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SINGULARIDADE, OPERATIVIDADE E A DESCOLONIZAÇÃO NAS ARTES

SINGULARITY, OPERABILITY AND DECOLONIZATION IN THE ARTS

Adriane Hernandez1
João Carlos (Chico) Machado2

RESUMO
O ensaio que segue tem o objetivo de propor uma reflexão sobre o ensino da arte na
universidade, mas também ações que visam descolonizar esse ensino. Consideramos que o
modelo academicista não somente está superado há décadas como também é responsável
pela manutenção de um sistema opressor que constantemente encontra modos de escapar
as demandas afirmativas e inclusivas. Como é possível então lidar com a tradição e, ao
mesmo tempo, propor modos de nos tornarmos mais conscientes a ponto de fazermos nossas
próprias escolhas e desenvolvermos nossa imaginação? Apostamos na ênfase em processos
singulares de criação, em oposição ao produto bem feito e bem acabado, valorizando a
construção de saberes implicados nestes processos, visando menos reproduções de modelos
e mais experiências com materialidades e operações artísticas múltiplas.

PALAVRAS-CHAVE
Ensino da arte. Descolonização. Singularidade. Operatividade. Materialidade.

ABSTRACT
The follwing essay aims to propose a reflection on the teaching of art at the university, but also
actions that aim to decolonize this teaching. We consider that the academic model is not only
outdated for decades but is also responsible for maintaining an oppressive system that
constantly finds ways to escape affirmative and inclusive demands. How possible is to deal
with tradition and, at the same time, propose ways to become us more conscious to the point
of making our own choices and developing our imagination? We bet on the emphasis on
singular creation processes, in opposition to the well-made and well-finished product, valuing
the construction of knowledge involved in these processes, aiming less model reproductions
and more experiences with materialities and multiple artistic operations.

KEYWORDS
Art teaching; Decolonization; Singularity; Operability; Materiality.

1Doutora em Poéticas Visuais. Professora do PPGAV do Instituto de Artes da UFRGS.


2Doutor em Poéticas Visuais. Professor do Instituto de Artes da UFRGS e do PPGAV do Centro de Artes da
UFPEL.
Padrões colonialistas no ensino da arte

A educação como radical da vida e a prática de liberdade nos


contextos afetados pelo acontecimento colonial tem uma
tarefa inadiável: recuperar a dignidade dos que foram
violentados e mantê-la acesa para alumiar o tempo e cegar o
olho grande do assombro da dominação.
Luiz Rufino

Poucos são os que reconhecem os diversos graus de colonização implicados em seu


ensino. O aprisionamento cognitivo instalado há mais de quinhentos anos, a repetição
de cânones e modelos já exauridos ao longo de décadas e, em alguns casos, séculos,
vem de um ensino que tinha e tem como premissa a obediência a critérios formulados
para atender uma demanda colonialista e ocidentalizadai. Focamos muito nas
categorias implementadas por herança da ditadura militar no Brasil, que vigorou de
1964 a 1985, porém o conflito, armado inclusive, não metafórico, que busca atingir o
âmago da cultura, capturou a educação desde seus primórdios com a imposição
religiosa e de costumes, antes mesmo da emblemática Missão Francesa, que se
introduziu com a vinda da corte portuguesa, com o intuito de implementar o
neoclassicismo e as academias de belas artes. Esse brilho tênue, vivo e pulsante dos
seres mais frágeis ao domínio do colonizador, não se esvai quando a escuridão da
noite é mais profunda, pois como acontece com os vaga-lumes, ainda se enxerga seu
pulsar. Mas quando a claridade é tão forte que ofusca essas pequenas luzes:
"claridade dos ferozes projetores, dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos
palcos de televisão" (Didi-Huberman, 2014, p.30), trata-se de uma cultura imposta.
Assim, o mergulho na indiferença dos contextos sociais e das demandas identitárias
é mais longo e duradouro, tanto quanto alienado, pois se bloqueia a experiência e se
captura a cognição.

