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A FamíIia comoGrupo

Primordial
LUIZCÀRLOSOSORIO

EM BUSCA DE UM CONCEITO OPERATIVO DE FAMILIA

Família não éum conceitounívoco.Pode-sedizer que a família não é uma expressã


passívelde conceituação,mas tão somentede descrições,ou seja,é possíveldescre
ver as várias estruturasou modalidadesassumidaspela família atravésdos tempos
mas não defini-la ou encontraralgum elementocomum a todasas formas com que se
apresenta esteagrupamenlo humano.
Mesmo se a considerarmosapenasnum dado momento evolutivo do process
civilizatório temosdificuldadesem integraro proteimorfismo de suasconfiguraçõe
numa pautaconceìtual.O que terá em comum nos dias atuais,por exemplo,uma
famflia de uma metrópolenorte-americanacom a de um vilarejo rural da China? Ou
a de um kibbutz israelensecom a de um latifundiário australiano?Que similitude
encontrarentre a de um retirantenordestinoe a de um lapão da Escandinávia?Ou a
de um porto-riquenhoque vive num guetonova-iorquinocom a de um bem-sucedid
empresáriosuíço?Ou, ainda,como equiparara de um siciliano mafioso com a de um
muçulmanopaquistanense? Ou a de um bérberenorte-africanocom a de um decadent
lordeinglês?
Sãotantasas variáveisambientais,socrars, econômicas, culturais,políticasou
religiosasque determinamas distintascomposiçõesdas famílias até hoje, que o sim-
pÌes cogitar abarcá-lasnum enunciadointegradorjá nos paralisao ânimo e tolhe o
propósito.Não obstante,como não podemosprescindirde uma definição, ainda que
precáriae limitada, que nos facilite a comunicaçãoe nos ajude a discriminar o funda-
mentaldo perfunctório,vamosà procurade um conceitoque possaseroperativopara
asfinalidadesdestecapítu1o,valendo-nosparatantodascontribuiçõesde outrosautore
que sedebruçaramsobrea ingentetarefade encontrarumanoçãode família suficiente
menteabrangentepara servir-nosde parâmetroaqui e agora.
Dizer que a família é a unidade básicada interaçãosocial talvez seja a forma
nais _genérica e sintéticade enunciá-la;mas, obviamente,não bastapara situá-l
:u1moagrupamento humanono contextohistórico-evolutivo do processo civilizatório
"a
Escardóobserva-nosque palavra/amílía nío designauma instituiçãopadrão
:-:ree invariável.Atravésdos tempos,a famíia adotaforïnase mecanlsmossumament
::.. ersos,e na atualidadecoexistemno gênerohumanotiposde famflia constituídosso
::: princípiosmoraise psicológicosdiferentese aindacontraditóriose ilconciliáveis".
50 . znrmve,Na osonro

