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COMO O RACISMO CRIOU O BRASIL

Toda ordem estabelecida tende a produzir (em


graus muito diferentes, com diferentes meios) a
naturalização de sua própria arbitrariedade.

Pierre Bourdieu.

Essa frase de Pierre Bourdieu se encaixa perfeitamente para a análise do nosso país no que
tange às injustiças sociais e as desigualdades. Nesse pequeno texto, transcrevo parte do
primeiro capítulo do livro de Jessé Souza, Como o racismo criou o Brasil, com o intuito de
apresentar aos amigos um pouco do pensamento desse grande sociólogo brasileiro. Pretendo,
em outro momento, apresentar partes dos capítulos seguintes e dessa forma, paulatinamente,
refletirmos sobre a análise do autor.

Introdução

Em seu novo livro, Como o racismo criou o Brasil, Jessé Souza aborda como se formou a
desigualdade social e racial no país, além de indicar que a única forma de superar o racismo é através da
conscientização das pessoas. Ele enfatiza o racismo em uma perspectiva multidimensional,
considerando o mesmo atrelado ao gênero, a classe, a raça, tecendo críticas aos intelectuais pela
ausência de um conceito de racismo racial, pois ninguém o explica. O que ele quer dizer com isso é que
as pessoas partem do fato de que existe racismo através de estatísticas mostrando que os negros são
negativamente privilegiados e discriminados. Porém, isso prova que existe racismo, mas não explica o
que é o racismo. Provar que uma coisa existe não implica que você compreenda essa coisa. Qual a sua
origem? O que ela destrói nas pessoas? Quais as máscaras que ela assume?
O autor considera racismo tanto o preconceito cultural quanto o preconceito de classe, assim como
sexismo e machismo, posto que que seriam a mesma coisa, na medida em que é produzido da mesma
maneira, com o mesmo objetivo, tendo as mesmas consequências e um assumindo um o lugar do outro
quando necessário. Dessa forma, o racismo racial só será compreendido se for percebido como
multidimensional.
O racismo racial pode ser exercido de várias maneiras, disfarçado, por exemplo, de moralismo
anticorrupção ou de guerra contra o crime. Portanto, “se o racismo racial pode assumir outras máscaras,
então existem, obviamente, manifestações não raciais do racismo, que produzem o mesmo efeito
destruidor e deletério nas pessoas”. Ademais, o autor esboça o quanto de mentira e de manipulação
existe na crença de que o oprimido conhece melhor do que ninguém a opressão que sofre. Acreditar
nessa tolice é não compreender absolutamente nada sobre como funcionam as formas de humilhação e
opressão na sociedade.