Não queremos aqui nos colocar como os que por algum milagre, ou excesso de
autoconfiança, conseguiram escapar à regra, mas os que em graus variados, aqui e
ali, buscam contestá-la e inventam alternativas. Principalmente ao questionar não uma
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urgência social, porque essa se faz há muito tempo, mas esse momento crucial em
que muitas vozes se levantam e a elas queremos nos somar. Há um processo de
acirramento de tensões que torna mais explícito o que antes jazia de modo sorrateiro,
sub-repticiamente ou até mesmo inconsciente. De súbito, mas não sem esforço e
muito tardiamente, as atitudes colonialistas começam a ficar transparentes. Por mais
que certas posturas tenham interesses escusos em curso, econômicos,
mercadológicos, midiáticos, é por isso mesmo que esses segmentos são os que
aderem mais rapidamente a estas causas. Enquanto isso, o ensino patina, encontra
maneiras de se esquivar, escorrega, demora a assumir a sua responsabilidade na
pauta antirracista, anticapacitista, antimeritocrática e descolonial.

Embora muitas universidades tenham elaborado e implementado planos de ações


afirmativas, que vêm sendo aperfeiçoados ao longo dos anos – planos estes que
apresentam reserva de vagas destinadas a pessoas autodeclaradas pretas, pardas e
indígenas, com deficiência e baixa renda –, no interior das salas de aulas, laboratórios
e ateliês a visão colonialista se perpetua, como um reflexo e um ‘refluxo’ii de posturas
assumidas por grupos sociais conservadores, mas também pelo fato de que a maior
parte de nós professoras(es) nos desenvolvemos intelectualmente sob a égide desses
modelos culturais que passamos a reproduzir com maior ou menor crítica:

[...] os educadores estão mal preparados quando confrontam


concretamente a diversidade. É por isso que tantos se aferram
obstinadamente aos velhos padrões [...] Muitas vezes, os professores
e alunos no contexto multicultural têm de aprender a aceitar diferentes
maneiras de conhecer, novas epistemologias. (hooks, 2017, p.59)

Tomando nossas experiências localizadas na região sul do país, queremos contribuir


para a reflexão no campo do ensino das artes, especialmente nos cursos de
graduação, bacharelado e licenciatura, este último, responsável pela formação de
professores atuantes no ensino médio e fundamental. É necessário romper o fluxo
colonizante, que captura corpos e mentes. Em 2019 demos um passo para essa
ruptura inicial com a descolonização em nossos cursos, embora tal ação tenha que
ser continuamente defendida para que permaneça. Fomos responsáveis por
impulsionar a extinção das provas de aptidão específica, à frente que estávamos das
coordenações dos cursos de artes visuais e teatro na UFRGS, pois tais provas
impediam o ingresso dos candidatos pelo Sisu. Essas questões já apresentamos e
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debatemos em artigos anteriores, por esse motivo não nos deteremos aqui. Antes
disso, participamos da reformulação de currículos de cursos de graduação em artes
visuais (UFPel, UERGS), tentando avançar alguns passos em direção à sua
flexibilização, buscando dar ênfase às práticas singulares. Consideramos que nestas
ações já se projetava a vontade de desaprender o cânone, imposto por décadas
nestes contextos, também ansiávamos pelo rompimento com uma visão deteriorada
e redutora da complexidade do campo como porta de entrada para estes cursos.

O campo das artes onde atuamos, como se sabe e já afirmamos aqui, é regido por
preceitos colonialistas, embora muitas vezes os projetos pedagógicos dos cursos não
deixem entrever esse conservadorismo. Geralmente os projetos pedagógicos
aparentam uma visão progressista de currículo e concepção de ensino, mas é no
contexto da sala de aula, do atelier, laboratórios, e também no ensino chamado
teórico, que se dá tanto a manutenção do estatuto do colonialismo quanto à
resistência como reação a ele. Semelhante a uma balança, ora pende mais para um
lado, ora para outro, sempre, e muito, em função de como pensam e do que ignoram
os agentes de cada época: professores e estudantes, assim como a comunidade
externa que também exerce pressão sobre a universidade. Pressão esta que, no
momento atual, com um governo conservador e elitista, se faz muito perceptível.