A estruorafamiliar varia,portanto,enormemente, conformea latitude,asdis


tasépocashistóricase osfatoressócio-políticos,econômicosou religiososprevale
numdadomomentoda evoluçãode determinada cultura.
Segundo PichonRivtère,"a,família proporcionao marcoadequado paraa def
gãoe conservação dasdiferenças humanas, dandoformaobjetivaaospapéisdis
tos, mas mutuamente vinculados,do pai, da mãee dos filhos, que constihlem
papéisbásicosem todasasculturas".
ParaLéviStrauss,sãotrêsostiposderelações pessoais qrueconírguram afa
lia: aliança (casal),filiação(paise Írlhos)e consangüinidade(irmãos).lssonosc
duza outroreferencialintimamente vinculadoà noçãode famflia:o parentesco
O parentesco consistenumarelaçãoentrepessoas que sevinculampelo ca
mentoou cujasuniõessexuaisgeramfilhos ou, aind4 que possuamancestrai
muns.Nestaconcepção, maridoe mulhersãoparentes, independentemente de ge
rem filhos,assimcomoo sãoospaisde umacriança,emboranãosejamlegalm
casados; por outrolado,doisindivíduosquevivammaritalmente semqueessare
ção seja oficializada legalmente ou que delaresultem filhos não sãoparentes.
Frcud,emToteme taòu,assinalaqueo "parentesco é algomaisantigodo qu
vidafamiliare, naìã-oria dassociedades primitivasquenossãoconhecidas. a fa
lia continhamembrosde maisde um parôntesco. Comoveremosmaisadiante
não seconhecero papeldo pai na reprodução,n_os povo_sprimitivo-so parentesco
restrito à linhagemmatema.
NÌo o6Bkúite ã no-çãóãa famíliarepousesobrea existênciado casalqlLelh
origem,considera-seque suaessênciaestejarepresentada na relaçã,opais-filhns
quea origeme o destinodesteagrupamento humanocoincidemno objetivode ge
e criarfilhos.
neçtênicada espéciehumana,ou seja,a impossibilidade de
. ,A,c,on(içã!
descendência sobreviversemcuidadosao longo dosprimeirosanosde vida, foi, s
dúvida,responsável pelosurgimento do núcleofamiliarcomoagentedeperpetu
da vida humana,o que igualmenteocorrecom outrasespécies animais,cuja pr
tambémnecessitada provisãode alimentose proteçãopor partede indivíduosad
tos,enquantonãopodefazêìa por seusprópriosmeios.A famfliatoma-se,ass
tantono homemcomoem outrascategorias zoológicas, o modelonaturalparaas
gurara sobrevivência biológicadaespécie; a pardestafunçãobásica,propiciasim
taneamentea matriz parao desenvolvimentopsíçico dosdescendentes e a apren
zagemda interaçãosocial.
Em realidade, nãopodemosdissociara funçãobiológicada funçãopsicoss
da família;seé fato quea finalidâdebiológicade conservara eèpécie estána orig
da formaçãodafamíia, é igualmente pertinentedizerquea famíliaé um-grupoes
- ctârrTaoo nallgguçaooe pessoas comvlnculospecultares e queseconsutulnace
orimordialde todae qualquercultura.
----- Cõm6seiãèmàntoi introdutóriosjá estamosem condiçõesde formular u
defnição ad hoc, de cunhooperativo,paraos propósitosaqui presentes:

" Farnília é umaunidadegrupal ondesedesenvolvem três tipos de relaçõespesso


- aliança (casal),filiação (pais/filhos)e consangüinidade(irmãos) - e que a pa
dos objertvosgenéricosde preservara espécie,nutrir e proteger a descendên
fornecer-lhe condiçõespara a aquisiçãode suasidentidadespessoaisdesenvo
atravésdos temposfunçõesdiversificadasde transmissõode valoreséticos,est
cos,religiosose culturais".
Consideraremos,ainda,que a família pode se apresentar,grossomodo, sob trê
S formatos básicos:a nuclear (conjugal), a extensa(consangüínea)e a abrangente.
Por família nuclearentenda-sea constituídapelo tripé pai-mãe-filhos;por famí
t- lia extensaa que se componhatambém por outros membros que tenham quaisque
t- laçosde parentesco,e a abrangentea que inclua mesmoos não-parentes que coabitem
rs Convencionaremosquedoravantesempreque nos referirmosà famflia, a meno
que se particularizea modalidadede agrupamentofamiliar considerada,o estaremo
t- fazendotendoem menteseuformato nuclear,prevalentena modemacivilização oci
t- dental,que balizao cotidianoexistencialdaquelesa quemsedestinaestelivro.

