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viver o espírito das bem-aventuranças, em identifi- Capítulo IV

car-se com Cristo, e que tende a alcançar a salvação


eterna, as éticas civis apontam certamente para a A LIBERDADE HUMANA
felicidade, mas, como já ensinou Aristóteles, os
autores não estão de acordo sobre aquilo em que
consiste ser feliz.
3. Na racionalidade com que se apresentam.
Com efeito, enquanto a moral católica, quando é
exposta com rigor, justifica racionalmente a mensa-
gem moral do Novo Testamento, alguns sistemas
éticos, pelo contrário, professam deliberadamente A razão pela qual se exige ao homem um
uma «ética de mínimos» e estão cheios de incoerên- comportamento moral é que é um animal racional
cias, de maneira que a sua vigência social em cer- e livre. Em virtude da liberdade, a pessoa é fia-
tos ambientes culturais do nosso tempo deriva ape- dora dos seus actos e é responsabilizada por eles.
nas de serem propostos por ideologias que estão Se o agente não é livre, as suas actuações não são
em conflito com a ética cristã, mas, em si mesmos, nem boas nem más do ponto de vista ético, dado
carecem de uma racionalidade lógica. que não as realiza em virtude de uma decisão
pessoal livremente assumida, mas se move pelo
seu interesse, segundo as circunstâncias e capri-
chos, ou porque desconhece a bondade ou malí-
cia do que pretende levar a cabo, como se verá
no próximo capítulo, quando tratarmos dos crité-
rios que permitem considerar um acto como não
humano. Por isso, a liberdade é a primeira con-
dição do agir ético: até o acto fisicamente mau,
como, por exemplo, a morte de uma pessoa ino-
cente - o homicídio - perderia o qualificativo de
«moral»,se não fosse executado mediante um acto
livre do agente.

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Existência da liberdade ra moderna põe radicalmente em questão a pró-
pria liberdade. Um conjunto de disciplinas,
A ciência moral enfrenta hoje uma nova agrupada sob o nome de "ciências humanas»,
objecção, pois, além das dificuldades comuns para chamou justamente a atenção para os condicio-
justificar o "bem» e o «mal»moral, bem como para namentos de ordem psicológica e social, que
explicar o papel que a liberdade desempenha na pesam sobre o exercício da liberdade humana.
sua execução, tem que enfrentar erros modernos O conhecimento desses condicionalismos e a
que ou a negam ou têm uma concepção errónea da atenção que lhes é prestada são conquistas
liberdade. importantes, que encontraram aplicação em
É, sem dúvida, paradoxal que esta negação se diversos âmbitos da existência, como, por
dê no nosso tempo, pois nenhuma época se desta- exemplo, na pedagogia ou na administração da
cou tanto como a actual na proclamação da liber- justiça. Mas alguns, ultrapassando as conclusões
dade individual e das liberdades formais dos povos. que legitimamente se podem tirar destas obser-
De facto, nas múltiplas Declarações de Direitos, vações, chegaram ao ponto de pôr em dúvida
nacionais ou internacionais, nas Constituições dos ou de negar a própria realidade da liberdade
países democráticos, nos diversos programas políti- humana» (VS, 33).
cos e nos diversos códigos deontológicos, sobressai
sempre a proclamação da liberdade pessoal e paradigma desta atitude é o filósofo - que tão
reconhecem-se as liberdades reais dos indivíduos e perniciosa influência exerce na pedagogia - B. F.
dos grupos sociais: nunca como hoje a defesa da Skinner. Limitar-nos-emos a citar o seguinte teste-
liberdade teve tanta capacidade de congregar a munho, que repete nas suas obras:
vontade dos cidadãos. E, contudo, paralelamente a
esta exigência, circulam algumas correntes popula- «Nego terminantemente a existência da liberda-
res' e inclusivamente intelectuais, que negam a de. Tenho que a negar, caso contrário o meu
liberdade. Este facto é referido na Encíclica Veritatis programa seria completamente absurdo. Não
splendor nos seguintes termos: pode existir uma ciência que se ocupe de algo
que varia de modo caprichoso. Talvez nunca
-Paralelarnente à exaltação da liberdade, e possamos demonstrar que o homem não é livre;
paradoxalmente em contraste com ela, a cultu- trata-se de uma hipótese. Mas o êxito crescente

