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C om p rã o .lA rto s, c o l l e c t a s d e s e llò s , m oadas, g r a v u r a s ,
q u T d ro s a o leo , o b je c t a i da av ’.e, etc.
1 1 7 R U A D E S. JOSÉ 11 7i
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0 POVO PORTUGUEZ
NOS SEUS
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D ig itiz e d b y V ^ O O g L c N E W Y O R K P U B L IC L IB R A R Y
DO MESMO AUCTOR :
FONTES TRADICIONAES DA UTTERATURA PORTUGUEZA:
Historia da Poesia popular portugueza. Porto, Typ.
Luzitana, 1867, In-8.°, Jde vin-222 pp i vol.
Cancioneiro popular, colligido da tradição oral. Coim
bra, Imprensa da Universidade, 1867, In-8.®, de
vn-223 pp 1 vol.
Romanceiro geral, colligido da tradição. Coimbra, Im
prensa da Universidade,1867, In-8.®, de vm-216 pp. 1 vol.
Cantos populares do Archipelago açoriano. Porto, Typ.
da Livraria Internacional, 1869, In-8.°, de xvi-478
pp 1 vol.
Cantos populares do Brazil, coll. pelo Dr. Sylvio Ro-
mero,— Introducção e Notas comparativas. Lisboa,
Nova Livraria Internacional, 1883, In-8.°, de x x x ii
a 286, e 240 pp 2 vol.
Floresta de Romances com forma litteraria. Typ. da Li
vraria Internacional, 1868, In-8.®, de liu-217 pp. . 1 vol.
Contos tradicionaes do Povoportuguez, com um Estudo
sobre a Novellistica geral e Notas comparativas.
Porto, Livraria Universal, 1883, In-8.°, de u-232;
e 30-243 pp 2 vol.
Contos populares do Brazil, coll. pelo Dr. Sylvio Ro-
mero, — Estudo preliminar e Notas comparativas.
Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1885, In-8.°, de
xxxvi-235 pp 1 vol.
O Povoportuguez nos seus Costumes, Crenças e Tradi
ções : Livro n. Crenças e Festas publicas. Livro m.
Tradições e Saber popular. (No prelo.)
POR
T H E O P H IL O b r a g a
VOLUME I
COSTUMES E VIDA DOMESTICA
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L IV R A R IA F E R R E IR A — E d it o r a
132— Rua Aurea—134
1885 _
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Harvard College Library
OCT 7 1312
C O IM B R A — IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
rA r> O riginal from
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PR O EM IO
Escrevia Henri Martin, por occasião do Congresso
anthropologico celebrado em Lisboa èm 1880: «Por-
. tugal é exactamente a região da JSuropa onde o eru-
> dito, por muito que se encerre na sua 'sciencia, hade
por força abrir os olhos, e bem abertos sobre tudo
. quanto o rodeia; porque o presente é aqui tão curioso,
e quasi tão differente dos nossos costumes, como o
podiam ser as edades antigas.» Desde 1867 a 1884
S temos emprehendido uma larga investigação sobre a
ethnogenia do Povo portuguez, comprehendendo os
Costumes, as Industrias locaes, Crenças e Supersti
ções, Festas religiosas, Cerimonias funerarias e nu-
pciaes, Symbolos do direito consuetudinario, Jogos
infantis, Adivinhas, Adágios, Colloquios e Dansas dra-
, maticas, Musicas e Canções, Novellas, Prophecias
nacionaes, Cantos heroicos do Romanceiro, Litteratura
de cordel, Dialectologia e Lendas históricas. O pre
sente trabalho vem rematar esta empreza, que tem
sido o pensamento constante a que dedicámos quasi
; que exclusivamente a nossa actividade intellectual.
Sobre este campo ethnologico ex.is.tem trabalhos im
portantes na Europa^ como-*« Pnmmve: and
Costums, de James Farjer, £ .especialmente a obra de
Kolberg, em quatorze.vdurfieiv: O Povo, seus
m e s ,modo de viver, Linguagem, Tradições, Provérbios,
Cerimonias, Esconjuros, Pasm-tmpos,.Cantos, Musica
e Dansa. (Varsóvia, 1857-1880.) Mo viemos a estes
estudos por uma simples imitação, nem por curio
sidades de momento e sem destino; por uma evolu
ção natural do nosso espirito achámo-nos attrahidos
IN T R O D U C Ç Â O
Bases da oritioa ethnologioa
A s persistências consuetudinarias.—Transição da anthropo-
logia para a ethnographia: Usos sem relação com os costu
mes.— Costumes sem relação com as opiniões.— As recor
rências ou regressões aos costumes atrazados por uma raça
superior: Contacto com raças homogeneas.— Isolamento e
regressão das raças.—Causas psychologicas: O automatismo
orgânico da Imitação e da Tradição, nas crianças, nas mu
lheres e nos velhos.— As so b re o ic e n c ia sAdaptações das
impressões primitivas. — Transformações dos mythos em
lendas. — Decadencias cultuaes e superstições populares. —
Fundação de uma Psychologia anthropologica, ou Demotica>
subordinando em corpo de doutrina a Ethnographia, a De-
mographia. a Demopsychologia, a Hierologia, a Ethologia e
a Nacionalitteratura.— Caracter de uma Sciencia social de-
8criptiva, segundo as tres syntheses, activa, affectiva e espe
culativa, dirigindo a coordenação do presente livro.
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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA S
de um inventario esteril, e as comparações ficarão
inintelligiveis. Porque, como observa Koenigswarter:
«todas as vezes que um facto se encontra a immensa
distancia de tempo e de logar, entre povos differen-
tes pelo clima, pela sua religião, sua origem e lin
guagem, este facto liga-se necessariamente ao desen
volvimento social da Humanidade.» (1) É por esta
vista de conjuncto que nos apparece a concordância
humana através das suas phases sociaes, das suas
variações anthropologicas, das suas concepções men-
taes, concordância que não é outra cousa senão um
esforço de convergência para a elevação da especie,
e que encerra a synthese ou o consensus que caracte-
risa uma Civilisação. Por mais elevada que seja a cul
tura de um povo, sempre nos seus costumes, crenças
e tradições se irão encontrar os vestígios de epocas
rudimentares sobre as quaes se foram organisando
as formas superiores da sua existencia; e assim como
nos organismos mais perfeitos os biologistas vão en
contrar certos orgãos sem destino, que não correspon
dem a nenhuma funcção actual, mas que subsistem
como ultima dependencia de uma phase morphologica
que passou, tambem nas sociedades se conservam
manifestações automaticas em antinomia com a situa
ção actual das consciências. Charriére notou esta du
plicidade, cujo conhecimento é de uma importância
pratica para aquelles que exercem qualquer interven
ção politica: «Em qualquer ponto que se tomem as
sociedades, ellas apresentam sempre duas edades dis-
tinctas, a edadenatural,chamada barbara em tod
as historias por contraposição á edade civilisada, e da
qual o caracter tem sido reciprocamente desconhecido.
Ainda que o homem seja tudo por si só, a edade civi-
(i) Étudeshistoriques sur le de la Société,
introd.
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6 INTRODUCÇÂO
lisada tem por fim negar o que tomou a este primeiro
desenvolvimento do seu instincto. Comtudo elle decide
do espirito e da direcção de uma sociedade que recebe
da edadenatural a sua lingua, costumes, instituições
tradicionaes, em uma palavra, a matéria prima ela
borada em uma segunda edade.» (1) É o estudo d’esta
matéria prima que constitue o verdadeiro preliminar
da historia da civilisação, quer no sentido geral ou
sociologico, quer sob o ponto de vista restricto de
uma nacionalidade na creação das suas instituições
políticas, religiosas, estheticas ou economicas. A cri
tica funda-se no conhecimento d’esta relação entre os
elementos da edade natural que receberam forma
reflectida e serviram de expressão consciente ás indi
vidualidades preponderantes. Carey applicoueste prin
cipio á sciencia economica, escrevendo : «O relance
o mais superficial sobre as diversas partes do uni
verso leva-nos a perceber que todos os periodos da
civilisação dos tempos passados podem encontrar-se
no presente, etc. » (2) Pela applicação de uma tal ideia,
os estudos históricos receberam uma luz extraordiná
ria, procurando-se o sentido de certas instituições
incomprehensiveis do passado na relação persistente
com estados sociaes de outras epocas. Fustel de Cou-
langes, explicando as formas da organisação civil e
política de Roma pela recomposição da tribu primitiva
que se desenvolveu em patriciado, exclama : «Feliz
mente, o passado nunca morre completamente para
o homem. O homem pode esquecer-se d’elle, mas
guardal-o-ha sempre em si. Porque, tal qual é em
cada epoca, elle é o resumo e o producto de todas as
epocas anteriores.» (3) Esta dependencia physica e
moral, parecendo destruir-nos o nosso livre arbitrio,
(1) Politique de l’Histoire, 1.1, p. 22.
(2) Principes de la Science sociale, 1.1, pag. xi.
(3) La Cité antique, p. S.
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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 15
chegou ás mesmas conclusões fundamentaes; J. J.
Ampère, percorreu a Grecia moderna procurando
comprehendel-a pelas tradições da cultura hellenica,
e ainda encontrou ali o mesmo fundo popular sobre
que se crearam os my thos, as lendas épicas e os cantos
lyricos e dramaticos. (1) Bibot tambem nota como o
byzantino da epoca do Baixo Império era romano nas
fórmulas, mas organicamente grego: «O byzantino
conservou do grego, além da lingua e das tradições
litterarias, uma subtileza, que sem força para su-
stental-a degenerou em argúcia mesquinha. O gosto
do grego pela linguagem culta e pelas discussões
brilhantes tornou-se o palavrorio byzantino, a subti
leza sophistica dos philosophos na escholastica ôca dos
theologos; e a doblez de Graeculus na diplomacia
pérfida dos imperadores.* Pelo seu lado, Taine tam
bem approxima o germano descripto por Tacito do
allemão, nosso contemporâneo. Escreveu o grande
historiador: «Corpulentos e brancos, fleugmaticos,
com os olhos azues espantados e os cabellos de um
louro ruivo; estomagos vorazes, repletos de carne e
da mistura de raças, das invasões estrangeiras, e dos pro
gressos da civilisação.» W. F. Edwards, Les
logiquesdes Races humaines considérés leurs rapports avec
1’Histoire, p. 37.
«Devemo-nos dispôr a achar nas nações modernas, quasi
por certos vestígios, e em uma porção mais ou menos grande,
os traços que as distinguiam na epoca em que a historia ensina
a connecel-as. Temos visto que a accessão de novos povos
multiplica os typos, não os confunde; o seu numero augmenta
com os que estes povos lhe trazem e com os que elles criam
misturando-se: porém deixam subsistir os antigos, restringin
do-se na razão da extensão que tomam as raças intermediá
rias. Assim os typos primitivos e os de nova formação subsi
stem conjunctamente sem se excluírem nos povos mais on
menos civilisados todas as vezes que cada um constitue uma
grande parte da nação.» ,p. 37).
(Idem
d) Grèce, Rome et DarUe, p. 6i a 65.
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BÀSES DA CRITICA ETHNOLOGICA 47
da vindicta pessoal, e as instituições politicas tornam-se
outra vez palriarchaes na fórma do feudalismo. Quando
a Europa se vê invadida por tribus tartaras, dá-se
subsequentemente essa regressão aos cultos mágicos
das raças amarellas, e reina o contagio de allucina-
ção da demonomania e da feitiçaria. Outras vezes
dá-se o phenomeno contrario, é a raça que decae a
que conserva costumes superiores, como a hierarchia
dos parentescos em povos errantes como os austra
lianos. (1) O isolamento dos povos é uma causa da
sua decadencia ethnica, ou de uma estabilidade que
a equivale. O phenomeno da recorrência ou da regres
são tambem se manifesta individualmente; os velhos,
como diz o dictado, são duas vezes crianças; os velhos
condemnam o presente e idealisam o passado, que
se lhes aviva na memória. A phrase laudator tmporis
acti é uma designação vulgar dos que obedecem in
conscientemente a esta tendencia organica; se a morte
não fosse uma eliminação inevitável, as sociedades
humanas estacionariam pela preponderância dos velhos
com a regressão do seu conservantismo. A mulher
e a criança são um outro factor de regressão ethnica.
Todas as exaltações pietistas vão encontrar na im
pressionabilidade das mulheres a base da sua expan
são. Quando no mundo dominavam a civilisação helle-
nica e a clareza racional do direito romano, foi pelo
fervor das mulheres, as agapetas, que o Occidente
regressou deploravelmente aos cultos orgiasticos da
morte do joven-deus allegorisados no Christianismo.
Nas agitações politicas ella tem servido por vezes de
agente de regressão ao communismo das primitivas
associações christãs. Muitas das modas são regressões
a costumes selvagens, como os ornatos dos anneis e
brincos, as ancas simulando a statopigia dos hoten-
(1) Spencer, Principes de Sociologie, i, p. 143,
2
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18 INTR0DUCÇÃ0
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28 INTRODUCÇÃO
ximação geral da realidade, que assenta esse principio,
descoberto pela intuição genial de Jacob Grimm, de
que nas tradições populares não existe mentira. O
nosso seculo vae comprehendendo com uma surpre-
hendente lucidez a psycbologia da criança e do sel
vagem, e interpreta com um sentimento de verdade
os mais complicados mythos e religiões antigas e as
manifestações da arte rudimentar, ao passo que o que
se observa nos passados metaphysicos é uma severi
dade brutal dos pedagogos para com as crianças, uma
intolerância da parte dos theologos para com as outras
religiões, e um desdem dos rhetoricos para com as
producções estheticas que não são greco-romanas.
A terceira epoca da nossa evolução mental, repre
sentada pela actividade scientificai distingue-se pelo
estabelecimento entre as impressões objectivas e a
elaboração subjectiva de uma relação critica que nos
aproxima da realidade, por onde se verifica a noção
abstracta. A leidostres estadefinida po
dà-nos o methodo para system atisar os factos da Demo-
psychologia, em que se distinguem Lazarus, Waitz e
Gerland.
A Hierologia estuda o grande systema das relações
subjectivas que derivam da noção de causalidade, e
que recebem a forma dos mythos, das praticas cul-
tuaes e da relação entre a vida domestica e a exis
tência publica. O homem faz o Deus á sua imagem,
e o estado social organisa-se segundo a concepção que
o homem faz da divindade. Em uma sociedade rudi
mentar, em que prepondera o regimen da maternidade,
o Deus é um fetiche-feminino, a Terra-Mãe, a Virgem-
Meretrix, que tira de si mesmo os Deuses e todas as
cousas creadas. Em uma sociedade em que prepon
dera o regimen da paternidade, patriarchas, eupatri-
das e patrícios, o deus é masculino, creando tudo pela
sua mão, que se representa como um symbolo phal-
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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 33
ratnra. Existem fórmas geraes a todos os povos, taes
como o lyrismo, a epopêa e o drama, bases univer-
saes das mais variadas e remotas litteraturas. A ela
boração dos poemas homéricos comprehende-se e
explica-se hoje pelo estudo dos cantos populares, como
o presentiu Wolf, e Lang vae determinar elementos
populares que ainda subsistem na tradição e que são o
nucleo primitivo de episodios homéricos. 06 poemas
indianos apresentam as mesmas phases de elabora
ção, como nota Emilio Burnouf, comparando os Aédos
da Grecia com os Sutas da índia, celebrando á meza
dos príncipes nos banquetes as suas façanhas. Os
cantos lyricos fixam-se, tomando por lypo as fórmas
populares dos cantos das vindimas, dos noivados e
das tristezas funeraes, os Linos, Iálmos, o Paean, os
Hymeneos e os Threnos. Embora se não observe esta
continuidade e successão organica em todas as litte
raturas, por effeito da influencia de outras mais adian
tadas, comtudo existem os elementos mesmo nos
povos que mais têm esquecido as suas tradições. A
creação do genero dramatico é a que mais se apro
xima das suas fontes populares; na Grecia o drama
sáe da fórma syncretica do primeiramente
destacando-se o bailado, depois a musica, conservando
apenas as neumas, mais tarde destacando-se uma
voz, e por fim estabelecendo-se o dialogo. Diz Stuart
Mill: os interesses separam e os sentimentos unifi
cam; é nos productos da Nacionalitteratura que se
observam profundas similaridades de themas tradicio-
naes e de fórmas strophicas entre os povos ainda os
mais separados. Os modernos estudos da Novellistica,
iniciados por Grimm, Schmidt, Benfey e Khoeller, têm
determinado a existencia dos mesmos assumptos tra-
dicionaes desde as raças nómadas da alta Asia até ao
extremo occidente europeu; Nigra, Wolf e Du Puy-
maigre têm determinado um grande numero de tradi-
3
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34 INTRODUCÇÃO
ções epicas, communsáGrecia moderna, Italia, França,
Hespanha e Portugal; Paul Meyer, Liebrecht e Main-
zer notam egual similaridade na forma lyrica das bai
ladas, pastorellas e serranilbas da epoca provençal.
É assim que a Nacionalitteratura nos conduz á unidade
de um fundo ethnico, commum na civilisação Occiden
tal. Torna-se aqui applicavel o principio de Tylor, da
necessidade de um relance sobre as divisões da es-
pecie humana. A occupação das Gallias pelas raças
descriptas por Cesar, Pomponio Mela e Ammiano Mar-
cellino, a occupação das libas britannicas pelas raças
descriptas por Tacito, e as da Península hispanica
descriptas por Strabão e Stephano de Byzancio, redu
zem-se a tres typos similhantes entre si, o que nos
explica a conformidade de certas fórmas da civilisa
ção entre os povos do occidente. O mais antigo de
todos é o representado pelo elemento aquitanico ou
ibérico, depois o proto-celtico, ligurico ou mesmo pe-
lasgico, e por ultimo os emigrantes aryanos, que só
deixaram intacto «o triângulo comprehendido entre os
Pyreneos, o Garonna e o golfo da Gasconha.» (1)
Este facto é que nos explica a narrativa de Strabão,
pela qual os Aquitanos formaram pela sua lingua e
caracteres physicos um grupo completamente á parte
dos outros povos da Gallia, e muito mais proximo do
Ibero do que do Gaulez; (2) explica-nos porque fórma
«a civilisação italica penetrou emLyon, Autun, Tolosa,
Bordeos, em quasi toda a antiga Lyoneza; (3) como
os Ligurios se estenderam pelas GalUas, Hespanha,
Italia e libas britannicas, confundidos pelos antigos
com os Iberos. (4) Este rapido prospecto anthropolo-
gico estabelece um meio de coordenação para as mani-
(1) Broca, Mém. d’A1rUhoplgie .1, p. 395.
