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O trabalho no mundo contemporâneo

Fator de promoção ou degradação


1. Proposta de Redação/Einstein (2020/Adaptada)
Texto 1
Nem só de grupos, influenciadores e jogos vivem os aplicativos. Com a queda do número de vagas
formais no mercado de trabalho, as pessoas vêm buscando novas fontes de renda e trabalhar para
aplicativos de serviços é uma delas. Se, por um lado, as novas plataformas propiciam um espaço para
que as pessoas possam obter rendimentos, por outro, geram também questões inerentes ao século XXI,
sobre transformação das relações de trabalho, qualidade de vida e saúde. No novo modelo, o
trabalhador tem mais autonomia sobre seu processo produtivo e horários de trabalho. Para isso, no
entanto, muitos abrem mão de direitos garantidos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), como
o décimo terceiro salário e as férias e, em muitos casos, abdicam até mesmo dos finais de semana. O
fenômeno já é conhecido como “uberização do trabalho” e está sendo estudado por áreas que vão do
direito às ciências sociais.
(Mariana Ceci. “Autônomos usam aplicativos para driblar crise financeira no RN”. http://tribunadonorte.com.br, 19.05.2019. Adaptado.)

Texto 2
Uma massa de 5,5 milhões de profissionais brasileiros já trabalha para ou com aplicativos, segundo a
Associação Brasileira Online to Offline, que representa as empresas do setor. Se esses trabalhadores
fossem considerados empregados formais, grupos como Uber, iFood ou Rappi seriam os maiores do país
em número de funcionários. O Diretor da associação, Marcos Carvalho, contesta, no entanto, a tese
defendida por muitos atualmente de que haja vínculo trabalhista entre esses profissionais e as
empresas. Segundo ele, “o profissional tem total autonomia e flexibilidade para definir sua jornada de
trabalho de acordo com o que for conveniente, sem ter que prestar nenhuma satisfação com relação
ao horário ou à forma como ele vai realizar entregas, por exemplo. São pessoas que possivelmente
estariam com grandes dificuldades de ter uma fonte de renda. Isso mostra o impacto de inclusão social
desses trabalhos num momento de tanta fragilidade econômica como o que estamos tendo no país.”
(Guilherme Balza. “Brasil já tem mais de 5 milhões trabalhando para aplicativos”. https://cbn.globoradio.globo.com, 05.06.2019. Adaptado.)

Texto 3
As empresas responsáveis pelos aplicativos afirmam que apenas fazem a “ponte” entre as partes, as
quais trabalham de forma autônoma e com liberdade de acordo com sua disposição e necessidades —
um argumento frequente em tempos de “uberização” do trabalho. Mas, para especialistas, não é bem
assim. “Este modelo de trabalho se apoia no discurso do empreendedorismo, na ideia de você não ter
patrão e poder fazer o seu próprio horário”, afirma Selma Venco, socióloga do Trabalho e professora
da Unicamp. Segundo ela, este “discurso neoliberal camufla a real situação, que é a de precarização
não apenas nas relações de trabalho, mas também nas condições de vida. Há uma superexploração do
trabalhador, pois ele terá que trabalhar uma jornada de 14 ou 15 horas para ter um ganho mínimo, ou
seja, irá além dos limites físicos para poder sobreviver. E sem nenhuma proteção, nenhum direito
associado a isso.”
(Gil Alessi. “Jornada maior que 24 horas e um salário menor que o mínimo, a vida dos ciclistas de aplicativo em SP”.
https://brasil.elpais.com, 13.08.2019. Adaptado.)

Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva um texto
dissertativo-argumentativo, empregando a norma-padrão da língua portuguesa, sobre o tema:
“Uberização”: autonomia do trabalhador ou perda de direitos?

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1.1 Projeto de texto

1. Frase tema: “Uberização”: autonomia do trabalhador ou perda de direitos?

2. Questão:

3. Tese:

4. Argumentos 1

5. Argumentos 2

6. Conclusão:

7.Perspectivas (coletânea e repertório)

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2. O trabalho através dos tempos
1. Antiguidade: desprezo → escravidão
2. Idade média (sociedade estamental): “Os que laboram”
3. Mundo Moderno (reformas protestantes): virtude

Lembra-te de que tempo é dinheiro. Aquele que pode ganhar dez xelins por dia por seu trabalho e vai passear ou fica
vadiando metade do dia, embora não dispenda mais do que seis pences durante seu divertimento ou vadiação, não
deve computar apenas essa despesa; gastou, na realidade, ou melhor, jogou fora, cinco xelins a mais. Lembra-te
deste refrão: o bom pagador é o dono da bolsa alheia. Aquele que é conhecido por pagar pontual e exatamente na
data prometida, pode, em qualquer momento, levantar tanto dinheiro quanto seus amigos possam dispor. Isso é, às
vezes, de grande utilidade. Depois da industriosidade e da frugalidade, nada contribui mais para um jovem subir na
vida do que a pontualidade e a justiça em todos os seus negócios; portanto, nunca conserves dinheiro emprestado
uma hora além do tempo prometido, senão um desapontamento fechará a bolsa de teu amigo para sempre. O som
de teu martelo às cinco da manhã ou às oito da noite, ouvido por um credor, o fará conceder-te seis meses a mais de
crédito; ele procurará, porém, por seu dinheiro no dia seguinte se te vir em uma mesa de bilhar ou escutar tua voz
numa taverna quando deverias estar no trabalho. (Benjamim Franklin, in Max Weber, “Ética protestante e o
Espírito do Capitalismo”)

2.1 Século XVII (Iluminismo): liberalismo clássico


. Adam Smith, David Ricardo
. “homo oeconomicus” = o homem que produz.
. Sentido do trabalho: fonte de riqueza e de valor.
. Smith: divisão do trabalho social → aumento de produtividade

