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© 1987 Editionsdu Seniljcap.

1, 2, 4, 6, 81/ RegerChartier jcap-3, 5, 7)


Título original em francês: Lectureset Jecteursdana Ja Franced'Ancien Regime

© 2003 Editora UNESP

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Sindicato Nacional dos Editoresde Livros, R.J

C435L
Chartier, Roger. 1945
Leituras e leitores na França do Antigo Regime / Reger Chartier; tradução
Alvaro Lorencini. - São Paulo: Editora UNESF?
2004.

Tradução de: Lectures et lecteurs dana la France d'Ancien Régime


Bibliografia
ISBN85-7139-537-3
1. Livros e leitura - França - Século XVlll História. 2. Livros e leitura -
França - Século XVll - História. 3. Livros e leitura - França Século XVI -
História. 4. Escritores e leitores - França - História. 5. França - Vida
ntelectual Séculos XVl-XVlll. 1. Título.

04-1298. CDD 306.4880944


CDU 316.7:028(441

Editora afinada

AnD:R
Asse(:caçãoBrasileira dc
Asoclaclón dc Edltoríalcs UnIversItárIas
de Améríca Latina y el Caríbc EdiLoras Universitárias '€5=.."'
r

Preâmbulo

Este livro tem por objeto as clivagens culturai! que atraves-


sam a sociedade do Antigo Regime, ç11jgnçjgdistinções e tensões,
ÇUo;!jçéçgedivisões. Sua coerência construiu-se progressivamen-
te ao longo dos textos, cadanovo estudo obrigando a precisar
melhor os conceitos utilizados, a repensar conquistas erronea-
mente consideradas como denlnitivas, a abrir pesquisasdiferen-
tes. Qgpito textos aqui reunidos. dçvenlüpqrtanto. ser çonaplÊçq-
didos cor!!g passos suces$1ÜosLgÊ..ylnq:ç4minhada
aueu.PQycoa
modo, de um texto para
outro, aumentou a distância tomada em relação às certezase às
abordagens mais amplamente compartilhados, consideradas
como evidentes, por uma história cultural em busca de textos,
de crenças e de gestos aptos a caracterizar a cultura popular tal
como ela existia na sociedade entre a Idade Média e a Revolução. 'v
l
E.SQbrelUdQ.ÇQl\!u.g.e.mpíçgo.já.Élá:sskQda.pÇçi2[b noção ]
dç çultura popular que estelivro é construído. NessesúltimosA

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Reger Chartier

vinte anos, a caracterizaçãode uma cultura popular radicalmente


[ Leituras e leitores na França do Antigo Regime

to para os poderosos; daí a ênfasesobre o uso de textos letrados


diferente da cultura dos dominantes, homens da Igreja, daJustiça por leitores que não o são, ou ao contrário, e sobre as relações
e das Letras, tem sido incontestavelmente um dos objetivos mantidas pelos notáveisda classeou do sabercom uma cultura
maiores dos historiadores da sociedadetradicional. No funda- de início vivida como comum, depois designadacomo diferente.
mento desseprojeto estava a idéia de que essasduas culturas se Não é tão simples, portantos comqse pensava. sob11çpg11 di-
situavam de cada lado de uma fronteira, certamente móvel, mas .XÊlgeps.SQçl211-e.ç4]fg11çn.çêlçultulaip.
Mas existe algo mais. Todas
sempre localizável. A divisão entre erudito e popular foi então as formas e práticas nas quais os historiadores julgaram detectar
considerada um recorte primordial, e, se foram vivos os debates a cultura do povo, na suaradical originalidade, aparecemcomo
para saber se era lícito designar como "popular" esta ou aquela ligando elementos diversos, compósitos, misturados. E o que
forma cultural em determinado momento,estes jamais puseram ocorre com a religião "popular". Por um lado, é bem claro que a
em questão a possibilidade de identificar a cultura popular pela cultulê íolçléljça que Ihe serve de base foi profundamente traba-
descriçãode determinado número de corpus(textos, gestos, cren- lhada pela instituição eclesiástica, que não apenas regulamentou,
ças) . É assim que, na França do Antigo Regime, a cultura do povo depurou, censurou, mas também tentou impor à sociedadeintei-
foi dud:amel4e.jgçpçinl.çq(8clidanum conjunto de textos :- pre- ra a maneira como os clérigos pensavam e viviam a fé comum. A
sentes nos livros baratos,.Vendidos.po.rambulantes e conheci- religião da maioria foi, portanto, moldada por esseintenso esfor-
dos pelo nome genérico de "Biblioteca Azul" - e num conjunto ço pedagógico visando fazer cada um interiorizar as definições e
dg.çlgQçag.Weêlg$..gç2pêj!!grados..ço111Q.própl:i98.JJe..uma..=reli- as normas produzidas pela instituição eclesiástica. Mas, por outro
giãopopular:: Nos dois casos,o popular foi definido por suadi- lado, a imposição de novas exigências (detectáveis nas civilidades
ferença com aquilo que ele não é: a literatura erudita de um lado, cristãs ou nas artes de morrer) não ocorre sem compromissos
o catolicismo dos clérigos de outro. Nos dois casos,o inventário assumidos com os hábitos arraigados nem interpretações pró-
dos motivos supostamenteespecíficosda religião ou da cultura prias daqueles que supostamente devem respeitar proibições e
popular postulou uma determinação simples e unívoca das for- prescrições. A religião "popular" é, pois, ao mesmo tempo,
mas culturais. aculturada e aculturante: ela não é nem radicalmente distinta da
Ora, é justamente esse postulado, e a distinção popular/eru- ©:igl4q.@p.ÊIÉIÜoE.Reglg!!knçJllÊ.HggÊl3@
l?glElt
dito que o fundamenta, que parece necessário questionar. Çgn. C)ço!pyi;d4Bjbljç2çgça
4zd atesta semelhantesimbricações.
efeito, onde se acreditava descobrir correspondênciasestritas Com efeito, .o$ te#tQ$ que-ê çgDPÕem:.peOencenLê.lodos-os gê-
entre clivagens culturais e oposições sociais existem antes cir- nçlgs{ q.todas as épocasu2..!odasas liter4tutlas; todos, ou auase
culaçõesfluidas, práticas compartilhadas, diferençasindistintas. todos; !ãç!.dgl)riSenl.!eçraga Ê ç.ruçlÜa:.como os romances dq cava-
São numerosos os exemplos de usos "populares" de objetos, de .laria: QScontos de fadas..ç)j=;jlyros.dg..dçyTção. as obras oEálllç4$
idéias, de códigos não considerados como tais, e numerosos tam- Mgg.Êssçã.texçosuem nada popglgesz..gêo submçtjdos por seus
bém os materiais e as formas de uma cultura coletiva das quais editora!.g um trabalhqç4ç.aç41p.çgçêg.que.]:igg;.!gl11á=!olÜegüçip
a
as elites só se separam lentamente. Daí, neste livro, a atenção IÊilçuQE.qye.nãpesJljgBada faí:gjlialjza(4gs.com o livro. Reduzin-
dedicada a gênçros (as preparaçõespara a morte, os livros de civi- do, recortando, censurando, remanejando, os impressores im-
lidade) que sedirigem a todos e valem tanto para os pobres quan- põem formas inéditas, "populares", a textos que atravessam as-

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Reger Chartier

sim asfronteiras sociais,ganhandoaquelesa quem, originaria-


[ \
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

mente ser estabelecido.Então, demos preferência ao inventário


mente, não eram destinados. 11ç!!11gpçgcgs
títulos propostos aos
dos:m4tedêiâ.@Duns a toda uma gclçiççlêç!!:Bos
!iilpê s festivos.
mais modo!!o!.dos.]çÜotçs.n.ão IhçggãQab$ojutamente especí-
os códjg12EggÉjviligil4e.os imorF!:g!.gÊ grq#çlÊ.Êgçlügç4o©..e
à
nlcos,Has os livros nos quaiselesos.lêemnão sãoaquçlÊl;Wbli-
diversidadedas.p11áÊlçq:!.gyg..gg.yçü;411t=.lema..diversidade.
quejN
çéld9â.para9E.Qp!!lentos da çultu.rb
não se fecha apenasno contraste entre o aue sçliq.popular e o
Está aí, portanto, uma primeira razão para substituir a carac-
qne não o.ceei.a.
terização global, unitária, das formas culturais por uma apreen-
Os ensaios que compõem este livro nasceramtambém de
são mais complexa que tenta, para cada uma delas, descobrir os
cruzamentos e tensões que a constituem. Mas outra razão se uma !Sgy!!g2..j21gl118$ãoCom efeito, durante muito tempo,\.F
uma oposição colocou em forte contraste as bln31.gli!!t.S
acrescenta. Hoje, com efeito, as diferenças culturais das socieda-
gestuais de uma cultura dita tradicional, ou folclórica, e o aspecto
des antigas não podem mais ser organizadas apenaspela oposição
inovador da progressiva penetração do escrito, primeiro manus-
entre popular e erudito. A essadivisão macroscópica,que muitas
crito, depois impresso, dentro dessabase antigas.PêÍ].muitas
vezes definia o povo por ausência,como o conjunto de todos
vezes,o estudo sepê.radodessesdois modos de aauisição.! de
aqueles situados fora do mundo dos dominantes, deve certamen-
l;BTUiDbsão cultural: daí a separação entre uma abordagel11.ge
te ser preferido o inventário de clivagens múltiplas que atraves-
sam o corpo social. Pua ordenação obedece a vário! prj!!çlpios,
ag!!gpolggiahistórica,vig111ggÊnç9911111n!!!ociedg4çs
doAn-
!!go Regime formal.gÊ..çlprç?!!g.S..gg.comunicação que são as
r@Qpece$sariamente.sobrepostos,que.manifestam as diferenças
das sociedades anteriores à escrita. Ê t!!p;!.!!estória cultura!.pais
Q!].pposBçõelerl111g.bgmçnq
e mulhçresncjdadãos e camponeses,
çlásgca. inteirar.ÇDçg.Wncer!!!êdg.gaprç)gpçjo:-circulação e os
l reformados e:gitólicos, mastambém entre as.geraçõç.!.aspro6i!- usos dos textos. Assim formulado, o contraste não esclarece
\$éç!..pq.bêÜ.!ip!.Durante muito tempo, a história social aceitou
)
muito bem as situações entre os séculos XVI e XVlll quando,
Lma definição redutora do social, conftlndido com a simples hie-
quase sempre, se imbricam de maneira complexa média e práticas
rarquia das fortunas e das condições, esquecendo que outras dife-
renças, baseadasnas pertenças sexuais, territoriais ou religiosas, y l:Í múltiplas. Este livro se esforça em explorar essasimbricações,
1:? que podemos cçrtamçpte reduz! dalgumas figuras ftlndamen-
eram também plenamente sociais e suscetíveisde explicar a
tais. Alprimeira associa fala e escrita, tanto no caso de uma pala-
pluralidade daspráticas culturais, igual ou melhor que a oposição
dominantes/dominados.
Este livro tenta tirar proveito dessasprimeiras reflexões, em
particular evitando tanto quanto possível o emprego da noção
E $
.'
vra proferida ser fixada por escrito (íoi assim, por exemplo- quan- Á
do da redação dos cadernos de reclamações) como no caso inverso . 'R
de um texto p(Íje11.gpgçgçliggpglglgyqp.de seigll!:jçg11ç!...graças l V
'y

à mediação.deuma fda.que (2.BçlB voz alta. Pelassociabilidades r


de "cultura popular". Freqüentemente,com efeito, o recurso a
diversas da leitura em voz alta, existe nas sociedades antigas uma
essacategoria supõe resolvido de imediato o problema colocado
cultura do escrito mesmo entre aqueles que não sabem nem pro-
por todo estudo de um objeto ou de um gesto cultural, a saber,
como desenhar suas áreas e modalidades de uso. Pareceu-nos, duzir nem ler um texto. Compreendê-lasigninlcanão considerar
que o acesso ao texto escrito é sempre e em toda parte uma leitura
pois, que era de mau método utilizar uma noção que postula a
individual, silenciosa, solitária, que supõe necessariamente a alfa-
priori a validadode um recorte que, ao contrário, deveria justa-
betização.

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l
Roger Chartier Leituras e leitores na trança do Antigo Regime

Segunda figura: 4s relações tecidas entre os escritos e os ge!= prio Lugarda sua identiíi;caç39:Jaquç.não qS.trata.mqilde qua]i-
tos,ljadnge de constituir duas culturas separadas, elas se encon- 8çar
socialmente.çglWzlg.®Dados.ÇR
seuSonjunto
(porexemplo,
l ,L
tram, de fato, fortemente articuladas..Pgt.uln..!êdg..B!!!nerosos designando ÇQUQ.btçraturq.=pç)pu]êt=.os.]!Urç)$ji.®pressos. em
textos çêmpoli!!çqo.a4.pbr:!ç.SoJ!!114pl;urlge produzir, no es- TrQyes.eVendidos por:31nbu14ntgs)umas.de.ç.aracterizar.práticas l rl=.
tadaprática,.as condutas e comportamentos tidos como legítimos que.se.@.rapriam-diíerencialmente.ãos-ma:teEi
l 'k
pelas normas sociais ou religiosas. As preparações para a morte .numa:,$oçiedade.deteraiinada.
e os limos de civilidade, aqui estudados, são dois exemplos daque- A abordagem estatística que, no passado, pareceu dominar
les gêneros textuais e daqueles materiais impressos que visam a história cultural francesae que visava, antes de tudo, medir a
incorporar no indivíduo os gestosconformesàsexigênciasmun- desigual divisão social de objetos, de discursos, de aros colocados
danas e cristãs..Por.outroug çscyto.gç4:.po .prgprlg centro das em séries não poderia, portanto, ser suficiente. Supondo corres-
formas mais gçl1114ise oralizadas das cyltyras antigas. E o que pondências demasiado simples entre níveis sociais e horizontes
ocorre nos rituais õ'eqüentemente apoiados na presença física e culturais, apreendendo os pensamentos e as condutas em suas
na leitura efetiva de um texto central na cerimónia; é assim tam- expressões mais repetitivas e mais redutoras, semelhante aborda-
bém nas festas urbanas em que inscrições, bandeirolas e carta- gem perde o essencial, que é a maneira contrastada como os gru-
zes exibem em profusão emblemas e fórmulas..ERtlÊ-textos. e pos e os indivíduos fazem uso dos motivos ou das formas que
ge!!o$.a! rÊ!!çêçlsêgLpglçqqlgl.gtlçjtas e múltiplas, obrigando compartilham com outros. Sem renunciar às medidas e aosnú-
a considerar emtoda a sua diversidade a! práticas.do .escllitg meros, nem que seja apenaspara dar uma primeira referência
.Das palavras ao texto, do escrito aos gestos, do impresso à sobre o peso ou a distribuição dos materiais considerados - nesse
bla;.gãg.Êlxaxdgqnlls:gaggajetérjas.que est(;livro tçnt4 analisar caso, os pasquins e os livros de contos, as artes de morrer, os trata-
a Himde restituir em sua complexidade as formas.ga.expressão dos de civilidade -, os ensaios aquiapresentados plçlendçm antes l
ou da comunicação cultura!:;Para compreendê-las, uma noção nos de tudo reconstljly1l..pláliçg&..$Qçiai&.e
ullurais, tanto aquelasl
pareceu útil: a d# apropriação. Ela evita, inicialmente, identificar orooosçagpele)$.ÉÊX11Q$
quq.ditará.3 norma-a-segtiit - e que pode,l
os diferentes níçêii culturais a partir apenas da descrição dos dg$!g.qçlgçguida - a uanlo. Qqyglê$ quçLdiye(same4tç. contra-
objetos que lhes seriam considerados próprios. Mesmo nas socie- ([!iligElê!!!çptçç..$Ê.RP.o$$4n].dêg..©rOplêâÊegtjvas, das prescrições
dades do Antigo Regime, são numerosos aqueles que se encon- (ligo.4utQlidadçsudo$.
textos .parao imaginário.
tram compartilhados por diferentes grupos sociais - mas compar- Pensar as práticas culturais em relação de aprçlpuaçoes.diíÉ::.
tilhados sem que por isso seus usos sejam idênticos. Uma renciais autoriza também a não considerar como totalmente eÊca-
!gçjglggilJetrospectiva, que durante muito tempo fez da sua zes e radicalmente aculturantes os textos, as falasou os exemplos
distribuição desigualo critério principal da hierarquia cultural, que visam moldar os pensamentose as condutas da maioria.
deveentão ser substituída por uma abordagemdiferente, que Além dblgce$sê!.p11.âtlB.!
sãç)çÇj2dor.aãyÊ.uso! ç'!!fiçlepresent4-
Wççptre sua atenção nos empregos diíerencjêdos.na! aprop1lia- çõesque nãosão-absolutamente redutíleisàs vontades dos pro- \&
ções.plurais dos mesmosjben.s,das mesmasidéias, dos mesmos dutorç:$de dj$çu!$Qggdg DQrmaê:Portanto, o ato de leitura não l ''
gesta)!:Semelhante perspectiva não renuncia a identificar dife- pode de maneira nenhuma ser anulado no próprio texto, nem os
rÊpças«e.djferellçassoçlalmente arraigadas)..ml!. desloca o pró-. comportamentos vividos nas interdições e nos preceitos que pre-

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Roger Chartier Leituras e leitores na trança do Antigo Regime

tendem regulamenta-los. A aceitação dos modelos e das mensa- do Estado absolutista, centralizador e unificador, e da Igreja da
gens.propostas-opera:se--por-meio-dos arranjos,-dos- desvios..às Reforma católica, repressiva e aculturante, teriam sufocado ou
vezes das resistências, que manifestam.a singularidade de cada reprimido a exuberânciainventiva de uma antiga cultura do povo.
aproprjaçãa Daí várias precauções serem necessárias. Impondo disciplinas inéditas, inculcando submissões novas,
A primeira é de jêD:ais conftlndir o estudo do! Ratos com o ensinando novos modelos de comportamento, o Estado e a Igreja
gglgeglg!..gy;dos pensamentos qlDÇeles.sqpo$taEnenle plodu- teriam destruído nas suas raízes e nos seus equilíbrios antigos
;eu..Constatação evidente, mas freqüentemente esquecida, já uma maneira tradicional de ver e de viver o mundo. O livro que
que o historiador muitas vezes só pode trabalhar sobre discursos se vai ler retoma com grande prudência essaperiodização,do
em que são enunciadas condutas a imitar ou intrigas a decifrar. mesmo modo que o diagnóstico que a partir da desqualinlcação
Constatação que, também, leva a construir uma história das prá- da cultura popular conclui pelo seu desaparecimento.
ticas a partir das representações múltiplas (literárias, iconográ- Para isso existem várias razões. Inicialmente, é evidente que
ficas, normativas, autobiográficas etc.) que são dadas. Essa é a esseesquemaque, em torno de um momento de encruzilhada,
perspectiva que ftlndamenta aqui o estudo das práticas de leitura, opõe o esplendor e a miséria da cultura da maioria reitera para a
solitárias ou coletivas, particulares ou públicas, letradas ou inep- Idade Moderna uma oposição que outros historiadores reconhe-
tas, que dão um sentido aos textos e aos livros que os editores ceram para outras épocas.Foi assim, ao longo de todo o século
dos séculosXVI e XVlll propunham aosseusleitores. CoillpreeQ- Xll, quando a reordenação teológica, científica e 6ilosóâlca separa
deLQq.BxlQ$. Q1]e {nq$..êljo r.masca-Bib]ioteçê.4,zu] .exigeüpor cultura erudita e tradições folclóricas, censurando as práticas
.exemplo,. que,.sejam identi6lçadag. as idades .originais. da doravante consideradas supersticiosas ou heterodoxas, constituin-
..prática-dÊJçEgptrq.Q$ J$itgrçs. qye:BãQ,pertenciam ao oequeno do a cultura do povo como um objeto colocado à distância, sedutor
mun(b.dos virtuoses da leitura. Reconhecerestatisticamentea ou temível. Foi assim, antes e depois das cinco décadas que sepa-
desigual circulação dos diferentes tipos de impressos então não ram na França a guerra de 1870 da guerra de 19 14, consideradas a
basta; também não basta descrever tematicamente o catálogo da época privilegiada do desenclave, ou seja, do desraizamento das \

literatura supostamente "popular": é necessário igualmente culturas tradicionais, camponesase populares, em benefício de
apreender,tão precisamente quanto possível, apesardos limites uma cultura nacional e republicana, moderna e unificada. Foi assim
da documentação, de que modo os leitores antigos, diversamente, de um extremo ao outro de uma cultura de massacujos novos
encontravam e manejavam o escrito. meios de comunicação supostamente destruíram uma cultura an-
Segunda precaução: não admitir sem nuanças a periodização tiga, criativa, plural, livre. O destino historiogránlcoda cultura K
n
(;!éggiça:.g]4ç.3El4dOenlg.c.or»idçra .a Drjmejr.a.mQtadgdQ.séç!!LQ popldatl.PQgtpntçQ..é..BI.jÊDplç.g111bcada.rep111mlda:destruída,
.XV.ii como a éo(2çg;.çlÊ.UDg.mesura.pavor,.po114Q.fortemeqçç.Sm e ao mesrBg.lçQpo..gçlppllç..11Êpascer
de suas cinzas. Isso certa-
co1ltrasçç.l!!BISpgglllÊ.gy11gçllcy!!ura popular, viva, livre, profü- mente indica que o verdadeiro problema não é tanto de datar seu
sae a=épocadas disciplinas eclesiásticas e estatais, que a repri- irremediável desaparecimento mas de considerar, para cada épo-
111g111LÊ.3.!!!bglçlenb
Esse esquema pareceu às vezes pertinente ca, a maneira como se estabelecem as relações complexas entre
para explicar a çajetória cultural da Françado Antigo Regime: formas impostas, mais ou menos opressivas e imperativas, e iden-
depois de 1600 ou de meados do século xvll, as açõesconjugadas tidades afirmadas, mais ou menos expandidas ou refreadas.

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Reger Chartier
\b Leituras e leitores na França do Antigo Regime

Daí mais uma razão para não organizar toda a descrição das cado e não esteja submetida à viailânçjg;g!!.çç!!g!!!g:ÉlgggçQuem
\

culturas do Antigo Regime a partir da cesurado séculoXVII. Com <i pggçr sobre a!! pêbv4ase as coisas.Os programas das festas ou
efeito, a força de imposição de sentido dos modelos culturais não
os usos da civilidade são ilustrações exemplaresdessatensão
anula o espaçopróprio de sua recepção,que pode ser resistente, entre disciplinas superadas e liberdades forçadas, que uma oposi-
astuta, rebelde. A descriçãodas normas e dasdisciplinas, dos tex- çãodemasiado simples entre espontaneidadepopular e coerções
tos e das falas, graças aos quais a cultura contra-reformada e nãoconsegueesgotar.
absolutista pretendia submeter o povo, não signinlcaque este íoi Disciplina e invenção, mas tambémldÀgdrlçãge divujggçãQ-
realmente submetido, total e universalmente. Muito pelo con- Esse segundo par de noções solidárias é utilizado nos textos que
trário, é preçlso postulalquq existqpmg:.gistânc@ eilgq.g:.991lma vêm a seguir para propor uma compreensãoda circulaçãodos
e a viv.ência. a,injunção e a prática, o sentido ybadQ.EQ.seguido (2blelg;i.Ê.gf?lmc@çlgp
gllçurgjs aue não a reduz a uma simples
pl{)du;ido.-- uma distância em que podem insinuar-se reformu- difusão, geralmente pensada como descendo de cima para baixo
lações e desvios. Tanto quanto a cultura de massa de nosso tempo, nocorposocial:
a cultura imposta pelos poderes antigos não pode restringir as !B!!â.çgmplexos e mais dinâmico! g$evÊ!!].!Ê!.pensados, antes
identidades singularesou as práticas arraigadas,que Ihe eram .4e-tu doz.Como.lutqg..dg.Soncorrênci 4..em..guq.toda.djU4lgação,
renitentes. Q.qHe mudou. evidentemente, é a maneira como elas outorgada ou ç99ql4stada, produz ao mesm(2..tempo..a.procura
} pyçlÊllêmS3pllÊDIEse e afirmar-se, fazendo uso das formas novas
que deviam:dest1111ÍJas. Masreconheceressamutação'inã)ates:
de u!!!g:.pov:Ldjsçlnçãg. É o que ocorre na trajetória da civilidade
(entendida ao mesmo tempo como uma noção normativa e como
tável não implica quebrar as continuidades culturais que atra- o conjunto de comportamentos que ela prescreve),já que sua
vessam os três séculos da Idade Moderna, nem decidir que de- difusão na sociedade inteira, por apropriação ou imposição, a
pois de meados do século XVll não há mais lugar nenhum para desqualifica junto àqueles cuja identidade própria ela caracteri-
práticas e pensamentos diferentes daqueles que os membros da zava o que os leva a valorizar outros conceitos e outras manei-
Igreja, os servidores do Estado ou os autores de livros queriam ras. E.Wgçogç, talvez. com as prático.sde leitullê.cada vez
inculcar.
mais distintas umas das outras à medida que o impresso se tor-
É por isso que, em lugar do corte abrupto que supostamente ta um obieto mêh istintivo.
divide a história cultural da sociedadedo Antigo Regime, deu- ;nquanto a propriedade do objeto tinha durante muito tempo
se preferência aqui a modelos de compreensão que tentam ex- significado a diferença social por si mesma, são as maneiras de
plicar, em conjunto, continuidades e diferenças. O primeiro de- ler que se encontram progressivamente investidas dessa função,
les, mediante formas ou práticas diversas, põe em contraste hierarquizando os usos plurais de um mesmo material:.;êg.!çplg
disciplina e invenção, não considerando as duas categorias como sensações simp]istas.ç, $gliçii6lcadês (].&dç)nlÜnaçã(!socio!.buda
irredutíveis, mas manejando-asem conjunto a âlm de mostrar iiííüsão cultural devem então ser substituí.daspor.ymamançjta
que tQggdispositivo que visa criar 1leprelsãqgçoQtrQje. provoca de compreendê-las gue reconhece a reprl2gllK.êg..djl:!diferenças
táticas gue o amenizam ou o subvertem, e, inversamente,, que go interior dos próorios mecanbmQ$de.!!nKaçêQ-aucQncoi. reli
[!ãg.e3ble.produçãocultural livre e inédita que não.empregue clãs dentro dasdivisões, a constituição de novasdivã?õespçlgs
mateliailimpos:tos pç!! tradição),.pela autoridade.ou.pelo mer- próprios processos de divulaacão.

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l
h,. ly.áloca /oã .' ''b:'h=' ''õ -l,?
\:. ' . . . Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime
V / J
Sg Mais uma palavra sobre o próprio conceito de cultura, ma-
ma sociedade em que o impresso multiplicado convive com as
.Q'"~ nejado até agora neste texto como se sua denlnição fosse eviden-
formas tradicionais da comunicação e em que distinções novas
'<{ te e universal. Que dique claro então que ele não é entendido aqui
fraturam uma basecompartilhada. Que essaspráticas,por com(i'\
& no sentido que a história õ'ancesageralmente Ihe deu, designando
didade, sejam chamadas aqui e ali de "culturais", isso não deve
. 6. como cultural um domínio particular de produçõese de práti-
criar um equívoco: os ensaios aqui reunidos jamais as tomam co-
l$ . cas, supostamente distinto de outros níveis, do económico e do
./-:t social. A cultura não está acima ou ao lado das relações económi- mo separáveisdas outras formas sociais, nem pretendem quali- l
cas e sociais, e não existe prática auÊ.]llãg.!Ê.articule sobre as-re-
õicá-lase classiâlcá-lasapriori num domínio específicode práti- l
l presentações pelalgugjlplJDd vídeos constroelp.Q.jçQtidQ.de
cas,designadocomo cultural em relaçãoa outros que não o l
seriam.
$l../ iããêxistência !4B.?entido insçrjlgpgspílbyBli! pos gestolilBgs
As reflexões expostas nesta introdução são mais fruto dos
íitõt Ê por essa razão que os mecanismos quglÊgu!!g:.g.81BHo- estudos de casosa serem lidos do que o programa que, a priori,
riãihéiüõ'boéiãl:j8Sêil111#pras.que.determinam as relações entre
os teria guiado com toda a coerência. Pode ser então que, aqui
Õ' \ .õi'íiiãivíduos devem ser compreendiçlQ!como o resultado, sem-
ou ali, a análise concreta esqueça a precaução de método ou que
:}. l pre !gltável, semplÊ.conflituoso:dasrelacõesinstaurada!.gptre
traga de volta, sub-repticiamente, maneiras de pensar a cultura,
11 1 as percepções opostas do mundo socio.. Não sepodem. portanto,
popular ou não, que este Preâmbulo justamente questiona. Mas
B. l restringir apêhãi=ãsua 6lnalidadematerial ou a seusefeitos sociais
pareceu antes preferível assumir essasdiscordâncias em vez de
as práticas que organizam as atividades económicas e tecem os
eliminar as hesitações e os arrependimentos de uma atitude que,
7 vínculos entre os indivíduos: todas são ao mesmo tempo "cultu-
a cada etapa, esforçou-se por forjar novos instrumentos de com-
rais", já que traduzemem arosas maneirasplurais como os ho-
preensão a partir da insatisfação deixada pelos estudos anterior-
mSDgdããaiiigniÊcaçãQgg.glundo que é g.gÊIÜPórtaniõ:ii5aãliK-
mente concluídos. Daí duas maneiras de ler este livro. Ou aceitar
tória, quer se diga económica, social ou religiosa, exige o estudo
a ordem em que os diferentes ensaios estão dispostos, com os
dos sistemas de 11çpresentaçãoe dos aros que eles geram. Por isso, l
e!&âçulUtaU"' quatro primeiros analisando diferentes âgyras das posq11Cgsrela-
çõesentre textos e comportamei!!gg,.e os quatro últimos concen-
Descrever uma cultura seria então compreender a totalida- ' ra. Ou restabelecer a
de das relações que nela se encontram entrelaçadas, o conjunto
ordem cronológica em que essasoito contribuições foram escri-
das práticas que nela exprimem as representações do mundo, do
tas, não para reconstituir um itinerário pessoal, mas talvez por-
social ou do sagrada-Tarefa-impossível. Tareia ilusória, em todo
que essa tr4etória seguiu os principais deslocamentos da histó-
.}caso, p!!i$)egiSglge!:Sgl1121slí!!s4como a do Antigo Regime ria cultural na Françanessesúltimos dez anos- uma história
Ai;arda-lak a nosso ver, supõe uma aiiiiiãêdi:fêfêiíiê;'que foca:l
cultural que no passado era animada pela ambição de dispor os
lize a atenção sobre práticas oarticulares, objetos específicos, usosl
materiais culturais em números e em séries, e agora preocupada
Ldei:el:minados;.#tipráticas do esc
antesde tudo em compreender plg11glifãtiêaq Qualquer que seja
fala, cimentam as sociabilidades ou prescrevem comportamen-
o caminho escolhido, esperamos que o iêitõi não se arrependa
tos, atravessamtanto o foro privado como a praçapública, levam
do percurso.
a crer, a realizar bu a sonhar, nos pareceram uma boa entrada nu-

18
19
Reger Chartier

Agradecemos aoseditores que nos autorizaram a retomar os


textos aqui reunidos e que foram publicados nas obras e nas re-
vistas seguintes:

"Disciplines et invention: la fête". Díogêne,n.110, p.51-71,

Distinction et divulgation: la civilité et ses livres". l.exíconPoli


tísch-SozíaZer
Grundbegrílfeín Franhreích,sob a direção de R
ReicbardqeE. Schmitt, Munich-Vienne, Oldenbourg, HeR 4, p.l
44,\.986.)

Stratégies editoriales et lectures populaires (1530-1660)"


Martin, H.-J., Çlqrtier, R. (Dir.) Hístoíre de Z'édifíonjranç;pise. Pa-
ras: Promodis, \.982+. l: l.e livre conqlzérant.Du MoVeR.Ageau mílieu
du XVll' síêcZe,
p.'595Z603.

"Normes et conduits: les ans de mourir (1450-1 600)". ÁnnaZes


ESC, 1976).51-75.

"Du livre au lire: les pratiques citadines de I'imprimé (1660


1780) " . Martin, H.-J., (;113rtier, R. (Dir.) Hísfoíre de Z'édítíon.Êan-
çaise.Paris: PromodiQf 1984]\t. ]]: ].e ]ívre ü'iomphant. 1660-] 830
P.402-29. '''\.

Représentations et pratiques: lectureylíãysalbpes au XVlll'


siêcle". Díx-Huítíême Síêcle,n.18, p.45-64\.1986.

Les livres bleus". Martin, H.-J., Chartier, R. (Dir.) Hístoire deI'édí-


rlb;;j?5'qnçaise. Paras: Promodis, 1984. t. ]]:].e ]ívre fHomphant. ]660-
F1830.Õ.498-511.
\

Figures littéraires et expériences sociales: la littérature de la


gueusede #âij:i&a Bibliothêque bleue". Figuresde Zagueuseríe.Paris:
Montalba! 1982.'».1 1-106.
\l y
20
3
Estratégias editoriais e
leituras populares (1530-16601

Destinada a disciplinar as condutas, a encarnar-se em gestos


e dizeres, a civilidade, no entanto, é, de início, textos e livros.
Ela atesta que na França de entre os séculos XVI e XVlll, embora
a alfabetização seja ainda apenas minoritária e a palavra e a ima-
gem permaneçam essenciais, o escrito impresso já desempenha
um papel de primeira importância na circulação dos modelos cul-
turais. Semuitos não podem ler diretamente, semmediação,a
cultura da maioria é, contudo, profundamente penetrada pelo li-
vro, que impõe suas normas novas, mas que também autoriza
usos próprios, livres, autónomos. É por essarazão que escolhe-
mos dar atenção à sua difusão e a seus efeitos, cruzando a história
dos objetos e a dos usos e cona'ontando estratégias de editores e
táticas de leitores.
Neste primeiro estudo, limitado a montante pelos anos 1530,
que vêem as formas do livro se emancipar definitivamente das
do manuscrito, e a jusante pelos anos 1660, quando a política
monárqu ica de controle e de censura transtorno toda a economia
do impresso, a questão que se coloca é a da presença do livro, ou

91
Roger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

de outros impressos, mais humildes, nas camadas sociais que não Nessacidadede importância média (talvezvinte mil habi-
pertencem às elites da fortuna, do poder e da cultura. Nesse sé- tantes), o estudo minucioso de Albert Labarre permite, com efei-
culo amplamente recortado, será que é possível reconhecer uma to, saber exatamente quais são os possuidores de livros. É claro
familiaridade "popular" com o livro, oferecendo um mercado que elesconstituem uma minoria: entre 4.442 inventáriosapós
novo à atividade dos livreiros e impressores e transformando falecimento encontrados para os anos 1503-1576, somente 887
aquilo que se convencionou designar como a "cultura popular"? mencionam a presença de livros, ou seja, 20qo, um inventário
Da resposta depende evidentemente uma melhor apreciação, entre cinco. Nessa sociedademinoritária dos proprietários de
tanto das práticas e políticas editoriais como das clivagens ou das livros, mercadores e artesãos aparentemente não fazem má figu-
proximidades culturais na época da primeira modernidade. ra: os mercadores são 259 a ter livros e os artesãos ou pessoas
de ofício, 98, ou seja, respectivamente 37% e 14qodo conjunto
dos inventários com livros socialmente identificados. Ê claro en-
Os leitores "populares" tão que, desde o primeiro século de sua existência, o livro im-
presso (amplamente maioritário nos inventários de Amiens em
Será que os meios populares têm muito peso entre os pos- relação aos manuscritos) não foi o privilégio exclusivo apenas dos
suidores e os compradores de livros nos séculos XVI e XVll? dignitários, mas atingiu uma população de leitores modestos, si-
Responder a essa pergunta supõe, de início, definir a própria tuados na parte baixa da escala dos estados e das condições.
noção de "classespopulares". Nós a entenderemos aqui por au- Essa constatação, todavia, demanda algumas correções. Pri-
sência, considerando que são leitores "populares" todos aqueles meiramente, a porcentagemdos inventários com livros revela-
que não pertencem a nenhuma das três casacas(para retomar a se muito variável segundo as diferentes categorias sociais: ela
expressão de Daniel Roche) : a casaca negra, isto é, os clérigos; a atinge o ponto mais alto nas procissõesde medicina, com 94%
casaca curta, isto é, os nobres; a casaca longa, isto é, o numeroso (é bem verdade que o total dos inventários aqui é de apenas34),
e variado mundo dos oficiais, altos ou baixos, dos advogados e e permaneceelevadaentre os rogados (73% dos inventários com
procuradores, dos homens de letras, aos quais se devem acrescen- livros), os nobres (72%) e os clérigos (72% igualmente) . Segundo
os dados fornecidos por A. Labarre, pode-se estima-la em apenas
tar aquelesoutros eruditos, também portadores de veste, que são
11,6qo para os mercadores e artesãos, tomados em conjunto,: sem
os homens da medicina. Acham-se assim identificados como "po-
pulares" os camponeses, os operários e mestres de ofícios, os
mercadores (e também aqueles que estão afastados da mercado- 2 Ibidem, p.129. A porcentagemdos inventários com livros nas categorias
dos comerciantes e artesãos, considerados em conjunto, é calculada a partir
ria, â'eqüentemente designados como "burgueses"). Descobrir
da hipótese segundo a qual a parcela dos inventários diversos é a mesma
se esseshomens têm familiaridade com o impresso não é coisa para os inventários com livros e para o conjunto dos inventários(ou seja,
fácil, e ainda só é possível íazê-lo de maneira sistemática em al- 21%) - o que permite obter o total(não dado por Labarre) dos inventários
guns locais urbanos. O primeiro destes é Amiens no século XVI.i com ou sem livros para os negociantese artesãos.Se admitirmos que a
parcela dos negociantes e a dos artesãos são idênticas nos dois conjuntos
(de um lado, os inventários com livros, de outro, o total dos inventários),
l Labarre, A. l.e /ívre dons la víe amiénoise du XVT' slêcle. l;enseignement des ou seja 72,5% de inventários de negociantese 27,5% de inventários de arte-
inventaires ibrês décês 1503-1576.Paris-Louvam:Nauwelaerts, 1971. sãos,é possível propor uma porcentagemde inventários com livros para
cada uma das duas categorias sociais: 11,6qopara uma e outra.