t-
F {S ORIGENS DA FAMÍLIA
t-
te A família é uma instituiçãocujas origensremontamaosancestraisda espéciehuma
ì- na e confundem-secom a própria trajetória filogenética.
A organizaçãofamiliar não é exclusivado homem;vamosencontrá-laem outra
a espéciesanimais,quer entre os vertebrados,quer, mesmo sob formas rudimentare
ú- entre os invertebrados.
lÍ Assim como na espéciehumana,encontram-sedistintasformas de organizaçã
familiar entreos animais.Há famílias nasquais,apóso acasalamento, a prole fica ao
cuidados de um só dos genitores,geralmente,a fêmea; mas também poderá ser o
lá macho quem seencarregados cuidadoscom os descendentes, como em certasespé
iéL cies de peixes.Algumas espéciesentre as avesvivem em família durantea épocada
reproduçãoe em bandosduranteas demaisépocasdo ano. Os pais podem permane
cerjunto aosfilhotespelavida toda,masessesgeralmenÍe deixamos paisantesqu
la nasçamoutrasninhadas.Há tambémentre os animaisfamílias ampliadas(ou exten
m sas),onde os jovens ajudam a criar os irmãos. As abelhasoperárias,que são filha
io estéreisdas abelhasrainhas,constituementre si uma fratria ou comunidadede irmã
,te com funçõesde mútuos cuidados,proteçãoe alimentação.
Essabreve referênciaaos comportamentosfamiliares de certos animais tem o
'l-
n. propósito de enfatizar o caráteruniversal dos agrupamentosfamiliares e chamar a
e- atençãopara suâonipresençanão só ao longo da evoluçãoda espéciehumana,mâsna
rl- de outros seresdo reino animal.
ti- Curiosamente,a origem etimológicada palavrafamília nos remeteao vocábul
latinofamulus, qrl'esignifica "servo" ou "escravo", sugerindoque primitivamente s
al consideravaa família como sendoo conjunto de escravosou criadosde uma mesm
m pessoa.Parece-me,contudo, que essaraiz etimológica alude à naturezapossessiv
e- das relaçõesfamiliares entre os povos primitivos, onde a mulher devia obedecerse
Ia marido como se seu amo e senhorfosse,e os filhos pertenciama seuspais, a quem
deviam suasvidas e conseqüentemente essessejulgavam com direito absolutosobr
elas.A noçãode possee aquestãodo poderestão,portanto,intrinsecamente, vinculada
à origem e à evoluçãodo grupo familiar, conforme veremosmais adianteao tratar
mos dos mitos familiares.
us Há várias teoriassobrea origem da família: umas a fundamentamem suasfun
rir ções biológicas; outras, em suasfunções psicossociais.Foram formuladas as mai
e diÏersas hipóteses,tendo como ponto de partida questõesatinentesà parentalidad
?u ou seja,aos papéispatemo e matemo como estruturadoresdo grupo famiÌiar.
Ìi- O vértice evolutivo - que consideraque a família, tal qual os seresque a com
poem,necessita passarpor etapassucessivas no cursode seudesenvolvimento - tem
sido a pedra de toque na fundamentaçãodas diversasteorias que tentam explicar a
52 . zmsnve" * oso*to

origeme a estruhlração do grupofamiliarcomoo encontrâmos ao longodo proc


civilizatórioe nasdistintasculturas.
As famíliasoriginalmente seorganizavam soba formamatriarcal,aoquepa
pelodesconhecimento do papeldo pai na reprodução. Essaexplicação, contudo
é consensual entreosantropólogos. No entanto,é o quenospareceocorreremc
sociedades ditasmatrilinearesaindaencontradas emnossosdias- taiscomoosm
nésiosestudados porMalinovski-, ondea autoridade patemarecaisobrea figu
tio matemo(aúnculo), que,entreoutrasatribuições, tema de "concedera mão
sobrinhas aoseventuais pretendentes a comelassecasarem. Essa"transferênc
tio matemodosdireitose devereshabirualmente atribuídosao pai provém,ao
tudo indica,do referidodesconhecimento do papeldo homemna reproduçã
temposidos.Esses hábitos milenares dos melanésios comrelaçãoaopapelavun
teriamsubsistido mesmoapósa revelação da funçãoreprodutora patema.
O matriarcado, segundooutrasfontes,seriauma decorrência naturalda
nômadedospovosprimitivos,pois,enquantoos homens- desconhecendo ain
técnicasprópriasao cultivo da terra- tinhamque sair à procurade alimen
mulheresficavamnosacampamentos comosfilhos,quecresciampraticaments
influênciaexclusivadasmães,a quemcabiaaindafomecerummínimodeestab
de sociala estesnúcleosfamiliaresincipientes.
Comodecorrência dessapreponderância da figuramaterna,em certassoc
desmatriarcaisasmulherestinhamo direitode propriedade e certasprerrog
poÍticas,comoentreosiroqueses canadenses estudados porMorganno séculopas
Entreeles,asmulherespossuíam asterrascultiváveise ashabitações, podendov
a eleiçãode um chefe,emboranãoocuparum cargono conselhosupremo.
Paraosevolucionistas, o desenvolvimento daagriculturae o conseqüente ad
do sedentarismo foramosresponsáveis pelainstalação progressiva do patriarc
Em fins do séculopassadoe princípiosdestehouveum verdadeiroboo
estudosantropológicos sobrepopulações primitivas,sustentando a emergên
múltiplastesessobreo comportamento dos gruposfamiliares.No entanto,é
temeráriotirar-seconclusões sobrea origemda famflia a partir da observaç
tribosprimitivas,poisa noçãode evoluçãoculturallinearnãoó maisaceitaent
antropólogos. Issoquerdizerqueospovosditosprimitivosquenossãocontem
neosnão necessariamente estãoreproduzindo formasde agrupamento familia
contradas no passado remoto.Aindaassim,a constatação de quecertospadrõe
reiteradamente encontrados emtempose lugaresdiversospermitequesetomec
válidasmuitasdasafirmações feitascom basenesses estudos.
Ao discutir-sea origemda família,uma perguntainicial que insistente
nosocorreé sea instituiçãofamiliaré universal.
Em 1949,o antropólogonorte-americano G.P.Murdockpublicouseues
transcultural sobreparentesco, confirmandoa hipótesedauniversalidade da fam
ParaMurdock não apenasa família em geral,masa famflia nuclear,em particu
universal,concluindoquenenhumaculturaou sociedade podeencontrarum su
tuto adequadoparaa família nuclear.
A famflianuclear,segundoesseautor,apresenta quatrofunçõeselement
sexual,a reprodutiva,a econômicae a educativa.Essasfunçõesseriamrequ
paraa sobrevivência de qualquersociedade. E baseando-se nessefato queMur
afirma sera família nuclearuniversal.
Há quempossaobjetarcoma observação dequetemosemnossostemposes
ras sociaisquenãoincluema famflia,como,por exemplo,os kibbutzde Israe
entanto,comoobservaSpiro,estasociedade essencialmente voltadaparaa cria
C OIIIOTR A B A LH A MOS
C OMC R U P OS 53
'