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de uma ciência da conduta torna-a cada vez razão pode ser que eles próprios não se sintam
mais plausível». livres, por não serem capazes de exercer a liber-
É evidente que nos encontramos no limiar do dade, ou porque a perderam: é um facto com-
absurdo: começa-se por inventar uma teoria e, uma provado que sabe mais acerca da liberdade o que
vez que nessa teoria não tem cabimento a liberda- a experimenta e vive, do que o professor de
de, nega-se a liberdade. O lógico seria rever a pró- Metafísica que se dedica a prová-Ia conceptual-
pria teoria, pois tudo leva a crer que é falsa, já que mente, ou que pretende demonstrar a condição
não integra uma dimensão essencial do ser huma- livre do ser humano.
no. A existência da liberdade é, de facto, um dado Para um cristão, a existência da liberdade não é
inquestionável: posso optar entre continuar a escre- apenas um dado da experiência mais íntima da sua
ver ou jogar ténis. Mesmo que nunca tenha pegado vida; dá-lhe o seu assentimento contando com o
numa raquete. Mas a minha capacidade de decisão aval da doutrina bíblica. Já no Deuteronómio, Deus
é tal que posso decidir ter aulas desse desporto, e adverte o homem de que pode escolher o tipo de
até dedicar-me a ele, vencendo a ignorância e o vida que quiser:
pouco desejo que tenho de o praticar. Os exemplos
poderiam multiplicar-se. Negar a liberdade, quando «Coloco diante de ti a vida e a morte, a felicida-
a vida está cheia de acções deliberadas e de de e a maldição; escolhe a vida, e então vive-
decisões livres, quando se reclama o seu exercício rás» (Dt 30, 19).
e se protesta quando não é respeitada ou se abusa
dela, não faz sentido. Mais tarde, os livros sapienciais ensinam que o
O que realmente há que afirmar é que a liber- bem e o mal são fruto da acção livre do homem.
dade humana é limitada e que a capacidade de Por isso o colocam perante o risco de não usar inte-
optar é restrita (disso nos ocuparemos mais ligentemente a sua liberdade:
adiante), mas rejeitá-Ia é negar a evidência.
Contudo, não só este autor como muitos outros «Noprincípio Deus criou o homem e entregou-o
partilham esta curiosa teoria, embora imediata- ao seu próprio arbítrio. Deu-lhe ainda os man-
mente a seguir se associem para defenderem a damentos e os preceitos: 'Se quiseres observar os
liberdade no convívio social. Mas que sentido mandamentos, e praticar sempre fielmente tudo
tem proclamá-Ia e defendê-Ia, se não existe? A o que Lhe é agradável eles te defenderão. Ele

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pôs diante de ti a água e o fogo, estende a mão Em sentido bíblico, a verdadeira liberdade dá-se
ao que quiseres. A vida e a morte, o bem e o mal quando o homem se decide a viver a vida do espí-
estão diante do homem; o que ele escolher, isso rito e não se deixa conduzir pelos vícios da carne.
lhe será dado» (Eccl15, 14-18). S. Paulo estabelece este sábio princípio: «Onde está
E, devido às queixas que o mal provocou no o Espírito do Senhor há liberdade» (2 Cor 3, 17).
homem pela sua má conduta, Deus lembra-lhe que Por último, perante os erros de algumas here-
está nas suas mãos fazer o bem e evitar o mal: sias, especialmente da doutrina de Lutero, o
Concílio de Trento definiu a liberdade como con-
«Não digas: 'Foi Ele Quem me seduziu', porque dição do ser humano, apesar dos males que o peca-
(...) o Senhor aborrece a abominação e o mal, e do original lhe causou:
os que O temem não amam tais coisas» (Eccl15,
12-13). «Sealguém disser que o livre arbítrio do homem
se perdeu e extinguiu depois do pecado de
O mesmo livro do Eclesiástico tece o elogio do Adão, ou que é coisa só de palavra sem reali-
homem que «podia transgredir a lei e não a trans- dade, pura invenção introduzida por Satanás na
grediu, podia fazer o mal e não o fez» (Eccl 31, 10). Igreja, seja anátema» (DS. 1555).
O Novo Testamento confirma que a «história da
salvação» é precisamente a biografia da liberdade
dos homens que não se acomodaram ao querer de Sentido e definição da liberdade
Deus. Por isso, entenderá a redenção alcançada por
Cristo em termos de «libertação»: Cristo libertará o Frente aos outros seres, o homem distingue-se
mundo do pecado. Por seu lado, S. Paulo anima os pela racionalidade e pela capacidade de agir livre-
cristãos a manterem-se na liberdade «que Cristo nos mente. Aqui tem origem uma diferença radical entre
deu» e a absterem-se de fazer o mal, se não querem o homem e o resto das realidades criadas. De facto,
voltar à escravidão: os seres inorgânicos regem-se matematicamente
pelas leis que guiam a matéria. Concretamente, a lei
«Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. da gravidade cumpre-se inexoravelmente sempre
Permanecei, pois, firmes e não torneis a sujei- que atiramos uma pedra ao ar.
tar-vos ao jugo da escravidão (Cá! 5, 1). De acordo com as suas próprias leis biológicas
actuam também os seres vivos: as plantas procedem

