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Opinião

Mapeamento Digital de Solos (MDS):


avanços e desafios
Maria de Lourdes Mendonça Santos, Alexandre ten Caten

O Mapeamento Digital de Solos mapas, planilhas,etc.) sobre os solos por Hans Jenny (1941), visando não
(MDS) é definido como a “criação e po- e sobre o ambiente (clima, vegetação, apenas explicar as relações entre os
pulação de sistemas espaciais de infor- uso da terra, geologia, geomorfologia, fatores de formação do solo, mas, so-
mação de solos, através do uso de mo- material de origem,etc.). bretudo, predizer quantitativamente os
delos numéricos, para a inferência das O estado da arte em MDS, incluindo solos (classes e/ou propriedades) como
variações espaciais e temporais dos ti- as premissas, os princípios, os méto- funções espaciais. Esse modelo foi de-
pos de solos e de suas propriedades, a dos, as aplicações e os dados neces- nominado de s.c.o.r.p.a.n.:
partir de observações e conhecimento sários para executar o mapeamento Sc,p= f (s.c.o.r.p.a.n.)+ e, onde:
dos solos e de variáveis ambientais cor- digital de classes e propriedades dos
relacionadas” (Lagacherie & McBratney, Sc,p (Solo, classe ou propriedade); s:
solos, foi apresentado de forma ampla
2007). solo, outras propriedades do solo num
por McBratney, Mendonça-Santos e Mi-
dado ponto; c: clima, propriedades
Esta definição traz, em si, os prin- nasny em uma revisão/apresentação de
climáticas do ambiente num dado pon-
cipais componentes do MDS, ou seja, método na revista Geoderma, em 2003,
to; o: organismos, vegetação, atividade
a necessidade de se ter informações intitulada On digital Soil Mapping. Des-
humana; r: topografia, atributos da pai-
de solos georreferenciadas, que pre- de então, essa publicação é considera-
sagem; p: material de origem, litologia;
cisam ser organizadas num sistema da uma referência seminal no assunto,
a: o fator tempo; n: espaço, posição
de informação, para serem usadas em com quase 700 citações nas bases Web
espacial.
modelagens matemáticas e estatísticas, of Science (669) e Scopus (690). Nesse
juntamente com covariáveis ambien- artigo, os autores apresentam uma pro- É uma fórmula generalizada do
tais relacionadas ou que influenciam posta genérica de protocolo para MDS, modelo de Jenny, que inclui a posição
a formação dos solos, para a predição adaptando o modelo de distribuição espacial (n) como condição para o ma-
de classes ou propriedades dos solos, espacial dos solos em função de seus pemaneto digital. Uma outra novidade
em locais não mensurados. Isso im- fatores de formação, inicialmente defi- é a possibilidade de predizer o solo a
plica que tais modelagens e predições nido por Vasily Vasili’evich Dokuchaev, partir de informações de solo existentes
não poderão ser realizadas sem infor- considerado o pai da Pedologia, e, mais (mapas existentes de classes, proprie-
mações prévias (de campo, laboratório, tarde, publicado como modelo teórico dades, relatórios, ou mesmo expert

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knowledge, ou seja, o conhecimen-