embora do ponto de vista estrutural pareça constituir-senuma exceçãoà idéia da


universalidadeda família, serveparaconfirmáìa do pontode vistafuncionale psicoló-
gïco.Nokibbutz,acomunidadeinteirapassaa serumagrandefamília extensa.Somente
o numa sociedadefamilial como o kibbutz, afirma Spiro, seria possível não haver a
ts família nuclear desempenhando suasfunçõesindispensáveis.
t- A questãoda origem da famflia conduz-nosnaturalmenteà discussãodasques-
/o tões relativas ao pârentesco,as relaçõesentre o tabu do incesto e a exogami4 e a
ls instituição do casamento.
lo L.H. Morgan,advogadonoÍte-americanoquena segundametadedo séculopassa-
le do se interessouvivamente pela observaçãoda vida dos aborígenesque viviam na
m fronteira dos EUA e Canadá,tomou-se o fundador da modema antropologia com
ar seus estudospioneiros sobre as relaçõesde parentesco.Embora seu enfoque
evolucionistapossasercontestadopelosavançosulterioresda investigaçãoantropoló-
da gica, sua tipologia familiar perÌnanececomo ponto de referênciapara o estudo das
as estruturasfamiliares e das teoriassociológicassobrea família.
as SegundoMorgan havia originariamenteuma promiscuidadeabsoluta,semqual-
DA quer interdição para o intercurso sexual entre os sereshumanos.Este teria sido o
la- peíodo da família consangüínea,estruturadaa partir dos acasalamentosdentro de
um mesmogrupo.
la- A seguir,pelo surgimentoda interdiçãodo relacionamentosexualentre pais e
tas filhos e posteriormenteentre irmãos, atravésdo tabu do incesto, surgiu a famflia
do. punaluana,onde os membrosde um grupo casamcom os de outro grupo, mas não
Íar entre si. Assim, os homensde um determinadogrupo sãoconsideradosaptosa casar
somentecom as mulheresde um outro determinadogrupo, e essesdois grupos intei
nto ros casam entre si. Essa estruturafamiliar é também conhecidacomo família por
o. grupo.
de Na famflia sindesmáticaou de casal, o casamentoocorre entre casais que se
de constituemrespeitandoo tabu do incesto,mas semcondicionarsualigação à obriga-
lgo toriedadedo casamentointergrupos.Essasfamílias, encontradasentre os primitivos
das povos nômades,caracterizam-sepela coabitaçãode vários casaissob a autoridade
: os matriarcal,responsávelpelacoesãòcomunalatiavésda economiadomésticacompar-
lrâ- tida.
en- A repartiçãode tarefasadvindasdo desenvolvimentoda agricultura teria dado
são origem à família patriarcal,fundadasobrea autoridadeabsolutado patriarcaou "che-
rmO fe de família", que em geral vivia num regimepoligâmico,com as mulhereshabitual-
mente isoladasou confinadasem determinadoslocais (gineceus,haréns).
Finalmente,temosa família monogâmica,paradigmáticada civilização do oci-
dente,cujas origenssevinculam ao desenvolvimentoda idéia de propriedadeao lon-
udo go do processocivilizatório. A fìdelidadeconjugal como condiçãopara o reconheci-
ília. mento de filhos legítimos e a transmissãohereditáriada propriedade,bem como o
estabelecimentoda coabitaçãoexclusiva demarcandoo território da parentalidade
)sti- são os elementosemblemáticosdestaque, ainda hoje, é o tipo de família prevalente
no mundo ocidental.
Engels,o colaboradorde Marx na elaboraçãodasbasesprogramáticasdo movi-
;itos mento comunista, apoiando-senas idéias de Morgan, sustentousua tese de que a
lock famflia monogâmica teria sido a primeira famflia fundada não mais com base em
condiçõesnaturais,massociais,jáquea monogamiaparaele nãoseriauma decorrência
utu- do amor sexuale, sim, do triunfo da propriedadeindividual sobreo primitivo comunis-
. No mo espontâneo. A monogamiaé visualizadasob a ótica do materialismohistórico
nç4, não como uma forma mais evoluídade estruturafamiliar. porém como a suieicãode
54 . ,*u*"on s oso^,o