Tomemos, pois, um exemplo, tirado de uma manufatura muito pequena, mas na qual a divisão do trabalho muitas
vezes tem sido notada: a fabricação de alfinetes. Um operário não treinado para essa atividade (que a divisão do
trabalho transformou em uma indústria específica) nem familiarizado com a utilização das máquinas ali empregadas
(cuja invenção provavelmente também se deveu à mesma divisão do trabalho), dificilmente poderia talvez fabricar
um único alfinete em um dia, empenhando o máximo de trabalho; de qualquer forma, certamente não conseguirá
fabricar vinte. Entretanto, da forma como essa atividade é hoje executada, não somente o trabalho todo constitui
uma indústria específica, mas ele está dividido em uma série de setores, dos quais, por sua vez, a maior parte também
constitui provavelmente um oficio especial. Um operário desenrola o arame, um outro o endireita, um terceiro o
corta, um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da cabeça do alfinete; para fazer uma
cabeça de alfinete requerem-se 3 ou 4 operações diferentes; montar a cabeça já é uma atividade diferente, e alvejar
os alfinetes é outra; a própria embalagem dos alfinetes também constitui uma atividade independente. Assim, a
importante atividade de fabricar um alfinete está dividida em aproximadamente 18 operações distintas, as quais,
em algumas manufaturas são executadas por pessoas diferentes, ao passo que, em outras, o mesmo operário às
vezes executa 2 ou 3 delas. Vi uma pequena manufatura desse tipo, com apenas 10 empregados, e na qual alguns
desses executavam 2 ou 8 operações diferentes. (...) Essas 10 pessoas conseguiam produzir entre elas mais do que
48 mil alfinetes por dia. Assim, já que cada pessoa conseguia fazer 1110 de 48 mil alfinetes por dia, pode-se
considerar que cada uma produzia 4 800 alfinetes diariamente. Se, porém, tivessem trabalhado independentemente
um do outro, e sem que nenhum deles tivesse sido treinado para esse ramo de atividade, certamente cada um deles
não teria conseguido fabricar 20 alfinetes por dia, e talvez nem mesmo 1, ou seja: com certeza não conseguiria
produzir a 240ª parte, e talvez nem mesmo a 4 800ª parte daquilo que hoje são capazes de produzir, em virtude de
uma adequada divisão do trabalho e combinação de suas diferentes operações. (Adam Smith, “A divisão do trabalho)

2.2. A Revolução Industrial (XVIII/XIX) e a situação da classe trabalhadora


. Mudou: modo de produção, força de trabalho, relação capital trabalho
. Situação da classe trabalhadora na Inglaterra (Engels): exploração brutal
. Sentido do trabalho: exploração do homem pelo homem

“A elevada mortalidade que se verifica entre os filhos dos operários, e particularmente dos operários de fábrica, é
uma prova suficiente da insalubridade à qual estão expostos durante os primeiros anos. Estas causas também atuam

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sobre as crianças que sobrevivem, mas evidentemente os seus efeitos são um pouco mais atenuados do que naquelas
que são suas vítimas. [...] O filho de um operário, que cresceu na miséria [...], na umidade, no frio e com falta de
roupas, aos nove anos está longe de ter a capacidade de trabalho de uma criança criada em boas condições de
higiene. Com esta idade é enviado para a fábrica, e aí trabalha diariamente seis horas e meia (anteriormente oito
horas, e outrora de doze a catorze horas, e mesmo dezesseis) até a idade de treze anos. A partir deste momento, até
os dezoito anos, trabalha doze horas. Aos fatores de enfraquecimento que persistem junta-se também o trabalho. É
verdade que não podemos negar que uma criança de nove anos, mesmo filha de um operário, possa suportar um
trabalho cotidiano de seis horas e mais sem que daí resultem efeitos nefastos visíveis, de que este trabalho seria a
causa evidente. Mas temos que confessar que a permanência na atmosfera da fábrica, sufocante, úmida, por vezes
de um calor morno, não poderia em qualquer dos casos melhorar a sua saúde.“ (ENGELS, Friedrich. A situação da
classe operária na Inglaterra. São Paulo: Global, 1986 [1845], p. 170-17)

2.3. Marx: condição necessária à reprodução da existência


. trabalho: necessário à reprodução das condições materiais de vida
. trabalho no capitalismo = alienado (apropriado pelo capitalista)

. capitalista = proprietário dos meios de produção


. trabalhador destituído dos meios de produção → vende sua força de trabalho

. homem aliena-se de si no trabalho: dispende sua energia, sua força produtiva


. força de trabalho = mercadoria → reificação/objetificação do próprio homem
. lucro → mais valia (jornada de trabalho, tecnologia) = trabalho não pago

Um primeiro pressuposto de toda existência humana e, portanto, de toda história (...) [é] que os homens devem estar
em condições de poder viver a fim de “fazer a história”. Mas, para viver, é necessário, antes de mais nada, beber,
comer, ter um teto onde se abrigar, vestir-se etc. O primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios que permitem
satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; trata-se de um fato histórico; de uma condição
fundamental de toda a história, que é necessário, tanto hoje como há milhares de anos, executar, dia a dia, hora a
hora, a fim de manter os homens vivos. (Karl Marx, “A Ideologia Alemã”)

“O trabalhador é tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais cresce sua produção em potência e em
volume. O trabalhador converte-se numa mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadorias produz. A
desvalorização do mundo humano cresce na razão direta da valorização do mundo das coisas. O trabalho não apenas
produz mercadorias, produz também a si mesmo e ao operário como mercadoria, e justamente na proporção em que
produz mercadorias em geral.” (Karl Marx, “Manifesto”)

2.4 Fordismo/taylorismo: organização do trabalho e produção em massa


. Ford: produção e consumo em larga escala (produção em série).
. Taylor: racionalização do processo produtivo, princípios científicos.

. Modelos de gestão e estratégias para aumento da produtividade:


. controle da atividade, divisão de tarefas
. mecanização (linha de montagem)
. sistema de recompensas e punições
. hierarquia, impessoalidade, administração profissional
. especialização e treinamento dos operários etc.