to formal do pedólogo) e ainda com O Modelo S.C.O.R.P.A.N. - Fundamentos
a estimativa de errors (e) associados
(Figuras 1 e 2).
Dados de Solos Dados Auxiliares
Nessa revisão são ainda discu- (Dados Perfis, (Imagens, Uso Atual,
tidos os diversos métodos que po- Laboratório, sensores) MNT e Derivadas, Litologia,
Sc,p = f (s.c.o.r.p.a.n.) + e Geomorfologia, Solos...
)
dem ser usados para modelar o “f”
da equação, ou seja, para predizer,
de forma quantitativa, as relações
entre classes e propriedades dos Sistema Espacial
solos com o seu ambiente, tais de Inferência
de Solo (modelagem
como os modelos lineares genera- e predição espacial
lizados, as árvores de regressão e de variáveis
de solos)
de classificação, as redes neurais, PTFs
os sistemas fuzzy e a geoestatística.
Os dados e informações sobre
as variáveis ambientais utilizadas
para a construção dos modelos tam- DSM de Propriedades Aplicação DSM de Classes de Solo
do Solo do Modelo (tipos de solo,
bém são discutidos. As mais comu- (ph, textura, Carbono, N, P, K,...) classe de textura, cor...)
mente usadas são as derivadas do
terreno extraídas dos MNT (Modelo
Numérico do Terreno, tais como al-
titude e declividade) e as bandas es- Figura 1 - Fundamentos do Modelo s.c.o.r.p.a.n. (ilustrado por M.L. Mendonça-Santos)
pectrais de imagens de satélite. No
entanto, há evidências de relações
quantitativas com os outros fatores
de formação, as quais precisam ser tar, disponibilidade de água, energia e foram realizados pelas instituições da
melhor exploradas e desenvolvidas sustentabilidade ambiental. Rede e muitos trabalhos foram publi-
(material de origem, geomorfologia, Nesse sentido, o modelo cados, demonstrando o potencial e as
clima, etc.). s.c.o.r.p.a.n. proposto, juntamente vantagens do MDS, especialmente para
com as funções espaciais de predição a predição de propriedades e funções
De forma generalizada, há uma
de solos e erros associados, tem se do solo, em escala local, regional e ter-
escassez de dados de solos no
mostrado como um método particular- ritorial. Por outro, a falta de dados e in-
mundo e, quando eles existem, são
mente importante, principalmente para formações adequados tem prejudicado
limitados e/ou dispersos, o que tem
áreas em que os recursos em dados a proposição, por pesquisadores bra-
sido denominado de infraestrutura
e informações de solos são escassos, sileiros, de novas formas de integrar e
limitada de dados espaciais de so-
como é o caso do território brasileiro. demonstrar o papel do solo em nossos
los. Sobre esse problema, a Embra-
Um exemplo disso tem sido o aumento ecossistemas.
pa Solos organizou uma Conferên-
cia internacional, no Rio de Janeiro, considerável de aplicações do mapea- Já sentimos os efeitos de nossas
em 2006, a qual resultou na publi- mento digital de solos no Brasil (Gias- ações no ambiente (por exemplo, a
cação do livro Digital Soil Mapping son et al., 2006; Mendonça-Santos et falta d’água em São Paulo), mas qual
with Limited Data, pela Springer al., 2006; Chagas et al., 2010; ten Ca- é a nossa capacidade de modelar e
(Hartemink, McBratney & Mendon- ten et al., 2012; Carvalho Junior et al., simular esses eventos? Temos os da-
ça-Santos, 2008). Essa necessidade 2014), culminando com a criação do dos necessários para isso? Em países
e a crescente demanda por esses Grupo de Pesquisa em Pedometria e onde há a disponibilidade de dados em
dados e informação sobre os solos da Rede Brasileira de Mapeamento Di- grande escala sobre os recursos natu-
tem alavancado o desenvolvimento gital de Solos, com mais de 80 mem- rais, os pesquisadores da Ciência do
do mapeamento digital de solos, es- bros, ambos no âmbito do CNPq, com a Solo têm proposto e vislumbrado no-
pecialmente no Brasil. Os desafios finalidade de conectar e dar visibilidade vas possibilidades de inserção dessas
têm sido os de sistematizar e en- aos pesquisadores e estudantes desen- informações. Exemplo disso é a visão
tender os dados existentes e a eles volvendo pesquisas no tema. integradora dos conceitos envolvidos
adicionar os dados produzidos por No escopo da Sociedade Brasilei- na Meta Modelagem do Solo (MMS)
novos sensores, para responder às ra de Ciência do Solo, foi criada a Co- (Grundwald, 2014).
demandas da sociedade em relação missão 1.3 Pedometria, na Divisão 1 Na proposição da MMS estão en-
às complexas ameaças de mudan- e o Grupo de Trabalho em MDS. Por volvidas diferentes perspectivas e ele-
ças ambientais, segurança alimen- um lado, vários treinamentos em MDS mentos do ambiente capturados pelos