um sexo ao outro a serviço do poder econômico.Como a inclinação natural do h


mem seria a liberdadede intercâmbio sexual, a monogamia teria sido responsá
pelo incrementoda prostituiçãoe pela falênciadessesistemafamiliar nos dias atua
Sobre as relaçõesde parentesco,podemos considerá-lassob duas apresen
ções: a consangüinidadeem linha direta, que ocoÍTeentre pessoasque sejam um
descendentedireta da outra, e a consangüinidadeem linha colateral,que se dá ent
pessoasque descendemde antepassados comuns,mas não descendemuma da outr
Enquantoessasrelaçõesde parentescoseriamas determinadaspelanatureza,aquel
baseadas no casamentoseriamas estabelecidas peÌasconvenções sociais.Marido
mulher são parentesem função do contratosocial que os uniu.
As relaçõesde parentescotidas como primárias ou fundantes das estrutur
familiaresseriamas seguintes: maridoe mulher,paise filhos, e irmãos.
Lévi-Strauss,antropólogocontemporâneoformadona escolasociológicafranc
sa,aplicoua perspectiva estruturalista
à antropologia,descrevendo o que chama"a
estÍuturaselementaresdo parentesco".Partindo da noção de que a estruturaé u
sistemade leis que regeastransformaçõespossíveisnum dadoconjunto,LévlStraus
procurou estabeÌeceras relaçõesconstantesna estruturafamiliar que determina
não só suaaparência fenomênicaem determinadoinstantehistórico,como suaspo
síveis modificaçõesao longo dos tempos.
Tomandocomo ponto de partida a teoria da "troca ritual do dom" de Mauss (u
de seus mestresna escola sociológicafrancesaacima mencionada)e bebendo n
fontes da psicanálisee da lingüística,ramos do conhecimentoapenasemergentesn
época de seusprimeiros estudos,Lévi-Straussprocurou determinar que element
subjazemaos padrõesrelacionaisque configuram a família desde suas fundaçõ
mais arcaicas.
Cada elementodoado implica a obrigaçãode sua restituiçãopelo receptor,di
nos a aludida teoria de Mauss. Assim, na famflia estruturalmentemais simples
supostamenteanteriorao conhecimentodo papeldo pai na reprodução),ao tio mate
no (avunculus)catseriaa função de "doar" mulheresà geraçãoseguinte.Ao atribu
se tal função ao tio matemoestava-sesimultaneamentecriando a interdiçãodo ince
to, pois a sobrinhasó poderia ser doadapelo tio a quem não pertencesseao círcu
endogâmico(pai, irmãos).
A proibição do incesto então instaladaé a regra da reciprocidadepor excelê
cia, pois a troca recíprocade mulheresasseguraa circulaçãocontínuadas esposa
filhas que o grupo possui.Com o tabu do incesto,a família marcaa passagemdo fa
natural da consangüinidadeao fato cultural da afinidadee a relaçãoawncular é, p
assimdizer, o elementoaxial a partir do qual se desenvolverátoda a estruhrrasoc
do parentesco.
O tabu do incestoe a exogamiaque lhe é conseqüenteestariam,segundoLév
Strauss,nas raízesda sociedadehumana.A exogamia,ou seja,o casamentofora d
grupo familiar primordial, funda-sena "troca", que é a basede todasas modalidad
da instituiçãomatrimonial.O laço de afinidadecom uma família diferente assegur
domínio do social sobreo biológico, do cultural sobreo natural (por isso a afirmaç
de Lévi-Straussde que com o tabu do incestoa família marcaa passagemda nature
à cultura).
A exogamia,como a linguagem,teria a mesmafunção fundamental:a comun
caçãocom os outros.E dessacomunicaçãoa possibilidadede que surja um nov
nível de integraçãono relacionamentohumano. A partir dessepropósito, é que
exogamiadá origem à instituiçãomatrimonial.
C OM C R U P OS .
C OIúOTR AB A LH A MOS 5!