A manutenção do colonialismo encontra modos ardilosos de condução, vestindo até


mesmo uma carapuça progressista. Ninguém que se preze, hoje em dia, quer assumir
um rótulo de antiquado, quanto mais de colonizador. Isto vem à tona em momentos
pontuais, na imposição e na defesa de modelos, nos critérios empregados em
avaliações, nas críticas furiosas sobre existências frágeis ou tímidas, na interdição de
questionamentos, em juízos vagos, no eterno favorecimento aos homens brancos e
no silenciamento das vozes LGBTQIA+, femininas e negras. As práticas artísticas
diversificadas demoram a encontrar apoio, ou naufragam antes mesmo de encontrá-
lo, pois não se enquadram nas ‘linguagens tradicionais’, ou escapam às categorias
tidas como ‘contemporâneas’, o que por si só já representariam um equívoco pois a
vocação demonstrada pela contemporaneidade é de ser, ou parecer ser, múltipla. A
estratégia atual de lidar com práticas divergentes tem sido a de lhes conceder um
‘cantinho’ dentro do quadro geral de possibilidades, ajudando a manter a aparência

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da oferta diversificada de modos de ser das artes, ao mesmo tempo em que se
mantém uma dupla condição de controle e menosprezo. Junto a isso, tais posturas
são explicitadas no julgamento obscuro que se deposita continuamente sobre os
modos de fazer e que buscam manter o julgado refém; a solicitação ambígua para
que se ‘comporte como um artista’, comportamento este que, por seu caráter elitista
e meritocrático, jamais se terá acesso; a exigência de um modelo específico e quase
sempre inatingível de ‘artista de galeria’; o paradoxal menosprezo às poéticas
singulares, principalmente quando estas estão ligadas às corporeidades
contemporâneas, posto que a ideia de singularidade é vilipendiada durante o processo
de formação embora requerida na conclusão dos cursos.

Considerando a contextualização colocada acima, propomos abrir uma discussão


acerca de alguns aspectos que podem atuar como alertas e alternativas à condição
colonizada que nos foi e é imposta ao longo da nossa história.

Representatividade, diversidade e singularidade

Acreditando ainda na importância da representatividade, da ocupação de espaços


antes interditados, das muitas reações contra o apagamento das identidades e outras
ações por parte das comunidades excluídas e de todas e todos que se inserem na
luta anticolonial, consideramos que é necessário que tal representatividade venha
acompanhada de outras ações estruturais. Ações que visem atingir o âmago da
estrutura viciada, no ensino e na prática da arte no ensino, desmobilizando discursos
e atitudes coloniais e neocoloniais que se mantém firme apesar das novas diretrizes
inclusivas. Sílvio Almeida, ao realizar a análise das relações entre a
representatividade e o racismo estrutural, lança a seguinte questão:

[...] por mais importante que seja, a representatividade de minorias em


empresas privadas, partidos políticos, instituições governamentais
não é, nem de longe, o sinal de que o racismo e/ou o sexismo estão
sendo ou foram eliminados. Na melhor das hipóteses, significa que a
luta antirracista e antissexista está produzindo resultados no plano
concreto, e na pior, que a discriminação está tomando novas formas.
A representatividade, insistimos, não é necessariamente uma
reconfiguração das relações de poder que mantém a desigualdade. A
representatividade é sempre institucional e não estrutural, de tal sorte
que quando exercida por pessoas negras, por exemplo, não significa
que os negros estejam no poder. (Almeida, 2019, p. 85)

