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Para citar esse documento:

MACHADO, Adriana Bittencourt; MARQUES, Luzia Amélia Silva. Imagens


propositivas: o corpo da mulher negra na dança contemporânea. Anais do VI
Encontro Científico da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança - ANDA.
Salvador: ANDA, 2019. p. 1914-1924.

www.portalanda.org.br

1913
IMAGENS PROPOSITIVAS:
O CORPO DA MULHER NEGRA NA DANÇA CONTEMPORÂNEA

Adriana Bittencourt Machado (UFBA)i


Luzia Amélia Silva Marques (UFBA)ii

RESUMO: Esse artigo põe em discussão a condição de existência da mulher negra


artista da dança contemporânea, elucidando a exposição de suas imagens
(BITTENCOURT, 2012), como tensionamentos que invertem lógicas pautadas em
entendimentos embasados na homogeneização do corpo negro, associadas à
desvalorização contínua pela vinculação ao fetiche, que encarcera o corpo da
mulher negra, como objeto de consumo. As imagens geradas na dança fomentam
questões como um espaço de inquietações e não de soluções. São textos em
movimento que se instauram como manifestos políticos/sociais, tendo a arte, a
dança, como seu meio. Interessa-nos considerar as imagens dos corpos de
mulheres negras na dança contemporânea, como errantes e que se declaram
escancarando suas potências. São imagens de resistência aos sedentos fazedores
e controladores de “discursos de verdade” (FOUCAULT, 1996).Faz-se necessário ir
de encontro a categorização do corpo negro, do corpo da mulher negra, uma vez
que a própria categorização cumpre a função de criar estereótipos na dimensão de
uma representação que seja comum a todos os corpos e que se configura como
uma alteridade forjada ou como uma pseudo identidade. Identidades não são
unificadas, sólidas, constantes. Estão constantemente em processos de
transformação. São negociações, “construídas ao longo de discursos, práticas e
posições que podem cruzar ou ser antagônicos” (HALL, 2011, p.108).

PALAVRAS- CHAVE: Dança contemporânea. Imagens. Feminismo Negro. Pós-


colonialidade. Errância.

ABSTRACT:This article discusses the condition of existence of the black female


contemporary dance artists, elucidating the exposition of their images
(BITTENCOURT, 2012), as tensioning that inverts logic based on understandings
based on the homogenization of the black body, associated with the continuous
devaluation by the bonding to the fetish, which has imprisoned the black woman's
body as an object of consumption. The images generated in dance foster questions
as a space of concern, not solutions. They are texts in movement that are
established as political / social manifestos, with art, dance, as their medium. It is
interesting to consider the images of the bodies of black women in contemporary
dance as wandering and that declare themselves to open their powers. They are
images of resistance to the thirsting doers and controllers of "real discourses"
(FOUCAULT, 1996). It is necessary to go against the categorization of the black
body, of the black woman's body, since the categorization itself fulfills the function of
to create stereotypes in the dimension of a representation that is common to all
bodies and which is configured as a forged alterity or as a pseudo identity. Identities
are not unified, solid, constant. They are constantly in process of transformation.
They are negotiations, "constructed along discourses, practices and positions that
can cross or be antagonistic" (HALL, 2011, p.108).

KEYWORDS: Contemporary Dance. Images. Black Feminism. Postcoloniality. 1914


Errância
INTRODUÇÃO

Mulheres negras, por mais que compartilhem o pertencimento do mesmo


grupo cultural, são diversas, com corpos diferentes, identidades múltiplas e as
imagens de seus corpos dançando confirmam isso. Historicamente, têm tido um
papel ativo e essencial na reinvindicação de suas existências, nas lutas por espaços,
nas práticas políticas versus as diferentes formas de exploração que sofreram e
sofrem. No campo das artes, que apresenta narrativas marcadamente masculinas e
brancas, a presença de mulheres negras é caracterizada por gestos de insistência
reivindicando a participação em todos os setores artísticos.

