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1913
IMAGENS PROPOSITIVAS:
O CORPO DA MULHER NEGRA NA DANÇA CONTEMPORÂNEA
1
"Raça" e uma construção política e social. E a categoria discursiva em torno da qual se organiza
um sistema de poder sócio econômico, de exploração e exclusão — ou seja, o racismo. Contudo, 1915
como pratica discursiva, o racismo possui uma lógica própria (HALL, 1994, apud HALL, 2012).
Parte-se aqui das imagens do espetáculo “A Luzia”, solo de dança
contemporânea que nasceu da necessidade de borrar fronteiras entre teoria e
prática e propõe investigar o passado, partindo, de uma perspectiva pessoal, do
desejo de oferecer muitos corpos para Luzia e, assim, propor uma reflexão sobre o
percurso das mulheres negras no contexto brasileiro. Dar um salto para traz no
tempo, depois avançar com o intuito de romper com estruturas desumanizadoras,
impostas aos corpos de mulheres negras.
Havia lá, no seio do navio balouçado pelo mar, lutas ferozes, uivos de cólera
e desespero. Os que a sorte favorecia nesse ondear de carne viva e negra,
aferravam-se à luz e olhavam a estreita nesga do céu. Na obscuridade do
antro, os infelizes promiscuamente arrumados a monte, ou caíam inânimes
num torpor letal, ou mordiam-se desesperados e cheios de fúrias.
Estrangulavam-se: a um saiam-lhe do ventre as entranhas, a outro
quebravam-se-lhe os membros nos choques dessas obscuras batalhas
(MARTINS APUD RUFINO, 1984, p. 23).
1916
As diásporas2 africanas forçadas para o Brasil ocorreram em proporções
gigantescas. Nós somos o país que por maior tempo e maior quantidade importou
escravos africanos, mais de dez milhões de pessoas foram transladadas, Jogadas
como lixo, mas com função determinada, já que embasada no utilitarismo como
forma de gerar um empreendimento que muito rendeu aos colonizadores. Corpos
negros espoliados por anos a fio, o que gerou ações, entendimentos, segregações,
violências até os dias atuais e desembocando, com a mesma força das correntes
das águas, como nas correntes dos corpos negros, em processos contaminatórios
de exclusão na contemporaneidade, uma vez que se abrigam nos mecanismos e
procedimentos Coloniais.
2
O termo diáspora vem originalmente dos estudos judaicos relacionado a migração forçada dos
Judeus por diversas partes do mundo. Aproximadamente no século XIX dar-se início à amplos
debates de autores negros de diversas partes do mundo buscando aproximar essa experiência
específica judaica para experiência experimentada na modernidade por africanos ao longo do mundo,
então começasse a se utilizar o termo diáspora africana para pensar a migração forçada dos povos 1917
africanos para várias partes do mundo.
Figura 1 - Crânio de Luzia
Corpos de mulheres, crianças e homens,
amontoados, aterrorizados, misturados, fazendo
forçadamente a grande travessia. Corpos objetos. São
imagens que podemos imaginar. É provável que o corpos
das pessoas negras no Brasil, mesmo após anos de
“Libertação” ainda carregue grilhões invisíveis. É
provável que o corpos das mulheres negras artistas ainda
permaneçam carregados de significados negativos. É
provável que imagens de mulheres negras artistas da
dança contemporânea carreguem significados pautados em lógicas desumanizantes
e reducionistas. Como podemos pensar imagens de mulheres negras na dança
contemporânea para além das lógicas que vinculam seus corpos à ideias
cristalizadas de um passado escravista? Será necessário
Figura 1- Lapa Vermelha IV
recuar, buscar em um tempo anterior ao da escravidão, Hominídeo 1
3
Foi orientanda de André Leroi GourhanPesquisadora do Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS) da França, se dedicou à Pré-História, especialmente ao estudo da arte rupestre
da Europa Ocidental. Trabalhou em sítios na América do Sul, especialmente no Brasil e na Patagônia
Chilena. Em 1970 coordenou a missão arqueológica franco-brasileira na região de Lagoa Santa
(Minas Gerais) onde encontrou Luzia.