92 93
q
Reger Chartier
Leiturase leitores na França do Antigo Regime

que apareçadiferença entre um e outro grupo. Dentro da popula- baixa de proprietários de livros. Essahierarquia deAmiens quan-
ção mercantil e artesanal, é só uma pequena minoria que tem to à posse do livro encontra aquela da capacidade de assinar, tal
então acesso à posse do livro. Esta última, por sua vez, não é igual,
como Natalie Zemon Davis estabeleceuem Lyon nos decênios
longe disso: os mercadores de Amiens, que constituem 37% dos 1560 e 1570: no topo, os artesãos de metais, do couro e da ves-
proprietários de livros socialmente identinlcáveis,só detêm 13% timenta, e, na parte mais baixa, os profissionais da construção,
dos livros possuídos, e os artesãos,que constituem 14% desses da alimentação e da terra.
proprietários de livros, só têm 3%. Em Paris, entre 1601 e 1670, a parcela dos mercadores e ar-
Vários dados atestam essa condição mediana das "bibliote-
tesãos no seio da população dos possuidores de livros é menor
cas" mais populares: enquanto a média dos livros possuídos é que em Amiens um século antes. Os inventários após falecimen-
de 37 para os togados, 33 para os médicos, 23 para os clérigos, to, dos quais Henri-JeanMartins estudou uma amostra de
20 para os nobres, ela é de apenasseis para os mercadores e de quatrocentos, manifestam isso: artesãose mercadores, considera-
apenasquatro para as pessoasde ofício. Entre essesúltimos, a dos em conjunto, fornecem dezesseis dos 187 inventários após
regra é a posse de um único livro (situação encontrada em 53qo falecimento com livros cujo proprietário é socialmente identifi-
dos inventários de artesãos que mencionam livros, mas também cável no período 1601-1641 (ou seja, 8,5%), e treze dos 175 do
em 44qodos mercadores). Inversamente, apenasdezesseismer- período 1642-1 670 (ou seja, 7,4%) .' Se acrescentarmos os "bur-
cadores e somente dois artesãos - um descarregador de vinhos e gueses de Paras",que são muitas vezes antigos mercadores apo-
um marceneiro - possuem mais de vinte livros. Embora o povo sentados, a parcela aumenta, mas permanece muito aquém do
urbano não esteja absolutamente ausente dos possuidores de li- que era nos inventários de Amiens, com 15,5% até 1641,e 13,7%
vros no século XVI, o exemplo de Amiens mostra claramente que em seguida. Poucos numerosos quanto à posse de livros, merca-
só uma oração restrita de seus membros se inscreve entre eles e dores e artesãos parisienses têm poucos cada um: entre 1601 e
que, para essaminoria, o livro permanece raro, possuído em nú- 1641, enquanto o módulo para o conjunto dos proprietários de
mero muito pequeno, quando não é apenasúnico. livros está entre 101 e quinhentos títulos, para eles está em
Ultima observação que o caso de Amiens autoriza: a distri- menos de 26 títulos (dez inventários entre dezesseis), e a cons-
buição desigual do livro no próprio interior do mundo dos arte- tatação se encontra idêntica no período seguinte em que sete "bi-
sãos e das pessoas de ofício. Entre os 98 que possuem livros, três
bliotecas" de mercadorese artesãosentre treze têm menos de
26 livros. São testemunhas desses possuidores de raros livros um
grupos parecemparticularmente desfavorecidos:os trabalhado-
res da terra que moram dentro dos muros, os profissionais da vidraceiro da PraçaMaubert cujo inventário em 1601 só men-
alimentação e os pedreiros (eles só dão respectivamente seis, seis ciona quatro livros, e em 1606 um mercador de tecidos que de-
e três inventários com livros) . Mais familiarizados com o impres- tém igualmente apenas quatro obras.'
Ultima sondagem urbana, que se tornou possível graças à pu-
so, aparecem aqueles que trabalham a madeira(quinze inventários
com livros), os metais (dez), o couro (dez), as peles e os tecidos blicação feita por H.-J. Martin do livro de contas do livreiro Jean
(dez) . Para os profissionais têxteis - âiandeiros e cardadores --,
aparentemente bem presentes (22 inventários com livros), seu 3 Martin, H.:J. ].iwe, poavoírs et sodété ã ParasaziXVT] síêc]e (J598-] 70]). Genêve
Droz, 1969. t.l, p.492.
peso na cidade deve corresponder a uma porcentagem bastante
4 Ibidem, t.l, p.516-7.

94 95
q
Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

Nicolas: Grenoble entre 1645 e 1668.sO que se pode captar aqui rios, elesrepresentam 15%dos encontradosentre os represen-
é o gesto da compra, a visita à loja para uma aquisição que será tantes de procissões.E as horas são freqüentemente o único tipo
paga mais tarde. Entre os 460 clientes de Nicolas socialmente de livro possuído: 124 mercadoresentre 259 (ou seja,48%) só
identiâlcáveis, mercadores e profissionais são apenas 49, ou seja, têm livros de horas - 9 1 têm um; 23, dois; sete, três; um, quatro;
l0,6%. Mas deve-se assinalar também que alguns, que não resi- e dois, cinco, que perfazem o total de sua "biblioteca" e 32
dem em Grenoble, só figuram como assinantesda Gazettee que artesãosentre 98 (ou seja, 33%) estão no mesmo caso- 28 só
outros sãona verdadelivreiros não declaradoscomo tais que possuem um; três possuem três; e um possui cinco. Ao lado das
revendem os livros encomendados a Nicolas. A clientela propria- horas, mas muito aquém pelo número, encontram-se Á legenda
mente de Grenoble do livreiro é composta, portanto, apenasde dourada (uma dúzia entre os mercadores, dez entre os artesãos) ,
22 mercadores e seteprofissionais. Afora quatro deles, que adqui- bíblias (sete e cinco, todas em francês ao que parece), breviários
rem mais de dez títulos, sãopequenos compradores: seis merca- e missais. O livro religioso é, portanto, amplamente dominante,
dores e seis artesãos só compram um livro, oito mercadores e o e deixa pouco lugar aos outros. único conjunto coerenteem face
último artesão, um ourives, somente dois ou três. Os comprado- dele: aquilo que os inventários designam como livros de "pour-
res excepcionais no mundo da mercadoria de Grenoble são M. traícfure", que são coletâneas de modelos, de padrões e de estam-
Brun (onze compras, duas das quais para seus filhos), o estala- pas utilizados no exercício da profissão. São encontrados entre
jadeiro Milleran (onze compras), um grande mercador protestan- dois pintores, dois iluminadores, dois vidreiros, um moveleiro,
te, ÉlizaJulien (dezoito compras) e o boticárioJacques Massard, um marceneiro,um pedreiro, um armeiro, três ourives.
também protestante, situado no limite entre o comércio e a medi- Como nos indicam os inventários de Amiens, as leituras dos
cina (21 compras). As contas de Grenoble confirmam, portanto, mercadores e artesãos se encontram limitadas por dois horizontes
os inventários parisienses: os mercadores, e mais ainda os arte- - o da promissãoe o da religião. É essa última, evidentemente,
sãos, no século XVll, são compradores raros que compram pouco que cria as maiores demandas, em particular em livros de liturgia.
Reunindo os textos de ofícios e de fragmentos da Escritura, os
livros de horas sãoo gênero maior dessaliteratura devota im-
Livros possuídos e comprados: pressa em quantidades enormes, como atestam os fundos dos
o primado do religioso livreiros parisienses:em 1528, Loys Royer tem em estoque
98.529livros de horas entre um total de IO1.860livros, e, em
Mas o que eles compram? Entre os mercadores e artesãos de 1545,Guillaume Godard possui 148.717 num ftlndo que contém
Amiens, no século XVI, os livros possuídos são na maioria reli-
263.696livros, todos litúrgicos. O livro de horas constitui, por-
giosos, antes de tudo livros de horas. Enquanto essesúltimos tanto, um mercadoftlndamental para a ediçãodo séculoxw, já
constituem 6% do número total de livros contidos nos inventá-
que ele possui, ao mesmo tempo, uma clientela de dignitários e
uma clientela "popular" para a qual ele é a compra mais habitual
(e õ'eqüentemente a única) . Seus preços, como revelam as toma-
5 Martin, H.-J., Lecocq, M. Livreset iecteursâ Grenoble.Lesregistres du libraire
Nicolas (1615-1668). Genêve:Droz, 1977.t.l, p.137-265, "Les cliente des das de Amiens, manifestam bem esse suporte social duplo: 43qo
Nicolas' das horas valem menos de dezoito níqueis, 42% entre uma e

96 97
Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

quatro libras e 15% entre quatro e vinte libras. Deve-seacres- metadedos livros que eles compram sãodestinados ou a orientar
centar que essespreços de inventários, que se referem mais sua vida religiosa ou a educar seus âllhos. A clientela "popular
freqüentemente a livros encadernados,não revelam o preço de nos registros de Nicolas não aparece, portanto, como desejosa
compra das horas em brochura, que geralmente não ultrapassam de livros específicos,que seriam impressos para ela (não há, por
um níquel, o que faz dele o livro mais barato, totalmente ao al- exemplo,nenhum mercadorou artesãoentre os 28 adquirentes
cance dos leitores mais carentes.' de almanaques), mas, como no século XVI para o livro de horas,
Em Grenoble, em meadosdo séculoXVll, nas compras feitas ela constitui uma parte do mercado de livros de grande saída,
deJean Nicolas pelos 22 mercadores e os sete artesãos da cidade livros de devoção ou livros escolares.
que õ'eqüentavam sua livraria, as obras religiosas predominam Os inventários apósfalecimento de Amiens ou os livros de
claramente, constituindo um terço dos livros que lhes são debita- contas de Grenoble permitem, portanto, diversas constatações.
dos (42 títulos entre 124) - o que é mais do que a parcela do Inicialmente, eles confirmam que os leitores "populares" cons-
livro religioso no total das vendas de Nicolas que é de 23%. As tituem apenasuma minoria no público dos livros, e uma mino-
bíblias. os livros de liturgia (horas, breviários, ofícios) , os livros ria que mais õ'eqüentemente se limita a comprar ou possuir so-
de devoção (por exemplo Ás consolações
da alma.Pei, do pastor mente alguns títulos. Essesdocumentos, aliás, não manifestam
Drelincourt) , a literatura apologética são as aquisições mais fre- expectativas particulares desses leitores mais humildes na esca-
qüentes dessesleitores de classe modesta, sejam eles católicos la das condições: eles não lêem tudo o que lêem os dignitários,
sejam reformados. Vêm em seguida, com 25 títulos, os livros ou longe disso, mas os livros que eles possuem ou adquirem não
folhos de aula, comprados pelas crianças de colégio: os abc,os são suas leituras próprias. Obras litúrgicas, livros de devoção,
livros de gramática (entre os quais, Despautêre) , os clássicos lati- livros de escola, e até mesmo os livros de "portraícfure" (catego-
nos. Encontramos aqui uma confirmação do recrutamento social- ria na qual se encontram também os livros ilustrados de Alberti
mente aberto dos colégios do Antigo Regime, que não acolhem ou de Holbein) são os produtos compartilhados da atividade de
somente os filhos de dignitários, mas também os dos mercadores imprimir. Pareceentão, nessa primeira abordagem, que não existe
- pode-se,todavia, notar que nenhum artesão figura entre os público "popular" específico para o livro dos séculosXVI e XVII.
compradores de livros escolares que não sejam os abc.Afora essas Daí uma relação com o impresso que parece idêntica em todas
duas grandes posições, as compras se espalham ao sabor dos gos- ascamadas sociais; daí, também, a ausência de um mercado pró-
tos e dos interesses, cedendo lugar, mas um lugar limitado, à li- prio para os editores que se limitariam a imprimir em grande
teratura do século (Guez de Balzac,Corneille, os romances), à quantidade e a preços baixos os textos que são mais voluntaria-
história (com quatro compradores para a História do condestável mente comprados por mercadores e artesãos, sem que, entretan-
de LesdíguÍêres,
de Louis Videl), aos avulsos e às mazarinadas, to, lhes sejam particulares.
panfletos contra o cardealMazarin. Seascuriosidades dos merca- Antes de serem admitidas, tais conclusões suscitam, todavia,
dores e artesãos de Grenoble no século XVll parecem mais am- duas interrogações. Por um lado, será que a relação popular com
plas que as de seus confrades de Amien cem anos antes, mais da o livro pode limitar-se à posse dele, tal como constata o inventá-
rio dos bens ou como revela o registro do livreiro? Por outro, será
\
6 Cf. Labarre, l.e !ivre dons la vie amíétzoísedu XVI' síêcle,op. cit« P.1 64-77. que se deve identificar relação com a "cultura impressa" apenas

98 99
q
Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

mediante a posse do livro, vendido pelo livreiro ou avaliado pe- mais humildes, mesmo os analfabetos que só podem receber o
los oficiais de justiça e os tabeliães?Nos séculosXVI e XVll, cer- escrito por intermédio de uma fala, a Reforma se apoia nesses
tamente mais que antes, a relaçãocom o escrito não implica ne- conventículos em que o canto dos salmos e a leitura em voz alta
cessariamenteuma leitura individual, a leitura não implica do Evangelho misturam na fé aqueles que lêem e os que ouvem,
necessariamente a posse e a convivência com o impresso não im-
os que ensinam e os que aprendem. Tais assembléiasse alimen-
plica necessariamenteo livro. Sãoessasconstatações, das quais
tam no comércio clandestino de livros impressos em Genebra, e
depende boa parte da atividade editorial, que precisamos agora introduzidos no reino por ambulantes e merceeiros comoJehan
fundamentar.
Beaumaistre,Hector Bartholomé ou Pierre Bonnet, que figuram
entre os varejistas de Laurent de Normandie, livreiro de Genebra
Na cidade: os manuseios coletivos do impresso que lhes fornece bíblias, salmos e opúsculos de Calvino.7
Reunindo homens e mulheres, letrados e analfabetos, fiéis
Na população urbana, o uso do escrito pode às vezes ser cole- de pro6lssõese de bairros diferentes, os cultos protestantes, tal
tivo ou medrado por uma leitura em voz alta. Três lugares sociais, como se pode perceber, apesar do segredo que os cerca, nas cida-
que correspondem a três experiênciasfundamentais da existên- desatingidas pela Reforma, são um dos lugares em que se opera,
cia popular, parecem privilegiados para essemanuseio do livro. em comum, a aprendizagem do livro. Ao mesmo tempo, eles ma-
Existe primeiro a oficina ou loja onde os livros das técnicas fami- nifestam a coerência já realizada da comunidade e atraem para a
liares podem ser consultados pelo mestre e seus meninos e orien- leitura do texto sagrado aqueles ou aquelas que ainda estão afas-
tar os gestosdo trabalho. Nos inventários de Amiens, eles são tados.' Nas cidadesde Flandre e do Hainaut, são essasassem-
muitas vezesanónimos: "um livro concernenteao ofício de bléias que preparam a fogueira iconoclasta do verão de 1566: em
cardador onde estão estampados vários padrões", "um livro onde casasparticulares, alojamentos vazios ou celeiros situados às
há vários modelos que servem ao ofício de marceneiro", "oito portas da cidade, os fiéis do novo culto cantam os salmos e lêem
volumes onde estão estampadosvários modelos"; e em Grenoble, o Evangelho. Os livros lhes vêm dos ambulantes que se abaste-
Nicolas vende uma .Aritméticaao negociante de cerâmica Rose e cem em Anvers; como em Lessines,pequenacidade situada a
uma Praxismédicaao boticário Massard.No século XVll, essas leste de Tournai, onde uma testemunha assinala a propósito das
coletâneas técnicas, geralmente atribuídas a mestres no ofício, assembléias reformadas; "Não se fazia distribuição de livros ... a
constituem uma parcela da atividade editorial dos impressores: maioria tinha os referidos salmos, comprados em parte nesta
como prova, entre outros, Á .Fetílztroduçãoda arte deserralheiroe cidade, à qual vinha algumas vezes de Anvers um confrade ven-
O teatro da arte do carpí7zteíro,redigidos por Mathurin Jousse,
"negociante serralheiro na cidade de La Flêche", e publicados em
7 Schlaepfer, H.-L. Laurent de Normandie. In: .4spects de la propagando relí8eu-
1627 por um impressor da cidade, Georges Grivaud. se.Genêve; Droz, 1957. p.176-230.
Segundoquadro do uso coletivo do impresso: as assembléias 8
Davis, N. Z. The Protestant Printing Workers ofLyons in 1551. In: ,4spects
religiosas realizadas nas cidades, e às vezestambém no campo, de la propagando relegeuse, op. cit« p.247-57; e l.es cu/jures du peuple. Rituels,

pelos prosélitos protestantes. Como ela visa engajar mesmo os savoirs et résistances au XVI' siêcle. Paria: Aubier-Montaigne, 1979. "Les
hugenotes" e "llimprimé et le peuple", p.1 13-58 e 308-65.

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Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

dendo semelhantes livros em pleno mercado" .9Lido e comentado


os cortejos de carnaval nas cidades languedoquianas, e que consti-
pelos ministros e pregadores, possuído e manuseado pelos 6léis, tuem incontestavelmenteuma forma de aculturaçãoao escrito,
o texto impresso impregna toda a vida religiosa das comunidades elaborado e deciõ'ado em comum, expresso por aqueles que o
protestantes, em que o retorno à verdadeira fé não se separa da lêem para aqueles que não lêem, e por isso então mais familiar.
entrada do escrito impresso na civilização.
Nas confrarias jocosas, enfim, de procissõesou de bairros,
são elaboradas, postas em circulação e lidas peças impressas que No campo, as vigílias sem o livro
acompanham os gestos festivos.:' Em Lyon, a confraria jocosa
dos colegas impressores, chamada da Coquille, se encarrega da Na área rural (para a qual não dispomos de pesquisas siste-
confecção desse material impresso. Por um lado, ela participa das máticas comparáveis às que foram feitas sobre os inventários de
cavalgadas do asno, organizadas pelas abadias de Maugouvert, Amiens) , o acesso coletivo ao livro impresso pode conhecer duas
que são associações reunidas com base na vizinhança e no bairro modalidades: uma comunitária, outra senhorial. Seráque a vigí-
e dedicadas a zombar dos maridos espancados.Os confrades da lia camponesaconstitui uma daquelas ocasiõesem que um alfa-
Coquille tomam lugar no desfile exibindo "alguns cartazes, im- betizado lê, o que signi6lca que divide, comenta e às vezes tra-
pressos,em latim e em francês", sobre os quais distribuem co- duz um livreto trazido por um ambulante até o vilarejo? Talvez,
mentários escritos em coletâneasimpressas, por exemplo a Cole- mas certamente não se deve exagerar,para os séculos XVI e XVll
[âneafeita c071formea cavalgada do asnofeita na cidade de Lyon e pelo menos, o papel dessas assembléias camponesas na difusão,
começada no primeiro día do mês de setembro de ] 566 ou Coletânea da mesmo mediata, do impresso. As atestaçõesdas vigílias campo-
cava[gadajeíta na cidade de L#on, em ] 7 de novembrode ] 578. nesas,condenadas pelos estatutos sinodais e pelas recomenda-
Por outro, durante a época de carnaval, a confrariajocosa dos çõeseclesiásticas, são afinal bastante raras e tardias, e fazem alu-
sãoajogos, dançasou trabalhos feitos em comum, e não à leitura
operários impressores edita pequenos livretos, Os divertidos orç;ci-
mentos dos cúmplices do senhor da CoquílZe,que fixam o texto dos de livros; aliás, as menções encontradas em alguns autores lite-
diálogos paródicos supostamente trocados pelos três cúmplices rários põem em cenasobretudo "dignitários" camponeses.::E
do dignitário festeiro na frente do cortejo do Domingo Gordo. Em assim que Noél du rali, nos Discursosrústicosdemesa'el.éonl,aduZP,
Lyon, textos como esses,"impressos pelo Senhor da Coquille", fo- C/zampanhês(Lyon, 1548), descreve uma vigília realizada na resi-
dência de Robin Chevet, onde o dono da casa canta e conta:
ram conservadospara os anos de 1558, 1581, 1584, 1589, 1593,
1594 el 601 . Temos aí todo um material impresso, semelhante àque-
le que acompanha em Rouen o triunfo da Abadia, dos Cretinos ou
11
Cf. dois artigos fundamentaiscom os quais exprimimos nossa concordân
cia: Martin, H.-J. Culture écrite et culture orale, culture savanteet culture
populaire dans la Franced'Ancien Régime.JournaldesSavanas,
jul.-déc. 1975.
9 Citado por Deyon, S., Lottin, A. ].es "Casseurs" de ]'été ]566. 1Jiconoclasme
p.225-82; e Marais, J.-L. Littérature et culture "populaire" aux XVll' et XVIII.
dans le Nord. Pauis;Hachette, 1981. p.19-20.
siêcles. Réponses et questions. .4nnalesde Bretagne et desPausde I'Ouest, n. l,
10 Davas, l,es culfures du petzple,op. cit., "La rêgle à I'envers", p 159-209; e En-
p.65-105. 1980, que modificam um pouco a perspectiva de Mandou, R. De
tréesroyalese! Fêtespopulairesà L?onduXV' aüXWI/' síêcZe.
Lyon: Bibliothêque [a cu]ture popu]aíre am Xy7/' et XVTJI' siêc]es.La Bibliothêque bleue de Troyes.
de la Ville de Lyon, 1970. p.46-59. Paras;Stock, 1964 (reed. Flammarion, 1975).

102 103
Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

À vontade depois de jantar, a barriga estufada como um tambo-


No seu primeiro capítulo, Du Fail destaca quatro leitores de
rim, bêbado como um gamba, estendia-se no chão com as costas
vilarejo, que são os narradores de "discursos rústicos", mas eles
voltadas para o fogo. trilhando graciosamente o cânhamo, ou lus-
trando suas botas da moda em voga (porque o homem de bem não participam de uma vigília; ao contrário, mantêm-se afastados,
geralmente seguia todas as modas), cantando melodiosamente, "sob um grande carvalho", durante uma festa campestre. Lá estão
como honestamente sabia fazer, alguma canção nova. Jouanne, sua Anselme, "um dos ricaços desta aldeia, bom Lavrador, e muito
mulher, do outro lado, Ihe respondia da mesma maneira. O resto bom escrivão para a região da planície"; Pasquier de cuja cintura
da família trabalhando cada um no seu ofício, uns amaciando as pende uma "grande sacola" onde estão Óculos e dois velhos
correias de seus chicotes, outros aHlandoos dentes de um rastelo,
livretos de horas; mestre Huguet, antigo mestre-escolaque se
queimando gravetos para soldar (possivelmente) o eixo da charrete, tornou "bom vinhateiro", mas que "não pode deixar de vir às fes-
rompido por um peso muito grande, ou faziam uma vara de açoite
tas sem nos trazer seus velhos livros e ler para nós até dizer che-
de nespereira. E assim ocupados em diversas tarefas, o bom homem
ga, como um Calendário dos Pastores, as fábulas de Esopo, O ro-
Robin (depois de impor silêncio) começavaum belo conto do tempo
em que os bichos falavam (não faz duas horas), como a Raposa manceda rosa", e enfim Lubin, "outro ricaço", que por cima do
roubava o peixe dos peixeiros; como fazia as Lavadeiras bater no ombro de mestre Huguet olha "no seu livro" .'' Nenhuma alusão
Lobo, quandoaprendiaa pescar;como o Cão e o Gato iam para aqui à vigília camponesa, mas um testemunho sobre a circulação
bem longe; da Gralha, que cantando perdia seu queijo; da Melusine; do livro e a prática da leitura em voz alta entre aqueles que não
do Lobisomem, do couro de Asna; das Fadas, e que muitas vezes pertencem à comunidade dos camponeses.As menções de leitu-
falava com elas familiarmente, até mesmo à tarde passando pelo ras feitas durante as vigílias camponesassão,portanto, bastante
caminho profundo, e ele as via dançar em rodopios perto da fonte raras, se não inexistentes, para o século que separao reinado de
da Sorveira, ao som de uma cornucópia coberta de couro vermelho.
Henrique ll do de Luís xlv, o que faz duvidar muito que elas sejam
Note-se que nada indica que Robin está lendo; talvez ele te- um suporte para a possível penetração do impresso nos campos
nha encontrado em algum livro algumas das histórias que conta -
ainda que elas pertençam à tradição oral -, mas está claro que à
sua mulher e à família ele as conta de cor: A leitura senhorial
E se alguém porventura adormecesse,como acontecia quando
A relaçãoentre o senhor e seuscamponeses,por suavez, por
ele contava essasgrandes histórias (das quais muitas vezes fui
acasoseria um suporte? Aqui temos um testemunho direto, de
ouvinte), mestre Robin pegavaum canudinho acesonuma ponta e
Gilles Picot, senhor de Gouberville. Em 6 de fevereiro de 1554,
soprava pela outra no nariz de quem dormia, fazendo sinal com a
mão para que o acordassem. Então dizia: "Que diabos Tive tanto ele escreve:"Não pára de chover, [meus homens] foram para os
trabalho em aprendê-las,quebra a cabeçaaqui pensando fazer bem campos, mas a chuva os rechaçou. No solar, durante todo o se-
e ainda não se dignam escutar-me"." rão, nós lemos no Ámcdís de jaula como ele venceu Dardan".i4

12 Noêl du Fail. Propôsrustiques de maistre Léon Ladu16i,Champenois.In:


13 Ibidem,p.6078.
Cantezzrs
j'ançp s du XVT' siêçle.Paras;Gallimard, 1965. p.620-1. ("Bib. de la 14 Un gire de Goubervílle, gentílhomme campagnard du Cotenün de 1553 à 1562. Pu-
Pléiade")
blicadopelo abadeA. Tollemer,precedidode uma introdução por E. Le Roy

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q
Reger Chartier
Leituras e leitores na Fiança do Antigo Regime

Sabemos que o fidalgo normando está lendo; e que entre ele e difusão do impresso, ela revela também sua raridade. Enquanto
seus amigos circulam livros, doados, emprestados ou trocados: na cidade numerosas e diversas parecem as oportunidades da-
assim, em novembro de 1554, "um texto de instituição, onde das aos que não sabem ler para encontrar o impresso, certamente
estava inscrita uma roda pitagórica" trata-se das InstÍtufas de não ocorre o mesmo no campo, onde a audição do livro durante
Justiniano - Ihe é dado pelo pároco de Beaunicet,e no mesmo avigília, sejao que for que setenha dito, é um momento excep-
mês "estando em Vallongnes eu devolvo ao MestreJehan Bonnet cional.
o Prontuário das Medalhas que ele me tinha emprestado no dia
anterior; e ele me entregou as lições de Pierre Messye, que eu
deixo ao meu anâltrião para ceder a M. de Hémesvez" - trata-se O impresso na cidade: imagens e textos
aqui de uma obra do autor espanhol Mexia, traduzido em francês
por Claude Gruget. Entre a leitura individual do livro, ato íntimo do foro privado,
Em 1560, trazem-lhe de Bayeux "um almanaque de Nostra- e a simples audição do escrito, tal como a do sermão, por
damus", cuja edição anterior é mencionada em 1558, em 29 de exemplo, existe então, nas cidades pelo menos, uma outra relação
outubro, dia em que Gouberville declara: "Mandei começar a se- com o impresso. Nas oficinas, nas igrejas dissidentes, nas confra-
mear o trigo na minha terra de Haute.Verte. Nostradamus dizia rias festivas, o escrito tipográfico está próximo até mesmo da-
no seu almanaque que era bom trabalhar nesse dia". Em novem- queles que não podem lê-lo. Manuseado em comum, ensinado
bro de 1562, o tenente Franqueterre Ihe entrega "um prognósti- por uns e deci6'ado por outros, proftlndamente integrado na vida
co de Nostradamus, e eu Ihe paguei a natura que ele me havia comunitária, o impresso marca a cultura citadina da maioria.
feito", testemunho ao mesmo tempo da prudência de Gouberville Dessemodo, ele cria um público - portanto um mercado- mais
e do preço atribuído ao livro, objeto ainda raro. amplo que o dos simples alfabetizados, mais amplo também que
A lista dessasleituras, devem-seacrescentartambém livros o dos simples leitores de livros. Com efeito, entre 1530 e 1660,
de medicina e de cirurgia, O prínc@ede Maquiavel e o Quarto livro para a maioria das populações urbanas, a relação com o escrito
de Rabelais que o pároco de Cherbourg, de passagem por Mesnil- não é uma relação com os livros, ou pelo menos com aqueles li-
au.Vd, promete emprestar-lhe. Essespoucos livros, notados por- vros bastante nobres para serem conservados uma vida inteira e
que geralmente foram emprestados ou tomados de empréstimo, estimados como um património.
parecem alimentar as leituras pessoais de Gouberville. A alusão A "aculturaçãotipográfica" do povo urbanoconheceoutros
ao Ámadis, lido em voz alta numa noite de chuva, é a única en- suportes, mais modestos e mais efémeros. Em todas as formas
contrada em todo o diário, o que é pouco para um texto que fala desse material, que constitui uma parte importante da atividade
das ocupaçõescotidianas de cinco mil jornadas. Se a crónica de de imprimir, texto e imagem estão associados,mas em arranjos
Gouberville atestaa realidadeda leitura senhorial, meio oral da e proporções muito diversas. Da imagem solta ao cartaz, do cartaz
ao pasquim, do pasquim ao livro azul, as diferenças não são niti-
damentedistintas, mas,ao contrário, multiplicam-se as formas
Ladurie, Paras-La Haye; Mouton, 1972. p.203-1 1; e Foisil, M. l,e Site de Gou-
de transição de uma produção para outra. Seja,para começar,o
bervíl!e. Un gentíihomme rtormartd au XVT' síêcle.Paras: Aubier-Montaigne, 1981
p.80-1 e 231-4. gênero tipogránlco aparentemente mais distante da cultura escri-

106 107
Roger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

ta: a imagem solta. Há aqui, com efeito, um material onde o es- mandam rezar uma Missa cantada, com Diácono e Sub-Diácono e
crito impresso está sempre presente, dando títulos, legendas e também Cabido, com órgãos e carrilhões, pinturas de tapeçarias
comentários. O exemplo das imagens de confrarias, sejam elas dentro e fora da Igreja comasimagensda confrariaonde está marca-
de profissão sejam de devoção, mostra isso claramente.:s do que o rei Robert, 37' Rei de França,é fundador, e as Bulasde
JnciuZgêncías
que foram concedidasno mês de Março do ano 1665
pelo PapaAlexandre VII. (grifo nosso)
As imagens soltas

Sempre impressas em formato grande, essas peças reúnem Propondo preces e fórmulas piedosas, indicando os nomes
imagem e texto: em algumas, o motivo gravado constitui o essen- dos chefes e dos tesoureiros, dando uma representaçãofigurada
cial, em outras, por exemplo os cartazesde perdões e de indulgên- e sensível do próprio objeto da devoção comunitária (o Santíssi-
cias ou as listas de congregados, é o escrito impresso. Mas, nestas mo Sacramento,o Rosário, o santo padroeiro), essasimagens
últimas, uma vinheta geralmenteacompanhao texto, enquanto alimentam a piedade dos que lêem e dos que não lêem, e podemos
as grandes imagens cedem espaço e um espaço que parece cres- pensar que sua presença familiar, no seio do cotidiano, atrai pouco
cente - ao escrito: titulariedade da confraria e indicação da igrej a a pouco para o escrito todos aqueles aos quais as pequenas escolas
urbanas não ensinaram o abc.
em que está instalada, oração em honra do santo padroeiro, histó-
rico da confraria ou seu estatuto. Como indica uma imagem de Uma parte dessa produção é impressa a partir de pranchas
uma confraria do Santíssimo Sacramento, essematerial é sempre que são de propriedade das confrarias; a confraria dos compa-
suscetível a uma dupla "leitura": "Quem mantiver este escrito nheiros carpinteiros de Saint-Nicolas-des-Champs, já encontra-
em lugar onde possa ser lido e quem o ler - não sabendo ler, fará da, possui, por exemplo, "duas pranchas de cobre que servem
a reverência - ganhará Indulgência plenária" (BN, Est, Re 19). para imprimir as Imagens que são dadas à confraria" e "uma gran-
Semelhantes imagens são ao mesmo tempo de uso doméstico e de prancha de cobre que foi feita em 1 660". Mas, na maioria das
público. vezes,os conítades recorrem aos imagineiros, gravadorese im-
Todo ano, no momento em que contribuem para a confraria, pressores de estampas. Em Paras,até o fim do século XVI, os ate
os congregados recebem uma, que colam na parede de seu quarto liês da Rua Montrogueil controlam o mercado, produzindo gran-
ou de sua oficina. Alguns estatutos fazem disso uma obrigação; des imagens murais talhadas em madeira, passadasem seguida
por exemplo, os da Confraria do Santíssimo Sacramento de Rueil para os gravadores de relevo das ruas Saint-Jacques e Saint-Jean-
que esclarecem que os confrades "terão em suas casasuma ima- de-Latran, que trabalham também para as edições de livros ilus-
trados. As encomendas de cona'árias constituem evidentemente
gem que representará este mistério". Por ocasião da festa do santo
padroeiro, as imagens são distribuídas na cidade e afixadas na apenasuma parte da atividade dessesimagineiros, ocupada a
igreja: assim os companheiros carpinteiros, reunidos na Cona'aria maior parte do tempo pela produção de imagens religiosas.
de SãoJoséinstalada na paróquia de Saint-Nicolas-des-Champs, Segundo as sondagens feitas sobre as estampas conservadas
na Bibliothêque Nationale, a parte do religioso seria de 97% das
gravuras em madeira no âim do século XV, de 80%ono âim do sé-
15 Gaston, J. l.es jmages des conÊéríesparísíennes avant la RévoZutíon. Paras: Société
culo XVI, e de quase50% no início do séculoXVll, no corpusdos
d'lconographie (2' année 1909), 1910,em particular a introdução, p.XV-L:VI.