É imprescindível ocupar espaços e nutri-los com novas imagens do corpo


negro procurando dotá-los de diferentes signos que atribuam visibilidade às suas
individualidades. Na dança, suas ocupações ao serem reconhecidas, criam
militâncias poéticas. Mulheres negras configuram um grupo heterogêneo, tendo
como necessidades suas afirmações diante de espaços artísticos cujos modelos
estão ainda fundamentalmente baseados em heranças pautadas numa exclusão
histórica desde a colonização.

Na dança contemporânea, embora esteja, ao menos teoricamente, ancorada


em conceitos de democracia e diversidade, não é muito diferente. Apenas quem não
considera a extensão do racismo nas artes brasileiras é incapaz de perceber os
impactos na dança contemporânea. A mulher negra precisa implodir velhos
conceitos e o habitar, uma vez que seu corpo é atravessado pela intersecção de
diferentes opressões como raça1, gênero, classe e outros. Nesse sentido, é que se
propõe uma aproximação entre o potencial estético e o potencial conceitual, tendo
como substrato o feminismo negro. Não como o que se lança mão para suavizar
através da arte, como uma espécie de eufemismo, mas o que se desnuda e se
enuncia pela dança, como ato performativo.

1
"Raça" e uma construção política e social. E a categoria discursiva em torno da qual se organiza
um sistema de poder sócio econômico, de exploração e exclusão — ou seja, o racismo. Contudo, 1915
como pratica discursiva, o racismo possui uma lógica própria (HALL, 1994, apud HALL, 2012).
Parte-se aqui das imagens do espetáculo “A Luzia”, solo de dança
contemporânea que nasceu da necessidade de borrar fronteiras entre teoria e
prática e propõe investigar o passado, partindo, de uma perspectiva pessoal, do
desejo de oferecer muitos corpos para Luzia e, assim, propor uma reflexão sobre o
percurso das mulheres negras no contexto brasileiro. Dar um salto para traz no
tempo, depois avançar com o intuito de romper com estruturas desumanizadoras,
impostas aos corpos de mulheres negras.

O crânio de Luzia, considerada pelos arqueólogos como a mais antiga


brasileira, e que, tendo seu crânio de aproximadamente 11.500 anos guardado no
Museu Nacional (RJ), precisou resistir ao fogo do descaso da politicagem brasileira.
O crânio de Luzia afronta o fim e segue sua jornada no tempo perseverando na
existência. Mulheres negras consecutivamente lutam para existir como sujeitos de
sua história. São inviabilizadas, desconhecidas, não nomeadas, escondidas embaixo
da poeira de um país encoberto pelo racismo. Dessa forma, investigar as imagens
de configurações de dança como enunciados de mulheres negras é construir um
protagonismo imbricado em tantas outras mulheres negras. A dança
contemporânea só tem a agradecer. A dança como campo de conhecimento ganha
potência.

OLHAR PARA A HISTÓRIA PARA ATIVAR A MEMÓRIA

A história dos corpos de mulheres negras no Brasil principia-se nos forçados


percursos em navios negreiros oriundos dos portos africanos ainda no século XVI.
Corpos viajavam entulhados, amontoados como mercadorias, submetidos às mais
terríveis condições de existência.

Havia lá, no seio do navio balouçado pelo mar, lutas ferozes, uivos de cólera
e desespero. Os que a sorte favorecia nesse ondear de carne viva e negra,
aferravam-se à luz e olhavam a estreita nesga do céu. Na obscuridade do
antro, os infelizes promiscuamente arrumados a monte, ou caíam inânimes
num torpor letal, ou mordiam-se desesperados e cheios de fúrias.
Estrangulavam-se: a um saiam-lhe do ventre as entranhas, a outro
quebravam-se-lhe os membros nos choques dessas obscuras batalhas
(MARTINS APUD RUFINO, 1984, p. 23).

