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SUMÁRIO

Apresentação: Olhares sobre a diversidade 07

1º PARTE: VOZES DO SILÊNCIO


1. Sociabilidades, Religiosidade e cotidiano em testamentos
11
do Maranhão Colonial
2. Ser Mulher e ser escrava no Maranhão setecentista 31
3. Corpo e Padrão: A estética corporal e Invisibilidade da
41
diversidade em revista Adolescente do final do século XX
4. Gênero, patriarcalismo e heteronormatividade 52

2º PARTE: CAMINHOS DA INTERSECCIONALIDADE


5. Alforrias Femininas nos Testamentos do Maranhão
65
Setecentista
6. Ainda somos "Atrevida”? Um estudo comparativo dos
padrões de beleza presentes na revista adolescente do 77
século XX com a atualidade
7. Machismo e sexismo em propagandas publicitárias 85
8. Afrofuturismo: Estética, Ancestralidade e Protagonismo
91
Negro
Aos nossos ancestrais.
Que sempre estiveram conspirando ao nosso favor.
APRESENTAÇÃO: OLHARES SOBRE A DIVERSIDADE

Em 2017, o IFMA campus Pedreiras iniciou suas atividades na educação básica


trazendo para região do médio Mearim dois cursos técnicos integrado ao ensino médio:
Técnico em Eletromecânica e Técnico em Petróleo e Gás.
Seguindo seus princípios de Ensino, pesquisa e extensão, o campus logo
disponibilizou os editais para o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
para o Ensino Médio, a priore tivemos dois projetos na área de História aprovados, porém
à medida que o campus se desenvolvia, e mais oportunidades de pesquisas surgiam,
novas bolsas passaram a ser implementadas e a pesquisa na área de humanas,
principalmente no campo histórico aumentaram.
Os primeiros resultados das pesquisas iniciadas, em 2017, foram compilados em
artigos escritos por bolsistas e voluntários e divulgados no E-book “Caderno de bolsa:
imagens da estigmatização” publicado pela Edifma em 2020. O e-book foi a realização de
um sonho, um projeto que demostrou que apesar de todas dificuldades e preconceitos
enfrentados pela educação básica, esta produz ciência e precisa ser divulgada. Os quatros
jovens pesquisadores, alunos do Ensino Médio tecnológico, que escreveram os textos do
primeiro volume do Caderno de Bolsa se tornaram exemplos a serem seguidos e nos anos
seguintes novos alunos debruçaram-se sobre a pesquisa histórica.
Em 2018, foram aprovados nos editais para fomento quatro novos projetos de
pesquisa e, em 2019, foram mais cinco financiamentos para bolsas de pesquisas.
Orientados pela professora de História, Nila Michele Bastos Santos. Todos os estudos
estavam ligados às temáticas defendidas e abordadas no Núcleo de Estudos Afro-
brasileiros e indígenas do IFMA, campus Pedreiras, cuja professora permaneceu como
coordenadora até 2021.
O comprometimento e a produção desses jovens alunos de ensino médio fizeram
que o NEABI do campus Pedreiras fosse um importante produtor e propagador de
conhecimento, militante pela equidade, alteridade e diversidade. Nossos jovens
pesquisadores apresentaram seus trabalhos em diversos congressos e seminários
nacionais e internacionais, artigos, resumos expandidos e relatórios foram publicados em
anais e divulgados em lives e redes sociais. O objetivo sempre esteve em alcançar mais
estudantes de educação básica e proporcionar por meio de uma linguagem acessível e
contemporânea o debate de temas considerados delicados por muitos, mas que são
imprescindíveis à juventude. Dessa forma, o sonho de um novo livro foi cada vez mais se
fortalecendo, uma nova coletânea que prosseguisse uma tradição, ao mesmo tempo que
trouxesse a diversidade dos olhares dos jovens.
Assim o sonho tomou a forma de um Caderno, como outrora tinha sido, mas dessa
vez dividido em duas etapas que além de diferenciar os anos das produções aponta as
formas como os estudantes enxergam os problemas e objetos de suas pesquisas.
A primeira parte, Vozes do Silêncio, reúne os artigos produzidos pelos bolsistas e
voluntários dos projetos de pesquisas iniciados em 2018 e tem em comum o desejo de
propagar vozes da diversidade que foram por tanto tempo esquecidas, ou mesmo
silenciadas, em prol da manutenção de determinados grupos no poder.

VII
No primeiro capítulo, Victor Wagner da Costa Soares discorre sobre as
sociabilidades, religiosidade e cotidiano do Maranhão setecentista. Trata-se de uma
pesquisa documental na qual os testamentos do período foram a principal fonte, por eles o
autor observou o dito e o não dito, lendo nas estrelinhas da documentação os silêncios
propositais, ou não, de instituições religiosas que influenciaram e solidificaram a sociedade
escravista maranhense.
O segundo capitulo, também fruto de uma pesquisa documental sobre o Maranhão
colonial, traz um outro tipo de silêncio. Na verdade, um longo silenciamento historiográfico
sobre o que era Ser Mulher e ser escrava no Maranhão setecentista, Laysla Eduarda dos
Santos Lopes aponta as dificuldades de se encontrar estudos sobre essa temática, já que
somente com a abertura dos estudos de gêneros e da História das mulheres começaram a
aparecer trabalhos nessa área.
Já Silvana Maranhão Lucas traz, no terceiro capítulo, uma discussão mais
contemporânea das questões de gênero no século XX, apontando a invisibilidade da
diversidade em uma famosa revista Adolescente do final do século XX. Em seu estudo
Silvana demonstra a manutenção de um padrão estético que segrega e silencia mulheres
negra, gordas, lésbicas e trans, o que contribuiu para a manutenção da marginalização
social desses sujeitos.
O último capítulo, desta parte, se debruça sobre conceitos e teorias que visam
compreender e desmistificar os preconceitos historicamente construídos. Em Gênero,
patriarcalismo e heteronormatividade, Luís Fernando Santos Vale aborda a influência do
sistema patriarcal na construção de masculinidades hegemônicas, comportamentos
heteronormativos e machismo que conduzem a casos de violência contra a mulher e
homofobia.
Já a segunda parte, Caminhos da Interseccionalidade, traz à tona a discussão
que não é possível entender as discriminações de forma descontextualizadas de seus
aspectos históricos e sociológicos de raça, classe social, gênero e sexualidade. Tais
marcadores sociais se agregam na estrutura de opressão às quais as minorias são
relegadas e devem ser cuidadosamente analisadas. Todavia, a interseccionalidade aqui
explorada também permitiu expor as múltiplas visões para a interpretação da realidade
oferecidas pelos jovens pesquisadores do Ensino Médio tecnológico do interior do
Maranhão e produzidas a partir dos projetos de pesquisas financiados pelo Instituto
Federal do Maranhão em 2019.
O primeiro capítulo, desta parte, explora as interseccionalidades de gênero e raça
na escravidão empregada no Maranhão colonial. Ao pesquisar as alforrias femininas nos
Testamentos do Maranhão setecentista, a bolsista Maria Wanilde Santos Silva e a
voluntária Laura Elisa de Albuquerque Leite Alves trazem à tona os modos de
sobrevivência das mulheres negras e escravizadas do período e como elas, em meio a
negociações, barganhas e conflitos, buscaram garantir para si e para os seus, formas de
resistir à exploração até o alcance de suas liberdades.
Já no segundo capítulo, a autora Hiza Júlia Ruben Corrêa Leal mergulha no
universo da menina adolescente comparando as influências da revista feminina Atrevida,
no final do século XX, e a ascensão das “digitais influencers” de hoje. A autora discute
representatividade e protagonismo feminino da diversidade que apesar de nos últimos

VIII
anos ganhar uma certa independência, dado à internet e às redes sociais, ainda tem pouco
espaços nos canais mais formais de comunicação, educação e mesmo político.
Seguindo as discussões de gênero, Samyra Kelly Ribeiro Arruda traz no terceiro
capítulo o debate sobre o machismo e o sexismo presente nas propagandas publicitárias
brasileiras do século XX e como estas apresentavam identidades femininas “ideais” para
dois diferentes grupos de consumo: para as mulheres as propagandas de produtos de
limpeza, repassam a ideia de boas esposas, recatadas, prendadas e utilizando sempre da
presença de uma família branca heteronormativa, enquanto que para os homens as
cervejas objetificam os corpos femininos ao ponto de confundir-se o que se está vendendo,
o produto ou a mulher.
O último capítulo explora a emergência de um movimento relativamente novo no
Brasil: o afrofuturismo, um gênero artístico revolucionário que mescla a cultura africana
ancestral com ficção científica, além de refletir sobre as imagens do povo negro-
afrodescendente, representadas pelo movimento. O artigo, que é de autoria da professora
Nila Michele Bastos Santos, também explica como essa concepção foi introduzida no IFMA
campus Pedreiras apresentando-se em projetos de pesquisa, artísticos culturais e eventos.
Por fim, é preciso dizer que o quê une as vozes do silêncio e os caminhos da
interseccionalidade é sobretudo a luta pela diversidade livre de preconceitos e
discriminação. O Caderno de Bolsa: olhares sobre a diversidade é um esforço
educacional para abandonar por vez a ideia estereotipada sobre a Educação básica como
um mero lugar de reprodução e doutrinação disciplinar, esta obra mostra que a escola
pode sim, ser um espaço de pesquisa e produção de conhecimento e um lugar para
formação de identidades e cidadania em busca por uma sociedade mais progressista, justa
e equalitária.
Todos os bolsistas e voluntários que aqui escreveram tiveram como orientadora a
organizadora dessa obra e apesar do esmero nas interferências é salutar ressaltar que os
artigos são de alunos do Ensino Médio logo, as intervenções foram pontuais. Evitamos,
propositalmente, uma linguagem mais prolixa, contudo, sem perder o rigor cientifico que a
pesquisa em ciências humanas exige. Nosso objetivo principal é alcançar os demais
alunos da educação básica, e para tanto, escrever de forma que estes, principalmente
estes, entendam foi fundamental.
Esperamos que mais jovens pesquisadores, possam perceber que é possível sair
dos estigmas que lhes são impostos, valorizando sua identidade de forma positiva,
tomando consciência de seu próprio ser, e finalmente, empoderando-se para a luta contra
toda e qualquer forma de preconceito. É o que acreditamos e, por isso, resistimos.
Esperamos que apreciem a leitura, ela é fruto de nossos esforços.

Profª. Me. Nila Michele Bastos Santos


Orientadora dos Bolsistas e Voluntários autores desta obra
Coordenadora Geral do Neabi – IFMA / Campus Pedreiras
Coordenadora do Laboratório de Estudos em Gênero do IFMA/Pedreiras (LEGIP)

IX
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

SOCIABILIDADES, RELIGIOSIDADE E COTIDIANO EM


TESTAMENTOS DO MARANHÃO COLONIAL

Victor Wagner da Costa Soares1


Nila Michele Bastos Santos2

Introdução

Este estudo é fruto da pesquisa financiada pelo programa PIBIC ENSINO


MÉDIO, 2018/2019, do IFMA, em parceria com o CNPq. De caráter bibliográfico,
debruçamo-nos sobre o estado da Arte acerca dos testamentos e do catolicismo, em
especial no Maranhão Colonial, separando, entre outros, monografias e artigos tanto
de pesquisadores mestres e doutores, quanto de mestrandos e doutorandos.
Além do estado da Arte, foram levantados 97 testamentos escritos entre os
anos de 1676 e 1799 — selecionados, lidos e problematizados — que foram
retirados do livro “Cripto Maranhense e seu legado” (uma obra de referência, que
expõe 80 testamentos de pessoas falecidas no MA, particularmente em São Luís),
além de alguns testamentos adicionais, oriundos do arquivo público do Maranhão,
disponibilizados já transcritos.
Desta forma, elaborou-se um conjunto de perguntas, denominadas
“Perguntas Prosopográficas” uma vez que “a prosopografia é a investigação das
características comuns de um grupo de atores na história por meio de um estudo
coletivo de suas vidas. O método empregado constitui-se em estabelecer um
universo a ser estudado e então investigar um conjunto de questões uniformes”
(STONE, 2011, p. 115).
Cada testamento dispôs de respostas a essas perguntas, obtemos assim
uma série de dados sobre o cotidiano e relações de cada testador com a Igreja e
suas ramificações; e com a própria religiosidade que se apresentava de diversas
formas nos detalhes da documentação cartorial; tornando, mesmo que de forma
implícita, o testamento em uma “narração” escrita por um indivíduo sobre alguns
detalhes de sua vida, sob forma documental.
O ato de expressar sua vontade em documentos, a fim de garantir que esta
seja seguida mesmo após a morte, não é uma especificidade da época moderna.
Segundo Antônio Joaquim de Gouvea Pinto (1844, p. 3-8), existem referências ao
ato de testar entre os hebreus, os egípcios, os gregos e certamente entre os
romanos. A estes últimos é atribuída à influência aos costumes testamentários dos
portugueses, que sofreu diversas transformações durante o tempo atingindo uma
complexidade que visava desde a preparação dos funerais, do destino dos bens

1 Bolsista PIBIC Ensino Médio 2018/2019 - Bolsista PIBIC ENSINO MÉDIO 2018/2019 - EDITAL
PRPGI nº 03/2018. Aluno do ensino médio integrado ao Curso de Petróleo e Gás do IFMA - Campus
Pedreiras. E-mail: victor.soares@acad.ifma.edu; victorwagnercostasoares@gmail.com
2 Orientadora PIBIC ENSINO MÉDIO 2018/2019 - EDITAL PRPGI nº 03/2018. Mestra em História

Social, Professora EBTT de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do


Maranhão. Coordenadora do NEABI – IFMA/campus Pedreiras e do LEGIP- Laboratório de Estudos
em Gênero do IFMA campus Pedreiras. E-mail: nila.santos@ifma.edu.br

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

materiais até à salvação da alma. Assim, juntamente, com a chegada dos


portugueses, houve a disseminação da testamentaria no Maranhão.
Nesses testamentos, pudemos notar a religiosidade como base para a vida e
para o desenvolvimento individual de cada testador maranhense, mostrando que seu
estado financeiro e, consequentemente, status social era diretamente interligado a
sua devoção cristã e a sua participação “efetiva” dentro da própria religião católica;
uma das formas mais visíveis para demonstrar isso é através das irmandades, já
que “são consideradas formas de socialização que tem como referência a igreja
católica e a monarquia e em que o domínio de um ofício constituía um critério de
ingresso” (SANTOS, 2010, p. 135), ou seja o estado financeiro e a maneira como o
indivíduo vivia seu catolicismo eram assuntos afins que se interinfluenciavam.
Podemos mostrar tal condição interativa entre o financeiro e o religioso de
um testador através das informações e dos dados obtidos com a análise dos
testamentos, além das formações e relações das irmandades e de seus “irmãos”,
grupos que implicavam em diferenças sociais, já que “a questão era
predominantemente de caráter social e racial” (BOSCHI, 1986, p. 159), em que cada
indivíduo se mantinha irmão de determinada(s) irmandade(s) conforme sua condição
financeira, ou até mesmo de acordo com seu o oficio.