108 109
Rogar Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

ateliês da Rua Saint-Jacques.:õEssaprodução de imagens religio- ticos (por exemplo, o do caldeirão emborcado), essasimagens
sas, que se deve considerar como uma forma de "edição", como políticas são de ampla circulação, brandidas nas procissões, "gri-
atesta o descontentamento dos livreiros editores diante da pro- tadas, apregoadase vendidas publicamente em Paras,em todos
liferação de estampas com textos, apresentavárias característi- os recantos e encruzilhadas da cidade", como escrevePierre de
cas marcantes. Por um lado, sua importância: cada prancha per- IIEstoile no frontispício de sua coletânea.
mite com efeito tiragens múltiplas, e durante um longo lapso de Henrique IV soubecaptar a importância da imagem impressa:
tempo. As imagens conservadas só representam então uma parte por um lado, em 1594,-eleordena que todas as peças referentes
ínfima das que circularam, coladas em paredes, em dosséis de à Liga sejam queimadas; por outro, manda gravar todo um con-
cama ou em cima da lareira, fechadasnum cofrinho ou numa ga- junto de imagens de propaganda, que exaltam as ações reais ou
veta, enterradas com os mortos. espalham o retrato do soberano. Uma parte do sucessodos nego-
Por outro, a imagem religiosa evolui: as gravuras em madeira dantes de estampas da Rua Saint-Jacques deve-se evidentemente
de tamanho grande, que muitas vezes constituem "seqüências" ao seu engajamento a serviço da glória monárquica, que faz mul-
e podem ser coloridas, são sucedidaspor pequenasimagens em tiplicar as gravurasilustrando os livros de propagandaou distri-
relevo, do mesmo tamanho que os livros aos quais podem servir buídas como imagens soltas. Ao lado da imaginária política, as
de ilustração. Esse uso duplo da estampa - em imagem solta e imagens de diversão, satíricas e moralizantes, constituem outro
em prancha dentro de um livro - não passa, aliás, de um caso domínio importante da produçãonão-religiosa.
das múltiplas reutilizações de que são objeto as imagens gravadas. Na primeira metadedo séculoXVll, duas sãoas temáticas
O material das cona'árias nos dá muitos exemplos disso, já que predominantes: os graus de idades, as relações entre homens e
a mesma imagem pode ser impressa com os títulos e os textos mulheres que inspiram diversas representações, por exemplo, a
de diferentes cona'árias (quando estes não são simplesmente co- da Bigorna, fartamente nutrida de "bons homens", e a da Cara-
lados sobre uma estampa feita para uma outra companhia) . Carente, que morre de fome por não encontrar "boas mulheres
Dominada pela imagem religiosa no século XVI, a produção ou ainda do Diabrete operador cefálico, que repõe a cabeçadas
de estampas cede um espaço crescente aos assuntos profanos no mulheres no lugar. Dentro dessaimaginária (à qual se ligam as
curso do século XVll: constituindo 48% da produção conservada diversas séries dos H'ovérbíosde Lagniet, publicadas entre 1657
no início do século, as imagensreligiosas não somariam mais de e 1663), como nas gravuras políticas, o texto ocupa menos lugar
27% em meados do século. O primeiro desses usos laicizados é que nas estampas religiosas, limitando-se muitas vezes a um títu-
político. Durante as guerras religiosas, e em particular com a Liga, lo ou um comentário em versos, explicativo ou moralizante, colo-
uma guerra de imagens duplica a guerra dos panfletos. Politizan- cado em baixo da imagem mais õeqüentemente oblonga. Todavia,
do as representações devotas (por exemplo, justapondo um cruci- o escrito jamais desaparececompletamente, e, tal como nas ima-
Ruo e a imagem do leito Hnebre do duque de Guise e de seu irmão gens de devoção, as que pretendem divertir ou convencer favore-
o cardeal de Lorraine), invertendo a significação de motivos idên- cem a entrada do povo urbano na cultura do escrito impresso.:'

16 Chaunu, P ].a moraâ ParasXV]', XV]]' et Xy]/í' siêcles.


Paras,Fayard: 1978. 17 Cínq síêclesd'ímageríe.#ançaíse.Musée Nacional des Ans et Traditions Popu
p.279-82 e 337-44. lacres.1973.

110 ll l
Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

Os cartazes permite a afixação, por exemplo, em 1642, de o Retrato demonse-


n/zor cardeal de Ric/zelíeu em seu leito mortuário, com seu epif(í/io, im-
Pouco diferentes das grandes imagens gravadas, a não ser pe- presso em Paria por François Beauplet. Trazendo um texto mais
los assuntos, são os pasquins e os avulsos, impressos apenasde longo que o das imagens soltas e, diferentemente dos cartazes,
um lado de uma folha de tamanho grande. No caso dos pasquins, ilustrados, os avulsos in-jolío são uma forma de transição entre
que apresentam notícias pouco comuns, semelhante apresenta- diferentes gêneros tipográâlcos, de vida efémera, mas que podiam
ção revela-se rara (pelo menos entre aqueles que foram conserva- atingir até aquelesque não os compravam. Menos imediatamente
dos) : entre 1529 e 163 1, o inventário deJean-Pierre Seguin enu- "populares", já que recorrem exclusivamente ao escrito, os car-
mera apenas sete.:8 Todos - exceto um que não é ilustrado - têm tazespodem, contudo, alimentar a cultura da maioria, uma vez
a mesma disposição: de alto a baixo da folha, tomada na sua maior que, afixados nos muros da cidade, podem ser lidos por aqueles
dimensão (ao contrário das imagens satíricas), sucedem-se um que sabem para aqueles que não o sabem. E certamente o que
título para ser visto e apregoado,uma gravura em madeira e um esperavam os reformadores de 1534 aquando nos muros de Paris
texto descritivo de umas dez ou vinte linhas. Aqui também ima- o cartaz contra a missa, composto por Antoine Marcourt e impresso
gem e texto se conjugam, para descrever prodígios celestes (Rema- por Pierre de Vingle, ambos refugiados em Genebra. Ê também
to do cometa qzzeapareceusobre a cidade de Buris de quarta-jeira 28 de para convencer a maioria que, em janeiro de 1649, a rainha e o
novembro
de ] 6] 8, atéalgztnscííasdepois,Paria,M. de Mathoniêre, cardeal Mazarino, instalados em Rueil, mandam afixar na capital
16 18), malfeitos de feiticeiros (Morte e exéquiasde monsenhorPrín- um cartaz cujo texto será em seguida impresso sob a forma de pan-
cÚe de Courfenay, pela maliciosa bruxaria de um míseráveljeífíceiro que í[eto, o ].ís etjaís [[,eía ejaça], espa]hado secretamente na cidade
depoísjoí executado,s.l. s.d.) ou criaturas monstruosas (como nes- pelo Chevalier de la Vãlette na noite de 10 para 11 de fevereiro.:9
tes dois pasquins,de estrutura totalmente idêntica, impressos Nos séculos XVI e XVll, sob formas diversas, que quase sem-
em 1578 por F.Poumard em Chambér» o Brevediscursodezzmma- pre autorizam uma dupla leitura, a do texto e a da imagem, a
ravilhoso monstro nascicíoem Eurisgo, região de Nbvarrez, na l.ombar- imprensa difundiu amplamenteum material tipográfico abun-
dia, no mêsdejaneiro do presenteano de 1578. Com o verdadeiro reh'a- dante, destinado a ser afixado, colado nas paredes das casas e das
[o do mesmoo mais próximo possíveldo rzatural e o verdadeiro retrato, igrejas, dos quartos e das oâcinas. É fora de dúvida, portanto, que,
e sumária descriçãode um horrível e maravilhoso monstro, nmcído em dessemodo, ela transformou profundamente uma cultura até
Crer, região do Piemonte, em 10 dejaneiro de 1578. Às oito horas da então privada do contado com o escrito. Semelhante modi6lcação,
noite, da mzllher de zzmdouf06 comsetecheÕres,
aquele quepende afé o que tornava familiar o escrito impresso, necessáriopara uma
sanfuárío e o queestá ao redor do pescoçosão 'íe carne) . plena compreensão das imagens que eram mostradas, foi certa-
Alguns avulsos, ligados à atualidade política, retomam essa mente decisiva para que uma alfabetização urbana, ao mesmo
mesma fórmula da impressão de uma folha só de um lado, o que tempo forte e precoce, criativa, a prazo, fosselevada de um mer-
cado "popular" para olivro.

18 Seguin, J.-iZ l;in6ormatíonenFranceavant le péríodíque.5 17 canards imprimés


entre 1529 et 1631. Pauis;Maisonneuve et Larose, 1964. n.252, 410, 461, 19 Carrier. H. Souvenirs de la Fronde in URSS: les collections russes de maza
465.466.467 e 472.
rinades. RecueHistoríque,n.511, p.27-50, 1974 (espec. p-37).

112 113
Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

Os pasquins dão nove títulos ou mais: Abraham Saugrain (quatorze), Fleury


Bourriquant(doze) e Antonio du Breuil (nove). Paracadaum
Se os inventários após falecimento ainda não constatam isso
deles, a impressão dos pasquins é uma atividade entre outras,
em meados do século XVll, é certamente porque as leituras dos
como a publicação de libelos políticos, livros de matemática no
mais humildes se nutrem daqueles livretos cujo valor derrisório
caso de Bourriquant, relatórios de viagens ou coletâneas de poe-
não justi6lca nenhuma estimativa. É o que ocorre, a partir dos siasno casode Du Breuil. Em Lyon, o mercado dos pasquins é
anos 1530, com os pasquins distribuídos pelos ambulantes urba-
dominado por um impressor, Benoít Rigaud, que imprime cerca
nos, aqueles "porta-cestos" ou "contra-carregadores" de que fda de um quarto das edições feitas na cidade. Para ele, a publicação
Pierre de llEstoile. Alguns, como vimos, são impressos num for-
de eventuais insere-se numa atividade centralizada na edição de
mato ín-joiio e têm o aspecto de cartazes que podiam ser afixados,
livretos baratos - o que não quer dizer destinados a um mesmo
mas, na grandemaioria, são livretos ín-qzlartoou in-oitavo que público -: almanaques e predições, canções e poesias, atas oâlciais.
comportam pequeno número de páginas.Entre os pasquins con- Em um pasquim entre quatro, o texto é acompanhadode uma
servados, segundo o levantamento feito por J.-P Seguin, quase gravura sobre madeira, geralmente de pequena dimensão e de
60% têm entre treze e dezesseispáginas impressas - o que cor- proveniência muito variável. A mesma madeira, retocada ou não,
responde a duas fórmulas possíveis: a majoritária, de um cader- pode servir para várias edições, e uma serpente monstruosa de
no in-oitavo ou a de dois cadernos in-quarto. Trinta por cento dos
Cubo pode facilmente converter-se em um dragão voador no céu
pasquins são mais breves, com sete ou oito páginas impressas parisiense.:' O princípio de reutilização parece,aliás, estar na
(fórmula do caderno ín-quarto ou do meio-caderno ín-oitavo); base da edição dos pasquins, já que, além da imagem, ele inclui
poucos,em torno de 5%, atingem 22 ou 24 páginasimpressas o próprio texto. Com efeito, uma mesma narração, com pequena
(ou seja, três cadernos ín-quartoou um caderno em meio ílz-oita- diferença de nomes e datas, pode ser retomada a alguns anos de
vo). A edição desses livretos parece aumentar no curso do tempos distância: é assim que um mesmo texto relata sucessivamentea
já que, no corpusreunido, 4% dos pasquins foram impressos entre morte de Marguerite de La Riviêre, executada em Pádua em de-
1529 e 1550, 8% entre 1550 e 1576, 22qoentre 1576 e 1600, 66% zembro de 1596, a de Catherine de La Critonniêre, executada na
entre 1600 e 163 1 - mas talvez essasporcentagens devessem ser
mesma cidade em setembro de 1607, de novo a de Marguerite
corrigidas em razão de uma conservação certamente melhor para de La Riviêre, executada ainda em Pádua mas em dezembro de
o século XVII.
1617, e enfim a da mesma heroína, executada em Metz em no-
Entre 1530 e 1630, a edição de pasquins é antes de tudo as- vembro de 1623 .21
sunto de livreiros e impressores parisienses e leoneses:os pri- Jean-Pierre Seguin indica cinco outros exemplos dessas
meiros produzem mais da metade das peçasconservadas (55%), reutilizações, referentes a dois, quatro ou seis pasquins, publi-
os segundos,quaseum quarto (22%) . Em Paris,os maiores edito- cadospor um mesmo impressorou por impressoresdiferentes,
res de pasquins não são absolutamente especializadosna produ- e Pierre de IIEstoile menciona várias vezes a existência dessas
ção de livros de baixo custo para um público "popular", mas, oca-
sionalmente, ízem rodar suasprensasdesocupadaspara imprimir
20 Seguin, L'íllÕormadonenFranceavant Jepéríodíque,op. cit., n.462 e n.237
essematerial com preço de baixo retorno e de larga difusão. Três
21 Ibidem. n.14, 15. 16 e 17

114 115
Roger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

peças "regravadas": "No referido dia [1 6 de junho de 1608], apre- cia que elas querem ter em relação a essas "tolices", "baboseiras;
goava-se a Conversão de uma cortesãveneziana, que era uma tolice "besteiras" e "engana-trouxas", aceitaspelos ingênuos e pelos simples
regravada,porque todo ano sãofeitas três ou quatro delas", ou
dois anos mais tarde: 'n.pregoava-senesse dia [13 de março de
1610] a seguinte tolice como nova, apesarde regravada e ultra- Nas origens da Biblioteca Azul
passada, Discurso prodegíosoe espantosode três espanhóis,que é uma
De maneira certamente discreta, os impressores de Troyes
data falsa, colocada por compaixão, para estimular aqueles po-
estão presentes no mercado dos pasquins: em 1584 e 1586, N.
bres jornaleiros, morrendo de frio, pelo impressor Ruelle que me
du Ruau imprime dois deles, depois, no início do século XVll, os
contou e me trouxe um exemplar".22Mas, para além dessasedi-
Oudot editam alguns,no endereçodeJ. Oudot em 1605 e 1609
ções camufladas como novidades, é toda a escrita dos pasquins e de N. Oudot em 1608 e 1610 (trata-se de Nicolas l Oudot).
que se abastece num limitado repertório de intrigas e faz uso de
Talvez seja o sucesso desses livretos baratos, mas também o con-
um número restrito de fórmulas narrativas.
trole de sua edição pelos impressores parisienses que dão a idéia
Entre as 517 edições de pasquins descobertos entre 1530 e
a Nicolas Oudot de produzir para o mesmo público obras análo-
1630, seis motivos predominam, com mais de trinta edições cada
gas (embora um pouco mais volumosas) mas de conteúdo dife-
um: os crimes e as execuçõescapitais (89 edições), a aparições
rente. Reutilizando pranchas de origens diversas abandonadas
celestes (86 edições, às quais podemos acrescentar oito edições
com o triunfo do entalhe, utilizando caracteres já gastos, impri-
de visões do grande Turco), os feitiços e possessõesdiabólicas
mindo sobre papel mediano fabricado pelos papeleiros cham-
(62 edições), os milagres (45 edições), as inundações (37 edi-
panheses,Nicolas Oudot edita a partir de 1602 livretos de baixo
ções) , os tremores de terra (32 edições) . Vêm em seguida os sacri-
custo, logo designados "livretos azuis", em alusão à cor tanto do
légios, as criaturas monstruosas, os roubos, os raios. Leitura de papel como da capa.zsNo endereço da "Rua Notre-Dame, no
alfabetizados, já que o texto aqui predomina sem por isso fazer
Chappon d'Or coroado", ele publica assim até sua morte, em
desaparecera imagem, o pasquim alimenta as imaginações citadi-
1636, 52 edições que o catálogo elaborado por Alfred Morin per-
nas com narrativas em que o excesso, seja ele o do desregramento
mite inventariar.:' Os romancesde cavalaria,com 21 edições,
moral seja o da desordem dos elementos, e o sobrenatural, mi-
constituem cerca da metade dessa produção. Ê longa a lista dos
raculoso ou diabólico, rompem com o ordinário do cotidiano.
heróis assim ressuscitados: o possante e valente Heitor, o cavalei-
Com grandes tiragens, os pasquins com os almanaques consti- ro Geoffroy "de dente grande", senhor de Lusignan, Doolin de
tuem certamente o primeiro conjunto de textos impressos sob a
Mayence,Maugis d'Aygremont e seu âllho Vivien, Morgant, o Gi-
forma de livretos destinados aos leitores mais numerosos e mais
gante,Artus de Bretagne,os quatro filhos Aymon, Gallien, Ale-
'populares", o que não significa que seuscompradores eram to-
dos artesãos ou negociantes, nem que sua leitura produzia efeitos
unânimes. O testemunho de Pierre de EEstoile confirma o gosto
23 Sobreos Oudot, cf. Morin, L. Les Oudot imprimeurs et libraires à Troyes,à
daselites urbanaspor essaliteratura e, ao mesmotempo, a distân- Paria, à Sens et à Touro. Builetín du Bíb{ opAiZeet du Bíblíothécaíre,p.66-77,
138-45. 182-94, 1901
\ 24 Morin, A. Catalogue descrÜt#'de ZaBfblíothêque Blue de Troa/es(Almanachs ex-
rlw). Genêve; Droz, 1974.
22 Citado por Seguin,E'ínÓormatíon
enFranceavantlepéríodique,
op. cit., p.23-4.

11 7
116
Reger Chartíer Leituras e leitores na f=rança do Antigo Regime

xandre, o Grande, Olivier de Castille e Artus d'Algabre, os cavalei- atividade - mudando sua direção -, primeiro no endereço do
ros Milles e Amys, Guérin Mesquinho, Ogier, o Dinamarquês, o "Santo Espírito Rua do Templo", em seguida,depois de 1649,
príncipe Meliadus, Mabrian, rei deJerusalém e da índia, e, mulher no endereço paterno de "Chappon d'Or Couronné"
entre os valentes, Helena de Constantinopla. Nicolas ll dedica, de fato, uma parte das 42 edições que im-
Segundo conjunto de textos impressos por Nicolas Oudot sob prime entre 1645 e 1679 aos mesmos gêneros de textos que seu
a forma de pequenos livretos baratos: as vidas de santos (dez edi- pai: os romances de cavalaria (com uma reedição do Gallien res-
ções), as de Santa Suzana, Santa Catarina, São Cláudio, São Ni- taurado e os dois livros de Huon de Bordeaux), a literatura ha-
colau, Santo Agostinho, SãoRoque, Santa Reine e Santa Helena,
giográíica e de devoção (com uma vida de SãoJuliano, uma Grande
aos quais podemos acrescentar uma Vida, morte e paixão e ressur- Dança macabrados homense das mulheres,e em 1679 a Grande Bíb/ía
reiçãode Cristo e uma VidadastrêsMarcas,que traz uma autoriza- dosNatais tarro velhos comonovos), os textos literários (com uma
ção de 1602 e retoma 75 gravuras em madeira utilizadas nos li- ediçãode Polyeucte
e uma da Sophonfsbe
de Mairet e a tradução
vros de horas publicados em Troyes no século XVI pelos Lecoq. 6'ancesa do Buscónde Quevedo) . Todavia, o essencial de sua ativi-
Diferentemente dos romances de cavalaria, que ultrapassam cem dade consiste em editar, na forma experimentada por Nicolas l,
e às vezes duzentas páginas e a maioria dos quais é de formato textos que este último tinha desprezado. Na primeira linha des-
ílz-quarto,as vidas de santos são pequenos livretos geralmente tes, os livros de instrução e de aprendizagem (dezessete edições) :
impressos num único caderno in-agravo.Ennlm, a nova fórmula Civilidade pueril e honestapara a educaçãodas crianças, modelos de
de edição inventada por Nicolas Oudot Ihe permite dar uma am- conversação (o Gabinete da eloqíiêncíajrancesa ou as Flores do bem
pla circulação a textos da literatura erudita, como uma meia dúzia dizer) , os livros técnicos comuns (o Cozinheiro francês de La Va-
de tragédias francesas cujos assuntos se aproximam dos romances renne ou o Ferreiroespecialista),receitas médicas (o Médicocaridoso
de cavalaria. Afora essestrês domínios, o resto conta pouco com
ertsínando a maneira de /fizer e preparar em sua casa com facilidade e
alguns textos de edinlcaçãoreligiosa, um Novo Testamento, um pouca despesa os remédios próprios para todas as doenças ou o Operador
guia dos caminhos do reino de França, duas edição de MelzzsÍne, dos pobres, ou a Flor da operam:ão necessária aos pobres para conservar
uma edição da yídagenerosadosandaHrbos,bonscompanheirose boé- saíasazídeecurar-secompoucadespesa),enfim, coletâneas de astrolo-
mios, romance picaresco em miniatura. gia(o Falácia dos curiosos onde a álgebra e a sorte dão a decisãodas
É claro, portanto, que desde seus inícios a Biblioteca Azul é, questões mais duvidosas e onde os sonhos e as visões soturnas sãa
antes de tudo, uma fórmula editorial suscetível de difundir textos explicadas segundo a dozzü'ína dos Anfjgos, o Espelho de mü'oZogía natu-
de natureza muito diferentes. Nicolas Oudot imprime sob essa ral ou os Prognósticos
geraisde Commelet, do qual ele dá cinco edi-
forma três grandestipos de textos: por um lado, romancesmedie- ções sucessivas e diferentes) .
vais, distantes da cultura das elites no século XVI, portanto des- Por outro lado, Nicolas ll Oudot dá amplo espaço ao burlesco
prezados pela edição "ordinária"; por outro, textos que pertencem que caracteriza os meados do século XVll, e edita, por exemplo,
ao fundo tradicional da literatura hagiogránica; enfim, certos títu- as Fantasias de Bruscambille, as Obras burlescas de Scarron e sua con-
los da literatura erudita que encontram nos livretos de Troyes tinuação, ou as ConfusõesdePurésemversosburlescos.Finalmente,
sua "edição de\. bolso". Seu filho, Nicolas 11,nascido de seu segun- eie introduz no catálogo da Biblioteca Azul, mas ainda timida-
do casamentocom Guillemette Journée,continua essamesma mente, a literatura devota da reforma católica, publicando as Sete

118 ]19
Roger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

trombetasespirituaispara despertarospecadores
epara induza-tosafazer rência séria a Nicolas Oudot e seu milho, que conservam o domí-
penitência, do â'ade recoleto Barthélemy Solutive. Na segunda ge- nio sobre a produção do livro de baixo custo. Todavia, essapro-
ração, a fórmula dos Oudot, embora conserve as mesmas caracte- dução permanece ainda modesta em relação.à importância que
rísticas quanto às formas de edição, abre o leque dos textos de terá nos dois séculos que se seguirão. Somadas, as produções dos
que se apropriam, difundindo a preço baixo a literatura da moda, dois Nicolas Oudot e de seus rivais dão um total de 116 edições,
os guias da nova espiritualidade e os livretos do cotidiano que ou seja, nem um décimo das 1.273 edições da Biblioteca Azul
ensinam conhecimentos e saber-fazer.Em sessentaanos, foi as- levantadaspor A. Morin.:s Nos primeiros 75 anos de sua exis-
sim constituído o repertório fündamenta] dos gêneros que os edi- tência - que se estenderá por dois séculos e meio --, a fórmula
tores de Troyes irão explorar durante dois séculos. editorial de Troyes constitui progressivamente o leque dos tipos
Nos primeiros dois terços do século XVll, Nicolas Oudot e de textos que ela é suscetível de difundir, mas ainda não multi-
seu filho não são os únicos impressores de Troyes a editar livretos plica as edições dessestextos como irá fazer mais tarde.
azuis. Vários de seus confrades retomam a fórmula, e de início Essaconstatação certamente poderá ser matizada porque não
seus próprios parentes. Jean Oudot, o Velho, e seu filho Jean leva em conta um setor da produção de Troyes que parece muito
Oudot, oJovem, imprimem assim alguns textos: o primeiro, dois denso nos três primeiros quartos do século XVll: o dos almanaques.
pasquins, como já o dissemos, e uma História da H'arfa comas Desde os inícios do século, são numerosos em Troyes os impres-
/iguras dosreis; o segundo, uma ExposiçãodosEvangelhos,a Histó- sores que fazem contrato com produtores de almanaques, tanto
ria de Ualentín e Orsorz e as Predições eprognóstícosgeraispara dezanove mais que Nicolas l Oudot, inteiramente dedicado aos romances
anos,de Pierre Delarivey. Em janeiro de 1623, outro impressor de cavalaria,não se interessa por essaprodução. Louis Morin
de Troyes, Claude Briden, vendeu-lhe "histórias em madeira, co- citou vários desses contratos que prevêem as obrigações das duas
bre, chumbo e outros servindo para imprimir romances", fican- partes: para o autor, a entrega do texto do almanaque a cada ano
do a cargo de Jean Oudot pagar-lhe cem libras na Páscoa e im- durante seis, oito ou dez anos e a obtenção da permissão por parte
primir os romancesque Briden Ihe pedir pelo equivalente em das autoridades eclesiásticas e civis; para o impressor o pagamento
trabalho de uma soma de 150 libras. Outro Oudot, Jacques,ins- anual de uma quantia em dinheiro à qual pode acrescentar-sede-
talado igualmente na Rua Nutre-Dame, publica duas coletâneas terminado número de exemplares do almanaque, e às vezesa obri-
de predições, atribuídas a Jean Petit, as Predições
geraispara o ano gaçãode inserir na obra um retrato gravado do astrólogo. Sãoacor-
MDCXLil e as Prestaçõesperpétuas do número de ouro ou ciclo lunar, dos como esse que fazem, em 1616, Jean Berthier e Pierre Varlet,
bem como uma "mazarinada", a Con@rêlzcía
agradávelde dois cam- 'mestre escrivão juramentado em Troyes, professor de matemáti-
ca, geometria e aritmética"; em 1618, Pierre Sourdet e Louis de
poneses de Saínt-Ouerz e Mottfmorency - prova suplementar da
plasticidade da fórmula inventada por Nicolas Oudot. La Callêre, "astrólogo champanhês"; em 1620, Jean Oudot, o Ve-

Do lado dos Oudot, dois impressoreseditam livretos baratos: lho, e Pierre Patris, vulgo Pierre Delarivey.:õ
Edme Briden, no endereço da "Rua Notre-Dame com a tabuleta
do Nome deJesus" (cinco edições), Yves Girardon (oito edições, 25 0 catálogo de A. Morin compreende 1.226 números. O total de 1.273 edi
quase todas retomando textos já editados) eJacques Balduc (duas çõesé obtido separando-seos números livres ou suprimidos e acrescentan
edições). Coco se vê, nenhum desses impressores faz concor- do-se os números bÍs e ter do catálogo e de seu suplemento.
26 Morin, L Hístoire co?oratíve desardsansdu líwe â Traves.Troyes, 1900. p.244 ss

120 ]21
Roger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

Desenvolvida paralelamente à dos livretos azuis, a produção mas é certo que há uma produção considerável que exige a mo-
dos almanaques suscita dois tipos de conflitos: primeiro, entre bilização de um número crescente de astrólogos, reais ou nlctícios,
os troyenses é por isso que, por exemplo, em 1623, Claude mortos ou vivos, âléis ou episódicos. Através dos títulos dos al-
Briden eJean Oudot, oJovem, fazem um acordo quanto à distri- manaquesde Nicolas ll Oudot, podemos descobrir uns vinte que
buição de seusalmanaques-, depois, com os concorrentesde trabalham em exclusividade para ele ou que ele divide com outros
outras cidades- em 1635, o mesmo Claude Briden entra em con- editores. Constituindo uma produção distinta dos livretos azuis,
flito com um impressor de Autun, Blaise Simonnot que, sem a sejaporque ela engloba um número muito superior de impres-
sua autorização, publicava uma contratação do almanaque de sores, a fabricação dos almanaques foi uma das bases mais sólidas
Pierre Delarivey. Nesse caso, também, os acordos notariais regu- da prosperidade da livraria troyense, ao mesmo tempo que di-
lamentam ou dirimem os conflitos possíveis; assim, em 1630, o fundia através do reino o livro certamente mais divulgado.
mesmo Briden vende por dez anos a Louis Dumesgnil o direito
de imprimir e vender o almanaque de Pierre Delarivey na circuns-
crição do Parlamento de Rouen, à razão de sessentalibras por Uma clientela urbana
ano, pagáveis em mercadorias de livraria.
Ê em meadosdo séculoXVll, contudo, que a produção dos Detectar os leitores e as leituras desses livretos impressos
almanaques troyenses conhece o seu apogeu.:' Por um lado, di- em massa em Troyes, depois em outras cidades como Rouen, não
versos impressores que não editam nenhum livro da Biblioteca é coisa fácil, e tanto mais que devemos aqui deter a observação
Azul os publicam regularmente, isolados ou em associação:como nos anos 1660-1670. Parece,entretanto, que duas proposições
Denis Clément, Jean Blanchard, Edme Adenet, Eustache e Denis podem ser adiantadas. Antes de tudo, no primeiro século de sua
Regnault, Edme Nicot, Léger Charbonnet ou Gabriel Laudereau. existência, a Biblioteca Azul, incluindo os almanaques, parece
Por outro, Nicolas ll Oudot, que dedicauma parte de suasedi- atingir essencialmente um público urbano. A venda pelos ambu-
ções azuis à astrologia e aos prognósticos, multiplica os almana- lantes dos livros baratos dos Oudot e de seus êmulos não deve
ques até sua aposentadoria em 1679. Primeiramente, ele dá em induzir-nos aqui em erro: no século XVll, as atestaçõessobrea
1657 a primeira edição "popular" do Grande Calendário e Compos- venda ambulante de livros, em particular nas regulamentações
tagemdospastores,já publicado em Troyes no século XVI (em 15 10, reais, visam exclusivamente a uma atividade urbana, que é preciso
1529 e 1541), mas em edições que não prefiguram as da Bibliote- vigiar e às vezesrestringir, já que ela faz concorrência aos livreiros
ca Azul. De outro modo, a cada ano, Nicolas ll Oudot acrescenta e favorece a difusão de textos proibidos.:' O vendedor ambulante
novos almanaques aos que já imprime, o que o leva a publicar de livros é, portanto, uma figura urbana, que propõe ao mesmo
treze diferentes em 1671, doze em 1672 e mais oito em 1673. A tempo publicações avulsas e peças oficiais, almanaques e livretos
meada dessas edições ainda não está claramente desembaraçada, azuis, panfletos e gazetas.Como prova, citamos um texto e um

27 Socard, E. Étude sur les almanachs et les calendriers de Troyes (1497-1 881). 28 Cf Chartier.R. Pamphletset gazettes.In: Martin, H.-J.,Chartier,R. (Dir.)
Mémoiresde laSociété Académiqued'AgrÍculture, de Sciences,Ares et Be!!es-Lettres Histoírede!'édítíorlÁançaíse.Paris: Promodis, 1982. t.l: l.e livre canquérant.
Du
du Département
de!'Ande,p.217-375, 1881 Moyen .4ge au mílíeu du XVTI' siêçle, p.402-25.

122 123
Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

quadro. O texto é de 1660 e descreve,para estigmatizá-lo, o far- Outro indício de uma difusão urbana do material impresso
do dos vendedores "que carregam para cá e para lá almanaques, pelos impressores troyenses: os acordos feitos entre eles e um
livretos de abc,a Gazetaordinária e extraordinária, legendase livreiro da capital. Nicolas l Oudot é o primeiro a experimentar
pequenos romances de Melusine, de Maugis, dos quatro filhos essafórmula com o livreiro parisienseJean Promé. Em 1627, ele
Aymond, de Geoffroy de dente grande, de Valentin e Ourson, imprime um Novo testamentodeNossoSenhorlesus Crista,com uma
passatempos, canções mundanas, sujas e feias, ditadas pelo es- reediçãoem 1635, da qual A. Morin encontrou um exemplar que
pírito imundo, vazzdevílles,
vilancetes, árias de corte, canções para trazia,coladosobreo título primitivo, um título gravadocomo
brindar".:9 Um material heterogêneo,portanto, cujo conteúdo endereço; "Em Troyes, e sevendem em Paris, emJean Promé Rua
engloba formas e expectativas culturais muito diversas, mas cons- Frémentel no pequeno Corbeil 1628".'' Em 1670, é Nicolas ll
tituído por peçasimpressasde pequenoformato e pequenovo- Oudot que, num de seus almanaques, o Almanaquepara o ano da
lume, simples brochuras a preço baixo. raça de mil seiscetttose setenta .. . pelo senhor Chevry, parísíetzse,enge-
Mesma constatação com um quadro do início do século XVll, rtheírodo rei e matemático ordinário daspáginas de mottsenhorduquede
que retrata um ambulante vendendo o Áimanaquepara o ano ] 622 Orleans,anuncia sua venda na capital: "Em Troyes, e se vende em
P. Delarivey, jovem astrólogo trofense, o cercodeLa Rochelle ano 1623, Paris,no Nicolas Oudot" (trata-se de um dos filhos de Nicolas
em Roam, um Edita do reípara as moedas,um .Avisodadopara a R(:for- 11,instalado em Paras em 1664 onde se casa com uma das bilhas
ma dos Prados. Normandía ano ] 623. .4 domada de CZéracpelosenhor da viúva Promé) .::
Duque DelboeuÍ, A fuga do condeMansefetd e do bispo Dalbestrad para No último terço do séculoXVll, os livreiros Antoine RafHee
a Ho]arzda.Ano ] 623 e, levada no chapéu, Á recepçãodo príncipe de JeanMusier farão em grandeescalao comércio dos livretos
Games
emEspanta, ano] 623.s' Aqui também, uma mercadoria mis- troyenses, mas é claro que desde as origens da Biblioteca Azul
turada com avulsos, uma peça oficial e um almanaque. seusimpressores consideraram como essencial o mercado pari-
Ê claro que nada indica com certezaabsoluta que essetexto e siense, conquistado ao mesmo tempo pelos livreiros associados
essaimagem põem em cena vendedores urbanos, mas a ausência e pelos ambulantes urbanos. Isso significava retomar as práticas
de atestaçõescontemporâneas de uma venda rural do livro, tanto dos editores parisienses e lioneses, que no século XVI, antes de
quanto o conteúdo dos fados que contêm textos cuja leitura é sa- Nicolas Oudot, tinham dirigido toda uma parte de sua atividade
bidamente urbana(por exemplo, os avulsos ou a Gazeta), faz supor para a impressão e a venda de edições baratas cujos títulos irão
que isso é plausível. Foi somente no século XVlll que a venda am- alimentar, em parte, o fundo troyense. Entre essespredecessores
bulante sairá para fora das cidades, levando para os burgos e os dos Oudot, os mais importantes são, certamente,em Paras,os
vilarejos sem livraria os livretos azuis - mas também os livros Trepperel, JeanJanot e os Bonfons; em Lyon, os Chaussard e Clau-
de Nourry, o editor de Rabelais, e sobretudo Benoít Rigaud.3:
proibidos e os vendidos normalmente nas livrarias urbanas.