4
O fóssil Lucy é considerado o fóssil mais popular já encontrado, e pertence à fase da evolução do
homem chamada Australopithecus afarensis. Lucy foi descoberta na Etiópia, há mais de 40 anos, e
ficou famosa por possuir cerca de 40% dos ossos preservados. Ela viveu na África há mais de 3,1
milhões de anos e sua descoberta foi um marco para os estudos sobre a evolução humana. 1919
(https://www.hipercultura.com/curiosidades-sobre-o-fossil-lucy/ acesso em 12/05/2019 as 15:30)
LUZIA É DANÇA...
1920
Imagens de dança protagonizadas por mulheres negras como modos de
interpelar concepções alinhadas com o racismo e outras estruturas de poder que
urgentemente precisam ser demolidas, inclusive na dança contemporânea. Por essa
razão, tratamos imagem como informação no mundo, como aquilo que pode
transformá-lo. O corpo que se constitui de forma processual está implicado
diretamente no entendimento de imagem que trabalharemos. Entendimento esse
que não é comprometido com a ideia tão amplamente espalhada de imagem “[...]
como aquilo que está para ou no lugar de ou é um mero reflexo do corpo e do
ambiente [...]” (BITTENCOURT, 2012, p. 11). Tratar a imagem como “[...] coisa,
objeto, corpo, como informação física mesmo [...]” (BITTENCOURT 2012, p. 11) e
como “[...] veículos contaminadores dos sentidos [...]” (BITTENCOURT, 2012, p.12),
nos ajuda a avançar e propor que estas tem a potência para reposicionar esses
corpos que as construíram, pois projetam lutas sociais e posicionamento crítico;
agem assim porque, no nosso entender, estão implicada nas tramas indissociáveis
dos corpos que as constroem. Se a imagem é informação, uma imagem do corpo
de uma mulher negra na dança contemporânea se apresenta como ações
propositivas. Imagens de espetáculos produzidas por mulheres pensando as
imagens dos corpos que dançam como informação, produz heterogeneidade nas
questões de dança e do corpo que dança. As imagens de corpos/mulheres negras
se apresentam como como difusoras de ações fundadas na possibilidade.
A mulher negra artista da dança brasileira busca ser protagonista de sua arte,
de seu fazer artístico. Atualmente falar de feminismo negro parece ser um discurso
fácil, quem o escuta, talvez, não tenha dimensão do quanto as mulheres negras
foram praticamente obrigadas a protagonizar lutas para se fazer existir, foi
necessário enfrentar diferentes e fortes opressões de raça, classe e gênero. Foi
preciso antes, lutas insistentes para que se considerassem as especificidades de
nossas pautas. 1921
Olhar para uma imagem ainda que seja fotográfica de um corpo dançando, e
não incorrer no equívoco de entendê-la como mero reflexo daquela realidade, mas
como um indicativo de construções e negociações do corpo, que se expõe em
imagem no contexto, ainda que temporariamente, de suas negociações, nos
aproxima da noção de identidade. Noção essa que não deve ser entendida de forma
homogênea, já que todos vivemos nossas identidades de formas diferentes:
mulheres negras, por mais que compartilhem o pertencimento do mesmo grupo
cultural são diversas, corpos diferentes, identidades múltiplas. As imagens de seus
corpos dançando evidenciam isso. Concordamos com Stuart Hall quando defende a
concepção de que:
[...] as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na
modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não
são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de
discursos, práticas e posições que podem cruzar ou ser antagônicos. As
Identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando
constantemente em processo de mudança e transformação (HALL, 2003, p.
108).
REFERÊNCIAS
5
Vladimir Safatle em palestra em conferência no “I Ciclo de Estudos”. Modos de existência e a 1923
contemporaneidade em debate: http://bit.Iy/1UeDRgp acesso em 10/12/2018.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 5. Ed. São Paulo. Paz & Terra, 2017.
Outras Fontes
http://bit.Iy/1UeDRgp
i
Pesquisadora permanente do Programa de Pós-graduação em Dança (PPGDANCA) da
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisadora colaboradora do Doutorado Multi-Institucional
Multidisciplinar de Difusão de Conhecimento (DMMDC).
ii
Doutoranda em Dança pelo PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA (PPGDANCA) da
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestra em Dança (UFBA) com a pesquisa: Grafias na Pedra:
índices evolutivos da dança. Bailarina. Coreógrafa. Performer. luziadanca.2016@gmail.com
1924