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Adriane Hernandez1
João Carlos (Chico) Machado2
RESUMO
O ensaio que segue tem o objetivo de propor uma reflexão sobre o ensino da arte na
universidade, mas também ações que visam descolonizar esse ensino. Consideramos que o
modelo academicista não somente está superado há décadas como também é responsável
pela manutenção de um sistema opressor que constantemente encontra modos de escapar
as demandas afirmativas e inclusivas. Como é possível então lidar com a tradição e, ao
mesmo tempo, propor modos de nos tornarmos mais conscientes a ponto de fazermos nossas
próprias escolhas e desenvolvermos nossa imaginação? Apostamos na ênfase em processos
singulares de criação, em oposição ao produto bem feito e bem acabado, valorizando a
construção de saberes implicados nestes processos, visando menos reproduções de modelos
e mais experiências com materialidades e operações artísticas múltiplas.
PALAVRAS-CHAVE
Ensino da arte. Descolonização. Singularidade. Operatividade. Materialidade.
ABSTRACT
The follwing essay aims to propose a reflection on the teaching of art at the university, but also
actions that aim to decolonize this teaching. We consider that the academic model is not only
outdated for decades but is also responsible for maintaining an oppressive system that
constantly finds ways to escape affirmative and inclusive demands. How possible is to deal
with tradition and, at the same time, propose ways to become us more conscious to the point
of making our own choices and developing our imagination? We bet on the emphasis on
singular creation processes, in opposition to the well-made and well-finished product, valuing
the construction of knowledge involved in these processes, aiming less model reproductions
and more experiences with materialities and multiple artistic operations.
KEYWORDS
Art teaching; Decolonization; Singularity; Operability; Materiality.
Não queremos aqui nos colocar como os que por algum milagre, ou excesso de
autoconfiança, conseguiram escapar à regra, mas os que em graus variados, aqui e
ali, buscam contestá-la e inventam alternativas. Principalmente ao questionar não uma
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urgência social, porque essa se faz há muito tempo, mas esse momento crucial em
que muitas vozes se levantam e a elas queremos nos somar. Há um processo de
acirramento de tensões que torna mais explícito o que antes jazia de modo sorrateiro,
sub-repticiamente ou até mesmo inconsciente. De súbito, mas não sem esforço e
muito tardiamente, as atitudes colonialistas começam a ficar transparentes. Por mais
que certas posturas tenham interesses escusos em curso, econômicos,
mercadológicos, midiáticos, é por isso mesmo que esses segmentos são os que
aderem mais rapidamente a estas causas. Enquanto isso, o ensino patina, encontra
maneiras de se esquivar, escorrega, demora a assumir a sua responsabilidade na
pauta antirracista, anticapacitista, antimeritocrática e descolonial.
O campo das artes onde atuamos, como se sabe e já afirmamos aqui, é regido por
preceitos colonialistas, embora muitas vezes os projetos pedagógicos dos cursos não
deixem entrever esse conservadorismo. Geralmente os projetos pedagógicos
aparentam uma visão progressista de currículo e concepção de ensino, mas é no
contexto da sala de aula, do atelier, laboratórios, e também no ensino chamado
teórico, que se dá tanto a manutenção do estatuto do colonialismo quanto à
resistência como reação a ele. Semelhante a uma balança, ora pende mais para um
lado, ora para outro, sempre, e muito, em função de como pensam e do que ignoram
os agentes de cada época: professores e estudantes, assim como a comunidade
externa que também exerce pressão sobre a universidade. Pressão esta que, no
momento atual, com um governo conservador e elitista, se faz muito perceptível.
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da oferta diversificada de modos de ser das artes, ao mesmo tempo em que se
mantém uma dupla condição de controle e menosprezo. Junto a isso, tais posturas
são explicitadas no julgamento obscuro que se deposita continuamente sobre os
modos de fazer e que buscam manter o julgado refém; a solicitação ambígua para
que se ‘comporte como um artista’, comportamento este que, por seu caráter elitista
e meritocrático, jamais se terá acesso; a exigência de um modelo específico e quase
sempre inatingível de ‘artista de galeria’; o paradoxal menosprezo às poéticas
singulares, principalmente quando estas estão ligadas às corporeidades
contemporâneas, posto que a ideia de singularidade é vilipendiada durante o processo
de formação embora requerida na conclusão dos cursos.