1916
As diásporas2 africanas forçadas para o Brasil ocorreram em proporções
gigantescas. Nós somos o país que por maior tempo e maior quantidade importou
escravos africanos, mais de dez milhões de pessoas foram transladadas, Jogadas
como lixo, mas com função determinada, já que embasada no utilitarismo como
forma de gerar um empreendimento que muito rendeu aos colonizadores. Corpos
negros espoliados por anos a fio, o que gerou ações, entendimentos, segregações,
violências até os dias atuais e desembocando, com a mesma força das correntes
das águas, como nas correntes dos corpos negros, em processos contaminatórios
de exclusão na contemporaneidade, uma vez que se abrigam nos mecanismos e
procedimentos Coloniais.

A escravidão “funcionou como um organizador das desigualdades que até


hoje se perpetuam” (BORGES, 2016, p. 92). Após 130 anos de libertação os
impactos da escravidão sobre os corpos de mulheres e homens negros no Brasil
permanecem intensos. Todavia, esses corpos, sejam nos percursos aterrorizantes
dos navios negreiros, sejam já habitando como dominados em terras brasileiras,
continuamente reivindicam suas existências e suas práticas culturais
particularizadas. Na insistência em existir na resistência, os corpos negros
transformaram-se em propositores de modos de relações sociais, políticas,
intelectuais, artísticas. Tais relações extrapolam os limites impostos por uma
sociedade marcada por diferenças.

A narrativa dos corpos das mulheres negras brasileiras converge na


experiência que absolutamente todas têm, ou seja, se escavarmos profundamente
veremos sem muito esforço, que seus ancestrais viveram experiências terríveis
dentro dos porões pavorosos dos navios negreiros.

O ENCONTRO COM LUZIA

2
O termo diáspora vem originalmente dos estudos judaicos relacionado a migração forçada dos
Judeus por diversas partes do mundo. Aproximadamente no século XIX dar-se início à amplos
debates de autores negros de diversas partes do mundo buscando aproximar essa experiência
específica judaica para experiência experimentada na modernidade por africanos ao longo do mundo,
então começasse a se utilizar o termo diáspora africana para pensar a migração forçada dos povos 1917
africanos para várias partes do mundo.
Figura 1 - Crânio de Luzia
Corpos de mulheres, crianças e homens,
amontoados, aterrorizados, misturados, fazendo
forçadamente a grande travessia. Corpos objetos. São
imagens que podemos imaginar. É provável que o corpos
das pessoas negras no Brasil, mesmo após anos de
“Libertação” ainda carregue grilhões invisíveis. É
provável que o corpos das mulheres negras artistas ainda
permaneçam carregados de significados negativos. É
provável que imagens de mulheres negras artistas da
dança contemporânea carreguem significados pautados em lógicas desumanizantes
e reducionistas. Como podemos pensar imagens de mulheres negras na dança
contemporânea para além das lógicas que vinculam seus corpos à ideias
cristalizadas de um passado escravista? Será necessário
Figura 1- Lapa Vermelha IV
recuar, buscar em um tempo anterior ao da escravidão, Hominídeo 1

anterior a colonização de nosso país, anterior a uma ideia


de “descobrimento do Brasil”, muitíssimo anterior... É
preciso recuar... até a uma mulher negra e brasileira: Luzia.

Luzia viveu há mais de 11 mil anos no espaço


geográfico que futuramente seria chamado de Brasil. Seu
bando perambulava a procura de brotos, raízes, frutas e
pequenos animais para se alimentarem. Eram outros
tempos aqueles. Se comunicavam por meio de ruídos, sons
e gestos. Seu povo, chamado hoje pela arqueologia
brasileira como “O povo de Luzia”, ocupou a América há
milhares de anos, acabou sendo dizimado em catástrofes
naturais e guerras com outros grupos ávidos pela vida.