31 Morin, Hisfoíre coOoratíve-., op. cit, n.822 e 823.


29 Martin, D. Parlementnouveau...Strasbourg, 1660, citado por Marais, artigo 32 Socard, "Étude sur les almanachs et les calendriers de Troyes (1497-1 881)"
citado, p.70.
artigo citado, p.280-1.
30 1.ecoZporteur,
école française, XVll' siêcle, Museu do Louvre, em depósito no
33 Martin, artigo citado, p. 232 e 244; e Oddos, J.-P Simples notes sur les
Musée desAns et Traditions Populaires.
originem de la Bibliothêque bleue. In: l.a "BíbZiothêque Bleue" nel Seicento

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Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

Leituras compartilhadas sualeitura no século XVll autorizam talvez uma dupla hipótese:

Difundida sobretudo na cidade, a literatura azul certamente por um lado, eles manifestam sua presença numa sociedade de
leitores que não é nem a arraia-miúda urbana nem a clientela do
não é lida exclusivamentepela arraia-miúda urbana. Essaé a
livro erudito, mas um mundo de semiletrados, pequenos nobres,
segunda constatação que podemos arriscar quanto à sua difusão
burgueses das cidades, negociantes em atividade ou aposentados
antes do século XVIII. Parececorreta no que concerne ao alma-
naque, leitura compartilhada de toda uma sociedade, como ates-
que apreciam os textos antigos, divertidos e práticos que
constituem uma boa parte do fundo troyense; por outro, eles su-
tam as coleções conservadas, os livros de razão e as notações li-
geremque, no mundo das proâssões urbanas, esseslivros podiam
terárias, tais como na História cómicaden'ancíon,nos Cacarqosda
conhecer o mesmo manuseio coletivo que outros textos, lidos
partzzríente,em .4 Fortuna daspessoasde quali(üde, deJ. de Cailliêres,
na comunidade da oficina ou da comi'ariajocosa. Esseé certamente
ou no teatro de Moliêre." Pela sua própria economia, o almana-
o primeiro público da Biblioteca Azul, antes que o surto da venda
que podia suscitar essaleitura plural, oferecendoum texto a ser
ambulante rural, o aumento da alfabetização e o desprezo dos dig-
lido para aqueles que sabem ler, e signos ou imagens a decifrar
nitários façam dela uma leitura mais própria das classespopulares.
para aqueles que não o sabem, informando os primeiros sobre o
calendário da justiça e das feiras, e os segundos sobre o tempo
que vai fazer,transmitindo, na suadupla linguagem da figura e Estratégias editoriais e cesuras culturais
do escrito, predições e horóscopos, preceitos e conselhos.:s
Livro de uso, e de usos múltiplos, intrincando como nenhum Na história da edição e da leitura na França,os anos 1530-
outro os signos e o texto, o almanaque parece ser o livro por exce- 1600 marcam uma etapa decisiva. Com efeito, nesse século am-
lência de uma sociedade ainda desigualmente afeiçoada ao escrito, plamente recortado, em que o analfabetismo permanece grande,
onde existe certamente uma multiplicidade de relações com o mesmo nas cidades muito à frente dos campos que as circundam
impresso, desde a leitura cursiva até a decifração balbuciante. A e onde a propriedade individual do livro permanece como privilé-
constatação vale certamente para os livretos azuis - mas em pe- gio apenasdas elites, é que se constitui um mercado "popular'
quena medida, já que aqui o texto geralmente só é acompanha- do impresso. Ele foi certamente preparado pela circulação de todo
do de raras imagens.3õOs poucos indícios recolhidos quanto à um material que, desdeos livretos xilográ6icos, reúnem imagem
e texto, tornando assim familiar o escrito, mesmo para aqueles
que não sabem ler. Essa relação nova com o impresso não se se-
o del/a letteratura per íl popolo. Bari: Adriática; Paras:Nizet. 1981, p.159-
68 para das relações estabelecidas no seio da sociabilidade popular,
34 Marais, "Littérature et culture 'populaire"'-, artigo citado, p.83-4; e Mar- sejaela laboriosa, religiosa ou festiva. Longe de supor, num pri-
tin, l.ívre, pouvoírs et sodété-, op. cit, t.l, p.538. meiro tempo pelo menos, uma retração para o foro íntimo, a cir-
35 Bollême, G.l,esalmanacAs
popuiaíres
Útil XVTIefXVTr/'siêçles.
Essasd'histoire
culação dos textos impressos apoia-se fortemente nos vínculos
sociale. Paris-La Haye: Mouton, 1969.
comunitários tecidos pelo povinho das cidades.Essarecepçãopo-
3 6 Bollême, G. l.a BíbiíothêqueBleue. l,íttérafure popKJaíreen France du Xy71' au
X/X' siêcle. Paria; Julliard, 197 1 ("Archives") ; e l.a Bíble bleue.Ánthologíe d'une pular do impresso não cria, contudo, uma literatura específica,
r ttérature "pojiulaire". Paria: Flammarion, 1975. mas faz que os mais humildes manuseiem textos que são tam-

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Roger Chartier
Leituras e leitores na Franca do Antigo Regime

bém a leitura dos dignitários, pequenos ou nem tanto, como os


almanaques, os pasquins, os livretob azuis. No século XVI, em Embora no século XVll esses dois conjuntos não tenham
Pauise Lyon, no século XVll, em Troyes, alguns impressores con- dois públicos radicalmente divididos, mesmo assim eles definem
dois materiais que os impressores editam visando a clientelas,
sagram a maior parte de sua atividade a editar esses livros que
circulações e usos que não são absolutamente os mesmos. E é
custam pouco, mas que têm numerosos compradores. Desse
no aspecto material do livro que se inscrevem essas intenções
modo, eles criam ou reforçam diferençasculturais até então pou-
contrastadas: objeto nobre, cuidado, encadernado, preservado,
co ou menos sensíveis. A primeira distingue as cidades dos cam-
de um lado, e objeto efêmero e grosseiro, de outro. Pela forma e
pos Enquanto nestes a cultura tradicional cedepouco espaçoao
pelo texto, o livro torna-se signo de distinção e portador de uma
impresso, raramente possuído e raramente manuseado, na cidade
identidade cultural. Moliêre é um bom exemplo dessa sociolo-
a aculturação ao impresso é quase cotidiana, porque o livro está
gia avartt la letü'e que caracteriza cada meio pelos livros que manu-
presente, porque os muros exibem imagens e cartazes, porque
freqüentes são os recursos ao escrito. De um lado e de outro das seia,e para ele a presençado livro azul ou do almanaquebasta
muralhas citadinas, os universos culturais tornam-se mais con- para designar um horizonte cultural, que não é nem o do povo
nem o dos letrados.
trastados, o que gera o desprezo de uns e a hostilidade de ou-
O impresso "popular" tem, portanto, uma signinlcaçãocom-
tros. Num mundo do oral e do gesto, as cidadestornam-se as
plexa: por um lado, ele é recuperação para o uso de um novo pú-
ilhas de uma cultura diferente, escritural e tipográfica, da qual
blico e por uma nova forma de textos que pertenciam diretamente
participa, pouco ou muito, direta ou imediatamente, todo o povo
à cultura das elites antes de cair em desgraça, mas, por outro,
urbano. E é na escala dessa nova cultura, apoiada sobre o mais novo
ele contribui para "desclassificar" os livros que propõe, que se
de todos os suportes da comunicação, que serão doravante medidas
todas as outras, assim desvalorizadas,recusadas,negadas. tornam assim, aos olhos dos letrados, leitura indigna deles,já
que são próprias do vulgo. As estratégias editoriais engendram,
A essa primeira diferença, a difusão "popular" do impresso
e do livro acrescenta outra. Com efeito, as novas formas editoriais portanto, de maneira despercebida,não uma ampliação progres-
siva do público do livro, mas a constituição de sistemasde
que produzem os livretos baratos não se apoderam igualmente
apreciação que classificam culturalmente os produtos da impren-
de todos os textos. No essencial, elas contribuem para distribuir
sa, õ'aumentando o mercado entre clientelas supostamente espe-
textos que não pertencem ou já pertenceram mais à cultura im-
cíâlcase desenhando fronteiras culturais inéditas.
pressa das elites. É assim que os textos medievais e os textos de
uma devoção antiga encontram sua difusão máxima numa época
em que são abandonados pelas leituras eruditas, assim como os
livros que deciâ'am o universo e o futuro ou os que dão receitas
de bem-viver se multiplicam no mesmo momento em que os dig-
nitários começam a despreza-los. Em filigrana, desenha-se então
uma oposição, que será duradoura, entre dois corpusde textos, os
que alimentam os pensamentosdos mais ricos ou dos mais ins-
truídos e os destinados a alimentar as curiosidades do povo.

128
129
5
Dolivro à leitura.
As práticas urbanas
do impresso j1 660-1 7801'

Uma vez escrito e saído das prensas, o livro, seja ele qual for,
está suscetível a uma multiplicidade de usos. Ele é feito para ser
lido, claro, mas asmodalidades do ler são,elas próprias, múltiplas,
diferentes segundoas épocas,os lugares, os ambientes. Durante
muito tempo, uma necessáriasociologia da desigual distribuição
do livro mascarou essa pluralidade de usos e fez esquecer que o
impresso, sempre, é tomado dentro de uma rede de práticas cultu-
rais e sociais que Ihe dá sentido. A leitura não é uma invariante
histórica - mesmo nas suasmodalidades mais físicas -, mas um
gesto, individual ou coletivo, dependente das formas de sociabili-
dade, das representações do saber ou do lazer, das concepções
daindividualidade.
E assim que, nas cidades â'ancesas, entre meados do século
XVll e o âm do Antigo Regime,se definem vários estilos de leitura,
várias práticas do impresso. Para restitui-las, há necessidade de

1 0 texto deste capítulo foi preparado em colaboração com Daniel Rocha

173
Reger Chartier
Leituras e leitores na trança do Antigo Regime

uma precaução e uma intenção diretiva. A precaução primeiro: mente, entre os dominantes, a leitura permanece como exercício
ela consiste em não esquecer que a produção impressa não se desociedade,coletivo e aberto.
reduz, longe disso, à ediçãode livros. Essefato é de importância
para os impressores que â'eqüentemente vivem de trabalhos na
A posseprivada do livro
cidade, mais do que da impressão de obras. E também para os
leitores, sobretudo os mais humildes (mas não apenas eles), para Uma primeira apreensãoda sociedade dos leitores citadinos
os quais ler não é forçosamente ler um livro, mas decifrar, cada de entre 1660 e 1780 tornou-se possível pelo estudo em série
um à sua maneira, todos os materiais impressos, religiosos ou dos inventários após falecimento. A fonte, todavia, exige precau-
profanos, seja de sua propriedade ou afixados e distribuídos na ções: não sendo absolutamente obrigatório, o inventário após
cidade, circulando em grande número. A intenção diretiva: elavisa ídecimento só é feito por uma parte apenasda população,e a
caracterizar as práticas de leitura a partir de uma tensão central descriçãodos livros possuídosé 6'eqüentementemuito incom-
entre foro privado e espaços coletivos. Durante longo tempo, com pleta, atendo-se às obras de valor, mas estimando por lotes ou
efeito, a circulação do impresso foi entendida como sua apropria- pacotes as de preço ín6lmo. Além disso, a significação do livro
ção privada, identi6lcável pelo estudo das coleções particulares. possuído permanece incerta: será que se trata de leitura pessoal
Ora, entre os séculosXVll e XVlll, o possívelacessoao livro ou herança conservada, instrumento de trabalho ou objeto jamais
não se limita à compra e à propriedade individuàié, já que nesses aberto, companheiro de intimidade ou atributo de aparência so-
dois séculos, justamente, multiplicam-se as instituições que, da cial? A secura da escrita notarial não permite precisar. Enâlm, pa-
biblioteca pública ao gabinete de leitura, permitem um uso cole- rece claro que todos os livros lidos não são livros possuídos: nas
tivo. Daí um necessário díptico que primeiro reconhece a geogra- cidades do século XVlll, muitos deles são com efeito os locais de

fia privada do livro, as diferentestradições de leitura, os gestos uma possível leitura pública, desde o gabinete do livreiro até a
da conservação e, em seguida, elabora o inventário das formas biblioteca, e é densa a circulação privada do livro, seja emprestado
da leitura pública do Antigo Regime. seja tomado de empréstimo, lido em comum no salão ou na so-

Mas a tensão entre o privado e o público - entendido aqui ciedadeliterária. O inventário apósfalecimento não pode, por-
tanto, dizer tudo; todavia, por sua massa, ele autoriza um pri-
como o conjunto dos espaçosou das práticas diferentes daquelas
da intimidade individual - atravessa também as próprias práticas meiro levantamento e permite esboçar comparações e evoluções.
Primeira ponderação: a presença, dada pela porcentagem de
de leitura. Por meio das representações literárias ou iconográficas,
inventários apósmorte comportandopelo menosum livro. Nas
afirma-se a oposição entre dois estilos de leitura, um próprio do
cidades do Oeste (Angers, Brest, Caen, Le Mans, Nantes, Quim-
foro privado, outro articulado sobre a sociabilidadeda família,
per, Rennes, Rouen, Saint-Maio), é de 33,7% no século Xlll;z em
da companhia letrada ou da rua. É a pertinência desse recorte,
que pende implicitamente para a especinlcidade das leituras urba-
nas em relação às do campo, que se deve então interrogar, não 2 Qpéniart, J. Cultura et sodété urbaínes dons ra France de I'Ouest au XVTiJ' síêcZe.
esquecendo que a cultura do povo, mesmo no que diz respeito à Paris: Klincksieck, 1978. p.158. O número total de inventários estudados é
freqüentação'do impresso, nem sempre é pública e que, tardia- de 5. 150 (divididos entre quatro períodos: 1697-1698, 1727-1728, 1757-1758.
1787-1 788); 1.737 mencionam livros.

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Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

Paria, de 22,6% para o decênio 1750.aA diferença entre a pro- junto: como em Rennes onde a porcentagem dos proprietários
víncia e Pariaé, portanto, nítida, aumentada ainda se comparar- de livros recua logo, e em Caen onde ela perde 9%. Em Nantes e
mos a porcentagem parisiense com a das nove cidades do Oeste em Brest, é a partir de meados do século que diminui a porcenta-
em 1757-1758: 36,7qo. Como explicar que menos de um quarto gem dos detentores de obras. As evoluções demográficas, que
dos parisienses seja possuidor de livros no mesmo momento em transformam a estrutura da população de certas cidades, as con-
que mais de um terço dos habitantes das cidades normandas, junturas económicas locais, os fluxos da alfabetização podem
bretãs e ligerianas o é? Seráisso o traço de uma prática notarial explicar essasvariações que atestam globalmente que o século
mais negligente, ignorando os livros menos importantes, de XVlll não é absolutamente marcado por uma difusão contínua
devoção ou de utilidade, pelo próprio fato de sua abundância sem da cultura impressa, mas por avanços e recuos, por conquistas
valor? Devem-se incriminar os hábitos desenvoltos de uma popu- seguidasde paralisações,uma vez atingido um primeiro limite
lação mais familiar com o livro e que, portanto, não presta nenhu- socialda presença dolivro.
ma atenção à sua conservação ou classificação? Ou será que deve- Desigual conforme as cidades ou as épocas, a presença do
mos concluir que, para a massados parisienses,a cultura do livro também o é conforme as condições. Sejam três exemplos, e
impresso não é a do livro possuído, mas do pasquim ou do panfleto primeiro a capital. Entre 1665 e 1702, numa amostra deduzentos
logojogado cora,do painel ou do cartaz deciõado na rua, do livro inventários, os artesões, negociantes e burgueses contam 16,5qo;
que cada um leva consigo? Como se vê, a fraca porcentagem dos os oâlciais e pessoas togadas 32,5qo; e os fidalgos e cortesãos 26qo
proprietários de livros não deve levar a concluir apressadamen- - o que, sem dúvida, é muito diferente de seu peso na cidade.s
te pelo atraso parisiense. Em meados do século XVlll, a porcentagem de inventários men-
A presença do livro progride no curso do século Xvlll? Sem cionando livros varia grandemente segundo asdiferentes catego-
contestação, a crer no exemplo das cidadesdo Oeste. Os inventá- rias sociais. No ponto mais alto, seis grupos em que mais de um
rios após falecimento que mencionam livros constituem 27,5% inventário entre dois descreve livros: os escritores e bibliotecá-
do total dos inventários em 1697-1698;34,6%)em 1727-1728; rios (100%), os professores (75%), os advogados (62%), o clero
36.7qo em 1757-1758; mas somente 34,6qo em 1787-1788; ou (62%), os oficiais do Parlamento (58%), os nobres da Corte
seja, exatamente a porcentagem alcançada sessenta anos antes.' (53%) . Na outra ponta da escala, os grupos em que o livro se en-
O crescimento não se íaz, portanto, sem ruptura, nem é igual contra em menos de 15% dos inventários: os negociantes (15%),
em toda parte. Enquanto em determinadas regiões ele prossegue os operários e empregados (14%), os mestres artesãos (12%),
durante todo o século (como em Angers, Rouen ou Saint-Maio) , os homens de pequenos ofícios (10%). Os criados (19%) e os
em outras, as últimas décadas do Antigo Regime são marcadas burgueses de Paras(23%) fazem uma figura um pouco melhor.'
por recuos sensíveis que fazem diminuir a porcentagem de con- Entre os diversos grupos, asdiferenças podem variar. Como pro-
va, o caso dos criados e assalariados.Por volta de 1700, os pri-

3 Marion, M. Reçherçhes sur Zesbíblíothêques privées à Buris az{ mÍlíeu du XVTll'


siêcle(] 750-] 759). Paras:Bibliothêque Nationale, 1978. O número total de 5 Martin, H.-J. l.iwe, pozivoirs et soaété â Rnris ati Xv]]' siêc]e(] 598-1 70]) . Genêve
inventários estudados é de 3.708; 841 mencionam livros. Droz, 1969. t.ll, p.927.
4 Segundo Qpéniart, Cu! re et sodété urbaínes-« op cit« p.163-71. 6 Marion, Recherches
surlesbíbliothêques
pdvées-.,op. cit., p.94.

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Leituras e leitores na França do Antigo Regime

meiros predominam nitidamente: segundoseusinventários, 30% Segundo exemplo: Lyon na segunda metade do século XVIII.
possuem livros contra apenas 13% dos operários e diaristas. As cesurasculturais aqui são nítidas, bem traduzidas pela desi-
Oitenta anos mais tarde, a diferença diminuiu consideravelmen.
gual presençado livro: 74% dos inventários após morte dos ofi-
te: 40% dos criados têm livros, mas também 35qo dos assala. ciais ou dos membros de procissõesliberais o mencionam, e a
dados.' No curso do século,a arraia-miúdaparisiensedomesti- porcentagem é de 48% para os burgueses; 44%opara os nobres;
cou o livro, que se tornou menos raro e menos estranho. 42qopara os comerciantes e negociantes; mas somente de 21%o
O caso parisiense permite também estabelecer duas regras, para os operários e artesãos. O tamanho contrastado das coleções
que suportam apenas poucas exceções:quanto mais a fortuna repete essaprimeira hierarquia: entre os mais abastados, togados
média de uma categoria social é elevada,maior é a porcentagem ou profissionais liberais, a média de livros possuídos é de 160
de seus membros possuidores de livros; dentro de uma mesma obras, entre os mais desfavorecidos, artesãos e operários, de
categoria, a proporção dos proprietários de livros cresce com a dezesseis - uma relação de um para dez.:' Nas classes populares,
elevação dos níveis de fortuna. Para ilustrar esse último ponto, o livro permanece, portanto, raro, enquanto a própria alfabetização
citemos o caso dos negociantes parisienses em meados do sécu-
progride: em Lyon, àsvésperas da Revolução, 74% dos operários
lo: abaixo de oito mil libras, somente 5% possuem livros; acima, da seda são capazes de assinar seu contrato de casamento, e é o
28%. Diferença semelhante, em outro nível social e económico. caso de 77% dos marceneiros, de 75qodos padeiros, de 65% dos
entre os parlamentares: acima de trinta mil libras de fortuna, 42%
sapateiros.:: Numa época em que o comércio, mesmo o pequeno,
possuem uma biblioteca; abaixo, 64qo.8 se faz a crédito e numa cidade em que os operários da seda tra-
A condição e a fortuna determinam também o número de balham por encomenda, a aquisição da leitura e da escrita é neces-
livros possuídos. Na segunda metade do século XVll, na capital, sária, já que só ela permite a manutenção de uma caderneta de
o limiar das cem obras é diâlcilmente atingido pelos negociantes contaspara mostrar ao cliente, ou de um livro de encomendas
ou burgueses, ao passo que é ultrapassado uma vez em duas pelas comparável ao do comerciante. Mas, evidentemente, ela não im-
coleções dos fidalgos e constitui a norma das bibliotecas das pes- plica a posse âeqüente do livro, como se esta marcasse um se-
soas togadas.s Em 1780, na população parisiense dos assalaria- gundo limiar cultural, infinitamente mais restritivo. Para essa
dos e criados, o número de obras indica seguramente o relativo afirmação, há uma confirmação dada pelos inventários parisien-
bem-estar ou a penúria: os mais abastados,isto é, os que têm ses de meados do século XVlll: com efeito, 60% dos proprietários
fortunas superiores à média, possuem entre os criados duas vezes
de material para escrever (escrínio, tinteiro, canetas) não pos-
mais livros, em média, que os outros (28 contra doze), entre os suem nenhum livro.is
assalariados,três vezes mais (24 contra seis).:' Ultimo exemplo: as cidades do Oeste que permitem seguir
as evoluções seculares. A mais espetacular, entre o âim do século
7 Roche, D. Le peuple de Paria. Essassur la culture populaire au XVlll' siàcle
Paria: Aubier-Montaigne, 1981. p.21 7.
8 11 Garden, M. L?on et les lyonnaísau XI/71J'siêcle.Paria: Belles-Lettres, 1970
Essas porcentagens são calculadas segundo os dados fornecidos por Marion,
p.459 (a partir de uma sondagem sobre 365 inventários dos anos 1750
Recherches sur Jesbiblíotbêquesprlvées..., op. cit, p.76-9.
9 1760, 1770 e 1780).
Martin, l.ivre, pouvoírs et soaétéâ Pnris -« op. cit., t.ll, p.927.
10 Roche, l.e peuple de Paras, op. cit., p.218. 12 Ibidem, p.311 e 351-2.
13 Marion, Recherchessur les bíblia hêquesprívées-., op. cit., p.1 16.

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Leituras e leitores na trança do Antigo Regime

XVll e os anos 50 do século XVlll, é o crescimento da porcentagem As tradições de leitura


de inventários compreendendo livros, e isso em todos os níveis
de fortuna, mas sobretudo nas extremidades do leque económico. Entre 1660 e 1 780, nas cidades francesas aparecem, perdu-
Nos inventários de menos de quinhentos livros, ele passa de 10%a ram ou se modificam tradições de leitura que caracterizamos
para 25%; nos de quinhentos a mil livros, de menos de 30%opara diversos grupos socioculturais. A primeira é a do clero urbano.
mais de 40%; nos de 1.500 a dois mil livros, de 50% para 75%o. Entre o da capital e o das províncias, no caso das cidades do Oeste,
Os trinta últimos anos do Antigo Regime marcam um ponto de as diferenças são grandes. Elas dizem respeito ao tamanho das
parada nessa conquista do livro possuído como próprio, já que, coleções,muito mais fornadasem Paris, e sobretudo à parte que
em todas as faixasde fortuna, a proporção de inventários mencio- nela ocupa o livro de religião. Na capital, seguindo a lição de
nando obras recua, e às vezesbastante como no caso das fortunas quarenta catálogos de vendas de bibliotecas de cónegos, de aba-
médias, entre mil e 1.500 livros, em que ela cai de 50% para des ou de vigários, a teologia conta 38% entre 1706 e 1740; 32,5%
32%o.'' Como o achatamento é menos marcado na parte baixa da entre 1745 e 1760; 29%oentre 1765 e 1790.iõ Nas cidades do
hierarquia, no âim dos anos 80 as diferenças se acham muito redu- Oeste, entre 1697-1698 e 1787-1 788, o recuo é sensível, mas num
zidas entre os mais desfavorecidos e aqueles que gozam de um nível totalmente diferente, já que o livro religioso passa de 80%
bem-estarmédio. para 65%.'' Lembremos que na produção do livro, tal como re-
Traduzida socialmente, essaevoluçãoindica duas mutações. velam as autorizações públicas, a teologia desaba entre 1723-
Por um lado, a penetração do livro nos meios do artesanato e da 1727 e 1784-1788, recuando de 34% para 8,5%.:;
mercadoria, seja segundo uma progressão secular (caso dos traba- Conservadoras, mais ainda na província do que em Paras,as
lhadores da madeira) seja segundo um máximo nos anos 50 e bibliotecas eclesiásticas registram os progressos da reforma cató-
uma redução em seguida (caso dos trabalhadores em vestuário lica e se homogeneízamem torno de alguns conjuntos principais.
ou dos comerciantes).Por outro, o aumentodo tamanhodas Desde meados do século XVll, a biblioteca do bom vigário au-
coleçõesdos dignitários: entre o 6im do século XVll e os anos menta: à Bíblia, ao catecismo do Concílio de Trento de Carlos
1780, o módulo das bibliotecas da burguesia passa da faixa de Borromeu, freqüentemente duplicado por catecismosfranceses,
um a vinte volumes para a de vinte a cem volumes; o dasbibliote- juntam-se com efeito a necessáriaposse de comentários e de ho-
caseclesiásticas,da faixa de vinte a cinqüenta volumes para a de milias dos padres sobre as Escrituras tendo à 6'ente SantoTomás
mais de cem a trezentos volumes; o das bibliotecas de nobres e e São Bernardo -, obras de teologia moral utilizadas no ministério
de grandes oâciais, da faixa de um a vinte volumes para a de mais (instrução aos confessores, casos de consciência, conferências
de trezentos volumes.'s Resta claro, portanto, que as coleções se
ampliam e que o número de textos oferecidosà leitura particular
16 Thomassery. C. Livre et culture cléricale à Parasau XVlll' siêcle: quarante
dos possuidoresde bibliotecas cresceao longo do século - o que
bibliothêques d'ecclésiastiques parisiens. Rwue ll'ançaised'H stoíredul.ivre,
talvez não deixe de ter efeito sobre a modalidade da própria leitura. n.6, p.281-300, 1973.
17 Quéniart, Cultura et sodété urbaines-. op cit« Fig.33.
18 Furei, E La librairie du royaume de France au XVlll' siêcle. In: Furest, F.
14 Qpéniart, Cultura et sodétéurbaíltes OP.cit« Fig.26.
(Dir.) l,ívre et socíétédons la Francedu XVTll' siêçle.Pauis,La Haye: Mouton,
15 Ibidem, Fig.38, 29 e 34.
1965.t.l. P.3-32

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Leituras e leitores na França do Antigo Regime

eclesiásticas), en6lm livros de espiritualidade (Imitação de Jesus-


por um lado, uma forte diferença entre as geraçõesclericais, opon-
Crísto, Guia dos pecadoresde Luas de Granada, Introdução ã vida de- do os clérigos formados depois de 1660, na idade dos seminários,
t,ofa de São Francisco de Sales) . e aqueles que os precedem; por outro, ela aproxima clérigos da
Essa ampliação e essa uniformização das leituras dos clérigos cidade e clérigos do campo cujas bibliotecas, modeladas sobre
urbanos resultam claramente de um esforço tenaz das autorida- as listas tipos dos bispos, apresentam grandes semelhanças.
des eclesiásticas: exigidas nos regulamentos dos seminários, for- Subsistem, entretanto, diferenças que distinguem na provín-
temente recomendadas pelos estatutos sinodais e as ordenações cia as bibliotecas dos cónegos e as dos párocos e que marcam a
episcopais, indispensáveis para participar das conferências ecle- originalidade do clero parisiense. Elas dizem respeito antes de tudo
siásticas, a posse e a leitura de certo número de livros torna-se à parte concedida aos livros que não são de religião. Nas coleções
uma obrigação que se impõe a cada pastor.:9Progressivamente, da capital, a história ocupa um lugar igual ao da teologia: 32,5%
as bibliotecas presbiteriais se submetem a essainjunção, adqui- dosfundos entre 1706 e 1740; 28% entre 1740 e 1760; 3 1% entre
rindo as obras aconselhadasnos estatutos sinodais ou abaste- 1765 e 1790. E, sinal de modernidade, a parte do latim recua ao
cendo-se nas listas de livros propostas pelo impressor da diocese, longo do século, passando de 47% para 27% dos títulos, ao mes-
em seguida às ordenações episcopais. Como aquele "Sumário de mo tempo que cresce o número de assinaturas dos diversos perió-
biblioteca para os eclesiásticos, que se encontra em Jacques dicos. Nas suas categorias superiores, o clero não constitui, por-
Seneuze,Impressor de Monsenhor, pelo preço mais justo" anexo tanto, um isolado cultural fechado a toda inovação,mas participa
aos Estatutos, Ordenqões, Mandamentos,Regulamentose Cartas ;)mto- de uma cultura que é também a das outras elites urbanas.
rais, do bispo de Châlons-sur-Marne de 1693. Identificar as leituras de segundaordem não é coisa fácil.:'
O impressor propõe aos clérigos da diocese "livros próprios Com efeito, mais ainda que para os outros grupos sociais, a lição
para todos aqueles que aspiram ao estado eclesiástico, ou que dos inventários após falecimento apresenta incertezas: a divisão
estão no seminário maior ou menor e vende também todos os da vida nobre entre a residência urbana e a residência rural, o
livros próprios parao serviçodivino, tanto parao uso romano legado da biblioteca por testamento ou sua exclusão da comuni-
como da diocese de Châlons". Sua lista detalha 83 títulos, cujos dade dos bens, o baixo valor dos livros em relaçãoa outros bens
preços se escalonam entre os dez sonsde um CurdacZerÍcalísou os culturais, presentesem grande número, explicam facilmente que
quinze sons da Prática da cerimónia da missa e as 39 libras pedidas a ausênciade livros nos inventários nobiliários não significa ne-
pelos treze volumes do À4issíonário
apostólico.Mas 15qodos títulos cessariamentesua ausência real, longe disso. Daí uma necessá-
custam menos de duas libras (e entre eles o Cafecísmodo concílio), ria prudência diante dos dados que indicam a posse aristocrática
e a metade das obras propostas a oito libras ou menos. Recomen- do livro. Eles mostram que uma parte, às vezes grande, dos nobres
dações insistentes e preços acessíveisexplicam por certo a ex- não tem biblioteca. O fato vale para as grandes cidades: em Paris,
tensão dasbibliotecas clericais. Esta tem um duplo efeito: marca,

20 Uma primeira sínteseé dadaem Roche, D. Noblesse et culture dans la France


19 Juba, D. McKee, D. Les confrêres deJean Meslier. Culture et spiritualité du du XVlll' siêcle: les lectures de la noblesse. In: Buchund Sammler.Privateund
clergé champenois au XVll' siêcle. Recued'Hlstoire de Z'Eglíseen France, t. 69.
ÕH$eníricheBibZiothekn im XVTlllahrhundert. Heidelberg: CaraWinter Univer-
P.61-86, 1983. sitãtsverlag, 1979. p.9-27.

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Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

em meados do século, somente 44% dos inventários nobiliários de trezentos volumes, esseé o caso de apenasum quarto das
mencionam livros;2' em Lyon, na segunda metade do século, 44%o bibliotecas de nobres titulados.zs
igualmente.z Ele vale também para as cidades de menor impor-
Tabela 1 - As bibliotecas
tância: na Bretanha, mais da metade dos nobres parece jamais ter
disposto de uma biblioteca digna desse nome;a e nas cidades do da nobreza urbana do Oeste

Oeste, a parcela dos inventários nobiliários com livros, mais eleva. 1696-1697 1727-1728 1757-1758 1787-1788
da por sinal que em qualquer outra parte, é de 78qono íim do sé-
17% 28% (21%) 36qo(249 ) 11%
culo XVll, e de 79%oàs vésperas da Revolução.:' Mesmo se a fonte Religião
Antigüidade 22% 17% 13% 6%
minou a apropriação nobiliária do livro, não deixa de ser verdade
Literatura 15% 17% 24% 44%(30%)
que uma parte importante da segunda ordem não é proprietária
História 19% 18% 21% 22%
de livros: a penúria (relativa) das viúvas, dos âílhos caçulas, da
nobreza "pobre" certamente explica isso, mas também um acesso N.B.: As porcentagens entre parênteses não levam em conta certas bibliotecas
fácil às coleções dos parentes, dos protetores, das administrações, particulares especializadasque deformam a percentagem de conjunto.

que pode dispensar a constituição de uma biblioteca pessoal.