Nelas, o domínio de um ofício constituía um critério de ingresso, fossem os


irmãos livres, libertos ou escravos. Analisam-se particularmente os casos da
irmandade de São Jorge – que reunia basicamente os ofícios do ferro e do
fogo – e da irmandade de São José – que congregava carpinteiros,
pedreiros e marceneiros (SANTOS, 2010, p. 131).

Evidenciamos, que os estudos a partir dos testamentos se fazem


necessários e apresentam-se amplamente diversificados, tais necessidade e
diversidade de informações podem ser constatadas por pequenos detalhes
encontrados nos testamentos, como citações, mesmo que de forma breve, de uma
ordem religiosa significativa para a história do Brasil.

[...] e para que na`o possa haver omissa`o alguma na boa arrecadaçam
desta esmolla, que quero prefira as mais, que deyxo em dinheyro depois
desta prezente verba, os procuradores e intendentes deste recolhimento,
que ao prezente hê o Muyto Reverendo Padre mestre missionario Manoel
da Silva da Companhia de Jezus [...] (Rezisto com que faleseo o senhor
Gaspar dos Reys que foi desta Capitania em 16/09/1744. apud MOTA.
Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.48.)

Em nosso estudo, expomos ainda os fluxos de capitais e de bens materiais


que ocorriam entre “instituições religiosas” e seus representantes com os respectivos
correligionários, sejam eles instituídos como esmolas, dívidas etc.
Utilizamos, neste trabalho, o termo confraria designando o mesmo
significado de irmandades, porquanto são comumente utilizadas como sinônimos.
Um dos fatores fundamentais para aderirmos Confraria e Irmandade como
sinônimos é a utilização destas palavras — nos testamentos utilizados como fonte
histórica para o presente trabalho — para referir-se a uma mesma instituição
religiosa; enquanto Balthazar se referia a “Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos”
como Irmandade: “Sera [meu] corpo levado a Sepultura no esquife da Irmandade de
Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos de quem espero [...]// (Rezisto com que

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

faleseo o senhor Balthazar Pereira dos Reis em 08/12/1759 - ATJ. Livro 1751 -
1759, fl. 29);

O senhor Jozé se referia a mesma instituição como confraria: // Declaro q’


meu corpo Sera Sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Carmo desta
cidade na Capella do Senhor Bom Jezus dos Santos Passos de Cuja
confraria sou Irmao’ [...]. //(Rezisto com que faleseo o senhor Jozé da Motta
Verdade em 03/11/1761 apud MOTA. Antonia. SILVA. Kelcilene Rose,
MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.153)

Ainda, como no testamento acima, nos demais documentos estudados,


descortinamos que, algumas instituições religiosas (Irmandades) poderiam ser
apontadas literalmente como herdeiras — mesmo que alguns testadores
apresentassem herdeiros forçados (filhos), declararam irmandades como herdeiras
— vejamos o exemplo de Manoel Barbosa de Abreu (1758):

Declaro que o meu testamenteyro entregador o remanecente de minha


meassão, depois de cumpridos meuz legados em meza perante Irmãos de
Irmandade de Nossa Senhora da Victoria desta ditta Villa da Moucha, a
quem tenho nomeado e de prezente nomeyo por minha Universal herdr.ª
{{5}} herdeyra, e por ser esta a minha ultima vontade, [...] (Rezisto com que
faleseo o senhor Manoel Barbosa de Abreu 05/09/1758 apud MOTA.
Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.102).

Podemos perceber, desta maneira, que a forte religiosidade colonial


maranhense (Católica) marcava presença até mesmo nos testamentos, ainda que
eles representem e se apresentem como uma particularidade íntima dos indivíduos;
Graças à popularização das irmandades e de seus benefícios, quase todos
os colonos maranhenses e brasileiros ambicionavam integrar-se em uma. A
importância de atuar em uma confraria fazia-se tão singular que era posta como uma
característica notável e comum nas últimas vontades dos testadores.
Entre os resultados obtidos com a pesquisa realizada nos testamentos do
Maranhão Colonial (1676-1799), observamos que dos 97 testadores do atual
Estado, apenas 29 não citavam participações em irmandades religiosas, número
que, apesar de significativo, não contradiz a influência e a forte presença que elas
mantinham em suas vidas, pois, apesar de não confirmarem a participação nessas
irmandades, solicitavam rituais fúnebres religiosos. Dessa maneira, a igreja e as
Confrarias (principais instituições que atendiam a necessidade de velar),
continuavam a lucrar com esses indivíduos. Conseguinte, observamos e tabulamos
o número de testadores divididos e/ou compartilhados pelas irmandades
encontradas nos documentos — revelando parte importante e crucial da história do
Maranhão. Os resultados estão dispostos decrescentemente:

Quadro 01: Irmandades e Número de Testadores/integrantes


Nome da Irmandade Número de Testadores/integrantes
Irmandade de São Francisco 29
Irmandade Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos 13
Irmandade Nossa Senhora do Carmo 9
Irmandade de Santo Antonio 8
Irmandade Santa Casa da Mizericordia 7

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Irmandade das Santas Almas 6


Irmandade Nossa Senhora das Merces 5
Irmandade São João Baptista 4
Irmandade do Santíssimo Sacramento 3
Irmandade dos Santos Lugares 3
Irmandade Nossa Senhora do Rozario dos Pretos 2
Irmandade Nossa Senhora do Socorro 2
Irmandade Nossa Senhora da Vitoria 2
Irmandade do Divino Espirito Santo 1
Irmandade Nossa Senhora das Dores 1
Irmandade Nossa Senhora do Capitulo 1
Irmandade de Santa Barbara 1
Irmandade de Santa Anna 1
Irmandade de Santo Christo 1
Irmandade não especificada 1
Fonte: Elaborado pelos autores com base nos Arquivo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do
Maranhão – ATJ: Livro de Registro de Testamento 1751-1759; Arquivo Público do Estado do
Maranhão – APEM: Livro de Registro de Testamentos 1781-1791. MOTA, Antônia da Silva; SILVA,
Kelcilene Rose; MANTOVANI, José Dervil. Cripto maranhenses e seu legado. São Paulo: Siciliano,
2001.

Scarano (1978, p. 19) expõe que as Irmandades foram efetivamente


controladas pela Coroa, e que sua fiscalização aparenta ter sido bem mais rigorosa
do que em relação as que funcionavam em Portugal. Essa preocupação por parte da
coroa pode ser entendida se nos lembrarmos “que os membros das Irmandades
formaram intrínsecas interações (políticas, socioeconômicas e culturais)” (SANTOS,
2010, p. 1).
Pontes (2008, p. 17) discorre que as irmandades religiosas se equilibravam
entre o sagrado e o profano, e que seu ideal era a comunhão fraternal e o
crescimento do culto público (o que demonstra a importância político-social para o
Maranhão colonial), onde as necessidades do espírito se misturavam às do corpo.
Concordamos com o dito em consequência das grandes festas realizadas
(mesmo sendo religiosas), que compensavam bem mais a “carne” comparada ao
“espirito”, e que se antagonizava com as missas e momentos de orações (em
especial os funerais) realizadas pelas mesmas confrarias; também pelo fato de
alguns indivíduos participarem de procissões por obrigação e não pelo simples ato
da “fé”, tendo assim, como motivação principal as questões materiais.

No Período colonial, as próprias Ordenações do Reino tornavam obrigatória


a participação em procissões, sob pena de se pagar multa quando
denunciado. Para tanto o governador local lançava o chamado “bando”, com
um pregoeiro fazendo anuncio público por toda a cidade, acompanhado de
trombeteiros a cavalo (TREVISAN, 2018, p. 125).

Outra razão para acreditarmos em Pontes (2008, p. 17), é a grande teia


relacionada ao financeiro, uma vez que a cultura católica se fazia marcante
principalmente nas “esmollas acostumadas”, relação financeira mais aludida nos
documentos.

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

A interferência monetária da Igreja e de suas ramificações ficam claras ao


serem lidos os testamentos, como nos inúmeros casos de esmolas acostumadas,
das dívidas e das doações de dinheiro ou de bens materiais; podemos identificá-los
nos seguintes exemplos:
• Doação: “// Declaro que deyxo a Ordem Terceyra do Carmo vinte mil reis” (Rezisto com
que faleseo o senhor Jozé da Motta Verdade 03/11/17611761 apud MOTA. Antonia.
SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.155);

• Dívida: “\\\ Declaro dever a quantia de doze mil reis a Santa Caza de Jerusalem” (Rezisto
com que faleseo o senhor Antonio de Lemos em 18/07/1735. ATJ. Livro 1751 - 1759, fl.
59v);

• Esmola acostumada: “e que de tudo Se darâ a esmolla costumada” (Rezisto com que
faleseo a senhora Lourença de Tavora em 27/07/1752 1761 apud MOTA. Antonia.
SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.83).
Tais instituições católicas obtiveram assim de diversas formas um grande
capital, tornando-se inexata a imensa quantia em poder da Igreja, fazendo-nos
questionar sobre suas reais intenções com seus adeptos, já que “pode-se afirmar que
a prosperidade material da igreja católica veio junto com uma inédita crise de valores
e princípios” (SANTOS, 2009, p. 19). Consequentemente, tal prosperidade a
manteve com papel importante em todos os aspectos econômicos do Maranhão
colonial, manifestando-se na venda de indulgências, nas missas, em seus rituais
fúnebres e na própria organização presente nas formações das irmandades,
questões que influenciaram notoriamente as pessoas que conviviam com essa forte
cultura cristã.
Um breve exemplo desse capital individual de cada testador gasto com
religiosidade é o de Gaspar dos Reys, morador da cidade de São Luís do Maranhão,
em 16 de setembro de 1744; de acordo com seu testamento, estima-se que tenha
doado aproximadamente 615 mil reis e 3 mil cruzados, dinheiro distribuído entre
várias instituições católicas como a Igreja de Nossa Senhora do Rozario dos Pretos
e a Capella do Noviciado do Collegio da Companhia de Jesus, os estudos realizados
sobre este último são relevantes uma vez “que nos podem fazer ver aspectos
importantes da formação social, cultural e educativa no Brasil” (HERNANDES, 2010,
p. 222).
Portanto, essas eram questões profundamente ligadas ao cotidiano dos
indivíduos que se mostra fabulosamente diversificado nos testamentos do Maranhão
Colonial (1676-1799).

Destrinchando o(s) cotidiano(s) nos testamentos do maranhão colonial (1676-


1799)

As “esmollas acostumadas” (ou “esmolas costumadas” etc.) estão


intrinsecamente relacionadas ao cotidiano descrito nos testamentos do Maranhão
colonial. São notavelmente formas de pagamento de funerais, missas, e de outras
questões em especial as envolvidas com a religião (Catolicismo).
Empregava-se o termo “esmollas acostumadas”, para se referir ao valor
usado quando determinado requerimento, seja para processos organizacionais dos

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

rituais fúnebres e seu desenrolar, seja para a determinação de deliberados cultos


católicos, fosse realizado; de forma especial para aqueles requerimentos
frequentemente requisitados, e que, por este motivo, já tinham valores popularmente
estipulados.

_//_ quero, e ordeno que sendo Deos servido levarme meu Corpo sera
sepultado na Matris desta Cidade, e ira amortalhado no habito de Nossa
Senhora do Carmo, e se dará de esmolla o Custumado - // Deixo que os
Religiozos de Nossa Senhora do Carmo aCompanhem meu Corpo a
sepultura, e se lhe dará a esmolla Custumada - // Declaro que sou irmao’ da
Sancta Caza da Mizericordia, e ja fui provedor, e tem a Irmandade
obrigaçam de me aCompanhar e se lhe dara de esmolla pera as despezas
da Caza Vinte mil reis _//_ quero, e ordeno q. Me acompanhem todas as
Cruzes das Irmandades assim das que sou Irmam Como das que nam sou,
e se lhe dara a esmolla costumada _//_ (Rezisto com que faleseo o senhor
Bartolomeu Pereira de Lemos em 29/07/1676, apud MOTA. Antonia. SILVA.
Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.34).

Este fragmento do testamento de Bartolomeu Pereira de Lemos, além de


exemplificar bem as “esmollas custumadas” e outras questões, também nos remete
as Irmandades, de forma especial a seus integrantes, pois podemos observar que o
próprio testador se declara ex- provedor (juiz) de uma Irmandade.
Provedor é um dos diversos “personagens” essenciais para a construção de
um testamento. Poderíamos nos atentar a função de cada um destes indivíduos que
compunham os testamentos, entretanto, o importante e crucial a se destacar é a
presença de figuras religiosas, como reverendos e padres, trabalhando na função
desses personagens testamenteiros. Desta forma, mais uma vez, demonstra-se a
forte e marcante presença do catolicismo que embasou, de maneira incalculável, a
vida maranhense colonial.
Além de Bartolomeu, outros testamentos nos remetem às funções e à
organização das confrarias coloniais, podemos observar tal afirmação no testamento
de Manoel Barbosa de Abrel, que ao direcionar determinadas quantias financeiras
cita uma das funções fundamentais presentes nas instituições religiosas, a de
Testamenteiro (pessoas designadas para cumprir as últimas vontades do testador):

Pesso e Rogo ao Reverendo Vigario, que em qualquer tempo assistir na


Freguezia de São Bento das Balsas em primeyro Lugar, e em Segundo ao
Senhor Antonio Pinto de Aguiar, morador da outra banda do Parnahyba, e
nesta Comarca, em terceyro lugar ao Reverendo Vigario da Freguezia de
Santo Antonio da Gurugueya o Senhor André de Souza Ventura, em quarto
lugar ao Reverendo Vigario, que ao Tempo de meu falecimento estiver
exercendo Nesta Feguezia da Villa da Moxa, e em quinto, e ultimo lugar a
Irmandade de Nossa Senhora da Victoria da mesma villa, queyrão por
Serviço de Deoz, e por me fazerem mercê, Serem meus Testamenteyros,
Procuradores feitores e Administradores de meus benz, e que me tocar a
minha meação por meu falecimento = (Rezisto com que faleseo o senhor
Manoel Barbosa de Abreu em 05/09/1758, apud MOTA. Antonia. SILVA.
Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.103).