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Soma-se ainda, no caso da arte e do seu ensino, a necessidade de reformular
algumas noções fundamentais que interferem inclusive na autonomia deste campo.
Entendemos que a simples presença de corpos e comportamentos que fogem à
primazia e à normatização imposta, embora essa presença seja da máxima
importância, não consegue alterar o conjunto de concepções, condutas, critérios e
juízos de valor impostos pela tradição colonizadora às quais somos submetidos.
Questionamos se, ao menos em parte, a presença e a representatividade de corpos
e artistas outrora excluídos não veriam esvaziado parte do sentido de seus trabalhos
e demandas ao prestigiar a cultura branca masculina europeia em tipos de arte cujas
noções de excelência são ditadas por padrões históricos e conservadores oriundos
dos países colonizadores, como o balé clássico, a música erudita de orquestra ou a
pintura classicista. Isso não resultaria em uma contradição para quem almeja a
descolonização, posto que, não a presença, mas o modo de concessão dessa
presença, acaba por reforçar os agentes de uma estrutura de dominação cultural?
Apostamos, como alternativa, na ocupação desse lugar discursivo da arte que busca
a singularidade dos processos na experiência de cada um(a) que foi e é excluído/a
por esse padrão colonial, buscando romper com a regulação das práticas que
uniformiza uma produção que pode ser muito mais plural.
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Escrever, portanto, emerge como ato político. [...] enquanto escrevo,
eu me torno narradora e escritora da minha própria realidade, a autora
e a autoridade da minha própria história. Nesse sentido, eu me torno
a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou.
(Kilomba, 2019, p.28)
Assim, a fala e a escrita de si, para os excluídos como autores e autoridades da sua
própria narratividade histórica é um ato político. Como é para artistas que também
foram excluídos do discurso e da escrita, pois, de modo semelhante, os donos do
campo eram eruditos, filósofos, teóricos, historiadores e outros, e não as/os artistas.
Até o momento em que o escritor e poeta Paul Valéry, em sua primeira aula do curso
de poética, questiona: quem de fato estaria autorizado a falar sobre o processo
criação?
[...] basta observar que o que realmente podemos saber ou crer saber
em todos os domínios não é outra coisa do que podemos observar ou
fazer a nós mesmos, e que é impossível reunir num mesmo estado e
numa mesma atenção, a observação do espírito que produz a obra e
a observação da mente que produz algum valor desta obra. Não há
mirada capaz de observar essas duas funções ao mesmo tempo;
produtor e consumidor são dois sistemas essencialmente separados.
A obra é para um o termo; para o outro, a origem dos
desenvolvimentos que podem ser tão estranhos uns aos outros quanto
desejemos. (Valéry, 1999, p.183)
Valéry foi um escritor que percebeu que o discurso e textos sobre os processos de
criação estavam nas vozes de outros e não nas dos poetas e artistas. A luta das
negras e negros, das mulheres, das/dos artistas não se equivalem no que tange à
urgência da vida e da sobrevivência, mas, em parte, se ligam hoje na pressão
anticolonial.
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contribuição para o âmbito epistemológico e metodológico do ensino da arte e da sua
função social.
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a prática e no fazer da artev, o que alguns denominam de pesquisa sobre arte no
primeiro caso, e pesquisa em arte, no segundo. Para além das terminologias, o que
parece ser ignorado é o potencial de conhecimento e de modos de pensar exercidos
através do processo. Desconsidera-se que o artista pensa não somente sobre o seu
trabalho, mas também através de ou com o seu trabalho. Essa competição no nosso
contexto se acirrou. Quanto menos se valoriza o processo de criação, mais a teoria é
aplicada sobre os trabalhos artísticos, mais volume discursivo e justificativo, que
pouco problematizam o trabalho em processo, as materialidades e a operatividade, e
mais o texto tagarela. Podemos fazer uma associação com os retratos que as pessoas
tiram de si mesmas, e que se tornaram quase uma obsessão das redes sociais. É
possível perceber que quanto mais selfies, mais a imagem de si mesmo se perde,
restando uma ilusão, e quanto mais explicação, mais citações, mais teoria aplicada,
mais se apagam sentidos potentes e inusitados ligados à trabalhos artísticos que
poderiam ser explorados.