A instituição matrimonial nasceuvinculada aos ritos de iniciação que marca-


vâm a passagemda infância para a idade adulta. Nos povos primitivos, tais ritos
geralmenteculminavam com a cerimôniado casamento.
Os costumesligados à instituiçãomatrimonial variarammuito atravésdos tem-
pos, mas desdeo advento da noção de propriedadeestiüeramde uma forma ou de
outra relacionadosà idéia de uma "transação"ou "troca". Talvez a forma mais ele-
mentar desta permuta tenha sido a de uma mulher por outra, onde o homem que
quisessecasar-seofereceriasuairmã, sobrinhaou servaem troca de uma noiva, de tal
soÍteque o pai destateria compensadaa perdada filha pela aquisiçãode outra mulher
que pudessesubstituí-lanos afazeresdomésticos.Posteriormente,essatroca física
foi substituídâpor um equivalenteem bensou dinheiro.
A comprade uma noiva foi, portanto,a forma mais primitiva de contratomatri-
monial. Essamodalidadede matrimônio, onde a mulher é tratadacomo mercadoria,
prevaleceusobretudonas famflias de organizaçãopatriarcalreferidasanteriormente.
Um remanescente cultural desteconsórcioem que a mulher é tida como propriedade
do marido estáno costumeocidentalde a mulher trocaro nome do pai pelo do marido
(ou apor ao do pai o deste)por ocasiãodo contratomatrimonial.Nos paísesde língua
espanhola,essacondição é explicitada pela partícula "de" entre o nome próprio da
mulher (seguidoou não do sobrenomede solteira)e o sobrenomedo marido, como a
indicar a quem pertencedoravantea nubente.
O dote é outro subprodutodestaconcepçãodo casamentocomo uma transação
comercial: sua instituição obedeceao propósito original de ressarciro noivo (ou a
famflia deste)pelos custosposteriorescom a manutençãoda esposa.E ainda hoje a
aspiração,largamentedifundida entre os pais, de um "bom partido" para seusfilhos
ou filhas assinalaa persistênciadestereferencialeconômicoparabalizar a instituìção
do matrimônio.
À medida que o casamentose subordinoua interessesligados à propriedadede
bens materiaisou patrimoniais,sua instituiçãofoi saindoda esferamístico-religiosa
paraa do direito civil. A partir da IdadeMédia e por muitos séculoshouve no mundo
ocidental uma acirrada disputa entre o Estado e a Igreja para determinar a quem
caberiaa prerrogativade estabelecero contratonupcial.Só a partir do adventoda Era
Contemporânea,o poder laìco e o religioso passarama exercersemmaioresconflitos
suasrespectivasesferasde influêncianasquestóesatinentesà instituiçãodc matrimô-
) nlo.
) O casamentosemprefoi um terreno propício ao exercício do poder. Mesmo
I onde não existam interesseseconômicosem pauta (como na classeproletária), ou
I onde não são os sentimentôsreligiosose tão apenasa força da tradição e da cultura
que preside os ritos matrimoniais, o poder parental se faz presente,manifesta ou
subrepticiamente,na determinaçãoda escolha dos cônjuges. E até quando obje-
tivamenteo casamentose funda no amor e mútuo consentimento,sem a explícita ou
implícita interferênciados pais, pode-sesupor que tal poder estejaatuantenas iden-
tificaçõese motivaçõesinconscientesque subjazemà eleição dos cônjuges.

