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A Democracia na América – Alexis de Tocqueville

Na América, o princípio de soberania do povo, que se encontra nos fundamentos de quase


todas as instituições humanas, não está escondido – como em certas nações -, mas é
reconhecido pelos costumes e proclamado pelas leis. Desde sua origem, o princípio da
soberania popular tinha sido o princípio gerador da maioria das colônias inglesas da América,
ao passo que, quando a revolução americana eclodiu, o dogma da soberania popular
apoderou-se do poder; e todas as classes se comprometeram por sua causa – tornando-se a lei
das leis. Atualmente, o princípio de soberania do povo, nos Estados Unidos, se reveste de
todas as formas, visto que ora o povo faz as leis, ora os deputados erigidos pelo voto
universal representam-no e agem em seu nome, sob sua vigilância – de modo que, aqui, a
sociedade age por si só e sobre si mesma; só existindo poder em seu seio, podendo participar
da composição das leis, através das escolha dos legisladores, e de sua aplicação, na escolha
do Poder Executivo.

Não obstante ser a liberdade municipal, dentre todas, a mais exposta às invasões do poder, é
justamente na comuna que reside a força dos povos livres; pois as instituições municipais
põem a liberdade ao alcance do povo. Sem instituições comunais, uma nação pode dar-se um
governo livre, mas não tem o espírito de liberdade. Contudo, fato é que, se se observa o nível
superior da comuna, difícil será perceber traços de uma hierarquia administrativa; e muitos
menos de haver um centro a que venham convergir os raios do poder administrativo.
É importante compreender que, havendo certos interesses comuns a todas as partes da nação,
e outros interesses específicos de certas partes da nação, há, fatalmente, duas espécies de
centralização: a centralização governamental – consistente na concentração do poder de
dirigir todas as partes da nação em um único ente -, e a centralização administrativa –
consistente na concentração de dirigir uma parte específica da nação em um único ente.
Apesar de ambas espécies de centralização se complementarem, nos Estados Unidos existem
poucos traços reflexivos da centralização administrativa, enquanto há uma centralização
governamental em elevado grau.
Curioso, pois as instituições provinciais, em uma democracia, atuam como uma forma de
garantia contra um poder absoluto; visto que a estrutura social democrática é a mais exposta à
tal perigo, já que a tendência nesta forma de governo é concentrar todo o poder
governamental nas mãos do único poder que representa diretamente o povo.

Sobre o Poder Judiciário dos Estados Unidos, apesar do juiz americano assemelhar-se
perfeitamente aos magistrados das outras nações, reveste-se de imenso poder político; cuja
causa se resume ao fato de que os americanos reconheceram nos juízes o direito de
fundamentar seus veredictos na Constituição mais do que nas leis. Ou seja, permitiram-lhes
não aplicar leis que lhes pareçam inconstitucionais. E, apesar de este ser o único poder
exclusivo dos magistrados americanos, dele decorre uma grande influência política; pois,
quando um juiz se recusa a aplicar determinada, ela perde imediatamente parte de sua força
moral. E, apesar de seu efeito material não ficar suspenso, pouco a pouco, sob golpes de
jurisprudência, ela eventualmente sucumbirá.
Por outro lado, em relação ao Poder Executivo dos Estados Unidos, os legisladores
americanos, ao elaborar a Constituição Federal do país, queriam criar um Poder Executivo
que dependesse da maioria, mas que fosse, ao mesmo tempo, forte em si mesmo para agir
com liberdade em sua própria esfera. Em razão do presidente ser um magistrado eletivo,
sujeitar-se-á, necessariamente, a uma cobrança do povo, quanto ao bom emprego que faz do
poder – cujo exercício, aliás, não é independente: o Senado o controla em suas relações com
potências estrangeiras, como na distribuição dos empregos, de tal modo que não pode nem
ser corrompido, nem corromper. Vislumbra-se, assim, que, sendo o presidente o único
representante do Poder Executivo da União, esta dependência configura um dos vícios
inerentes à essas constituições.

Cumpre mencionar que, dentre os instintos naturais da democracia, há aquele que leva o povo
a afastar o poder dos homens mais notáveis; pois, mesmo facilitando o acesso do povo aos
conhecimentos humanos, requer-se, para seus progressos intelectuais, trabalho e tempo –
limite necessário que o povo desconsidera. Disso resulta a necessidade do povo julgar
rapidamente e apegar-se aos objetivos mais marcantes - um vício inerente ao sufrágio
universal.
Somando-se a isso, cabe elucidar que, apesar de haver uma presunção de que, nas
democracias, os governantes são muito acessíveis à corrupção - visto que, em geral, os
estadistas são pobres e ainda lhes falta fazer fortuna -, fato é que, na realidade, já que o
número de homens concorrendo para atingir o poder é tão elevado, não é que o número de
homens à venda seja mínimo, mas quase nunca se encontra comprador, pois seria preciso
comprar muita gente ao mesmo tempo.

No tocante à democracia americana, especificamente, é conhecido que as leis da democracia


americana são, com frequência, defeituosas ou incompletas; no sentido de que sucede-lhes
violar direitos adquiridos ou legalizar outro que, por sua vez, são perigosos. E, apesar do
objetivo da democracia em sua legislação ser mais útil à humanidade do que o da aristocracia,
as leis democráticas acabam por trabalhar contra a própria democracia; favorecendo o
interesse de um pequeno número, às expensas da maioria. É claro: o grande privilégio dos
americanos é poder cometer erros reparáveis. Mas, há de se reconhecer que o povo, sendo
zeloso de seus direitos, impede os representantes de se afastarem de certa linha geral, traçada
pelo interesse do mesmo povo – sendo de suma importância que os governantes não possuam
interesses contrários à estes.
À luz destas pontuações, depreende-se a imensa liberdade e igualdade de que gozam os
americanos; e, acima de tudo, a incomparável atividade política que reina nos Estados
Unidos. Cidadãos se reúnem com o único objetivo de avaliar a conduta do governo; incluindo
e chamando todos a participarem - fato que, em turno, invoca o desejo em cada um de
melhorar pessoalmente. Assim, a democracia cria o que nem sempre se pode criar: uma
difusão em todo o corpo social de uma atividade política incessante.

A democracia apresenta, contudo, um determinado perigo – a onipotência. Isto é, a


irresistibilidade do poder da maioria; que se funda na ideia de que os interesses do maior
número devem ser preferidos ao minoria. Disso resulta um imenso poder de fato e de opinião,
de força irresistível; com consequências perigosas ao futuro – visto que seu exercício parece
estar acima dos homens.

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