Uma característica marcante no testamento de Manoel Barbosa de Abreu é a


escolha de Reverendos e de uma Irmandade para tal função testamentária (Estes
recebiam a vintena, ou seja, uma remuneração); deixando ainda mais evidente a
forte presença e influência católica que permeava a população. Observamos a

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

mesma religiosidade exacerbada basicamente em todos os testamentos, quando


não explicitamente encontramo-la de maneira implícita, especialmente nos
pequenos detalhes.
Esse influente atributo religioso também é demonstrado na caligrafia
testamentária, visto que apenas uma minoria dominava a escrita e eram
verdadeiramente considerados alfabetizados, decorrendo, dessa forma, em vários
casos de testadores incapacitados para realizar o próprio testamento de modo
independente.
Contudo, a peculiaridade que faz deste aspecto uma das especificidades
demonstrativas do Catolicismo presente, é o fato de que muitos dos alfabetizados e
consequentes transcritores dos testamentos estarem diretamente interligados à
Igreja (Reverendos e Padres).

= e por quanto esta he a minha ultima vontade do modo que tenho dito pedy
ao Muyto Reverendo Padre Frey Antanio, que este meu Testamento
escrevesse, e juntamente comigo abayxo assignasse (Rezisto com que
faleseo a senhora Anna Gracêz em 27/10/1777 apud MOTA. Antonia.
SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.269).

Os cotidianos mostrados nos testamentos do Maranhão colonial (1676-1799)


retratam-se de maneira particularizada, logo pudemos enclaustrar determinados
fragmentos instituindo-lhes como peças principais e, através da leitura das
entrelinhas e da comparação destas frações com o todo (testamentos), conseguimos
analisar e destrinchar o próprio cotidiano (embasando-nos nos trechos
testamentários).
Desse modo, Anna Barboza de Jesus Maria expressou seu cotidiano,
afirmando sempre ter vivido solteira no Recolhimento de Nossa Senhora da
Annunciação onde morava.

[...] e sempre vivi no estado de solteyra e de prezente recolhida em o


recolhimento desta cidade de Nossa Senhora da Annuciaçao’ e Remedios
Ursulinas de Coraçao’ de Jezus ha oito para nove annos por ser das
primeyras que nelle me recolhi [...] // (Rezisto com que faleseo a senhora
Anna Barboza de Jezus Maria em 01/10/1761, apud MOTA. Antonia. SILVA.
Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.151).

O Recolhimento de Nossa Senhora da Annunciação apresenta-se como um


ambiente onde moças pobres poderiam viver, para as quais algumas pessoas
realizavam doações. Essas doações faziam-se variadas: desde monetários, objetos
de valor ou, até mesmo, pessoas escravizadas. Representando essas pessoas
impostas à escravidão, temos Dionizio, um sujeito escravizado deixado através de
um “trecho de testamento”1, pela própria Anna Barboza de Jesus Maria para o
Recolhimento onde residia.

1 Neste fragmento podemos inferir que ela deixa um escravo forro, porem com condição. Contudo o
mais instigante é que ela reinicia a frase “deycho o dito mulato forro” apenas pra proferir o nome do
escravizado, presumimos que tal feito tenha sido necessário para diminuir a chance de problemas
futuros, já que o testamento é um documento, que preferencialmente não deixe aberturas para
duvidas como: “Qual o escravizado que ela deixou forro já que seu nome não consta no
documento?”.

17
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

// Declaro que possuo hum [corr.] por nome Dionizio [corr.] meu legitimo
escravo [corr.] cujo meu [corr.] de virem [corr.] de Annunciaçao’ [corr.] o
serviço de sua Igreja, e do mesmo Recolhimento, com {{31}} com a condiçao’
porem, que nuca por principio nenhu’ poderá ser vendido o dito mulato por
ser minha ultima vontade que o dito mulato não’ passe a outro Senhorio e
esteja sempre no serviço de Nossa Senhora e seu Recolhimento em quanto
este durar, e acabado o dito Recolhimento / o que Deos tal não’ permita /
neste cazo deycho o dito mulato forro digo mulato Dionizio forro livre e izento
de toda a pensao’ de captiveyro por ser assim minha ultima vontade o que
lhe faça pelo amor de Deos // (Rezisto com que faleseo a senhora Anna
Barboza de Jezus Maria em 01/10/1761 apud MOTA. Antonia. SILVA.
Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.151).

Verificamos outras doações ao mesmo Recolhimento maranhense, como o


realizado por Thomaz Ferreira da Camera: ”// Ordeno se dé tambem de Esmolla por
minha alma repartidamente por todas as Senhoras Recolhidas do Recolhimento
desta cidade invocado da Annunciação, dezaseis mil reis” // (Rezisto com que
faleseo o senhor Thomaz Ferreira da Camera em 05/06/1767, apud MOTA. Antonia.
SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.222)
Para percebermos a importância dessas “casas religiosas” para o cenário
maranhense, temos pesquisadores que desenvolveram trabalhos nessas
instituições, como Castro (2007) que analisa os perfis das moças encontradas no
Recolhimento de Nossa Senhora da Annunciação. Este recolhimento tinha como
principal objetivo proteger as moças órfãs e desvalidas dando educação, seguindo os
princípios morais e religiosos. Muitos testadores e testadoras, quando não possuíam
herdeiros descendentes e ascendentes deixavam seus bens como dote para
sobrinhas e afilhadas, ou para os recolhimentos onde se encontravam as moças
pobres, proporcionando-lhes a realização de um casamento.
Assim como o casamento, o batismo é um dos principais ritos Católicos e
“uma das cerimônias mais importantes do calendário católico do ocidente”
(SOARES, 2010, p. 80).

Embora hoje existam medidas burocráticas voltadas para o mesmo fim (o


registro de nascimento, por exemplo), o ato que tradicionalmente marca a
integração da criança no mundo humano é o batismo. Através desse rito de
passagem, a criança afasta-se da penumbra do ventre materno, da zona
nebulosa onde sua existência mal se distingue da de sua mãe, e passa a ser
reconhecida como pessoa (FONSECA; BRITES, 2003, p. 1).

Estando presente nos testamentos, o batismo apresenta-se não apenas


como questão religiosa, mas também como questão familiar. Pedroza (2008) afirma
em seu trabalho que as relações de compadrio, em sua maioria, visionavam
questões bem mais financeiras do que propriamente de fé, e a maneira como essas
relações poderiam ser funcionais para ambos os envolvidos no batizado.

Este trabalho também busca inserir a prática cultural do compadrio – de


batismo e casamento – como um dos liames que criaram vínculos entre
famílias e as posicionaram socialmente no mundo em que viviam. O
compadrio ritual é uma instituição que perpassa o globo e a história da
humanidade (PEDROZA, 2008, p. 70).

Nos testamentos, os afilhados e afilhadas apresentam-se de forma


significativa adquirindo valores financeiros e bens materiais de seus padrinhos: “//

18
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Quero se de de esmola da minha terssa a minha afilhada Quiteria filha de meu


compadre Ignacio Barboza e de sua mulher Anna Francisca huma rapariga que
valha oitenta mil reis pouco mais ou menos e esta disposissao’ ficara a [...]//”(Rezisto
com que faleseo a senhora Francisca de Souza em 16/03/1786, apud MOTA.
Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.274).
O grande número de pessoas batizadas e de seus registros são devidos a
vários motivos, em especial ao fato da obrigação, já que segundo Marcilio (2004, p.
1) em uma das sessões do Concilio de Trento1 (1545-1563), chegou-se a uma
resolução na qual ficou decretado que cada Instituição Católica passaria a ser
responsável pelo registro de cada batismo e de cada matrimônio celebrado em sua
paróquia.
O batismo também passou a ser obrigatório para pessoas escravizadas,
havia imposição do nome cristão e, depois, da “nação” do africano, reificados no ato
do batismo.

A legislação coeva confirma. Nas Ordenações Filipinas, o batismo do gentio


da Guiné era uma obrigação do proprietário desde o primeiro momento da
compra, e o não cumprimento da ordem no prazo de seis meses podia
resultar em perda da propriedade para quem denunciar (SOARES, 2010, p.
81).

Desta forma, nos testamentos estudados, pudemos observar casos em que


escravos foram e seriam batizados:
• Já batizado:

= Declaro, e he minha vontade haver por forro, livre, e izento do Cativeyro, a


hu’ mestiço chamado Paschoal filho da mulata Gertrudes, e meu afilhado o
qual logo ao tempo do Baptismo o forrey, e por tal foy declarado no seu
aSento cuja alforria logrará para Sempre, e Se nesseçrº for, o tomo a minha
parte = (Rezisto com que faleseo o senhor Manoel Barbosa de Abreu em
05/09/1758 apud MOTA. Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI.
José Dervil, 2001, p.105).

• Esperando o batismo:

Declaro que forrey a hua’ molata por nome Vrsula, e dois filhos por nomes
Valerio, e Quiteria como constará de escriptura, q’ nas nottas lha passey a
qualquer [ileg. 2 palavras] na for {{226}} Na forma nella declarada // Declaro
que dey a dita molata hua’ pretinha nasção Cachêo, q’ a poucos tempos
tinha comprado, e ainda se acha por baptizar para effeito de se cazar
(Rezisto com que faleseo o senhor Jozé da Motta Verdade em 03/11/1761

1 O Concílio de Trento foi o décimo nono conselho ecumênico reconhecido pela Igreja Católica
Romana. Foi convocado pelo papa Paulo III, em 1542, e durou entre 1545 e 1563. Teve este nome,
pois foi realizado na cidade de Trento, região norte da Itália. Concílio é o mesmo que conselho e se
trata de uma reunião de cunho religioso. Foram realizadas 25 sessões plenárias, em três períodos
diferentes. Reação católica a Reforma Protestante de 1517, chamada Contrarreforma (esforço
teológico, político e militar de reorganização católica e de confronto ao protestantismo; e todas as
doutrinas católicas foram discutidas para responder às críticas doutrinárias dos protestantes).
“Significa dizer que, em matéria de fé e moral, um concílio legitimamente convocado pelo Soberano
Pontífice, a quem unicamente compete convocar, presidir, transferir, suspender, dissolver e aprovar,
exerce de modo solene, universal e infalível seu poder sobre a Igreja Católica.” (SILVA, 2015, p. 132)

19
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

apud MOTA. Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil,


2001, p.154).

Como proferem Mota e Cunha (2017, p. 479): “Documentos que confirmam a


formação de laços familiares entre os cativos são os registros de batismos da
freguesia de N. S. das Dores do Itapecuru, desmembrada da freguesia do Rosário
em 1802”.
De fato, os batismos confirmavam formação de laços familiares, mas, esse
ato religioso atreveu-se a ir mais longe, fazendo com que os laços formados através
de si fossem tão fortes que chegaram a entrelaçar-se aos formados pela própria
família.
Dessa forma, alguns relacionamentos, principalmente entre
padrinhos/madrinhas e seus afilhados/afilhadas, chegaram ao ápice, intercalando-se
ao familiar, ou até mesmo quebrando a barreira para se tornarem pais e filhos, ainda
que não declaradamente. A seguinte alegação fundamentou-se no testamento de
Benta da Costa, mulher indígena criada pela madrinha, a quem primeiramente
requereu missas.

// Declaro que sou natural da villa de Tapuytapera filha da India Joana da


Costa já defunta e de Pay incerto por nunca saber quem era the o prezente,
e Sou cazada com Silvestre Machado de cujo matrimonio nao’ tenho filhos
herdeyros // Pesso a meu Testamenteyro que se eu morrer com a mayor
brevidade possivel mande dizer quatro missas pella alma de minha
madrinha Maria da Costa em premio da criaçao’ que me deu [...] (Rezisto
com que faleseo a senhora Benta da Costa em 21/09/1766, apud MOTA.
Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.209).

Outro testamento que pode embasar a declaração anteriormente posta é a


de Jozé Barboza de Albuquerque, que exprime:

// Declaro que, a huma menina por nome Maria Thereza, que criei, e he
minha afilhada, e hoje Se acha no recolhimento, lhe deixo a caixa de
molduras, e as oito colheres de prata, ou as que Se acharem por meu
fallescimento, e recomendo muito a meus Testamenteiros cuidem Sempre
na dita menina ate que tome o Estado, que lhe parecer, eque Selhe na’o
falte com o necessario no dito Recolhimento, onde Se acha, pois da
Legitima, que lhe deixou Seo Pay Luís Domingues lhe tem feito
applicaçoens de Se lhe dar todos os annos trinta mil reis pelo juizo dos
orfaons para Seo Sustento, e vistuario // (Rezisto com que faleseo o senhor
Jozé Barboza de Albuquerque em 06/03/1767, apud MOTA. Antonia. SILVA.
Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p. 217)

Um detalhe bastante chamativo neste testamento é o termo “juizo dos


orfaons” cujo testador afirma que neste determinado local são realizadas aplicações
para a menina, sua dita afilhada; em outro testamento, também encontramos um
termo semelhante “cofre dos órfãos”.