Na minha vida de fábrica, foi uma experiência única. [...] para mim pessoalmente, veja o que significou o trabalho na
fábrica. Mostrou que todos os motivos exteriores (que antes eu julgava interiores) sobre os quais, para mim, se
apoiava o sentimento de dignidade, o respeito por mim mesma, em duas ou três semanas ficaram radicalmente
arrasados pelo golpe de uma pressão brutal e cotidiana. E não creio que tenham nascido em mim sentimentos de
revolta. Não, muito ao contrário. Veio o que era" a última coisa do mundo que eu esperava de mim: a docilidade.
Uma docilidade de besta de carga resignada. Parecia que eu tinha nascido para esperar, para receber, para executar

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ordens - que nunca tinha feito senão isso - que nunca mais faria outra coisa. Não tenho orgulho de confessar isso. É
a espécie de sofrimento que nenhum operário fala; dói demais, só de pensar. [...]Dois fatores condicionam esta
escravidão: a rapidez e as ordens. A rapidez: para alcançá-la, é preciso repetir movimento atrás de movimento, numa
cadência que, por ser mais rápida que o pensamento, impede o livre curso da reflexão e até do devaneio. Chegando-
se à frente da máquina, é preciso matar a alma, oito horas por dia, pensamentos, sentimentos, tudo. [...] As ordens:
desde o momento em que se bate o cartão na entrada até aquele em que se bate o cartão na saída, elas podem ser
dadas, a qualquer momento, de qualquer teor. E é preciso sempre calar e obedecer. A ordem pode ser difícil ou
perigosa de se executar, até inexequível; ou então, dois chefes dando ordens contraditórias; não faz mal: calar-se e
dobrar-se. [...] Engolir nossos próprios acessos de enervamento e de mau humor; nenhuma tradução deles em
palavras, nem em gestos, pois os gestos estão determinados, minuto a minuto, pelo trabalho. Esta situação faz com
que o pensamento se dobre sobre si, se retraia, como a carne se retrai debaixo de um bisturi. Não se pode ser
'consciente’” (WEIL, Simone. Carta a Albertine Thévenon (1934-5). In: 8051, Edéa (org.). A condição operária e
outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 65.)

3. Legislação trabalhista e proteção do trabalho


. trabalho: fonte de dignidade e estabilidade social
. legislação trabalhista: fruto de lutas e conquistas históricas
. trabalho e direitos sociais: diminui as desigualdades do sistema capitalista

3.1. Brasil: CLT (Anos 1930): legislação tardia


. herança escravocrata: dificuldades de se garantir direitos
. anos 1970: movimento sindical → avanços na Constituição de 1988
. hoje: neoliberalismo e flexibilização das leis trabalhistas
. hoje: aumento da precarização e persistência do trabalho escravo

4. Pós-fordismo e a acumulação flexível: flexibilização de direitos

. Anos 70: maior produtividade e expansão do lucro.


. Flexibilização dos processos: automação e flexibilização de funções

. Flexibilização do mercado de trabalho: doméstico, familiar, autônomo, temporário, terceirizado


. instabilidade, insegurança, alta rotatividade e precarização
. retrocesso na organização sindical e redução de direitos trabalhistas.

A Nike é acusada de vender tênis produzidos em países asiáticos por mão-de-obra


aviltada. Um levantamento feito junto a quatro mil trabalhadores de nove das 25
fábricas que servem à empresa na Indonésia revelou que 56% dos trabalhadores
queixam-se de insultos verbais, 15,7% das mulheres reclamam de bolinas e 13,7%
contam que sofreram coerção física no serviço. Esse estudo foi realizado sob o
copatrocínio da própria Nike. Outro levantamento, feito no Vietnã, mostrou que os
trabalhadores ganham US$ 1,60 por dia e teriam que gastar US$ 2,10 para fazer
três refeições diárias. Banheiros, só uma vez por dia. Água, duas vezes. O
descumprimento das normas de uso do uniforme é punido com corridas
compulsórias. Em outros casos, o trabalhador é obrigado a ficar de castigo,
ajoelhado. A fábrica da localidade de Sam Yang trabalha 20 horas por dia, tem seis
mil empregados, mas o expediente do médico é de apenas duas horas diárias. (Elio
Gaspari, “O micreiro do MIT pegou a Nike”, Folha de S. Paulo,4/3/2001.)

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5. A uberização das relações de trabalho
. Tecnologia, crises e redução de mão de obra: grande contingente de desempregados
. Monopólios: poucas e grandes empresas dominam o mercado
. Aplicativos e plataformas digitais → uberização = flexibilização radical das garantias

. Características da uberização
. desregulamentação total das relações com os trabalhadores
. Infraestrutura necessária: responsabilidade dos trabalhadores
. trabalhadores → “parceiros”, “colaboradores”
. despesas por conta dos “parceiros”: celular, combustível, reparos, seguros, tributos etc
. Brasil: repasse de 20% e 30% dos valores cobrados aos clientes

. Sistema de exploração “total” do trabalho:


. jornadas excessivas (sem regulação)
. superiores a 12 horas diárias
. sem fiscalização do Estado
. sem instituição de defesa de direitos
. banalização/precarização total

Essa forma que nós hoje denominamos como


“uberização do trabalho” é o mascaramento de relações
assalariadas, que assumem a aparência do trabalho do
empreendedor, do trabalho do prestador de serviços, dos
trabalhos desprovidos de direitos. Nós vimos recentemente a
morte de um trabalhador que estava entregando alimentos do
Rappi. Quando ele começou a se sentir mal, não teve nenhum
tipo de atendimento digno dentro da empresa para a qual
estava entregando aquilo que foi solicitado a essa empresa,
não teve atendimento por parte do serviço público de saúde, e
essa é a tragédia dos trabalhadores, digamos assim,
“uberizados”. São trabalhadores que seguem o que na
Inglaterra se chama “o contrato de zero hora” (“zero-hour
contract” em inglês; ou os “recibos verdes” em Portugal; ou o
que existiu na Itália até 2017: o trabalho pago por voucher).
São modalidades de trabalho intermitente, em que os
trabalhadores são chamados a trabalhar, e só recebem por
aquelas horas que trabalham. O tempo que eles ficam esperando, eles não trabalham. Os direitos desaparecem,
porque se desvanece a figura do trabalhador ou da trabalhadora, e se faz aflorar a falsa ideia de um empreendedor,
de um PJ, de um trabalhador que é dono do seu instrumental de trabalho, e isso faz com que a degradação da vida
no trabalho no capitalismo do nosso tempo chegue a um patamar que se assemelha, em plena era informacional-
digital, à era da revolução industrial. É por isso [...] que nós estamos vivendo uma era de escravidão digital. O mundo
maquínico informacional-digital, ao invés de trazer a redução do tempo de trabalho, as melhores condições de
trabalho, mais tempo de vida fora do trabalho, menos penúria no trabalho, tem sido o oposto. Por quê? Isso é muito
importante: porque se trata de uma tecnologia que não tem valores humanos ou societais. O mundo informacional
do nosso tempo, do qual a indústria 4.0 é o seu pretenso ápice, não tem um sentido humano ou societal, e sim um
sentido de valorizar, ampliar a riqueza das grandes corporações. O resultado disso é que nós temos uma
heterogeneidade muito grande do trabalho, mas com um traço em comum: a homogeneização que caracteriza esse
mosaico de trabalhos distintos, que é a tendência à precarização. Esse vai ser, digamos assim, o ponto mais
importante nas lutas do nosso tempo. (Ricardo Antunes, “Uberização do Trabalho”, entrevista www.ihu.com.br)

