas dos cérros, o estrepito do Zé pio invento
da santimonia dos braccharenses, para afugentar da
Jerusalem minhota os pedreiros livres e o diabo.» (2)
Os ferrinhos (sonajas) são um ,instrumento popular,
característico dos cantos gallezianos, e commum á re­
gião do norte de Portugal; nos romances tradicionaes
citam-se apitos de prata, e o A çanfonha, tão
condemnada pelos moralistas da Edade media é ainda
hoje o instrumento predilecto dos cegos; mas já não
cantam as Canções de Gesta francezas, como ou-
tr’ora. (3)

N o ta . —Para completar este capitulo, tratando da influen­


cia dos velhos nos phenomenos ethnologicos, teríamos de estu­
dar aqui As Adivinhas e os Anexins populares ;
como porém os nossos materiaes accumulados alteram as pro­
porções d’este volume, preferimos o transpôr estes elementos
para o livro terceiro d’esta obra, onde logicamente entram como
manifestações da Sabedoria popular, objecto especial d’esse
livro.
il) Summario de Varia hist., t. iv, 197.
(2) Viagens no Minho. Panorama, t. xu, p. 323.
(3) Léon Gautier, Les Epopées françaises, 1.1, p. 393.

FlM DO VOLUME PRIMEIRO

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INDICE

Pr o b mio iv a viu

INTRODUCÇÃO
Bases da critica ethnoiogica

Às persistências consuetudinarias.— Transição da


anthropologia para a ethnographia: Usos sem
relação com os costumes.—Costumes sem rela­
ção com as opiniões.—As recorrências ou regres­
sões aos costumes atrazados por uma raça supe­
rior : Contacto com raças homogeneas.—Isola­
mento e regressão das raças.—Causas psycho-
logicas : O automatismo orgânico da Imitação e
da Tradição,, nas crianças, nas mulheres e nos
velhos.—As sobrevivencias : — Adaptações das
impressões primitivas. — Transformações dos
mythos em lendas. — Decadencias cultuaes e
superstições populares.—Fundação de uma Psy-
chologia anthropologica, ou Demotica, subordi­
nando em corpo de doutrina a Ethnographia, a
Demographia, a Demopsychologia, a Hierologia,
a Ethologia e a Nacionalitteratura.— Caracter
de uma Sciencia social descriptiva, segundo as
tres syntheses, activa, affectiva e especulativa,
dirigindo a coordenação do presente livro....... 1 a 37

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412 INDICE

LIVRO I
COSTUMES E VIDA DOMESTICA

CAPITULO I
Persistência dos typos anthropologicos, determinada
pelos costumes populares
Pag.
Como as observações anthropologicas estabelece*
ram o facto da persistência histórica dos typos
das raças.—Feições variadas do portuguez, coin­
cidindo com costumes peculiares de raças primi­
tivas.— Costumes e tradições da epoca ante-his-
torica em Portugal.— As aversões populares ao
typo ruivo.— As hostilidades entre o habitante
da montanha e o ribeirinho.— Caracteres anthro­
pologicos do pé pequeno e nariz aquilino; o or­
gulho nacional e o amor da novidade.— Separa­
ção de duas raças em Portugal, segundo os via­
jantes estrangeiros.— Preponderância do genio
imitativo e pequena capacidade especulativa.—
Suecessão das raças históricas no solo hispânico,
e persistência dos seus caracteres, segundo a lei
physiologica de Müller.— Creação completa de
um typo nacional ou Mosarabe.— Causas da dif-
ferenciação entre Portugal e Hespanha, e da si­
milaridade dos seus costumes 39 a 67
CAPITULO II
Rudimentos da actividade espoutauea
Restos da vida nomada nos costumes da Caça: O
furão.— Pedir com pelle de lobo.— A altenaria
nos romances populares.— Armadilhas aos pas-
saros nos brinquedos infantis.— Caça das cabras
montezas no Suajo.— Festas religiosas: Monta­
ria do Porco Preto, e a Mesnie furieuse. Correr
o Montujo, na Vieira.— Costumes da Pésca: Ba­
teis conduzidos por mulheres.— Rédes de arras-