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questionamentos feitos em ‘por quê’, o recurso natural solo de forma muito zar o que irá ocorrer ‘se’.
‘para quê’, ‘o quê’, ‘quem’ e ‘como’. limitada, sobremaneira onde dados Na sequência poderíamos atuar
Essa abordagem emprega valores esté- adequados nem mesmo existem! Além na prevenção, com a preparação e
ticos, de beleza e harmonia para explo- disso, a degradação do solo e a dimi- conscientização da sociedade de
rar e produzir os diversos “papéis” do nuição da sua capacidade em exercer como reagir nas diferentes situ-
solo nos ambientes, vinculando noções suas funções nos ecossistemas podem ações. Embora não se controle a
de risco, vulnerabilidade, adaptabilida- ter impactos irreversíveis em todos os forma como os eventos ocorrem,
de e sustentabilidade. desafios listados. Logo, para garantir a principalmente aqueles de origem
Nesse contexto, a temática de Se- segurança do solo, é fundamental que natural, nossas ações deveriam ser
gurança do Solo (McBratney et al., sejam produzidas informações sobre previamente planejadas buscando
2014) também foi proposta como mais esse recurso natural em escalas mais otimizar recursos, diminuir impac-
uma forma inovadora de integrar dados detalhadas. tos e modificar a forma como usa-
disponíveis sobre os ecossistemas. O A falta de informação adequada tem mos a paisagem.
desenvolvimento sustentável tem à sua gerado prejuízos incalculáveis, além de A Figura 3b exemplifica uma
frente grandes desafios ambientais: se- não permitir que decisões apropriadas sucessão de eventos ocorridos por
gurança alimentar, segurança hídrica, sejam tomadas a respeito da melhor ocasião de elevados volumes de
segurança energética, mitigação das forma de utilizarmos nossos recursos - chuva, no final de junho de 2014,
mudanças climáticas, proteção da bio- entre eles, o solo (Figura 3a). Nossa ca- nas cabeceiras da bacia hidrográfica
diversidade e produção e valoração dos pacidade de antever as consequências do rio Uruguai, na região sul. Qual a
serviços ambientais. O solo tem papel de qualquer evento sobre a paisagem, qualidade e quantidade de informa-
fundamental em meio a todos esses de- seja ele de origem antrópica ou natural, ções disponíveis sobre o solo nessa
safios, os quais estão alinhados com os é, considerando os dados atualmente região? Os dados são adequados
objetivos do desenvolvimento susten- disponíveis, muito limitada. A busca para simulações relacionadas aos
tável pós-2015 das Nações Unidas. por ‘ver antes’, através da simulação, diversos papéis que o solo teve na-
Contudo, até o momento, os mode- demanda que recursos e dados estejam quele evento e em outros que estão
los têm incorporado a informação sobre disponíveis para que possamos visuali- em curso neste exato momento? As
respostas são de que não há dados
adequados sobre o recurso natural
solo e de que nossas ações são de
apagar incêndios depois que eles
ocorrem. Simulamos e prevenimos
O Modelo S.C.O.R.P.A.N. - Covariáveis Ambientais muito pouco, e os eventos catastró-
ficos irão continuar a se suceder.
Sc,p = f (s.c.o.r.p.a.n.) + e
A Ciência do Solo tem, assim,
um papel fundamental a desempe-
nhar, fornecendo subsídios à toma-
S – Solo
da de decisão estratégica e para o
estabelecimento de políticas públi-
C – Clima (temperatura...)
(f) cas sobre o planejamento de uso e
Img. satélite Modelos de regressão o uso sustentável do recurso natu-
O – Mapas de Uso da Terra, linear ral solo. Para tanto, deverá contar
NDVI, Biomassa Modelos lineares com dados e informação de solos
generalizados em escalas adequadas à tomada de
MNT + Derivadas Modelos aditivos decisão, com a harmonização des-
Altitude generalizados ses dados em bases de dados na-
Aspecto Modelos de Árvores cionais, bem como com os recursos
R – Declividade classificação e
tecnológicos disponíveis na atuali-
Perfil de Curvatura regressão
dade, para fornecer à sociedade, de
Curvatura da Superfície Redes Neurais Artificiais
Sistemas de Lógica
forma rápida e a baixo custo, as in-
índice de Umidade (CTI)
P – Litologia Fuzzy formações e conhecimento requeri-
A – Idade (pedogênese) Sistemas (conhecimento) dos. É preciso fornecer não apenas
mapas, mas acesso aos bancos de
N – Localizaçã o espacial (X,Y) dados, informação e conhecimento.
No Brasil, temos a excepcio-
Figura 2 - Covariáveis Ambientais para o MDS, Modelo s.c.o.r.p.a.n. (ilustrado por M.L. Men- nal vantagem do conhecimento de
donça-Santos). solos tropicais e da grande experi-

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Figura 3 – a) Roteiro simplificado para aplicação de informações sobre os recursos naturais; e 3 - b)


Série de eventos desencadeados por elevada precipitação ocorrida na cabeceira do rio Uruguai em
junho de 2014