É n muÍr,n o cRUPoPRIMoRDIAL?
Eis aí uma questãotranscendentalde Íespostanão tão fácil como seria de se
supor.Emborao sensocomum e um raciocínio rudimentarnos levem a concluir que
homem, mulher e filho devam ter se constituído no mais elementar agrupamento
56 . ZMERMAN& OSORIO

humano,nãohá qualquerindícioarqueológico ou inferênciaantropológica que


assegure ter estacomposição de sereshumanosconfiguradoo que se entend
famflia,comospapéise funçõesquelhe sãopertinentes na concepção quefoi ad
rindo ao longodo processo civilizatório.
A simplescoexistência primevadessas trêsfigurasrepresentacionais da un
de familiarbásicanãoconstituiargumento suficienteparaqueseos visualizec
poftando-se numcontextofamiliar.Talveza verdadeira passagem da naturezap
culturatenhaocorridoquandoessestrêspersonagens de nossaproto-história rev
ramsuanecessidade de inteÍaçãosociale deramorigemaosafetoscimentadore
relaçõesfamiliares.
Sea famíliaé o pontode tangência ou intersecção entrea naturezae a cult
conformepostulamosantropólogos, nãopodemosdeixardeconsiderá-la, parapo
melhorentendêla,a luz da evoluçãodosmodelosculturais.
M. MeadconsideratÉs tiposou modelosculturaissegundoos quaiso hom
serelacionacom seusaÍìtepassados ou descendentes.
O primeirodelescorresponde àsdenominadas culturaspós-figurativas, que
tnìemsuaautoridade do passado, baseando-a num consenso acítico e na leald
inequívocade cadageraçãoquea precedeu. Nessasculturas,ascriançase osjov
apreendem primordialmente comosadultos,e o futuroé visualizado comoum pro
gamentodo passado, ou seja,o passado dosadultosé o futurode cadageraçã
nessasculturasumafalta de "consciência de mudança",e o mito prevalenteé o
ancião comofonte do sabere dos valoresa serempreservados e transmitid
gerações futuras.Esseé o modeloculturalvigenteatéo adventoda eracontem
neae aindahoje encontrável em agrupamentos humanosprimitivosou isolad
portanto,à margemda ondacivilizatóriadesencadeada pelarevoluçãoindustria
O segundo dessesmodelosé chamado pelaautoracitadadeculturasco-figu
vas,ondeháumareciprocidade de influências entrejovens e adultos.Pelosurgim
de novasformasde tecnologia, paraasquaisosmaisidososcarecemde informa
ascamadasmaisjovensda populaçãopassama deteruma significativaparce
poderde influênciaproporcionado peloconhecimento. Nessasculturas,o prese
o que conta,e o mito nelasprevalenteê o do adultoprodutivo.Esseé o mo
predominante no mundoatuale que,partindodo ocidente,tendea globalizar-
medidaem queascivilizaçõesorientaissãopoÍ elecooptadas.
Finalmente,temoso modelodasculturaspré-figurativas, ondeo futuro n
maisum simplesprolongamento do passado, mastem suaprópria(e desconhe
identidade, prevalecendo asexpectativas futurassobreasrealizações passadasN
sasculturashá uma exacerbação dos conteúdosrevolucionários e das tendê
iconoclastas e podemosencontrálasnãoapenasem naçõesqueestãosofrendo
danças radicaisemsuaestrutura sócio-política, mastambémsoba formade"bols
culturaisquerdo ocidentecomodo oriente.Nessasculturas,o mito dominanteé o
poderjovem.
E no contextodasculturaspré-figurativas que apontamparaa civilizaçã
terceiromilênio que a famflia do futuro se inseree adquireseuscontomos:u
famfliaondeosjovenschamama si o papeldemediadores entreseusmembrosm
idosose a sociedade emprocesso de transmutação tecnol6gica.
Recolocandoa questãosobresera família o grupoprimordiale arregiment
argumentos paraconfirmartal assertiva,encontramos nassagasmitológicaso
importantesubsídioparasustentar tal afirmação.
Na gênesedosmitosprimitivoshá semprereferênciaa situações quetoma
contextofamiliar comomatéria-prima parasuaelaboração temática,e os pers
'