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(nascem, crescem e morrem) seguindo certas leis possibilidade de escolher, pois a «eleição» como tal
que configuram a própria espécie. De modo simi- deriva da autodeterminação, pelo que, uma vez
lar, os animais comportam-se de acordo com os ins- feita a eleição pelo sujeito, não poderia voltar a
tintos das respectivas espécies, e é sabido que esses exercer a liberdade. O que realmente pode é deter-
instintos estão gravados nos próprios genes. Em minar-se a fazer outra eleição, ou inclusivamente a
consequência, o animal actua automaticamente, corrigi-Ia, mas isso equivale a -autodeterminar-se»
sempre do mesmo modo, seguindo o seu impulso novamente.
instintivo. O homem, pelo contrário, pode intervir Uma definição descritiva e mais próxima da
imediatamente no processo da sua actuação: deci- ciência moral, poderia ser formulada nos seguintes
de ou abstém-se, interrompe o que tinha determi- termos: Liberdade é a capacidade interior da pes-
nado ou escolhe entre as múltiplas opções que se soa, mediante a qual a vontade pode optar entre
lhe oferecem, delibera sobre se continua a sua querer ou não querer, determinar-se por diferentes
acção ou se a suspende, pode mesmo optar pelo possibilidades ou decidir-se pelo seu contrário.
contrário, etc ... De acordo com esta definição, os autores clás-
Pois bem, essa capacidade de decidir actuar ou sicos distinguem três tipos de liberdade:
abster-se, de se determinar por uma coisa ou resol-
ver o oposto, inclusivamente de criar situações Liberdade de necessidade: É a possibilidade
novas, é o que se pode entender por «liberdade». O de actuar ou de não actuar.
filósofo Schopenhauer considerou-a um «mistério», Liberdade de especifictdade. É a capacidade
por tratar-se de um conceito «limite»,cuja riqueza de decidir entre diversas opções.
resiste a encerrar-se num conceito. Por seu lado, Liberdade de contradição: É a que decide
Nicolai Hartmann escreveu: «O problema da liberda- entre duas coisas opostas.
de é o mais difícil dos problemas da Ética, é inques-
tionavelmente o seu exemplum crucis-. Mas se pro- Estes elementos estão presentes na seguinte
curássemos definir brevemente a liberdade, podería- descrição do Catecismo da Igreja Católica:
mos fazê-lo nos seguintes termos: .<A liberdade é a
capacidade que o homem tem de se autodeterminar-. «Aliberdade é o poder, radicado na razão e na
A partir desta definição pode-se concluir que a vontade, de agir ou de não agir, de fazer isto ou
essência da liberdade não reside propriamente na aquilo, praticando assim, por si mesmo, acções