Em oposição a esta ideia de Sartre, Merleau-Ponty vai colocar que nada do que uma
obra de pintura, música, cinema, poesia, entre outras, apresenta me é indiferente,
posto que “é impossível separar as coisas de sua maneira de aparecer” (2004, p. 56).
Posso me tornar indiferente às coisas do mundo pelo hábito e pelo conhecimento de
suas definições e temos aí uma função importante da arte que é nos retirar do hábito
e nos recolocar novamente em contato com experiência da percepção. Isso acontece
justamente pela ‘magia’ da transformação que a arte é capaz de fazer a partir de
diferentes materialidades, a partir de modos de operar que nem sempre seguem a
tradição e, por isso mesmo, surpreendem os sentidos. Vamos apontar que o excesso
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de definições contradiz a processo de imaginação, por isso a experimentação
material, com qualquer material, é algo de suma importância para um(a) artista. E é
isso que também consideramos um dado potente do processo de criação que consiga
ir além da imaginação formal, como aponta Gaston Bachelard:
A percepção voltada para a concretude das coisas é uma condição fundamental para
a valorização da processualidade como um exercício de reflexão e de prática que
pode nos levar a descortinar, e mesmo a questionar, os modos de pensar e de agir
que nos são impostos e que, conscientemente ou não, buscam condicionar nossos
comportamentos, juízos, valores, critérios, estimulando a aceitação de um número
muito grande de relações de poder incrustradas neles. Aceitá-las sem criticá-las,
portanto, passa a ser um entrave para uma atitude e uma postura que se propõe
anticolonizadora.
Direcionar a atenção para o aqui e agora, para o que temos diante nós, munidos da
consciência do contexto no qual estamos trabalhando, significa tirar o máximo proveito
dos materiais e equipamentos que dispomos para o nosso trabalho, fazendo com que
qualquer material seja válido e rico para fazer arte, desbancando a primazia das
técnicas e procedimentos tidos como mais válidos e ou mais importantes para tal
fazer. Atentando que a desespecificidade técnica não significa falta de técnica ou de
domínio sobre ela, mas um determinado uso e procedimento singular dela, temos aí
a possibilidade de que o exercício do pensar-fazer da arte pode ser realizado com o
que se tem e com o que se pode ter, e não necessariamente com o que se deveria
ter, deixando de necessariamente atender aos padrões impostos já citados
anteriormente.
Referências
ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2017.
VALÉRY, Paul. Primeira aula do curso de poética. In: Variedades. São Paulo:
Iluminuras,1999.
Notas
i Por ocidental nos referimos aqui à cultura firmada pelos países assim chamados de desenvolvidos, países ricos
e foram ou ainda são colonizadores durante a sua história, não se trata de uma concepção geográfica do termo,
mas sócio-política e econômica.
ii Optamos por utilizar aspas simples [ ‘ ] pra destacar palavras e expressões que são muito utilizadas nos discursos
que ouvimos em nosso ambiente acadêmico ou que consideramos ou passíveis discussão ou de ironia.
iii Muito embora exista uma variedade de compreensões no que diz respeito ao uso desse termo no contexto da
área.
iv Um pequeno poema cuja autoria é atribuída à Trilussa (Carlo Alberto Salustri) propõe uma metáfora se encaixa
aqui: “A lua cheia disse ao vaga-lume: o criticar não é do meu costume, mas essa tua luz é bem fraquinha... E
aquele respondeu-lhe: é fraquinha, mas é minha!”
v Não há como esquecer que o saber fazer da arte nunca é meramente técnico, posto que está sempre atrelado à
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