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6. Textos complementares
6.1. O trabalho em Durkheim, Weber e Marx
Durkheim concentra sua atenção na divisão do padrões éticos. Ela, contrariamente, estaria agora associada tão
trabalho. (...) Essa divisão seria responsável pelo desenvolvimento somente a “paixões puramente mundanas”. Ao longo do tempo,
de uma sociedade diferenciada internamente. Para Durkheim, o encontro formador da sociedade capitalista perdeu seu sentido
quanto mais especializado é o trabalho, mais laços de original e o lucro capitalista passou a dirigir as sociedades
dependência se formam. Assim, quanto mais profunda for a contemporâneas.
divisão do trabalho, maior será a teia de relações de dependência Para Marx, cada sociedade é marcada por um tipo
entre os indivíduos (um padeiro depende de um agricultor, que específico de organização do trabalho. Marx concentra sua
depende de um ferreiro, e assim por diante). Isso levará, por análise nessas formas históricas de trabalho, particularmente, no
consequência, a uma maior coesão social. A divisão do trabalho, trabalho assalariado. Para Marx, o trabalho assalariado é uma
na concepção de Durkheim, é um fato social presente em todos manifestação histórica da organização do capitalismo como
os tipos de sociedade. Há sociedades com menor ou maior divisão sociedade. Com base na exploração do trabalho, por meio do
do trabalho, mas em todas elas são encontradas funções pagamento de salários, como veremos adiante, a sociedade
diferenciadas entre os indivíduos, o que os divide em grupos capitalista produz e reproduz sua existência. Ou seja, o trabalho
funcionais distintos com condutas sociais também distintas. Nas assalariado é uma atividade central para a perpetuação das
sociedades capitalistas, o trabalho é pensado como uma relações sociais entre capitalistas e trabalhadores e, por
atividade funcional que deve ser exercida por um grupo consequência, da exploração e dominação do trabalhador pelo
específico: os trabalhadores. Durkheim entende a divisão social capitalista. Para Marx, a divisão em classes sociais no capitalismo
entre trabalhadores e empregadores como uma divisão funcional. constituiu-se com base na retirada, pela burguesia nascente no
Divisão entre aqueles que devem cumprir uma atividade de século XVIII, dos meios de produção (terras, ferramentas, animais,
organização da produção e mando (os empregadores) e os que etc.) dos pequenos produtores livres. Com isso, formaram-se a
devem desenvolver uma atividade produtiva (os trabalhadores). burguesia (ou classe capitalista) e o proletariado (ou classe
Essa divisão, como extensão da divisão do trabalho, promove a trabalhadora), classes fundamentais do capitalismo. A
coesão social e, por isso, deve ser preservada socialmente. No reprodução dessa divisão social se dá com base na exploração do
entanto, nessa divisão há problemas que Durkheim vê como trabalho assalariado que o trabalhador vende para o capitalista
doenças sociais a serem corrigidas para que o todo social se em troca de um salário. À primeira vista, o trabalho assalariado
desenvolva adequadamente. Se há excessos por parte de pode ser considerado como atividade que é vendida pelo
capitalistas ou de trabalhadores, deve-se regulamentar suas trabalhador em troca de um salário pago pelo capitalista. No
atividades a fim de alcançar o equilíbrio e garantir a integração entanto, Marx assinala que essa troca, apesar de aparentar uma
social das partes envolvidas. Dessa maneira, o lema de Durkheim igualdade, na prática se dá de forma desigual. Do ponto de vista
prevalece: as partes (os indivíduos) devem submeter-se de modo das leis, regras, normas sociais que foram construídas
a garantir a permanência do todo (a sociedade). De um lado, o historicamente a favor da classe dominante (a burguesia), essa
capitalista não se deve deixar levar pelo egoísmo do lucro troca aparenta ser igualitária. Por exemplo, o capitalista tem um
exacerbado, de outro, o trabalhador não deve questionar sua capital (dinheiro) e com esse capital monta um negócio. Para isso,
funcionalidade dentro da divisão do trabalho. precisa contratar certo número de trabalhadores.
Para Weber, (...) especificidade do capitalismo, Aparentemente, o capitalista oferece trabalho e o trabalhador
segundo ele, está no encontro entre o “espírito” capitalista, de pode aceitar ou não esse trabalho. No entanto, como salientou
obter sempre mais lucros, e uma ética religiosa fundamentada em Marx, devemos considerar a desigualdade histórica dessa relação
uma vida regrada, de autocontrole, que tem na poupança uma de de troca. A constituição da classe trabalhadora como classe a
suas características centrais. Nesse encontro entre o espírito obriga a vender seu trabalho. Porém, o trabalhador não poderia
capitalista e a ética protestante, que se deu em determinadas rejeitar o trabalho? De maneira individual sim! Mas, se pensarmos
partes da Europa e também nos Estados Unidos, o trabalho ocupa no conjunto da classe trabalhadora, não. A classe trabalhadora é
lugar central. Para o praticante do protestantismo, o sucesso nos forçada a vender seu trabalho porque teve seus meios de
negócios é um sinal de ter sido escolhido por Deus. O trabalho produção tomados historicamente pelos capitalistas. Se não tem
árduo e disciplinado e uma vida regrada e sem excessos podem como produzir sua subsistência por conta própria, a classe
lhe trazer o êxito profissional, expressão de sua fé e salvação trabalhadora se vê forçada a vender seu trabalho em troca de um
espiritual. Weber observou que a formação do capitalismo teve salário, caso contrário não teria como sobreviver. Nossa vida na
como característica fundamental essa ação social orientada por sociedade capitalista depende, portanto, da exploração do
um objetivo racional. Isto é, uma ação ascética que, quando trabalho assalariado. Aquilo que comemos, bebemos, vestimos,
resulta em êxito em sua vida material, garante ao indivíduo a tocamos, assistimos, consumimos, em geral é fruto desse tipo de
segurança de ter sido escolhido por Deus. O encontro entre uma trabalho.
ética religiosa e um espírito empreendedor teria possibilitado a
formação histórica do capitalismo. Entretanto, a procura da (Fonte: Machado, I et ali “Sociologia Hoje”)
riqueza que Weber já via em sua época não seria mais guiada por