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deliberadas. Pelo livre arbítrio, cada qual dispõe Este facto é ainda mais de admirar porquanto toda
de si. A liberdade é, no homem, uma força de a gente está disposta a aceitar a limitação em muitas
crescimento e de maturação na verdade e na outras dimensões do ser humano: na força, na inte-
bondade. E atinge a sua perfeição quando está ligência, na vida afectivo-sentimental, etc ... Só a liber-
ordenada para Deus, nossa bern-aventurança- dade parece ser alheia à lei da finitude, inerente à
(CIC, 1731). pessoa humana.
A este respeito, convém esclarecer que, dado
Neste sentido, deve-se sublinhar a amplitude do que o homem é um ser limitado, as diversas reali-
poder da liberdade que abarca múltiplos níveis, dades humanas participam dessa limitação, incluída
pois precede o agir humano, acompanha-o ao a liberdade, tal como a força, a inteligência, etc ... A
longo da acção e há inclusivamente a possibilidade limitação da liberdade, é, portanto, determinada
de o homem se decidir por realidades opostas entre pela própria estrutura da pessoa, que é um ser
si. Situada a liberdade neste plano, sobressai a essencialmente finito, pelo que a liberdade está
importância que desempenha no ser humano, a sujeita a esse mesmo limite de finitude.
ponto deste se poder definir por ela: o homem é «o A limitação da liberdade tem origens muito
ser livre». De facto, na liberdade confluem a razão , diversas (cf. VS, 86-87). Umas vezes procede da natu-
a vontade e a vida afectiva sentimental, todas elas reza do próprio ser: por exemplo, o homem não tem
dimensões constitutivas do ser humano. capacidade de voar. Outras vezes a limitação deriva
das circunstâncias que afectam a sua própria origem:
falar português ou chinês depende do lugar de nas-
Limitações da liberdade cimento. E está sempre limitada pela condição de ser
homem ou mulher, criança, adolescente ou ancião ...
Apesar do elevado nível e do amplo campo da as pessoas não podem fazer todas o mesmo. O facto,
sua actuação, a liberdade humana é limitada. É por exemplo, de viver na costa permite ver o mar,
curioso observar como, nalguns ambientes, se rei- coisa que não é possível no interior. Além disso, a
vindica para o homem uma liberdade absoluta e, própria liberdade se limita porque não pode invadir
quando se comprova que essa liberdade não é pos- o âmbito em que se exerce a liberdade do outro, que
sível, imediatamente se nega a condição livre do também é um ser livre. Os exemplos poderiam mul-
homem. Aqui parece que vale ou «tudo» ou «nada». tiplicar-se. Zubiri escreve:

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«Dizer que o homem é livre, não quer dizer que visitar o Templo de Diana, etc. As limitações nem
a área da sua liberdade seja omnímoda. Pelo sempre são negações da liberdade, podem propor-
contrário, é uma área mais ou menos estreita cionar novas opções de a exercer.
tanto em extensão como em profundidade. Essa
área poderia ampliar-se em cada caso, mas sem-
pre se apresenta como uma área limitada» Liberdade. Verdade.Be~
(Sobre el hombre, p. 146).
A liberdade é um em si, isto é, uma condição do
Ora bem, essas limitações condicionam o exer- ser humano; mas a liberdade como realidade refere-
cício da liberdade, mas não negam a sua existência. -se à -verdade- e ao «bem».Como ensina o Catecismo
São «condições» do seu ser, e todo o homem está da Igreja Católica: «a liberdade é, no homem, uma
«condicionado». Coisa diferente são as «determi- força de crescimento e de maturação na verdade e
nações» que violam a independência do sujeito, na bondade» (CIC, 1731). Precisar com rigor estes
pois é característica da pessoa -autodetermínar-se.. conceitos equivale a entender realmente o que é a
Só se nega a liberdade quando se impede o seu liberdade e para que é que o homem é livre.
exercício «determinando-a», o que acontece em caso
de coacção ou de violência. Mas, mesmo nessa
situação, o indivíduo conserva a liberdade interior , Liberdade e verdade
embora não a possa exercitar: o prisioneiro está
muito limitado no seu espaço e nas suas escolhas, Como ensina a Encíclica Veritatis splendor. «a
mas conserva a liberdade psicológica. Coisa que é liberdade depende fundamentalmente da verdade»
bem diferente de negar que o homem seja um ser (VS, 34). A relação «liberdade-verdade» é de fácil
livre por natureza. compreensão. Em primeiro lugar porque, para o
Além disso, nem toda a «limitação» é negadora homem actuar livremente, requer-se que conheça o
da liberdade, pode dar lugar a novas possibilidades que realmente vai executar, ou o seu contrário, o
de exercício num novo âmbito. Por exemplo, o que pretende omitir ou escolher. Com efeito, se me
ancião não é capaz de subir à montanha, mas é garantem que, carregando no botão de um coman-
capaz de ensinar o caminho; em Cascais pode-se do, é disparado o artefacto pirotécnico duma feira e,
ver o mar, mas em Évora tem-se a possibilidade de por engano, explode um carro armadilhado, desen-