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Soma-se ainda, no caso da arte e do seu ensino, a necessidade de reformular
algumas noções fundamentais que interferem inclusive na autonomia deste campo.
Entendemos que a simples presença de corpos e comportamentos que fogem à
primazia e à normatização imposta, embora essa presença seja da máxima
importância, não consegue alterar o conjunto de concepções, condutas, critérios e
juízos de valor impostos pela tradição colonizadora às quais somos submetidos.
Questionamos se, ao menos em parte, a presença e a representatividade de corpos
e artistas outrora excluídos não veriam esvaziado parte do sentido de seus trabalhos
e demandas ao prestigiar a cultura branca masculina europeia em tipos de arte cujas
noções de excelência são ditadas por padrões históricos e conservadores oriundos
dos países colonizadores, como o balé clássico, a música erudita de orquestra ou a
pintura classicista. Isso não resultaria em uma contradição para quem almeja a
descolonização, posto que, não a presença, mas o modo de concessão dessa
presença, acaba por reforçar os agentes de uma estrutura de dominação cultural?
Apostamos, como alternativa, na ocupação desse lugar discursivo da arte que busca
a singularidade dos processos na experiência de cada um(a) que foi e é excluído/a
por esse padrão colonial, buscando romper com a regulação das práticas que
uniformiza uma produção que pode ser muito mais plural.

A artista pesquisadora portuguesa Grada Kilomba faz um reconhecimento desses


preconceitos enraizados e busca conexões entre linguagens como modo de denúncia
e cura. São de extrema importância suas ações antirracistas e antissexistas visando
a descolonização da estrutura cultural, com é o caso da língua e do vocabulário que
não contempla diferenças. Ela vai identificar a língua portuguesa como uma das mais
excludentes, em função disso, seu livro redigido originalmente em inglês, demorou
mais de dez anos para ser publicado na sua língua nativa, tamanha a complexidade
para adaptar o vocabulário. Apontamos Kilomba como um exemplo de não separação
entre as diversas formas de encaminhamento de uma pesquisa e que visa atingir
justamente essa estrutura colonial desde seus modos simbólicos de existência, como
por exemplo o discurso e a arte:

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Escrever, portanto, emerge como ato político. [...] enquanto escrevo,
eu me torno narradora e escritora da minha própria realidade, a autora
e a autoridade da minha própria história. Nesse sentido, eu me torno
a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou.
(Kilomba, 2019, p.28)

Assim, a fala e a escrita de si, para os excluídos como autores e autoridades da sua
própria narratividade histórica é um ato político. Como é para artistas que também
foram excluídos do discurso e da escrita, pois, de modo semelhante, os donos do
campo eram eruditos, filósofos, teóricos, historiadores e outros, e não as/os artistas.
Até o momento em que o escritor e poeta Paul Valéry, em sua primeira aula do curso
de poética, questiona: quem de fato estaria autorizado a falar sobre o processo
criação?

[...] basta observar que o que realmente podemos saber ou crer saber
em todos os domínios não é outra coisa do que podemos observar ou
fazer a nós mesmos, e que é impossível reunir num mesmo estado e
numa mesma atenção, a observação do espírito que produz a obra e
a observação da mente que produz algum valor desta obra. Não há
mirada capaz de observar essas duas funções ao mesmo tempo;
produtor e consumidor são dois sistemas essencialmente separados.
A obra é para um o termo; para o outro, a origem dos
desenvolvimentos que podem ser tão estranhos uns aos outros quanto
desejemos. (Valéry, 1999, p.183)

Valéry foi um escritor que percebeu que o discurso e textos sobre os processos de
criação estavam nas vozes de outros e não nas dos poetas e artistas. A luta das
negras e negros, das mulheres, das/dos artistas não se equivalem no que tange à
urgência da vida e da sobrevivência, mas, em parte, se ligam hoje na pressão
anticolonial.