6.2 Transformações do trabalho no capitalismo contemporâneo


Para entender as transformações recentes no mundo compensado, em parte, pela criação de novas necessidades e
do trabalho, é preciso mencionar três fenômenos distintos e serviços. Essa tendência ainda não foi capaz de relegar a segundo
complementares. Em primeiro lugar, tem relação com a própria plano a produção de bens do setor industrial e agrícola como
evolução do capitalismo que tende, pelo avanço do progresso fonte de criação de riqueza.
técnico, a produzir uma quantidade maior de bens e serviços com Em segundo lugar, o trabalho foi fortemente
um número cada vez menor de trabalhadores. É um processo que impactado pela introdução de novas tecnologias e mudanças na
ocorre de forma mais intensa no setor produtivo, que vai sendo organização do trabalho, denominada de reestruturação

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produtiva. À medida que o processo de trabalho e a gestão de financeira, os sindicatos perdem força por causa do contexto
pessoal foram sendo redesenhados no interior das empresas, os desfavorável, da mudança no perfil da classe trabalhadora e da
antigos mecanismos coletivos de resolução de conflitos foram crise de representatividade da instituição. As estratégias de ação,
dando lugar a procedimentos individualizados e aumentou a nesse cenário, foram variadas, dependendo das concepções
concorrência entre os trabalhadores. Ao mesmo tempo, à medida políticas, do grau de organização e da capacidade de preservação
que se impôs a flexibilidade da produção e as estratégias de sua força. Mas, no geral, as diferentes estratégias não foram
empresariais foram requerendo uma adaptação constante às capazes de contrapor a tendência de flexibilização das relações
novas condições do mercado, aumentou a insegurança quanto ao de trabalho, apesar de também terem ocorrido movimentos de
futuro, diminuiu a possibilidade de planejar no longo prazo e foi resistência. Assim, as transformações colocam novos desafios
exigido um caráter flexível dos trabalhadores. A instabilidade dos para o agir coletivo dos trabalhadores. Coloca-se a necessidade
vínculos de emprego, a pressão por aumento de produtividade, a de repensar as formas de organização e de atuação dos
modulação da jornada de trabalho e os comportamentos sindicatos, incorporando novas demandas na sua agenda e novas
acirradamente competitivos tornaram o ambiente de trabalho formas de organização para representar uma classe trabalhadora
muito mais estressante, causando dificuldades de muito mais segmentada e pulverizada.
relacionamento pessoal e reforçando a propensão a doenças Outra dimensão a ser considerada é que a produção de
profissionais e a problemas psicológicos, como a depressão. bens e serviços "imateriais" e a introdução de formas flexíveis de
Em terceiro lugar, as duas mudanças acima se organização do trabalho propiciaram a difusão de um discurso
desenvolveram, a partir da crise dos anos 70, em um ambiente que enfatiza o surgimento de uma nova subjetividade do
político e econômico muito desfavorável ao trabalho. Em trabalho, que tende a não valorizar a organização coletiva.
conjunto com um processo de abertura e desregulamentação Muitas empresas desenvolvem estratégias que afirmam valorizar
econômica também adveio a pressão pela flexibilização das mais o conhecimento, a criatividade, a adaptabilidade e a
relações de trabalho, que torna o emprego mais incerto, inseguro capacidade de resolver problemas de seus empregados. Ao
e precário. É fundamental destacar que as mudanças acima mesmo tempo, esse novo tipo de trabalhador passou a ser visto
ocorreram, com exceção dos cinco anos anteriores à atual crise, como o protótipo de uma maior liberdade e autonomia. Contudo,
em um ambiente de baixo e instável crescimento econômico na mesmo entre os trabalhadores inseridos no núcleo mais estável e
maior parte dos países, o que contribuiu de forma bastante protegido, que têm acesso aos novos conhecimentos, parece
decisiva para a deterioração do mercado de trabalho, predominar uma subordinação completa à empresa e à
especialmente com a elevação do desemprego e da racionalidade econômica que rege os mercados e a vida
informalidade. produtiva.
Portanto, as transformações no mundo do trabalho Em suma, nas últimas décadas, à medida que a maneira
são, ao mesmo tempo, consequência e sustentáculo de mudanças de produzir e distribuir tais bens e serviços foi se alterando,
mais gerais que vão ocorrendo na política, na economia e na também foram se modificando os modos de viver, as
sociedade. Ou seja, as transformações no mundo do trabalho não representações sociais a respeito das ocupações, o valor moral
são mera consequência de um novo padrão tecnológico, mas são atribuído às práticas laborais, assim como a capacidade de
determinadas socialmente. A adaptabilidade das normas coloca reivindicação dos trabalhadores.
a demanda por procedimentos que facilitem a alteração das Por sua vez, a construção de identidades sociais deixou
condições que regem o trabalho, pois na lógica de um capitalismo de se fundamentar, de forma predominante, no exercício de uma
sob a dominância do capital financeiro prevalece a dimensão do profissão e a separação entre uma cultura operária e uma cultura
curto prazo, exigindo também uma flexibilidade do trabalho. Em burguesa perdeu sua nitidez, ao longo do século passado. À
um capitalismo desregulado, tende a prevalecer a fluidez e a medida que avançou o que se pode denominar "cultura de
efemeridade, que passam a não só reger a produção de bens como consumo", os indivíduos foram convencidos de que podiam
também a influenciar os valores da sociedade. Nessa ordem, a adquirir (ou trocar) os atributos necessários para formar a
confiança, a lealdade e o compromisso mútuo são princípios identidade desejada. No processo complexo de definição das
corroídos pelo avanço da razão econômica. A própria gestão da identidades passou a ser enfatizada, pela publicidade, a escolha
força de trabalho segue os preceitos dos valores associados ao individual. Contudo, o trabalho permanece sendo uma referência
curto prazo: a flexibilidade, a autogestão da carreira, o estímulo primordial para o sentimento de integração no corpo social e a
ao risco, a cooperatividade superficial e o desapego. esfera do trabalho continua desempenhando um papel central na
As transformações vão estabelecendo uma formação da identidade contemporânea. São mudanças que
reconfiguração dos que vivem do trabalho, entre os quais se tendem, pelas novas circunstâncias políticas e culturais, a
destacam a diminuição do operariado, o crescimento dos produzir uma menor solidariedade entre as pessoas e uma menor
trabalhadores no setor de serviços, a subcontratação e a coesão social. Se a afirmação dos direitos do trabalho havia
organização em rede. Mudanças que nem sempre significam uma ajudado a construir a cidadania, é possível dizer que a polarização
valorização das ocupações. Pelo contrário, estão produzindo uma do mercado de trabalho, a fragilização do movimento sindical e a
maior segmentação e pulverização dos trabalhadores. Nesta fragmentação dos interesses coletivos ameaçam a manutenção
perspectiva, a tendência é constituir uma polarização social, em ou consolidação do que hoje se entende por democracia.
dois sentidos. Por um lado, há a criação de forma minoritária de Portanto, há a combinação de transformações
ocupações, que exigem maiores qualificações e competências, em estruturais na forma de organizar a produção de bens e serviços
contraposição a um expressivo incremento de empregos (com uma consequente reconfiguração do mundo do trabalho)
taylorizados e pouco qualificados, denominados de "mac jobs". com a adoção de políticas que foram redefinindo o papel do
Ou seja, há ocupações mais próximas do que muitos teóricos Estado e que foram gerando um mercado de trabalho mais
chamam de sociedade do conhecimento, com outras com baixo inseguro e precário. Dessa forma, a atual crise coloca em
conteúdo profissional, repetitivas e pouco criativas. Por outro questionamento a atual ordem social e política, abrindo a
lado, a própria desigualdade de renda permite a reprodução possibilidade de repensar a vida em sociedade e de constituir as
dessa lógica, ao permitir que os com maior renda possam bases para transformações mais profundas, que sejam capazes de
contratar uma série de serviços oferecidos pelos que não têm combinar o desenvolvimento social com o respeito ao meio
muita alternativa na dinâmica atual do mercado de trabalho. ambiente e a redistribuição do trabalho útil na sociedade.
Outra consequência é a menor capacidade dos
sindicatos em intervir na determinação das condições de uso, José D Krein e Marcelo Weishaupt Proni IE-Unicamp
contratação e remuneração do trabalho. Na era da globalização