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cadeia -se uma acção não querida por mim e da qual «parecer» (acho que), nem sequer é «pensar» (penso
não sou responsável. Se me entregarem um embru- que), pois posso ter uma imaginação brilhante e ser
lho que, pelo que me dizem, contém um livro e, capaz de pensar em quimeras e ainda em erros dis-
por engano, contém meio quilo de cocaína, nem paratados. Daí a íntima conexão que existe entre
cometo uma falta moral, nem incorro em delito, liberdade e verdade. Quando isto se observa, são
nem posso ser considerado um traficante de droga. impossíveis e anulam-se os .subjectivismos relativis-
A razão é que a própria estrutura da liberdade tas», incluído o relativismo ético. Neste campo, che-
- na medida em que é -acção humana» - supõe que gámos a situações aberrantes, pois para alguns indi-
o sujeito conhece a natureza do acto que realiza; víduos a própria opinião prevalece sobre a verda-
mais ainda, que é consciente da bondade ou malí- de. E, baseados no parecer pessoal, frequentemen-
cia do acto que pretende levar a cabo. Aqui têm te, acrescentam que se trata de «ser sincero consigo
plena aplicação as palavras de Jesus: «Averdade vos mesmo», quando, de facto, o que se deve respeitar
fará livres» (10 8, 32). Com efeito, só é livre o sempre é a verdade objectiva e a ela adequar a sin-
homem que conhece a verdade. Daí derivam pelo ceridade da própria conduta. Esta atitude tão
menos duas consequências: comum é denunciada por João Paulo II nos seguin-
a) O meio para crescer na liberdade é aprofun- tes termos:
dar na verdade. O homem livre é aquele que ama,
busca e alcança a verdade. Pelo contrário, o grande «Aexigência imprescindível de verdade desapa-
inimigo da liberdade é a ignorância, o engano, o receu em prol de um critério de sinceridade, de
equívoco e a mentira. autenticidade, de «acordo consigo próprio», a
b) O caminho para ajudar outros a serem livres ponto de se ter chegado a uma concepção radi-
é dar-lhes a possibilidade de saírem do erro e co- calmente subjectivista do juízo moral (VS, 32).
nhecerem a verdade. Daí que, no campo da fé, seja
rigoroso afirmar que o apostolado cristão é uma
verdadeira catequese que instrui e faz o outro co- Liberdade e bem
nhecer e amar a verdade.
Mas a «verdade» é a leitura da realidade. O A relação entre «liberdade» e «bem»é ainda mais
homem não cria a realidade, «conhece-a». Por isso, estreita do que a que existe entre «liberdade» e «ver-
«conhecer» não é opinar (na minha opinião), nem dade». E contudo é mais difícil de expressar con-

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ceptualmente. A razão é que, se se negar a liberda- aparência de liberdade, põe-se em evidência que é
de para fazer o mal, parece que se limita, e até se escravo da ignorância ou do mal que apetece e, ao
pode pensar que se rejeita, a condição livre do decidir executá-lo, faz mal a si próprio, pois subor-
homem. Contudo, a liberdade deve ser exercitada dina-se ao que não é lícito.
para o bem, dado que assim se respeita o ser da Pode-se dizer ainda mais: quando a liberdade
pessoa e o ser da realidade. Trata-se de um proble- faz o mal, deteriora-se e escraviza o homem. Não
ma de ontologia, que se observa em todos os âmbi- só do ponto de vista bíblico, mas mesmo partindo
tos da realidade. Assim, por exemplo, se a pedra de uma consideração racional é fácil comprovar
tivesse a possibilidade de não respeitar a lei da gra- que o mal provoca a escravidão e nega a liberdade.
vidade, produzir-se-ia um caos cósmico; se o ani- Este é o sentido da afirmação de S. Paulo: «O que
mal fosse capaz de actuar contra o seu próprio ins- faz o pecado é escravo do pecado» (Rom 6, 17).
tinto, anular-se-ia e mutilar-se-ia a si mesmo. De Oferecer à pessoa a possibilidade de optar pelo
modo similar, se o homem não respeitar a ordem mal, é situá-Ia na rota do capricho, do «apetite» ou
do seu próprio ser, envilece-se. É o que acontece do instinto, quando precisamente o homem actua
quando, em virtude da sua condição livre, a pessoa como tal quando submete o instinto à razão e
faz o mal, pois, nesse caso, actua de modo contrá- alcança o domínio de si mesmo. Como ensina o
rio ao seu próprio ser. Catecismo da Igreja Católica:
Por isso, a liberdade humana deve respeitar o
âmbito da sua realidade específica e não deve vio- «Quanto mais o homem fizer o bem, mais livre
lentá-Ia. Mais ainda, o seu exercício não pode se torna. Não há verdadeira liberdade senão no
lesionar o que o homem é, dado que a liberdade serviço do bem e da justiça. A opção pela deso-
lhe foi concedida precisamente para aperfeiçoar-se bediência e pelo mal é um abuso da liberdade
como pessoa. Esta é a origem da afirmação clássi- e conduz à escravidão do pecado» CCIC,1733).
ca: «Fazer o mal não é próprio da liberdade nem
sequer parte dela, é apenas sinal de que o homem é A pessoa humana é um ser livre na medida em
liure-, Isto é, quando o homem usa a liberdade para que está no seu arbítrio escolher o tipo de condu-
fazer o mal, mostra certamente que é livre, dado ta que lhe permite alcançar a própria perfeição.
que pode fazê-lo, mas não exercita a verdadeira «Pode» fazer o mal, mas não «deve» realizá-lo. A
liberdade, pois não faz um uso legítimo dela: sob a liberdade situa-se, portanto, não no poder físico,