Processualidade e o exercício do pensamento em ato

Como parte das ações estruturais as quais apostamos está o reconhecimento da


prática artística, e seus processos de criação, como um campo de conhecimento per
se. O fazer artístico em ação produz fundamentos e fenômenos próprios, capazes de
viabilizar ferramentas de interpretação para o mundo físico e sensível. Algo que se
pode constatar, bastando uma busca por teses, dissertações, artigos e outros, de
artistas plásticos na área das poéticasiii, mas também de teóricos que caminhem para
além da simples aplicação de sistemas interpretativos, entendendo isso como uma

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contribuição para o âmbito epistemológico e metodológico do ensino da arte e da sua
função social.

No contexto acadêmico muito se usa a expressão ‘processo de criação’ ou


simplesmente ‘processo’. A artista plástica, professora e teórica brasileira Fayga
Ostrower (1987), e suas contribuições bibliográficas, esteve à frente do debate por
alguns anos no Brasil. Após o surgimento dos cursos de pós-graduação, uma
bibliografia mais ‘erudita’ e eurocêntrica passou a ser utilizada gerando um
apagamento desse histórico. Essa noção de processo tem sido cada vez mais
desvalorizada, assim como a experiência advinda da associação entre prática e
reflexão, tramadas pelo tempo. Em grande parte, o descaso para esta noção está
associado à falsa oposição entre processo e produto, e à exigência do que é entendido
pelos defensores do produto ‘bem feito’, geralmente mensurados pelos moldes dos
padrões europeus, que pressupõe um ‘modo certo de fazer’. Assim, ocorre uma
sobrevalorização da obra pronta e de alguns poucos modelos que são
exageradamente cultuados, geralmente identificados nos ‘grandes centros culturais’,
acentuando as relações de poder simbólico entre as demais regiões consideradas
periféricas, criando-se uma injustificável necessidade de reprodução desses padrões
incensados. Essa reprodução vai se dar mais pelo treino da mão ou do corpo para
conquista de habilidades em copiar modelos e pela utilização de materiais e
equipamentos ‘nobres’ – pouco acessíveis aos artistas e estudantes com dificuldade
financeira – do que propriamente em uma experiência singular de criação, por mais
frágil que ela pareça ser.

E aqui se deflagra o movimento de quase desaparição e a sobrevivência dessas


pequenas luzes que resistem, às quais incentivamos para que permaneçam piscando
e mantendo o seu brilhoiv. No nosso entendimento, é na competição infundada, porque
ninguém ganha nada com ela, que se aposta na separação e disputa entre o campo
teórico e o prático, entre o fazer da arte e a escrita verbal, pendendo sempre,
historicamente comprovado, para o lado da colonização do campo cognitivo pela
racionalidade ocidental. Dizendo de outro modo, a valorização do pensamento
transmitido pela escrita ‘científica’ e pelo que chamamos de ‘teorismo’ e de
‘referencialismo’ exagerados e compulsórios se dá em detrimento do saber integrado

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a prática e no fazer da artev, o que alguns denominam de pesquisa sobre arte no
primeiro caso, e pesquisa em arte, no segundo. Para além das terminologias, o que
parece ser ignorado é o potencial de conhecimento e de modos de pensar exercidos
através do processo. Desconsidera-se que o artista pensa não somente sobre o seu
trabalho, mas também através de ou com o seu trabalho. Essa competição no nosso
contexto se acirrou. Quanto menos se valoriza o processo de criação, mais a teoria é
aplicada sobre os trabalhos artísticos, mais volume discursivo e justificativo, que
pouco problematizam o trabalho em processo, as materialidades e a operatividade, e
mais o texto tagarela. Podemos fazer uma associação com os retratos que as pessoas
tiram de si mesmas, e que se tornaram quase uma obsessão das redes sociais. É
possível perceber que quanto mais selfies, mais a imagem de si mesmo se perde,
restando uma ilusão, e quanto mais explicação, mais citações, mais teoria aplicada,
mais se apagam sentidos potentes e inusitados ligados à trabalhos artísticos que
poderiam ser explorados.