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6.3 - “Uberização” do trabalho: caminhamos para a servidão, e isso ainda será um privilégio.
O sociólogo Ricardo Antunes é um incansável pensador sobre o trabalho. Os trabalhadores e as trabalhadoras sabem que para
mundo do trabalho. Pós-doutor pela Universidade de Sussex sobreviver trabalhando numa empresa como Uber, Cabify, 99,
(Inglaterra) e professor titular de Sociologia do Trabalho na Rappi e todas as outras que nós não paramos de ver crescer, eles
Unicamp, perdeu a conta dos artigos científicos, capítulos, e, têm que trabalhar 10, 12, 14, 16, às vezes 18 horas por dia. Isso
claro, livros lançados no Brasil e no exterior ao longo de sua coloca uma questão fundamental: não é possível aceitar.
carreira acadêmica. Publicações em que aprofunda análises sobre
as dinâmicas, contradições e opressões do mercado de trabalho E como é que é possível lutar contra esses efeitos? Primeiro:
nas últimas décadas. O livro mais recente tem no título o que retomar as questões vitais. O trabalho deve ter, na medida em
pode ser tomado, dentro de uma relação de trabalho, como uma que ele se constitui numa atividade vital, elementos de dignidade,
ironia ou provocação ao lado mais forte da corda (o do que essa nova modalidade de trabalho não apresenta. Segundo:
empregador), em razão das agruras a que vem submetendo o lado não é possível aceitar a corrosão, a derrelição, a devastação cabal
mais fraco dela (naturalmente, o do empregado). Relação, a dos direitos do trabalho.
propósito, em condições flagrante e abertamente
desequilibradas, dada a situação dos agonizantes direitos Nós acabamos de ver no Congresso essa medida horrorosa da
trabalhistas, atacados em múltiplas frentes (...). Em tempos do chamada liberalização econômica, em que, de sopetão, algumas
que o sociólogo chama de “uberização” do trabalho, “se homens dezenas de artigos da CLT estão sendo fraudados novamente. O
e mulheres tiverem sorte hoje, o seu trabalho será precário”. Brasil está se convertendo numa Índia. Esse monumental país da
Serão servos, e isso ainda assim será um privilégio, em Ásia, com mais de um bilhão de habitantes, tem centenas de
comparação com o desastre ainda maior, que é o do desemprego. milhões de trabalhadores desempregados. E mais: a Índia tem um
Entrevista exclusiva ao Congresso em Foco. contingente imenso de indivíduos que estão abaixo da linha
mínima da dignidade humana. São pessoas que vivem um padrão
O livro expõe as vísceras do que chama de “uberização” do de vida típico de um indivíduo que tenta sobreviver na indigência.
trabalho, processo que talvez devesse suscitar um urgente O Brasil caminha tragicamente para esse quadro de indigência
debate sobre consciência de classe, dada a precarização a que tipifica a Índia, e não é por acaso. Tanto lá na Índia como aqui,
que esses trabalhadores estão submetidos. Mas como fazer há uma burguesia riquíssima, que não tem limites em se expandir.
esse debate e promover uma luta contra esses efeitos, Basta dizer que os cinco maiores e mais ricos empresários
quando esse trabalho precarizado é tudo o que restou para brasileiros recebem uma renda que se aproxima àquela que é
tantos trabalhadores brasileiros? Essa forma que nós hoje produzida por 100 milhões de pessoas no mesmo país. É esse nível
denominamos como “uberização do trabalho” é o mascaramento de tragédia social que nós não podemos aceitar.
de relações assalariadas, que assumem a aparência do trabalho
do empreendedor, do trabalho do prestador de serviços, dos Na obra, você mostra que também a classe média estaria num
trabalhos desprovidos de direitos. Nós vimos recentemente a processo de corrosão, que a aproxima mais do proletariado
morte de um trabalhador que estava entregando alimentos do do que da elite, dando como exemplo profissões outrora
Rappi. Quando ele começou a se sentir mal, não teve nenhum tipo elitizadas, mas que já começaram a enfrentar a precarização
de atendimento digno dentro da empresa para a qual estava (como médicos e advogados). A falta de consciência de classe
entregando aquilo que foi solicitado a essa empresa, não teve também está presente entre esses? A primeira questão
atendimento por parte do serviço público de saúde, e essa é a importante aí é que a consciência de classe é algo que articula
tragédia dos trabalhadores, digamos assim, “uberizados”. São elementos objetivos e subjetivos. Por exemplo: a “uberização” do
trabalhadores que seguem o que na Inglaterra se chama “o trabalho leva à fragmentação, à intensificação do trabalho, à
contrato de zero hora” (“zero-hour contract” em inglês; ou os exploração, à individualização, mas, num dado momento, esse
“recibos verdes” em Portugal; ou o que existiu na Itália até 2017: processo, essa intensidade, esse ritmo e essa superexploração do
o trabalho pago por voucher). São modalidades de trabalho trabalho acabam gerando formas de solidariedade, de
intermitente, em que os trabalhadores são chamados a trabalhar, sociabilidade, que resultaram, em meados de maio deste ano, na
e só recebem por aquelas horas que trabalham. O tempo que eles primeira paralisação global da Uber. As classes médias são um
ficam esperando, eles não trabalham. Os direitos desaparecem, contingente social heterogêneo. As classes médias mais altas, que
porque se desvanece a figura do trabalhador ou da trabalhadora, vivem estritamente do trabalho intelectual, já não têm mais as
e se faz aflorar a falsa ideia de um empreendedor, de um PJ, de mesmas condições sociais do passado. Hoje você tem médicos que
um trabalhador que é dono do seu instrumental de trabalho, e estão proletarizados, que trabalham em várias empresas
isso faz com que a degradação da vida no trabalho no capitalismo fornecedoras de serviços de saúde (convênios). Nós temos
do nosso tempo chegue a um patamar que se assemelha, em advogados hoje que trabalham como “sócios” de escritórios. Se
plena era informacional-digital, à era da revolução industrial. É eles não levam trabalho para esse escritório e não realizam esses
por isso que eu digo no meu livro que nós estamos vivendo uma trabalhos, não recebem. É uma espécie de trabalhador que tem
era de escravidão digital. O mundo maquínico informacional- que buscar o seu trabalho. Para poder vendê-lo. Para depois
digital, ao invés de trazer a redução do tempo de trabalho, as poder sobreviver. Tudo isso cria dificuldades com relação à
melhores condições de trabalho, mais tempo de vida fora do consciência de classe. Ela decorre também do espírito do tempo,
trabalho, menos penúria no trabalho, tem sido o oposto. e o espírito do nosso tempo é de devastação, de contrarrevolução,
Por quê? Isso é muito importante: porque se trata de de neoliberalização, de financeirização. Nós estamos vivendo
uma tecnologia que não tem valores humanos ou societais. O uma etapa difícil da história mundial.
mundo informacional do nosso tempo, do qual a indústria 4.0 é o
seu pretenso ápice, não tem um sentido humano ou societal, e sim Os anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e especialmente o ano de
um sentido de valorizar, ampliar a riqueza das grandes 2013 foram de rebeliões. Começou pela Tunísia, esparramou-se
corporações. O resultado disso é que nós temos uma por todo o Oriente Médio, Egito e tantas outras partes; rebeliões
heterogeneidade muito grande do trabalho, mas com um traço na Europa, como na França, na Inglaterra, na Grécia, em Portugal,
em comum: a homogeneização que caracteriza esse mosaico de na Espanha; o Occupy Wall Street nos EUA. Houve um conjunto
trabalhos distintos, que é a tendência à precarização. Esse vai ser, de descontentamentos, revoltas e rebeliões.
digamos assim, o ponto mais importante nas lutas do nosso
tempo. Nós vimos em maio deste ano uma primeira paralisação, De algum modo, [os atos] foram se escasseando, foram se
uma primeira greve de amplitude global dos trabalhadores e das exaurindo, e, a essa era de rebeliões, sucedeu-se uma era de
trabalhadoras da Uber. Naturalmente, que ninguém possa contrarrevoluções. Isso se expressa politicamente na vitória da
esperar que a primeira greve seja a mais potente de todas, mas direita e da extrema-direita em várias partes do mundo, como um
ela é um exemplo de descontentamento frente a esse tipo de desencanto com o período anterior. Não é a direita que está