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mas no dever moral. Por isso, se uma acção huma- na lei do pecado, que se encontra nos meus
na lesar a natureza do homem, este «deve» racio- membros. Que desditoso homem que eu sou!
nalmente rejeitar a sua execução. Esta é a atitude Quem me há-de libertar deste corpo de morte?»
coerente; mais ainda, é o modo mais inteligente de eRam 7, 14-24).
exercitar a liberdade.
Pois bem, o homem tem em si uma disposição Pois bem, o homem, porque é livre, está incli-
para o mal. O pecado original inclina-o ao pecado. nado para o mal, mas tem, contudo, a capacidade
S. Paulo ensina com precisão, e referindo-se à sua - sempre ajudado pela graça de Deus - de vencer
própria pessoa: essas dificuldades e de praticar o bem.

«Sabemos que a lei é espiritual. Mas eu, sou eu,


ser de carne, vendido ao poder do pecado. Liberdade e responsabilidade
Porque não compreendo o que faço: pois não
faço aquilo que quero, mas sim aquilo que Do ponto de vista conceptual, estes dois termos
aborreço. Ora, se eu faço o que não quero, não são coincidentes, embora se impliquem, mutua-
reconheço que a lei é boa. E assim, já não sou mente, de modo que toda a «liberdade» deve ser
eu que o realizo, mas o pecado que habita em «responsável». E, inversamente, não é possível a
mim. Porque eu sei que não há em mim, isto é, «responsabilidade» sem a liberdade, tal como não se
na minha carne, coisa boa, pois quero o bem, pode falar de liberdade irresponsável.
que está ao meu alcance, mas realizá-Io não. Com efeito, o argumento mais conclusivo para
Efectivamente, o bem que eu quero, não o faço, demonstrar a liberdade do indivíduo é precisamen-
mas o mal que não quero, é que pratico. Se, te o facto de que o agente é fiador dos seus actos.
pois, faço o que não quero, já não sou eu que Embora a liberdade seja algo inquestionável, alguns
o realizo, mas o pecado que habita em mim. autores - como indicámos anteriormente - negam a
Deparo, então, com esta lei: Querendo fazer o sua existência. Pois bem, o argumento decisivo a
bem, é o mal que eu encontro. Sinto prazer na favor do facto da liberdade é a responsabilidade.
lei de Deus, de acordo com o homem interior. Com efeito, cada pessoa sente-se responsável pelos
Mas vejo outra lei nos meus membros, a lutar seus actos, e por isso exige que se lhe reconheça a
contra a lei da minha razão e a reter-me cativo garantia do seu actuar. Igualmente, tanto a socieda-