= Deixo mais pelo amor de Deos e obra pia a huma menina minha afilhada
chamada Anna Roza filha de Antonio da Costa e de sua mulher Lourença de
Araujo cento e vinte mil reis = Deixo mais pelo amor de Deos e obra pia a
hum menino chamado Lourenço filho do mesmo Antonio da Costa e de sua
mulher Cem mil reis as quaes duas esmollas assima declarado quero que se
metam no cofre dos orfaos’ desta Villa e para dele se porem entregue aos
tais meninos quando elles tomarem estados ou forem capas de Reger os
seus benis com o rendimentos que tiverem tido com a declaraçam (Rezisto

20
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

com que faleseo o senhor João Lourenço Rebello em 06/07/1789 apud


MOTA. Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.
278).

O Juízo dos Órfãos foi uma importante instituição no Maranhão que, desde o
período colonial brasileiro, tinha como papel principal zelar pelos interesses dos
menores de idade órfãos que a ela eram apresentados.

O Juízo dos Órfãos, como grande parte das instituições do Brasil Colônia e
Império, é de origem portuguesa, tendo surgido com as Ordenações
Manuelinas, em 1512. A criação desse Juízo deveu-se à necessidade de
definir normas que regulamentassem a proteção dos menores de 25 anos
de idade1, no que competia à administração própria e de seus bens. O
cuidado e a administração dos órfãos, por parte de um adulto legalmente
constituído, eram necessários em vista dos processos de separação de
bens (partilha) ou mesmo de herança em virtude de falecimento do pai do
menor (CARDOZO, 2017, p. 94).

Entretanto, por detrás dessa função que pode ser considerada nobre (cuidar
dos órfãos), o “Juízo dos Órfãos deteve suas atenções naqueles menores de idade
que possuíssem bens ou fossem descendentes de famílias de posse e/ou de
prestígio social” (CARDOZO; FLECK; SCOTT, 2011, p. 3), fazendo-se injusta sua
presença independentemente da teoria envolvida na engrenagem de seu
funcionamento.

Na década de trinta do século XVI, esses magistrados passaram a ganhar


ainda mais poder e importância devido à ordem real de recolherem dinheiro
e outros bens de órfãos para um cofre específico (que era entregue a um
depositário), de onde esses valores somente poderiam ser retirados com
autorização do Juiz de Órfãos (CARDOZO, 2017, p. 99).

Portanto o cofre dos órfãos era o local onde se “guardavam” os bens,


doações e fortunas dos menores de idade, sendo estes administrados pelo próprio
Juízo dos Órfãos.
Muitos dos bens materiais que os colonos maranhenses possuíam eram
objetos, justamente por esse motivo que a maioria dos testadores fazem questão de
detalhar cada um deles, bem material e seu possível herdeiro. Como já dito, a
Religiosidade (catolicismo) está presente em todos os aspectos da vida dos
testadores, portanto, dessa maneira, muitos dos objetos relatados nos testamentos
são de cunho religioso.
Os objetos de cunho religioso nos testamentos possuíam importância acima
do valor, dado que representavam a fé dos indivíduos.
Esses objetos partiam dos mais simples, produzidos com materiais mais
abundantes, até objetos mais complexos, raros e realizados com materiais mais
valorizados e singulares, como o caso do Capitão Manoel Pereira Taborda, que

1É necessário esclarecer que, somente depois da Independência do Brasil, com a resolução de 31 de


outubro de 1831, é que a idade de 21 anos foi definida como idade limite da menoridade de um filho,
ou seja, idade limite do pátrio poder sobre o mesmo e só em 1990, com o Estatuto da Criança e do
Adolescente, é que a idade de 18 anos seria fixada como limite da menoridade no Brasil. Ver: “RIO
GRANDE DO SUL. Ministério Público. Centro de Apoio Operacional de Infância e da Juventude.

21
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

possuía alguns livros divididos entre livros de cunho militar/históricos e livros de


cunho religioso, ou como o próprio testador se refere: “outro maiz Estimulos de amor
Divino”.

= Possuo maiz os Livros Seguintes = Quatro tomoz chamados Historia de


Portugal restaurado, e doiz Tomoz do Capitao’ de Infantaria Portuguez, e
hu’ tomo da vida de Denil de Mello de Castro primeyro Conde daz Galvuyas,
e Abecedario de militar, e Hum Tomo, maiz outro Tomo tambem Militar, e
outros maiz, Monte Coculas [sic] e Memorias Militarez, e Avizos de Hum
Official Velho a hum Official Mosso, e o Regimento das novas Ordenanças e
hum espiritual Pecador Convertido, e outro maiz Estimulos de amor Divino,
maiz outro Chamado Rimas de Pina = (Rezisto com que faleseo o senhor
Manoel Pereira Taborda (Cap.) em 04/09/1768 apud MOTA. Antonia.
SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.232).

Outro testamento importante ao introduzir a ideia de objetos religiosos, é o


que remete à relíquia de Santo Lenho.

Declaro que tenho hum Senhor Santo Lenho este deyxo ao meu filho Jozê
Paulo, e quero que reparta igualmente com meu filho Paulo Viegaz, e não
quero que este entre a inventario, po [sic] ser minha ultima vontade. =
(Rezisto com que faleseo a senhora Thereza de Jesuz em 05/10/1768 apud
MOTA. Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001,
p.235).

Acreditamos que a relíquia de Santo Lenho é parte da verdadeira cruz em


que Cristo teria sido martirizado, inserindo-se no imaginário construído ao redor dos
mistérios da “paixão”.
As relíquias sempre foram valorizadas pelas sociedades católicas, em
relação à qual estão bastante bem estudadas pela historiografia em diversos
aspectos, sobretudo teológico, político e econômico. “A existência e o culto às
sagradas relíquias fazem parte da espiritualidade cristã e revelam o simbolismo
oriundo destes objetos considerados sobrenaturais e capazes de mediar o contato
entre o crente e Deus” (NASCIMENTO, 2014, p. 106).
Portanto, é crucial imaginar que, a maranhense, Thereza de Jesus, cria
possuir um dos fragmentos da Santa Cruz de Cristo, e almejava deixá-lo a seus
filhos.
Nos testamentos, destacam-se questões bastante peculiares, ainda que
constituíam partes importantes para uma reconstrução histórica do cotidiano
Católico transcorrido no Maranhão Colonial.
Vejamos o exemplo da Folhinha portuguesa:

// Declaro que quero se digão por minha alma Vinte e Sinco Capellas de
missas, huma ao Santo do meu nome outra ao Anjo {{93v}} Anjo da minha
guarda, [...], outra ao santo de quem a Igreja rezar no dia do meu
falescimento, alias sendo em dia de feria o Santo que lhe atribuhir a folhinha
portuguesa (Rezisto com que faleseo o senhor Carlos Pereira em
26/04/1765 apud MOTA. Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI.
José Dervil, 2001, p.192).

Estatuto da criança e do adolescente e legislação pertinente. Porto Alegre: Procuradoria Geral de


Justiça, 2007.” Apud CARDOZO, 2017, p. 94.

22
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

A “folhinha portuguesa”, dentre os vários outros termos usados neste


testamento, foi a expressão que nos amarrou, porque nos fez vislumbrar a atualidade
visto que, nos dias atuais, a maioria das igrejas católicas utiliza “folhetos” para
discorrer suas missas, estes também servem para que os fiéis acompanhem a
celebração religiosa.
Um exemplo de folhinha portuguesa usada a pouco tempo é a da “Missão
Católica Portuguesa no Reino Unido” tendo o Pe. Pedro Rodrigues por responsável,
esta folhinha foi publicada no dia 20 de setembro de 2009, em
www.mcportuguesa.org.uk, porém pode ser encontrada nos sites da Yumpu1 e da
Scribd2.
Já os folhetos usados no Brasil estão disponibilizados nos sites o Arquisp3 e
o da Editora Paulus4.
Portanto, percebemos que as folhinhas portuguesas marcaram presença no
Brasil há muito tempo, e que possivelmente foi um dos estímulos e inspirações que
resultaram na criação dos folhetos usados no Brasil contemporâneo. Podemos
perceber, dessa maneira, a importância do estudo histórico no Maranhão que, com
sua carga testamenteira, ajuda no descobrimento de fragmentos que formam o
Brasil atual.
Um dos elementos mais marcantes em uma religião é a fé. No catolicismo, a
fé se demonstra de diversas maneiras, umas destas maneiras ostenta-se nas
promessas. Essas promessas sempre vinham com pedidos e com deveres que
precisavam ser cumpridos para sua plena realização, entretanto alguns testadores
ficaram devendo-as para figuras religiosas.

// Declaro, que devo fazer huma fezta ao Senhor Sam Benedito com
Sermao’, e Missa cantada por certa promessa, que fiz ao mesmo Santo por
alcançar dele Couza [corr.] me fez: e por que ella foi [corr.] a respeito de
meo marido [corr.] peço em attençao’ a Esta [corr.], a queira por mim
totalmente cumprir, e Satisfazer: e quando assim o dito meo marido nao’
obre, meos Testamenteiros o farao’ inteiramente de meos bens de Sorte
que dem [corr. 2 palavras] a minha promessa, por Ser assim minha {{315}}
minha ultima vontade // (Rezisto com que faleseo a senhora Anna
Marcianna Evangelho em 29/01/1760 apud MOTA. Antonia. SILVA.
Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.125).

Além de Anna Marcianna Evangelho, podemos exemplificar ainda através do


testador Thomaz Ferreira da Camera: “// Declaro, que fiz promessas de Esmolla de
vinte mil reis, dez para a Capella dos Terceiros de Sam Francisco vindo a ter efeito,
e dez para Sam Joâo, que Se darão completaz as condiçoens, com que os dei. //”
(Rezisto com que faleseo o senhor Thomaz Ferreira da Camera em 05/06/1767,

1 Folhinha portuguesa – Missão Católica Portuguesa no Reino Unido. Yumpu. Disponível em:
<https://www.yumpu.com/pt/document/read/12935013/folhinha-missao-catolica-portuguesa>. Acesso
em: 27 de maio de 2019.
2Folhinha Portuguesa. Scribd. Disponível em: <https://pt.scribd.com/document/14164341/Folhinha-

Portuguesa>. Acesso em: 27 de maio de 2019.


3 Liturgia – Folheto Povo de Deus. Arquidiocese de São Paulo. Disponível em:

<http://www.arquisp.org.br/liturgia/folheto-povo-de-deus>. Acesso em: 27 de maio de 2019.


4 O domingo – Liturgia. Paulus. Disponível em: <https://www.paulus.com.br/portal/o-domingo#.

XOwZx4hKjIU>. Acesso em: 27 de maio de 2019.

23
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

apud MOTA. Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001,
p.222).
Além de promessas, outros testadores também ficaram por dever algumas
instituições religiosas, seja por rituais fúnebres solicitados e não pagos, dízimos, ou
dívidas sem explicações profundas. O fato é que as instituições que representavam
o catolicismo no Maranhão colonial tinham grande participação no cotidiano
monetário dos indivíduos ali presentes.
Deve ao Dizimo:

= Devo mais ao Dizimo do anno passado de mil setecentos e oitenta e oito


quatro arobas de Algodam = Declaro q’ meus Testamenteiros me mande
dizer com brevidade que lhe for possível huma capella de Missas em
Satisfaçam de Algumas {{123v}} De Algumas Missas que eu prometi e por
esquecimento as nam mandei dizer (Rezisto com que faleseo o senhor João
Lourenço Rebello em 06/07/1789 apud MOTA. Antonia. SILVA. Kelcilene
Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.277).

Deve os sufrágios e funeral que foram realizados pela esposa:

// Declaro, que devo no Convento de Santo Antonio todos os Sufragios, e


funraes, que no dito convento Se fizerao’ pela minha mulher, e assim
tambem vinte mil reis ao Padre Ignacio Xavier [corr.] duas Capellas de
Missas, que disse tambem da {{304}} tambem da dispoziçao’ della; e meya
capella ao Padre Joze de Moraes Pimenta (Rezisto com que faleseo o
senhor Jozé Barbosa de Albuquerque em 06/03/1767 apud MOTA. Antonia.
SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.216).

Muitos testadores usavam boa parte de sua fortuna para a realização de


missas, entretanto, como já dito, uma significativa fração dos numerários destes
sujeitos testamentários era constituída bens materiais como objetos. Destarte, o
pagamento de missas era realizado por vezes através do uso de objetos.

// Declaro que deixo hum rolo de pano ao convento de Santo Antonio para
que Se mandem dizer em missas pela minha alma, a Saber a Santo
Antonio, e ao Padre Sam Francisco, e a Nossa Senhora da Conceiçao’
igualmente o que importar o rollo de pano (Rezisto com que faleseo o senhor
Manoel Rodrigues Janella em 10/07/1764, apud MOTA. Antonia. SILVA.
Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.184).

A missas eram realizadas almejando fins diversos, logo, muitas


características podem ser avaliadas desta simples obra. Um dos acontecimentos
ligados a esta cerimônia era a celebração de missas para os santos, por vezes as
missas também eram usadas para pagar promessas para eles. Entretanto, temos o
principal objetivo das missas: a salvação da própria alma do testador que a requeria.
Isso exemplifica o temor religioso da condenação e a procura insaciável pela
salvação, que, para a ocasião do Maranhão colonial poderia ser alcançada através
de, dentre outras coisas, missas.
Como já mencionado, as missas apresentam-se de maneira essencial na
vida e morte dos colonos, alguns chegavam a adjurar em seus testamentos mais de
100 missas.