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IN D IC E 413
Pag.
tar ou acéderes.— O lanço da Cruz.—Organisa-
Íião das companhas.— O pilado e o moliço.— As
inhas de pescar.— Os bois empregados na pés-
ca. Fórmas tradicionaes das rêdes.— Os marro-
teiros e a industria do sal.— Perder a tramon­
tana.— Uso da fava do mar nos Açores.— As
fórmas naturaes da Guerra defensiva: Os chu­
ços, as guerrilhas e almenáras.— O malato ou
cliente.— Costumes dos chefes militares na aris­
tocracia.— O bafordo.— Os duellos.— Introduc-
ção do arcabuz.— O sino da revolta na lucta dos
concelhos. — As persistências guerreiras nas
Hostilidades nacionaes, locaes e individuaes: Sen­
tido pejorativo de certos nomes de povos.— As
injurias das terras umas contra as outras.— Os
apodos de classe e os chascos aos nomes indi-
viduaes................................................................. 68 a 108
CAPITULO Hl
As industrias locaes e tradicionaes
As fórmas primitivas da aggregação local expres­
sas pelo Fogo e Logo.— A Casa: Persistência
das casas de côlmo : a Berga, Cardenha, a Pa­
lhoça ou Cabana.—As Verandas.— O uso do Sino
corrido.— As Comidas: Uso das glandes de car­
valho. — As castanhas ou bilhós. Milho cosido,
Michas ou Mondas.—Os moinhos de mão ou Cam­
bas. — O alho. — O vinho doce.— A vicera ou
antiga cerveja.— Os Bodos.— As refeições do
dia.— A actividade agricola e pastoral: Epocas
v do anno tiradas do trabalho dos campos.— As
fórmas da constituição da propriedade segundo
as differenciações ethnicas.— Os moços da la­
voura.— Costumes romanos e arabes na agricul­
tura portugueza.— As queimadas no Alemtejo.
— As tulhas ou Matmorras. — As hortas ou
Onias. — A debulha do trigo. — Os carros. — A
Mesta arabe e a deambulação dos gados.— Ty-
pos da raça dos carneiros portuguezes.—A man­
gra. Introducção do milho.— O costume de dei­
tar as milhãs, e de cavalgar o cambão.— A cul­
tura da vinha no século xiv: Costumes das cavas.

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414 INDICE
—0 vinho da Madeira. Relações da Agricultura
com a Industria.— As industrias loeaes e domes­
ticas : A exploração das minas.— O trabalho da
Ourivesaria e da Serralharia.—Leis sumptuá­
rias.— Estado actual das industrias locaes.—
Differenças do trabalho no norte e sul de Portu-
cal.— Os Azulejos e a Ceramica.— Tecidos, bor­
dados, rendas.— As lãs portuguezas.— As Fei­
ras, sua origem religiosa.— Meia moral do tra-
balho entre o povo 100 a 176
CAPITULO IV
Estados sociaes representados nos costumes
portugueses
Relação entre os ritos funerários, as cerimonias do
casamento e as fôrmas symbolicas do direito,
derivada da constituição primitiva da Familia.—
Dos ritos funerários em Portugal: Actos por oc-
casião do fallecimento.—Despenadeiras.— Mon­
tes de pedras.— Poços seccos.— Fôrmas da in­
cineração e da inhumação.— O banquete fune­
rário.— Obradas, Bodivos; Pão, vinho e candôas;
Offertas aos meninos.— A encommendação; Ne-
nias e Dansa funeral.— O pranto e as carpidei­
ras.— Os Clamores e Voceros.— O luto nas suas
fôrmas popular e official.— Tosquiar o cabello.
Fôrmas do culto ou commemoração dos mortos:
— Almas santas.— O ghilde ou banquete sobre
as sepulturas.— Mamôas e Antellas.— A Tripu­
dia hispana.— O toque dos sinos.— Consequên­
cias da falta do culto dos mortos : Almas pena­
das.— Baptismo de cinza.— Semear o morto.—
Requer alma, e ter esprito.— A evocação dos
mortos — Oburborinho e a Procissão dos defun-
ctos. — Das f&rmas populares do Casamento:
Epoca do Familismo, e fôrmas hetairistas da
Promiscuidade e da Gynecocracia.— União tem-
E oraria, Prostituição sagrada, e Virgindade igno-
il.—Polyandria, escolha pela mulher e Celibato.
— Epoca da Tribu patriarchal, ou casamentos
endogamico e exogamico.— Sacrifício á commu-
nidade; Compra de corpo, Dote paternal, Coha-