gensque nelesse movem o fazem incorporandopapéisfamiliares e desempenhand


sua representaçãosimbólica a partir deles.
Tomemos,por exemplo, a vertentemitológica greco-romanae acompanhemo
por instantessua versãoda criaçãodo universo e dos seresque o habitaramem seus
primórdios.
No princípio era o Ccos de onde originarum-seErebo e sua irmã e esposaNoile
(tal q,lal Adão e Eva na antropogênese bíblica).
Erebo e a Noite procriam e dão origem a Eter e ao Di o, que, por sua vez, são o
pai e a mãe do céu (Urano) e da tena (Gaia\.
Urano gera,entreoutros,trêsfilhos: 7Ìrã, Saturnoe Oceano.Essesse revoltam
contra o pai, mutilam-no e o impossibilitamde ter filhos.
Satumo, frlho segundode Urano e Gaia, obteve de seu irmão, o primogênito
7itá',a permissãode reinar em seu lugar desdeque sacrificassetodos os seusdescen
dentesmasculinosa fim de assegurarque a sucessãoao trono fossereservadaa seus
próprios filhos. Salarno desposouRála, com quem teve muitos filhos e a todos devo-
rou logo que nasciam,cumprindo o acordo feito com seu irmão (cumpre-seassim o
ritual cíclico do parricídio/infanticídioque mais tardeseráo tema central do mito de
Edipo). Uma nova aliança configura-seno universo mítico: a da mãe com o filho
contra o pai. Ráia consegue,atravésde um ardil (substituir o filho por uma pedra
entãoengolida por Satumo), salvar seu filho Jripiter de ser devoradopelo pai. Com
idêntico estratagema,ela salva outros dois filhos, Nenno_e Plutão. Júpiter declara
gueÍÍaa Satumo e vence-o,humilhando-o,tal qual estefizera com seu pai, Urano.
Mais tarde, aconselhadopor T/lis, a prudência,com quem casaraainda adolescente
Júpiter dâ uma beberagema SaÍurno, e êste vomita, além das pedrasengolidas,os
filhos anteriormentedevorados.Depois, temerosode sofrer o mesmo destino nas
mãosdos filhos que resultassemdessaunião, renunciaa seuamor por lálls. Casa-se
então,com Juno, suairmã gêmea,com quem mantémum relacionamentoque prelu-
dia todos os conflitos das relaçõesconjugaisentreos mortais:Juno o apoquentacom
seusciúmes e contestasuaautoridadedoméstica,enquantoJúpiter agecomo marido
rabugento,por vezesviolento, maltratandoJuno.
Creio que seráfácil aos leitoresidentificar nestefragmentoda mitologia greco-
romanaa presençado contexto familiar como pano de fundo para as açõesmíticas.
Se é o conflito entrepai e filho ou entremarido e mulher que se toma manifesto
nessasconcepçõesmitológicas da origem dos seres,na versãobíblica é a rivalidade
entre os irmãos Caim e Abel que comparecepara aludir às vicissitudesda vida fami-
liar; por outro lado, podemosinterpretara expulsãode Adão e Eva do paraísocomo
expressãodo repúdio do pai aos filhos criados quândo estesnão se comportam de
acordo com as expectativaspatemas.
De uma forma geraÌ,todasasmitologias,aodaremsuasversõesda antropogênes
logo que criam o homem o colocam numa situaçãorelacional no seio do núcleo
familiar. E não só nos mitos de origem como também nos que retratamdramas ou
conflitosdo périplo existencialvamosencontraros protagonistas imersosem sua
circunstânciafamiliar: o solitário Narciso, mirando-senas águas,vê, mais além de
sua imagem refletida, as entranhasmatemaspara onde desejaretomar,e Édipo per-
corre seucalvário balizadopelasculpasincestuosasnum complexo interjogo de rela-
çõesfiliais, conjugaise parentais.
Ora, se as sagasmíticas com tal reiteraçãouniversalizama presençada família
em seusconteúdose se são elas a proto-representação do mundo real, não se poderá
daí inferir a condiçãoprimordial da família como agrupamentohumano?
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REFERENCIASBIBI,IOGRAFICAS
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