= Meus Testamenteiros mandarám dizer as Missas seguintez, sinco em


louvor das sinco chagas de meu se {{157}} De meu Senhor JESUZ Christo,

24
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

sinco ao santo Anjo da minha Guarda, sinco ao santo do meu nome, sinco a
Nossa Senhora da Conceiçam, sinco a Nossa Senhora da Boa Morte, sinco
a Nossa Senhora da Consolaçam, sinco a Nossa Senhora do Carmo, sinco
ao Senhor Jesus dos Santos Passos, sinco ao Senhor Sam Jozé, sinco ao
Santo Antonio, sinco Sam Sebastiam, sinco a Santa Luzia, sinco a Santa
Barbara, sinco a Santa Brigida, sinco a Santa Rita, sinco a Senhora Santa
Anna, sinco a Santa Apolonia, sinco pelas almas do Purgatorio = Assim
mandaram dizer vinte capellas de missas pela minha alma, mas huma
capella pelas Almas de meus Paés, mais duas capellas pelas almas dos
meus escravos vivos e defundos. Maiz huma capella por algunz encargos
que possa ter. Maiz huma capella por algumas promessas que tenha feito
que por esquecimento az nam cumprisse. Mais huma capella pelas almas de
todos os Irmãos falecidos das minhas Irmandades, e ordens terceiras de
que sou Irman = (Rezisto com que faleseo o senhor Francisco Jozé Mendez
(Cap.) em 03/01/1799 apud MOTA. Antonia. SILVA. Kelcilene Rose,
MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.300-301).

Como demonstrado, os cotidianos escritos nos testamentos do Maranhão


colonial (1676-1799) retratam-se de maneira particularizada, onde podemos
observar apenas pequenos trechos principais de histórias de vidas que estavam a se
encerrar, já que a maioria dos testamentos tinham como principal excitação para sua
realização a morte — quando um considerável número de testadores que se
declarava doente a temia.

Testamentos e o salvo morrer católico

Ser enterrado em instituições religiosas ou em outros locais considerados


santos era um prestigio, graças a grande popularidade e importância de tal feito, que
passou a custar caro, uma vez que a necessidade da busca pela salvação submetia
os indivíduos a procurar pelos melhores túmulos que, por sua vez, eram
encontrados em Matrizes, Igrejas ou Capelas muitas vezes administradas por
Irmandades.

As irmandades que não possuíam cemitério próprio realizavam seus


enterros no adro das matrizes ou de outras igrejas, ser enterrado próximo
aos altares era motivo de honra na medida em que colocava o defunto
próximo ao seu santo de devoção, portanto era algo destinado somente aos
irmãos de maior prestígio, qualquer que fosse o status social da irmandade
(RIBEIRO, 2008, p. 5).

As sepulturas apresentadas nos testamentos (1676-1799) poderiam conter


preços diferentes, que oscilavam paralelamente com a reputação do local,
considerada de maior ou menor prestigio e importância religiosa. Ainda que com um
preço alto, a maioria dos testadores aderiram ao enterro nas instituições religiosas.
Dispostas, a seguir, temos o Quadro 02 que demonstra de forma simples e
fiel quais instituições religiosas receberam mais corpos de acordo com os
testamentos do Maranhão colonial (1676-1799):
Quadro 02: Nome da Instituição da tumba e Número de sepultados
Nome da Instituição da tumba Número de sepultados
Igreja/Convento de Santo Antonio 19
Igreja/Convento de Nossa Senhora do Carmo 13
Igreja/Convento de Nossa Senhora das Merces 12

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Igreja/Convento de Sao Francisco 11


Capella/Esquife de Nosso Senhor Bom Jezus dos Passos 10
Em dúvida do local da Sepultura 7
Na Sé Cathedral de São Luis 5
Igreja de São Joao 4
Local não especificado 4
Na Matriz de São Luis 2
Na Igreja que der 1
Capella de Nossa Senhora do Desterro 1
Igreja de Nossa Senhora de Nazareth (Itapecuru) 1
Na Matriz de Nossa Senhora do Rozario 1
Na Matri da Villa de Santo Antonio de Alcantara 1
Igreja de Nossa Senhora da Conceicao’ 1
Capella do Recolhimento de Nossa Senhora da Annunciacao’ e
1
Remedios Ursulinas do Coracao’ de Jezus
Em Claustro da Ordem Terceyra da Penitencia 1
Na Matriz da Villa de Santo Antonio de Alcantara 1
Indeterminadas pelo emprego das (...) 1
Fonte: Elaborado pelos autores com base nos Arquivo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do
Maranhão – ATJ: Livro de Registro de Testamento 1751-1759; Arquivo Público do Estado do
Maranhão – APEM: Livro de Registro de Testamentos 1781-1791. MOTA, Antônia da Silva; SILVA,
Kelcilene Rose; MANTOVANI, José Dervil. Cripto maranhenses e seu legado. São Paulo: Siciliano,
2001.

Todo o processo que envolve a morte no Maranhão Colonial revela um


número significativo de características deste Estado, uma vez que “a morte, ao cabo
de toda a aventura humana, continua sendo um revelador particularmente sensível.
Pierre Chaunu pode dizer que toda a sociedade se mede ou se avalia, de certa
maneira, pelo seu sistema de morte” (VOVELLE, 1996, p. 12).
Destarte, pesquisas relacionadas a morte apresentam fundamental
importância para a análise das sociedades, de sua evolução, crenças e
comportamentos. Tornando esses estudos, dessa forma, em mais um aval que
reafirma a importância dos estudos realizados sobre os testamentos, pois são uma
das principais fontes históricas utilizadas para a compreensão e reconstrução do
morrer.
Uma característica extremamente importante da morte colonial era o uso da
mortalha — lençol com o qual cada testador seria sepultado. Sobre isso, difundiu-se
no mundo católico o costume de amortalhar os cadáveres com hábitos de ordens
religiosas que estavam agudamente relacionados às irmandades, pois muitas
confrarias adotavam hábitos de santos como uma de suas características. De
acordo com O Concílio Vaticano II, “o hábito é sinal de consagração” 1 (Cf. Perfectae
Caritatis, n. 17).

O uso dos hábitos referentes aos santos fundadores ou padroeiros de uma


congregação religiosa, como mortalha, tinha uma função cristã escatológica.
O objetivo era garantir a intercessão desse santo junto a Deus, como forma

1 PAPA PAULO VI. Decreto Perfectae Caritatis sobre a conveniente renovação da vida religiosa.
Vaticano, 28 de outubro de 1965. Disponível em:
<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-
ii_decree_19651028_perfectae-caritatis_po.html >. Acesso em: 28 de maio de 2019.

26
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

de assegurar a salvação eterna do indivíduo que envergasse essa veste


envolvendo seus restos mortais (FERRAZ, 2016, p. 111).

O número de indivíduos que em vez de solicitarem um hábito, se


conformaram apenas com o pedido de um lençol para envolver o corpo é
relativamente bastante reduzido entre os testadores analisados.
Todavia, é preciso ressaltar o aspecto de que geralmente eram os mais
pobres que solicitavam essa mortalha (lençol), e sabemos que a percentagem de
indivíduos pobres que efetuavam testamento era relativamente baixa, como no caso
do Senhor Manoel Francisco Marques que solicitou apenas o uso do lençol: “=
Quero meu corpo Seja Sepultado na Igreja de Sao’ Joao’ e amortalhado em hum
lensol e pesso aos Irmaos’, da dita confraria, de quem tambem Sou Irmao’, e todos
os annos pago meus a’noaes me queirao’ levar para a Sipultura [...]” (Rezisto com
que faleseo o senhor Manoel Francisco Marques em 17/10/1769 apud MOTA.
Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.240).
Em contrapartida, outros testadores procuraram partir usando mais de uma
mortalha:

// Meo corpo Será Sepultado na capella do Carmo, e Será acompanhado


pelo Reverendo Paroco, Cruz da Fabrica, e Communidades do mesmo
Carmo, e Merces, e capellaens, e Irmaons dos Passos, como Irmâo, que
sou, [...], e quero, que meo corpo Seja amortalhado no habito do Carmo, e
por Sima no de meo Padre Sam Francisco por querer enterrarme com
ambas, e de tudo se dará a esmolla costumada // (Rezisto com que faleseo
o senhor Thomaz Ferreira da Camera em 05/06/1767, apud MOTA. Antonia.
SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI. José Dervil, 2001, p.221)

A análise testamental nos revelou ainda que alguns testadores nem


solicitaram mortalha. Observemos agora os hábitos mais utilizados como mortalha
nos Testamentos do Maranhão Colonial:

Quadro 03: Habito ou Lençol escolhido como Mortalha


Habito ou Lençol escolhido como Mortalha Número de adeptos
Abito de São Francisco 34
Abito de Nossa Senhora do Carmo 16
Abito de Santo Antonio 12
Não fala em Mortalha 11
Abito de Nossa Senhora das Merces 10
Qualquer Abito que se achar e/ou em qualquer Lençol 8
Indeterminada pelo emprego das (...) 2
Abito de Nossa Senhora da Annuncicao’ 1
Abito de Nosso Senhor Bom Jezus dos Santos Passos 1
Abito de São Pedro 1
Mortalha em Tunica que o Testador sempre teve 1
Não Especificada 1
Fonte: Elaborado pelos autores com base nos Arquivo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do
Maranhão – ATJ: Livro de Registro de Testamento 1751-1759; Arquivo Público do Estado do
Maranhão – APEM: Livro de Registro de Testamentos 1781-1791. MOTA, Antônia da Silva; SILVA,
Kelcilene Rose; MANTOVANI, José Dervil. Cripto maranhenses e seu legado. São Paulo: Siciliano,
2001.

27
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Vale destacar que o número de mortalhas ultrapassa o número de testadores


pelo fato de que alguns testadores foram amortalhados com mais de um hábito.
Algumas outras questões relacionadas a morte foram encontradas nos
testamentos, como a escolha da própria alma como herdeira (ocorrência
razoavelmente comum).

= E tudo o mais que restar das ditas duas partes de meus benis no cazo
que me perteçam depois de tirada a vintena quero que meu Testamenteiro
me mande dizerem Missas metade pela minha alma e metade pelas almas
do Purgatorio os quaes instituo erdeiros do Remanescente dos ditos meus
benis = (Rezisto com que faleseo o senhor João Lourenço Rebelho em
06/07/1789 apud MOTA. Antonia. SILVA. Kelcilene Rose, MANTOVANI.
José Dervil, 2001, p.277).

Normalmente, ao declarar a própria alma como herdeira, boa parte da


herança deste testador era gasto em missas para sua própria salvação.
Morrer no Maranhão Colonial tinha uma significação e representação muito
religiosa, estar doente ou o simples fato de temer a morte despontava nos indivíduos
daquela sociedade grande “Fé”, seja por temer a condenação ou por outros motivos
convergentes.

Considerações finais

Vivemos em um mundo moldado por presenças históricas tão cotidianas que


mal são percebidas pela população em geral. Esta sociedade usa os testamentos
como forma de suprir a necessidade da disposição de bens para seus descendentes
ou ascendentes; entretanto, aos poucos, está se revelando a existência de toda uma
questão histórica que moldou a vida e o cotidiano da sociedade maranhense
possibilitando, portanto, a compreensão de parte fundamental do desenvolvimento
social, cultural e econômico, não apenas no Estado do Maranhão, mas em toda
sociedade brasileira. Viabilizando, dessa forma, uma maior capacidade de entender
o presente.
Os testamentos estão possibilitando uma reconstrução histórica, social,
financeira e religiosa do Maranhão, oportunizando discussões a respeito da
escravidão, da morte e de outras questões que foram fundamentais para o
desenvolvimento estadual, como o próprio catolicismo, religião que, apesar de tantas
outras, ainda predomina no Brasil contemporâneo.
O catolicismo, suas irmandades e atores sociais moldaram pensamentos
que ainda hoje podem ser, mesmo que de forma atenuada, perceptíveis. Através
das doações recebidas e do grande capital adquiridos observados na leitura
testamentária, que se enraizou deixando fortes presenças católicas não apenas no
âmbito ideológico, mas também físico.
Contudo, apesar dos estorvos encontrados para a produção e para o
desenvolvimento do projeto, estamos começando a compreender os testamentos
como fruto de uma dinâmica social capaz de fornecer além de múltiplas informações
sobre a vida do morto, apontar aspectos socioculturais da sociedade em que ele
viveu e desse modo desconstruir visões estáticas sobre a História, que reforçam
estereótipos e contribuem para a manutenção de preconceitos.

28
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Referências

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

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Biblioteca do Tribunal de Justiça do Maranhão – ATJ: ivro de Registro de
Testamentos 1751 - 1759, fl. 59v).

30
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

SER MULHER E SER ESCRAVA NO MARANHÃO SETECENTISTA

Laysla Eduarda dos Santos Lopes1


Nila Michele Bastos Santos2

Introdução

A condição do ser humano, de agir por si mesmo e ser livre durante muito
tempo foi negada ao povo negro no Brasil, que marca sua história com a escravidão
e a subserviência à sociedade senhorial, nesse contexto as mulheres negras não
ficaram alheias a essa condição, pelo contrário, foram expostas a vários tipos de
abusos sendo eles físicos, psicológico, sexuais e tanto outros que lhes foram
atribuídos não somente pela sua condição de escrava, mas também por sua raça e
gênero em meio ao patriarcado, no qual se encontravam inseridas. A resistência foi
o modo para sobreviver às imposições e ao local que não lhes pertencia, a vida mais
amena poderia vir através das relações com seus senhores, seja elas afetivas ou
não, que poderiam lhes oferecer as alforrias, sinônimo de liberdade.
As cartas de alforrias vinham através da concessão de um senhor a escrava,
que oficializado concedia a libertação, mas nos testamentos estão comprovações de
que ela não vinha facilmente, é possível ler nas entrelinhas da documentação que
“os bons serviços prestados” são na verdade frutos de uma resistência ao cativeiro
que gerava teias de relações e de interesse mútuo entre senhor e escrava, o que
não deixa de lado os outros tipos de resistências, é claro. Ao mesmo tempo que sua
condição de ser mulher poderia lhe trazer os atributos para a sua soltura, também
lhe acarretava maiores imposições a serem enfrentadas, o concubinato de senhores
e escravas, por exemplo, foi uma realidade da sociedade maranhense, onde a
escravidão era seu traço marcante, e as vidas das mulheres negras não passavam
de mercadorias a serem usufruídas.

Ser mulher, e ser escrava dentro de uma sociedade extremamente


preconceituosa, opressora e sexista, é reunir todos os elementos favoráveis
a exploração, tanto econômica quanto sexual, e também ser alvo de
humilhações da sociedade nos seus diferentes seguimentos
(GIACOMINI:1988, p. 26).