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sendo vitoriosa. É a extrema-direita, como nós estamos vendo de um sistema previdenciário minimamente digno e justo.
inclusive no caso brasileiro.(...) Transferi-lo para o mercado, pela via medonha da capitalização,
e, desse modo, fazer com que os trabalhadores e as trabalhadoras
Mesmo com toda a aridez da realidade que traz em seu livro, tenham que pagar, sem a presença do patronato e sem a presença
você demonstra algum otimismo, ao dizer que não imagina do Estado. Pela via da capitalização, como se os trabalhadores e
que a história do trabalho terminará nos parâmetros de hoje. as trabalhadoras pudessem fazer poupanças “poupudas” para o
Que horizonte vislumbra à frente e, antes disso, como os seu futuro, se quiserem ter previdência. [Nesse ponto, Ricardo
trabalhadores de agora conseguirão vencer essa conjuntura Antunes lembra que a proposta da capitalização está, por ora,
tão nefasta? O genial dos processos históricos, da construção afastada, mas não duvida de que a ideia possa ser recuperada
humana ao longo da história, é que ela é imprevisível. Nós tivemos adiante]. É evidente que há um ponto crucial nessa reforma, que
depois da era das trevas da Idade Média um período espetacular é pouco tratado: se no Brasil, expande-se hoje o trabalho
do Renascimento. Depois da era feudal, do obscurantismo da intermitente; se no Brasil, generalizou-se o trabalho flexível; se
igreja durante a Idade Média, dos governos absolutistas no Brasil, generalizou-se o espaço da terceirização, que é, em si e
profundamente autocráticos, nós tivemos a Revolução Francesa, por si, o espaço da burla, como é que eu posso imaginar que os
com a liberdade, a igualdade e a fraternidade, com lutas sociais. trabalhadores e as trabalhadoras mais pobres, das cidades, do
Depois do fracasso da Revolução Francesa, nós tivemos as campo, possam tirar recursos para capitalizar, para fazer uma
revoluções de 1848 e a eclosão da Comuna de Paris, em 1871. Ou poupança capitalizada? Quantos anos os trabalhadores terão que
seja, a história é imprevisível, e não é possível que no caso viver para se aposentar, se o seu trabalho é intermitente? Se ora
brasileiro, 30 milhões de trabalhadores sem emprego ou com trabalha e ora não trabalha? Quantos anos vão ter que trabalhar,
emprego precarizado, uma taxa de informalidade explosiva, uma ou vão ter que pagar sem receber? Então, a reforma da
corrosão completa dos direitos sociais, a perda dos direitos previdência na verdade é o fim da previdência pública no Brasil.
previdenciários... É impossível imaginar que essa sociedade não As classes médias vão se virar com a capitalização, e as classes
tenha força para se rebelar. Que horizonte eu vislumbro? ricas, as classes burguesas, essas não precisam de previdência. A
Florestan Fernandes falava de uma era de contrarrevolução sua previdência está garantida pelos bancos que têm, pelas
preventiva (quando não há o risco das revoluções). É o período em indústrias, pelas fazendas, pelas fábricas, pelo comércio, pelas
que as classes dominantes se reorganizam e fazem uma era de propriedades em geral que têm. O elemento mais nefasto dessa
devastação. Mas também a era das contrarrevoluções é finita. reforma é como tornar previdente o trabalho intermitente.
Não há na história um período eterno. E o que é mais importante:
nós adentramos em uma nova era de lutas sociais de tipos Você diz que o livro é uma resposta a um conjunto de
diferentes. Nós não temos mais a mesma classe trabalhadora que mudanças que estão ocorrendo no mundo do trabalho nas
tínhamos nos séculos XVIII e XIX, seja nos EUA, seja na Europa, últimas quatro décadas. Que mudanças são essas, e, mais do
seja na China, seja na Índia, seja no Brasil. Mas nós temos uma que isso, que resposta a sua análise nos traz? As mudanças que
nova morfologia da classe trabalhadora, em que, por exemplo, a vêm ocorrendo no mundo do trabalho decorrem de um processo
explosão do proletariado de serviços da era digital é o elemento que se inicia com a crise estrutural de 1973, portanto, algumas
quantitativa e qualitativamente mais importante. Esse novo décadas atrás, quando o padrão taylorista e fordista (a grande