(2) Ibidem,1 .1, p. 405.
(3) Belloguet, Èthnogénie gaulot iu, p
(4) Ibidem, t. ui, p. 33 e 45.
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BASES DA CRITICA ETHNOLOGICA 37
nisando a sua synthese activa pela democracia. A soli
dariedade humana, despertada pela necessidade do
concurso, só podia generalisar-se pelo sentimento que
relacionou a vida domestica com a vida publica; essa
relacionação fez-se pelas crenças. Diz Comte: «A vida
publica não podia realmente desenvolver-se senão sob
o theologismo.» (1) Além d’isso o sentimento torna-se o
primeiro estimulo das reflexões moraes: «o impulso
de uma paixão qualquer é mesmo indispensável á nossa
intelligencia para determinar e sustentar quasi todos
os seus esforços.» (2) Toda a poesia popular, ligada
aos actos da sua existencia domestica e civil, é a ex
pressão d’esta synthese affectiva, que conduz as col-
lectividades humanas a esse fundo de bom senso ou
sabedoria contido nos seus provérbios e observações
moraes. Comte caracterisa com segurança esta base
de razão em que assentam as instituições humanas:
«Máo grado as pretensões doutoraes de uma orgulhosa
philosophia, as nossas principaes instituições são sem
pre essencialmente devidas á razão commum, guiada
pelas ingénuas crenças, que só podem dissipar o nosso
torpor inicial.» (3) Taes são os princípios que nos diri
giram na formação da nossa ethnogenia portugueza,
definindo-nos a área dentro da qual podemos exercer
o methodo comparativo na interpretação de cada facto
isolado, e no modo do seu agrupamento systematico,
pelo qual se conheça a evolução da existencia com
plexa de um povo.
(1) Systême de Politique positive, t. n, p. 86.
(2) Ibidem1., 1, p. 17.
(3) Ibidem, t n, p. 93.
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LIYRO I
COSTUMES E VIDA DOMESTICA
CAPITULO I
Persistência dos typos anthropologicos, determinada
pelos costumes populares
\
Como as observações anthropologicas estabeleceram o facto da
persistência histórica dos tyoos das raças. — Feições varia
das do portuguez, coincidindo com costumes peculiares de
raças primitivas.—Costumes e tradições da epoca ante-his-
torica em Portugal.— As aversões populares ao typo ruivo,
— As hostilidades entre o habitante da montanha e o ribei
rinho.— Caracteres anthropologicos do pé pequeno e nariz
aquilino; o orgulho nacional e o amor da novidade.—Sepa
ração de duas raças em Portugal, segundo os viajantes estran
geiros.— Preponderância do genio imitativo e pequena capa
cidade especulativa.—Successão das raças históricas no solo
hispânico, e persistência dos seus caracteres, segundo a lei
physiologica de Müller.—Creação completa de um typo na
cional ou Mo8arabe.—Causas da differenciação entre Portu
gal e Hespanha, e da similaridade dos seus costumes.
Quando se observam os traços variadíssimos da
physionomia do povo portuguez, quando nas exposi
ções de retratos das officinas photographicas se con
templa um sem numero de caras, quasi que se podia
escolher uma amostra bem característica de typos
anthropologicos os mais preponderantes e bem accen-
tuados da humanidade. Ha caras com um prognatismo
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40 LIVRO I, CAPITULO I
singular, e com depressões frontaes, que lembram o
homem pre-historico ; outras têm proeminências ma
lares e disposição obliqua das palpebras, que lembram
a raça mongolica ; outras o traço fino e perfeito do
ária, jà com os cabellos pretos e olhos castanhos, já
com os olhos azues e cabellos louros ; uns são enxu
tos de carnes, com o cabello crespo ou curto e negro,
com barba lampilha, lembrando o typo berber; ás
vezes a côr da pelle toma uma cambiante bronzeada
clara do typo fullah ; um tem a estatura alentada dos
homens do norte como o antigo germano, outro a
obesidade do turco, outro a estatura meã do mouro,
outro a côr ruiva dos cabellos e barba como o alano
ou o scytha. Parece-nos uma feira dos différentes povos
da terra, e longo tempo nos foi impossivel explicar
racionalmente a persistência de typos tão variados,
pela influencia de estudos exclusivamente historicos. As
ideias fundamentaes com que em 1829 W. F. Edwards
estabeleceu as relações entre a Historia e a Anthro-
pologia, é que nos puzeram no caminho de compre-
hender o motivo do encontro em um mesmo solo d’esta
multiplicidade de typos. Diz o notável anthropologista :
«Em Historia, quando um povo é conquistado, quando
perde a sua independencia e não fórma já uma na
ção, elle deixou de existir; e n’estas revoluções polí
ticas como nos cataclysmos do antigo mundo, julgar-
se-hia que cada epoca desastrosa fez desapparecer as
raças que tinham subsistido até então. Porém, um
outro ramo de conhecimentos, fundado em nossos dias,
vem rectificar estas falsas impressões.» (1) Edwards
justifica esta afiirmação importante pelos phenomenos
da linguistica, em que pelas línguas actuaes se remonta
ás linguas antigas de que ellas derivam. Não podendo
acompanhar aqui as provas accumuladas pelo natura-
(1) Des caracteres physiologiques des , p. 6.
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PERSISTÊNCIA DOS TTPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 41
lista, consignamos a conclusão admittida geralmente
pelos mais eminentes anthropologistas: «Os princi-
paes caracteres physicos de um povo podem conser
var-se através de uma longa serie de séculos em uma
parte da população, apesar da influencia do clima, da
mistura das raças, das invasões estrangeiras e dos
progressos da civilisação.» (1) Na applicação d’este
principio Edwards é ainda mais explicito: «Devemos
pois esperar o encontrar nas nações modernas algu
mas cambiantes quasi, e em uma proporção maior
ou menor, os traços que as distinguiam na epoca em
que a historia nos ensina a conhecel-as.' Nós temos
visto que, se a accessão de varios povos multiplica os
typos, ella não os confunde, o seu numero augmenta,
não só por aquelles que estes povos trazem, como
pelos que criam fusionando-se; porém elles deixam
subsistir os antigos, restringindo-os comludo na razão
da extensão que tomam as raças intermediárias.» A
multiplicidade dos typos physionomicos portuguezes,
a que acima alludimos, deixa de ser uma miragem da
imaginação, e corresponde na sua manifestação mais
geral ao facto historico do grande numero de raças
que passaram ou se estabeleceram no solo da penín
sula hispanica e que nunca se extinguiram totalmente.
Isto concorda com a ideia de Edwards, que este pheno-
meno da persistência dos typos só pertence á grande
massa ou multidão. Na pequena faixa territorial em
que se fórma o typo portuguez existem vestígios de
todas essas raças, desde o homem da edade de bronze
ou o Ibero até aos typos mais pronunciados dos ra
mos áricos europeus. (2) Deve ser pois a serie da
sua successão o meio de organisar a critica compa-
(1) Descaracteres, etc., p. 37.
(2) Esta successão de raças jã foi por nós tratada sob o ti
tulo de Elementos daNacionalidade portuguesa, na
Estudos livres, onde occupa 150 paginas compactas.
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42 LIYRO I, CAPITULO I
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PERSISTÊNCIA DOS TTPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 43
elemento fullah está indicado como o outro extremo
para recompôr a raça primitiva, que se estabelece
antes dos Árias no occidente. Diz Anselmo de Andrade:
«nos lagos de Tshadd e de Makrya (Africa) nas mar
gens do Zambeze e do Niger e na costa dos Escravos,
é certo haver cabanas lacustres que reproduzem exa
ctamente as pre-historicas da Europa.» (1) Qual esse
povo que atravessa a Africa com os recursos da civi-
lisação lacustre? A palavra Fulah e Fuleh significa
branco, e «em duvida resulta este nome do cruza
mento do elemento proveniente da Asia meridional
com o elemento indigena das ilhas oceanicas, vindo
esta raça mixta a ser a que iniciou no occidente euro
peu as habitações lacustres, e o culto lunar, que per
siste nas superstições populares. Esbocemos agora
alguns contornos dos costumes. Os Esquimáos dão
aos seus barcos o nome de kajak, que entre nós per
siste na fórma de cahique,usam a tatu
palmente as mulheres, da mesma fórma que em Por
tugal as meretrizes ; usam os amuletos, taes como no
nosso povo os signos-saimões, figas, bolsas com obje
ctos ou relíquias de pedra de ára, fitas ; as supersti
ções das almas penadas, de ter alma de um defuncto
em si, a crença na caça mysteriosa por um espirito,
(Inua do inverno) os loucos com caracter sagrado, as
festas de Julen ao mesmo phenomeno solar da festa
de Sam João, são factos ethnicos que sobrevivem no
povo portuguez, como entre os Scandinavos e Ger
manos, e que se acham em uma camada mais remota
de que os Esquimáos são os representantes. (2) Na
linguagem popular, como documento ethnico, subsi
stem ás vezes referencias a estados sociaes extinctos ;
diz um anexim portuguez : Quem quer a bolota é que
(1) As Populações lacustres', p. 37. Lisboa, 1882.
(2) Morillot, Mythologie ét Legendes des Esquimaux, p. 244,
250, 262, 268. (Actes de la Société de t. iv. (1877)
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44 im o i , ) i
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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 4 5
egualmente nas mulheres; são muito mais brancas
do que as do sul.» Rackzynscki tambem notou esta diffe-
renciação em quanto ao gosto artístico e á capaci
dade architectonica nas províncias do norte. Nos ane-
xins populares ainda se conserva a aversão ao typo
ruivo, o qual entre os povos germânicos é conside
rado como um vestigio scythico:
— Barba ruiva Home’ de barba ruiva
De longe a saúda. Uma faz, outra cuida.
— Ruço de má pello,
De má casta
£ má’ cabello.
Esta mesma antipathia de raça se encontra entre
os Egypcios e os Israelitas para com os typos de
cabellos ruivos; árias e semitas detestavam essa raça
inferior que os precedeu na Historia. O conflicto entre
as duas raças tornou-se permanente, accentuando-se
na lucta entre o montanhez e o habitante da planície;
diz Strabão(l): «sempre na verdade viveram em guer
ras ou entre si, ou com os seus vizinhos além do Téjo,
até que os Romanos puzeram fim a este estado de
cousas, fazendo descer os povos da montanha para a
planicie, e reduzindo a maior parte das suas cidades
a simples burgos, fundando ao mesmo tempo algumas
coíonias entre elles. Foram os serranos, como facil
mente se acredita, que iniciaram a desordem; habi
tando um paiz triste e selvagem, possuindo tão só-
mente o necessário, desceram a cubiçar o bem de
seus vizinhos. Estes, por sua parte, tiveram para os
repellir de abandonar os seus proprios trabalhos e
com elles mesmos se puzeram a guerrear em vez de
cultivar a terra; o paiz pela falta de cuidados cessou
(1) Strab., Lib. m, cap. 3, § 5.
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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 47
cadeza dos pés e mãos.» (i) O Fullah é um dos vestí
gios d’essa raça primitiva que atravessou a Africa, o
por isso os seus costumes podem ser comparados com
os dos primeiros povos que entraram na Hespanba.
Na tradição popular portugueza o pequeno é uma
belleza celebrada nas cantigas :
Tendes o pé pequenino
Do tamanho de um vintem :
Mer’cia calçar de prata
Quem tão pequeno pi tem.
Diz Gustave d’Eichthal : «O orgulho nacional é um
dos traços mais característicos dosFullahs.» (2) Citare
mos as observações de estrangeiros, mais impressio
náveis do que os naturaes : «Em patrióticas jactancias
e gabos, nenhuma nação leva a melhor aos portugue-
zes...» (3)Depois deBeckford, Du Chatelet(Desaleux)
não é menos claro : «O povo portuguez é naturalmente
orgulhoso, soberbo e animoso, e detesta em geral
qualquer outro povo.» Suidas attribue este caracter a
todas as nações scythicas, apparecendo constantemente
entre os Celtas ; o elemento celtico que constitue tamr
bem o nosso typo nacional recrudesceu n’este cruza
mento, vindo por isso essa qualidade a preponderar
no portuguez. O orgulho excessivo (Diod., V, 32) parece
ter mais particularmente caracterisado a raça celtica;
Pomponio Mela (ui, 2) chama-lhe gentes superbae, e
Silio ítalico {Pun., xi, 25) tumidissimus Celta, e estas
qualidades preponderam no caracter hespanhol, orgu
lhoso da sua fidalguia, arrotando valentias e com um
exclusivismo patrio. (4)
Este elemento celta prepondera mais para a região
(1) Les FoiUlahs,p. 52.
(2) Op. cit., p. 54.
(3) Beckford, Carta xxiv.
(4) Belloguet, Ethnogénie gauloise, t. iu, p. 19.
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48 LIVRO I, CAPITULO I
do norte de Portugal, e para a orla maritima, do cru
zamento dos Ligurios. Este typo medio acha-se de-
scripto por uns viajantes do fim do seculo x v i: «Os
homens da cidade de Lisboa e de todo o Portugal são
de mediana estatura, mais baixos que altos, magros,
de côr ferrenha, cabellos e barba preta, olhos negrís
simos e mui similhantes no exterior aos gregos.— As
mulheres portuguezas são singulares na formosura e
proporcionadas no corpo; a côr natural dos seus ca
bellos é a preta, mas algumas tingem-no de côr loura;
o seu gesto é delicado, os lineamentos graciosos, os
olhos negros e scintillantes, o que lhes accrescenta a
belleza; e podemos affirmar, com verdade, que em
toda a viagem da Peninsula as mulheres que nos pare
ceram mais formosas foram as de Lisboa.» (1) Gabriel
Pereira, nas suas, Notas de descreve o
typo dos habitantes da aldeia de Palheiros a uma legua
de Ourique, e por elle quasi que se reconstitue o typo
primitivo na sua pureza: «casas rudes e negras sem
reboco nem cal, assentam no schisto do solo, calçada
natural das ruas ou antes dos espaços irregulares
entre as casas.— Nada que denote civilisação, tudo
pobre, mesquinho, primitivo; algumas mulheres fia
vam á roda, outras ajudavam a atar fardos de cortiça.
O aspecto d’aquella gente pareceu-me differir da outra
alemtejana; domina a côr trigueira, o iris preto, o
cabello negro e corredio; corpos delgados, seccos, ner
vosos mas sem recordar o typo arabe; pouca viveza,
gestos sobrios; notei mesmo differença considerável
entre o aspecto d’esta gente e o da de Ourique. Ha
por alli usos com seus laivos de primitivos; ás danças
de bodas concorre a rapaziada de Ourique e arredo
res ; pela beira do caminho vi alguns poços, e em
todos havia caldeiras para tirar agua, caldeiras que
(1) Tron e Lippomani, Viagem em 1580 (Panorama de 1843).
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52 LITRO I, CAPITULO I
ver as industrias locaes ; o genio amoroso, é esse •
calidum gentis com que Florus define o celta, e com
que o portuguez é retratado por Lope de Yega, Cer
vantes, Espinel, Quevedo, Sevigné e outros escripto-
res. Garcia d’Orta define em dois traços o caracter
dos portuguezes como poucoespeculativos, ( 1) e Vieira
insiste sobre a sua passividade : «Somos como crian
ças os portuguezes n’esta parte : admiramo-nos do que
nunca vimos, e estimamos só o que vem de fóra... (2)
Não podemos accumular aqui todos os factos de
persistência e recorrência ethnica, para os não des
locar da classificação em que estão ordenados, mas é
este fundo ibérico e celtico que prepondera através
da successão das raças históricas que occuparam a pe
nínsula e de que receberam apenas fôrmas exteriores
de cultura. Antes de tudo é conveniente esboçar o
encadeamento succeseivo d’essas raças como um pro
specto anthropologico, que nos deve servir de guia
na critica comparativa dos costumes.
A mais antiga das raças históricas que occuparam
a Peninsula pertence ao ramo allophylo do tronco
branco, designação vaga que substitue o nome de
twraniano; esta raça entrou no sul da Europa, vindo
da Asia, tendo estacionado na Africa, onde ainda sub
siste o Berber, cujo cruzamento com o Arabe veiu a
produzir o typo mauresco. Além d’este elemento ibé
rico, chegou à peninsula hispanica um outro ramo
d’esta mesma raça, que se fixou na Gallia, conhecido
pelo nome de Scythas, e que Guilherme Humboldt
distingue do Ibero denominando-o Euske. Esta dedu-
cção ethnologica foi confirmada pela anthropologia,
que determinou as differenças morphologies entre o
basco hespanhol e o basco francez. Tal é a primeira
(1) Colloquios dos Simplices, p. 41. Ed. Varnhagen.
(2) Arte de Furtar, p. 300.
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58 LIVRO I, CAPITULO I
mistura dos nomes godos e arabes no mesmo indiví
duo e familia, signal de um cruzamento incessante.
De facto o cruzamento dava-se entre as populações
dos ligios com as tribus maurescas, produzindo-se
assim esse phenomeno importante da revivescencia
do elemento ibérico, caracterisado pelos arabes e pelos
chronistas ecclesiasticos pelo nome de Mosarabe. É
entre esta numerosíssima classe social, que se dá a
persistência do lyrismo tradicional, (as Serranilhas e
Villanellas)dos cantos épicos, (as ou Roman
ces) dos Symbolos jurídicos, das Superstições e de
crenças que remontam á civilisação accadica, a qual
fôra o primeiro estimulo da cultura dos Arabes. O povo
portuguez representa a antiguidade pela phrase gene-
rica — o tempo dos Mouros, ignorando completamente
o facto histórico da occupação dos Arabes. Os vestí
gios pre-historicos da peninsula são referidos pelo povo
ao elemento mauresco. Diz Gabriel Pereira : «O Dol
men é chamado pelos povos visinhos (da Villa do Re
dondo) a casa da Moira, designação vulgar entre nós
para indicar velhas construcções não portuguezas,
quer sejam arabes, romanas, celticas ou absolutamente
pre-historicas ; por isso que foram os agarenos os
últimos dominadores da peninsula e dominadores de
raça diversa. É facto analogo ao que se passa na Alle-
manha e Scandinavia, onde todos os velhos ediflcios
não nacionaes são attribuidos aos hunnos e aos finni-
cos, tal foi a impressão, que estes povos de outros
costumes, de outra raça e de outro aspecto gravaram
na mente do povo aryano.» (i) Gil Vicente falia da
tradição dos thesouros enterrados do tempo dos Mou
ros, e como nota Gabriel Pereira : «No povo rude per
siste a ideia de procurar thesouros n’estes mysteriosos
monumentos ; creio ser esta a principal causa da des-
(i) Notas archeologicas, p. 26.