O que se via na sociedade colonial maranhense era a condição em que foi


colocada a prova, a própria natureza humana dessas mulheres; retirou-se assim seu
status enquanto pessoa, obrigando as escravizadas lutarem pela vida, travando
lutas diárias contra o sistema para se tornarem seres protagonistas de sua própria
história. Através da subjugação feita à mulher negra e escravizada, a “obediência”

1 Laysla Eduarda dos Santos Lopes - Bolsista do projeto com os dados do EDITAL PRPGI N° 03/2018
aluno do ensino médio integrado ao curso de petróleo e gás e estudante do curso de inicial e continua
em Educação e Relação Étnico-Raciais do IFMA- Campus Pedreiras E-mail:
Eduarda.santos@acad.ifma.edu.br ou layslaedu44@gmail.com
2 Orientadora PIBIC ENSINO MÉDIO 2018/2019 - EDITAL PRPGI nº 03/2018. Mestra em História

Social, Professora EBTT de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do


Maranhão. Coordenadora do NEABI – IFMA/campus Pedreiras e do LEGIP- Laboratório de Estudos
em Gênero do IFMA campus Pedreiras. E-mail: nila.santos@ifma.edu.br

31
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

encobria a resistência à exploração e opressão vivida por ela, trazendo assim a ideia
de que o ser escravo não era dotado de concepção e cultura. Entretanto um novo
olhar sobre essa lógica deve ser lançado, as alforrias por exemplo poderiam ser
garantidas por vários meios de acordos e barganhas, o fato dos “bons serviços
prestados’’ era somente uma das formas como isso poderia ser angariado e
demonstra que entre senhores e escravizados havia sociabilidades impossíveis de
serem travadas se ambos não compartilhassem da mesma cultura, assim a
negociação também foi uma importante arma de resistência que garantia até meios
de sobrevivência. Como exemplifica o testamento abaixo:

// Declaro que destes escravos se a tempo de meu fallescimento for viva a


cafuza Ignacia he minha ultima vontade que esta fique forra livre e izenta de
toda penção de captiveiro o que lhe faço pelo bom serviço e fidelidade com
que me tem servido e tambem quero que meus testamenteiros lhe dêm de
esmolla vinte mil reis e cazo que ella seja fallescida lhe mandarão dizer em
missas dez mil reis que tudo lhe faço pello amor de Deos e ser minha ultima
vontade //(Traslado do testamento João Pereira Torres na Ribeira [do]
Mearin. Arquivo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do Maranhão – ATJ:
Livro de Registro de Testamentos 1781-1791. nº2, fl. 25v, 04 fev. 1784)
(grifo nosso).

Uma vez que suas relações se tornavam cada vez mais próximas de “seus
donos”, já que estavam em sua maioria condicionadas a trabalharem exploradas nas
casas senhoriais, diversas estratégias de sobrevivência foram criadas por mulheres
escravizadas, que não romperam com o cativeiro, mas fizeram-nas sobreviver por
meio dele, podendo até mesmo conseguir não somente sua alforria, mas também as
dos seus filhos, parentes dentre outros, como percebe-se no Traslado dos autos do
testamento 1751 – 12– 02 de João Theófilo de Barros: “A mesma dita escrava
[Sylvana] criou com muito trabalho uma rapariga mameluca chamada Januária, a
qual fazendo pela honra a deixo forra, livre e isenta de cativeiro e se casar sendo
com pessoa capaz se lhe dara cinco rolos de pano” (MOTA; SILVA; MANTOVANI,
2001. p. 81)
Esse e outros fragmentos nos levam a inferir como a mulher negra soube
travar uma luta constante contra a imposição patriarcal e coisificação do sistema.

A ausência de trabalho sobre mulheres escravas

Na atual conjuntura, em que as mulheres negras vêm lutando pelo seu


espaço na sociedade, principalmente no âmbito acadêmico, falar sobre a escravidão
feminina e o olhar pelo qual as mulheres do Maranhão setecentista, assim como
outras escravizadas foram subjugadas, possui várias restrições. Há apenas uma
minoria de estudos voltados para a população de mulheres escravizadas, já que as
fontes que falam sobre elas e da história que viveram foram escritas pelo ponto de
vista masculino de quem detinha o poder, sendo assim o que temos é um olhar
limitado de suas condições.
Mesmo nos estudos voltados para resistência da mulher negra contra sua
condição de escrava a qual é submetida, a ampla dominação é facilmente ocultada e
excluída do âmbito acadêmico, afetando o conhecimento de todo um povo. As
relações e vida dessas mulheres, tiradas de seus lugares de origens, para serem

32
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

menosprezadas, seus corpos invadidos, que buscam formas de resistência para a


liberdade ou mesmo uma vida mais amena, parecem não ser de tanto interesse das
academias, tendo em vista que os estudos e pesquisas voltados para essas
mulheres na condição escrava, são extremamente difíceis de se encontrar e alguns
ainda são vagos ou muito prolixos, tornando assim um conhecimento complexo e
destinado a poucos. Na verdade, não encontramos nada destinado exclusivamente
à educação básica. Dentre os estudiosos que realizaram trabalhos mais acessíveis
voltados para as mulheres negras e escravizadas, compilamos os trabalhos de Silva
(2010), Pereira e Abrantes, (2013), Vila e Cruz (2010) e Mendonça (2004). A
ausência de mais trabalhos pode ser explicada pela falta de documentações que
possibilitem um estudo mais aprofundado como também existem poucos registros
feitos sobre esta temática, além da pouca visibilidade que até hoje é existe em
relação às mulheres negras e escravizadas. Esse conjunto de fatores é
preponderante para que esses trabalhos sejam cada vez mais escassos reforçando
a máscara da invisibilidade racial e a própria discussão na educação básica.

Escravidão: homem x mulher

Apesar da escravidão afetar todo o povo negro havia diferenças entre a


escravidão de homens e mulheres e a forma como os mesmos eram explorados, as
mulheres escravizadas muitas vezes tinham condições ditas “menos rígidas”,
exercendo os trabalhos domésticos enquanto os homens, por sua vez, detinham os
trabalhos nas lavouras, já que o Brasil por muito tempo teve como sua principal
forma econômica o regime plantation, baseado no latifúndio, agro exportação e mão
de obra escrava, conforme Vila e Cruz (2010, p. 3) discorrem sobre isso,

Uma das evidências de que as condições das mulheres negras


escravizadas diferiam da dos homens negros é que enquanto estes eram
maioria nos trabalhos na mineração, engenhos e lavouras, elas eram
predominantes no âmbito da escravidão doméstica, estando, portanto, em
um contato mais prolongado e doméstico com seus senhores.

Entretanto as mulheres negras sofriam vários tipos de abusos,


diferentemente dos negros escravizados pois se encontravam mais próximas de
seus senhores, tornando-as alvos mais fáceis da masculinidade e patriarcado
compulsório dos que as tratavam como objeto e submetiam-nas às suas vontades. A
ambivalência dessas relações é extremamente complexa, pois estando mais
próxima de seu senhor, as escravizadas poderiam criar relações e negociações que
pudessem estar mais perto de garantir sua liberdade, ao mesmo tempo ela sofria a
dinâmica da opressão, típica do espaço doméstico que era restringido as mulheres.
Às mulheres negras cabiam-lhe as obrigações de cozer, cuidar das crianças,
lavar dentre outras atividades atribuídas ao lar, além de carregar o peso de serem
mulheres negras o que lhes diferia das mulheres brancas que ainda assim por mais
submissas que fossem não se encontravam na mesma situação que as mulheres
negras. Os negros escravizados por sua vez possuíam mesmo que precariamente,
condições que lhes favoreciam de mãos tratos que só as mulheres passaram, pois
além de tudo eram homens e nessa situação não sofrendo com abusos sexuais nem

33
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

outros tipos de torturas que eram empregadas só as mulheres, simplesmente por


seu gênero.

A desumanização do ser escravo

As teias de relacionamento entre senhor e escravo eram muito complexas,


de um lado escravos que eram punidos por seus senhores por cometerem possíveis
crimes e do outro senhores que cometiam crimes contra seus escravos e não eram
punidos, aliás o escravo do ponto de vista da sociedade da época era apenas uma
mercadoria a cargo e de responsabilidade de seu “dono”, seus atos inadequados
deveriam ser punidos e, por vezes, tais punições evadia a concepção que o escravo
era um ser humano, sua associação a um animal não era incomum e até era usado
como justificativa para que as punições fossem cada vez mais cruéis. A
desumanização do escravo perpassa por conflitos cada vez mais intensos no qual o
cativo, por vezes, respondia com uma atuação violenta, mas isto não significa que
ele seria um “ser passivo ou rebelde”, mas apenas procurava se defender e
manifestar seus desejos. Santos explica que,

Os atos violentos eram apenas algumas das muitas formas encontradas


pelos sujeitos escravizados de manifestarem suas vontades e negarem a
sua condição de “coisa”, pois, ao traduzirem seus sentimentos através de
infrações e transgressões, estavam, mesmo que indiretamente, indo de
encontro ao sistema escravista, que os relegava a condição de ser
“coisificado”, de mera “mercadoria (SANTOS: 2013, p.6).

O escravo sofria das mais diversas e perversas formas e apesar de ser


coisificado tinha e fazia cultura que era manifestada das mais variadas formas por
meio de seus rituais e crenças, esta autonomia cultural, ainda que limitada, tornava
sua resistência cada vez mais evidente, despertando a atenção dos senhores que
queriam lhes impor a ideologia cristã. Apesar das tentativas dos “donos” de escravos
de impor e difundir uma religião (catolicismo) e costumes que não eram
originalmente dos negros africanos, os escravizados resistiram à coisificação das
mais variadas formas. Segundo Simões,

o interesse dos senhores em conseguir que os escravos sofressem a


influência dos preceitos da ideologia cristã, sendo esta disfarçada em algo
benéfico, que de certa forma "acalantaria os espíritos de seus escravos" e,
consequentemente os tornariam submissos ao sistema escravocrata
(Simões:2000, p.3).

As mulheres negras por mais objetificadas que fossem na sociedade


patriarcal colonial tinham, diferentemente da cultura que trouxeram consigo, papel
de destaque. Eram delas a responsabilidade das orações feitas para a proteção de
males, diferentemente do cristianismo em que a mulher se torna submissa aos
homens, nas religiões de matrizes afro as mulheres eram bem mais ativas e
presentes nas manifestações religiosas. Para que tudo corresse bem, todos
necessitavam de suas “intercessão”, os capoeiristas pediam conselhos e proteção
às mães de Santo e não faziam nada sem lhes consultar, isso só demonstra e
evidencia a importância das mulheres, centros de tais manifestações, e exemplifica

34
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

uma das tantas formas com as quais a cultura afro é manifestada: a forma de
dançar, vestimenta, adereços que mostram a identidade de cada povo e assim elas
traziam, apesar de estarem longes de seu lugar de origem, um pouco da sua forma
de viver consigo, se tornando mais resilientes à opressão que sofriam.

A cultura negra possibilita aos negros a construção de um “nós”, de uma


história e de uma identidade. Diz respeito à consciência cultural, à estética,
à corporeidade, à musicalidade, à religiosidade, à vivência da negritude,
marcadas por um processo de africanidade e recriação cultural
(GOMES:2003, p. 5).

Todas as formas pelas quais a cultura era manifestada, fazia com que a
vivência negra se tornasse mais presente, criando suas especificidades para
resistência, os terreiros é só uma delas que formou um sincretismo religioso e
estimulava a coragem dos negros à favor da sobrevivência, isso não significa que a
mesma estimulou os escravos à rebeldia e sim despertou-lhes expressarem sua
identidade, mostrando que o povo negro possuía seus saberes ainda de forma ativa,
apesar do autoritarismo pelo qual viviam.

Escravidão feminina

A crueldade da escravidão feminina oprimiu todas as mulheres escravas que


vieram para o Brasil, fez com que a vida delas mudasse completamente tendo que
se adaptarem ao novo ambiente em que estavam condicionadas a viver. As
mulheres escravizadas foram exploradas como amas de leite, deixavam de
amamentar seus próprios filhos, que estariam dessa forma condicionados à morte,
para que pudessem alimentar os filhos de seus senhores, violando assim o direito
dessas mulheres ao seu próprio corpo. Em atos muitas vezes desesperados muitas
mães negras acabavam matando seus próprios filhos, isso apenas para que
estivessem libertos da tortura e da escravidão. O trecho abaixo mostra como a
liberdade dessas mulheres eram usurpadas ao serem separadas de suas famílias.

Ah! Meu filho! Mais tarde deram-me em matrimônio a um homem, que amei
como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união veio uma filha
querida, em quem me revia, em quem tinha depositado todo o amor da
minha alma: uma filha que era a minha vida, as minhas ambições, a minha
suprema ventura, veio selar a nossa santa união. E esse pais de minhas
afeições, e esse esposo querido, essa filha tão extremamente amada, ah
Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo até a própria
liberdade! (REIS:1991, p. 92).

A desumanidade que se instaurou não se atribuía apenas à separação das


mulheres de sua família e seus filhos, mas também aos castigos regulares. Almeida
(2011) relata brutais castigos do senhor Antônio de Araújo às suas escravas (mãe e
filha) que eram mantidas constantemente presas em um tronco pelo pescoço, seus
atos de crueldade foram espalhados por todo a vila em Olinda, cansadas de tanto
sofrimento fugiram em busca de ajuda que através de investigações do Bispo da
região puderam constatar as torturas sofridas por essas escravas. Quando
convidado a vendê-las, colocava preços exorbitantes tornando a venda quase
impossível e aumentando ainda mais as torturas, tal comportamento de Antônio

35
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Araújo tinha como estratégia fazer com que elas voltassem a se deitar com ele, isso
mostra a objetificação da mulher negra que quando se recusava a fazer as vontades
de seus senhores, eram submetidas a um número maior de torturas. Por estarem na
“base da pirâmide”, as mulheres de cor sofriam diversos abusos já que não eram
consideradas donas de seus próprios corpos. Segundo Baseggio e Silva

As negras, na sociedade colonial, viviam nas casas-grandes e eram muitas


vezes as que iniciavam os filhos dos grandes proprietários na vida sexual.
Eram amas de leite, cuidavam da casa, prestavam serviços, e muitas vezes
ainda eram submetidas às condições de violência sexual. Perto do fim do
regime colonial, muitas conseguiam suas cartas de alforria, conseguindo
assim, a liberdade depois de anos de escravidão. Mesmo quando livres,
ainda encontravam dificuldades em seus caminhos, agora livres, muitas
vezes não tinham para onde ir, e acabavam se tornando prostitutas a fim de
evitar a fome e a miséria (BASEGGIO; SILVA:2015, p.20).