Dentro da nobreza, é forte o contraste entre as famílias de O estudo do conjunto das bibliotecas nobiliárias leva a duas
toga, proprietários de cartórios de justiça ou de finanças, e as constatações:por um lado, confirma a existência de tradições
íàmílias de espada,investidas de cargos militares ou simplesmen- culturais contrastadas no interior da aristocracia; por outro, ma-
te credenciadas. Nas cidades do Oeste, a diferença é grande no nifesta os deslocamentos secularesdas leituras da segunda or-
6im do século XVl1: 45%odos inventários de escudeiros e cavaleiros dem. Tomadas globalmente, as da nobreza das cidades do Oeste
não trazem nenhuma menção de livros contra 5% dos inventários marcam três evoluções essenciais (Tabela 1). E primeiramente
dos grandes oficiais. A distância sereduz ao longo do século Xvlll, uma progressão duradoura da parcela do livro religioso, estendida
mas não se anula, deixando sempre um avanço de 5%oa 10% para sobre toda a primeira metade do século XVlll, seguida de um porte
os togados. O tamanho das coleções é outro sinal dessa vanta- recuo nos trinta anos que precedem a Revolução. A cultura no-
gem dos oficiais: para os nobres titulados, o módulo de livros biliária provincial é, portanto, tardiamente receptiva à literatura
possuídos permanece estável entre um e vinte títulos para as três da reforma Católica,depois, brutalmente, se destaca das fideli-
sondagens (1697-1698, 1727-1728, 1757-1758), ao passo que dadesreligiosas antigas. O abandono dos livros da tradição (pa-
evolui da taxa de vinte a cem em 1697-1 698 para a de cem a tre- dresda Igreja, direito antigo, história da Antigüidade, literatura
zentos em 1727-1 728 e 1757-1758 para os oficiais. E nas vésperas grega e romana), por sua vez, é regular e sem remissão, signifi-
da Revolução, se a metade das bibliotecas dos tocados tem mais cativo da distância progressivamente tomada em relação à cul-
tura inteiramente clássica do colégio. Enfim, na nobreza, as leitu-
ras predominantes não são absolutamente as ciências e as artes
2 1 Marion, ReçhercAes sur les bfbliothêquesprívées.-, op. cit, p.94. - cuja forte progressãocaracterizaa produção do livro em seu
22 Garden, l?on et les ZyonnaísazzXy711'siêcle,op. cit., p.459.
23 Meyer, J. l.a Ooblessebretonneau XVlli' síêcle.Paria; SEVPEN, 1966. p.1 166
24 Quénian, Culturaet sociétéurbaÍnes-, op. cit. p.226. 25 Ibidem, Fig.34

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Leituras e leitores na trança do Antigo Regime

todo --, mas as belas-letras. Desde a metade do século, estas pre- Para além desse horizonte dividido, aparecem as diferenças.
dominam sobre a história, sinal incontestável do sucessodos Elas se referem primeiro à atividade social de cada nobreza: daí
gêneros novos entre as elites de tradição. a parcelado direito entre os juízes do Parlamento e, entre os ar-
Mas estas últimas, como atesta o caso de Paris, não são abro. rendatários, a das ciências e artes, alimentadas pelas obras con-
lutamente homogêneas(Tabela2:õ). Um ponto comum, todavia: sagradas às finanças, às propriedades rurais e ao comércio. Mais
a parce[a da história, sobretudo nacional, nas ]eituras. A catego- abastados, os duques e pares são também os mais devotos mas
ria vem em primeiro lugar entre os duques e pares e os parlamen- suas bibliotecas são também as mais antigas nas sondagens de
tares, em quase igualdade com as belas-letras entre os arrenda- que dispomos Na segunda metade do século, a separação religio-
tários. Existe aqui uma forte originalidade do meio nobiliário, já sados magistrados e dos publicanos é forte, mais acentuada ainda
que nunca a parcela da história ultrapassa 20% da produção do que a da nobreza urbana provincial: a parcela da teologia entre
[ivro ta] como registram as permissões públicas para imprimir. os parlamentares recua de 19% entre 1734 e 1765; para 12% entre
Mesmo se a história lida por uns e por outros não é exatamente 1766 e 1780; e 6% entre 1781 e 1795. Enâlm, última diferença, o
a mesma, a verdade é que ela dá o fundamento de uma cultura peso da literatura é máximo na elite mais nova, a dos arrendatá-
específica,arraigando ambiçõese justificações aristocráticas na rios, bem-sucedidos pelas finanças, mas deve-se notar que ela
leitura do passado. aqui permanecemenos forte do que no conjunto da nobrezapa-
Tabela 2 - As bibliotecas risiense, confundindo-se todas as condições.
da nobreza parisiense no século XVlll Com essasdiferenças e desvios, semelhantes evoluções pare-
cem, entretanto, marcar as leituras da nobreza urbana, seja ela
Religião Direito História Belas- Ciências e
letras artes de Parasseja da província, afirmando em toda parte um nítido
10% destaque em relação ao livro de religião, o primado da história e
Sondagem geral 4% 25% 49% 12%
da literatura, a caca acolhida dada às ciências e artes. Mesmo se
1750-1789
subsistem diferenças entre a toga e a espada, a variação, que no
(50 bibliotecas)
20% século XVll opunha uma cultura rogada, apoiada sobre a autorida-
Duque e pares 3% 49% 19% 9%
de, um humanismo de referências, o primado da moral, e a cul-
1700-1779
12% 18% 31% 24% tura dos nldalgos, aberta às modas literárias, às ciências e ao pen-
Parlamentares 15%
samentomoderno," essavariaçãopareceanulada.A partir de um
1734-1795
húmus comum, as diferenças reconhecidas parecem mais ligadas
(30 bibliotecas)
6% a funções distintas do que a escolhas culturais realmente con-
Arrendatários 7% 30% 32% 25%
1751-1797
(18 bibliotecas) Labatut, J.-P l.es Duos et País au XVTI' síêcle.Paras: Prestes Universitaires de
France, 1972. p.232; Bluche, E l,es magísfratsdu RarlementdePurésau XI/IJI
síêcle.Paria: Les Belles-Lettres, 1960. p.29 1; Durand, Y l,es/ermiers générauíx
26 São assim confrontados os dados trazidos por Depraz, D. Enquêtesur les az{Xlal/' síêçle. Paras: Presses Universitaires de France, 1971 . p.562-3
bíblíothêques desnobres â Pnrts aprês 1750. Memorial de Mestrado. Paras, 1968;
27 Martin, l,ívre, pouvoirs et socfétéã Paras-, op. cit., t.l, p.51 6-51

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Leituras e leitores na trança do Antigo Regime

trastadas. Desenha-se assim um modelo nobiliário que agrupa evolução temática bem nítida; os livros profissionais, de direito
numa cultura comum elites aliadas pelasuniões e aproximadas ou de medicina, úteis ao ofício, permanecem dominantes através
pelo estilo de vida. de todo o século, mas seu achatamento (de 65% para 50%), acres-
As duas burguesias, a do talento e a do negócio, não apresen- centado à queda do repertório da erudição antiga, que passa de
tam uma tão nítida unificação.No âimdo século XVll, entre os 30% para menos de 5% das bibliotecas, dá lugar a novas curiosi-
burgueses de saber (advogados,médicos e cirurgiões, notários, dades. Estas são de duas ordens; históricas (a categoria conhece
procuradores, meirinhos e escrivães) e os comerciantes, o con- um forte impulso no segundo terço do século) e literárias, abrindo
traste é grande: nas cidadesdo Oeste, cercade dois terços dos as bibliotecas ao livro de entretenimento, teatro e romance em
primeiros possuem livros, o que é o caso de apenas um quarto primeiro lugar.sz
dos segundos.28Em meados do século, em Paria,a diferença per- As bibliotecas de negociantes, tanto nas cidades do Oeste
manece: 58% dos advogados, 44% dos médicos, 34% dos peque- como em Lyon, se organizam no século XVlll em torno de dois
nos oficiais de justiça têm livros, massomente 16qodos princi- pólos. O primeiro é de utilidade, juntando para o exercíciodo
pais comerciantes.:s E em Lyon, na segunda metade do século, negócio livros de comércio, manuais de contabilidade, obras de
74% dos inventários após falecimento dos membros das procis- direito, dicionários e almanaques, descrições e itinerários. O se-
sõesliberais e dos titulares de cartórios mencionam uma biblio-
gundo é de evasão: vindos mais tarde para a posse do livro, consti-
teca, mas apenas 24% dos inventários dos comerciantes e nego- tuindo suas bibliotecas enquanto os outros grupos já estão solida-
ciantes. A biblioteca dos primeiros compreende em média 160 mente dotados, os comerciantes são também os mais receptivos
títulos; a dos segundos, somente quarenta." à inovação. Daí, em suas coleções, o lugar não encontrado em
O exemplo do Oeste urbano atesta claramente uma tripla outras categorias dado às narrativas de viagens (que podem tam-
evolução das leituras da burguesia do talento. Primeiro, a posse bém servir à promissão), à história estrangeira, às novidades literá-
do livro aqui progride fortemente no segundoquartel do século rias, íi'ancesasou inglesas. Como os fidalgos do século XVll, tanto
XVlll: em 1757-1 758, 85%)dos inventários do grupo mencionam mais abertos aos textos modernos quanto eram os mais noviços
livros. Mais proprietários de livros, portanto, mastambém cole- leitores, os comerciantes do século XVlll constroem bibliotecas
ções maiores: na primeira metade do século, as bibliotecas, com- que recusam as tradições devotas ou humanistas. À margem das
preendendo entre vinte e cem volumes, tornam-se mais numero- academias mas em pé de igualdade nas lojas maçónicas, eles aâlr-
sas, constituindo 40% do conjunto; entre 1760 e 1790 são as mam, tanto na sua sociabilidade intelectual como nas suas leitu-
coleções de mais de cem títulos que se aâlrmam, dando mais de ras, uma mesma originalidade cultural, não ligada aos valores
30% das bibliotecas.s' Essa ampliação é acompanhada de uma clássicosdas aristocracias da espada,da toga ou da pena.':

28 Qpéniart, Culturaet socíétéurbaínes-. op. cit, p.266 e 286.


29 Marion, Recherchessur !esbiblíotAêques prívées-.,op. cit., p.94. 32 Ibidem, Fig.43.
30 Garden, L?onef lesZyonnais au XVlll'siêcle, op. cit., p.459. 33 Roche, D. Négoce et culture dans la France du XVlll' siêcle. Recued'Hísfoire
3 1 Qliéniart, Cultura ef société urbaínes-. op. cit. Fig.38.
Modernaet Contemporaíne,1978, p.375-95.

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Reger Chartier
Leituras e leitores na trança do Antigo Regime

A julgar pelos inventários de seus bens, artesãos e lojistas


Sessenta anos mais tarde, se dois terços das bibliotecas só
são péssimos leitores.s4Entre eles, são numerosos os que não
compreendem livros de devoção, dois fatos devem ser sublinhados.
têm nenhum livro, e numerosos também, entre os possuidores
Porum lado,uma vez em duas, o livro único é um livro profano:
de impresso, os que detêm apenas uma obra. Mais geralmente,
um livro de Barrême com um antigo chacareiro de Caen, um À4e-
esselivro único é livro piedoso: nas cidades do Oeste, é o que
moriaZ alfabético r(:gerenteàs tabelas, um Tarefa sobre os vinhos ou o
ocorre em 1727-1728onde esseslivros solitários sãoem dez
NovoPerÓeítoFerreiro,possuídos respectivamente por um diarista,
casosuma vida de santo, em nove casosum livro de horas, em
um mestre vinagreiro e um cocheiro de Rouen. Por outro, apare-
seisuma Bíblia, em dois um ImitaçãodelesusCrista, e ainda trinta cem pela primeira vez pequenas bibliotecas majoritariamente
anos mais tarde em doze vezes um livro de horas, doze vezes uma
compostas de livros profanos: assim, um "comerciante" de Rouen
vida de santo, três vezes uma Bíblia, uma vez a Imitaçãodelesus
possui o Evangelho, o A4édícodo pobre e um Dícioitárío geogr(í/ico;
Crista, uma História dosjudeus, uma Divindade de/estasCrista. Em
e a esposa separada de um barbeiro possui um livro de devoção,
Lyon, depois de 1750, o livro único é igualmente uma vida de
a Arte deadorrzaro espíritoe um Dícíonáriojrancês-alemão.
Aparecem
santo, com capa de basana e de baixo custo. Nas bibliotecas um
aí então os sinais de uma ampliação das leituras populares, que
pouco menos fornadas,o primado do religioso permanece forte. encontraráconfirmação fora do tratamento em série dos inventá-
Em Caen, em 1757-1758, entre 32 bibliotecas de artesãos com-
rios após falecimento.
preendendo de dois a cinco títulos, 25 só comportam livros de
devoção, e, em Lyon, é o casode 70% das coleções possuídas pelos
mestres de ofícios e os operários da seda. Móveis e bibliotecas
Mesmo, contudo, se atendo à lição dos inventários certamen-
te mais imperfeitos ainda para as classespopulares do que para Uma vez possuído, o livro deve ser guardado. A julgar pelos
todas as outras, o religioso não constitui o todo da leitura popu- inventários após falecimento parisienses, as fórmulas sãomúlti-
lar. Com o século, as presenças inesperadas se multiplicam. Seja plas, das mais humildes às mais ostentatórias. Entre os mais mo-
o exemplo de Rouen e de Caen. Desde 1727-1 728, títulos profa- destos dos leitores, o livro não tem lugar marcado: ele pode ser
nos vêm ao lado de bíblias, livros de horas e vidas de santos: como encontrado em qualquer lugar da casa,no cómodo único - que é
as Contasjeifas de Barrême e as ColÚssõesde Santo Agostinho com a regra comum -, na cozinha, quando ela existe, ou nas diversas
um mestre alfaiatede Rouen,um Cozinheirobzzrguês com um ho- dependências menores (sótãos, antecâmaras, guarda-roupas) .
teleiro de Caen,Esthercom mestre tanoeiro e o Teiêmaco
e Luciano Colocado em qualquer lugar, ele é freqüentemente carregado com
com um merceeiro da mesma cidade, a CléZiae Rabelais respec- a pessoa como atestam as descrições estabelecidas após o aci-
tivamente com um mestre alfaiate e um operário moedeiro de dente que fez 132 mortos, na quarta-feira 30 de maio de 1770,
Rouen.
dia da festa pelo casamento do De16im e de Mana-Antonieta.
Esmagadose sufocadosnos tumultos da Rua Royale, esses
parisienses comuns são identificados por seus parentes e é feito
34 Confrontamos aqui os dados fornecidos por Quéniart, Culturaet soçiétézirbai-
nes...,op. cit., p.289-90, 295-6 e 301; Garden,L#onet lesl7onnaísau XVTll' o inventário do que tinham consigo. Entre os objetos familiares,
síêcle,
op. cit, p.460; e Roche,l.epeupledePnrís-, op. cit., p.221-2. alguns livros: é assim que AnneJulienne, de vinte anos, ajudante

190 ]91
Roger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

de alfaiate, trazia um almanaque, queJacques Briet, de sessenta


veis de maior importância como aquela "biblioteca de oito por-
anos de idade, reconhecido por seu locatário, tinha um livro de tas gradeadas em latão", possuída em 1776 por Charles Le Vacher,
igreja, e que Made Fournier, de sessentaanos também, mulher de cirurgião do hospital militar.:'
um carregador de água, tinha com ela "um velho livro piedoso".ss Essesmóveis de arrumação traduzem diversas preocupações.
Quando o número de livros possuídos aumenta um pouco, A primeira é de conservação:o livro é um objeto precioso que é
torna-se necessário um móvel para coloca-los. O mais humilde preciso preservar. Daí o recurso comum ao encadernador (em
é a estante de livros, que muitas vezes é um pequeno armário Paras,nas bibliotecas da décadade 1750, somente 5% dos livros
que pode ser fechado a chave e que â'eqüentemente acolhe outros são simplesmente brochuras), daí também encerramentodos
objetos, ao lado dos livros ou no lugar deles. Ocorre o mesmo [ivros mesmo os mais modestos, como aque]es 28 ín-]2 e ín- ]6
com os armários-bibliotecas, às vezesencontrados mesmo quan-
encapados em velho simples e fechados à chave num cofre pela
do o possuidor não detém nenhum livro. Quando contêm livros, esposa de um nobre parisiense, antigo capitão dos haras do rei.;;
eles podem encontrar-se em qualquer cómodo da casa:no quar- Uma segundaftlnção da biblioteca é decorativa e distintiva: entre
to, mas também no banheiro, numa antecâmara, até mesmo na os mais abastados,o móvel de arrumação deveprovar o bom
cozinha ou na escada.sõE o que ocorre em Besançon no século
gosto, convir ao estado do proprietário dos livros, exibir suas
XVlll, onde se percebe claramente uma hierarquia da arrumação. obras, respeitar o estilo em moda.
No degrau mais baixo, o armário de roupas, o cofre, o cesto Após as seduçõesdo estilo Luís XV e suasvitrines em mar-
(por exemplo, na casa de Jean Mignard, professor de Teologia da chetaria, no fim do século o móvel inglês triunfa em toda a Euro-
Universidade, onde o notário encontra em 1730 "um cesto todo pa, ao mesmo tempo que se diferenciam as bibliotecas, com for-
cheio de velhos livros antigos e declaradosde pouca importân- mas próprias dadas àquelas que se destinam às mulheres.s9
cia") . Depois, vem a estante de livros, assim descrita num inven- Ultima preocupação: a comodidade que proporciona, no fim do
tário de 1747, "uma pequena estante de duas portas que fecha à
século, a invenção de móveis com rodinhas, permitindo deslocar
chave". Mas o móvel mais freqüente é a pequenabiblioteca, no- de um cómodo para outro os livros necessários.40
meada diversamente pelos notários como "bufê gradeado'
Nas cidades francesas do século XVlll, raros são, por nlm, os
"biblioteca de duas portas gradeadas", "buíê em forma de biblio- proprietários de livros que abrigam suascoleçõesem uma ou vá-
teca", "armário de duas portas" etc. Trata-se em geral de um pe- rias salas especialmente destinadas à conservação e à consulta
queno móvel em nogueira ou em fãa, dotado de duas portas gra-
das obras. Essecostume é o casosomente dos mais ricos, proprie-
deadas ou envidraçadas, dividido por prateleiras colocadas em
diferentes alturas, permitindo a colocaçãodos livros por tama-
37 Grinewald, J. L'emplacement des livres au XVlll' siêcle dons les bibliothê
nho - os in-jolio embaixo, os pequenosno alto. Raros são os mó-
ques privées de Besançon. In: l.es espaçosdu livre. Pauis: Institut d'Étude du
Livre, 1980 (datilografado), v.ll: "Les bibliothêques", p.13-30.
38 Ibidem, p.126, n.175
35 Farte, A. Wvre dons la rue du XVrll' siêcle.Paria; Gallimard-Julliard, 1979. 39 l.esewufh, Raubdruck lIEd BücAerlulxus.Dm Buch ín der Goethe-Zeft. Goethes
p.80-7('Archives"); e La víe fagíle. Wolence, pouvoírs et solfdarítés à Pauis au
Museums Düsseldorfl Anton-und-Katharina-Kippenberg-Stiftung, 1977,
XVTll' siêcle..Paras;Hachette, 1986. p.239-42. n.315 e 316.
36 Marion, Recherches sur !es bíbliothêques
prívées-, op. cit« p.124-6. 40 Ibidem, n.317

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Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

tários de um palacete particular, ou dos maiores colecionadores freqüentemente gabinete de trabalho, para o advogadoou o ho-
de livros. Em Lyon, é o casopor exemplo da biblioteca de Pianelli mem de letras, o magistrado ou o cientista.'s Lugar de estudo,
de La Valente mencionada nos Almanaques da Cidade e no Dicio- ela torna-se também retiro íntimo, espaço por excelência do foro
nário de Expilly. Sabe-se, graças ao seu livro de contas, que Lau- privado, encerrando objetos prediletos.
rent Pianelli de La Valette despende quase 6.400 libras para suas O Dicionáriode Furetiêre diz isso claramente na sua definição
compras de livros entre 1734 e 1740 - soma considerável já que, do gabinete: "Lugar retirado nas casascomuns, onde se estuda,
em 1725, a biblioteca inteira de um tesoureiro de France Lyon- onde alguém se afasta do resto do mundo e onde se fecha o que
nais, J.-P. Philibert, é avaliada em 2.300 libras.': Às vezes, a bi- se tem de mais precioso. O lugar que contém uma biblioteca
blioteca é um cómodo da casade campo e não da residência urba- chama-setambém gabinete"." O modelo dado por Montaigne,
na: é assim que um conselheiro da Corte das Moedas de Lyon, retirado em sua "livraria" ("Eu tento arrogar-mepuro domínio
Antoine Trollier, mandou preparar no seu castelo de Lissieu-en- sobreele e subtrair esteúnico canto à comunidade tanto conjugal
Lyonnais uma sala especial, atapetada de cartões e de estampas, como filial e civil", Ensaios, Livro 111, cap.lll) , atravessa, portanto,
para guardar os 9 15 volumes de sua coleção.4: a Idade Moderna, contrariamente àquele que faz da biblioteca
Na capital, três motivos podem levar a conservar os livros um lugar de "exposição" e de sociabilidade.
em uma ou várias salas destinadas unicamente a essa função. A Entre as bibliotecas de prestígio, algumas, a exemplo dos
primeira é a paixão da coleção,levadaao paroxismo por um grandesestabelecimentosreligiosos e universitários, seenfeitam
biblió6llo como o marquês Paulmy d'Argenson que acumula vá- de rica decoração: paredes forradas de madeira na biblioteca de
rias dezenasde milhares de livros nas 72 salasde seu palacete - Massilon, instalada em 1729 nos apartamentos particulares do
hoje Bibliotecado Arsenal.': Segundamotivação:a aparência bispo de Clermont, no primeiro andar do bispado;bustos de
social que íaz da biblioteca o lugar de uma sociabilidade escolhi- mármore, porcelanas chinesas e tapeçarias parisienses colocadas
da. No palacetede Aumont, Rua do Cherche-Medi,a biblioteca acima dos bufês de acaju, realçadas de cobres dourados, da bi-
comunica com o jardim por uma porta-balcão. Nas paredes, ta- blioteca do cardeal de Rohan em Estrasburgo em 1740; cópias
peçarias e retratos de família; no centro, uma escrivaninha e al- de antigüidades e decoraçãoalegórica em 1776 para a coleçãode
gumas poltronas. Em outros casos, ela pode ser também sala de Louis:Joseph Borely no seu castelo nos arredores de Marselha."
música ou gabinete de curiosidades.44Enfim, a biblioteca é Na mesma época, os membros da família real mandam instalar
em Versalhes bibliotecas íntimas, lugares de retiro e de medita-
41 ção: como em 1769 a biblioteca de Madame Sophie, tia de Luís
Sobre essa coleção, cf. Chartier, R. IIAcadémie de Lyon au XVlll' siàcle.
Êtude de sociologie culturelle. In: Nouvellesétldes lyonnaises.Genêve: Droz.
1969. p 206-9 e 212-4; e Garden, L?on et les Zyonnafsau XV711'síêcle,op. cit..
P.464-5. 45 Roche, D. l;intellectuel au travail. AnnalesESC, 1982, p.465-80, em particu-
42 Garden, L?on et ZesZyonnaisat{ XVTJI'siêcle,op. cit. p.462.
lar p.474-6.
43 Masson, A. l.e décor des bíblíothêquesdu Àfoyen 4ge d la Révolution. Genêve: 46 Citado no estudo de Beugnot,B. L:ermitageparmi les livres; imagemde la
Droz,1972.p.139. bibliothêque classique. RecueFranfaísed'Histoíre du Livre, n.24, p.687-707.
44 Marion,M. Les livres chezles parisiensdanala secondemoitié du XVlll' 1979
siêcle. In: l,es espacesdu !iwe, op. cit., p.31-7. 47 Masson, l,e décor desbiblíothêqaes-. , op. cit, p.132-42.

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Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

XVI, com decoraçãode arabescose flores pintados sobre o estu- Li todas as peças que o senhor me enviou pelas quais eu Ihe
que; em 1772 a de Mana-Antonieta ainda Delnlna; em 1775 a agradeço. Eu o exorto a lembrar-se sempre do pobre exilado nas
biblioteca do Rei, concebida por Gabriel e decorada pelos irmãos obras novas que lhes forem comunicadas; eu as conservarempor
Rousseau, dotada de painéis e relevos alegóricos." pouco tempo e o senhor ficará sempre encantado da minha exati-
Mas, tanto quanto hoje, nos séculos XVH e xvnl, o possível dão. (carta de 24 de março de 1716)
acesso ao livro não pode ser reduzido apenas à posse particular
de uma biblioteca. O livro lido nem sempre é um livro possuído, Ele pressiona seu amigo: "Ou me compre ou me empreste o
longe disso, e dos anos 1660 aos anos 1780 multiplicam-se no Epíctêtede Madame Dacier. Faça uma das duas coisas que julgar
reino as instituições e as práticas que facilitam a leitura de livros Ihe convir melhor; mas faça imediatamente uma ou outra, porque
não possuídos pessoalmente. Para além das coleções particulares, estou curioso para ler o prefácio" (carta de 8 de março de 171 6) .
são estas que precisamos estudar agora. Duga, aliás, não é o único que Ihe empresta livros e manuscri-
tos: o médico Falconnet é também um de seus fornecedores.
Numa carta de 10 de janeiro de 1716, Bottu encarregaDumas
Livros emprestados e tomados de empréstimo de garantir-lhe que seu livro e seu manuscrito não estão perdidos
Quanto ao manuscrito com certeza eu Ihe devolverei, e será o
Um primeiro costume, tão antigo quanto o próprio livro, é o mais breve que eu puder. Quanto ao livro, se ele encontrar outro
do empréstimo. E praticado entre amigos, como no primeiro terço em Paria, eu Ihe devolverei em dinheiro; senão eu enviarei o dele
do século entre Laurent Dugas, presidente da Corte das Moe- quando ele me pedir mais uma dúzia de vezes. Para um homem
das, Senescaliae Tribunal de Lyon e preboste dos comerciantes que tem quinze mi] vo]umes, um ín-]2 é uma bela coisas
da cidade entre 1724 e 1729, e François Bottu de La Barmondiêre,
senhor de Saint-Fonds, tenente particular dajurisdição do Beau- Mas em Lyon também, embora bem-dotado de livrarias, o
livro circula entre amigos e relações. Dugas toma emprestado;
jolais. Ambos sãomembros daAcademia leonesacriada em 1700,
"0 abadeMichel me emprestou três outros volumes dasNouvelles
ambos são bibliófilos e estão em estreita correspondência de 17 1 1
a 1739 - data da morte de Bottu de Saint-Fonds.49 Em suas car- l.íttéraíres"(8 de janeiro de 1718); "0 livro do Sr. abadede La
tas, o comércio do livro, em todos os sentidos da expressão, ocupa Charmoye merece ser lido. Foi M. de Messimieux quem me em-
um vasto lugar. Eles compram livros raros e novidades, recebem prestou,já há alguns anos; não sei por que não o comprei" (I'
de outubro de 17 19) . Ele empresta também: "Conhece Pía Híiária
obras de presente e também emprestam e tomam emprestado.
R.P Angelini Gazoei? São pequenas peças em versos iâmbicos
Botou, que reside em Villefranche-sur-Saâne,bicamuito impa-
ciente pelas remessas de Dugas: ou scazons. Eu o emprestei a Bois Saint-Just para distraí-lo,
comecei a lê-lo e me divertiu" (I'de outubro de 1720) . Por vezes,
a corrente dos empréstimos tem muitos elos:

48 Ibidem, p.130-1. M. Constant, o advogado, que eu não via há mais de um ano,


49 Correspondance !ittéraire et anecdotÍque entre Monsieur de Saint-Fonds et ie Prési- enviou-me recentemente um pequeno ]ivro ín-] 6, expressamente
dent Dzzgas,
publicada e anotada por W Poidebard, Lyon, 1900. para que eu o lesse e que disse ser extremamente raro. Achei-o

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Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

muito bom e muito útil e queriaencontrarum para o senhor e


A capital se mostra mais bem-dotada com dezoito coleçõesaber-
para mim. O título é Método para começar as humanidades gregas e
latinas por M. Le Fêvre de Saumur. Como não é certo que se possa tas ao público: a Biblioteca do Rei, três bibliotecas reunidas por
encontra-lo e as opiniões que ele dá serão de premente utilidade colecionadores particulares (a Mazarine, a do hotel Soubise, a
para o senhor, frei um resumo daquilo que notei de singular. (carta do marquês de Paulmy no Arsenal), duas bibliotecas de corpos
de Dugas, 20 de fevereiro de 1722) civis (a dos advogadosinstalada no arcebispado,a da cidadesi-
tuada na antiga casa professa dos jesuítas à Rua Saint-Antoine) ,
Em 1734, foi tomando emprestado de sua filha o livro em- quatro bibliotecas de estabelecimentos de ensino (a da universi-
prestado a esta pelo advogadoBrossette que Dugas pôde ler as dade depositada no Colégio Louis-Le-Grand, a da Sorbonne, a
Cartas.Fios(5Pcas
de Voltaire, "antes de devolvê-las a M. Brossette' da Faculdade de Medicina, a do Colégio de Navarra) e oito bibli-
(cartasde 22 de dezembrode 1734 e de I' de janeiro de 1735). otecas religiosas, pertencentes a abadias(Saint.Vector, Saint-Ger-
Toda uma parcela da circulação do livro escapa,portanto, ao mer- main, Sainte-Geneviêve) ou a congregações(Oratório, Recoletos,
cado e ao seu corolário, a posse particular: como na Idade Média Mínimos, Agostinos, Doutrinários) . A admissãonessasbibliote-
ou no século XVI, os livros são objeto de presentes apreciados, casé às vezesclaramente regulamentada (como na Biblioteca do
de empréstimos rebuscados.s' E as redes da amizade intelectual Rei "aberta a todos às terças e sextas-feiras das nove horas da
não são as únicas a incluir tais práticas: a presença da mesma manhã até meio-dia", ou na biblioteca da universidade onde "se
obra com uma dezena de exemplares numa biblioteca como a de entra às segundas, quartas e sextas de nove horas da manhã até
GeofRoy,primeiro vigário de Saint-Merri, vendidaem 1760, pa- meio-dia e desde duas e meia da tarde até cinco horas"); outras
rece com efeito indicar um hábito de empréstimo aos paroquia- vezesdeixa-se à livre apreciação do bibliotecário. É o que ocorre
nos, talvez aguçadopor uma sensibilidade jansenista.s: na abadia de Saint-Germain-des-Prés onde, "embora a biblioteca
não seja destinadaao uso do público, é muito freqüentadapor
causa do livre acesso que nela encontram as Pessoas de Letras";
As bibliotecas públicas na Sainte-Geneviêve cuja biblioteca "não é pública de direito'
mas onde "os Religiosos têm a honra e o dever de compartilhar
No curso do século XVlll, abre-se mais amplamente que antes as riquezas com os Sábios, que podem ir lá fazer pesquisas às
outra possibilidade para os leitores que pessoalmente não têm segundas, quartas e sextas, não feriados, das duas até as cinco
muitos livros: as bibliotecas públicas. ONovo Suplemento
dalõ'arfa horas da tarde"; ou no Colégio de Navarra cujas coleções "consis-
l.iferáría, publicado em 1784, permite um primeiro recenseamen- tem particularmente de antigos manuscritos. Eles sãocedidos
to no 6im do Antigo Regime dessas "bibliotecas públicas de dife- de bom grado, assim como os livros, às pessoas conhecidas". E o
rentes corpos literários, civis, eclesiásticos, religiosos etc.".s: marquês de Paulmy abre igualmente às pessoasde letras "a sober-
ba e vasta biblioteca que formou no Arsenal"
50 Davas,N. Z. Beyond the Market: Books as Gifts in Sixteenth Century Fran- Na província, a Francel,itféraire enumera dezesseiscidades,
ce. Transaçüonsofthe Royal Hístoríca! Socíety,5'h séries, v.33, p.69-88, 1983. grandes ou pequenas, que possuem pelo menos uma biblioteca
5 1 Thomassery, artigo citado, p.287-8. pública. Nelas, as coleçõesreligiosas são as mais numerosas:
52 NouveauSupplémenfã la Francel.{ttéraíre,4' partie, Paria, 1784, p.1-143.
bibliotecas de colégio em Lyon, Dijon, Valognes; bibliotecas capi-

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Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

tulares em Rouen, Saint-Omer, Sens;bibliotecas conventuais ou Segundaabertura: a dos estoques dos grandes colecionado-
de congregações em Nantes, Orléans, Toulouse, Besançon; biblio- res. Mazarino dá aqui o exemplo. Com efeito, desde 1644 a cole-
tecas "do clero" em Vesoul e Toulouse. A biblioteca aberta pode ção que ele constituiu com a ajuda de seu bibliotecário Gabriel
ser também a da academia (Lyon, Nancy, Rouen), a da universida- Naudé é acessível ao público um dia por semana, às quintas-fei-
de ou de uma faculdade (Estrasburgo, Orléans) , a da cidade (Es- ras. De início instalada no palacete de Clàves, a biblioteca é em
trasburgo também) . Algumas cidadesparecemprivilegiadas com seguida transferida para o edifício construído a partir de 1646
diversas coleçõespúblicas: Orléans, que conta com cinco; Lyon por Le Muet na Rua de Richelieu. O essencial das coleções é con-
e Toulouse que têm três. Segundoos casos,o acessoé mais ou servado na grande galeria do primeiro andar onde 54 colunas de
menos parcamente medido: se a biblioteca dos beneditinos de madeira canelada e encimada de capitéis coríntios dividem os
Orléans fica aberta três dias por semana, das oito às onze e das revestimentos de madeira nos quais estão embutidas estantes
quatorze àsdezessete horas, a de Saint-Euverte na mesma cidade com prateleiras múltiplas. Vendida em 1652, reconstruída de
só abre quinta-feira das quatorze às dezesseishoras do dia de pois da Fronda pelo sucessor de Naudé, François de la Poterie, a
Saint-Martin até a Páscoa e somente das dezessete às dezoito biblioteca é transferida por Mazarino, pelo seu testamento de 7
horas no resto do ano. Mesmo contraste em Rouen entre a biblio- de março de 1661, para o Colégio das Quatro-Nações, fundado
teca do capítulo, aberta todos os dias das nove ao meio-dia e das pelo mesmo ato. No novo edifício construído por Le Vau, depois
quinze às dezessete horas, e a da Academia, acessível unicamente por Orbay, duas galerias perpendiculares, no primeiro andar, são
às quartas e sábadosentre quatorze e dezesseishoras. reservadasao livros: os revestimentos de madeira da Rua de
Esseinventário, certamente parcial, do Hlmdo Antigo Regi- Richelieu são remontados e os livros transferidos em 1668. To-
me, atesta claramente a importância adquirida pela "leitura públi- davia, íoi só em 1688 que a biblioteca foi aberta aopúblico, "duas
ca" no século XVIII. Três processos concorrem para a sua exten- vezespor semana", como estipulava o testamento do cardeal.s'
são.Primeiro, a abertura ao público das grandes coleçõesreligiosas, Seguindo esse mesmo modelo, o Conselho do Rei decide em
que pode acompanhar ou seguir uma nova organização. Como 1720 abrir a Biblioteca do Rei "a todos os cientistas de todas as
na biblioteca da abadia de Sainte-Geneviêve,equipadacom 45 nações nos dias e horas que serão regulamentadas pelo bibliotecá-
mil volumes desde o primeiro terço do século XVlll, aumentada rio de SuaMajestade e ao público uma vez por semana". Paraisso,
e embelezada entre 1720 e 1733 . O arquitetoJean de La Guépiêre decide-se transferir as coleções para o palácio Mazarino da Rua
dá à sua galeria, situada no segundo andar da abadia, uma dispo- de Richelieu. Começadosem 1726, os trabalhos de adaptação
sição em forma de cruz instalando uma cúpula de vitrais na in- conduzidos por Robert de Cotte e âlscalizadospelo abadeBignon,
tersecçãodos dois braços;o pintorJean Restout decora a cúpula o bibliotecáriodo rei, são muito longos, terminados somente
com a nlgurade Santo Agostinho, demolidor dos livros heréticos; quinze anos mais tarde, depois que desapareceramos outros
os bustos de homens ilustres esculpidos por Coysevox, Girardon ocupantes do palácio (a Companhia das índias, o banco encarre-
e Caffieri adornam as traves da biblioteca.s3

54 Gasnault, P Labibliothêque de Mazarin et la bibliothêque Mazarine au XVll'


et au XVlll' siêcles. In: l,es espaces
du !ívre, op. cit, p.38-56; e Masson, l.e
53 Masson, l.e décor des bíbZiotAêques
du À open.4ge ã JaRévolutíon, op. cit, p.143-4.
décor des bibliotAêques du ÀÍoyert Age â la Révolutíon, op. cit., p.98-103

200 201
Rogar Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

gado da liquidação do sistema de Law e a marquesa de Lambert) .


testamento lega sua coleção de aproximadamente cinco mil vo-
De tal modo que em 1734 a biblioteca pode acolher "os cientis-
lumes à academia com a obrigação de que ela seja aberta ao pú-
tas e os curiosos õ'ancesese estrangeiros", mas ainda não é aberta
blico uma vez por semana.Na inca de um local, a academianão
em dias e horas marcados.ss
pode abrir a biblioteca - o que provoca um processo com os her-
Outra incitação para a constituição de bibliotecas públicas é deiros de Adamoli. Finalmente, em 1777, a biblioteca é instala-
fornecida pelo legado de particulares que cedem suas coleções
da numa das salas do paço municipal cedidas à academia pelo
com a condição de que ela seja aberta aos leitores da cidade. Foi
consulado e aberta toda quarta-feira.s'
assim em Lyon onde, em 1731, o advogado e antigo almotacé
Aubert vende em vitalício sua biblioteca ao corpo da cidade. O
presidente Dugas relata assim o caso: Os gabinetes de leitura
M. Aubert vendeu sua biblioteca ao consulado mediante duas
mil libras de pensão vitalícia para sua pessoa e 1.500 libras para A primeira rede de bibliotecas públicas é construída, portan-
M. Chol, seu sobrinho que já tem sessentaanos. Ele reserva para
to, no século XVIII. Todavia,como vimos, não faltam dificulda-
si o usufruto durante sua vida. Depois de sua morte, ela será leva- des: entre a decisão de abertura e a acolhida efetiva do público, o
da ao paço municipal e certamente tornada pública alguns dias da tempo às vezesé longo, além disso certas bibliotecas só aceitam
semana. (carta de 28 de maio de 1731) "pessoas de letras" ou "cientistas", enâlm muitas delas só abrem
poucas horas na semana. Outros acessos públicos ao livro são
No mesmo ano, o advogado Brossette é nomeado bibliote- então necessários: o gabinete de leitura é um deles. A bem dizer,
cário da cidade e, por sua vez, dois anos mais tarde, vende à ci- essadenominação única recobre uma grande variedade de formas
dade sua própria biblioteca "por uma pensão vitalícia para si e que é preciso tentar classiâlcar.A mais antiga liga o gabinete de
para seu filho" (carta de Botou de Saint-Fonds de 26 de dezem- leitura à livraria. Como em Caen, em meadosdo séculoXVll, onde
bro de 1733). No curso do século,o consuladodivide a bibliote- Moysant de Brieux, um antigo conselheiro no Parlamentode
ca assim constituída entre a do Colégio da Trindade e a do Colé- Metz, retirado na cidadenormanda, relata assim seu encontro
gio Nobre-Dame "para coloca-la mais ao alcance dos leitores das com os futuros fundadores da academia: "Eles e eu, encontramo-
diferentes ordens". A terceira biblioteca pública da cidade, a da nos há alguns anos na loja de um dos nossos livreiros, onde íamos
academia, também resulta na sua maior parte de um legado, ver- todas as segundas-feiras para ler a gazeta e ver os livros novos, e
dadeiro dessavez. Ele é feito em 1763 por um mestre dos portos, achamos que poderíamos ter essa mesma diversão com mais
pontes e passagemda cidade de Lyon, Pierre Adamoli, que por comodidade em algumas de nossascasas".s'A locação do perió-
dico dá assim aos livreiros um primeiro motivo para abrir um

55 Bléchet, F IJabbé Bignon, bibliothécaire du roy, et les milieux savants en


France au début du XVlll' siêcle. In: Buchund Sammler.-,op. cit., p.53-66; e
56 Nouveau Suppiément â Jal+ance l.íttéraíre, op. cit, p.78-9; e Chartier, EAcadémie
Einstallation de la bibliothêque royale au PalaisMazarin 1700-1750. In: l.es
de Lyon-, op. cit., p.228-9.
espacesdu rime, op. cit« p.57-73; cí também Masson, l,e décor des bíblíotAêqz.[es
57 CitadosegundoR. Formignyde La Lande,Dommenfs
ínédítstour servirã
du À4oyen
.4geã la Révolutíon,op. cit., p.125-30.
I'hÍsrofre de Z'ancíenne académíe de Caem, Caen, 1854, p.9.