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60 LIVRO I, CAPITULO I
onde as lettras, as sciencias e as artes foram cultiva
das com o maior brilhantismo.» (1) Na lingua portu-
gueza ainda sâo de uso corrente palavras arabes que
revelam osyncretismo religioso das duas.civilisações,
a nossa cultura intellectual, a proveniência dos cantos
e danças populares, as fórmas de certas industrias,
não fallando já dos nomes de terras e de indivíduos,
em que a sociedade arabe se manifesta em toda a sua
força e extensão como a base mais fecunda sobre que
se constituiu esta pequena nacionalidade. Combatida
pela organisação intolerante do Catholicismo, a civili-
sação arabe persistiu apesar das constantes condemna-
ções da egreja ; mas as palavras arabes, que signifi
cavam productos serios d’essa grande civilisação, trans-
mittiram-se com um caracter pejorativo, com um sen
tido irrisorio proveniente de uma perversão systematica
que fez com que essas palavras cahissem na giria
inferior. No Cancioneiro provençal portuguez da Bi-
bliotheca do Vaticano ainda se acham as interjeições
arabes M a s h a l l a h ,(Deos o quer) como se
canção de Pero Gonçalves de Porto Carrero :
Poys nom vem de Castella,
nom é viv’, ay meselal
Os prégadores catholicos ainda empregam nas im
precações rhetoricas do púlpito a interjeição Oxalá,
(de Ins-Allah, se aprouver a Allah) que na tendencia
fatalista do povo se exprime tambem pela locução:
Se Deus quizer. Observando os glossários das palavras
arabes conservadas no portuguez e castelhano, nota-se
que preponderam aquellas que exprimiam cousas
technicas ; mas tambem ha outras que exprimem uma
certa communhão moral. Essa communicação senti-
(i) L’Homme et les Sociétés, t. il, p. 63.
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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 61
mental acha-se nos dialectos vulgares, como a Aravia
ou Algarabia,e nos cantos lyricos, ou leilas. Em Gil
Vicente encontram-se preciosas allusões :
Ui ! e elle falia aravia. (Obr. m, 99)
Fallou comigo aravia. ui, 513)
E tambem este vestigio de um canto arabe, citado
anteriormente pelo Arcipreste de Hita entre a serie
dos cantares arabicos do povo :
Este es el Calbi ora bi,
El Calbi sol fa melhorado. (Ib., u, 227)
No Cancioneiro da Vaticana acha-Se uma canção
com o estribilho Lelia, vae lelia, resto por ventura do
genero lyrico das Leilas. Janer, na obra sobre a Con
dition de los Moriscos, falia da terrível ordem que
Filippe ii promulgou em 1566, prohibindo o escrever
e faliar arabe, bem como o usar trajos e cantar can
tigas mouriscas: «y tambien en los de fiesta, no ha-
ciendo zambras, ni leylas, con instrumientos ni can
tares moriscos, aunque no dijesen en ellos cosas con
trarias à la religion cristiana.» Estas prohibições eram
acompanhadas de violências corporaes, mas as cousas
mantinham-se pelo automatismo do costume; d’onde
eram extirpadas pela falsificação catholica ; assim ainda
hoje usamos a locução popular : deixe-se de lerias,
simultanea com : deixe-se de cantigas. Do baile mou
risco da zambra, ficou-nos a palavra de giria azam-
brado, para designar o corpo ou o gesto desengraçado.
No Cancioneiro de Rezende ainda se allude com fre
quência ao «doce bailo da mourisca,d e Gil Vicente
escreve :
E balhando á mourisca,
D’entre gente portuguez. (Obr., ui, 53)
Não praza a Deos co’a viola,
Que assi se tomou mourisca. (Ib., 181)
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62 LIVRO I, CAPITULO I
O intuito da deturpação revela-se nas palavras per
vertidas do seu sentido originário; Medresch, que signi
ficava academia, ficou nas escholas catholicas e no
uso commum significando o priguiçoso, o madraço;
o nome do philosopho arabe do seculo x Alfarabi ficou
designando vulgarmente os livros velhos inúteis e ille-
giveis, os Alfarábios, queimados a montes pelos padres
catholicos. O primeiro surate do Koran, que
se dava como um exercício de eschola, ficou signifi
cando uma cousa material, a fatia de pão, que se dá
á criança. Quando a Egreja não podia desnaturar o
ugo popular, assimilava-o a si, como se nota na san
tificação de Mahomed ou Mafoma, em Sam Mamede,
significando ao mesmo tempo m
aacara horrenda.
Apesar d’isto, as artes technologicas e misteres con
servaram as suas designações originarias, como
tar, alfaiate (em Hespanha sastre, da fórma latina
sator) alvener,calafate, etc.; na agricultura a inven
ção arabe das Noras (noria) com os seus alcatruzes
persiste com toda a vivacidade na cultura hortense;
o divertimento das cartas de jogar conserva a sua
designação arabe de Naipes (Naib) de que falia Gil
Vicente: « Naipesvem de Andaluzia.» O instrumento
musico popular é ainda a guitarra, a quitara arabe,
e os cantos conhecidos pelo nome de Huda, pelo Ar
cipreste de Hita, são ainda os nossos Fados, que usa
dos pelos tropeiros do Brasil coincidem com a descri-
pção feita pelo arabista Caussin de Perceval. A lin
guagem é um campo inesgotável de paleontologia
ethnica, e o primeiro documento social, ao qual o cri
tério da filiação histórica restitue a sua verdadeira
importância.
As invasões normandas e scandinavas na Hespanha
cooperaram tambem para a persistência dos caracte
res primitivos do godo, que acceitou com facilidade as
colonias frankas. Na povoação da nova nacionalidade
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PERSISTÊNCIA DOS TYPOS ANTHROPOLOGICOS, ETC. 63
portugueza essas numerosas colonias frankas tiveram
um direito privilegiado ou franquias, que se estendia
ás colonias gaulezas da França meridional, flamengas,
e outras que ficaram aqui pela passagem dos Cruza
dos. Todos estes elementos deram uma certa revi-
vescencia ethnica, que se revela pela activa elaboração
dos Romanceiros. Ao norte de Portugal, no seculo x
e xi, é que se deram as invasões dos piratas scandi-
navos, que chegaram tambem a fixar-se em pequenas
povoações, deixando vestígios no onomástico local e
no Nobiliário. Sabe-se que o Scandinavo conservou na
sua pureza as tradições germanicas; existem entre
nòs tradições scandinavas como a do bastão runico e
lendas de ferreiros mágicos.
No meio d’este tropel de raças mongoloides, semitas
e áricas, nas suas diversas variedades, é possivel esta
belecer uma coordenação anthropologica, determi
nando os elementos persistentes, já por effeito das
sobrevivencias e das recorrências, segundo este prin
cipio do physiologista Müller: «Uma raça, nascida da
fusão de duas raças, propaga-se pela união do seu
similhante; ao passo que quando ella se une com as
raças que concorreram para produzil-a, ao fim de mui
tas gerações torna ao typo de uma d’estas ultimas.» (1)
Applicando este principio, explicaremos por elle a con
stituição anthropologica dos povos peninsulares, bem
como a differenciação entre Portugal e Hespanfia:
Ligurios, Celtas
g IGregos, xiuiuoiiua,
Romanos, ^Coloniasu iu iu a a nitalicas
a u ta s
■ £ )Germanos : Alanos, Suevos, Vandalos,
Yisigodos
I b e r o -E u s k b ............. , . . .L y b io s , B a s t a d o s , B b r b b r e s , M o u r o s
(Raça mongoloïde) I*•»§ íPhenicios, A rn R a a
Carthaginezes
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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 69
renças ethnicas persistem nas designações emprega
das, no Minho, ao pé de Briteiros, entre da planí
cie e os montanhões, na Beira Alta entre os da serra
e da ribeira; ( 1) mas revelam-se mais profundamente
nas hostilidades locaes e injurias com que as povoa
ções limitrophes se apodam. Indicaremos alguns cos
tumes d’estas tres categorias, conservados ainda na
vida moderna.
ACaça.— Na sua Geographia descreve Strabão a
caçada por meio do furão, e sendo empregada como
um exercício para a guerra: «nos tempos normaes em
pregam-se para os combates varios generos de caça,
principalmente as caçadas com gatos bravos. Este
animal, originário da Lybia, ensina-se expressamente;
depois de estar ençaimado, larga-se no covil da lebre,
se a apanha, arrasta-a para fóra nas garras, ou então
obriga o animal a fugir, a reapparecer fóra do buraco,
e os caçadores que esperam a saida, agarram-na fa
cilmente.» (Liv. in, c. 6.) Este costume persiste em
toda a sua vitalidade, e deu logar á locução sarcastica
tAndar com um furão morto á caça.» A caçada aos
lobos tambem se faz por meio de cães adestrados, como
usavam os Gaulezes: «Assegura-nos Plinio (vm, 61)
que os Gaulezes cruzavam as suas cadellas com lobos,
para obter atravessados, que elles davam por chefes
e guias das suas matilhas, obedecendo-lhes e seguin
do-os os outros cães.» (2) Os cães da serra da Estrella
têm a reputação de serem cruzados com lobos. A
morte de um lobo entendia-se como um serviço á com-
munidade, e por isso aquelle que mata algum, tira-
lhe a pelle para pretexto de receber uma gratificação
pelas aldeias por onde a vae mostrar. Dom Francisco
(1) Leite de Vasconcellos, Estudo ethnographico a respeito
da ornamentação, p. 14.
(2) Belloguet, Ethnogénie gauloise, t. iu, p. 466.
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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 71
Das matilhas dos coelheiros, diz Viterbo: «hoje cha
mam Adua,no Alemtejo e outras partes, uma mati
lha de cães empregada em caçar coelhos, em cujo
exercício reciprocamente se ajudavam.» ( 1 )
Com a generalisação das armas de fogo a caça re
cebeu uma transformação radical nos seus processos,
perdendo-se o uso da caça ao falcão ou altenaria, cuja
origem é remotíssima e se tornara até ao seculo xv
uma distincção da nobreza. Diz Belloguet, da falcoa-
ria entre os povos gaulezes: «Póde-se acreditar com
Reynier, que elles, se não inventaram pelo menos im
portaram na Gallia a arte da falcoaria praticada por
um povo da Thracia no'tempo de Plinio, que falia
d’isso como de uma cousa desconhecida dos Roma
nos. (x, 10.) Não ha menção nem em Gratius, con
temporâneo de Ovidio, nem no tratado de Aniano,
nem no poema de Nemesiano, pelo fim do ni seculo
da nossa éra; ao passo que muitas passagens de Si-
donio Apollinario ( Epistih , 3; iv, 9) provam
nossos avós deviam estar de ha muito tempo familiari-
sados com este genero de caça no meio do seculo v. »(2)
Nos cantos populares portuguezes conserva-se a refe
rencia a este genero de caça, como fórma typica ou
ideal:
A caçar se vae Dom Jorge,
A caçar como solia,
Seus perros leva cansados,
Seu falcao perdido havia. (3)
Em outra versão, substitue-se o costume moderno:
Seus cães leva cansados,
Sua forôa perdida.
Nos cantos populares são frequentes as allusões aos
MJ Elucid.^ vb.° A d u a .
(2) Ethnogénie gauloise, t. ih, p. 468.
(3) Cantos populares do Archipelago açoriano, n.°* 1 e 3; e 20.
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72 LIVRO I, CAPITULO II
costumes da caça; no romance da Moreninha, diz a
mulher ao marido que se levante cedo,
Que o melhor coelhinho
E o que sae de madrugada, (i)
No Nobiliário cita-se a lenda da Dama pé de Ca
bra, onde vem descripto o costume da caça ao porco
montez, com que se sustentavam os fidalgos da epoca
neo-gothica.
Na farça do Clérigo da Beira descreve Gil Vicente a
monomania da caça, tal como a que ainda se observa
em alguns parochos ruraes. Diz o filho do clérigo :
F r a n c is c o : Sabeis pae, que esqueceu lá
A furôa?
C l é r ig o : Vae por ella.
F r a n c is c o : De hüa legua hei d’ir trazel-a ?
Melhor viva eu, que lá vá.
C l é r ig o : Pesar da ida e da vinda
Vae, torna pela furôa.
F r a n c is c o : Yá lá quem tiver corôa,
Que eu não na tenho ainda.
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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 73
F r a n c is c o : Domine Deus noster
Nos dô com que os manter,
E coelhos que levemos.
C l é r ig o : Oremos.
F r a n c is c o : , Bem faremos.
C l é r ig o :Venham-me os cães,
As rêdes e o furão,
Mas o coelheiro não...
Depois cTesta scena o clérigo falia ao cães com os
gritos apropriados, fazendo um rythmo com os la
tidos :
Anda Tejo á Fragueira.
CÃo: Ham, ham.
C l é r ig o : Guard’o cabrão.
CÃo : Ham, ham.
C l é r ig o : Ora, cadella.
Ca d e l l a : Hão, háo.
C l é r ig o : Eil-ovae pela portella.
Em outras passagens d’esta farça Gil Vicente allude
a uma outra fórma de caça, ainda adoptada pelos
rapazes: «é um viscoj — que caça toda a manada.»
Conserva-se esta fórma de caça no Minho, por meio
de Armdos com visco, descripta pelo sr. Leite de
Vasconcellos, nas Tradições populares de Portugal,
(p. 192,) onde cita as differentes armadilhas empre
gadas pelos rapazes para apanharem os passaros, taes
como o Alçapão, os Caniços ou Naças, a que nos Aço
res se dá o nome de Cestilhas; o Caixão, para os
pombos, o Castellão, para as sombrias, a Rède, o Laço,
as Costellas, (1) Abuizes e Inxozes: «Para apanhar
(1) D. Francisco Manuel de Mello descreve este uso no sé
culo x v i i : «cahiu na costella. O diabo péga como visgo; não lhe
escapa nada pela malha.» Feira de Anexins, p. 156. E no Can
cioneiro geral (t. i, 184):
Rodeam por não cairem
em costellas.
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74 LIVRO I, CAPITULO II
os passaros usam-se na Sortelha (Beira Baixa) umas
armadilhas (chamadas costellas) de rède, com um pin
cho onde se põem aúdes(formigas de a
os tralhões vêm apanhar os , a armadilha cae
e elles ficam prezos.— Os Abuizes, são uma especie
de armadilha com um laço de cabello e aúdes.* As
sim como a caça serviu para as populações sedentá
rias como um exercicio de guerra, tambem se tornou
um desenvolvimento do ardil. O padre Torquato de
Azevedo descreve a caça das cabras montezes no
Suajo, no fim do seculo xvii: «Matam estes animaes
com tiros de cima das arvores; mas como são muito
fortes, é necessário que o tiro dê em parte vital, por
que de outra sorte ferido vae perder a vida aonde
se não pôde achar: o modo com que vão á caça d e s
tes animaes é armando-lhe sobre as penhas um taboão
com herva fresca em uma ponta, o qual está de tal
sorte equilibrado, que caminhando por ella a cabra
ao pasto da herva, perdendo o equilíbrio se despenha
com ella, a qual na queda arrebenta, e os que arma
ram o taboão, que estão esperando a queda, a vão bus
car m orta: o gosto da carne é semelhante á do veado,
e o couro é mui util para o calçado da gente do
campo.» (1) A caça foi idealisada nas cosmogonias e
mythos primitivos; no Genesis, Nemrod é «o grande
caçador diante de Deus,» e nos mythos indo-euro
a Caçada furiosa refere-se ao pheiiomeno solar da
saida do verão e da entrada do inverno, ou vice-versa.
Com este caracter se allegorisava na Procissão de
Corpus, coqjo se vê pelo Alvará de 1621: «Primeira
mente os hortelãos e moradores da freguezia de
S. lldefonso, com seu Bey, Emperador, Urso, carro
e montaria, e acompanharão o urso pelo menos oito ho-
(1) Memórias resuscitadas da antiga , p.
(1692.)
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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 75
mens com suaslanças eqchuçasuatro de cada cousa.»
Frei Bernardo de Brito descreve o costume da Mon
taria com o Porco prelo, que os habitantes de Braga
faziam na vespera de S. João, sendo prohibido por
D. Affonso Furtado de Mendonça. Ao tratarmos da
festa de S. João seremos mais explícitos sobre este
costume do mytho solar, representado na fôrma da
Caçada, a qual em alguns povos europeus degenera
em uma Cavalgada ou Mesnie furieuse, identificando-se
com as lendas guerreiras do rei Arthur, do rei Klint,
do rei Waldemar, de Barba Roxa e Dom Sebastião.
A fôrma popular d’este costume chama-se Correr o
montujo, e acha-se assim descripto: *Correr (escorra
çar) o montujo, é uma caçada phantastica, que se rea-
lisa na Vieira pela seguinte fôrma: Na quinta feira da
Ascensão, depois do sol posto, o povo, com grande
berraria, tocando buzinas, e dando tiros, começa a
afugentar o montujo. Por montujo entende-se todo o
animal damninho.» (1)
A Pésca.— Esta fôrma primitiva da actividade espon
tânea deu origem á divinisação dos lagos e dos rios,
e nas civilisações insulares ás lendas dos Peixes-Sal-
vadores, como os Oanes do Golfo pérsico, que inicia
ram os progressos industriaes da Chaldéa. Nos contos
populares portuguezes ainda existe o Peixe que dá
fortuna àquelle que o pescar e o tornar a atirar á
agua. O trabalho da pésca conserva-se em Portugal
na sua fôrma rudimentar, e os que a exploram for
mam uma classe profundamente atrazada, imprevi
dente, confinada em uma rotina secular aggravada pela
espoliação do fisco. Muitos dos seus costumes têm
uma importância singular. As mulheres de Avintes
(i) Z. Pedroso, Superstições populares, n.a 702. no Positi
vismo.