Enquanto propriedades jurídicas os escravizados podiam ser doados,


vendidos, alugados e separadas de suas famílias, logo as resistências surgiam das
mais variadas formas, sejam boicotando as tarefas domésticas, formando quilombos
e até suicídios se tornavam cada vez mais constantes.
Como já apontado, as mulheres escravizadas eram duplamente exploradas,
pois além de serem colocadas em trabalhos forçados sofriam violências sexuais, o
que agravava ainda mais a escravidão de seu gênero. Com o controle de seus
corpos, escravagistas comercializavam o sexo das negras escravizadas, que para
sobreviverem, eram obrigadas a aceitar essa condição e quando livres ainda sofriam
o preconceito por ser mulher, negra e escrava, não tendo a garantia de direito
algum.
Mesmo depois de conseguir sua emancipação, a condição precária a qual se
encontrava para uma vida mais amena eram raras, fazendo com que elas
seguissem o mesmo caminho que lhes fora imposto enquanto escravizadas, a
prostituição dessas mulheres em momento algum foi uma escolha, trata-se da
herança escravista que lhe foi imposta e que as estigmatizou e suas descendentes.
Dentre vários outros trabalhos os quais eram delegados às escravizadas,
além de amas-de-leite, as mucamas não tinham tarefas definidas, poderiam cuidar
de suas sinhás e das filhas delas, auxiliavam nas tarefas domésticas,
acompanhavam suas senhoras quando era preciso etc., como exemplificado na obra
Casa grande e senzala, os anúncios para venda desta mercadoria eram muito
comuns. Segundo Freyre,

Vários são os anúncios, nos jornais da época, de “mulatas de bonita


figura”... “próprias para mucamas”; de “mulatinhas” que, além de coser
“muito bem limpo e depressa” e de saber engomar com perícia, sabiam
pentear “uma senhora”; de “mulatas com habilidades”; de “mulatos
embarcadiços” e de “cabrinhas próprios para pajens”, alguns tão caros que
os vendedores concordavam em vendê-los “a prazo”; de “mulatinhas” não
só “recolhidas e honestas” como tão bem-educadas para mucamas que
sabiam falar francês; [...] (FREYRE:1977, p. 46).

As escravas que eram submetidas a mucamas, além de outros trabalhos


dentro da casa grande, estavam mais próximas de seus senhores e dependendo da
relação que detinha com seus senhores poderiam se tornar confiável a vários

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

afazeres domésticos que permitiam alguma circulação social, poderiam conseguir


melhor alimentação e também vestimentas, a confiança de seus senhores poderia
abrir possibilidades para barganhar a sua liberdade e conseguir sua alforria, passo
importante para o fim de castigos mais severos, tarefa essa muito árdua e que
evidentemente não era fácil, portanto, tais atos também devem ser enxergados
como formas de resistência.

Resistência, além das fugas, acordo e negociações


As barganhas foram táticas muito importantes para as mulheres negras
escravizadas alcançarem sua liberdade, trazendo assim o escravizado para além
dos estereótipos que lhes eram impostos. Na escravidão urbana, as negras de
tabuleiro, por exemplo, se destacaram como vendedoras ambulantes que, forras ou
não, vendiam comida e bebida a fim de auferir bens, isso porque elas possuíam uma
maior ‘’liberdade’’ de movimento em relação a sua força de trabalho com o acúmulo
de seus patrimônios, essas mulheres poderiam comprar sua alforria e dos seus, e
alcançarem um patamar de poder que lhes garantiria uma maior autonomia em
relação as outras escravas que exerciam outro tipo de atividades. Para que
ocorresse essa independência era necessário lutas e negociações diárias, pois além
de trazerem lucros para si estas deveriam trazer aos seus senhores também, se
ainda não fossem libertas. Segundo Algranti,
As negras de tabuleiro, enquanto escravas de ganho, ''dispunham de seu
tempo como queriam, e trabalhavam de acordo com as suas necessidades" sendo
conveniente tanto para os senhores que "não se preocupavam com seu controle"
quanto para as escravas que viviam soltas pelas ruas gozando de grande liberdade
(ALGRANTI:1988, p.49).
Todas essas relações de acordo traziam para as mulheres negras uma
forma de vida mais amena, que se dispunham através de seus saberes toda e
qualquer forma para a sobrevivência. Como tais relações detinham o interesse
mútuo de senhor e escrava acabaram gerando não somente benefícios para essas
mulheres, mas também movimentação da economia local, o que fazia com que
acontecesse a aceitação dos senhores para tais práticas. Essas e outras formas de
sobreviver mostram que os escravizados não eram apenas uma mera mercadoria,
mas eram agentes sociais que fizeram sua própria história da forma que lhes foi
possível, possuindo suas próprias vontades e movendo todos os tipos de esforços
para que isso fosse concretizado e ainda que a luta não viesse por meios mais
desafiadores como confrontos, visto que “afrontamentos e desafios entre escravos e
seus senhores não eram raros, embora muitas vezes travassem-se embate
silenciosos e disfarçados entre ambas as partes” (SILVA:2010, p. 6)
Os escravos faziam o que podiam para agir de acordos com sua vontade,
temos um bom exemplo descrito por Santos (2013, p. 07) que relata as fugas e
estratégias do escravo José Antonio que se encontrava na rua após o toque de
recolher com um bilhete falsificado do seu senhor, o qual lhes permitia ficar na rua,
este trouxe a admiração da fiscalização dito como “superior à sua condição’’, mesmo
sendo escravo os mesmos sempre procuraram condições melhores para além dos
rótulos que recebiam, como o exemplo do escravo José Antonio.

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

A liberdade vinha através de luta diária, árdua e recheada de estratégias das


mulheres escravizadas que permitiam aos senhores distinguir entre sua escravaria
quais ele encarava como mercadoria e quais ele poderia encarar como pessoas a
quem poderiam destinar a alforria. Essa libertação poderia ser justificada por
motivos variados como bons serviços prestados, pelo amor de Deus, ou ainda
condicionadas a algo, após a morte do senhor, boa parte destas vontades senhoris
eram descritas nos testamentos no qual continham entres bens, números de
escravos e a quem seriam destinados as alforrias, como exemplificado abaixo:

// Declaro que possuo huns chaons na Rua da Palma, dos quais vendi trez
braças a Luiza Bernarda mulata forra, que foi minha escrava, por huma
escriptura da qual estou pago, e o mais do dito chão dei a minha filha
Antonia Maria de Moraes, para nelles fazer suas cazas para viver, e
querendo meus erdeiros contenderem com ella sobre os ditos chaons,
entrará os ditos no seu quinhão pelo preço porque eu os comprei. (Traslado
do testamento Antonio de Moraes. Arquivo da Biblioteca do Tribunal de
Justiça do Maranhão – ATJ: Livro de Registro de Testamentos 1781-1791.
nº2, fl. 11v, 30 Ago. 1781)

As relações podiam tornar as escravizadas cada vez mais próximas de “seus


donos”, já que estavam, em sua maioria, condicionadas a trabalharem exploradas
nas casas senhoriais, tal aproximação tornou-se um dos fatores primordiais para as
práticas e estratégias criadas por essas mulheres, de modo que não
necessariamente rompia-se com o cativeiro, mas se fazendo sobreviver por meio
dele. Muitas puderam conseguir não somente sua alforria, mas também as dos seus
filhos, parentes e outros aos quais se vinculavam por meio de laços afetivos. Tais
práticas tornavam a mulher negra uma guerreira constante, ainda que inconsciente,
contra a imposição patriarcal e coisificação do sistema.

Considerações finais

A mulher negra escravizada mesmo necessitando de acordos e barganhas


para sobreviver, nunca desistiram de obter sua liberdade, as teias de relacionamento
foram necessárias para que houvesse a possibilidade de brechas para fugir da
situação de coisificação pela qual elas passavam.
Sendo objetificadas e tratadas como mercadorias tais mulheres agenciaram
a situação a qual se encontravam ao seu domínio, sobrevivendo, da melhor forma
que encontravam, ao patriarcado e escravismo da sociedade da época. Falar sobre
a perspectiva de gênero voltada as mulheres negras e escravizadas do Maranhão
setecentista consiste na interpelação de relações muitas vezes de opressão por
parte de seus senhores e resistência por parte das escravas, ser mulher e negra na
sociedade escravista maranhense, era uma grande dificuldade, mesmo alforriada a
mulher negra, enquanto pessoa, era rebaixada a objeto de interesse de a uma
sociedade hegemonicamente patriarcal e seu corpo era apenas a objetificação
carnal. Mendonça (2004, p. 3) aponta que houve relações de imposição e de
inferiorização que poderiam ser notadas não somente pelo fato de gênero, mas
também pelas conjunções jurídicas que reforçavam a condição de inferioridade
dessas mulheres.

38
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Contudo, mesmo a dominação sendo algo inevitável, devido às condições de


inserção da escrava, mesmo diante da coisificação, as mulheres negras foram
protagonistas da sua própria história, evidenciando e marcando a idiossincrasia do
povo negro. Ao trazermos esse debate para a educação básica e realizarmos tais
estudos ainda no ensino médio, nos permite enxergar a identidade e relevância de
nossos ancestrais. Permite que meninas negras compreendam as origens de
preconceitos sofridos até hoje, descubram a luta constante de tantas mulheres
negras escravizadas e reforcem as energias para que essas mesmas meninas
negras tomem consciência de suas identidades e tornem-se protagonistas de suas
próprias histórias.

Referências

ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente. Petrópolis, Vozes. 1988


ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. Vida íntima entre senhores e escravos no
Recife e na Lisboa setecentista: três histórias, três memórias. Afro-Ásia, 43 (2011),
195-212. Disponível em:
https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/21224/13809
BASEGGIO, Julia Knapp; SILVA, Lisa Fernanda Meyer da. As condições
femininas no Brasil colonial. Disponível em:
https://publicacao.uniasselvi.com.br/index.php/HID_EaD/article/viewFile/1379/528.Pd
f.
GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava: uma introdução ao estudo da mulher
negra no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes. 1988.
GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. Rev. Bras. Educ. [online]. 2003,
n.23, pp.75-85. ISSN 1809-449X. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-
24782003000200006.
MENDONÇA, Pollyanna Gouveia. Por força da escravidão: concubinato de
padres com escravas no Maranhão setecentista. Revista Outros Tempos. Volume
3, número 3, 2006.

MOTA, Antonia da Silva; SILVA, Kelcilene Rose; MONTOVANI, José Dervil. Cripto
maranhenses e seu legado. Maranhão: Siciliano, 2001.
REIS, Maria Firmino dos. Úrsula. 1ed. Rio de Janeiro: Presença, 1988.
SANTOS, Adriana Monteiro. Arranjos cotidianos: escravizados em São Luís do
Maranhão (1830-1839). III Simpósio História do Maranhão Oitocentista:
impressos no Brasil do século XIX, de 4 a 7 de junho de 2013, São Luís, MA. – São
Luís: UEMA, 2013.
SIMÕES, Rosa Maria Araújo. Capoeira e escravidão: movimento de resistência
versus submissão. Movimento - Ano VII - Nº 13 - 2000/2. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/11779
VILA, Ivonete Costa; CRUZ; Paulo Divino Ribeiro da. Mulheres negras no século
XIX: entre submissão e rebeldia. Revista Africana e Africanidades. - Ano 3 - n. 9,
maio, 2010 - ISSN 1983-2354. Disponível em: www.africaeafricanidades.com.br

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Fontes primárias

Testamento de João Pereira Torres na Ribeira [do] Mearin .Arquivo da Biblioteca do


Tribunal de Justiça do Maranhão – ATJ: Livro de Registro de Testamentos 1781-
1791. nº2, fl. 25v, 04 fev. 1784
Testamento de Antonio de Moraes. Arquivo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do
Maranhão – ATJ: Livro de Registro de Testamentos 1781-1791. nº2, fl. 11v, 30 Ago.
1781.

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

CORPO E PADRÃO: A ESTÉTICA CORPORAL E INVISIBILIDADE DA


DIVERSIDADE EM REVISTA ADOLESCENTE DO FINAL DO SÉCULO
XX

Silvana Maranhão Lucas1


Nila Michele Bastos Santos2

Introdução

A apreciação do corpo e da beleza segue a humanidade desde sua origem,


mas modificou-se ao longo do tempo, pois cada época possui um conceito diferente
do que é “belo”. Na Grécia antiga, por exemplo, havia uma enorme preocupação
com o físico e se valorizava o corpo nu masculino, que deveria ser forte e
exercitado; já na Idade Média, o cuidado com o corpo foi deixado para segundo
plano pelas crenças religiosas (FLOR, 2009). Segundo Santos (2016, p. 34), no final
do século XIX e início do século XX, os periódicos se configuravam como
ferramentas de normalização e controle do sexo feminino, visto que reforçavam os
papéis sociais atribuídos às mulheres pela então sociedade dessa época que
almejava um ideal feminino baseado no tripé de boa filha, esposa e mãe.
No final do século XX, as revistas femininas, ainda se mostravam como uma
importante fonte de influência no ideário feminino, contudo elas continuamente
buscaram evidenciar padrões estéticos, com imagens de corpos extremamente
magros, reproduziam entrevistas com celebridades sobre suas dietas e exercícios
físicos de modo que a aparência e preocupação com o corpo era um ponto
extremamente importante para a construção de uma “boa mulher”. Conforme Gisele
Flor,

[...] os meios de comunicação de massa têm sido um importante veículo na


divulgação e construção dos padrões de beleza e de exclusão social, pois,
enquanto dispositivo de poder a serviço de uma comunicação baseada nas
fórmulas de mercado, atualiza constantemente as práticas coercitivas que
atuam explicitamente sobre a materialidade do corpo (FLOR, 2009, p.268).