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Reger Chartier
leituras e leitoresna França do Antigo Regime

gabinete de leitura. No curso do século xvlll, a esse se juntam As vantagens desses gabinetes de leitura são recíprocas.
outros, mais poderosos. Neles, os leitores podem ler sem comprar, e sobretudo encontrar
A partir dos anos 1770, sobretudo, sãoinúmeros os livreiros por um preço de assinatura acessível as "obras âilosó6lcas«edita-
que duplicam seu comércio com um "gabinete literário" onde é dasem quantidadenas fronteiras do reino. Os livreiros, por um
possível inscrever-se para vir ler as novidades. Citemos dois exem- lado, podem consolidar seu negócio: em maio de 1777, Guerlache
plos. Em 1750, estabelece-seem Metz um novo comerciante de indica que durante os dez meses anteriores as vendas de livros
livros, Nicolas Guerlache, que investe duas mil libras para com- Ihe renderam 3 .600 libras e as assinaturas 2.564 libras. Por outro,
prar uma patente de livreiro, montar sualoja e adquirir um mate- a presençade um gabinete literário atraindo leitores cria com-
rial de encadernação. Ele é o correspondente na cidade do editor pradores potenciais e estimula o negócio: "Todos os meus as-
bruxelense Boubers, especializado no livro proibido. Logo os dois sinantes me fazem compras", assinala Guerlache numa carta de
homens entram em conflito e Guerlache, para consolidar seu negó- janeiro de 1776. Confrontados com uma demandapremente, em
cio, abre um "gabinete literário", abastecidopor encomendas pas- choque com a hostilidade de seuscona'adessolidamente esta-
sadasjunto à SociedadeTipográâca de Sarrebruck e da Sociedade belecidos, os livreiros mais õ'ágeisporque os mais recentemente
Tipográâca de Neuchâtel. Por três libras por mês, os leitores - na instaladosmultiplicam nos últimos vinte anosdo Antigo Regime
maioria oficiais da guarnição - podem encontrar romances, relatos os gabinetes de leitura, que se tornam entrepostos provinciais
de viagens, ensaios filosóficos, panfletos políticos e obras eróticas. para a diftlsão de jornais, de novidades e de livros proibidos.s9
Endividado, Guerlache foge de Metz em 1774, mas, na espe- Mas há outros gabinetes de leitura não nascidos da iniciativa
rança de serem pagos, seus credores Ihe perdoam e no ano comercial de um livreiro, como aquele visitado por Arthur Young
seguinte ele reinstala seu gabinete literário. Em dezembro de quando de sua viagem de 1788 que o leva a Nantes:
1775, ele diz ter "cerca de duzentos leitores a dezoito libras por
Uma iniciativa espalhada pelas cidades comerciais da França,
ano e aproximadamente 153 libras por mês", e em 1777 seus as-
mas particularmente florescente em Nantes, é a câmarade leitura. o
sinantes são em número de 379. Seu comércio iniciante é forte.
que chamaríamos de um book-clzzb
que não distribui os livros entre
mente abalado pela guerra da Independência americana que dimi- seus membros, mas em forma de biblioteca. Há três salas:uma
nui em grande proporção a guarnição de Metz. Segundo exemplo, para leitura, outra para conversação,uma terceira constitui a bi-
dessa vez no Sul: o de Abraham Fontanel que monta uma livra- blioteca; no inverno, mantêm-se boas lareiras e há velas.óo
ria em Montpellier em 1772. As dificuldades do comércio o inci-
tam, três anos mais tarde, a abrir um "gabinete literário". Como A instituição assim descrita é a câmara de leitura da Fosse.
Guerlache, ele oferece para leitura romances, relatos de viagem, ftlndada em 1 759. Seu regulamento prevê que os 125 associados
ensaiosde autores em moda e também livros proibidos, enco-
mendados em Neuchâtel, Lausanne, Genebra e Avignon.s' 59 Podemos mencionar, para os anos 1770-1790, os gabinetes literários ou
salas de leitura abertos pelos livreiros Lair. em Blois; Labalte, em Chartres;
Beauvert, em Clermond; Bernard, em Lunéville; Buchet, em Nomes: Élies.
58 Darnton, R. Bohême
líttéraíreet RévoZutíon.
Le monde des livres au XVlll' em Niort; Despax, em Pau.
siêcle. Paria: Gallimard, Seuil, 1983. "Le monde des libraires clandestina 60 Young, A. Moyageselt Franceen ] 787, ]788 e 1789. Trad. H. Sée. Paras: Colin,
sous I'Ancien Regime", p.111-53. 193 1. t.l, 'IJournal de voyages", p.245-6.

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Reger Chartier Leituras e leitores na trança do Antigo Regime

deverão pagar um direito de entrada de três libras e uma assina- A difusão dos gabinetes de leitura, no entanto, não se limita
tura anual para a leitura de 24 livros. A câmara é administrada àscidades do Oeste, nem apenas às cidades comerciais. Com efei-
por comissários eleitos que deverão cuidar para mandar "vir todas to, elas se multiplicam em todo o reino, sobretudonas cidades
médias desprovidas de academia, mas também em certas cidades
as gazetas e todas as obras periódicas mais úteis para a sociedade
e comprar em Nantes ou mandar vir de Paris bons livros bem acadêmicas(Lyon, Auxerre, Clermont), tendo por clientela aque-
escolhidos, de preferência ín.joZioe ín-quartoreferentes ao comér- les que não podem ou não querem forçar as portas do cenáculo
cio. à marinha, à história, às artes, à literatura, bem como algu- mais elevado.Daí, muitas vezes, uma fronteira indecisa entre
mas brochuras novas e interessantes".ó: Para os associados, as câmara de leitura e sociedades literárias.u Em Rennes, por exem-
plo, vários membros da câmara de leitura fundada em 1775 que-
vantagens de semelhante instituição são múltiplas: por um lado,
diferentemente das bibliotecas raramente abertas,mal aquecidas riam transforma-la em verdadeira"sociedade literária", já que,
e mal iluminadas,õ:a câmarade leitura é um lugar confortável, por sinal, ela é assim designada: "Nossa sociedade é consagrada
à leitura, mas não seria possível justinlcar, mesmo aos olhos do
claro, aberto todos os dias - mesmo nos dias feriados após os
público, o nome de sociedadeliterária que ela assumiu?", escre-
ofícios religiosos. AÍ se pode, portanto, ler à vontade, com um
ve Le Livec de Lauzay em 1778, e dois anos mais tarde o abade
acessodireto às estantes, os livros novos caros demais para serem
Germé renova a proposta: "Sem desmentir o título modesto sob
comprados (daí a insistência dos regulamentos sobre os tama-
o qual estamos reunidos ... não seria de desejar que aqueles den-
nhos grandes). Por outro, diferentementede uma academia,a
tre nós que poderiam fazer algumas pesquisas ou reflexões judi-
câmara de leitura não exige nem solenidade regulamentada nem
ciosas fossem incitados a nos comunicar suas observações e seus
atividade obrigatória: ela é um lugar de encontros livres e de inter-
pontos de vista?".'s Mas, se o pedido é rejeitado, ele não deixa
câmbios espontâneos. Daí o sucessoda fórmula, que alia a coop-
de traduzir uma tenaz aspiração a ligar, como em meados do sé-
tação acadêmica (sendo limitado o número de lugares) e a prática culo XVll, õ'eqüência ao livro e trabalhos eruditos.
dos gabinetes literários. Uma câmarade leitura semelhante é Inversamente, as sociedades literárias que proliferam a partir
aberta em Rennes em 1775: ela tem cem membros "de estado de meados do século, e sobretudo depois de 1770, dotam-se de
honesto e considerado", escolhidos por eleição; o direito de entra-
bibliotecas, compram livros novos e jornais francesese estran-
da é de 27 libras, o montante da assinatura é de 24 libras e seu geiros. Em algumas delas, é a própria leitura dos livros colocados
estoque compreende numerosos periódicos e 3.600 volumes.6: à disposição dos associados que alimenta o intercâmbio letrado.
Le Mans em 1778, Brest em 1785 seguemo exemplo, e em Nantes Como em Millau, na sociedadeliterária fundada em 1751 e de-
mesmo haverá em 1793 seiscâmarasde leitura. nominada Tr@ot [Espeluncal:

Ela promove suas sessõestodos os dias, com exceçãodos do-


mingos e feriados: os jornais fornecem a matéria. Quando eles se
61 Quéniart, Cultura et sociéréurbaines..« op cit., p.432-3.
62 Na biblioteca mazarina, por exemplo, as contas do século XVlll não mencio-
nam nenhuma despesa para o aquecimento ou a iluminação (cf: Gasnault. 64 Mornet, D. l.es origínes intellectue]]es de ]a Révo]utíon H'anfaise ] 7] 5-1 787. Pa
ris: Colin, 1933. p.305-12.
artigo citados p.52).
63 Quéniart, CuZttzreet sodété urbaínes-« op. cit., P.433-4. 65 Quéniart, Cultura et sodéfé urbaínes-., op. cit, p.434.

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Reger Chartíer Leituras e leitores na França do Antigo Regime

esgotam, recorre-se às melhores obras da época. Cada acadêmico, Os locadores de livros


ao entrar na sala,pega o livro que acha apropriado. Se, no decorrer
de sua leitura, ele encontra algum assunto que seja digno de ser Os gabinetes de leitura, sejam eles ligados a uma livraria se-
observado, ele comunica a seusconfrades. As leituras particulares
jam a uma sociedade, literária ou não, permanecem como o
se transformam imediatamente em conversaçãogeral. Uma vez
privilégio de uma clientela escolhida, que pode pagar uma assi-
discutidas a fundo as reflexões do acadêmico, volta-se a ler. até que
natura bem considerável, mensal ou anual. Paraos mais despro-
outras observaçõeschamem de novo a atenção da assembléia. E
vidos, existem outras formas de locação do impresso. Desde o
assim que se dão conferências e que a noite termina geralmente.õ'
reinado de Luas XIV, diversos livreiros parisienses alugam assim,
No vocabulário da instituição acadêmica, descreve-se assim no próprio local, na atente da loja, panfletos e gazetas. François
uma realidade completamente diversa onde são abolidas as dife- Renaudot, proprietário do monopólio da Gazette,queixa-se dis-
so ao Conselho de Estado em 1675:
rençasentre leitura por assinatura,livre conversaçãoé comunica-
çãoerudita. Em outros lugares, a sociedadeliterária pretende as-
Há algum tempo, introduziu-se um abuso, tanto em Pauiscomo
sumir o papel de biblioteca pública, abrindo suascoleções,como em alguns outros lugares do reino, onde certos particulares,
certas academias, para além do círculo de seus membros. E o caso notadamente em Parasonde alguns livreiros, situados no cais dos
em Mortain, na diocese de Avranches: Augustins, resolveramoferecerpara leitura toda sorte de escritos,
como gazetas,relatos e outras peçasque eles compõem indiferen-
Formou-se há pouco nesta cidade uma sociedade composta de
temente ou que dizem vir de paísesestrangeiros.Essasgazetase
25 a trinta dos principais cidadãos. Eles estabeleceram uma biblio-
outros escritos, eles não se contentam em apregoar e vender pelas
teca onde se encontram não apenasas obras mais importantes,
ruas, e leva-los à casa dos particulares: mas ainda oferecem para
tanto antigas como modernas, mas também os jornais, as gazetas
serem lidos a todos aqueles que se apresentam diante de suas ca-
etc. Ela é aberta gratuitamente para as pessoasconhecidas."
sas e lojas, e em razão do lucro que daí tiram.

Entre câmarade leitura e sociedadeliterária, a diferença é,


Mais adiante, o texto indica outro costume: o da leitura das
portanto, tênue: as duasformas cedemum lugar central ao im- gazetasem voz alta, provavelmente mediante modesta retribui-
presso, livro ou jornal, colocados à disposição comum, e partici-
ção: "Também há pouco, vários burgueses foram maltratados
pam de uma mesma reação contra o exclusivismo e as coerções por malandros e outros vagabundos, que se acostumaram a reu-
acadêm.icas.õ8
nir ali]cais dosAugustins], sobpretexto de ouvir a leitura das
referidas gazetas".ósO que significava dar forma nova, na entra-
da da livraria, à prática daqueles "novelistas de boca" represen-
tados por Malham no seu quadro .A ponte da ZourneZleea /Jha São
l,uísque data de meados do século XVll (Museu Carnavalet, Pa-
66 1.aFrancelíttéraíre.Paras,1769,p.105-6.
67 Nouveat{ mppiémeltt ã la France líttéraire, op. cit., p.91.
68 Roche, D. l.e siêçle des Lumíêres en Provínce. Académies et académiciens provin- 69 Citado por Feye[, G. ].a "Gazette" en provínce â travers sesréímpressions, ] 63 1
ciaux, 1680-1789. Paria-LaHaye: Mouton. 1978.t.l, p.63-6, e t.ll, mapa 4. ] 752. Amsterdam, La Haye; APA-Holland University Press, 1982. p.97-8.

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Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

risco e por Moliêre, na primeira cena de Á condessa de Escarbagrzas Do auto-de-fé à sacralidade


(1671), onde o visconde explica assim seu atraso:
Nos vinte últimos anos do Antigo Regime, a reflexão sobre
Fui paradono caminhopor um velho importuno de marca
maior que me pediu expressamentenotícias da corte, para encon- a leitura pública torna-se central no pensamento reformista.
trar um meio de me contar outras, das mais extravagantesque Encontram-se aqui duas exigências contraditórias que ilustram
possam ser ditas; e é esse, como se sabe, o flagelo das pequenas os sonhos opostos de Mercier e de Boullée. Na sua utopia (ou
cidades, essesgrandes novelistas que procuram todos os lugares antes ucronia) de 1771, O anode 2440, Mercier visita a Biblioteca
onde divulgar os contos que elesjuntam. do Rei e vê nela uma aparência muito singular: "Em lugar daque-
las quatro salasde uma extensão imensa e que encerravammi-
O de Angoulême faz a leitura da GazetadaHoZanda e de folhas lhares de volumes, só descobri um pequeno gabinete onde esta-
"que vêm do lugar mais seguro do mundo". vam vários livros que me pareceram nada menos que volumosos".7:
Um século mais tarde, os "locadores de livros", segundo a No século XXV, com efeito, os homens se libertaram da tirania dos
expressão de Louis-Sébastien Mercier, multiplicaram-se na capi- maus livros e dos saberesinúteis por um imenso auto-de-íé:
tal.7i Eles mantêm pequenos salõesou gabinetes, mas sobretu-
do alugam livros tomados de empréstimosou trazidos. A tarifa Por consentimento unânime, reunimos numa vasta planície
todos os livros que julgamos frívolos, ou inúteis ou perigosos; for-
aqui não é por mês, maspor dia, ou até menos. Mercier nota com
mamoscom eles uma pirâmide que em altura e largura parecia
efeito que "há obras que excitam uma ta] fermentação que o li-
uma torre enorme: era certamente uma nova torre de Babel. Os
vreiro é obrigado a cortar o volume em três partes. Então você
jornais coroavam esse bizarro edifício, que era revestido de todos
paganão por dia mas por hora". E Mercier cita anota Heloísacomo
os lados por mandamentos de bispos, discursos de parlamentos,
exemplo desseslimos desmembrados para serem alugados a mais requisitórios e orações fúnebres. Ele era composto de quinhentos
leitores ao mesmo tempo. Para ele, essas locações múltiplas e as a seiscentos dicionários, cem mil volumes de jurisprudência, cem
leituras apressadastornam-se o sinal indiscutível do sucessolite- mil poemas, mil e seiscentas viagens e um bilhão de romances.
rário. "Grandes autores, vão examinar furtivamente se suas obras Ateamos fogo a essamassa espantosa, como um sacrifício expiatório
ficaram bem sujas pelas mãos ávidas da multidão". As magras oferecido à verdade, ao bom senso, ao verdadeiro gosto.
coleções dos meios populares, tal como revelam os inventários
apósmorte, não são,portanto, o todo da leitura dos humildes, O que tinha que ser salvo o foi: "Fizemos resumos do que
longe disso. Para os que não têm livros ou têm-nos poucos, por havia de mais importante; reimprimimos o melhor: o todo 6oi
três centavos por dia o livro pode estender o horizonte do sonho corrigido segundo os verdadeiros princípios da moral"
ou do prazer. Para além do jogo literário, freqüentemente encenado, que
consiste em imaginar a triagem operada pela posteridade entre
os autores do passado,submetendo assim os contemporâneos a
70 1.ejaítdívers.Musée Nacional desAres et Traditions Populaires. Pauis:Ed. de
la Réunion des Musées Nationaux, 1982, n.154.
72 Mercier. L-S. E'an 2440. Rêdes'íl et!.füt .jamais, 1771. Ed. por T Trousson
71 Mercier. L-S. Tableaude Pauis.Amsterdam, 1782-1788. t.M p.61-4
Bordeaux: Ducros, 1971. cap.XXVlll, p.247-71

210 21 1
Reger Chartier
Leituras e leitores na Franca do Antigo Regime

uma crítica severa,'3L.-S.Mercier diz outras coisas, menos fami-


dele a sala de leitura, que seria assim a mais considerável de toda
liares ao seu século: que o livro pode ser tanto obstáculo quanto
a Europa. Sobre os lados dessa"imensa basílica", iluminada uni-
apoio na busca da verdade, que o entendimento humano só neces-
camentedo alto, quatro níveis de degraus,da altura de um ho-
sita de poucos guias, que asbibliotecas imensas não servem para
mem, que constituem a basede uma colunata contínua cujas
nada. Menos radical que o sábio velhote da Basílíadede Morelly
curvas nas extremidades da sala formam com a cabeçado arco
(1735) que pleiteia pela existência de um único livro, conden-
'espécies de arcos de triunfo sob os quais poderiam estar duas
sando todos os saberes úteis e possuído por cada cidadão, Mercier
estátuas alegóricas". Os livros, dispostos na parede dos degraus
denuncia, entretanto, os perigos de uma leitura prolífera, insaciá-
e atrás da colunata, picamao alcancedos leitores que passam
vel consumidora de frivolidades e superstições, que deve ceder
diante deles e facilmente acessíveis "por pessoas colocadasem
diante de outra atitude, a de "homens que, amantes de idéias for-
diversos níveis e distribuídas de maneira a passar os livros de
tes, dão-se ao trabalho de ler e sabem em seguida meditar sobre mão em mão"
sua leitura"
Sobre a vista perspectiva que acompanha o Memorial descre-
Opostos do sonho depurante de Mercier são os projetos
acumulativos de Êtienne-Louis Boullée nos anos 1784 e 1785.74 vendo o projeto e a maquete que o apresenta, Boullée imaginou
minúsculos leitores, vestidos de togas romanas, que perambulam
O primeiro Ihe é encomendado pela direção dos edifícios em vista
entre os livros acumulados, para ler de pé uma dentre as milhares
da construção de uma biblioteca pública no terreno do convento
de obras ao alcanceda mão ou se reúnem em torno das raras
dos capuchinhos.Atrás de um pórtico colossal,encimado por um
mesas dispostas na vasta sala. A lição é clara: o espaço da leitura
ético decorado com uma bisa, Boullée faz suceder um pátio em
recupera a sacralidade perdida pelo espaço da religião, e o estudo
hemiciclo, chamado templo de Apoio, ladeado de gabinetes de
é como uma viagem através dos livros, ritmada pelas marchas e
estampas e medalhas, depois um vasto edifício quadrado cujos
pelos altos. A biblioteca deve reunir todos os saberesacumulados,
quatro cantos, ocupados por livros, sãoligados por dois vestíbu-
los em forma de cruz que servem de sala de leitura. No quadra- ser uma suma dos conhecimentos humanos, colocar à disposição
de cada um as milhares de obras escritas ao longo dos séculos.
do sãoassim delimitados quatro pátios interiores cercadospelos
Como indica o modelo admitido por Boullée, a saber,a Escolade
depósitos de manuscritos. Uma vez abandonado o primeiro pro-
,4tenm de Rafael, é a partir desse saber acumulado que poderão
jeto, encontra-seamesmamonumentalidadeno plano proposto
para a reconstruçãoda Biblioteca Real na Rua de Richelieu. A nascer os pensamentos novos. A Antigüidade é aqui referência
idéia central de Boullée consiste em cobrir com uma gigantesca e repertório, mas, mais ainda, memória para o progresso.
abóbadaem arco o longo pátio retangular (100 m x 30 m) em O inventário das formas de acesso ao livro é uma condição
torno do qual estavam dispostos os edifícios existentes e fazer necessária para uma história da leitura. Mas ele diz pouco sobre
aspráticas do livro, suas modalidades contrastadas e seus deslo-
camentos entre meados do século XVll e o âim do Antigo Regime.
73 Trousson, R. Les bibliothêques de I'utopie au XVlll' siêcle. In: Buch und Pararestitui-las, é necessário mais atenção às representações que
Sammler-, op. cit., p.99-107.
74 Pérousede Montc[os, J.-M. Étíenne-]ouísBou11ée(] 728-] 799), De !'archítecture os homens da antiga sociedade deram de suas leituras (ou a dos
cZassÍque
ã Z'archítecMre révoludonnaíre.
Paria:Ans et Métiers Graphiques, 1969. outros), mais atenção também aos usos que nos revelam os pró-
p.165-7 e pl. 93-102. prios objetos impressos.

212 213
Roger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

A leitura do foro privado Mesmo quando não é nem feminina nem romanesca, a lei-
tura posta em representaçãono século XVlll é leitura íntima. O
Uma primeira representação, predominante, é aquela que
papel do livro no retrato masculino se achadeslocado:de atri-
mostra a leitura como ato por excelência do foro privado, da inti-
buto estatutário, índice de uma condição ou de uma função, ele
midade subtraída ao público, do isolamento intenso, afetivo, in-
se torna companheiro de solidão. Na tradição, o livro é adorno,
telectual ou espiritual. Os pintores francesesdo séculoXVlll
e a biblioteca signo de um saber ou de um poder: como no retrato
multiplicaram assim as cenas de leitura feminina em que a heroí-
de Pierre Palliot, genealogista dos Estados da Borgonha, atribuído
na, no segredo da solidão, deixa apreender uma emoção discreta
a Gabriel Revel em 1696 (Museu das Belas Artes, Dijon), ou na-
ou desordenada. A Afora lendo de Fragonard (Nacional Gallery,
quele outro, glorioso, do marquês de Mirabeau, pintado por Aved
Washington), confortavelmenteinstalada,lê com uma atenção
e expostono Salãode 1743 (Museudo Louvre,Paras).A essa
comportada e aplicada um livro elegantemente seguro na mão
iconografia clássica,o retrato do século XVlll acrescentaoutra: a
direita. Por trás da imobilidade perfeita da leitora, como que reti-
do próprio ato de leitura, que supõe uma relação íntima entre
rada fora do mundo, adivinha-se uma animação totalmente inte-
um leitor e um livro. Novelas encenadassão então figuradas: a
rior, uma tensão calma.7sUm pouco antes nesse século, e de uma
leitura ao ar livre no jardim, sob as folhagens (Carmontelle, O
maneira menos límpida, dois outros quadros, um deJeaurat, Cena
condede Genlís, coleção da rainha da Inglaterra), a leitura de pé,
deinterior (coleção particular), outro de Baudoin, Á leitura (Museu
acompanhando a caminhada, como naquela silhueta recortada
dasArtes Decorativas,Paras)
, inscrevemo ato de leitura no mes-
de Goethe dos anos 1780.
mo horizonte. Nas duasrepresentações, um interior rico, mais
No CamilleDesmozzlfns
naprísãode Hubert Robert(Wadsworth
frio emJeaurat, mais suave em Baudoin, onde se acham acumula-
Atheneum, Hartford, Connecticut), a representaçãodaleitura so-
dos os signos da intimidade feminina: o cãozinho familiar, os mó-
litária atingeum ponto limite: num isolamentoforçadoe abso-
veis da comodidade cotidiana, a poltrona confortável onde o corpo
luto, o livro torna-se companheiro de infortúnio, exatamente
se enlanguesce, a desordem discreta emJeaurat, invasiva em Bau-
como os poucos objetos familiares ou o retrato da mulher amada.
doin. Nos dois quadros, a leitora é uma mulher jovem, em trajes
Lido enquanto se caminha, ele introduz na clausura carcerária a
do lar, surpreendida no instante em que seus pensamentosse memória do mundo exterior e fortifica a alma numa sorte contrá-
evadem do livro lido, pousado, a página marcada com o dedo,
ria e injusta. Desse modo, numa modalidade laicizada, essare-
sobre osjoelhos ou sobre a casinha do cão adormecido. Perturbada
presentação do âlm do século reencontra a iconografia da leitura
pela sua leitura, a leitura se abandona, a cabeçaindinada sobre uma
espiritual em que um leitor (geralmente SãoJerânimo ou São
almofada, o olhar perdido, o corpo languido. Com certeza, seu livro
Paulo),num retiro voluntário, isola todo o seuser no texto deci-
era um daqueles que comovem os sentidos e excitam a imagina-
frado com uma atenção reverencial.7õ
ção:pelo seu quadro, o pintor invade o íntimo feminino, com re-
serva emJeaurat, com sensualidade complacente em Baudoin
76 As obras de Baudoin, Aved, Carmontelle e Hubert Robert estão reproduzi-
das no catálogo france ín theE@AfeenthCentury(Royal Academy ofArts, Winter
75 Cf. Starobinski, J. ];invertida de !a ]íberté ] 700-] 789. Genêve: Skira, 1964. Exhibition, 1968, n.14, 10, 112. 594 [Fig.312, 168, 307, 335]); o quadro de
p.125 [ed. bus.: A invenção
da ]íberdade.
SãoPau]o:Editora UNESB 1994]. Fragonard naEuropean ;bíntíngs; an lrZustrated Summary Catalogue(Washington;

214 215
Roger Chartier
Y leituras e leitores na França do Antigo Regime

Paraessaleitura íntima, o mobiliário do séculoXVlll dá supor- tar os textos e cruzar as referências.7s No 6im do seculo XVIII. o
tes adequados. A poltrona, dotada de braços e guarnecida de al- gosto inglês propõe a toda a Europa um mobiliário utilitário
mofadas, a cadeira de preguiça ou marquesa, a marquesa separada
menos utópico, mesas circulares e mesinhas destacáveis que per-
com seu tamborete à parte sãooutros assentosnovos onde o lei- mitem a leitura sobre as carteiras de prolongamento e a consulta
tor, â'eqüentemente a leitora, pode instalar-se à vontade e en- de guias e mapas sobre um estrado central, ou então espreguiça-
tregar-se ao prazer do livro. Como mostram as gravuras (por deiras com carteiras corrediças cujo austero rigor geométrico
exemplo, a l,CítaradeJacquesAndré Portail, coleção Forsyth Wi- rompe com a maciez das poltronas e de suas grossas almofadas.8'
ckes, Newport"), a essesmóveis do luxo interior corresponde Será que essa reação do fim do século indicaria a tomada de
um traje de mulher, chamado justamente liseuse,que é umajaque- consciênciade uma evoluçãodo estilo de leitura que teria feito
ta ou penhoar caseiro, quente e leve ao mesmo tempo, convenien- as elites ocidentais passarem de uma leitura intensiva, reveren-
te para ler na intimidade do quarto ou da sala. Outros móveis cial, a uma leitura extensiva, desenvolta, contra a qual se deve-
indicam uma leitura menos relaxada, como as mesascom carteira
ria reagir? Essasduas maneiras de ler, cujo contraste pode ser
móvel onde sepode pousar o livro como a página em que se escre- detectadona Alemanha e na Nova Inglaterra, se opõem.A pri-
ve," como as secretárias cuja carteira pode ser encimada de uma meira se caracteriza por quatro elementos:
pequena biblioteca. 1. 0s leitores são confrontados com livros pouco numero-
No curso do século, esboça-se uma reação contra essemobi- sos perpetuando textos que têm uma forte longevidade; 2. A lei-
liário considerado demasiado frívolo e tenta impor móveis mais tura não é separadade outros gestos culturais como a audiência
funcionais que concebem a leitura mais como um trabalho do de livros lidos e relidos em voz alta, no seio da família, a memo-
que como um abandono. Alguns, na tradição da Renascença, vi- rização daqueles textos ouvidos, deciâáveis porque já conheci-
sam tornar mais fácil a consulta das obras. É o caso da roda de dos, ou a recitação daqueles que foram aprendidos de cor; 3. A
livros desenhada e gravada por Daudet, que adapta a invenção relação com o livro é marcada por uma seriedade respeitosa diante
proposta pelo engenheiro italiano Ramelli em 1588: sobre uma da letra impressa, investida de uma forte carga de sacralidade; a
roda de madeira, movida à mão, uma série de carteiras acolhe os freqüentaçãointensa dos mesmos textos lidos e relidos molda
livros consultados. Sem vaivéns inúteis, sem o incomodo de li- os espíritos, habituados às mesmasreferências, habitados pelas
vros empilhados, o leitor sentado pode comodamente confron- mesmas citações. E na segunda metade do século XVlll na Ale.
manha,no início do séculoXIX na Nova Inglaterra, que essees-
tilo de leitura cederia lugar a outro, baseado na multiplicação dos
livros acessíveis,a individualização do ato de leitura, separado
National Galery ofArt, 1975, n.1653); o de Jeaurat em R. Huyghe, E'.4rt ef
I'Homme(Paras: Larousse, 1961, Fig.642); o de Revel em Cataloguedespeíntu-
resj'ançaises (Musée des Beaux-Ans de Dijon, 1968, n.104) ; e a silhueta de
Goethe em l,esewuth,Raubdruckund Biicherlmzu-.(op. cit., n.335). 79 Sobre a máquina de Ramelli, cf. Masson, op. cit, p.1 10-1, Fig.46; sobre a
77 Reproduzido em Starobinski, E'ínventionclela !íberté,op. cit, p. 123. gravadapor Daudet, cf. l.asarizndl.esenim XV/J/JahrAundert,Colloquium der
78 l,Quis XU Un momelzt deperÓectÍonde I'art.Êançais. Paras: Hotel de la Monnaie, Arbeitsstelle XVlll Jahrhundert GesamthoschuleWuppertal, 1975, Heidel-
berg, Carl Winter Universitãtverlag, 1977, p.1 78-9.
1974, n.423.
80 1.esewutA.
Raubdruckund BíicÀerlulxus-.,op. cit. n.314 e 3 18.

216 217
Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

dos outros gestos culturais, a dessacralizaçãoda atitude em face tilo antigo de ler. E a imagem das leitoras representadas pelos
do livro e uma prática mais livre, indo de um texto a outro, mais pintores, mesmo se ela indica a eficácia mantida do livro, capaz
negligente em relação ao impresso, menos centralizada sobre de perturbar os sentidos,atesta uma leitura que devoraasnovi-
alguns livros privilegiados.': dades, que é ato de prazer íntimo, que se inscreve num conforto
Será que semelhante deslocamento é detectável nas socie- totalmente mundano. É contra essamaneira de ler, frívola e gra-
dades urbanas õ'ancesas do século XVlll? Parece claro, inicialmen- tuita, que tomam partido Rousseau na França ou os pré-român-
te, que no reino a leitura intensiva carecedo suporte essencial ticos na Alemanha.8z Para eles, a leitura deve ser coisa séria, im-
que a sustenta em país protestante, a saber, a â'eqüentação coti- plicar a participação ativa do leitor, modiÊlcar seuspensamentos
diana da Bíblia, ouvida, lida, renda, recitada. Em terra católica, e sua existência. A emoção, que integra o leitor ao texto e ins-
semelhante familiaridade, longe de ser recomendada, é tida como creve o texto no leitor, torna-se assim mestra da vida com a con-
suspeita, já que ela dispensa o clero, mediador obrigatório entre dição de que as obras sejam lidas com atenção, tomadas e reto-
a Palavradivina e a comunidade dos fiéis. Apesar dessadiferença madas,meditadas e discutidas - o que implica, como enuncia
importante, já que a leitura da Bíblia dá o modelo de toda leitura L.-S. Mercier, poucas leituras mas racionais, e não a multiplica-
nas regiões reformadas, vários traços podem fazer considerar çãode livros lidos mal e apressadamente.Alguns dos leitores do
como intensiva a leitura tradicional das cidadesfrancesas:por séculoXVlll tomaram as instruções ao pé da letra e se tornaram,
um lado, para muitos e por longo tempo, como vimos, o número de fato, o feitor imp]ícito e ideal desenhadopelo autor. Como
de livros possuídos permanece baixo, e é um corpus limitado de aquele Jean Ranson, negociante em La Rochelle, ávido por obter
textos que constitui a herança referencial; por outro, outros li- da Sociedade Tipográfica de Neuchâtel os livros de Jean-Jacques
vros além da Bíblia podem ser objeto de apropriações intensas e que são para ele guias para a existência, lidos com paixão, ouvi-
modelar profundamente os espíritos. O almanaqueque muitas dos com constância.
vezes dá a organização aos livros de razão, os avulsos cujas narra-
tivas servem de arquétipos àquelas em primeira pessoa dos jor- As falas mediadoras
nais e das memórias privadas, os livros de devoção possuídos por
todos e cuja leitura é recomendada pelos clérigos, são com efeito A essarepresentaçãoda leitura da individualidade, os homens
outros tantos livros conhecidos e reconhecidos, manuseados e do século XVlll opuseram outra: aquela em que uma fala media-
incorporados. dora se torna leitora para os iletrados ou os semiletrados. Rétif
No curso do século XVlll, o aumento do tamanho das biblio- de la Bretonne dá o seu arquetipo em .A vida demetipaí em 1778;
tecas, perceptível em toda parte, o acessomais fácil às coleções
públicas, o uso do livro alugado modificam certamente essees- 82
Cf. Darnton, R. Le gralzd massacredeschata. Aftífzídes et croyancesdons I'arzdenne
France. Paras: LafFont, 1985 [ed. bus.: O grande m sagre dos galos. 2.ed. São
Paulo: Graal, 1988], "Le courrier des lecteurs de Rousseau: la construction
81 Cf. Engelsing, R. Der Bürger als l.eser.l,esergeschichtein Deutschland, 1500-1 800 de la sensibilité romantique" (p.201-38); e Montadon, A. Le lecteur senti-
Stuttgart, 1974; e Hall, D. Introduction: the Uses of Literacy in New En mental de Jean-Paul. In: l,e lecteziref la iecture darásI'oeuvre. Association des
gland, 1600-1850. In: Joyce, W et al. (Ed.) Printíng and Sodetyín Early Mo Publications de la Faculté des Lettres e Sciences Humaines de Clermond-
dera.4merica.Worcester: American Antiquarian Society, 1983. p.1-47. Ferrand, 1982, p.25-33.