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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 79
Além da quota do barco, a parte da Senhora da Lapa
entra sempre na repartição do producto; e o pecúlio
formado com essas quotas constitue o fundo da irman
dade, que attende ao culto da supposta protectora
dos ingênuos pescadores, além de lhes ministrar cer
tos soccorros nas occasiões de crise. A irmandade
da Lapa, segundo o typo vulgar historico, é ao mesmo
tempo um monte-pio; e a organisação social dos pes
cadores da Povoa apresenta-nos ainda de pé um espe-
cimen archaico d’essas corporações de oflicios que
passaram dos costumes da Antiguidade para os da
Edade média...» (1) Esta mesma organisação se acha
na Ilha de S. Miguel, nas irmandades dos pescadores
sob o titulo de S. Pedro Gonçalves, personificação do
fogo meteorico do Santelmo. Tirado o primeiro qui
nhão, que é o do santo patrono: «o producto é ainda
dividido pela companha na proporção do merecimento
dos tripulantes, mestre, pescadores, moços, segundo
a capacidade, mais ainda segundo a edade, e segundo
o numero de rédes que cada um possue. Um tem
uma parte, outro meia, outro um quarto.— O produ-
cto da pésca é porém cerceado, antes da divisão, pelo
fisco, na decima sexta parte; imposto de uma voraci
dade unica entre nós, e tanto mais abusivo quanto a
população vive n’um estado primitivo e isolado, em
que, póde dizer-se, nada pede, nem nada recebe do
Estado.» (2) «O producto liquido da industria é roido
ainda pela usura. Os compradores do peixe, mulhe
res regateiras que por via de regra enriquecem, são
como as harpias do trabalhador. Cerceiam os preços
que lhe pagam pelo peixe com a usura dos emprésti
mos que lhe fazem no invèrno, quando o mar bravio
condemna o pescador á fome. Empenham-se então as
(1) Relatorio, p. 2i.
(2) Ibidem, p. zl.
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82 LIVRO 1, CAPITULO II
que trabalha nas salinas de Aveiro, mas em especial
ao homem que trabalha em bateiras no Mamei junto
do Vouga. (1)
Nas grandes pescarias, emprega-se os galeões, a que
nos Açores (ilhas de baixo) se chamam Barcos de
boca aberta; navegam para o mar alto, em geral ainda
guiados pelas estrellas, de cujo costume proveiu a
antiga locução perder a tramontana. (2) A pésca acha-se
também idealisada na poesia popular, dando logar
(1) Não existe o culto da Deusa Mama, mas ainda se chama
ao campo alagadiço Mamei
(2) Na antiga navegação, anterior ainda ao seculo xir, cha
mava-se tramontana a estrella polar; eomo por ella ainda se
dirigiam os marinheiros, d aqui figuradamente a expressão das
dificuldades em que se achava o que a perdia; eis a lingua
gem de um poema francez do seculo xn em que se authentica
este faeto:
De nostre pere l’apostoile
Yonsisse qu’il semblast l’estoile
Qui ne se meut; mont bien la voient,
Li marinier qui si navoient.
Par cete estoile vont et vienent
Et lor sens et lor voie tienent ;
11 l’appellent la tresmontaigne,
Celle est atachi et certaine :
Toutes les autres se removent,
Et lor leus eschangeat et meuvent,
Mais cele estoile ne se meut.
(Ms. doi/ xn
vj-d« u a u siècle, Ap.
üivviu^ n p « Becquerel,
U vU ijuu i Re-
? xtv*
sumé de l’Hist. de Electricité, p. 58.)
Nas praias açorianas, apparecem sementes de Dolichos urens
e de Mimosa scandens trazidas pela corrente do golpho do Mé
xico, quando recebe as aguas do Mississipi. Estas sementes,
que para os navegadores antigos eram os indicios de uma terra
ao occidente dos Açores, são hoje aproveitadas pelos pesca
dores açorianos para guardarem n’ellas o simonte. Diz o Dr.
Ernesto do Canto: «Nos Açores dá-se-lhe vulgarmente o nome
de Favas do mar; os maritimos servem-se todos d’ellas para
guardarem o tabaco em pó que usam para cheirar.» (Arehivo
dos Açores, t. iv, p. 582.)
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84 LIVRO I, CAPITULO II
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86 LIVRO I, CAPITULO II
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88 LIVRO I, CAPITULO II
r ' r v r v n O r i g i n a l from *
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92 LIVRO I, CAPITULO □
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RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA 93
ram captivos na reconquista christã. Referindo-se ao
tempo dos Mouros, e aos thezouros enterrados que dei
xaram em Portugal, a tradição popular diz do sitio de
Castro e de Santa Maria de UI :
Entre Castro e Castril
Cá deixaram seu ouril. (1)
O nome de Sarraceno apparece-nos na fórma inju
riosa de Sarrasina, o teimoso, impertinente, com o
mesmo sentido empregado na poesia franceza medie
val, nielles sarrasines. (2) A palavra Aravia significou
a linguagem do vulgo, e ainda modernamente desi
gna nas ilhas dos Açores o canto heroico ou romance
cavalheiresco. O nome de GaUego é synonimo de gros
seiro, sórdido, brutal, como se vè nos versos de Gil
Vicente, Sá de Miranda, Antonio Prestes e Camões.
O povo portuguez esqueceu as suas origens communs
com o gallego, e a fidalguia a sua principal prove
niência. No Alemtejo chama-se gallegos a todos os povos
do Ribatejo, como uma réminiscencia vaga da antiga
unidade territorial da Galliza, que se estendia até ao
Tejo. Aldeia GaUega envergonha-se do seu nome, e
chegou a representar ao governo para mudar de de
signação (
«Nas províncias do Minho, Reira Alta e Traz os Mon
tes se chamam gallegas as cousas fracas, pequenas ou
pouco aproveitadas, v. g., gados, linhos, fructas, etc.
Da mesma sorte disseram antigamente gal
lego, o que era de caracter miudo e nada magestoso.
Aquella antipathia das nações limitrophes e que repe
tidas vezes se tem combatido fez que os portuguezes
olhassem com indifferença ou menos affecto para as
il) Panorama,t. vu, p. 344.
(2) Du Méril, Hist. de la Poésie Scandinave, p. 479.
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96 LIVRO I , CAPITULO II
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106 LIVRO I, CAPITULO ÎI
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120 LIVRO I, CAPITULO III
Caballero, na sua obra da População rural, estabelecer
as analogias dos seus primitivos habitantes. Como typo
da primitiva população rural figuram em primeiro logar
Navarra e Rioja com o systema beneficiário das Cose
rias, immensamente vulgarisado em Portugal com o
nome de Casaes e Cabdal, como descreve Santa Rosa
de Viterbo. Depois segue-se Asturias e Galliza, com
os seus complicados foros e subforos, a que em Por
tugal correspondem os emprazamentos na província
do Minho, e em todas estas províncias a população é
devorada pela paixão demandista e pela exploração dos
advogados e escrivães. Para Firmin Caballero, Catalu
nha, Aragão e Raleares constituem um terceiro grupo;
Valência e Murcia, onde prepondera a tradição agrí
cola mauresca, fórma um quarto grupo digno de ser
imitado; a Audaluzia com as suas encortijadas, dis
tingue-se pelo defeito da grande accumulação de pro
priedade ; na Extremadura conserva-se a reminiscência
das Encommiendas, e da hostilidade contra a organi-
sação da Mesta, e é por isso a província mais atra-
zada; Castella e Leão ainda apresentam os estragos
da reacção neo-gothica contra a antiga povoação mus
sulmana. Criticando este livro de Caballero, diz Sancbez
Ruano: «O auctor da Memória, instruído a fundo nos
annaes da nossa historia, recorda mui opportunamente,
para explicar o estado agricola das províncias, as ori
gens de raça de cada uma. No byscainho encontra o
antigo vasco, independente até à ferocidade nos anti
gos tempos; no cantabro indouto, de erguida cerviz,
indócil mesmo para supportar o jugo dourado de Roma;
no astur, o aguerrido e incontrastavel descendente de
Pelayo...; no valencianoyè reminiscências do laborioso
e pittoresco moúro; e no andaluz, tão molle, tão fata
lista, movendo-se em um clima delicioso, de prima
vera sem fim, não é diflicil contemplar os traços cara
cterísticos do arabe indolente e leviano.— Quem não
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124 LIVRO I, CAPITULO III
que existia uma rivalidade entre os que apascentavam
o gado e os que lavravam a terra. ( 1)
Certos costumes populares, como os silos ou
subterrâneos, acham-se simultaneamente entre os ger
manos e arabes. Escreve Tacito, no seu livro De Ger-
mania : «As famílias vivem isoladas. Habitam dispersas
por aqui e além, conforme uma floresta, um campo,
uma fonte as fixou.— É tambem um dos seus costu
mes cavar subterrâneos, que enchem de estrume. Dos
subterrâneos fazem tulhas para as sementes, e ahi se
refugiam dos frios excessivos, bem como das incur
sões do inimigo...» (§ xvi.) Os Arabes tambem tinham
este mesmo costume dos Silos (2) ou Atamorrhas, ou
Matmorras, que se conservou em Portugal ; em um
documento do seculo xiv citado por Viterbo, perten
cente a S. Vicente de Fóra, se lê : «Ha mais a dita
Capella cinco Covas de ter pão, que estão na dita aldea
da Cuba no terreiro, que está diante das portas da
dita casa : e são duas d’ellas grandes, que levarão
ambas vu moios pouco mais ou menos: convem a
saber, huma iv moios, e outra m.» (3) No terreno
de Monte-Fragoso, antigo Ferragial de Cima, achou o
architecto José Valentim masmorras arabes ou covaes
para guardar os cereaes. (4) As duas correntes ger
mânica e arabe fundiram-se na sociedade mosarabe;
muitas designações territoriaes são germanicas, tal
como o Scire, que entre nós se conservou em Xira,
Cira, Xara e Enxara, o matagal, e se repete já sem
sentido na parlenda infantil:
Sarra madira (madeira)
Da ponta da eira...
(1) Rebello da Silva, op. cit., p. 191.
(2) Rossew Saint Hilaire, Hist. d'Espagne, t. m, p. 141. '
(3) Elucidário, vb.° C o v a .
(4) Dr. Guimarães, Sumtmrio de Varia historia, t. i, p. 92.
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126 LIVRO I, CAPITULO III
pção de Almonias ou Almunias. » No Cancioneiro da
Ajmja citam-se as Almenas, e é este o nome das ter
ras planas ou de veiga nos campos da Gollegã, ribei
ras da Torre, Brescos, S. Thiago de Cacem, no se-
culo xv e xvi ; ainda no Alemtejo, como nota Viterbo,
chama-se alcacel (de Alchazar) o campo de herva com
ferra ou cevada. Rebello da Silva, na citada Memoria
diz dos Arabes : «Na disposição e amanho das hortas
e pomares eram insignes, e da enxertia das arvores
de fructo possuiam noções adiantadas... Muitas horta
liças mimosas e raras foram introduzidas por elles,
entre outras as alcaparras e os .» ( 1 ) O sys-
tema da debulha do trigo pela unha do boi na eira,
usado pelos Arabes, persiste ainda na Hespanha (2 )
e na nossa província da Extremadura. Nas eiras em
que se debulha o trigo, nos Açores, emprega-se um
carro puxado a bois, e nas tabuas lascas de pedras
basalticas encravadas para desfazerem a espiga ; na
Beira usa-se um cylindro com dentes de ferro. Sobre
estes processos différentes transcrevemos aqui as pa
lavras de Roulin : «Segundo Wilkinson, a especie de
traîneau que empregam ainda agora os fellahs egy-
pcios para bater o cereal, e que segundo duas pas
sagens da Biblia era conhecido entre os hebreus no
tempo de Isaias, teria sido antigamente armado por
baixo com pontas de silex, pontas hoje substituídas
por laminas de metal fazendo saliência na face infe
rior, e sobre os eixos que giram á medida que a
machina avança. É certo que na Italia, pouco antes
do começo da éra christã, e provavelmente muito
depois havia em certas províncias um apparelho simi-
lhante, chamado iribulum.—Id fit e tabula ,
ut ferro asperata—, como descreve Varrão. O sabio
(1) Memória sobre a População, p. 95.
(2) Saint Hilaire, Hist. d’Espagne, t. ni, p. 141.
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AS iNtoUâTMAS LOCAES E TRAtUClONAES 143
A producção do vinho na ilha da Madeira foi pre
cedida pela do assucar, que d’ali se propagou para o
Brazil, onde se tornou a sua principal riqueza; escreve
Fructuoso: «o infante D. Henrique mandou as canas
de Cecilia para se povoarem na ilha, e de man
dou trazer bacellos de malvasia para se plantarem.» ( 1 )
Depois da decadencia da cultura da cana do assucar
é que os vinhedos tiveram o seu maior desenvolvi
mento, creando-se as seguintes qualidades o sercial,
considerado como superior, o boal e o tinta
afamado e o séco. (2)
As terras tambem se differenciam ou são conheci
das pela especialidade dos seus fructos; de uma Sa-
tyra do seculo x v ii tiramos algumas indicações, pre
ciosas pela tenacidade da sua persistência :
são as pêras que levaes as de Oeiras tão galantes,
Conicaora e carvalhal,as da Lourinhã chainhas,
as de Monte-mór rainhas,
A pêra parda na cama e as de Alcobaça brilhantes. (3)
de vós não está segura;
e em vós fazeis dependura N5 escanam nnr n(i„
da bergamota de fama: ininhls c S T r « ^ P
.aquequeé pigarça
pêra de se chama
estimaçao, ainias garrafais...
gmjas aarrafais
tanto que vos chega a mão,
logo d ella fazeis farça, As laranjas extremadas
e sendo pêra çigarça da China ricas e bellas...
vós a fazeis pera pão.
........................................... A fructa fresca çostaes,
na canastra não se esconde e para desenfastiar
nem minha pêra de conde ides a sêca buscar
nem pêra de Rio frio; e inda d’esta gostaes mais:
A de Alcobaça levaes,
............................ a do Algarve estremada,
as ricas maçãs de Abrantes, a das Pias tão gabada, etc.
(1) Saudades da Terra, p. Ü3.
(2) Dr. Alvaro Rod. d’Azevedo, Ed. Fruct. p. 707.
(3) Ratos da Inquisição, p, 147 a 150.
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150 LIVRO I, CAPITULO III
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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 151
É entre esta dupla corrente da Architectura, ora
absorvendo como subalternas todas as outras artes,
como a esculptura e a pintura na Edade media da
Europa, ora sendo apenas um pretexto para a orna
mentação da esculptura, como na tradição semitica
peninsular, que se deve procurar a razão dos estylos
e da fecundidade da Ourivesaria portugueza.
A Egreja popular da Edade media aristocratisa-se
em Portugal, luctando contra o poder real pelas im-
munidades dos seus bispos, verdadeiros barões feu-
d aes; a classe senhorial serviu-lhe de instrumento,
que ella conservou sempre em uma submissão fana-
tica, perdeu a sua resistência e tornou-se um appa-
rato da monarchia absoluta. É por isso que a Egreja
deu ao culto essa sumptuosidade deslumbrante, em
pregando montes de ouro nas suas Custodias, Cruzes,
Báculos, Lampadarios,Cálices, Relicários, Fronta
Sacras, Thuribulos, Tocheiras, e outros objectos litur-
gicos que excediam a opulência desvairada dos gran
des príncipes. Os Ourives trabalhavam para as Ordens
religiosas e para os reis que as presenteavam, quando
lhes compravam indulgências para os seus crimes. É
uma arte especial, profundamente ligada ao espirito das
classes e ás transformações das grandes epocas sociaes.
No Livro v, tit. 56, das Ordenações Philippinas,
publicado em 1603, encontramos estas curiosas dis
posições : «Mandamos que nenhum Ourives lavre ouro
em obra sua ou alhea, de menos quilate, do que se
lavra na moeda. Mas, as peças que comprarem de
ouro, que forem feitas fora do reino, e que notoria
mente parece que são de obra estrangeira, poderão
vender, postoque não sejam de ouro dos ditos quila
tes que corre. E primeiro que as vendam as mostra
rão aos Juizes do seu Officio, para verem a qualidade
d’ellas. E quando as venderem, será por a lei do ouro
de que as taes peças forem.
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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 15 7
Brazil com os seus capitaes têm modificado tambem
as fórmas da construcção, como se reconhece no Rela
tório do Inquérito industrial de 1881: «O concelho de
Felgueiras, por exemplo, onde a abundancia de capi
taes dos repatriados é tanta... apparece mosqueado
de verdadeiros palacios bordando as estradas.» (1)
Os costumes e fórma do trabalho são primitivos: «O
operário dos arrabaldes (do Porto) vem aos "bandos
á segunda feira de madrugada, carregado com a sacca
onde traz a brôa para toda a semana; vive durante
ella arranchando pelas obras ao caldo; e ao sabbado
regressa a passar o domingo em casa com a familia,
que entretanto cuida da lavoura e da engorda dos
bois. Em parte os operários são tambem lavradores,
pequenos proprietários, e as economias do salario con-
solidam-se na terra. Lêr não sabem, em geral, nem
têm rudimentos sequer das artes do desenho: copiam
com certa habilidade os modelos tradicionaes, e tra
balham sob o commando dos mestres d’obras que ou
dirigem as construcções por conta de seus donos ou
as tomam de «mpreitada. O mestre, formada a sua
turma de carpinteiros ou pedreiros, procura o traba
lho para conservar esses que são e ficam como seus
clientes, e do salario de cada um cobra 40 réis, além
do que mette em conta ao proprietário como jornal dos
apprendizes, a quem nada paga. É um regimen de tra
balho primitivo, em que o operário paga um premio
excessivo a quem lhe angaria trabalho, e no qual a
apprendizagem é brutal, impedindo as crianças de
apprenderem as primeiras letras.» (2) Precisamos mais
uma vez transcrever as próprias palavras do Relató
rio official, para definir o caracter tradicional da in
dustria constructora, e que differencia as duas regiões
(1) Op. cit., p. 26.