Luzia Morreu jovem, aproximadamente entre os 20 a


24 anos. Seu corpo ficou jogado em um buraco escuro por um longo período de
tempo. Encoberto por sedimentos, escondida, desconhecida e solitária. No entanto,
Luzia manteve seu crânio, nos parece que ela desejava cooperar com o presente.
Luzia precisou aprender a esperar, sentir o tempo levar sua carne, desintegrar seu
corpo. 1918
Figura 3- Face reconstituída de Luzia
Em 1970 seu crânio foi desenterrado pela
missão arqueológica franco-brasilera dirigida
pela arqueóloga francesa Annette Laming-
Emperaire3,no entanto, mesmo já tendo sido
encontrado, ainda ficou por anos dentro de uma
caixa a espera de algum olhar interessado nas
informações ali contidas.

Após anos de espera, uma equipe de


arqueólogos resolveu estudar Luzia, fazer medições,
comparar informações. Seu crânio apresentou
surpresas, não só para a arqueologia brasileira, já que, na realidade, descobriram
que a sua existência desestabilizava as teorias até então apresentadas sobre o
povoamento das américas. Seus traços em nada tinham parecidos com os dos
povos primitivos que habitaram o Brasil.

Formalmente a chamam de “Lapa Vermelha IV Hominídeo 1”, mas Walter


Neves, um importante arqueólogo brasileiro, a batizou de Luzia, A Luz, aquela que
ilumina, a Lucy4 do Brasil. Cientistas da Universidade de Manchester na Inglaterra
reconstituíram seu rosto em 1999 usando como base o seu crânio. E com recursos
tecnológicos altamente avançados reconstituíram pela primeira vez sua fisionomia.
Revelaram que foi uma mulher com feições nitidamente negróides, de nariz largo,
olhos arredondados, queixo e lábios salientes. Atualmente Luzia é considerada um
dos mais antigos fósseis humanos já encontrado nas Américas. Seu corpo podia
fazer muitas coisas: subir, correr, rolar, saltar, rastejar e muitas outras ações
necessárias a sua sobrevivência naquele tempo anterior. Embora sua vida tenha
sido curta, foi extremamente importante para a atualidade.

3
Foi orientanda de André Leroi GourhanPesquisadora do Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS) da França, se dedicou à Pré-História, especialmente ao estudo da arte rupestre
da Europa Ocidental. Trabalhou em sítios na América do Sul, especialmente no Brasil e na Patagônia
Chilena. Em 1970 coordenou a missão arqueológica franco-brasileira na região de Lagoa Santa
(Minas Gerais) onde encontrou Luzia.
4
O fóssil Lucy é considerado o fóssil mais popular já encontrado, e pertence à fase da evolução do
homem chamada Australopithecus afarensis. Lucy foi descoberta na Etiópia, há mais de 40 anos, e
ficou famosa por possuir cerca de 40% dos ossos preservados. Ela viveu na África há mais de 3,1
milhões de anos e sua descoberta foi um marco para os estudos sobre a evolução humana. 1919
(https://www.hipercultura.com/curiosidades-sobre-o-fossil-lucy/ acesso em 12/05/2019 as 15:30)
LUZIA É DANÇA...

Figura 4- Solo “A Luzia”


O crânio de Luzia foi a inspiração para a criação
do solo de dança contemporânea protagonizado pela
bailarina e pesquisadora Luzia Amélia, como forma de
propor uma aproximação entre o potencial conceitual,
Luzia, e o potencial estético, Luzia. O substrato para a
criação foi o feminismo negro que se apresenta no solo,
dança, sua forma artística de existência e resistência,
como um ato perfomativo impresso numa ação política
de desnudação e reinvindicação da autonomia: dizer,
gritar, andar e cambalear no percurso e na deriva,
dançar... “Qual é a imagem de corpo da mulher negra
na dança contemporânea brasileira?”