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de como o direito imputam ao homem as suas A liberdade e a graça
acções, porque o consideram responsável por elas.
Por isso se exalta e preme ia a acção boa e, pelo Dada a condição do homem, ferido pelo pecado
contrário, se censura e condena o agir mau, de original, o cristão precisa da graça de Deus para fazer
maneira que quem faz o "bem» é premiado e o que um uso permanentemente adequado da liberdade.
causa o "mal»é condenado. Contudo, a cooperação da graça não determina a
Na prática, o homem verdadeiramente livre é o liberdade, mas representa uma ajuda para a exercitar
que simultaneamente se sente responsável pela sua racionalmente, bem como para dirigir os seus actos
decisão. Outras vezes, o caminho para alcançar a ao fim sobrenatural. Igualmente, a graça facilita supe-
verdadeira liberdade é fazer com que o indivíduo rar a ignorância e vencer as paixões, que são os dois
se sinta garante do seu actuar. Mas não faltam oca- grandes obstáculos para agir livremente, segundo o
siões nas quais não se pode dar ao indivíduo mais querer de Deus. Em consequência, o cristão, quando
liberdade do que aquela de que possa resultar res- actua guiado pela graça, é mais livre do que quem
ponsavelmente fiador. Com efeito, como escreveu o actua de um modo espontâneo, isto é, que se conduz
psiquiatra Viktor Frankl, liberdade e responsabilida- guiado pela força do instinto ou mesmo que actua
de devem andar juntas: pelo querer exclusivamente humano. Assim se
expressa o Catecismo da Igreja Católica:
"Não me objectem que nós defendemos e pro-
pugnamos incondicionalmente a liberdade ... "A graça de Cristo não faz concorrência de
Eu sou contra o incondicionamento. A liber- modo nenhum, à nossa liberdade, quando esta
dade não é a última palavra. A liberdade pode corresponde ao sentido da verdade e do bem
degenerar em libertinagem, quando não é vivi- que Deus colocou no coração do homem. Pelo
da com responsabilidade. Talvez agora se contrário, e como o certifica a experiência cristã
compreenda por que razão recomendei com sobretudo na oração, quanto mais dóceis for-
tanta frequência aos meus alunos americanos mos aos impulsos da graça, tanto mais crescem
que, ao lado da estátua da liberdade, levantas- a nossa liberdade interior e a nossa segurança
sem outra à responsabilidade» (El vacío exis- nas provações, como também perante as
tencial, 137). pressões e constrangimentos do mundo exte-
rior» (CIC, 1742).

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I
I
Pode-se ainda acrescentar que, dada a condição Mérito, graça e liberdade
pecaminosa do homem, a graça facilita-lhe condu-
zir a sua vida sem sucumbir às múltiplas tentações o mérito é a retribuição que se dá a quem rea-
a que está sujeito. Com efeito, a situação calamito- lizou uma obra boa. Assim, por exemplo, a socie-
sa em que se encontra, leva-o, com frequência, a dade reconhece o mérito de certos cidadãos que se
fazer um mau uso da sua liberdade. Pois bem, a destacaram por algumas acções e, em consequên-
graça dá-lhe uma grande ajuda para superar essa cia, recompensa-os. Neste sentido, o mérito perten-
condição: ce ao âmbito da justiça.
Na realidade, as boas acções do cristão não
«Aliberdade do homem é finita e falível. E, de podem ser dignas de mérito aos olhos de Deus: entre
facto, o homem falhou. Livremente, pecou. Deus e o homem não tem lugar um direito próprio,
Rejeitando o projecto divino de amor, enganou- dado que a criatura tudo recebe do seu Criador, pelo
-se a si mesmo; tornou-se escravo do pecado. que só pode colaborar com a acção divina que a pre-
Esta primeira alienação gerou uma multidão de cede, como ensina o Catecismo da Igreja Católica:
outras. A história da humanidade, desde as suas
origens, dá testemunho de desgraças e «O mérito do homem perante Deus, na vida
opressões nascidas do coração do homem, cristã, provém do facto de que Deus dispôs li-
como consequência de um mau uso da liberda- vremente associar o homem à obra da sua graça.
de» (CIC, 1739), A acção paterna de Deus é primeira, pelo seu
impulso, e o livre agir do homem é segundo, na
O exemplo por excelência são os santos, que sua colaboração; de modo que os méritos das
superam essas limitações e obstáculos, ao mesmo obras devem ser atribuídos à graça de Deus, pri-
tempo que escolhem inteligentemente, quando se meiro, e depois ao fiel. Aliás, o próprio mérito
propõem como objectivo único da sua acção o do homem depende de Deus, porque as suas
cumprimento do querer de Deus, e assim, como a boas acções procedem, em Cristo, das predispo-
história testemunha, são modelos de homens e mu- sições e ajudas do Espírito Santo» (CIC, 2008).
lheres excepcionalmente livres: que realmente
actuam «porque lhes apetece»! Quer isto dizer que a criatura quando actua
não tem mérito algum diante de Deus? Não; sem