(2) Relatorio, p. 27,
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1 58 LIVRO I, CAPITULO III
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AS INDUSTRIAS LOCAES E TRADICIONAES 165
tratados com talento.» Os azulejos em que predomina
a côr amarella são os que se consideram fabricados
sob a influencia italiana. O gosto do reflexo metallico
foi decahindo com a influencia arabe, ou mudjar, con
servando-se até ao seculo x v i i , em que a Pragmatica
real de 1566 prohibiu em Hespanha o trabalhar á mou
risca. (1) Comprehende-se como n’um paiz catholico,
e sob a intolerância da Inquisição se operasse esta
revolução repentina no gosto, e em Portugal se imi
tasse a faiança hollandeza, como na Hespanha se imitava
o estylo italiano. Diz Ceuleneer: «Os melhores azu
lejos, no genero hollandez datam em Portugal do x v ii
e x v i ii séculos. O fundo é branco e o desenho em
camafeo é de um brilho azul ferrete; alguns d’estes
azulejos têm uma côr violeta, como nos corredores
do Convento de Christo de Thomar. A principio estes
azulejos vinham de Delft; até que se começaram a
fabricar em Portugal. — Foram mais longe que os
hollandezes. Não se contentaram com fazer azulejos
ornados de alguns pequenos desenhos, mas quizeram
produzir verdadeiros quadros de faiança.— Estes qua
dros são muito mais raros em Hespanha do que em
Portugal.— Os azulejos em relêvo são sobretudo vul-
garissimos em Portugal; e actualmente ainda em Lis
boa, Porto e outras localidades, as fachadas das casas
são revestidas com estas faianças. O ornato que n’ellas
se encontra mais frequentemente é o cacho de uvas,
e as côres dominantes são o amarello e o verde. Estes
productos são em geral de uma próducção pouco
esmerada, e de um valor artístico relativo; porém
esta polychromia dá ás casas um cunho e apparencia
de alegria...» (2) Vê-se que o periodo de florescência
da ceramica dos Azulejos coincidiu com a influencia
(1) Ceuleneer, Le Portugal, p. 55 e 56.
(2) Ibidem, p. 59.
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186 LIVRO I, CAPITULO IV
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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 187
ao redor da boca hu cercuyto de parede de pedra e
call e que qualquer que escravo fiançasse ou man
dasse llançar em outro cabo salvo no dito poço, pa-
gáse huua certa pnna qual se vos bem pareçese, porem
vos encomendamos e mandamos que lloguo nysto
entendaees e vejaees o llugar que será mais convy-
nyente para o dito poço se fazer e ascentay a pnna
que se pohera e todo o que nyso fizerdes nos escre
vei cumpridamente para o vermos e averdes nosa
resposta. E encomendamovos que llogo nysto enten-
daaes porque ho avemos por cousa de muito noso
serviço. Escripta em allmeyrim a xm de novembro de
1515. Rey. p.a a çidade sobre o poço p.a se llançarem
escravos.» (1) O sitio hoje denominado de Poço dos
negros coincide com o local em que se abandonavam
os cadaveres no tempo de D. Manuel.
A sepultura no mar, era tambem uma antiga tra
dição hindu, usada por necessidade pelos marinheiros,
quando lhe morria alguem a bordo; no Naufragio
da Não S. Paulo relata-se a morte de uma menina :
«encommendou-a o padre, e em uma alcatifa, com um
pelouro aos pés, tornou ao mar, etc.» (2)
O systema da inhumação veiu a prevalecer nas mais
elevadas civilisações, como entre os semitas talvez
pelo seu cruzamento com o elemento negroide, como
entre os Arias vedicos e os Persas, ou coexistindo com
a incineração como entre os Germanos. A locução A
terra lhe seja leve é uma noção moral derivada d’esle
costume generalisado com o christianismo. Os montí
culos funerários são frequentes em varios pontos de
Portugal, restos de uma população ante-historica ; têm
. na linguagem popular o nome de , antellas e
antinhasj não obstante uma grande parte d’elles ter
(1) Archivo da Camara de Lisboa : Provimento de saude,
Liv. i, fl. SI.— Ap. Relat. cit., p. 14.
(2) Hist. tragico-maritima,1 .1. p. 411.—Barros, Décoda
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nas cas.
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O riginal fror
AiisuuaeuBHnui^^ SENTADOS, ETC. 189
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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 199
É cnriosissima a Endexa que então se cantou sobre
a morte do príncipe D. Affonso, achada por M. Gas
ton Paris, em um manuscripto do seculo xvi:
Ay, ay, ay, ay I que ítaertes penas!
Ay, ay, ay, ay t que íuerte mal I
Hablando estava la Reyna,
En su palacio real,
Con la infante de Castilla
Princeza de Portugal, etc. (1)
Seguem-se mais quatro strophes narrativas, sem
pre acompanhadas do estribilho lugubre; Gregorovius,
descrevendo os costumes funerários, diz que as mu
lheres fazem um improviso dythirambico e «O côro
berra a cada estrophe: Deht Deh! Dehh Na Endexa
do príncipe D. Affonso:
Lloran todas las mugeres
Casadas y por casar.
Pelos costumes populares da Córsega, em que as
mulheres é que cantam os Voceros junto do cadaver,
se comprehende o costume das mulheres de Lisboa
cantarem pela paschoa florida sobre a sepultura do
Condestavel, no Convento do Carmo, como se vê pelos
Tersos tradicionaes conservados por Azurara, e publi
cados pelo chronista José Pereira de Sant’Anna. Gre
gorovius, descrevendo estas mesmas ceremonias nos
costumes actuaes da Córsega, diz: «nas montanhas
do interior, sobretudo no Niolo, ellas subsistem na
sua força antiga e pagã, e parecem-se com as dansas
funerarias da Sardenha. A sua rivalidade dramatica
(1) Publicada na Romania, 1.1, p. 373; e depois nos Cantos
populares do Brazil, t. n, p. 170, annotando a versão brazi-
Ieira, n.* 10.
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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 201
um canto á morte de Dom Sebastião, cuja musica se
acha impressa na Miscellanea de Miguel Leitão de
Ándrada. (1) O que se fazia pela etiqueta palaciana,
cra ainda tomado a serio pelo povo das aldeias; d’a-
qui veiu o prohibirem-se os prantos nas Constituições
•dos Bispados, como vèmos em 1621: «Prohibimos,
que nos ditos acompanhamentos e enterramentos, e
nas Igrejas em que os defuntos se enterrarem, se não
•consintam pessoas que vão dando vozes decompostas ou
fazendo extraordinários edesordenados (2)
Estes acompanhamentos aqui referidos, correspondem
ao que nos costumes da Córsega se chama o
escreve Gregorovius: «Das aldeias visinhas chegam
para o enterro os amigos e os parentes. Esta multi
dão reunida chama-se o coou es
rata ; e tambem se diz: Andare alia quando
as mulheres vão juntas á casa do morto.» A palavra
ensarrado usa-se ainda no Minho para significar o
lucto de familia, e no romance de D. as mu
lheres vão alia scirrata:
Ella depois que o viu morto
Logo se poz a chorar:
— Chamem-me padres e frades
Para o vir enterrar,
Eu mando chamar senhoras
P*ra me ajudar a chorar. (3)
Nos cantos populares conservam-se as reminiscên
cias de costumes ás vezes extinctos; ha uns versos
chamados Maravilhas do meu velho, que são uma espe-
cie de parodia dos Voceros ou Clamores e Endexas dos
mortos, com preciosas referencias, como ás despenor
(1) Vide a letra em o nosso Cancioneiro popular.
(2) Constituições do Bispado da Guarda, liv. ui, cap. 13.—
O mesmo nas do Porto.
(3) Ap. L. de Vasconcellos, Tradições, p. 244.
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204 LIVRO I, CAPITULO IV
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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 207
se recompôr o estado psychologico d’onde o homem
se elevou ás concepções philosophicas.
A ideia de que o morto revive em outro mundo,
levou os povos primitivos a enterrarem com o cadaver
não só os instrumentos da sua actividade, como tam
bém os alimentos necessários para manter-se longe
dos seus parentes. João Muller, citando na sua Histo
ria universal o costume chinez de servir á mesa o
rei morto, como fazem tambem os Hiongnu ao seu
Tanso, diz : «Este uso, que se pratica ainda na China,
praticava-se outr’ora em França, onde até ao tempo
de Luiz XIV, eram servidos os reis defunctos durante
quarenta dias depois da sua morte.» (1) Este resto
das noções animistas existe em Portugal no enterro
do rei, o qual para ser levado do palacio espera pela voz
do parente mais proximo, que vem dizer á carruagem:
Vossa magestade póde parti.» 0 banquet
morto, ou a comida enterrada com o morto, passou a
distribuir-se por aquelles que vinham acompanhal-o ;
e depois que estes banquetes funerários decahifam
por alguma fórma entre os povos catholicos, o padre
é que ficou recebendo esses comestíveis a titulo de
Offertorio e de Obradas. É esta a fórma da transfor
mação de um costume tão universal. Os Egypcios usa
vam os banquetes fúnebres por occasião do enterro;
os Gregos offereciam as suas Colybes, que consistiam
em uma distribuição de fructos e legumes. 0 funeral
romano acabava tambem por um banquete, e distri
buía-se carne pelo povo. Entre os Lithuanos bebia-se
hydromel, leite e cerveja junto da fogueira em volta
da qual se dansava ; na Russia este mesmo banquete
subsiste com o nome de trizna. (2) Bastam-nos estas
rapidas indicações para comprebendermos o valor de
il) Op. cit., 1. 1, p. 267.
(2) Abb. Bertrand, Dicáonaire des Religions, vb.* F u né
r a il l e s .
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242 LIVRO I , CAPITULO IV
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216 LIVRO I, CAPITULO IV
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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 237
darem com o páo da cruz, porque, diziam ellas, ao
contacto do páo sagrado, se afastava o demonio, que
n’aque)la hora tentava de novo sujeital-a ao seu domi-
nio... Com effeito, dentro em pouco, nove pancadas,
capazes de produzirem o milagre, lhe eram applica-
das com o páo da cruz, por uma vigorosa pythonissa
(analoga á despenadeira de e passados alguns
minutos a pobre succumbia, ou victima da pancadaria,
ou porque a sua hora tinha soado I Estes casos e que
jandos dão-se por aqui (Viseu) ainda a cada passo.» (1)
O uso geral primitivo foi-se particularisando ás pes
soas que tinham pacto com o diabo, cujos paroxismos
eram demorados. Na ilha de S. Miguel, o que tem
pacto não pode morrer, á espera de que alguem queira
acceitar os seus poderes; no estertor julgam que essa
pessoa diz: — Quem péga, que eu largo t E preciso que
alguem diga: — Péga aquella tranca da portal para
que ella possa morrer. Aqui ainda figura a tranca,
mas não já de um modo tão directo como nos arredo
res de Viseu. Em uma Memória Dos enterros precipi
tados e seus inconvenientes, publicada pelo dr. Assiz,
em 1837, lè-se este facto explicável pela tradição:
«Entre nós, os indivíduos que parece haverem exha-
lado o ultimo suspiro, são logo escandalosamente aban
donados ; e é pratica geral tirarem-lhes o travesseiro,
ainda quando agonisantes, circumstancia que pode
contribuir para augmentar a congestão cerebral, já
determinada para a cabeça.» (2)
(11 Almanach de brançis para 1865, p. 213.
Lem
(2) Annaes da Sociedade Litteraria portuense, n.# 2, p. 57.
(1837). Na obra do dr. Mattos e Moura, vem esta importante
revelação dos costumes de Niza: «quando alguem está por
muito tempo nos transes da agonia sem poder acabar, vão cha
mar certas mulheres mais desembaraçadas e resolutas, ás quaes
chamam despenadeiras, que acabam de a matar e depenar, jul
gando praticarem um acto de grande caridade poupando-lhes
os soffrimentos e agonia.» Op. cit., t. ii, p. 135.
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228 LIVRO I, CAPITULO IV
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232 LIVRO I, CAPITULO IV
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234 LIYBO I , CAPITULO IV
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ESTADOS SOCIAES REPRESENTADOS, ETC. 335
pta no Dicdonario abreviado de As
mães de família d’esta freguezia, quando pretendem
casar as filhas, levam-as a trez especies de romarias
que os habitantes d’aquelles arredores costumam fazer,
e são Conceição, Espirito Santo e Bôdo de Vermoil.
Perto da tarde, mães e filhas, todas vestidas de esta
menha e em corpo, com chapéo de aba larga na
cabeça, apparecem no arraial, e chegando perto dos
rapazes a que já têm deitado o fito, chamam-os para
a venda, onde lhes pagam o vinho, bebendo elles jun
tamente com as filhas: estas indo já preparadas com
dez réis e um guardanapo lavado, compram tremoços
e dizem: Dá a mim, dm a ti. Os maneis todos tafues
com seu calção de tripe e camisa de linho com seus
collarinhos altos, abrem a jaleca e mostram ás namo
radas o bolso furtado, dizendo-lhes: Dou a ti. Elias
tiram os tremoços dos bolsos, e elles do guardanapo.
D’ahi a pouco ouvem-se ás vezes as denunciações de
um casamento que não teve outros princípios senão
esta simples troca de palavras e favores com que reci
procamente se brindaram os dois contrahentes.» (1)
No casamento na freguezia de Bomfim, a mulher offe-
rece ao homem uma pequena moeda, por ventura allu-
siva a um acto praticado em outras povoações, como
este da compra dos tremoços. O celibato da mulher
apparece nos costumes de muitos povos antigos, como
no Mexico e em Roma: entre nós foi aproveitado para
os votos da clausura, e quando uma mulher resolve
ficar solteira ainda se diz: Ficou para vestir imagens.
Entre os Iberos, segundo Strabão, predominava o re
gimen do matriarcado, ou do parentesco pelas m ães:
«Tal é o costume entre os Cantabros de cazarem os
homens dotando as mulheres, sem que ellas levem
cousa alguma. As filhas são ali herdeiras de tudo, de
(i) J. A. d’Almeida, op. cit., t. ni, p. 190.
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LIVRO I, CAPITULO IV
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m LITRO I, CAPITULO IV
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256 LIVRO I, CAPITULO IV
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258 LIVRO I, CAPITULO IV
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260 UVBO I, CAPITULO IT
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270 LTTBO I, CAPITULO IV
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 278
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276 LIVRO I, CAPITULO V
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 277
to s, nas quaes incide a intenção graciosa. «Um homem
estava á meza com sna mulher, e precisou partir um
queijo; a mulher trouxe-lhe uma thezoura em vez de
faca. O homem exprobou-lhe que se não partia queijo
com thezoura, a mulher teimou na sua, e no accésso
de desespero o marido atirou a mulher a um poço.
Quando ella estava na agonia de se afogar, o marido
perguntou-lhe:— Com que se costuma cortar o queijo?
A mulher sem poder fallar ergueu a mão e fez com
os dedos o signal de cortar com uma tezoura.» (Porto.)
A maior parte dos Jogos infantis, tambem são um
desenvolvimento da linguagem gesticulada, imitando
actos. Sobre este ponto escreve Tylor: «O que os
homens civilisados fazem e os seus filhos no berço,
acha o seu analogo no esforço mental do selvagem e
consequentemente das tribus primitivas.» (i) Nos par
lamentos e assembleias actuaes ainda se vota por ges
tos, levantando-se ou sentando-se, erguendo o braço, e
jura-se estendendo o braço com a mão aberta. É evi
dentemente um automatismo natural.
A linguagem das intonações é, como observa Wi-
theney, independente da das palavras; os sons expri
mem intenções, taes como a intimação de pergunta,
de insistência, de invocação, de exortação; ha intima
ções exprobatorias, ameaçatorias, irrisórias; fala-se
em tom pavoroso, lamentoso, pathetico e comico. Nos
jogos infantis conservam-se formas destacadas segundo
as intonações. No Jogo das Visinhas, temos a intona-
ção da pergunta:
—’Nhora visinha ? —Tem lá patinhos?
«Senhora minha. «Mas não são meus.
— Tem lá panella? — Elles que comem ?
«Cahiu-l’o fundo. «Milho miudo.
— Tem uma saia ? —Elles que bebem?
«Falta-lhe o coz. «Agua do rio.
(1) Op. cit., 1.1, p. 211,
E logo acolá
Cá,cará, cál
Porque canto só
Có, coró, cól (1)
Moitas vezes a interjeição é derivada do nome do
animal: Cuchetcuchet serve para chamar o por
por ventura do nome de cochon; Bich-bich e bichano;
serve para chamar o gato, como no hespanhol miz-
miz; em Saxe chama-se ao gato pus-pust no inglez
puss puss I Tylor diz-nos que este nome veio com o
gato do Oriente, como se vé no tamil no afgh
pusha, no persa pushak; Cock diz, que nas ilhas de
Tonga se chama ao gato boosi husi) e as tribos do
noroeste da America chamam-lhe tambem pwsh, pish-
pish. (2) Enfurecem-se os cães com a voz Aça! d’onde
veiu a formação do verbo açular, ou metter os cães
á bulha ; diz Tylor : «Na Suissa parece que se grita
huso! para excitar os cães.a bulharem ; tambem temos
ks ! ks !e na Inglaterra, segundo Tylor, emprega-se
kiss-kiss ! como em França. Para fazer parar as bestas,
diz-se : Ucha ! e Uchta ! no allemão existe a expressão
wist I applicada no mesmo sentido. (3)
As cousas tambem são designadas por expressões
onomatopaicas, como vêmos entre os selvagens : as
crianças chamam ao tambor tam-lam, como os orien-
taes; o tiro de polvora é o Pum! Diz Tylor:
«Quando os selvagens viram as espingardas europêas,
designaram-as com o som pu ! indicando não o effeito
mas o fumo que saia do cano.» (4) O som da trom
beta é imitada na voz tu, tu, tu! Sobre este facto
escreve Tylor: «O som da corneta é imitado nas nur-
serias inglezas, por toot-toot,que serv
(i) Operas portuguezas, 1.1, p. 63.
(2) Tylor, op. cit., 1.1, p.p. 201.
(3) Ibidem> p. 213.
(4) Ibidem, p. 238,
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 283
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284 LIVRO I , CAPITULO V
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386 LIVRO I, CAPITULO V
D'este repique;
Vinho sem pique
É melhor qu’a pom.
Quando antigamente os frades começavam as rezas
do côro, o povo que vivia adormentado por esse latim
mortuário, traduzia os accentos soturnos do canto
chão psalmodeando por esta forma irrisória :— Ervast
ervas t tudo eram ervast Mudando de intonação: — E
alguns feijões também. E augmentando o som grave :
— É verdade t É verdade!
Por esta mesma forma traduz o officio de defun-
ctos, imitando os padres nos enterros :
Se fôres para o céo
Bem irás 1
Se fôres para o purgatorio
De lá sairás;
Se fôres para o inferno
Lá ficarás!
Quer vás, quer não,
O pinto e a vella
Cá para a mão.
E esta outra imitando o latim :
Ingrola, ingrola,
Vae para a cova ;
Seis vinténs e a vella,
E vamos embora, (i)
As vozes dos animaes dão logar a imitações dra-
maticas, a jogos, a parlendas poéticas de alto valor.
Eis a imitação do canto dos sapos, no Minho :
— Oh Lucas !
«Uh.