proletariado de serviços das empresas de call-center, fábrica, a grande indústria, a grande empresa, que teve vigência
telemarketing, hipermercados, fast-food, indústria de turismo, e dominância no século XX) entrou em processo de crise profunda.
indústria hoteleira, motoboys; essa massa de trabalhadores que Ela foi substituída pela concepção de uma chamada “empresa
hoje está uberizada, trabalhando em empresas sob as condições enxuta” (em inglês, “lean production”). Uma empresa onde cada
mais violentas; é evidente que está nascendo aí um novo vez mais o trabalho vivo é retraído, e cada vez mais se expande o
contingente heterogêneo dentro da classe trabalhadora, e que trabalho morto, o maquinário informacional digital. E a partir daí,
vai ser responsável por muitas lutas sociais. Para quem olha a desenvolve-se um processo de computadores, smartphones, essa
história, não para os últimos cinco anos, mas olha a história por miríade de equipamentos do chamado mundo informacional
um longo e amplo período, para quem olha a história na digital, que não para de se expandir, porque ele é comandado pelo
amplitude que ela tem, a história não é nem linear, nem estável, capital financeiro e pela necessidade das grandes corporações
mas o mais espetacular dela é a sua imprevisibilidade. Quem globais. Dez, quinze, vinte grandes corporações globais, que
podia imaginar que a China, um país enorme, que fez uma impulsionam esse processo, naquilo que o Karl Polanyi chamava
revolução camponesa e popular em 1949, liderada por um partido de um “moinho satânico”, e o resultado disso é o plano da classe
comunista, e que num primeiro ciclo tentou instaurar um modelo trabalhadora em escala global: mais informalidade, mais
autárquico, fechado, depois de 20 ou 30 anos passasse por um flexibilidade, mais precarização. A indústria 4.0, por exemplo, que
processo que fez com que se tornasse um país que hoje disputa no é a proposta que está sendo hoje apresentada em todos os cantos
mundo global o papel de grande potência capitalista? Eu não vou do mundo vai consolidar esse projeto. Tal como ela está sendo
discutir aqui o caráter da China, mas imaginar que a China seja proposta, ela terá como consequência a criação de um núcleo
hoje uma potência socialista... É preciso uma dose razoável de pequeno de novos trabalhos, aqueles mais sintonizados com as
otimismo para ver o socialismo onde a exploração do trabalho é tecnologias de informação e comunicação, e uma destruição em
intensa, a destruição ambiental é intensa, as lutas sociais são massa, em escala monumental, profunda nos países capitalistas
intensas... Ou seja, o mundo é imprevisível. É isso que permite que do norte e mais profunda ainda nos países capitalistas do sul,
o otimismo seja um traço da minha perspectiva, mesmo quando a daquele conjunto de empregos que vão ser substituídos pela
análise que eu faço do cenário global seja dura e pessimista. internet das coisas, pela inteligência artificial, pela impressão 3D,
pelo big data, ou seja, esse arsenal tecno-informacional-digital,
(...) Você aponta a inviabilidade do modelo de trabalho que, se fosse voltado para o atendimento das necessidades
intermitente, por não permitir qualquer perspectiva de humano-sociais, teria uma resultante. Mas a finalidade desse
futuro. E por falar em futuro, estamos no auge dos debates processo é, na verdade, o avanço das grandes corporações. Eu dou
sobre reforma da previdência. Que leitura faz do projeto em um exemplo: a disputa entre a chinesa Huawei e a Apple norte-
tramitação no congresso? Ele permitirá alguma saída para o americana. Em que isso afeta a humanidade? E o que de positivo
país, como defendem seus autores, ou intensificará as isso traz para a humanidade? Nada. É uma disputa entre quem vai
mazelas do mercado de trabalho adiante? Não paira nenhuma dominar o mundo informacional digital, o mercado consumidor
dúvida nesse ponto. A chamada “Nova Previdência” é o fim da dos smartphones nos próximos anos. E isso, digamos assim, não
previdência pública no Brasil. Ela é a expressão mais pura de um tem significado humano ou societal de grande amplitude.
projeto cujo objetivo principal é tirar do Estado a obrigatoriedade

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