RACISMO E CLASSE SOCIAL

Vivemos num mundo onde o que importa é o fragmento, o transitório, o que atrai uma curiosidade
superficial e isso em nada ajuda a compreender o que é o racismo, ou seja, entender como ele foi
construído, qual a sua lógica, como se mantém sobre várias máscaras em todas as sociedades , o que é
destruído nas suas vítimas e, afinal, para que serve. Saber que o racismo existe não significa compreendê-
lo, do mesmo modo que nomear um fenômeno não significa o que ele é, como funciona ou como afeta as
vítimas. Desse modo , antes de reconstruir o que o racismo realmente significa, teremos que desconstruir
as formas falsas que permitem a utilização do antirracismo contra suas próprias vítimas. O
neoliberalismo é uma delas. O neoliberalismo, ou seja, a própria legitimação simbólica do capitalismo
financeiro global, vai se utilizar precisamente da linguagem do antirracismo para se legitimar,
significando que o lobo neoliberal, para melhor explorar e oprimir, tem que assumir as vestes e a voz da
sua vítima, ou seja, literalmente seu lugar de fala, para fingir que se transformou na boa vovó. Lugar de
fala, não passa de esperteza neoliberal.
O lugar de fala implica que existe um lugar de fala “autorizado” para falar de racismo, e que esse
lugar de fala autorizado possibilita “representar” os indivíduos ou grupos que se encontram em um
mesmo contexto social de opressão e racismo.
O que precisa ser dito é que a forma mais importante de opressão social na sociedade moderna se
refere à estratificação da sociedade em classes. Todavia, a maioria dos intelectuais pensa que a classe é
uma categoria que se resume a critérios econômicos, como defendem os marxistas, ou ainda pior, de
renda , como pensam os liberais. É que classe pensada como renda diferencial ajuda a passar a falsa ideia
de que a sociedade é um ajuntamento de indivíduos sem família , sem passado , sem contexto social, ou
seja , sem pertencimento a nenhuma classe social , e que, portanto, lutam em igualdade de condições
pela renda social a ser distribuída segundo a capacidade e o mérito individuais . Como a renda é algo
que se tem na vida adulta, toda discussão se “esquece” do que aconteceu na infância e na adolescência
dos indivíduos e que fez com que alguns cheguem a ganhar 500 vezes mais que outros. É a forma de
legitimar a meritocracia. Porém, a ideia de meritocracia esconde o fato de as classes sociais serem os
principais instrumentos que na verdade permitem reproduzir privilégios visíveis e invisíveis no tempo,
sendo a renda diferencial apenas o elemento mais tardio e mais visível de todos. Isso acontece através da
socialização familiar.
Não existe “família” em geral, igual em todo lugar, mas apenas famílias de classe, cada qual com
uma história e uma reprodução de privilégios visíveis e invisíveis peculiares. O privilégio mais visível é
o econômico. A relação familiar e de sangue, por meio de títulos de propriedade e das estratégias de
casamento e amizade dentro da mesma classe social, cria a classe da elite de proprietários, que detém
todas as riquezas em pouquíssimas mãos. São os donos das grandes fazendas de soja, dos meios de
comunicação, das cadeias comerciais e os grandes especuladores rentistas. Representam 0,1% da
população.
Abaixo desse 0,1% da população, todas as classes lutam por outro tipo de capital , que não é visível
como o dinheiro e a propriedade: o capital cultural. Este capital representa a incorporação de
conhecimento considerado útil e legítimo pela sociedade. É a classe média. Tal classe se baseia na
reprodução do privilégio educacional, o qual vai criar e implementar de modo invisível, e por isso
extremamente eficiente , a farsa da meritocracia pela incorporação privilegiada e tornada invisível de
capital cultural . É que o sucesso escolar, ou seja, a chave de todo sucesso social, que será expresso em
renda diferencial anos mais tarde, tem pressupostos emocionais e afetivos que são construídos desde o
berço no horizonte familiar de cada classe social. Disposições para o comportamento prático como
disciplina, autocontrole, visão prospectiva e capacidade de concentração e de pensamento abstrato
não são naturais nem algo a que todos têm acesso.
Em sociedades como a brasileira, essas competências são, antes de tudo, verdadeiros privilégios de
classe. Toda família de classe média transmite uma série de aptidões às novas gerações como o hábito da
leitura, gosto pelas línguas estrangeiras, a capacidade de imaginação despertada desde cedo pelas histórias
cheias de fantasia em belos livros com imagens. Tudo isso é um privilégio de classe que cria e torna
completamente invisível a base social por trás de todo mérito individual. Quando o branquinho de classe
média se forma e rapidamente se vê realizado com boa profissão e vida organizada, tende a achar natural
sua posição, envaidecendo-se sobre seu “mérito” .
Quanto à classe dos desvalidos, os excluídos e humilhados do Brasil, esta é composta quase que
inteiramente de negos e mestiços e os valores reproduzidos nessa classe são quase sempre negativos. É
chamada de Ralé. O filho brinca com o carrinho de mão do pai e, como copiamos quem amamos, esse
filho aprende a ser trabalhador manual desqualificado brincando. Quando a mãe lhe diz pra ir para
escola precária dos negros e dos pobres, visando que esse é o único caminho para sair da pobreza , como
ele pode acreditar, se a escola da mãe apenas a tornou uma analfabeta funcional? A socialização
familiar é construída por exemplos práticos, não por discurso.
Os filhos da classe média vão chegar como vencedores à escola já aos 5 anos, enquanto os da ralé de
desvalidos e humilhados, quase todos negros, chegarão como perdedores no ponto de partida. A escola
de uns será competitiva e cheia de estímulos, enquanto a dos outros será precária e sem atenção pública.
Na adolescência os pobres terão que trabalhar já aos 11 ou 12 anos, tornando mais difícil a competição
meritocrática. Na classe média, os pais vão comprar o tempo livre dos filhos apenas pra estudar, pois
pretendem transmitir aos filhos e netos os privilégios que herdaram dos pais e avós . É essa
transmissão familiar e escolar de valores positivos ou negativos invisíveis o que verdadeiramente
define uma classe social. A renda diferencial é apenas um dos seus resultados tardios.
Portanto, para se entender o racismo no Brasil, se faz necessário perceber essa perfeita mistura que
se faz entre classe social e raça , senão não poderemos compreender como o sucesso e o fracasso social
já estão embutidos na socialização familiar e escolar primária de classe/ raça negra e pobre. No Brasil,
essa mistura constrói uma classe / raça de “novos escravos” , e , qualquer tentativa de possibilitar sua
inclusão social ou resgatá-la , como fizeram Vargas e Lula, irá produzir golpes de Estado que buscam
mantê-la explorada, oprimida e humilhada .

*Em um segundo momento abordarei o racismo estrutural e a moralidade como fundamento da vida
social e de todo racismo .

Até a próxima!

Alexandre Amaral

São João do Cariri, PB.


16/11/2021

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