— Tu vás?
«Eu vou;
E tu?
(i) Ap. Sequeira Ferraz (Actualidade, n.* 207, de 1882,)
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 291
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294 LIVRO I, CAPITULO V
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 303
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 30 9
dos jogadores estende um certo numero de dedos, e
o seu parceiro deve tambem de repente mostrar o
mesmo numero, ou então perde um ponto.» É o jogo
de liagi. Deppis de mostrar a existencia d’este jogo
entre os povos selvagens, Tylor indica-o tambem en
tre os Chinezes, e simultaneamente na antiga Roma,
em França, Italia e Inglaterra: «Este jogo presta-se
a um divertimento sem fim na China, onde é chamado
tsoey moey; e na Europa meridional conhecem-no os
Italianos sob o nome de morra, e os Francezes sob
o de mourre. Um jogo tão particular não podia ser
inventado duas vezes, uma na Europa e outra na
Asia... Os antigos Egypcios, como o provam os seus
baixos relêvos e pinturas, conheciam um jogo analogo
de dedos, e a expressão latina micare digitis alludia
a um jogo a que os magarefes de Roma se entrega
vam com suas praticas, e em que as prendas eram
pedaços de carne.» Tylor descreve este costume nas
nursery inglezas, onde as amas ensinam ás crianças a
contar os dedos, perguntando: Buck I Buch! quantos
cornos mostra ? e tambem como é usado pelos garotos
da rua, que saltam ás cavalleiras de outro que tem
de responder quantos dedos estão para o á r ; e acres
centa : «É curioso notar a ampla diffusão d’estes na
das e a sua longa persistência na historia, quando se
lê esta passagem de Petronio, escripta no reinado de
N ero:'— Trimalcião não parecia sentir esta perda;
abraçou a criança e disse-lhe que se puzesse ás suas
cavalleiras. O rapaz saltou-lhe immediatamente para
cima das costas, e bateu-lhe com a mão nos hombros,
gritando e rindo: Bucca! Buccat quot sunt ?» (1)
Na Suecia chama-se a este jogo Bultal bockhorn. A
esta especie de jogo dos dedos, ou calculo rudimentar
(t) La civilisation primitive,1 . 1, p. 86.
r^ r^ rA o Original from
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312 LIVRO I, CAPITULO V
abstracto da contagem dos dedos ; muitos d’elles são
communs ao Occidente, como o do Vinte e trez :
Um, dois, trez, Una, una, una.
Aqui vae o inglez Una, dos y très,
Pela barra de Viana, Contaban, que contaban
Com uma gata Contaban del rêvés,
Castelhana. Contaban dos amantes
Sápe gato portuguez. Contaban vintitres. (1)
Oh terlim, tim, tim,
Aqui estão os vinte e trez.
Contando as palavras portuguezas somma effecti-
vamente vinte e trez ; n’esta outra parlenda perdeu-se
a noção numérica, analoga à que se repete na Anda
luzia:
Una, una, una,
Una, duna, tena,
Eram dois irmãos
Mataram duas rezes,
Depois d’ellas mortas
Contaram vinte e trez. (2)
Nos jogos da Sicilia colligiu Pitré um analogo ao
portuguez e hespanhol, cuja fórmula é :
Quinnic, quinnici vogghhin fari,
Ca li sacciu ben contari :
Pi lu nomu di vintitri
Unu, dui, tri. (3)
A contagem dos dez é tambem notável pela sua
universalidade :
Una, duna, Una, duna, Una, duna
Tena, catana Tena, catena, Tena, catena,
(1) Marin, Cantos populares espanoles, 1. 1, p. 69.
(2) Jogos e Rimas infantis, p. 26.
(3) Giuochi fanciulleschi, n.° 25.—Bemoni, Sabatini e outros
tambem colligiram jogos numéricos.
Na Sicilia, dizem:
Nesci li coma ch'a mamma veni,
£ fadduma lu cannileri.
Na Toscana:
Chiocciola marinella
Ura fuori le tue coraella,
E se tu non le tirerai
Calei e pugni tu buscherai.
Paul Regnaud, traz esta parienda infantil dô Fran-
che-Comté:
Escergeut, virégeut,
Montre mè tes cônes,
Si tu ne les montres pas
I le dira è ton père et mère
Que te casserân les os. *
Na Àllemanha ha uma analoga parienda infantU.
No Pentamerone (liv. 11, conto y ii ) vem esta parienda
popnlar:
lesce, iesce coma,
Ca mammata te scoraa,
Te scoma *ncoppa Fastreco
Che fa lo fíglio mascolo. (1)
O jogo infantil das 11) Palmas e palminhas acha se
por esta forma na tradição hespanhola:
Las tortitas
Y las tortitas,
Para madre, que son muy bonitas,
Y con azucar
Para madre, que se las manduca;
Y con miei
v Pera que le sepan bien. (2)
(1) Apud Mytholoaie zoologique, t. ir, p. 78.
(2) Folk Lore andaluz, p. 164.— Na Bibl. de las Tradiciones
espanolas, t. n, p. 121, ha uma versão extremenha.
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226 LIYRO I, CAPITULO V
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330 LIVRO I, CAPITULO V
Rodrigues Marin transcreve sobre este jogo a noti
cia do manuscripto de Rodrigo Caro, Dias geniales ó
ludricos (Dial. m, § 1) por onde se vê que jà era usado
na Grecia com o nome de Artiasmos, e em Roma, com
o nome de Par impar. 0 nome de impar na lingua
gem popular portugueza é pemão, forma agglutinada
de par não. Na Italia chama-se A Sívaleri e A Paru e
sparu. (1)
O jogo infantil 25) Adivinha quem te dm, apparece
nos costumes hespanhoes, como se vê pela citação de
Rodrigo Caro, no Dialogo v, § 6 dos Dias geniales, e
na Italia é conhecido pelo nome de Santuccia, (2)
descripto por Gianandrea.
O jogo dos 26) Estalos com folhas de flores já não
tem sentido divinatório; comtudo Theocrito descreve
um pastor arrebentando folhas de papoula em cima
de uma mão para tirar do estalo o presagio de se é
amado. (3) Este jogo é ainda usado na Russia com o
nome de Schalka; Guthrie, diz: «Nas aldeas russas
é usado com o nome de schalka ou khlapouschta.» (4)
0 arrancar folhas de bonina, dizendo Mal-me quer,
Bem ms quer, é um jogo divinatório, ao qual allude
Camões no verso:
Assim como a bonina que cortada
Antes do tempo foi, candida e bella,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capella...
Este mesmo costume, se encontra na Italia, descri
pto por Pitré, e na Hespanha por Marin. (5)
O jogo do 27) Annel pertence aos jogos de adivi-
(1) Pitré, Giuoclii, p. 21 e 27.
(2) Rivista de Lctteratura popolare, p. 142.
(3) J. J. Ampère, Grèce, Rome et Dante, p. 64.
(4) Antiquites de Russie, p. 102.
(5) Op. cit.j t. i, p. 123.
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 331
nhação; consiste em ir uma criança cóm um annel de
palha entre as mãos percorrendo um circulo de crian
ças e simulando deixal-o cahir na mão de um a; de
pois trata-se de perguntar o que se faria a quem tem
o annel, e quaes os castigos que se darão a quem
não acertou, ao que se chama sentenciar. Os antigos
chamavam a este jogo Dirae; entre o povo russo cha
ma-se-lhe o saloto horonite, isto é, esconder o annel.
Guthrie descreve-o: «As raparigas sentam-se em roda
no chão, tendo uma rainha no meio coroada de flores;
anda em roda tendo um annel na mão, que ella finge
deixar cahir na de cada uma das companheiras, mas
occulta-o realmente deixando cahir na da pessoa que
ella escolhe; acompanha esta cerimonia com uma can
tiga, que diz pouco mais ou m enos:— Escondi o
annel; adivinhae, lindas pastorinhas, em que mão está
o annel.— Faz então sair do grupo uma rapariga para
lhe fazer adivinhar quem tem o annel; se não adivi
nha vão-se succedendo as outras. Emfim a que adi
vinha é coroada de flores e substitue-a.» (1) Gianan-
drea descreve tambem este jogo na Marche, onde tem
o nome de Mazza-mem,(2) e H giuocho dell’a
Pitré descreve-o na Sicília com o titulo AlTAneddu, e
tambem se lhe chama A la chiave. (3)
Nas locuções populares do seculo xvi, como se vê
nas comedias de Jorge Ferreira, é corrente a de 28) Ti-
(1) Antiquités de Russie,p. 101.
(2) RivistadeLetteratura, po,p. 224 e 226.
(3) Giuochi fmcMleschi, n.° 40 e 41.—Na Extremadura hes-
panhola chama-se a este jogo La Sortijila, (Rtbl. de las Trad.,
t. ii, p. 176) e na Catalunha denomina-se segundo Maspons y
Labrós L,anell picapadrell,que não é sem relação com a desi
gnação italiana Pitronella. Em França chama-se o Furon,
nome que corresponde ao Huron de Hespanha; na Silesia é o
Rinqelchen eintheilen, na Suissa tèdesca é o SteinH-gd, existindo
tambem na Hungria, Eumania, Grecia e Turquia, como o prova
Pitré, op. cit., p. xli.
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332 LIVRO I, CAPITULO V
rar palha com algum. Refere-se a um jogo ainda hoje
usual, que consiste em pegar n’uma palha, dobral-a
juntando as duas extremidades, e reunindo-lhe outra
palha do tamanho da dobra, mas solta. Apresentam-se
assim estas palhas, e a pessoa que tira a palha solta
perde o jogo, ou fica viuva, e as que ficam juntas pela
palha que se desdobra, abraçam-se ou casam. Guber-
natis falia de um jogo divinatório com a palha no Pie
monte : «a criança que tira a palha mais comprida é
a privilegiada da sorte.» (1) Chama-se a este jogo
AU’ Uschidda. (2) Em alguns jogos perde-se o acto e
fica a locução; n’outros perde-se a fórmula poética e
fica simplesmente o acto. O jogo da 29) con
siste em queimar um papel, e ver qual é a faúla, que
percorrendo-o depois de carbonisado se apaga por
ultimo; essa é que é a Abbadessa. Na Andaluzia ha
tambem este divertimento infantil com a parlenda:
Todas las monjas
Se van acostar,
La madre abadessa
Se queda à resar. (3)
Nos jogos de adivinhação a parte dramatica, que
consiste na variedade das prendas que pagam os que
se enganam, vem a prevalecer, formando um genero
especial; tal é o jogo do 30) Castello de Bimberimbelo
(de Chuchurumel) que consiste em entregar uma chave
de mão em mão, dizendo uma parlenda que cada qual
repete acrescentando-a á maneira dos contos de ac-
cumulação, e paga prenda no caso de engano:
— Aqui está a chave Do castello
Que abre a porta De Bimberimbelo.
(1) Mythologie des Plantes,1.1, p. 39.
(2) Pitré, Giuochi fancitdleschi,p. 79. Tambem
Extremadura hespanhola (Vibl. n, p. 67.)
(3) Marin, Cantos populares espanoles n.° 32, p. 133,1.1.
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340 LIVRO I, CAPITULO V
porque as heide meter freiras
no convento de Jesus;
lá lhe hão de pôr o nome
Donas Prudencias da Cruz.
Voltam as duas para traz muito tristes, dizendo:
Tão contentes que nós fomos,
tão triste que ja tomamos I
Tristes filhas da Condessa,
Já com ellas não casamos.
Dizem de cá outra vez as do grupo:
Volta atraz, oh cavalleiro,
entra por esses portaes,
entra e escolhe a mais formosa
que n’este ranchinho achaes.
Ouvindo isto voltam então contentes, e chegando-se
ao pê d’eUas, cantam:
Quero esta
que me tira o pão da césta,
mais o vinho da borracha.
Melhor que ella não se acha.
Já disse a meu pae
quero esta.
Aquella que se escolheu sae da fieira e junta-se ás
duas; e logo as trez seguem cantando: Senhora con
dessa, senhora abbadessa, etc., repetindo ojogo até tira
rem a fileira toda.» (1)
Na tradição popular da Corunha, acha-se este jogo
em forma de romance:
—De Francia vengo, senora,
de um polido (2) portuguéz,
(1) Novo Almanach de Lembranças, para 4878, p. 366.
(2) Aqui já se acha perdida a noticia histórica do fio das
fiandeiras portuguezas, a que allude ainda em 4605 o auctor
da Picara Justina: «en enredos hilo português» para significar
os elementos delicados de uma intriga. Relatorio da Exposição
industrial de Guimarães, p. 146.
en el camino me ha dicho
que lindas hijas tenéis.
«Si las tengo ó no las tengo,
no las tengo para dar,
con el pan que yo comiere
también ellas comerán.
— Yo me voy muy enojado
á los palacios dei rey,
á contarle á mi senor
lo que vos me respondeis.
«Yuelva, vuelva, caballero
no sea tan descortês,
que de tres hijas que tengo
escoged la que queréis.
— Esta escojo por hermosa,
por esposa y por mujer,
que me parece una rosa
acabada de nacer.
«Téngala uested bien guardada.
— Bien guardada la tendré,
sentadita en silla de oro
bordando panos al rey,
Azotitos con correa
cuando lo haya menester,
mojadita con vinagre
para que le sepan bien. (1)
Na versão madeirense faltam versos iniciaes, mas
conserva-se a forma eliminativa; na versão de Pena-
fiel o jogo perde a sua forma de dansa, para se con
verter em um Auto de fé. Machado y Alvares apro
xima este jogo que se usa na Andaluzia, chamado
nina de los ojos negros, da forma minhota:
«Collocam-se varias meninas em lileira, sentadas
no chão, cada uma tendo entre pernas a anterior, a
quem vira naturalmente as costas; a ultima da fila faz
o papel de Mãe, e as demais em numero indetermi
nado são suas filhas. Assim collocada chega um me-
(I) Biblioteca de las Tradicionespopulares
p. 136.
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342 l i\ r o i, c a p it u l o y
nino, que faz de Embaixador, entre o qual e a Mãe
se trava o dialogo seguinte:
Bmbajador: De Francia vengo, senora,
De un pulido mercador,
Y en eí camino me han dicho
Quántas hijas tiene usted ?
Madre: Tenga las que tuviere
Con ellas me quedaré,
Con el pan que yo comiere
Comeran ellas tambien.
Embajador : A Francia vuelvo enoiado.
Madre : Yuelva, vuelva, caballero.
No sea usted tan descortês;
De Ias hijas que yo tengo
Escoja la mas mujer.
Embajador : Esta escojo por esposa,
Por esposa y por mujer;
Me ha pareciao una rosa
Acabada de nacer.
(Dirigiéndose à la nifla que esta al lado) :
Levanta rosa.
La Nifía: Estoy enrosada.
Embajador: Levanta clavo.
La Nina: Estoy enclavada.
Embajador: Levanta clavel.
La Nina: Ahora si, que me levanté.
«O Embajador ou os Embaixadores, porque às vezes
são dois meninos que fazem este papel, levam a Me
nina que está na dianteira e põem-na a um lado; vão
fazendo o mesmo com todas as outras, á excepção da
ultima que é La Nifía de los ojos negros.» Esta ultima
é pedida pelos embaixadores, mas a Mãe desculpa-se
sempre dizendo que a está lavando, penteando, ves
tindo ; por ultimo é raptada, e a Mãe vae á procura
da filha soffrendo muitos trabalhos. (1)
(i) El Folk Lore andaluz, p. 218.
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346 LIVRO I, CAPITULO V
chemina sur icelle tout droit; puis alla à rebours,
dansa sur icelle corde au son du tambourin, se pen
dit à la dite corde la teste dessoubs, et fit sur icelle
corde toutes les habiletez que l’on pourrait désirer,
tellement que les dames, qui le regardoient, mu-
choient leurs yeux, de grand paour qu’elles avoient
qu’il ne se tuast.» (1)
No Cancioneiro de Rezende e nas Ordenações Affon-
sinas acham-se apontados alguns jogos de sociedade
do seculo xv ; eis alguns dos que eram necessários
para figurar na côrte :
Item, manha de louvar Saber bem o pega-chuna,
he jugar bem o malham, e o cubre bem jogar,
e o jogo do piam sam duas para medrar
favor se lhe deve dar. galante contra fortuna.
Nem sei porque mais vos gabe Nem saberia a um filho
ser gram pescador de vasa; escolher melhor conselho,
mas jugar a badalassa senão que jogue o fitelho,
em qualquer galante cabe. jaldeta, conca, sarilho.
(Canc. ger., i, 447.)
Na Ordenação Affonsina(liv. v, t. 41, §
bem-se outros jogos: «Mandou que nenbum nom ju-
gasse dinheiros seccos, nem molhados a torrelha, nem
a dados femeas, nem a vacca, nem a jaldeta, nem a
bulir, nem aa porca, nem a outro jogo que agora se
chama curre-curre, nem a outro jogo nenhum de qual
quer nome que seja chamado, postoque esse jogo nom
aja nome.» Foi tambem ainda no seculo xv que mor
reu o príncipe D. Affonso, quando estava correndo o
paréo no areal de Santarém; era então usual o aléo,
ou vara grossa, especie de cajado com que se jogava
a bola ou a choca. (Viterbo.)
Não podemos explicar todos estes jogos do seculo xv;
^ (l)Ap.^Bibliophile Jacob, Moeurs, Usages et CostumesauMoyen-
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350 LTVBO I, CAPITULO V
e alguns maráos se serviam de jogar a bolq, na Rua
Nova, mas deviam ser tão poucos, que não fezeram
estorvo a deixar crescer muita erva e de grande altu
ra.» (1) No citado alvará de 1521 se estabelece : «que
qualquer homem ou moço, que dentro do paço ou
varandas d’elle fosse achado jogando o tintinini, pa
gasse da cadêa trezentos reaes para o meirinho do
paço...» 0 nome d’este jogo leva-nos a aproximal-o
do jogo italiano de Tintirinti, em que um rapaz salta
ás cavalleiras de outro dizendo uma longa parlenda. (2)
Prohibe-se mais: «que qualquer escravo que fosse
achado jogando na côrte ou na cidade de Lisboa qual
quer jogo, fosse preso e açoutado ao pé do pelouri
nho...» Em uma carta do padre Fernão Gardim, fal-
la-se dos jogos usados pelos portuguezes em Pernam
buco em uma festa de casamento : «Aquelle dia cor
reram touros, jogaram canas, pato, argolinha,... e por
esta festa se pode julgar o que farão nas mais, que
são communs e ordinarias.» 0 correr touros vulga-
risou-se extremamente no seculo xv, estendendo-se
ás ilhas da Madeira e Açores ; diz Fructuoso : «tem
um campo (junto á egrejá) tão grande que correm
n’elles touros e cavallos, e jogam as canas e fazem
outras festas.» (3) 0 jogo do tornou-se peculiar
dos divertimentos escholares. (4) Garcia d’Orta, no
Colloquio dos Simples e Drogas, falia do jogo do En-
xadrez (5) que encontramos moralisado em questões
de amores por D. Luiz de Menezes :
No jogo do tavoleiro
tem na dama jurdiçam
(1) Ap. Ribeiro Guimarães, Summario de Varia Historia,
t li, p. 162.