Descolonizar pela materialidade e pela operatividade

Em seu livro A imaginação, Sartre aposta na estética da mimese, na apreciação de


uma pintura, afirmando ser necessário a superação daquilo que ele nomeia como ‘real’
para acessar a ‘consciência imaginante’, em outras palavras, teríamos que esquecer
a materialidade da pintura poder apreciá-la:

[...] o que é real, não nos cansamos de afirmá-lo, são os resultados


das pinceladas, o empastamento da tela, seu grão, o verniz que foi
aplicado às cores. Mas precisamente tudo isso não é objeto de
apreciações estéticas. (Sartre, 2017, p.576)

Em oposição a esta ideia de Sartre, Merleau-Ponty vai colocar que nada do que uma
obra de pintura, música, cinema, poesia, entre outras, apresenta me é indiferente,
posto que “é impossível separar as coisas de sua maneira de aparecer” (2004, p. 56).
Posso me tornar indiferente às coisas do mundo pelo hábito e pelo conhecimento de
suas definições e temos aí uma função importante da arte que é nos retirar do hábito
e nos recolocar novamente em contato com experiência da percepção. Isso acontece
justamente pela ‘magia’ da transformação que a arte é capaz de fazer a partir de
diferentes materialidades, a partir de modos de operar que nem sempre seguem a
tradição e, por isso mesmo, surpreendem os sentidos. Vamos apontar que o excesso

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de definições contradiz a processo de imaginação, por isso a experimentação
material, com qualquer material, é algo de suma importância para um(a) artista. E é
isso que também consideramos um dado potente do processo de criação que consiga
ir além da imaginação formal, como aponta Gaston Bachelard:

No reino da estética, essa visualização do trabalho concluído leva


naturalmente à supremacia da imaginação formal. Ao contrário, a mão
trabalhadora e imperiosa aprende a dinamogenia essencial do real ao
trabalhar uma matéria que, ao mesmo tempo, resiste e cede como
uma carne amante e rebelde. [...] Tal mão que trabalha tem
necessidade da exata mistura de terra e água para bem compreender
o que é uma matéria capaz de uma forma, uma substância capaz de
uma vida. (Bachelard, 2002, p.14)

A percepção voltada para a concretude das coisas é uma condição fundamental para
a valorização da processualidade como um exercício de reflexão e de prática que
pode nos levar a descortinar, e mesmo a questionar, os modos de pensar e de agir
que nos são impostos e que, conscientemente ou não, buscam condicionar nossos
comportamentos, juízos, valores, critérios, estimulando a aceitação de um número
muito grande de relações de poder incrustradas neles. Aceitá-las sem criticá-las,
portanto, passa a ser um entrave para uma atitude e uma postura que se propõe
anticolonizadora.

Consideramos que o pensamento em arte engloba um saber que envolve tanto os


materiais, instrumentos e equipamentos como os procedimentos e operações
concretas e conceituais envolvidas neste fazer. A noção de operatividade, herdeira da
imaginação material, surge também de uma tradição desenvolvida ao longo do século
XX, inaugurada por movimentos artísticos da década de 1960, cujos expoentes foram
grandemente influenciados por Marcel Duchamp e por John Cage. A partir do
momento que os modos de fazer arte tornaram-se parte do assunto do trabalho de
diversos artistas, discutindo desde o estatuto da obra de arte até os materiais e
procedimentos envolvidos neste fazer, a processualidade começou a ser valorizada
por eles. A compreensão de que o artista não é necessariamente alguém que constrói
coisas, mas que faz coisas, abriu caminho para conceber um trabalho de arte a partir
de seus aspectos processuais e não mais (ou não apenas) formais ou de resultado
sensível. John Cage, por sua vez, coloca que muitos artistas e compositores “não
fazem mais estruturas musicais. Em vez disso, eles dão início a processos” (2006,
10
p.333). Cage afirma que em uma estrutura, o começo e o fim, do todo e de cada uma
das partes, é conhecido, enquanto no caminho do processo, embora percebamos
mudanças nele, não temos um conhecimento de seu começo e de seu final.