218 219
Roger Chartier

Era entãodepois do jantar que o pai de família fazia uma lei-


T Leituras e leitores na França do Antigo Regime

aqueles que trabalham na propriedade, ao mesmo tempo que


tura da Santa Escritura: ele começava pelo Gênese e lia com unção institui o reino da virtude e da piedade. Parece não haver dúvida
três ou quatro capítulos, conforme sua extensão, acompanhando- de que a representação está bem afastada da realidade: na socie-
os de algumas observações curtas e pouco íteqüentes, mas que
dade antiga, a vigília camponesa, quando existe, é antes de tudo
julgava absolutamente necessárias.Não posso me lembrar sem
o lugar do trabalho em comum, do conto e do canto, da dançae
enternecimento com que atenção aquela leitura era ouvida, como
ela transmitia a toda a numerosa família um tom de bonomia e de dos amores. Apesar dos esforços dos clérigos da reforma católica,
fraternidade(na família, incluo os criados) . Meu pai começava sem- o livro aqui não penetra e a leitura coletiva parece rara. Por certo
pre com estas palavras: "Concentremo-nos, meus 6llhos, é o Espí- o impresso circula amplamente nas campanhas francesas do sé-
rito santíssimo que vai falar". No dia seguinte, durante o trabalho. culo XVlll, mas isso não significa que ele seja maciçamente di-
a leitura da noite anterior constituía o assunto das conversas, so- fundido por uma fala mediadora e noturna.
bretudo entre os rapazesdo arado." Mais que de práticas rurais efetivas, a imagem fda certamente
de outra coisa, a saber,a nostalgia de leitores urbanos por uma
A cena, gravadacomo frontispício do segundovolume da pri- leitura perdida. Na representaçãoda vida camponesaideal e
meira ediçãodo texto, é o equivalenteliterário de um quadro mítica que circula amplamente na elite letrada, a leitura comuni-
exposto por Greuze no Salão de 1755. Diderot, que o designa sob tária significa um mundo onde nada é escondido, onde o saberé
diversos títulos (Pní que Zêa Santa Escritura a seus.FI/zos, Camponês õ'aternalmente compartilhado, onde o livro é reverenciado. Existe
que lê a Santa Escrítzzra à suajamília, Camponês que lêpara seus.alhos) , aqui uma espéciede nígurainvertida da leitura urbana, secreta,
atesta sua ampla circulação sob forma de gravura: "M. de la Live individual, desenvolta.Construindo implicitamente uma oposi-
que é o primeiro a fazer conhecer o talento de Greuze consentiu ção entre a leitura silenciosa, urbana e notável, e a leitura em
de bom coração que se gravasseseu quadro do Camponêsque lê voz alta (para outros, mas também para si mesmo), popular e
para seus.alhos,e não existe nenhum homem de bom gosto que camponesa, as imagens e os textos da segunda metade do século
não possuaessaestampa"." XVlll indicam o sonho de uma leitura da transparência, reunindo
Um mesmo motivo se constrói, pois, de Greuzea Rétif! numa idades e condições em torno do livro decifrado.
sociedaderural patriarcal e homogênea,a leitura em voz alta, feita No cotidiano urbano, certas experiências do impresso, bem
na vigília pelo chefe da casaou pelo âllho, ensina a todos os man- diferentes da vigília bucólica, supõem a mediação de uma fala
damentos da religião e as leis da moral. Longe do mundo urbano, que diz o escrito. O vendedor de canções é um desses interme-
desmembrado e depravado, a leitura camponesa,que é palavra diários do escrito. Três representaçõesdatadas das últimas dé-
dita e ouvida, comentaa comunidade familial, ampliada para todos cadas do Antigo Regime figuram esse comércio: O cantor de/eira,
um quadro deJ.-C. Seckazgravado em estampa por Romanet; O
víolínisfa, quadro de Louis Watteau de 1785 (Museu de Belas-Ar-
83 De la Bretonne. R. La vie demon pêro.Paria: Garnier. 1970. p. 131-2.
tes, Lille); e uma gravura de Moreau, oJovem, Ájeira de Comesse,
84 Diderot. D. Sa]onsde ] 759, ] 761, ] 763. Texto estabelecidopor Jean Seznec.
que mostra um vendedor e seusclientes. Nos três casos,os mes-
Paras:Ans et Métiers Graphiques-Flammarion,1967. p 164. O quadro de
Greuze é analisado por Fried, M. .4bsorptionand Theatrícalíty.Painting and mos motivos são dados a ver: o cantor que se acompanha ao vio-
Beholder in the Age of Diderot. University of California Press, 1980, p.8-11 lino, a tela pintada sobre a qual ele mostra, com a ponta do arco,

220 221
Roger Chartier
Leituras e leitores na Fiança do Antigo Regime

as imagens correspondentesàs suas canções,os livretos com os de mercadorias e avisos de recrutamento. Emanados das autori-
textos das cantigas, carregados numa bolsa presa à cintura e ven-
dades monárquicas, militares, municipais, essescartazes oficiais
didos ao auditório reunido em torno do cantor.8s
Ouvido, vi-
são primeiro publicados ao som de trombeta e tambor - o que
sualizado, o texto, uma vez comprado, pode ser facilmente reco-
permite ouvir uma primeira leitura e depois coladosnos muros
nhecido, trazido pela melodia memorizada. Percorrendo a
da cidade, onde a leitura é muitas vezes coletiva. Ocorre o mesmo,
campanha ou indo de feira em feira, o vendedor de canções é tam-
certamente, com os cartazespublicitários que anunciam espetá-
bém uma figura urbana, instalada sobre as pontes, as praçase os
culos e bestas,torneios e loterias, bubõese charlatões. Pierre lgnace
bulevares, como atesta o parisiense L.-S. Mercier:
Chavatte, operário de Lille, copia assim no seu diário de 1684 um
Alguns lamuriam os SantosCânticos,outros recitam canções desses avisos impressos distribuídos e afixados na cidade:
jocosas; muitas vezes estão a apenas quarenta passos um do outro
Chegou a esta cidade de Lille um rapaz de doze anos de idade
A canção jocosa faz desaparecer o auditório do vendedor de
que promete mostrar maravilhas que você jamais viu, ele pegará
escapulários, que Bicasozinho sobre seu banco mostrando em vão
uma barra de ferro de três pés de comprimento, quatro dedos de
com sua varinha os chifres do demónio tentador, inimigo do gêne-
largura e uma polegadade espessura,tirará do fogo em brasa, dan-
ro humano. Cada um esquecea salvaçãoque ele promete, para ir
atrás da cançãocondenável. O cantor dos renegados anuncia o vi- çará e andará sobre ela de pés descalços, coisa considerável já que
o fogo é mais ardente que o fogo natural.87
nho, a boa mesa e o amor, celebra os atrativos de Margot, enquan-
to a moeda de dois centavosque oscilavaentre o cântico e o
Ennlm, todo um material religioso é afixado pela cidade: man-
vaudevííle,
infelizmente vai cair no bolso do cantor mundano."
damentos episcopais, bulas de perdão e de indulgências, carta-
Precioso testemunho sobre a pedagogia da imagem herdada zes de confrarias, anúncios de enterro. No curso do século XVlll,
da reforma católica, o texto de Mercier indica a venda de canções esses cartazes se transformam, com o recuo da imagem em bene-
no meio de quinquilharias (escapuláriosaqui, bugigangasno fício do texto impresso, com a substituição dos textos antes im-
pressos em maiúsculas por textos em caixa baixa ou em caracteres
quadro de Watteau), e também a compra e, portanto, a leitura,
após a audição sedutora e explicativa. de civilidade.88 Essas evoluções, paralelas às das tabuletas que
Outro material impresso, muito presente na cidade, pode cedem melhor lugar ao escrito, atestam certamente os progressos
implicar a mediaçãode um leitor em voz alta para aquelesque da alfabetizaçãourbana, mas não suprimem, ao contrário, a prá-
sabem ler pouco ou mal: o cartaz. Este tem usos múltiplos. Ad- tica de uma leitura comunitária que reúne os espectadores-ou-
ministrativos, em primeiro lugar, com a afixação sistemática dos vintes em torno de quem decifra o texto.
editos e ordenamentos, regulamentos e convocações,cotações Em tempos de crise, o cartaz pode assumir outra feição, se-
diciosa e manuscrita. O anúncio nesse caso não está mais a ser-

85 Essastrês obras sãomencionadas em l.ejaít dívers,op. cit., n.166 e 167 <1,e


87 Citado por Lottin, A. CAavatte, ouvrier !illois. Un contemporaín de l.Quis X/V.
chanteur de /abre e Le Wolonem, reproduzidos à p.1 24), e em Roche, Le peuple
Paria: Flammarion, 1979. p.325.
deParas-., op. cit« il.32.
88 Perrot, J.-C. Genêse
d'uirtevilla moderno.Caen au XVlll- siêcle. Paria-LaHaye:
86 Mercier. TableaudeBuris-. op. cit., t.VI, p.40-3.
Mouton, 1975. t.l, p.307.

222 223
Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

viço da administração ou do comércio, mas exprime o protesto. dente Dugas e Bottu de Saint-Fonds nos dá diversos exemplos
Duas circunstâncias sobretudo favorecem essa apropriação po- disso. É freqüente ler a dois, ao mesmo tempo, o mesmo texto.
pular do cartaz e esse desvio da leitura ao ar livre. Por um lado, a Dugas faz isso com seu filho para ensina-lo a refletir sobre suas
cada escassezde alimentos, florescem os cartazescontra os go- leituras: "Passeium tempo considerávelcom meu filho, lendo
vernantes, acusadosde especular sobre os víveres e provocar a grego e algumas odes de Horácio. Fiz o mesmo hoje" (carta de
fome do povo: como em 1725 e em 1768. Alguns, com escrita 28 dejulho de 1728),ou: "É ànoite que eu jogo xadrez commeu
rabiscada e gravados foneticamente, traduzem uma expressão filho. Nós começamos lendo um bom livro, isto é, um livro pie-
rudimentar; outros, escritos com mão segura, apelam para a ação doso, durante uma meia hora" (carta de 19 de dezembro de
violenta, ou desenvolvemuma ironia mordaz.89Por outro, os 1732). Mas a leitura conjunta é também um passatempoentre
conflitos religiosos são uma segunda ocasião para os anúncios cônjuges camponeses: "Ontem passamos o dia passeando
ferozes. Foi o caso durante a crise jansenista, e o advogado Barbier Sentamo-nos à beira de um carrego onde lemos o Teólogo nas
anota no seu diário de fevereiro de 1732: "Dizem que encontra- conversações. Ficamos contentes com o que lemos" (carta de 14
ram um cartaz na porta de Saint-Médard, onde estava escrito: Por deoutubro de1733).
ordem do Rei, é proibido fazer milagres neste lugar".9' Esses Entre amigos, igualmente, as leituras paralelas são um pra-
cartazes manuscritos, multiplicados em períodos de tensão, ates- zer,já que em seguidaelasalimentam o intercâmbio erudito:
tam à sua maneira os progressos da circulação do impresso, cujas
Cheinet passou por aqui ontem depois do jantar e ceou comi-
formas eles retomam, querendo captar seu impacto. Para isso,
mobilizam os recursosde uma leitura em público, feita pelosmais go. Lemos algumas cartas de Cícero e lamentamos a ignorância
pública, quero dizer o pouco gosto de nossos jovens que se diver-
aptos aos menos hábeis, ou por cada um deles ao mesmo tempo.''
tem lendo livros novos, freqüentemente frívolos e super6lciais,e
desprezam os grandes modelos onde aprenderiam a bem pensar.
(carta de 27 de março de 173 1)
Do lado das elites: ler em sociedade
Na sociedadeleonesado início do séculoXVlll, a práticada
A oposição entre a leitura elitista do foro privado e a leitura leitura em voz alta, para uma sociedadede escol, não se perdeu.
coletiva da maioria não deve anular as práticas que invertem os
Dumasatesta isso em 1733 a propósito de uma novidade, O tem-
termos. Com efeito, ainda no séculoXVlll, a leitura erudita pode
plo dogostode Voltaire, do qual M. de La Font, fidalgo da rainha,
ser conjunta ou em voz alta. A correspondência entre o presi- recebeu um exemplar com dedicatória do autor. Uma primeira
leitura do livro ocorreu na intimidade familiar dos Dumas:

89 Kaplan, S.-L. LecomplotdeZajamine: histoire d'une rumeur au XVlll' siêcle. M. de La Font chegou e me disse que julgou que eu apreciada
Paras:Colin. 1982. p.15 e 40. ("Cahiers des Annales"). muito ouvir a leitura de um livro novo de M. de Voltaire, intitulado
90 Barbier, E..J.-r. Journa! d'un bourgeofsde RarassonsZerêgnede Louís Xy. Paras: O templodo gosto;mas que se eu achassebom, esperaríamosmeu
UGE, 1963. P.119. "10/18". filho que tinha ido de manhã a Brignais para voltar à noite. Ele
91 Sobre essasleituras ao ar livre na capital, cf. Roche,l.e peupledePaís-« OP
chegou uma meia hora depois e foi ele o leitor; a leitura durou
cit. P.229-37.

224 225
Leiturase leitores na França do Antigo Regime
Rogar Chartier

bem uma hora e meia, minha mulher que chegou pelas sete horas O impressona intimidade popular
ouviu unstrês quartos.
Nos ateliês e nos estúdios, nos portos e nas ruas, o povo urba-
no acedecoletívamente ao escrito, decifrado em comum. Mas essa
Segunda leitura em voz alta, inscrita na sociabilidade letrada,
na academia; "Eu ouvi uma segunda vez a leitura dessa obra na relação com o impresso não é a única: na intimidade da maioria,
academia e a ouvi com prazer ... O abadeTricaut que devia falar com efeito, o impresso penetra, mobilizando as afetividades, fi-
não se alongou muito e tivemos tempo de ler O templodogosto, xando a memória, guiando as práticas. Mais geralmente,esses
mas não lemos as notas que o autor colocou no rodapé, algumas impressos do foro privado popular não sãolivros, mas materiais
mais humildes e efêmeros. Entre eles, os volantes e os pasquins
das quais são muito curiosas". Terceira leitura, em projeto: a que
Dugas queria fazer com seu amigo Bottu de Saint-Fonds. Para ocupam um lugar importante. Depois de meados do século XVll,
isso, ele pediu a M. de La Font que Ihe emprestasse o livro quan- como antes, eles mobilizam o mesmo imaginário coletivo, fasci-
do Bottu viessea Lyon: "Sinto que ficaria encantadoem relê-lo nado pelas catástrofes naturais, as maravilhas e os monstros, os
com o senhor" (carta de 23 de março de 1733). prodígios celestes, os fatos milagrosos, os crimes abomináveis.
A temática colocada no século XVI não se modifica em nada,9:
Aqui, a novidade da obra certamente excita a curiosidade, e
asleituras em família ou em público têm por fim aplacaros en- entretanto, no âlm do século XVll, as formas dos mais humildes
tusiasmos. Entretanto, outros testemunhos conâlrmam a práti- dentre os avulsos evoluem um pouco
ca perpetuada da leitura de sociedade.Como prova, o quadro de Seus textos tornam-se próximos da linguagem oral, desajeita-
Jean-François de Troy, datado de 1728, intitulado A Jeítzzra
de dos e confusos, como se seus autores pertencessemao meio po-
Moliêre (coleção da marquesa de Cholmondeley). Num salão pular, como se os ambulantes que difundem os livretos empu'
opulento, de estilo barroco, um grupo aristocrático que reúne nhassem eles próprios a pena. Por outro lado, as moralidades em
dois homens e cinco mulheres ouve Moliêre, lido por um dos prosa que freqüentemente concluíam as narrativas cedemlugar
homens. As mulheres, em trajes domésticos, estão confortavel- a estrofes que podem ser cantadas.9' O pasquim assume assim,
mente instaladas em assentosdo tipo marquesas e uma delas se progressivamente, a estrutura plural que será a sua no século XIX,
debruçaem direção do leitor paraver o texto lido. No fundo da reunindo uma imagem ou uma série de imagens que formam uma
sala,uma biblioteca baixa, de portas envidraçadas,encimada por narrativa, uma narração e uma estrofe ou canção. Dessamaneira,
um relógio marcando três horas e meia. O leitor interrompeu' ele pode jogar com várias modalidades de recepção, permitir di-
se, os olhares se cruzam ou se evitam, como se o prazer de socie-
dade que reúne em torno do livro remetesse cada um aos seus
pr(5prios pensamentos e desejos.9: 93 Cf. o Capítulo 3, "Estratégias editoriais e leituras populares (1530-1660)"
94 Seguin, J.-P.Les occasionnelsau XVll' siêcle et en particulier aprês
I'apparition de la Gazette.Une sourced'information pour I'histoire des men-
talités et de la littérature "populaire". l;/nÉormazíone ín Franja nel Seícento.

Quaderni del SeícentoFrancesa, n.5, Bari, Adriática, e Paras, Nizet, 1983, p.33-
59. Um exemplo de pasquim com narrativa iconogránlcae lamentação mo-
92 Esse quadro está reproduzido no catálogo Franceín the E#ghteenthCentüry.
ral em l.ejaít dívers,op. cit., n.46.
op. cit., n.668 (Fig.108).

227
226
Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

versas leituras, das mais aptas às mais rústicas, ser prolongado imagens, e em 1780 as porcentagens são respectivamente de 30%o
de diferentes maneiras, pela canção,pela explicação ou pelo co- e 61qo. Mesma diferença inicial, mas anulada no 6lm do Antigo
mentário.
Regime, entre os criados: em 1700, 35% têm livros, 56qo têm
Mas como atesta o exemplo de Chavatte, o pasquim pode imagens; em 1780 a porcentagem, aumentada ou reduzida a 40qo,
também suscitar toda uma gama de gestos do foro privado. De- é idêntica.s6 Entre os assalariados, sobretudo, essasimagens são
pois de lido, ele é às vezes recortado e a imagem que acompanha religiosas, já que dois terços delas oferecem para ver ou ler de-
é colada na crónica pessoal: como aquela representando um trans- voções do cristianismo. Entre elas, as imagens das confrarias
bordamento de água e a emergência de monstros marinhos em ocupam a maior parte. Até o âlm do século XVlll, elas são im-
Flandres e na Holanda em 1682, ou aquela do mesmo ano mos- pressasem quantidades enormes como atestaJ.-M. Papillon:
trando o suplício de "dois mágicos que tinham lançado veneno
em vários locais na Alemanha". Depois do recorte, a cópia: Cha- Em 1756, fazia mais ou menos noventa anos que meu falecido
vatte, com efeito, não insere em suacrónica os textos dos pas- avõ Jean Papillon tinha gravado, em madeira de pereira, a grande
prancha representandoa Virgem Santíssimanuma Glória, tenda
quins na sua forma impressa, mas os copia, como se o gesto da
ao seu redor os Santos Mistérios de sua vida, para os administra-
escrita fosse a condição da apropriação pessoal, como se a trans- dores da Confraria Real da Caridade de Nossa Senhora do Bom
crição manuscrita desseà coisa lida o mesmo estatuto de autenti-
Parto, fundada na igreja de Saint-Étienne-des-Grês em Paras.Essa
cidade da coisa vista. E de fato, leitor assíduo de pasquins, Cha- prancha ainda servia naquele ano, tendo tirado ainda cinco ou seis
vatte imita o seu estilo e a sua estrutura para fazer o relato de mil exemplares para serem distribuídos aos membros dessa con-
acontecimentos de Lille dos quais foi testemunha ou que Ihe con- fraria, o que dá no total mais de quinhentos mil exemplares.s'
taram. Sua própria escrita é modelada sobre as fórmulas do im-
presso dos quais imita os motivos e os enunciados, e a narrativa Querendo provar os méritos da gravura em madeira, Papillon
de dicção torna-se por sua vez a garantia da veracidade dos fatos indica ao mesmo tempo a longevidade das mesmaspranchas
extraordinários espalhadospela cidade.9sOs pasquins, vendidos (portanto, das mesmas estampas) e a importância de sua difusão.
em Lille pelo livreiro Prévost, instalado no recinto da Bolsa, habi- Com efeito, a cada ano todos os membros de uma confraria
tam, portanto, o cotidiano de Chavatte: ele os adquire, recorta, recebem uma imagem do santo ou do mistério que reverenciam.
transcreve, masem compensaçãoeles moldam suasmaneiras de E assim que os estatutos da confraria da Imaculada Conceição
pensar e de dizer, ditam-lhe seu estilo, impondo-lhe suadefinição da Santíssima Virgem, instalada na igreja Saint-Paul em Paras,
doverdadeiro. prevêem que a contribuição anual dá direito a "uma vela, uma
Outros impressos, que não são nem livros nem livretos, mas imagem e uma porção de pão bento".9' Na segunda metade do
simples folhas, encontram-se também nos meios populares.
Como as imagensvolantes. Em Paras,em 1700, enquanto apenas 96 Roche, l.e peuple de Pnrís.-, op. cit., p.226.
13qodos assalariadospossuemum ou vários livros, 56qodetêm 97 Papillon, J.-M. Traité hístorique et pratique de la gravura sur bois. Paria, 1766, t.l,
P.423-4
98 Citado pelo abade J. Gaston, l,es imagemdes çonféríes parísÍennes avant la Révo-

95 Lottin, Chavatte.ouvrierlílloís lution (Paris: Sociétéd'lconographie, 2: année, 1909), 1910. Uma "vela de
op. cit« p.265-6 e 329-30.
dezesseis"quer dizer uma vela daquelasde dezesseisvelaspor uma libra

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Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

século XVlll, essaconfraria manda imprimir cada ano trezentas


no centro da intimidade popular, coladas à parede, olhadas, con-
imagens e cem bulas de indulgências, mencionando as que Ihe sultadas. Mas, certamente, elas não constituem o único dos im-
foram concedidas.Em Lille, Chavatte é membro fundador e zela-
pressos religiosos preciosamente conservados: os adornos de
dor da Cona'aria de São Paulino, fundada em 1670 e aberta aos
lareira ou de cama, seqüência de madeira gravada em forma de
operários do ramo têxtil, assim como aosjardineiros da paróquia
frisa, que recapitulam os evangelistas, os apóstolos e os douto-
do Santo Salvador, onde ela está instalada.
res da igreja,:'' as imagens de peregrinação, que atestam para si
As representações do santo venerado por seus fiéis são múlti-
e para os outros a viagem devota; em certas dioceses (em parti-
plas: uma relíquia trazida de Romã para Lille em 1685, uma está-
cular na de Lyon no século XVII), os proclamas de casamento
tua de prata fundida após uma colete em 1669, enfim as imagens
que trazem o texto do ritual e dão, pela imagem, todo um ensi-
gravadas como aquela que Chavatte insere na sua crónica e que,
namento religioso, i'z são outros exemplos. Em todos essesca-
diferentemente de outras mais tagarelas,só traz um mínimo de
sos, ou quase todos, o impresso da intimidade popular fixa a
texto (impresso em maiúsculas), a saber: "São Paulino patrono
lembrançade um momento importante da vida, joga com o du-
dos jardineiros" e 'A Contaria de S. Paulino está erigida na igreja
plo registro da imagem e do texto - o que permite as interpre-
paroquial do Santo Salvador em Lille, P A. Cappon íec.". Distri-
taçõesplurais --, articula utilidade prática com finalidade cris-
buída anualmente aos membros, colada nas paredes da casaou tianizadora.
do ateliê, semelhante imagem serve certamente de suporte sensí-
Os cartazesreligiosos, no entanto, não são as únicas folhas
vel às devoções exigidas pelos estatutos da confraria: "Os con-
impressas de grande tiragem. Desde o 6lm do século XVll, alguns
frades e cona'eiras recitarão todos os dias três vezes a oração do-
imagineiros da Rua Saint-Jacques vendem "almanaques de ga-
minical e a saudação angélica em honra de Deus, da Santíssima
binete" ou grandesquadrosmurais recapitulando, em torno de
Virgem Mana e São Paulino para obter o amor de Deus e do próxi- um assunto central, os acontecimentos do ano anterior.i03Sua
mo e a preservação e alívio das cólicas e outros males espirituais
difusão permanece certamente restrita e sem comparação com
e corporais".99Invocando SãoPaulino, Chavatte invoca também as das imagens piedosas. Todavia, no curso do século XVlll, o re-
a Virgem e esta está presente em efígie no seu diário. A imagem
pertório da imagética encontrada nos inventários após morte dos
que ele escolheu representa Nossa Senhora de Loreto, adorada
humildes diversifica-se.O número médio das imagens possuí-
entre os dominicamos de Lille e cuja cona'aria está erigida na
das aumenta: entre os criados cuja fortuna é superior à média,
igreja do hospital do Santo Salvador,situado bem perto de sua
S
100 ele passa de oito para 22, entre 1 700 e 1780 (enquanto, como já

Materiais de usos múltiplos, oferecendo para ver e venerar o


santo padroeiro, fornecendo o texto das orações, lembrando as
101 Um exemplo no catálogo Relegionet tradífíons populaires(Musée National
obrigações e os serviços, as imagens de confraria são colocadas des Ans e Traditions Populaires. Paria:Ed. de la Réunion des Musées Na-
tionaux, 1979.n.127)
102 Berlioz. P-B. l.es chartesdemariageenpa?sZ?onnaís. Lyon; Audin, 1941.
99 Lottin, Chavatte,
ouvrÍerlílloís-« op. cit., p.253-7,imagemreproduzidaà
103 Adhémar. J. Information gravée en France au XVll' siêcle: imagemsur cui-
P.256bís.
vre destinées à un public bourgeois et élégant. I'ln$ormazíoneín Funda nel
100 Ibidem, p.239, imagem reproduzida à p.241 bís.
Seicerlto-.,op. cit, p. 11-32, em particular p.27.

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Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

assinalamos, a porcentagem dos possuidores de imagens decresce Na zona rural, o livro também circula, e alguns editores até
de 16%'o') .Ao lado da imagem de devoção,uma iconografia pro- seespecializarn no mercado campesino, conquistado pelos vende-
fana feita de vistas e de paisagens, de retratos, de cenas mitológi- dores ambulantes, transformado pelo progresso da alfabetização.
casencontra seu lugar. Toda uma panóplia de folhas de formato Como a Igreja da reforma católica, como a escola levada pelos
grande, impressas de um lado só e trazendo texto e imagem, clérigos e pelas comunidades, o livro, depois de 1660, parte para
povoa então os lares populares. Suas mensagens variam como a conquista dos povos e torna-se um dos suportes principais de
seus usos, mas todas atestam uma freqüentação íntima, que é uma aculturação que remodela crenças e comportamentos. Sua
leitura, mas não somente leitura, de objetos impressos aos milha- circulação numa nova escalatem efeitos possivelmente contra-
res (e hoje quase desaparecidos) pelos impressores e os negocian- ditórios: por um lado, ela permite inculcar asnovas disciplinas,
tes de imagens. sejam elas da fé, da civilidade ou das técnicas; por outro, ela per-
mite uma libertação dos espíritos que, pela informação apreen-
dida ou pela dicçãoinvestida, podem escapardas repetições obri-
Difusão do impresso, gatórias de um cotidiano estreito.
diferenciação dasleituras Esse processo de difusão do impresso não ocorre sem pertur-
bar as diferenças antigas. Ele não é mais um bem escasso,por-
O século extensamente cortado que separa os anos 1660 dos tanto ele perde algo de seu valor simbólico, e a leitura que o con-
anos 1780 assiste sem dúvida nenhuma a uma ampliação dos some se torna para todos mais desenvolta. Daí, certamente, por
públicos do livro. Na cidade, apesar das estagnações e dos recuos, meio de representaçõese práticas, a busca de novas distinções.
das diferenças conforme os locais e os ambientes, são mais nume- Algumas visam diferenciar os leitores no próprio ato de sua lei-
rosos aqueles que possuem livros e mais numerosos os livros que tura, reformulando as oposições tradicionais, por exemplo entre
eles possuem. A progressão é particularmente sensível no mais leitores solitários das cidadese ouvintes das vigílias campone-
baixo escalãoda hierarquia dos leitores, atestando que, no cur- sas,ou então, na cidade,entre leitores de gabinete e leitores da
so do século, negociantes e comerciantes, artesãos e assalaria- rua. Outras pretendem impor uma maneira de ler que rompe com
dos progressivamente familiarizam-se com o livro. Por outro a leviandadeda épocae reencontra, de maneira laicizada,um
lado, a proliferação dasinstituições que alugam os livros mul- estilo antigo de leitura, sério e intenso. A uniformização relativa
tiplica as possibilidades de leitura, mesmo para os mais humil- trazida por uma circulação mais densa do livro não anula, muito
des, e ao mesmo tempo aguça e aplaca o apetite pelo impresso pelo contrário, a multiplicidade das "figuras da leitura",i's rei-
Paralelamente, o contraste entre cidade e campo atenua-se. As vindicadas ou praticadas, aconselhadas ou desejadas.Se os dados
cidades,que durante muito tempo representaram o papel de numéricos mostram claramente que entre 1660 e 1700 atenuam-
baluartes do escrito, manuscrito ou impresso, perdem um pouco
de seu privilégio.
105 Certeau, M. de. La lecture absolue (I'héorie et pratique des mystiques chré-
tiens: XVI'-XVll' siêcles). In: Dãllenbach, L. Ricardou, J.(Dir.) »oblêmes
ac eZs
de a lecture.Centre Culturel de Cerisy-la-Salle. Paria: Clancier-Gué-
104 Roche, l.e peuple de Buris. op.cit.,p.227, quadro 34. nard, 1983. p.65-80

232 233
Reger Chartier

se as diferenças na distribuição do livro, o estudo dos usos do


impresso indica em contrapartida uma diferenciação aumentada
nos modos de apropriação dos materiais tipográ6lcos, como se a
distinção das práticas fosse gerada pela própria divulgação dos
objetos de que elas se apossam.

6
Representações e práticas:
leituras camponesas no século XVlll

Para os letrados do Iluminismo, a leitura camponesa é como


a figura de uma leitura perdida, eliminada na cidade pelos desve-
los desenvoltos de leitores demasiado ávidos. Por trás da imagem,
pintada na tela ou posta em literatura, será que é possível desco-
brir os hábitos e as práticas dos habitantes do campo, não aque-
les das nostalgias urbanas, mas aqueles de carne e osso que povoam
a campanha?E bem verdade que alguns tomaram da pena para
contar a história de sua vida, e, dessemodo, lembrar seusprimei-
ros encontros com os livros. Foi assim com Louis Simon. tecelão
do Maine, que em 1809, cinco anos após a morte de sua amada
esposa, começa a escrever "os principais acontecimentos ocorri-
dos no curso de minha vida". Lembrando-sede suajuventude,
ele anota o seu gosto pela leitura, alimentado pela biblioteca do
vigário da paróquia que Ihe empresta livros, graçastambém, cer-
tamente, a um vendedor ambulante que volta à região:
Eu passavaentão meu tempo no prazer de tocar instrumentos
musicais e de Ler todos livros que podia arranjar sobre todas as
histórias Antigas, as guerras,a Geogranla,as tidas de santos,o

234 235
Reger Chartier
leituras e leitores na França do Antigo Regime

Antigo e o Novo testamento e outros Livros santos e profanos eu Os limos de que se nata aqui são obras em ítancês, já que aque-
gostava também Muito das canções e dos cânticos.:
las escritas empatoís devem ser mencionadas nas respostas às ques-
Testemunhos como esses,no entanto, são raros e lacânicos. tões 2 1 a 25 - em particular à vigésima terceira: "Têm os senhores
Alguns mais eloqüentes, comoJamerey-Duval, estão muito longe obras empatoís, impressas ou manuscritas, antigas ou modernas,
de sua infância camponesa quando escrevem, e, na narrativa da como direito costumeiro, ataspúblicas, crónicas, orações,sermões,
conquista da cultura, é o homem do Iluminismo quem fala, julga livros ascéticos, cânticos, canções, almanaques, poesias, traduções
e pensa, e não o pastor de antanho. O testemunho deve então etc?". O empreendimento de Grégoire figura, portanto, como a
ser deciítado, primeiro, como uma apresentação de si mesmo, mais antiga pesquisa sobre as práticas culturais (ou pelo menos
moldada na maior distância social e cultural, ligada a uma trajetó- as leituras) dos âancesese como um inventário inesperadoda
ria excepcional.: Mesmo que seja possível reconhecer aí traços biblioteca rural do século XVlll, nos próprios inícios da Revolu-
que valem certamente para todas as educações autodidatas, em ção. Todavia, o exame das respostas deve matizar o entusiasmo.
Seunúmero é afinal restrito, já que há apenas 43, conservadas na
compensação ele pode indicar usos comuns do impresso e manei-
ras comuns de ler. Bastante raras, pouco loquazes, produtos de biblioteca da Sociedade de Port-Royal e na Bibliothêque Nationale.3
Além disso, com â'eqüência,elas não retomam o conjunto das 43
circunstâncias particulares, as histórias de vida não bastam, por-
perguntas feitas por Grégoire, ignorando algumas(para onze de-
tanto, para restituir as leituras camponesasdo século XVIII. Daí
las, em particular, as perguntas que nos interessam), dando uma
a importância de um conjunto documental diferente: os textos
única resposta a várias delas ou compondo um texto bastante in-
dirigidos ao abade Grégoire em resposta às suas perguntas "re-
dependente da ordem do questionário.
lativas aospatois e aos costumes das pessoasdo campo". Enviado
Por nim, e sobretudo, os que respondem não são os próprios
em 13 de agosto de 1790, o questionário do vigário de Ember-
leitores rurais, mas homens situados a distância da cultura cam-
ménil, deputado da Assembléia Nacional, comporta com efeito
ponesa. Sua posição social os distingue fortemente do povo ru-
três perguntas promissoras para uma história da leitura popular:
ral. Para obter respostas à sua pesquisa, Grégoire apoiou-se em
35. Têm e]es [os párocos e vigários] um sortimento de livros
diversas redes de correspondentes: homens com os quais ele
para emprestar aosparoquianos? 36. As pessoasdo campo têm
mantinha uma amizade instruída, alguns de seus colegas da As-
gosto pela leitura? 37. Que espécies de livros são mais comu-
mente encontradasem suascasas?".Portanto, três perguntas pre-
cisas sobre a presença do livro no campo e sobre as leituras pre-
3 Vinte e nove respostas foram publicadas por A. Gazier(l.entresã Grégoiresur
feridas de seus habitantes.
lespatoísdeFrance.Paras,1880); três por M. de Certeau, D. Juba e J. Revel
(Unepolítíqtie de la langue.l.a Révolution.Êanfaise et lesFatais. Paras:Gallimard,
1975); onze estão inéditas, dez delas conservadas na coletânea da Bibliothê-
l Fi[[on, A. ].Quis Simon, étaminíer ] 74]-1 820 dons son ü]/age du Haut-À4aíne. que Nationale, Ms. Novas Aquisições francesas 2798, e a última na coletâ-
Université du Maine, 1982 (tesede 3' ciclo) . nea da Sociedade de Pare-Royal, Ms. Revolução 222. Agradeço a Dominique
2 Jamerey-Duval, V Mémoíres.Enãanceet éducation d'un pa?san au XVlrl' siêcle. Juba que me comunicou o texto dessascartasinéditas. As respostas às ques-
Introd. J.-M. Goulemot. Pauis:Le Sycomore;e Hébrard,J. Comment Valentin tões 35, 36 e 37 da pesquisa de Grégoire são utilizadas rapidamente no artigo
Jamerey-Duvalaprit-il à lire? Eautodidaxie exemplaire. In: Chartier, R. (Dir.) de Richter, N. Prélude à la bibliothêque populaire. La lecture du peuple au
Pratíques de la lecture. Marseille: Rivages, 1985. p.23-60. siêcle des Lumiêres. Bulleün cüsBíblíothêgues& France, t.24, n.6, p.285-97, 1979.