Í 2) Pitré, Giuochi fanciulleschi, n.° 117.
3) Saudades da Terra, p. 86.
4) Balthazar Telles, Chronicada Compa
(6) Coll., fl. 37.
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO £ TRADIÇÃO 351
tem todo o poder inteiro
desno rey at’oo pyam.
Mas s’ os lanços não vam certos,
ou sse cegua o entender,
pode muyto bem perder
por trebelhos encubertos.
Emquanto esteve queda
nunca o jogo se guanhou;
mas como s’ela mudou,
foy logo mate na sseda.
Porque como be tocada
e d’algum máo juguador,
perde todo seu pnmor,
perde o ser muyto presada. (i)
O jogo oriental do Xadrez, não tinha condições de
popularidade; comtudo a antiga locução ainda hoje
vulgar Sem Rei nem Roque, derivou-se do seu uso. Diz
Prestes, no Auto do Mouro encantado :
Dir-lhe-hei que não viu amor
Nem se é Roque, nem se é rei. (2)
O Roque é o nome do Dromedário, (Roch) que pas
sou a ser a Torre, no jogo adoptado na Europa; o
Rei (S’ckack) perdeu tambem a sua designação orien
tal, significando um lance do jogo, o Xeque, e por fim
o proprio jogo Échec. No antigo portuguez a denomi
nação d’este jogo é oriental; chamava-se Acedrenche,
Enxadrez e abreviadamente Xadrez, do epitheto Ssed-
Renge, ou cem cuidados, como notou Breitkopf: «Ha
ainda uma grande verosimilhança de derivação do
arabe da palavra nmbi e naipes, quando se compara
o jogo das Cartas com o Xadrez, que provavelmente
nos foi communicado pelos Arabes: o nome SsedrRenge,
(1) Canc. geral, t. it, p. 473. Ed. Stuttgard.
(2) Autos, p. 464. Ed. do Porto.
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352 LIVRO I, CAPITULO V
cem cuidados, que os Arabes deram a este jogo, é uma
expressão tão oriental como .» (1)
A introducção dos Naipes em Portugal foi devida aos
Arabes de Hespanha, e só no fim do seculo xv é que
ba noticia do seu uso na sociedade portugueza ; Gil
Vicente dil-o de um modo claro: vem de
Andaluzia ;» e tambem no Auto da em que se
condemna este jogo, falia o Diabo :
Ás vezes vendo virotes
E trago de Andaluzia
Naipes,com que os sacerdotes
Arrenegam cada dia,
E jogam té os pelotes. (Ob., i, 270.)
Na popularisação d’este jogo em Portugal conhe
ce-se a dupla influencia italiana e franceza do reinado
de D. Manuel com a côrte de Saboya, e de D. João in
com a côrte de Francisco i. Os Naipes arabes com-
municados a Viterbo, modificaram-se no
Tarocchi, e na trappola; na linguagem popular por
tugueza, sobretudo na giria, ainda se conservam as
palavras t r a q u i n a ,tareco, e trapolla com se
rativo, derivado da condemnação d’este divertimento.
A palavra picardia, no sentido de engano malévolo
provém dos muitos jogos de cartas assim denomina
dos ; o flux, que Luiz xn jogava diante dos seus sol
dados, acha-se tambem citado por Gil Vicente no Auto
da Barca do Purgatorio:
Taf ul : Eis aqui flux de um metal.
D ia b o: Pois sabe que te ganhei.
Taf ul : Mostra se tens jogo tal.
D ia b o : Tu perdes um enxoval.
T a f u l : Não é isto flux com rei f
D ia b o : Baralha o jogo e partamos.
(i) Versuch denUrsprung der ap. Bibl. Jacob,
Curiosités de l’Histoire des Arts, p. 42.
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356 LIVRO I, CAPITULO V
jogo dos Arrioses (p. 167.) Em uma lôa de Natal, do
seculo xvii encontramos referencia ao jogo de Martin
Cortez:
Porem, olhar não tombar,
Nem jogar Martin Cortez. (i)
No livro de Rodrigo Caro, Dias geniales, (§ in, do
Dial. iv) vem citado este jogo de Martin Cortez como
usado em Hespanba. D. Francisco Manuel allude ao
jogo ainda vulgar nos Açores: «Eu creio que por isso
os deixei Passarinho á orelha. (2) No continente cha
ma-se-lhe hoje Passarinho a olhar. Bernardes, nos
Últimos fins do H o m e m ,não condemn
mésticos como os outros moralistas: «Em casa dêem-
lhe alguns alivios e jogos honestos, em que se entre-
tenham...» (p. 418.)
O padre Bento Pereira, nas Frases
allude ao jogo dos Despropositos, e ao do Algarve (com
pedras de varias côres.) Antonio José da Silva, o Ju
deu, allude nas suas Comedias aos jogos de galhofa
Depressa, P a s s a r , Cabra cegCoe aqui,
É o sermão de Sam Coelho
Que lo diz este fedelho :
— Lo meu Santo, Sam Coelho,
De seu barrete vermelho,
Com espada de cortiça
Vem matar la Carriça :
Logo que puchou do ferro,
A Carriça deu um berro;
La Carriça arrebentou,
Tôdala gente espantou,
E la Carriça morreu I
E quem no prégou fui eu.
(Romanceiro do Archipelago da Madeira, p. 460.)
(!) Cancioneiro popular, p. 166.
(2) Op. cit., p. 184.
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364 LIVRO I, CAPITULO V
e braies) descriptas por Diodoro Siculo (v, 30) são
ainda synonimas de calças; estas bragas gaulezas
eram uma vestimenta de todo o corpo para os Scy-
thas ; n’este sentido ainda nos campos se lhe chama
o bragal.0 briche, nos dialectos celticos e germâni
cos, significava tambem as calças (1) e hoje designa
o panno com que ellas se fazem. Os capotes de palha,
Coroça ou croça «assim se chamam hoje em algu
mas terras de Portugal a um albornoz, capa ou casa
cão de junco ou palha.» (2) Falia tambem d’este uso,
Naylies, nas Memórias sobre a guerra de Hespanha nos
annos de 1808 a 1811. As (de gallicae, de
que faliam Cicero e Aulo Gellio) e as sandalias ou
alpergatas e abarcas são ainda usadas pelo nosso povo;
umas são de páo, cobrindo o couro a ponta do pé,
as outras são uma sola na planta do pé, prêsa ao
artelho com cordéis ; (3) o calçado prêso ás calças ou
polainas é tambem descripto por Guilherme Hum-
boldt como ibérico com o nome de chapima, de que
deriva o nosso chapim. 0 sagum (sagoi gaulez) é o
saio, de chita ou de cotim, e o cucullus é o capuz,
usado em muitas aldeias, e ainda com a sua maior
persistência na ilha de S. Miguel ; na Madeira ha uma
feição egualmente archaica : «o trajar das raparigas
madeirenses não pode dizer-se absolutamente desele
gante, mas não se distinguiria com facilidade do que
se usa em algumas províncias de Portugal, se não
fôra a celebre carapuça, que constitue o seu caracter
distinctivo. A forma d’este singularissimo toucado é
a de um funil, sem mais fita, nem enfeite.» (4) Em
(1) Belloguet, Gloss., p. 135.
(2j Viterbo, confirmado por J. P. Ribeiro.
(3) Belloguet, Ethnogenie, gauL, p. 81.
(4) Panorama, t. x, p. 141.
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 37 5
los: como agora pouco ba, trouxe este nome picote,
que quer dizer burel; do qual, porque de fóra trou
xeram os malgalautes o costume, ou para melhor di
zer, o desdem de vestir o tal panno, trouxeram tam
bém o uome com esse costume: e alquice tam pouco
be vestido da nossa terra, por isso tambem traz o
nome estrangeiro comsigo.» A pragmatica de 3 de
junho de 1535 probibia o trazer luvas perfumadas aos
bomens.
Lê-se em uma Relação de Viagem de 1580: cOs
homens da cidade de Lisboa e de todo o Portugal são
de mediana estatura, mais baixos que altos, magros,
de côr ferrenha, cabellos e barba pretos, olhos negrís
simos, e mui similhantes no exterior aos gregos. O
seu trajo, antes da morte do Gardeal-rei, era mui mes
quinho, em consequência da pragmatica, que não con
sentia usassem vestidos de seda, pelo que, trajavam
um saio de baeta preta, calções de panno escocez,
borzeguins de marroquim, chapéo de feltro e capa
comprida da mesma baeta. Com a chegada de elrei
catholico (Philippe n) alteraram o seu antigo trajo,
porque, postoque conservaram a capa de baéta, come
çaram a usar do gibão de raso (i. é, panno de lã
sem felpa) bragas e calções de velludo e meias de
seda, cousa que nunca tinham calçado, bem como
escarpins, dos quaes não era possivel achar um só
par antes da entrada de elrei, porque todos, sem
excepção, calçavam borzeguins.» (1)
«O trajo feminino em Lisboa é o commum de toda
a Hespanha; isto é, o manto grande de lan ou de
seda, segundo a qualidade da pessoa. Com elles co
brem o rosto e o corpo inteiro, e vão aonde querem,
tão disfarçadas, que nem os proprios maridos as conhe
cem, vantagem esta que lhes dá maior liberdade do
(1) Viagem de Tron e Lippomani a Portugal (Pan., t. vn, 83.)
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376 LIVRO I, CAPITULO V
que convem a mulheres bem nascidas e bem morige-
radas.» (i) Este trajo, evidentemente dç origem
arabe, conservou-se no Algarve com o nome de re
buço, e no Porto com o nome de até ba bem
poucos annos.
Em uma Estatística manuscripta de 1552 cita-se «a
Feira do Rocio, que se conserva ainda sob o nome de
Feira da Ladra em outros locaes; n’essa feira ven-
diam-se artigos de sumptuaria, coufas de gara-
vis trançados, gorgeiras, lenços, tranças e cabeções,
soltas ustedas, chamalotes, fustões, selins falsos.» (2)
As gorgeiras tambem se chamaram abanico: «Com
punha-se de uma tira de garça ou volante de largura
de uma mão travessa tomada em prega.» (Viterbo.)
Junto dos Paços da Ribeira, e em volta da Capella
real, sob as arcadas do palacio é que estavam arrua
dos os que vendiam estes artigos; d aqui ficou o nome
de Capellistas aos commerciantes d’esta especialidade,
e que ainda hoje persiste já sem conhecimento da
sua origem. (3) As descripções dos trajos e modas
pode fazer-se pelas Pragmaticas ou leis com que os
reis intervinham no modo de vestir dos seus súbdi
tos ; tal é a Pragmatica de 9 de junho de 1643, e a
Pragmatica das sedas, de D. João v.
Francisco Rodrigues Lobo, no seu Pastor peregrino,
traz a seguinte descripção do trajo de uma serrana:
Huma fraldilha vestida De velludo debruado
Trazia ella de pombinho; Com pestanas;
Com pespontos um saitiho Que era inveja das sarranas,
De arenoso. E dos pegureiros falia;
Hum corpinho mui custoso de bengala
De chamalote encarnado, Mui singela;
(1) Pan., t. iv, p. 98.
(2) Ap. Ribeiro Guimarães, , t. vu, p. 71.
(3) Ratton, Recordações, p. 305. — Conde de Villa Franca,
D. Jotto l e aAUiança ingleza, p. 82, not.
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 377
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 379
faziam as sanefas das camas ; em 4672 a Gamara de
Lisboa pedia a D. Pedro n qne prohibisse as cabel-
leiras postiças, e em nma consulta de 49 de outubro
d ’esse anno pondéra : «que o uso das cabelleiras se
tem desordenado de modo, que é preciso moderar a
demasia em que se pratica.— É considerável o dinheiro
que boje n’ellas se gasta, e se leva para fóra do reino,
saindo d’elle prata por cabellos. Ha cabelleira que
custa cincoenta e sessenta mil réis ; e consta que para
o estado da India se tem mandado, ha annos a esta
parte, grande quantidade d’ellas, que se venderam
por preços excessivos, etc.— Passa esta desordem do
adorno da cabeça ao mimo das mãos, trazendo-as
muito resguardadas em regalos. Convém que V. A.
atalhe este damno, prohibindo todo o genero de
leirasj permittindo-as sómente aos que por razão de
achaque necessitem d’ellas ; prohibindo outrosim, que
os homens tragam regalos nas mãos e leques. Os
regalos prohibiu V. A. já na Pragmatica de 8 de junho
de 4668, como prohibiu tambem o andar'desabotoa
dos, que de novo se deve prohibir.» Na Pragmatica
de 43 de abril de 4668 fora prohibido o usar regalos
nas mãos e o trazer bengalas. Ha outras Pragmaticas,
de 9 de agosto de 4686, de 44 de novembro de 4698,
de 6 de maio de 4708 e de 24 de maio de 4749, em
que o poder real absoluto intervinha directamente na
regulamentação do que cada pessoa podia vestir.
Alguns folhetos do seculo xvm satyrisando os cos
tumes da epoca deixam-nos preciosas indicações sobre
os trajos e modas; a Definição da de 4746, e
o Testamento de uma frança, repartindo pelos conven
tos pobres as suas melhores galas e fazendo outras obras
pias, por causa da Pragmatica, impresso em 4754,
accumulam traços pittorescos de uma inapreciável
realidade. O dr. Ribeiro Guimarães compilou d’esses
folhetos noticias que organisou no artigo Çostumes e
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384 LIVBO I, CAPITULO V
Os parentescos também s3o expressos nos anexins
com as suas relações moraes: Cunha
das, são unhadas; Madrasta, nem de pasta; Sogra,
nem de barro á porta; Quanto mais prima, mais se
lhe arrima; Parentes, são os dentes.
Dansas e instrumentos músicos.— Um grande nu
mero de actos sociaes, a que se ligou um caracter
religioso, como os funeraes, os casamentos, as com*
memorações históricas, tinham a dansa como uma
parte essencial das praticas cerimoniosas. É como de
rivada do rito, <}ue a dansa apparece como germen
das formas dramaticas ou do theatro hierático; e por
isso mesmo conserva através de todas as transforma
ções a sua physionomia nacional. Na peninsula hispâ
nica, a dansa distingue ainda os seus diversos ele
mentos ethnicos; diz Tubino: «Segui os costumes
populares, vereis a enorme distancia que divide os
hespanhoes entre si. Em quanto o basco dansa o Zor-
zico e canta o Gamicaco arbola, acompanhado da tibia,
o galego dansará acompanhado da gaita a monotona
muifieira, saturada de melancholicas recordações das
raparigas namoradas. Entre os Aragonezes a jata e
a rondaüa, com o auxilio do pandeiro, desenharão o
caracter viril e marcial dos indigenas; o Andaluz,
embalado pelas influencias e recordações do Oriente
e do Occidente, executa ao som da guitarra estes bai
les de encanto supremo que misturam as inebriantes
seducções das dansas das almêas e das bayadéras
aos refinamentos delicados de uma civilisação idea
lista e cavalleiresca.» (1) As dansas portuguezas par-
(1) Recherches d’Anthrop6logie sociale,p. 15.0 mesmo fa
se observa com a França; diz o Bibl. Jacob: «Cada provín-
cia de França tinha a sua dança nacional, e todas estas dan-
sas, as bowrrées de Auvergne, os trioris da Bretanha, as -
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386 LTVRO I, CAPITULO ¥
compasso dessas dansas dèram o nome a um genero
lyrico especial, a baylata ou balada:
Mha madr’ é velyda,
vou-m' a la baylia
do amor.
Mha madr’ é loada,
vou-me a la baylada
do amor. (Gone. da Vat., 19S.)
Nossos amigos hiram por cousir
como baylamos,e podem veer
baylar moças die bom parecer...
(Ib. 336.)
Baylmos nós já todas, todaã ay amigas,
só aquestas avelaneyras frolidas. ..
(Ibid. 462.)
Baylade oje, ay fllha, qne prazer vejades,
ant’ o vosso amigo, qne vós muit’amades. . .
(Ib. 464.)
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 387
é agora para ser crendo ; e estas dansas eram e som
dhumas longas que entonce husavom sem curando
d’outro estormento, posto que o hi ouvesse, e se al
guma rez lh’o queriam tanger logo se enfadava d’el
les, e dizia que o dessem ao demo, e lhe chamassem
os trombeiros.»(cap. xiv.) «Vinha el rei em batees
D’almada para Lisboa, e saiam-no a receber os cida
dãos e todollos dos mesteres, com dansas e trebelhos,
segundo entonce husavom, e el saia dos batees e
metiasse na dansa com elles e assi hia ataa o paço.»
Quando foi armado cavalleiro João Affonso Tello, na
egreja de Sam Domingos, tambem houve dansas pe
las ruas. Nas festas do casamento de D. João i com
D. Philippa de Lencastre, diz Fernão Lopes : «Em
quanto o espaço de comer durou, faziam jogos à vista
de todos os homens, que o bem sabiom fazer, assi
como trepar em cordas, e tomos de mezas, e salto real
e outras cousas de sabor ; as quaes acabadas alça-
romse todos e começarom a dansar e as donas em
seu bando cantando arredor com grande prazer.» (1)
Na linguagem popular ainda existe a locução com que
se exprime boa vontade : Heide-te bailar na boda. No
casamento da imperatriz Dona Leonor, encontramos
apontadas dansas portuguezas, como a ,a
cota, a Mourisca e o Vülão, que no seculo xvi appa-
recem como populares nos Autos de Gil Vicente.
Lopo de Almeida que acompanhou a infanta D. Leo
nor, irmã de D. Affonso v, para a Allemanha, pelo
casamento com o imperador Frederico m, em 1451,
descreve as dansas das festas reaes :
«N’estes tempos houve grandes e fremosas justas
e outras festas, a que sempre elrei levava sua irmã,
e assim a acompanha sempre a duqueza de Calabria,
e Lucrecia, que a estas festas sahia mui louçã, e á
(1) Chron. de D. João i, P. n, cap. 96.