Direcionar a atenção para o aqui e agora, para o que temos diante nós, munidos da
consciência do contexto no qual estamos trabalhando, significa tirar o máximo proveito
dos materiais e equipamentos que dispomos para o nosso trabalho, fazendo com que
qualquer material seja válido e rico para fazer arte, desbancando a primazia das
técnicas e procedimentos tidos como mais válidos e ou mais importantes para tal
fazer. Atentando que a desespecificidade técnica não significa falta de técnica ou de
domínio sobre ela, mas um determinado uso e procedimento singular dela, temos aí
a possibilidade de que o exercício do pensar-fazer da arte pode ser realizado com o
que se tem e com o que se pode ter, e não necessariamente com o que se deveria
ter, deixando de necessariamente atender aos padrões impostos já citados
anteriormente.

Pensado assim, a ênfase na materialidade, na processualidade e na operatividade


são ingredientes que buscam dar vazão à singularidade, à diversidade e à autonomia
de pensamento dos/as alunos/as-artistas (ou não-artistas), pois nos obrigam a utilizar
critérios de análise que sejam adequados a cada trabalho ou modo de trabalhar, sem
que uns se imponham sobre os outros. Acreditamos que se os critérios e juízos de
valor do campo se baseassem na capacidade de lançar um olhar adequado para as
manifestações singulares e plurais, aceitando os opostos (incluindo a tradição) mas
com o cuidado de não hierarquizá-los e se a valorização do processo de experiência
e de pensamento implicado no fazer artístico for considerado tão ou até mais
importante que a produtividade - demasiadamente voltada e preocupada para o
mercado e um sistema de consagração competitiva – poderíamos ter uma concepção
de arte que norteasse de outro modo as relações e práticas que se estabelecem na
área das artes. Assim, teríamos uma base conceitual, desde filosófica até política, que
repercutisse na estrutura e nas operações do nosso campo.

Estes entendimentos tem a potência de modificar e situar de outro modo o ensino da


arte seja nos cursos de graduação, seja no ensino médio e fundamental, tanto no que
diz respeito ao combate do produtivismo e do teorismo, como uma ferramenta para a
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aceitação e a compreensão das diferenças, sejam elas étnico-raciais, de gênero ou
de condição social e geográfica.

Referências

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. São


Paulo: Martins Fontes, 2002.

CAGE, John. O futuro da música. In FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília. Escritos de


artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora da


UFMG, 2014.

hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2017.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:


Cobogó, 2019.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas - 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1987.

SARTRE, Jean Paul. L’imaginaire. Paris: Gallimard, 2017.

RUFINO, Luiz. Vence-demanda: educação e descolonização. Rio de Janeiro: Mórula, 2021.

VALÉRY, Paul. Primeira aula do curso de poética. In: Variedades. São Paulo:
Iluminuras,1999.

Notas

i Por ocidental nos referimos aqui à cultura firmada pelos países assim chamados de desenvolvidos, países ricos
e foram ou ainda são colonizadores durante a sua história, não se trata de uma concepção geográfica do termo,
mas sócio-política e econômica.
ii Optamos por utilizar aspas simples [ ‘ ] pra destacar palavras e expressões que são muito utilizadas nos discursos

que ouvimos em nosso ambiente acadêmico ou que consideramos ou passíveis discussão ou de ironia.
iii Muito embora exista uma variedade de compreensões no que diz respeito ao uso desse termo no contexto da

área.
iv Um pequeno poema cuja autoria é atribuída à Trilussa (Carlo Alberto Salustri) propõe uma metáfora se encaixa

aqui: “A lua cheia disse ao vaga-lume: o criticar não é do meu costume, mas essa tua luz é bem fraquinha... E
aquele respondeu-lhe: é fraquinha, mas é minha!”
v Não há como esquecer que o saber fazer da arte nunca é meramente técnico, posto que está sempre atrelado à

sua carga semântica e sensível.

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