É possível que a exposição de imagens de dança contemporânea


protagonizada por mulheres negras, em especial, aqui, no solo intitulado “A Luzia”,
apresentam potencial para inverter ou ao menos desestabilizar lógicas embasadas
em compreensões estruturadas na homogeneização e categorizações do corpo
negro, especialmente o corpo da mulher negra.

Figura 5 – Solo “A Luzia”

1920
Imagens de dança protagonizadas por mulheres negras como modos de
interpelar concepções alinhadas com o racismo e outras estruturas de poder que
urgentemente precisam ser demolidas, inclusive na dança contemporânea. Por essa
razão, tratamos imagem como informação no mundo, como aquilo que pode
transformá-lo. O corpo que se constitui de forma processual está implicado
diretamente no entendimento de imagem que trabalharemos. Entendimento esse
que não é comprometido com a ideia tão amplamente espalhada de imagem “[...]
como aquilo que está para ou no lugar de ou é um mero reflexo do corpo e do
ambiente [...]” (BITTENCOURT, 2012, p. 11). Tratar a imagem como “[...] coisa,
objeto, corpo, como informação física mesmo [...]” (BITTENCOURT 2012, p. 11) e
como “[...] veículos contaminadores dos sentidos [...]” (BITTENCOURT, 2012, p.12),
nos ajuda a avançar e propor que estas tem a potência para reposicionar esses
corpos que as construíram, pois projetam lutas sociais e posicionamento crítico;
agem assim porque, no nosso entender, estão implicada nas tramas indissociáveis
dos corpos que as constroem. Se a imagem é informação, uma imagem do corpo
de uma mulher negra na dança contemporânea se apresenta como ações
propositivas. Imagens de espetáculos produzidas por mulheres pensando as
imagens dos corpos que dançam como informação, produz heterogeneidade nas
questões de dança e do corpo que dança. As imagens de corpos/mulheres negras
se apresentam como como difusoras de ações fundadas na possibilidade.

E as imagens são da natureza do mundo, uma vez que são modos de


acesso do corpo, além de constituírem também o próprio modo de cada
corpo estar no mundo. Não se trata de mero detalhe, mas de uma condição
de existência que deve ser claramente compreendida para que se deixe de
pensar que as imagens são somente reflexos do mundo em nós
(BITTENCOUR 2012, p. 80, grifo meu).

A mulher negra artista da dança brasileira busca ser protagonista de sua arte,
de seu fazer artístico. Atualmente falar de feminismo negro parece ser um discurso
fácil, quem o escuta, talvez, não tenha dimensão do quanto as mulheres negras
foram praticamente obrigadas a protagonizar lutas para se fazer existir, foi
necessário enfrentar diferentes e fortes opressões de raça, classe e gênero. Foi
preciso antes, lutas insistentes para que se considerassem as especificidades de
nossas pautas. 1921
Olhar para uma imagem ainda que seja fotográfica de um corpo dançando, e
não incorrer no equívoco de entendê-la como mero reflexo daquela realidade, mas
como um indicativo de construções e negociações do corpo, que se expõe em
imagem no contexto, ainda que temporariamente, de suas negociações, nos
aproxima da noção de identidade. Noção essa que não deve ser entendida de forma
homogênea, já que todos vivemos nossas identidades de formas diferentes:
mulheres negras, por mais que compartilhem o pertencimento do mesmo grupo
cultural são diversas, corpos diferentes, identidades múltiplas. As imagens de seus
corpos dançando evidenciam isso. Concordamos com Stuart Hall quando defende a
concepção de que:
[...] as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na
modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não
são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de
discursos, práticas e posições que podem cruzar ou ser antagônicos. As
Identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando
constantemente em processo de mudança e transformação (HALL, 2003, p.
108).

Essa concepção rompe com a perspectiva de identidade estável e sem


mudanças, rígida, sem movimentos. Boa Ventura Santos (2001) fortalece a natureza
inconstante e temporária das identidades:

Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher,


homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem
negociações de sentido, jogos de polissemia, choque de temporalidades em
constante processo de transformação, responsáveis em última instância
pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época
dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em
curso. (SANTOS, 2001, p.135).