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Rogar Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

sembléia Nacional, finalmente as Sociedadesdos Amigos da leitura, {gnotí nzllla czzpído"; outros, mais bruscamente, como os
Constituição filiados ao Clube dosJacobinos. Mas todos os que Amigos da Constituição de Mont-de-Marsan, respondem sim-
Ihe escrevem, e cujas respostas se escalonam entre agosto de 1790 plesmente à pergunta: "Ehl Como poderiam eles ter«
ejaneiro de 1792 (com uma grandemaioria entre novembro de De modo contrário, várias respostasinsistem no apetite cam-
1790 e fevereiro de 179 1), têm muitos pontos comuns: sãourba- ponês de leitura, achincalhado durante muito tempo, mas subita-
nos, são "intelectuais" que pertencem à Igreja, à administração ou mente revelado pela Revolução. É o caso do abade Rochejean que
à justiça, às profissões liberais - isto é, a todas as togas da antiga responde porSalinsesuaregião:
sociedade -, são burgueses esclarecidos engajados no mundo da Por toda a parte o povo começa a ler; trata-se de manter o im-
República das Letras. pulso dado. Nas classesmais ignorantes da sociedade,encontram-
Essa primeira distância, objetiva, em relação ao campo e seus se homens dignos de instrução, que só pedem para instruir-se. Eu
habitantes, é duplicada por outra, voluntária, que é o próprio ftln- sei que o povo é muito apático, mas sei que é o menos a cada dia,
damento da descrição. A cesuraafirmada com o povo camponês, e que há muitos homens ávidos de instrução para devolver mais
esse.outro a descobrir do questionário, é a condição para que ou menos lentamente ao povo essegosto universal. (15 de março
de 1791)
estejam claramente separados dentro da comunidade provinciana
os dignitários urbanos, em posição de observadores, e o campo, E o casodo cónego Hennebert em Artois: "Noto que, desde
objeto selvagem de sua observação. Aquilo que os corresponden- a Revolução, eles tomam certo gosto pelos escritos relativos a
tes de Grégoire relatam, portanto, não é o resultado de pesquisas eles" (26 de novembro de 1790). O acontecimento, aliás, leva
de campo, baseadasnuma intenção etnográfica, mas uma mis- alguns a modiâlcar completamente seu julgamento. O abade An-
tura complexa de sabere de familiaridade, de estereótipos antigos driês, professor no Colégio de Bergues, tinha respondido com
e de imagens em moda, de coisas vistas e de textos lidos. E pre- ironia à questão 3 6, zombando da "estúpida vaidade" dos campo-
ciso lembrar-se disso ao ouvir suasrespostas. neses flamengos, vangloriando-se de saber tudo sem jamais ter
'IAspessoasdo campo têm gosto pela leitura?" A pergunta, lido nada: eles "não encontram em casa livros bem escritos, que
formulada no novo vocabulário do século, suscita respostas con- possam induza-los ou fazê-los apreciar a leitura: então eles nunca
traditórias. Para alguns, semelhante aspiração é impossível para abrem nenhum". Mas, em nota, ele acrescenta à sua resposta:
quem não sabeler: "Eles ainda estão,a maioria, entregues à mais 'A nota seguinte, embora cómica, não era menos verdadeira há
crassa ignorância: não sabendo ler, não podem ter o gosto pela seis meses: agora os camponeses são apaixonados pela leitura,
leitura" (Amigos da Constituição de Agen, 27 de fevereiro de conhecemmelhor a Constituição que as pessoasde nossascida-
179 1) . 'B.s pessoas do campo não têm nenhum gosto pela leitura des que desprezam os decretos". A Revolução inverte, portanto,
porque mal sabem ler" (resposta anónima, região do Mâconnais as situações antigas e revela, em toda a sua força, aspirações que
e da Bresse) . "Como três quartos das pessoas do campo não sa- de maneira apressada eram julgadas estranhas ao povo camponês.
bem ler, seria inútil ter livros paraemprestar-lhes" (Jean-Baptiste Infelizmente, essanova expectativa sechoca contra dois obs-
de Cherval, 22 de setembro de 1790) . Paraalguns, a própria per- táculos ainda inevitáveis. Primeiro, a medíocre circulação de li-
gunta parece desprovida de sentido. Lequinio diz isso mobilizan- vros nos campos:"0 povo certamenteteria gosto pela leitura e,
do a sabedorialatina: 'As pessoasdo camponão têm gosto pela se tivesse livros, dedicaria a eles muitos dos momentos que não

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Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

ele próprio vigário, a propósito das Ardenas: "Os párocos e os


pode dedicar a seus preciosos trabalhos", escreveo abadeFon-
vielhe, vigário constitucional de Dordogne (20 de janeiro de vigários ... não emprestam nenhum livro a seus paroquianos, aos

179 1) . E uma prova a conüarío é trazida por Bernadau, advogado quais é proibido ler a Escritura santa.Assim, há poucos campone-
bordalês: "Notei que, quando um camponêstem um livro à sua sesque têm o gosto da leitura". Por outro, eles temem que a difu-
disposição num dia feriado, ele prefere a sua leitura ao cabaré, são da leitura perturbe a escala das condições sociais ou subverta
embora esse costume Ihe seja muito familiar nos dias de descan- a ordem entre os sexos. O advogado Bernadau diz ter ele próprio
so" (21 dejaneiro de 1791)- encontrado essahostilidade quando quis introduzir na escola da
Segundo entrave à leitura desejada: a impossibilidade de ins- aldeia a leitura e a distribuição aos melhores alunos de obras úteis
truir-se, por falta de professores: 'As pessoasdo campo apreciam ao "governo das famílias": "0 vigário pretendia que inspirar nos
muito a leitura, e, se não cuidam da instrução dos filhos, é porque alunos o gosto da leitura era procurar dar sobre seus compatriotas
não possuem mestres-escolas" (Bernardet, vigário de Mazille na uma superioridade contrária à modéstia cristã e que as moças
diocese de Mâcon, 28 de dezembro de 1790) . E Jean-Baptiste de leitoras eram más esposas". Imagens clássicas do século, portan-
Cherval acrescenta:'A facilidade com a qual se pode ler, o desejo to, figurando a luta entre o clérigo, apegado às idéias da tradição,
de adquirir alguns conhecimentos, o proveito que se tira da lei- adversário da educaçãodo povo, fonte de desordens,e o homem
tura é geralmente o que Ihe dá o gosto e quando os camponeses do Iluminismo, preocupado com o progresso doméstico e público.
forem postos em condiçõesde experimentar essasvantagens,nao Mas se os clérigos repudiam a educação do povo, a Igreja,
duvido de que apreciarãoa leitura tanto quanto os homens refina- como instituição, não deixa de ser a única incitadora da leitura.
dos" O que Lorain, prefeito de Saint-Claude, resume numa fór- O ex-capuchinho François Chabot, de Saint-Geniês, nota isso de
mula soberba:'A instrução é necessáriaparater sedede instru- maneira negativa; 'H.preguiça dos párocos e dos vigários se esten-
ção"(14 de novembro de 1790) . ,. de a todos os paroquianos: eles só lêem enquanto estão nos ban-
' É como se o povo representado pelos correspondentes de Gré- cos, ou seja,até a primeira comunhão" (4-8 de setembrode
goire fosse, portanto, despertado para si mesmo pelo novo curso 1790) . Da mesma maneira, Lorain, em Saint-Claud: 'A minoria
político. O amor da leitura e a avidez de instrução pertencem re- lê nas suas horas e só. As exceções são infinitamente dispersas"
almente à sua natureza, mas foram sufocados pela sujeição cultu-
Essacontradição remete à posição ambígua que é a dos vigários
ral em que foram mantidos. Os Amigos da Constituição de Auch de paróquia no discurso dos correspondentesde Grégoire.Por
proclamam isso: 'Aâmta-se com segurança que as pessoas do cam- um lado, em várias ocasiões,é sublinhada sua própria privação:
po têm na alma o gosto da leitura, e não há nada que desejem tan- eles mesmos são péssimos leitores. Amigos da Constituição de
to como instruir-se". O primeiro dever da Revolução, portanto, ê
Perpignan: "Poucos, bem poucos deles, têm livros"; abadeFon-
torna-los conscientes dessasaspirações que estão neles próprios.
vielhe: "0 povo, portanto, lê muito pouco e os vigários (exceto
Será que, nessa tarefa, poderá ela apoiar-se na Igreja cujos mem- que agora eles lêem as notícias) em geral também lêem tão pouco
bros são muitos daqueles que respondem ao questionário? Nes-
quanto ele". O responsável por semelhante situação é claramente
se ponto também o diagnóstico é contraditório. Para alguns, os o sistema beneâicial que obriga os vigários a uma vida muito mes-
párocos são adversários decididos da leitura camponesa. quinha, que os prende à sua condição sem esperançade mudá-
Por um lado, eles pretendem preservar assim sua mediação
la. Morei, procurador em Lyon: "Como seria possível aos Vigários
obrigatória entre os fiéis e a Bíblia, como escreveo abadeAubry,
24]
240
Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

de parcos rendimentos conseguirum sortimento de livros para a)


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empresta-los aos paroquianos?" (2 de novembro de 1790) . Ami- a'
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gos da Constituição de Auch: "Mesmo que eles tivessem dentro
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da cabeça a ciência de toda a Sorbonne, isso não os levaria nem a d ê


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uma paróquia melhor. Além disso, o título de vigário era uma d
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242 243
Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

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244 245
Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

Que espéciesde livros se encontram mais comumente entre La Salcette no Departamento da Drâme: "Os vigários têm poucos
eles?" A trigésima sétima pergunta do questionário de Grégoire livros, e os camponeses amam pouco a leitura: os calvinistas que
incita seus correspondentes a desenharem os contornos da bi- são numerosos são pontuais em conseguir a Bíblia" (1 8 de feverei-
blioteca de seus compatriotas camponeses. Eles respondem, mas ro de 1792). Mais 6'eqüentemente citados que as bíblias em õ'an-
não como poderia desejaro historiador em busca de dados pre- cês ou seus sucedâneos são os livros de horas; 'H.spessoas do cam-
cisos e objetivos. Com efeito, muitas vezeselesse contentam com po que sabem ler só lêem seus livros de horas"(Morei I'Aíné, Lyon) .
alguns títulos ou indicações muito globais, e, sobretudo, bicabem No íim do século XVlll, os correspondentes de Grégoire con-
claro que suasescolhastêm de fato afunção de ilustrar evalidar servam, portanto, a familiaridade perpetuada com o livro de ho-
suaprópria representaçãodasdisposiçõesculturais ou das pro- ras que, dois séculos antes, era o mais difundido de todos os li-
priedades psicológicas que eles atribuem ao povo camponês vros.sA nova literatura da reÉomla católica minorou sua importância
Certamente que estes observadores prevenidos não inventam, e entre as pessoasletradas ou entre os mais devotos, mas ele per-
os livros que mencionam se encontram provavelmente nas casas manece como uma obra popular, de múltipla utilidade, propon-
do ao mesmo tempo texto dos ofícios e fragmentos da Bíblia. Mas,
camponesas, mas eles fazem uma triagem, generalizam e, de ma-
neira a tornar sensível pelo corpusdos títulos mencionados, talvez para os patriotas esclarecidos que escrevem a Grégoire, as horas
não sãode fato um livro, e lê-lo não é realmente ler. Os Amigos
omitam o que é o ruralismo - pelo menos o ruralismo da sua
da Constituição de Auch dizem isso à sua maneiranum peque-
cabeça.O levantamento sistemático das"espéciesde livros" cita-
no apólogo do camponês que lê mas não é leitor:
das, resposta após resposta, agrupadas em treze categorias, nove
religiosas, quatro laicas,não constitui, pois, um inventário à ma- O rapaz indo à escola do vigário, que o fazia ler uma vez por
neira notarial, mas um "tipo ideal" da biblioteca camponesa, mês ou mais, embora os pobres pais se privassem diariamente dos
construído no cruzamento da experiência e da imagética, índice pequenos serviços que seu filho poderia prestar-lhes; esserapaz,
ao mesmo tempo de um conhecimento do campo,visitado, per- dizíamos, tão logo entrava na posse das Horas da diocese, carrega-
va-o constantemente no bolso durante o trabalho, e nas mãos nos
corrido, e arquétipos compartilhados da rusticidade.
momentos do repouso. Ele lia a vida inteira e morria semjamais
Nessa representação, o livro do povo agrícola é antes de tudo
ter sabidoler.
religioso. Todas as respostas que mencionam livros, com exceção
de três apenas(dos Amigos da Constituição de Mont-de-Marsan Saberler é outra coisa,não somentepoder decifrar um livro
e de Perpignan e a do cónego Hennebert) , indicam a presença de único, mas mobiliza, para a utilidade ou o prazer, as múltiplas
obras piedosas ou de livros de igreja. A Bíblia é citada, mas muitas riquezas da cultura escrita.
vezes sob a forma de sumários ou de adaptações: "Entretanto, Se no repertório do livro de devoção estabelecido pelos inter-
na casade alguns, encontram-se o sumário do Antigo Testamento locutores de Grégoire figuram textos antigos como a Imítaç:ãode
de Royaumont, o Evangelho e a Imitação deJ.-C.; mas isso é muito /estasCrista (citado pelos Amigos da Constituição de Agen e de
raro" (Amigos da Constituição de Agen) ; "Eles apreciam muito
as histórias das Vidas de Santos e da Bíblia" (abade Bouillotte,
5 Cf: Labarre, A. l.e livre darás!a víe amíénoíse du XI/I' síêcle.Eenseignement des
Borgonha) . Desseponto de vista, o contraste entre protestantes inventaires aprês décês 1503-1 576. Pauis-Louvam: Nauwelaerts, 1971. p. 164-
e católicos é claramente sublinhado por alguns, como Colaud de 77

247
246
Reger Chartier
Y
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

Carcassonne) , aparecem também títulos mais novos produzidos


pela reforma católica e que entraram no catálogo dos impressores
Ao lado dos livros piedosos,figuram os da Biblioteca Azul.
de obras de larga difusão, em particular aquelesinstalados em Esta, todavia, só aparece em cinco respostas, sqa no singular -
Troyes. Bernadau menciona assim ".Assetetempestades,
obra ascé- Bernadau menciona a presença de "algumas obras da Biblioteca
tica de um gênero lamentável" que é, de fato, Ás sete trombetas Azul" - seja no plural - o abade Aubry, vigário de Bellevaux nas

espÍrífuaíspara despertarospecacbresdo recoleto Solutive, e François Ardenas, indica por sua vez: "Os livros comumente encontrados
Chabot, o Camítzhodo céuou a vía queas criançasdevemmanterpara em suas casas são Vidas de Santos, orações e Bibliotecas Azuis".

chegar ao céu e o Pense bem ou Repelão sobre os qtzatro.Fns últimos do fazendo alusão talvez às diferentes cidades que imprimem essas
Homem- os dois primeiros títulos coram reeditados várias vezes obras. A cometados títulos individualmente citados é magra: a
no curso do século pelos impressores de Troyes. Hísfóría dosquatro.FigosÁymon pelos Amigos da Constituição de
Suapresença no campo, como a daquelas obras litúrgicas que Mont-de-Marsan e de Carcassonne, a História da vida, grandes Za-
são os breviários, os paroquianos, as coletâneas de cânticos e de dloefras e sufÍlezm de GuÍZlerípor estes últimos, a História da vida e
orações,resulta de um duplo fato. Primeiro, ela é o efeito de uma ão processo do famoso Dominique Cartouche e a História de Louis

política diocesana do livro, feita, em certos lugares pelo menos, À4andnnpelo cónego Hennebert. Portanto, um romance de cavala.
de distribuições às escolas e às famílias. Como na diocesede ria, clássicoda BibliotecaAzul, e os títulos que no séculoxvlll
Saint-Claude, no dizer do advogadoJoly: "0 fãecido senhor bispo asseguram o sucesso popular da figura nova e ambígua do "bandi-
do degrandecoração".7
mandou distribuir nas paróquias muitos livros". Por outro lado,
nos últimos vinte anos da antiga monarquia, o novo regime das Paraos correspondentes de Grégoire, os contos pertencem
autorizações simples instituído em 1777, que permite reeditar ao mesmo horizonte. Eles os denominam de diversas maneiras:
livremente todos os títulos cujo privilégio expirou, multiplicou contos de fadas, necromancias, Barba.Azul" para os Montois, "os
de maneira considerável o número dos livros de religião em cir- antigos Contos da À4amãe Garzsa", para Hennebert, "contos azuis

culação. O total de seus exemplares eleva-se a 1.363.700 entre para o Lorrain de Mirbeck. Em todos os casos, trata-se realmente
1778 e 1789 (ou 63% do conjunto de todos os publicados sob de referências a escritos, a livros aparentados com os do repertó-
cobertura da nova permissão).Três categoriasdominam essa rio azul, e não de alusões às tradições orais do povo do campo,
produção religiosa de íim de século: as obras de liturgia e de prá- aparentemente mal conhecidas por nossos observadores urbanos.
tica (45% dos exemplares), as horas (20% dos exemplares), os Seutestemunho traz duas informações preciosas: por um lado.
livros piedososda reforma católica - e entre eles o Caminhodo atesta que a denominação Biblioteca Azul não cobre os livros
céuou o Pensebem.óE preciso, portanto, dar crédito às anotações religiosos impressos nas mesmas formas e pelos mesmos editores
dos correspondentes de Grégoire que registram com fidelidade - o que é confirmado pelos catálogos de Troyes que a reservam
o novo dado do mercado do livro às vésperas da Revolução. para os "livros recreativos -, comumente chamados Biblioteca

7
6 Brancolini, J., Bouissy, M.-'t La vie provinciale du livre à la 6ln de I'Ancien Cf: o Capítulo 8, "Figuras literárias e experiênciassociais: a literatura da
malandragem na Biblioteca Azul", e Hístoíres curíeuses et vérítables ü Cortou.
Regime. In: Furet, li(Dir.) l,ivre et soaété dons la France du XVlll' siêcle. Paris-
La Haye: Mouton, 1970. t.ll, p.3-37
] 984, P.21-45) extos apresentados por H.-J. Lüsebrink (Paras:Montalba,

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Leituras e leitores na França do Antigo Regime
Reger Chartier

necromancias, Barba.Azul etc.". O romance "azul", o conto, o livro


de magia: é essamesma série que Grégoire denuncia no seu rela-
tório à Convenção quando estigmatiza "os contos pueris da Bi-
blioteca Azul, das comadres e do sabá" que constituem o todo
das conversações camponesas. Contra esseslivros "que podem
embrutecer", segundo Lorain, os homens esclarecidos devem im-
por aqueles que ensinam e educam.
O mesmo Lorain declara: "Eu propus a nova obra de Berquin
(Biblioteca dasaldeia) a alguns prefeitos do campo que não se in-
teressaram", e lembramos os esforços de Bernadau para fazer
adorar como livro de escola ..4 ciência do velho RícAard e distribuir
aos meninos merecedores um .Aviso ao povo sobresua saúdee um
À4anualdo cultivador, e às meninas comportadas, além de um Novo
Testamento, o Aviso às boas donas de casa. Em 1 794, Grégoire reto-

ma, em escalanacional, uma política semelhante, propondo a re-


dução e a difusão "de opúsculos patrióticos que conterão noções
simples e luminosas, que possamcaptar o homem de concepção
lenta e cujas idéias são obtusas" - por exemplo, sobre a meteo-
rologia, a física elementar, a política ou as artes -, e também "bons
jornais" para os quais indica a leitura pública. "Vemos com inte-
resse as vendedoras no mercado, os operários nas oficinas se co-
tizarem para compra-los, e de comum acordo fazer o trabalho
daquele que oslê".s
As leituras comuns das pessoas do campo são, portanto, des-
qualiâlcadas por aqueles que as relatam a Grégoire, porque, longe
de instruir e ajudar, de informar e despertar, elas mantêm precon-
ceitos e superstições ainda vivos. Entretanto, alguns percebem
diferenças entre os leitores provincianos: os camponeses e os dig-
nitários não lêem os mesmos livros. Mas essasdiferenças reco-
nhecidas podem trazer valores contraditórios. Para alguns. as lei-

9 Ct Parent, E Des nouvelles pratiquei de lecture. In: Martin, H.J. Chartier.


R.(Dir.) Hísfoíre & I'édít on .#ançaíse. Paras; Promodis, 1984. t.ll: "Le livre
triomphant1660-1830",p.606-12
8 Cf. o Capítulo 7, "Os livros azuis'
251
250
Reger Chartier Leituras e leitores na trança do Antigo Regime

turas perigosas daselites rurais sãocapazesde corromper o povo livraria: 'Aquelas pessoas do campo deste distrito que sabem ler
cultivador. Como paraJoly de Saint-Claudeque recorre à sua apreciam muito a leitura e, na falta de outra coisa. lêem o..41ma-
experiência pessoal: naqzze
dosdezlses,
A Biblioteca Azul e outras frivolidades que os
ambulantes levam anualmente para o campo" (Bernadau).A rea-
O ofício de juiz, que exerci durante muito tempo, proporcio'
lidade designada é, portanto, a do vendedor ambulante ou feirante,
nou-me temporadas no campo [trata-se certamente de um cargo
de charrete atrelada, com circuitos bastante amplos e estoque bem
de juiz senhoria]] . Eu via seuslivros nos momentos que interrom-
fornido".'' Em contrapartida, nenhum correspondentede Gré-
piam minhas ocupações;vi freqüentemente obras piedosas.A pro
ximidade de certos autores célebres, que mancharam e aviltaram goire menciona um comércio mais modesto, o dos vendedores
sua pena no Himda carreira [certamente Vo]taire e Rousseau], es- ambulantes que carregam os livros nas costas ou a tiracolo, gê-
palhou por ali algumas brochuras perigosas para os costumes e a
nero mais urbano do que rural. Mas os ambulantesnão sãoos
religião, que introduziram e alimentaram a agitação e a anarquia únicos a introduzir livros no meio camponês;outros tambémo
em Genebra. Encontrei essasobras com um comerciante que esta- fazem, mas por outras mercadorias:
va seduzido.
Até uma certa idade, só se encontram nas mãos deles os livros
de que falamos acima [livros de devoçãoemprestadosou dados
A essa primeira imagem do povo virtuoso e religioso amea-
pelos padres]. Mais avançados, eles se limitam a algumas folhas
çado pelos escritos libertinos, o cónego Hennebert contrapõe
ou brochuras, que os viajantes ou comerciantes introduzem nas
outra, inversa, que reconhece a presença da literatura legítima
suas aldeias e que muitas vezes são perigosos aos costumes e mais
entre os mais afortunados somente ("Os honestos fazendeiros ainda ao repouso público. (Amigos da Constituição de Ambérieu,
lêem relatos de viagem, os romancesdo Abade Prévost e outros 16 de dezembro de 1790)
desse gênero"), enquanto os mais desfavorecidos permanecem
dedicados a "grosseiras rapsódias, livros obscenos, antigas lendas Reencontramos aí a oposição já traçada pelo advogadoJoly
fabulosas, os antigos Contosda À4amãeGanso,as vidas de Cartou- entre o camponês e o comerciante, o nativo e o forasteiro, a pie-
che. de Mandrin etc.". Encontra-se então formulada uma dupla dade e a virtude naturais do campo e a corrupção vinda de fora,
pergunta: como evitar que a corrupção pelo saber não substitua da cidade.É difícil dizer em que literatura exatamentepensam
aquela trazida pela ignorância? Como fazer para que o livro seja os patriotas de Bresse, talvez nos romances pornogránlcos im-
fonte de exemplos imitáveis, e não de depravações novas? A tria- pressos fora das fronteiras pelas sociedades tipogránicas estran-
gem entre as obras úteis e patrióticas e aquelasque não o são,o geiras, talvez nos panfletos obscenos citados por Morei em sua
encargo de sua distribuição por parte dos homens esclarecidos resposta -- as Cartas escancaradamenre
pafriófícas do verdadeiro velho
ou pelo próprio Estado são as respostas sugeridas que o relatório dzzChêne,o Buraco do cu do velho dzzCAêrze.O l.erro dos arisfocratm.
de Grégoire irá ampliar. Em todo caso, a sua notação matiza um pouco o quadro estabele-
Alguns dos que respondem à pesquisa não se limitam a assi- cido de leituras camponesas totalmente ocupadas pelos livros de
nalar secamentea presençade tais ou tais "espéciesde livros
nas casascamponesas:falam mais sobre sua circulação, leitura, 10 SauW-A. Noêl Gille dit la Pistole "marchant foram libraire roulant par la
uso. Eles atestam, primeiro, a existência da venda ambulante de
France". BulZetíndesBibliothêquesde France, 12 année, n.5, p.1 77-90, 1967.

252 253
Reger Chartier
Leituras e leitores na França do Antigo Regime

horas, pelo almanaque ou pelo livro azul. Em certos lugares, pelo


em voz alta por ocasião das vigílias, considerada como a forma
menos, os campos são também irrigados pelos livros da época,
principal de difusão do escrito impresso nas sociedadesem que
proibidos ou polêmicos - "aquelas brochuras conspurcadas de
os analfabetos, numerosos, devem ouvir o livro;'' e a prática de
lubricidade ou de imprecações convulsivas que exaltam as pai-
uma leitura dita "intensiva", distinguida pelas freqüentes relei-
xões em vez de iluminar a razão", condenadas por Grégoire qua-
turas de um número muito pequeno de livros, pela memorização
tro anos mais tarde.
de seustextos, facilmentemobilizáveis, pelo respeito atribuído
Sobre as práticas de leitura propriamente, os amigos de Gré-
ao livro, raro, precioso, sempre mais ou menos carregado de sa-
goire são pouco eloqüentes. Dois traços, entretanto, retêm a aten- cralidade.i2
ção de alguns. Por um lado, uma maneira camponesade ler que
Há, contudo, uma dúvida. São pouco numerosas as testemu-
não é a deles: "Eles têm a fúria de voltar vinte vezespara essas
nhas que descrevem essescostumes camponeses, e, de fato, preci-
misérias, e, quando falam delas (o que fazem de muito bom gra-
samos contar na única que afina o traço, Pierre Bernadau, o ad-
do), recitam por assim dizer palavrapor palavra seuslivretos'
vogado de Bordeaux. Ora, o último parágrafo de sua última carta
Para Bernadau, o advogado erudito e polígrafo, semelhante leitu-
a Grégoire, datada de 2 1 de janeiro de 179 1, introduz a suspeita:
ra, que é releitura repetida do mesmo almanaque ou do mesmo
livro azul, que faz saber de cor, ou quase, que se transforma facil- Os livros que mais freqüentemente encontrei entre os campo-
mente numa recitação, pertence ao estranhamento camponês, neses são os das Horas, um Cântico, uma Vida dos Santos, entre os

ao mesmo título que as crençassupersticiosas ou a ignorância grandes fazendeiros que lêem algumas páginas deles para seus tra-
da moral. Por outro, a leitura camponesa se caracteriza como balhadores depois do jantar. Lembro-me a esserespeito de alguns
comunitária ou familial, como escutade uma fala leitora. Duas versos de uma obra sobre a vida campestre que concorreu, há sete
anos, com a égloga de Aura de M. Florian. As leituras da noite
testemunhas nesse caso: Bernadau, sempre ("Os livros dos cam-
entre os camponeses são aqui bem descritas; não o são com me-
poneses estão sempre em mau estado, embora exatamente fecha- nos energia na Vida demeupaí de M. Rétif.
dos. Eles são transmitidos por herança. Nas longas noites de in-
verno, eles lerão durante uma meia hora, para toda a casareunida,
A leitura após o jantar, em voz alta e em família, pertence,
alguma vida de santo ou um capítulo da Bíblia") e Joly (':As pes' portanto, a um repertório de representaçõesque é comum à poe-
soasdo campo não deixam de ter gosto pela leitura, mas dão uma sia bucólica, à fábula autobiográâicaise também à pintura ou à
justa preferência às obras de sua condição. No inverno princi- estampa, desde o Camponês qzze/apara seus.plÀos, exposto por Greu-
palmente, eles lêem ou mandam seus filhos lerem, em família, ze no Salão de 1755, até o õontispício do segundo tomo da pri-
livros ascéticos").
As duas descrições desenham, portanto, uma mesma cena,
11 Mandrou, R. De la cultura poptzlalre am Xyll' e XI/lll' síêcle. La Bibliothêque
a da vigília, quando, na estação de inverno, em torno do livro reli-
Bleue de Troyes. Paras: Stock, 1975. P.20-2 '
gioso lido em voz alta pelo filho ou pelo pai, a família inteira acha- 12 Engelsing, R. Die Perioden der Leserforschung in der Neuzeit. Das statis-
se reunida. Assim, as respostasde Grégoire parecem vir apoiar tische Ausmass und die soziokulturelle Bedeutung der Lektüre. .4rchiv Jãr
duas das características pelas quais os historiadores pensaram GescÀicAte des BucAwessens, v.X, p.945-1002, 1969.
13 Benrékssa,G. Le typique et le fabuleux: histoire et roman dans La víe demon
poder de6lnir as leituras camponesasantigas; o hábito da leitura
pêro. Recue des SaencesHumaínes, n. 172, p.3 1-56, 1978.

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Reger Chartier Leituras e leitores na França do Antigo Regime

XVlll, nem nas pesquisas folclóricas do século XIX. Quando a vigí-


lia é mencionada, é sempre como lugar do trabalho em comum,
do jogo e da dança, dos contos e das canções, da confidência e da
tagarelice,e praticamente nunca como espaçoda leitura comuni-
tária em voz alta.is Construído em referência à leitura íamilial
da Bíblia entre os reformados (enquanto a própria Bíblia é muito
raramente mencionada entre os livros citados), o motivo, portan-
a concentração completa dos indivíduos naquilo que estão fazen-
to, informa mais sobre as nostalgias ou as expectativasdos letra-
do, aquelaabsorçãocolocadacomo o oposto excitoda ítivolidade
dos do âim do século XVlll do que sobre os gestos camponeses.
daépoca."
ParaBernadaueJoly. o motivo da vigília de leitura constitui, Seráque ocorre o mesmo com o conjunto das notações conti-
das nas respostas a Grégoire, que seriam então semvalor "obje-
portanto, um componente obrigatório da representaçãodo mun-
tivo" para uma história das leituras camponesas?Tãvez não. Com
efeito, se todos os correspondentes ordenam suas observações
de maneira a põr em relevo uma nlguraideal ou renegadada per-
sonalidade camponesa, e, sem mesmo calcular conscientemente,
reencontrar em toda parte, cruza contraditoriamente com aquela
propõem, em todos os domínios, os índices adequadosao retrato
que pretendem traçar, sua demonstração deve necessariamente
confrontar as realidades,nem familiares, nem estranhas,desse
ruralismo selvagem,mas próximo. O que eles dizem é, portanto,
visões se encontram justapostas, como se oertencessem a regis-
uma mescla compósita, de proporções variáveis e desiguais con-
tros diferentes, como se o autor reunisse, sem embaraço, os este-
forme os casos, de coisas vistas, de observações feitas no próprio
reótipos maiores que, para as elites urbanas, encerram a verda-
local, como juiz, como vigário, como viajante, e de coisas lidas,
de incerta da sociedade rural, modelo ou escândalo. A descrição
de reminiscências literárias, de clichês em moda.
da leitura piedosa,em família, aocair da noite, não tem, portanto,
Não se trata tanto de fazer a triagem de umas e de outras, já
estatuto de observação etnográfica, mas permite uma encenação
que elas formam um sistema de percepção coerente, dando força
conforme a um dos topeidominantes sobre a cultura camponesa.
de realidade ao campo assim apreendido, mas trata-se sobretudo
Bernadau talvez tenha visto quais livros estavam "devidamen-
de compreender cada indicação factual no porquê de seu enuncia-
te fechados" nas casascamponesas,mas seu testemunho sobre
do e de remetê-la ao que se pode saber, de outro modo, da circula-
çãoe do uso do impresso no mundo rural do século XVIII. Com
essacondição, os testemunhos reunidos por Grégoire demons-
tram como os letrados de província representavam,para si ou

15 Cf., em anexo a este capítulo, nosso dossiê 'A leitura na vigília. Realidade
14 Fried. M. AbsoQtion and TheatrÍcalíty. Painting and Beholderin the Áge oÍ Dide- ou mito?"
rot. University of California Press,1980.
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256
Reger Chartier

Anexo
para os outros, os leitores camponeses, mas também, nessa mes-
ma representação, que tem suas leis e motivos próprios e que A leitura na vigília.
traduz, trunca e transforma, quais eram algumasdaspráticas po- Realidade ou mito?
pulares do impresso
O mais penetrante dessadescriçãoé certamente a consciên-
cia, ainda confusa, de que a Revolução está alterando os hábitos Seráque avigília camponesaconstituiu, no séculoXVlll, um
culturais mais arraigados. O evento desencadeou um desejo de lugar privilegiado da leitura em voz alta de livretos populares,
leitura. de informação pelo impresso, que torna obsoleta a antiga em particular os da Biblioteca Azul? Contrariamente à opinião
biblioteca rural. Alguns pensam a mudança como simples trans- clássica, nós não pensamos assim, ao mesmo tempo porque os
ferência, com as antigas práticas se apossando de textos novos: índices invocados não convencem e porque outras atestações, to-
Depois da Revolução, os camponesessubstituíram essasleituras talmente contrárias, podem ser produzidas.
l É claro, de início, que os estatutos sinodais e ordenações
pelas dos impressos da época, que eles compram quando já muito
usadose vendidos barato. A juventude também substituiu os episcopais que condenam asvigílias não mencionam a leitura en-
cânticos pelas cançõespatrióticas" (Bernadau, dezembro de 1790 tre seus perigos ou hábitos, seja ela em voz alta ou silenciosa,

ou janeiro de 1 791) . Mas, de fato, com a irrupção de uma literatu- coletiva ou solitária. Como as ordenações episcopaispara a dio-
ra efémera, e panfletária, que só tem valor na sua relação com a cesede Châlons-sur-Marne de 1693, citadas por Robert Mandrou
atualidade política, móvel, nervosa, é toda uma antiga maneira (De ZaczllMre populaíre..., op cit., p.2), que denunciam a entrada
de ler, ligada à repetição das mesmasfórmulas em livros sempre de rapazes nas vigílias em que mulheres e moças trabalham juntas
idênticos a si mesmos - horas, almanaques, histórias azuis - que para "jogar e dançar" mas não para ler.
aparecejá moribunda. Daí a indecisãotemporal de muitas res- 2 Quando o escrito se introduz nas vigílias femininas, no iní-
postas a Grégoire que descrevem no presente uma cultura cam- cio do século XVlll, é por iniciativa de alguns padres, geralmente
ponesa íatiada, superpondo, sobre a trama empalidecida das lei- favoráveis aojansenismo, que pretendem assim transformar prá-
turas antigas, os novos entusiasmos de leitores camponesesque ticas antigas, estranhas à leitura, e conquistar os fiéis. Por oca-
já não são mais aqueles das imagens do Iluminismo. sião de seu processodiante da oficialidade de Venceem 1709,
Jean-Baptiste Deguigues, vigário de Tourrettes, é assim dupla-
mente acusado: pelas testemunhas por sua participação em as-
sembléias onde "se canta, se ri, se diverte como fazem habitualmente
as pessoas que fazem amor", pelo seu bispo por ter distribuído nas
vigílias "orações e ofícios" que ele não tinha autorizado. E, de fato,
os depoimentos assinalam que ele se dirigia às assembléias "com
um livro debaixo do braço" e aí fazia "a leitura de alguns livros'
(cf. M.-H. Froeschlé-Chopard e M. Bernos, "Deguigues, prêtre
janséniste du diocese de Vence en 1709 ou I'échec de I'intermé-
diaire", l.es íntermédíaíres czllturels. Publicações da Universidade

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Roger Chartier

de Provence, 1981, P.59-70 e "Entre peuple et hiérarchie: échec


d'une pastorale", Díx-FiuÍtíêmeSíêcie,n. 12, p.271-92, 1980) .
3 0 memorial de 1744 dedicado às "Écreignes" camponesas
("casas cavadasdebaixo da terra e cobertas de esterco onde as
moças vão fazer vigília"), citado por R. Mandrou (op. cit P:,21-
2), e cujo estatuto etnográfico seria de veriâcar, não menciona
absolutamente a leitura entre as atividades das mulheres reuni-
das. Estas estão inteiramente ocupadas pelo trabalho em comum,

pelas conversas e confidências, por histórias contadas, por can


ço'es portanto, por uma cultura da oralidade que não se baseia
na presençado escrito, impresso ou manuscrito, lida por uma
para as outras. . ..: ":
4 No século XIX, na diocesede Annecy,quando a vigília é
descrita pelos vigários da paróquia em resposta ao questionário
que lhes enviou em 1845 o bispo, monsenhor Rendu (o que é o
caso em 31 paróquias entre 122, ou seja, uma em cada quatro),
suas adüdades são exatamente aquelas mencionadas e, para algu-
mas. condenadas, nos séculos XVll e XVlll: o trabalho em comum
(âar, cortar cânhamo, quebrar nozes, rachar lenha) l.as conversas
qualificadas na época como "sujas e maledicentes", os jogos de
cartas, a dança.Apenas três vigários fazem alusão à leitura, um
para dizer que a leitura de "maus livros" não se encontra nas wgi
lias de suaparóquia (Châtel), os dois outros para indicar que "às
vezes" ou "raramente" é feita a leitura do catecismo nas reuniões

e C. Joisten, Annecy, Academie Salésienne e Grenoble, Centre


Alpin et Rhodanien d'Ethnologie, 1978, P.181,.261 e.293) See
certo, portanto, que a vigília é realmente uma prát:ica da sociabili-
dade camponesa (mas talvez menos universal do que se pensava
na França) , em contrapartida, parece muito duvidoso que ela te-
nha sido um lugar-comum da leitura.

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