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ín d ic e 415
Pag.
bitação — 0 Rapto da mulher, o Combate simu­
lado e a Confarreação.— Na epoca Nacional :
Cerimonias no lar do pae, na transição e no lar
do marido. — Comparações com os costumes
gregos e romanos.— Costumes e symbolos jurí­
dicos : As duas fórmas sociaes do estatuto terri­
torial e pessoal.— Os Pelourinhos e a liberdade
municipal.— As Irmandades.— A justiça local e
a do Foro do rei.— Systema tradicional da pe­
nalidade.— As penas infamantes.— Os estados
das pessoas nos costumes populares. — Fórmas
dos contractos..................................................... 177 a 270
CAPITULO V
Automatismo orgânico na Imitação e na Tradição
Da ethnogenia ou elaboração natural dos Costu­
mes : Acção das crianças, das mulheres e dos
velhos: A linguagem emocional—Parlendas e Jo­
gos infantis.— Phenomenos de Philologia gene­
rativa.— Os gestos, como manifestação de um
periodo de mutismo.— As intonações: as inter­
jeições populares e palavras expletivas.— Imita­
ções dos sons naturaes e vozes dos animaes, nas
parlendas infantis. — O genero do Traba-len-
guas em Portugal.— As neumas das cantigas, e
a creação da linguagem de giria.— Os Jogos in­
fantis e populares: sua origem organica, senti­
dos mytnicos e representação de estados so­
ciaes.— Bases da critica comparativa dos jogos
populares communs ao occidente da Europa:—
A Cabra-cega, o Dou-te-lo vivo. Contagem dos
dedos.— Jogos numerativos, de addição e de eli­
minação.— Dansa e elemento dramatico dos jo­
gos populares.— Ojogo da Condessa e da Viuvi­
nha.— Jogos de adivinhação como restos cul-
tuaes.— Ennumeração dos Jogos populares nos
escriptores portuguezes, desde o seculo xiv a
xix.— Modas, trajos e formas cerimoniaes.—Uni­
dade Occidental nos trajos primitivos : o mandil,
o barrete, a cuia e a mantilha.— Persistências de
certos trajos ibéricos no uso actual.— As vestes
populares descriptas por Villas-Boas e Rodrigues
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416 ín d ic e
Lobo — Os trajos do seculo xiii e xiv descriptos
no Cancioneiro portuguez da Vaticana.— Como
os antigos escriptores portuguezes contribuem
para a descripçào dos trajos nacionaes.— As leis
sumptuárias.— Modas francezas em Portugal.—
Titulos e cumprimentos.— As dansas e instru­
mentos músicos: — As dansas são documentos
de diíTerenciação ethnica, como se observa na
Hespanha e França.— Typos das dansas portu-
guezas.— Evolução histórica das dansas, deter­
minada pelas allusões dos escriptores portugue­
zes.- Uma scena do Fidalgo aprendiz, de D.
Fr? sco Manuel de Mello. — Influencia fran-
c .a e hespanhola nas dansas portuguezas : os
"ordiões e as Sarabandas. — Os instrumentos
músicos: suas relações com o elemento cultual.
— Instrumentos músicos populares.— Transição
da vida domestica para a vida publica............. 271 a

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