ência de pedólogos que têm um papel técnicos robustos para a tomada de de- da seguinte forma:
fundamental a desempenhar na cons- cisão e a construção de políticas públi- • Levantamentos de solos de bai-
trução dos modelos quantitativos de cas, estancam todos na não existência xa intensidade, escalas de 1:250.000 a
predição de solos. No entanto, esbarra- no nosso país de dados e informações 1:750.000 - cobrem 84,2% do território
mos todos no problema crucial de um de solos em escala de planejamento, nacional;
país em desenvolvimento, com dimen- quer estadual, municipal ou local. Atu- • Levantamentos de solos de reco-
sões continentais e onde os recursos almente, o país só conta com mapas de nhecimento de média intensidade, es-
naturais (solos, água,etc.) nem sempre solos para 17 estados, em escalas que calas 1:100.000 a 1:250.000) - cobrem
são considerados como estratégicos, variam de 1:100.000 a 1:600.000, repre- 8,6% do território;
finitos e não renováveis em escala hu- sentando aproximadamente 35% do • Levantamentos de solos de reco-
mana. território nacional, além de uma cober- nhecimento de alta intensidade, escalas
Os cientistas de solos no Brasil, que tura de todo o território nas escalas de 1:50.000 a 1:100.00) - cobrem apenas
poderiam estar fornecendo subsídios 1:1.000.000 e 1:5.000.000, distribuídos 1,6% do território;

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• Levantamentos de solos semide-


talhados, escala 1:50.000 - apenas para
0,61% do território;
• Levantamentos detalhados (esca-
la 1: 20.000 ou maior) - cobrem apenas
uma área mínima de 0,0003% do terri-
tório nacional.
Com a descontinuidade do Progra-
ma de Levantamento Sistemático de
Solos na década de 1980, que se ini-
ciou nos anos 50 e foi coordenado pela
Comissão de Solos do Ministério da
Agricultura e continuado pelo Serviço
Nacional de Levantamento e Conser-
vação de Solos - hoje Embrapa Solos
-, o Brasil ficou com grandes lacunas
de conhecimento de seu recurso solo,
principalmente no que diz respeito ao
mapeamento em escalas mais deta-
lhadas, necessárias ao planejamento Figura 4: Jovens pedólogos formando seu próprio conhecimento tácito e aplicando técnica de Es-
pectroscopia de Reflectância Difusa para o mapeamento de solo.
e subsídios a políticas públicas, como
zoneamentos, estudos de impactos e
riscos ambientais, plano ABC, Cadastro
Ambiental Rural (CAR) e outros.
O Banco de Solos do Brasil, organi- tiva. Apesar disso, falta uma política de em pedologia e em novas tecnologias,
zado pela Embrapa, foi disponibilizado Estado sobre a governança dos solos, a exemplo dos sistemas de informação
para a sociedade brasileira (www.bd- para coordenar as iniciativas existentes geográfica, modelagem e aplicação de
solos.cnptia.embrapa.br) e conta hoje em diferentes instituições e assegurar novos sensores (Figura 4).
com mais de 9 mil perfis de solos. Não um novo programa de levantamento de Só assim se poderia, então, através
são tantos dados como podemos pen- solos, que seja multiescalas e interins- do conhecimento formal e dos méto-
sar de início. Além da baixa densidade, titucional, otimizando as questões de dos e técnicas em mapeamento digital
eles não possuem uma boa distribuição infraestrutura, equipamentos e pessoas de solos, responder, de forma rápida
por região. Muitos desses perfis não capacitadas. Esse programa teria resul- e otimizada, às demandas nacionais
apresentam coordenadas geográficas tados a curto, médio e longo prazos, e globais em informações de solos, a
de sua localização, o que é conditio sine em termos de dados e informações de exemplo de estudos de impactos, miti-
qua non para seu uso nas predições de solos (dados de solos, mapas, interpre- gação dos efeitos das mudanças climá-
MDS. tações de uso, mapeamento digital de ticas (eventos extremos, desertificação,
Mesmo assim, esse banco e sua propriedades e funções específicas dos deslizamento de terras), produtor de
disponibilização para a sociedade é um solos...), e serviria ainda como uma pla- água e outros serviços ambientais.
primeiro passo para o uso das informa- taforma para o treinamento e a capaci- As referências bibliográficas deste
ções de solos e para incentivar outras tação de um novo contingente de espe- artigo podem ser solicitadas pelo e-
instituições a se juntarem a essa inicia- cialistas em solos, com conhecimentos -mail: boletim@sbcs.org.br

Maria de Lourdes Mendonça Santos Brefin (lourdes.mendonca@embrapa.br) é pesquisadora da Embrapa Solos - Rio de Janeiro, RJ
Alexandre tem Caten (alexandre.ten.caten@ufsc.br) é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, Campus Curitibanos

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