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388 LIVRO I, CAPITULO V
noite pelo serão, dançavam a dita senhora a Baixa,
e elrei com ella pela mão, e o imperador com a irmã
de Lucrecia, e veiu a mim o príncipe de Rosano,
genro de elrei, que dançasse, pois elle dançava, e
assim dançámos todos os vossos que aqui eramos, e
o sabiamos fazer, e quando veiu a Alta, dançavam
todos os ditos cinco sós, assim como Chacota, e vossa
irmã a guiar a dança ; e acabada, mandavam bailar
meu sobrinho com Beatriz Lopes baile mourisco, e
depois o Vilão, e espantou-se el rei do seu bailar, e
fez-me entender que lhe prazeria que ficasse alguns
dias com elle...» ( Provasda Hist. genealóg
dalgo Aprendiz, ainda se cita no seculo x v i i a Baixa,
e o Vilão; e na procissão que em 16H se fazia com-
memorando a tomada de Lisboa, tambem saia ama
Chacota. Gil Vicente diz :
E bailando á mourisca
D’entre gente portuguez...
{Ob., t. m, 53.)
Não praza a Deus co’a viola,
Que assi se torna mourisca,
E eu fico á carraquisca :
En los campos verdes sola. (Ib. 181.)
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 389
ha referencias a dansas, que ainda persistem entre
o povo:
E eu dou-vos um pandeiro
alcancareyro,
que leveis na mão tangendo. (1)
guayteiro de tiro-liro.
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 391
a folia, 1000 rs.; com as 1000 rs., etc.» (1)
No culto era a dansa peculiar da liturgia tradicional
popular; Dillon, na sua Viagem, de 1711, diz dos
costumes religiosos de Goa: «Nas festas mais sole-
mnes, depois de acabar o serviço divino, fazem vir
para dentro da egreja as mulheres ricamente enfei
tadas, as quaes na presença do Santíssimo Sacra
mento, que fica exposto, dansam ao som de guitarras
e castanholas, cantam modinhas profanas, tomam mil
posturas indecentes e impudicas, que mais conviriam
para logares públicos que para egrejas...» (2) Com
provando este facto, diz Bernardes Branco: «Não se
passaram ainda muitos annos, que taes dansas impu
dicas foram prohibidas dentro da Sé do Porto, por
occasião da festa de S. Gonçalo, chamada a Festa das
Begateiras.*
Nicoláo Tolentino, nas suas salgadas quintilhas
allude á persistência das dansas hieraticas:
Em solemne procissão,
Une a frieleira casta,
O fandango e a devoção;
Mas emfim de exemplo basta
E tomemos à questão. (3)
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 393
monomania da classe aristocratica do seculo , x v ii
acha-se ridicularisada por D. Francisco Manuel de
Mello no magnifico Autodo Fidalgo apr
sentado na côrte de D. João iv ; n’elle se acha uma
riquissima scena com um mestre de Dansa, e a ennu-
meração das dansas mais vulgares em Portugal no
meado do seculo . Esta monomania estabeleceu
x v ii
uma separação entre as dansas populares e as corte-
zãs, como se nota no opusculo de Esquivei, que falia
das primeiras com desprezo e como indignas de serem
conhecidas de cavalleiros : «Todos los maestros abor-
recen á los de las danzas de cascabel, y con mucha
razon, porque és muy distinta á la quenta y de muy
inferior lugar, e ansi ningun maestro de reputacion
y con escuela abierta, se ha hallado jámás en seme-
jantes chapandacas y si alguno lo ha hecho, no habrá
sido teniendo escuela, ni llegado á noticia de sus
discípulos, porque elque lo supiese rehusará serio
de alli adelante, porque la danza de cascabel es para
gente que puede salir á dançar por las calles, y estas
danças llama por gracejo Francisco Ramos, la tarasca
dei dia de Dios...*(1) No Auto portuguez do Fidalgo
aprendiz, nota-se a influencia castelhana nas dansas
aristocraticas, e o desprezo pelas do povo : « o
Mestre da Dansa, muito polido fazendo mesuras, põe-se
de joelhos diante de D. Gil,e pega-lh
Ih’as beijar:
Me s t r e : Dai-me as mãos.
Gil : Não m’as comais,
Que não são mãos de carneiro.
Sois o Mestre ?
Me s t r e : E o Rei David
Mais antigo da cidade.
G il : Tereis grande habilidade.
(1) Esquivei, op. cit., cap. xii, Ap. annotadores de Tichnor,
Hist. da Litt. hesp., t. ui, p. 458
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394 l t vr o i, c a p it u l o t
Mkstri : Estive já em Madrid.
Gil : Oh! se fostes a Castella
Sabereis cem mil mudanças.
M b s t r b : Para mudanças e danças
Todos sabemos mais que ella.
Gil : Ora tiro o balandrao
Que o aprender sempre ó virtude (tira o capote.)
M e s t r e : Ha em casa algum laúdef
A l m e id a : Não h a mais que um birimbáo.
M b s t r b : Violasf
A .:
l m Sim, achareis.
Na botica.
Me s t r b : Harpa ?
A l m .: De c o u ro .
M e s t r e : Nem um sestro ?
A l m.: Um sestro agouro.
M e s t r e ; Nem sequer dous cascavéis ?
Eu vos tangerei co*a mão.
G il : Tangei, que eu não dou lição,
Assim, sem tom e sem som.
M e s t r e : Passeae por essa casa;
Que vos quero dar o ar.
Gil : Isso é q u e re r-m e a le ija r,
Dar-me o ár, estando em braza.
M e s t r e : Fazei mesuras. (Faça D. Gil muitas mesuras sem
feição.)
G il : A o s p a re s ,
M e s t r e : Este pé esse acompanha
Sempre.
A l m .: ' Não, ninguém lhe ganha
Em mostrar os calcanhares.
M e s t r e : Andae I parae, dae trez voltas,
Hi depressa, hide de passo,
Haveis de andar a compasso. (Faz D. Gil tudo
quanto o Mestre lhe manda.)
G il : Melhor he lançar-me soltas.
M e s t r e : Podeis entrar n’um saráo,
Segundo o bem que aprendeis.
G il : Pois, Mestre, que mais sabeis ?
M e s t r e : Uma Alta, um Pé de chibáo,
Galharda, Pavana rica,
E n’estas novas mudanças.
G il : Tende, que isso não são dansas,
Senão cousas de botica.
, ,,
V jO/ A / Ag rLt lCo Original from
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 395
Sabeis o Çapateado f
O Terollero f o Villão ?
O Mochachim ?
Senhor, não.
G il : Pois sois Mestre mui mingnado. (1)
" A Galharda era uma dansa franceza, e a Pavana
f (ou paduana) ainda persiste na locoção popular : tocar
a pavana, isto ó infligir um castigo corporal. A Ga
lharda era uma especie de Tordião, menos accelerado
e caprichoso ; o Bibliophilo Jacob descreve-a : «A ver
dadeira dansa franceza, que era uma baixa dansa de
signada sob o nome de Gaillarde, regulava-se ao som
do hautbois e do tamboril, que lhe marcavam a caden
cia; dansava-se na sua origem — com uma grande
discrição. Esta dansa, que Jean Tabourot descreveu,
começava pela cortezia (mesura) que faziam um ao
outro os dois dansadores, que iam depois e por sua
vez um para o outro dansando=e assim continua
vam estas idas e vindas, o dito dansador fazia pas
sagens novas, mostrando tudo quanto sabia fazer, até
que os tocadores acabassem de tocar ; então elle fazia
a cortezia, e tomando a donzella pela mão, e agrade
cendo-lhe a levava para o logar d’onde a tinha tira
do.—» (2) A Galharda conservou-se com o nome de
Menuete.
A Alta, a que allude D. Francisco Manoel, era a
dansa allemã, generalisada em França com o nome
de Hayes; as dansas vertiginosas, e irregulares cha
mavam-se var haut, comprehendendo todos os gene-
ros dos Tordiões. Na linguagem popular ainda se chama
Estúrdia, ás brincadeiras mimicas e sapateados. Do
Villão diz Francisco Rodrigues Lobo :
Mandei toar o Villão,
Pasmaram todos então
(1) Obras Métricas, 1. 1>, p. 242 e 243.
(2) Moeurs, Usages et Costumes au Moyen-Age, p. 266.
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 397
e ao mesmo tempo invectiva contra o lascivo das Sa
rabandas (1) e modas do tempo.» (Memórias, p. 210.)
Isto passava-se por 1761. Nas ilhas dos Açores ainda
se conserva o Lundum, citado por Sá de Miranda
desde o seculo xvi, e por Nicolào Tolentino no sé
culo xvm :
Del ton me acuerdo, y dei cuento,
En busca dei cantar ando.
Ora atinenos al ton,
Amigo, que juro a mi,
Este era el tiempo y sazon,
El logar este era aqui,
Las palabras de london...
(Obras de Sá de Miranda,
p. 192, ed. 1804.)
Nicoláo Tolentino, que ridicnlarisou as modinhas do
seculo xvra, descreve:
Em bandolim marchetado,
Os ligeiros dedos promptos,
Louro peralta adamado,
Foi depois tocar por pontos
O doce Lundum chorado.
» (Obras, p. 250.)
Gil Vicente falia do baile da Sapateta, que é a Sa-
patea insulana moderna:
Estão-me proindo as mãos
Por dar uma çapateta,
Gomo nos bailhos villãos.
(Obr.9 ui, 184.)
(i) Serrão de Castro, escreve na satyra Os Ratos da Inqui
sição, p. 131:
E tal dom vos heide fazer,
Que baileis a sarabanda.
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 401
como é, persiste na ilha de S. Miguel. No fim do seculo
passado, o Fandango era popular nos arredores de
Lisboa, como se vê pela descripção de Richard Twiss:
«Foi em Mafra que tive o prazer de vêr dnnsar o
Fandango. Foi n uma tasca. Foi dansado pelo dono
da tasca com sua mulher, e com o acompanhamento
de uma guitarra. 0 tocador dedilhava varias cordas
juntamente, a trez tempos, e batia com a mão o com
passo no corpo do instrumento. O fandango que se
dansa aos pares parece-se muito com o que os hol-
landezes chamam plitgge dansen. Apparentemente
estes povos adoptaram esta dansa, bem como outros
usos no tempo em que se achavam debaixo da domi
nação dos hespanhoes. Os dansantes estão n’um mo
vimento geral com todo o corpo e todos os membros,
algumas vezes até indecentemente: marcam o com
passo com o pé e com castanholas. Havendo falta d’este
instrumento, marca-se a cadencia com o estalo dos
dedos. O homem tem o chapéo posto na cabeça, e
dansa com sua dama chegando-se e afastando-se, e
fazendo numerosas reviravoltas e requebros. Dansa-se
o fandango no theatro com muita arte: toda a orches-
tra toca a musica, que é a mesma, quasi por toda a
parte. Depois que o meu estalajadeiro acabou de dan-
sar, correndo-lhes o suór em bica, um outro pár os
substituiu...» (1) O caracter d’esta dansa conserva-se
nos Fados actuaes; esta designação derivada do arabe
huda, apresenta na tradição franceza a forma de canto
e dansa figurada em fatiste.
As dansas populares contemporâneas poucas novi
dades apresentam; as mais curiosas são as açorianas,
ou Bailhos. O insulano José de Torres descreve-os:
«Os balhos (corrupção de bailes, dansas) complemento
(1) Voyage en Portugal et en Espagne, en 1772 e 1773. Ap.
B. Branco, op. cit., t. u, 266.
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402 LIVRO I, CAPITULO V
de todos os seus festejos, são n’elle uma feição cara
cterística, um elemento necessário à vida do coração.
— Homens e mulheres emparelhados, n’um circulo,
girando concentricamenle, cada pár fazendo sua mu
tua frente, todos em pulo, todos raiantes de alegria,
caminhando n’uma e n’outra rotação, cruzando-se,
passando, e obedecendo n’estas evoluções aos descan
tes singulares, que acompanham o agudissimo som
metálico da viola: que vos parece o balho açoriano?» (1)
Faustino Xavier de Novaes, descreve nas suas Poe
sias satyricas; as dansas do Minho :
Dansa a chula e o pésinho,
A Canna verde, a chiquita,
Á Constanca e o Josesinho,
Tão insípidas na Invicta
Quanto engraçadas no Minho. (2)
Bem repinicada a chula
Tem p’ra mim maior valia;
Vêr a moça quando pula,
E a rabeca quando chia.
E a saranda na viola,
Isso é trigo sem mastúra :
Mas é moaa a cantarola,
Quem num vae num faz fügura. (3)
Novaes refere-se tambem ás musicas que acompa-
(1) Fastos açorianos. (Panorama, t. xiii. p. 190.) Vimos o
annuncio dos Cantos populares dos Açores, coordenados para
S iano por Eduardo Augusto de Sousa Ribeiro, em que se in-
ica o nome de muitos balhos insulanos; são elles, o Charam-
ba, Sam Miguel, Sam Macario, Tyrana, Chamarrita, o Pésinho,
Eu cá sei, o Meu bem, o Bravo, Os olhos prelos, o Fado dos
Estudantes, Os teus braços, o Sam Gonçalo, a Favorita, Mula-
tinhas, as Solteiras, a Viradinha, Os soluços, o Caracol, As Me
ninas dyEivas, A Praia, a Infancia, O repete, repete... o Lan-
dum, a Saudade, a Sapateia.
(2) Poesias, p. 6i.
(3) Idem, ib., p. Í90.
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E TRADIÇÃO 405
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406 UYRO I, CAPITULO V
Foy a citola temprar
Lopo, que citolasse... (Ib. 971.)
bom citolom mui grande sobraçado
con que el sol muyto mal fazer.
(Ib. 972.),
No Poema de Alfonso Onceno, de Rodrigo Yanes,
vem descriptas as festas por occasião do casamento
da Infanta D. Maria, filha de D. Affonso , com iv
Affonso xi, de Castella; ahi se allude aos diversos
instrumentos músicos:
Estas Dalabras dezian
Donzeílas en sus cantares,
Los estormentos tannian
Por las Huelgas los Jograles.
El laud yvan tanniendo
Estormento fallagueiro;
La viuela tanniendo
El ralbê con el saltério.
La guitarra serranista
Estormento con razon
La enxabeba morisca
Allá en medio canon.
La gayta3 que é sotil
Con que todos plaser han,
Otros estormentos mill
Con la farpa de don Tristan,
Que dá los puntos doblados
Con que falaga el loçano,
E todos los enamorados
En el tiempo dei veràno.
(Est. 406-410.)
Segundo Du Cange o Laude vem do allemão Laute,
de lauten soar, ressoar; Scaligero deriva-o do arabe
allaud; o Arcipreste de Hita refere-se ao arpudo latid}
que equivale á phrase de Yenancio Fortunato «barba-
ros leudos harpa relidebat.» O instrumento é anterior
a estes dois povos. A guitarra serranista era popular,
porque o seu epitheto designa que servia para os
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AUTOMATISMO DA IMITAÇÃO E THADIÇÃO 407
cantares de serranilha, de que abundam os nossos
Cancioneiros. A gaita era propria dos cantares
d o s ,de que ainda falia Gil Vicente.
A harpa de Don Tristan era o instrumento a que
nò seculo xiv se cantava os lays bretãos ou dos amo
res de Trisfâo e Yseult, de que ba uma amostra no
Cancioneiro Colocci-Braneuti. Nas Poesias do Arci
preste de Hita descreve-se tambern um grande nu
mero de instrumentos : La guitarra latina 1202)
assim designada por ser propria dos cantos de ledino ?
Falia tambem de :
La vihuela d’arco fas dulces bayladas.
A viola de a r c o ,nome que no seculo x
dava á rabeca, foi adoptada em Portugal no começo
do seculo xvi como se sabe pela vida de Sá de Mi
randa por D. Gonçalo Coutinho. O Arcipreste falia do
instrumento a que se cantavam os Fados, no seculo xiv
ainda com o seu caracter arabe :
La adedura albardana entre ellos se entremette.
(t. 1206.)
No codice de Gayoso lê-se Hadedura, o que nos leva
a consideral-o como o instrumento a que se cantavam
as Hudas arabes, especie de lenga-lenga de tropeiros.
Nas Ordenações affonsinas e manuelinas citam-se tam
bem alguns instrumentos músicos das dansas de Re
torta, e das dansas dos Mouros e Judeus quando iam
esperar o rei.
No livro de Philippe de Carverel, Ambassade en
Espagne et en Portugal, en 1582, vem indicações curio
sas sobre costumes portuguezes. Eis como refere o
gosto do povo pela musica':
«il se delecte bien fort au reste des instrumens mu-
r^ r^ rA o Original from
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408 LIVRO 1, CAPITULO V
Pr o b mio iv a viu
INTRODUCÇÃO
Bases da critica ethnoiogica
LIVRO I
COSTUMES E VIDA DOMESTICA
CAPITULO I
Persistência dos typos anthropologicos, determinada
pelos costumes populares
Pag.
Como as observações anthropologicas estabelece*
ram o facto da persistência histórica dos typos
das raças.—Feições variadas do portuguez, coin
cidindo com costumes peculiares de raças primi
tivas.— Costumes e tradições da epoca ante-his-
torica em Portugal.— As aversões populares ao
typo ruivo.— As hostilidades entre o habitante
da montanha e o ribeirinho.— Caracteres anthro
pologicos do pé pequeno e nariz aquilino; o or
gulho nacional e o amor da novidade.— Separa
ção de duas raças em Portugal, segundo os via
jantes estrangeiros.— Preponderância do genio
imitativo e pequena capacidade especulativa.—
Suecessão das raças históricas no solo hispânico,
e persistência dos seus caracteres, segundo a lei
physiologica de Müller.— Creação completa de
um typo nacional ou Mosarabe.— Causas da dif-
ferenciação entre Portugal e Hespanha, e da si
milaridade dos seus costumes 39 a 67
CAPITULO II
Rudimentos da actividade espoutauea
Restos da vida nomada nos costumes da Caça: O
furão.— Pedir com pelle de lobo.— A altenaria
nos romances populares.— Armadilhas aos pas-
saros nos brinquedos infantis.— Caça das cabras
montezas no Suajo.— Festas religiosas: Monta
ria do Porco Preto, e a Mesnie furieuse. Correr
o Montujo, na Vieira.— Costumes da Pésca: Ba
teis conduzidos por mulheres.— Rédes de arras-