Imagens como manifestos errantes, “[...] veículos contaminadores dos


sentidos [...]” (BITTENCOURT, 2012, p. 12) potencializam esse entendimento acerca
de identidade ao se constituírem como modos de afetar e transformar maneiras de
se estar no mundo. As imagens assim acabam por ampliar o fazer/pensar desses
corpos que, também, são múltiplos. Corpos com “suas identificações em curso”
(SANTOS, 2001, p. 135), são atravessados por relações de poder. Essas relações
não são centradas, se expressam em todas as dimensões. Entendemos poder em
concordância com Foucault (1982, p. 183) que nos diz:

[...] Não devemos tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço


e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de uma classe sobre as
outras [...] Nunca está localizado aqui ou ali nunca está nas mãos de 1922
alguns, nunca é apropriado como riqueza ou um bem [...] nas suas malhas
os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer
este poder e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do
poder, são sempre centros de transmissão[...].

Figura 6- Solo “A Luzia”

Não há como desconsiderar as


relações de poder tendo em vista que as
relações raciais e de gênero são atravessadas
por relações de poder. O corpo que gera
imagens, as gera a através das relações que
consegue estabelecer, “relações são sempre
assimétricas”5 e perpassam os diferentes
espaços. Foucault afirma que “O poder
penetrou no corpo, encontra-se exposto no
próprio corpo...” (FOUCAULT, 2017, p. 235).

Nossa proposição, então, promover a percepção das imagens de dança


contemporânea de mulheres negras como manifestos errantes. Nesse sentido,
precisamos nos aproximar do entendimento de errância. O professor de filosofia
Vladimir Safatle nos apresenta uma noção de errância dentro uma elaboração de
uma teoria política que aborda o desamparo como uma função política possível de
constituir corpos em errância: [...] o desamparo produz corpos em errância, corpos
desprovidos da capacidade de estabilizar o movimento próprio aos sujeitos através
de um processo de inscrição de partes em uma totalidade (SAFATLE, 2015, p.12).
Um corpo errante está em deslocamento constante. Ele argumenta: “No entanto,
esse corpo em errância constrói, ele integra o que parecia definitivamente perdido
através da produção de uma simultaneidade estranha à noção tradicional de
presença.” (SAFATLE, 2015, p. 12).

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, A. Imagens como acontecimentos: dispositivos do corpo,


dispositivos da dança. Salvador: EDUFBA, 2012.

5
Vladimir Safatle em palestra em conferência no “I Ciclo de Estudos”. Modos de existência e a 1923
contemporaneidade em debate: http://bit.Iy/1UeDRgp acesso em 10/12/2018.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 5. Ed. São Paulo. Paz & Terra, 2017.

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UFMG, 2003.

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RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

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Paulo: Cortez, 2001.

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KATZ, H; GREINER, C. O meio é a mensagem: porque o corpo é objeto de


comunicação. HÚMUS. / ORG. Sigrid Nora. Caxias do sul: Gráfica e editora Ltda,
2006.

Outras Fontes

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estrutural. 2. Ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

MARQUES, L. Grafias na pedra: índices evolutivos da dança. Teresina: EDUFPI,


2018.

RUFINO, J. O que é o racismo. São Paulo: Abril cultura. 1984.

http://bit.Iy/1UeDRgp

i
Pesquisadora permanente do Programa de Pós-graduação em Dança (PPGDANCA) da
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisadora colaboradora do Doutorado Multi-Institucional
Multidisciplinar de Difusão de Conhecimento (DMMDC).
ii
Doutoranda em Dança pelo PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA (PPGDANCA) da
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestra em Dança (UFBA) com a pesquisa: Grafias na Pedra:
índices evolutivos da dança. Bailarina. Coreógrafa. Performer. luziadanca.2016@gmail.com

1924

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