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dúvida, a primeira graça vem de Deus, mas, como dade. É esta doutrina que o Catecismo da Igreja
ensina o Catecismo, «sob a moção do Espírito Católica expõe:
Santo e da caridade, podemos, depois, merecer,
para nós mesmos e para outros, as graças úteis «Aliberdade torna o homem responsável pelos
para a santífícação e para o aumento da graça e da seus actos, na medida em que são voluntários.
caridade, bem como para a obtenção da vida eter- O progresso na virtude, o conhecimento do
na» (CIC, 2010). bem e a ascese aumentam o domínio da vonta-
Deste modo, na acção moral unem-se a graça de sobre os próprios actos- (CIC, 1734).
de Deus e a livre cooperação do homem. Como
ensinou S. Agostinho, «Agraça precedeu; agora dá- Esta tarefa de aperfeiçoar a própria liberdade é
-se o que é devido ... os méritos são dons de Deus». um trabalho custoso, pois, além do amor à verda-
de e do domínio dos instintos, requer um exercício
contínuo de boas obras, de forma que a vontade
A liberdade aperfeiçoa o ser da pessoa adquira certa espontaneidade no cumprimento do
dever: é a chamada «liberdade moral», ou seja a que
O homem é um ser livre por natureza, mas a se aperfeiçoa com o exercício das virtudes, pois
liberdade é uma apaixonada conquista, que dura cresce ou diminui consoante se queira o bem ou se
toda a vida. De facto, cada pessoa deve estar con- adira ao mal. A liberdade moral deve transferir o
tinuamente a exercitar-se para alcançar a sua con- desejo de «poder fazer» para a determinação do
dição de ser livre, posto que a liberdade é mais um «dever fazer». E mais do que a «liberdade de», isto
projecto do que uma realização, é mais uma meta é, sentir-se livre de certas limitações, deve ocupar-
do que um logro. Para o conseguir, em primeiro -se na «liberdade para», ou seja na liberdade «para
lugar, o homem deve desenvolver a inteligência, de fazer o bem».
modo a poder adquirir o conhecimento rigoroso O caminho mais curto é, sem dúvida, o empe-
das categorias morais. Ao mesmo tempo, necessita nho em usar a liberdade na tarefa da santidade,
da prática ascética que lhe facilita o domínio das como ensina S. ]osemaría Escrivá: «A liberdade
paixões, de modo a ser-lhe fácil o exercício da adquire o seu autêntico sentido quando se exerce
liberdade. Finalmente, deve ocupar-se na prática ao serviço da verdade que resgata, quando se gasta
da virtude e no desenvolvimento da responsabili- a procurar o amor infinito de Deus, que nos desata

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de todas as escravidões» (Amigos de Deus, n° 27). do a sua consciente e livre escolha, isto é, movi-
Em última instância, tudo se reduz a amar: amar a do e determinado por uma convicção pessoal
própria liberdade, e amar os mandatos que se interior, e não por um impulso interior quando,
devem cumprir, pois, como escreve S. Agostinho, libertando-se inteiramente da escravidão das
«quando alguém ama verdadeiramente, goza de paixões, avança para o seu destino pela livre
maior liberdade». escolha do bem, tendo o cuidado de procurar
realmente os meios adequados. A liberdade
humana, ferida pelo pecado, só poderá orde-
Conclusão nar-se para Deus de uma maneira plena, com a
ajuda da graça de Deus. Cada um deverá pres-
Registemos, como conclusão, o seguinte texto tar contas da sua própria vida, diante do tribu-
do Concílio Vaticano II, que consegue resumir a nal de Deus, conforme o bem ou o mal que terá
ampla e difícil doutrina que se encerra no tema da feito» (GS, 17).
liberdade humana:

«Maso homem só pode orientar-se para o bem,


mediante o uso da liberdade, que os nossos
contemporâneos têm em tão grande apreço e
procuram ardorosamente. E com razão. Muitas
vezes, contudo, a fomentam de um modo não
recto, como se fosse licença de tudo fazer,
mesmo o mal, contanto que agrade. Mas a ver-
dadeira liberdade é um sinal exímio da imagem
divina no homem. Deus quis 'deixar o homem
nas mãos do seu desígnio' (Eccl 15, 14) para
que ele procure espontaneamente o seu Criador
e, aderindo livremente a Ele, consiga a plena e
bem-aventurada perfeição. A dignidade huma-
na exige, portanto, que o homem actue segun-

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