Foucault (1994), em sua obra Vigiar e Punir, assevera que o controle do


corpo envolve relações de poder e dominação, buscando fabricar corpos que sejam
submissos e exercitados de modo que respondam aos interesses das instituições de
poder. Dessa forma, podemos inferir que o corpo feminino não foi representado
como ele é, mas sim, da forma que o homem o via, moldando-o de acordo com suas
necessidades. De acordo com Simone de Beauvoir (1980), o papel feminino foi
construído pelos homens da maneira que lhe privilegiasse: “A humanidade é
masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a ele”
(BEAUVOIR, 1980, p.10). Os papéis empregados às mulheres, comumente foram

1 Bolsista PIBIC ENSINO MÉDIO 2018/2019 - EDITAL PRPGI Nº 03/2018. Aluna do ensino médio
integrado ao Curso de Petróleo e Gás do IFMA - Campus Pedreiras. E-mail:
silvanamaranhao1@gmail.com
2 Orientadora PIBIC ENSINO MÉDIO 2018/2019 - EDITAL PRPGI nº 03/2018. Mestra em História

Social, Professora EBTT de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do


Maranhão. Coordenadora do NEABI – IFMA/campus Pedreiras e do LEGIP- Laboratório de Estudos
em Gênero do IFMA campus Pedreiras. E-mail: nila.santos@ifma.edu.br

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

determinados pela sua corporalidade, caracterizando-as como frágeis e submissas,


por consequência de longos séculos, foram representadas por autores masculinos.
Beauvoir, foi uma das primeiras autoras em busca da inserção da mulher na escrita,
mostrando caminhos que possibilitaram um resgate da literatura feminina, que era
praticamente silenciada, além disso serviu para uma desconstrução da concepção
machista que ainda persiste atualmente.
A naturalização desses pensamentos, que podemos definir como patriarcais,
quase sempre foram normalizados pela mídia. No século XX, a revista Atrevida,
notadamente, se tornou extremamente famosa entre as adolescentes no final deste
século, se consolidando como uma grande formadora de opinião, de maneira que
influenciava suas leitoras com seus discursos “modernizantes”, como ela se
intitulava. A revista trouxe em seus exemplares padrões sexistas, ditando o que
fazer, ou não, definindo e excluindo de acordo com o sexo e reforçando estereótipos
de feminilidade que foram construídos historicamente, de modo, que reforçou o
papel empregado pelas mulheres na sociedade, contudo “o lugar das mulheres na
vida social-humana não é diretamente o produto do que ela faz, mas do sentido que
as suas atividades adquirem através da interação social concreta” (SCOTT, 1989, p.
20).
O presente artigo é fruto do projeto PIBIC EM - 2018/2019, que possuiu o
intuito de analisar os padrões estéticos que foram reforçados e reproduzidos em
suas páginas: apenas corpos magros e brancos, além de dicas, dietas e exercícios
para mudar a aparência física de suas leitoras. Buscamos também contribuir para a
desconstrução de um padrão único de beleza demonstrando a existência de uma
diversidade estética que a revista invisibilizava, além disso, pesquisando o contexto
social da época, que foram os últimos 5 anos do século XX, compreendemos os
discursos escritos e imagéticos da Revista Atrevida sobre beleza e gênero para,
assim, entender como as representações da revista influenciava as jovens.

Corpo

O corpo feminino repetidamente foi empregado para justificar discursos


patriarcais, desse modo, a “inferioridade biológica’ tornou-se um dos argumentos
mais utilizados, que é a base para discriminação de gênero estabelecendo o papel
social (desigual) da mulher, como também o pensamento misógino que restringe o
feminino a concepções biológicas da reprodução.

A sexualidade feminina e os poderes de reprodução das mulheres são as


características (culturais) definidoras das mulheres e, ao mesmo tempo,
essas mesmas funções tornam a mulher vulnerável, necessitando de
proteção ou de tratamento especial, conforme foi variadamente prescrito
pelo patriarcado (GROSZ, 2000. p. 67).

O movimento feminista se opôs a tais concepções machistas, e buscou não


deixar essas definições apenas nas mãos de teóricos masculinos, dessa maneira
trouxe uma ampla discussão sobre o corpo de uma forma crítica distante do
pensamento patriarcal. Segundo Gomes e Guimarães, “o corpo feminino é visto a

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

partir do masculino e, a partir de tal perspectiva, a oposição macho/fêmea tem sido


intimamente aliada à oposição mente/corpo” (2014, p.10)
O corpo masculino não foi teorizado com a mesma intensidade que o
feminino, toda essa discussão voltada para a mulher é resultado cultural que durante
séculos buscou apreciar a existência feminina em comparação com a masculina. De
acordo com Elizabeth Grosz:

Acima de tudo, a especificidade sexual do corpo e as maneiras pelas quais


a diferença sexual produz ou afeta a verdade, o conhecimento, a justiça
etc., nunca foi pensada. O papel do corpo masculino específico como corpo
produtivo de um certo tipo de conhecimento (objetivo, verificável, causal,
quantificável) nunca foi teorizado (GROSZ, 2000, p.51).

Essa visão patriarcal serve como base na contemporaneidade, o corpo


feminino aceito pela sociedade não é o natural, mas um físico carregado de padrões
estéticos que são impulsionados pelo capitalismo e a mídia, no entanto o corpo
masculino não é alvo de crítica.
No último século, após muita luta e persistência, a mulher vem garantindo
direitos que durante décadas lhe foram negados, inserindo-se em lugares que não
eram permitidos por conta do seu sexo biológico, pois o mesmo era considerado
determinante do seu papel social, conforme as autoras Gomes e Guimarães (2014,
p. 14) “[...] a mulher tem consolidado, nas últimas décadas, uma voz e uma escrita
autônomas, a partir das quais tem desconstruído a imagem do feminino elaborada
pela cultura patriarcal ao longo dos séculos.”

Revista atrevida

A “Atrevida” teve sua primeira edição, em 1994, e desde então se tornou


grande sucesso entre as adolescentes. A revista trazia seções sobre sexualidade,
beleza, moda, saúde, cinema, música e novidades sobre celebridades da época.
Com um discurso informal e “moderno” criava uma intimidade com as leitoras, sendo
considerada como uma conselheira para as jovens, as quais tinham total confiança
para desabafar e pedir ajuda. Notamos este fato logo nas primeiras páginas da
Atrevida, na seção “Escreve pra mim”, nela também estão as opiniões das leitoras
sobre as matérias da última revista lançada, em sua maioria, os comentários eram
positivos. Outro método utilizado pelas revistas femininas para obter uma melhor
aproximação com as leitoras, era pelo estabelecimento de uma forma de empatia,
como afirmam as autoras:

[...] apresentam outra característica estratégica: buscam estabelecer um


vínculo de empatia com as leitoras, deixando evidente que compreendem
os sentimentos das mulheres (angústias, frustrações, medos) e prometem
ajudá-las a superarem todos esses conflitos por meio das dicas
apresentadas no seu interior (AMORIM, PERELLIN, s/p).

A revista Atrevida baseou-se nessas estratégias e soube utilizá-las de forma


satisfatória, como na seção citada acima, ela contava com o apoio e exaltação das
consumidoras dos periódicos. Além disso, as leitoras se sentiam seguras para expor

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

seus medos e dúvidas sobre a vida adolescente. Existiam duas seções para as
quais elas podiam mandar suas incertezas para os editores. Na seção “Sabe-tudo
sobre sexo”, lê-se perguntas sobre o sexo e tudo o que o cerca, nessas páginas são
discutidas dúvidas sobre anticoncepcionais, preservativos, gravidez, DSTS, entre
outros. A outra seção que encontramos com essa mesma finalidade, possui o nome
parecido com a da anterior, “Sabe-tudo sobre tudo”, nela encontramos pedidos de
ajuda e conselhos sobre a vida e cotidiano das jovens, como namoro, problemas
familiares, bullying e outros.
A revista Atrevida era famosa entre as jovens do final do século XX, que
geralmente buscavam copiar o que a revista publicava, desde as dietas, até
maneiras de se comportar. Em quase todas as suas publicações ela trazia dicas de
exercícios, exaltando principalmente os benefícios estéticos ao invés do bem-estar e
saúde.
O modo como a revista influenciava e ditava moda ou comportamentos, no
final do século XX, possivelmente interferiu na vida de suas leitoras, de tal forma que
elas encontravam o apoio e confiança para confessarem seus problemas em cartas
enviadas para editora, com a esperança de que a revista pudesse ajudá-las, como
mostra a seção “sabe-tudo sobre tudo” (Atrevida n° 66, 2000, p. 14-15):

Figura 1: Revista Atrevida


Fonte: Edição de fevereiro de 2000

Provavelmente, as leitoras copiavam o que era publicado na revista, vendo o


discurso posto como uma verdade, pois a maneira que a revista se aproximava das
adolescentes criava uma intimidade entre elas, assim, alguns discursos
preconceituosos eram aceitos e vistos como normais.
Por outro lado, as leitoras encontravam muitos conhecimentos do cotidiano
de vida na revista, que talvez não encontrassem no contexto familiar. Assuntos
como sexo, virgindade, preservativos, DSTs, entre outros, eram debatidos na
Atrevida de forma simples e descontraída. Por exemplo (Atrevida n°56, 1999, p.18):

44
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Figura 2: Revista Atrevida


Fonte: Edição de abril de 1999

É comum, infelizmente, que algumas famílias não conversem com seus


filhos sobre sexo e tudo que o envolve, assim, uma forma fácil de encontrar acesso
a esses conteúdos, era através dos periódicos. De fato, a Revista Atrevida trouxe
contribuições positivas, trazendo discussões que não eram presentes no lar, e sobre
assuntos que não se tinha acesso com facilidade, mas que são importantes para
uma adolescente.
Atualmente, graças a esses debates e estudos que tratam sobre corpo e
gênero, podemos ver jovens que não aceitam mais discursos exclusivo e que
criticam o sistema preconceituoso. Mas o impacto que esses discursos tiveram na
formação da sociedade ainda é marcante.

Corpo ideal da garota “atrevida”

Tanto na capa, quanto no interior da revista, pode-se observar a beleza


privilegiada, o físico e a etnia exaltada nas páginas da Atrevida, que se encaixam
exatamente no padrão europeu, com representações de corpos magros e da cor de
pele branca. A diversidade brasileira do século XX, foi mascaradamente esquecida
pela revista para adolescente.

Mais uma vez, as revistas femininas aparecem como uma das ferramentas
que interferem na formação de um determinado ideal de comportamento
feminino, possibilitar às leitoras uma espécie de “autoconhecimento”,
influenciar na maneira como as mulheres enxergam seus corpos, sua saúde
e sua beleza (AMORIN; PELLEGRIN; s/p).

A busca incansável pelo corpo perfeito traz grandes preocupações, pois dependendo da
maneira como esse objetivo será alcançado, poderá causar enormes males à saúde. A mídia
reforça/incentiva que a estética é o caminho para se alcançar o bem-estar, mostrando assim que o
“feio”, ou o não “belo”, é sinônimo de sofrimento ou vergonha. Tais padrões corporais influenciam
diretamente na identidade de cada pessoa, de maneira que afeta suas ações e percepções sobre si e
o outro. De acordo com as autoras Amorim e Pellegrin,

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

[...] as mulheres vivem numa constante disputa por esse “mercado da


afetividade” masculina e o investimento em seus corpos é uma das formas
de se destacarem. Parece-nos que as mulheres, ao investirem em seus
corpos e torná-los “atraentes” aos olhos dos homens, tornam-se produtos
deste “mercado afetivo”, na qual os homens podem “escolher” e “pegar”
aquelas que mais os agradam (AMORIM, PERELLIN, s/p).

A capa da revista Atrevida, edição de março de 1999, apresenta uma


matéria com o título “Sempre sem namorado? Sua postura corporal pode estar
afastando os garotos”, o discurso presente nessa matéria é de que o físico e a forma
dos corpos femininos transmitem para os garotos informações negativas e, por isso,
estas seriam a causa de elas não estarem namorando. Nessa parte, a revista utiliza
“apelidos” extremamente ofensivos e alguns de formas preconceituosas para
designar o corpo de cada garota. O discurso de se estar namorando, na verdade se
trata de status que “necessário” na vida de uma menina, baseando a sua felicidade
ou bem-estar nas mãos de um garoto. Raramente se pôde observar um incentivo
sobre o amor próprio, ou de aceitação, no entanto, se encontra com facilidade
discursos normalizadores e moralizantes, que de toda forma buscam encaixar as
meninas em padrões corporais e comportamentais.

Figura 3 - Revista Atrevida


Fonte: Edição de março de 1999
Nesta mesma capa, se encontra outro título chamado “Cabelo, unhas, tatto,
maquiagem. Saiba do que eles mais gostam!”, mais uma vez a revista prioriza os
gostos masculinos em detrimento do corpo feminino, o que nos leva a crer que a
revista procurava moldar as jovens para serem do jeito que os meninos gostam,
retirando o empoderamento feminino, que dá a noção do quanto é absurdo e que
pouco importa a opinião deles sobre seus corpos.

46
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Figura 4 - Revista Atrevida


Fonte: Edição de outubro de 1996

A edição de outubro de 96 destaca a matéria chamada “O mapa da beleza -


aprenda a ficar linda da cabeça aos pés”, a revista traz dicas de “cuidados especiais”
para o corpo todo, como podemos notar na próxima imagem (Atrevida n° 26, 1996,
p. 108):

Figura 5 - Revista Atrevida


Fonte: Edição de outubro de 1996
A garota “atrevida” exaltada é branca, magra e classe média, e excluídas as
adolescentes negras, pobres e plus size. Essa representatividade devia servir para
todos os corpos, e não apenas para beneficiar os corpos considerados padrões. A
revista estimula o embranquecimento, influencia a dietas “loucas”, alisamento do
cabelo, e a submissão a diversos tratamentos ou operações para que as
adolescentes alcancem um ideal de beleza quase inatingível. A imposição do padrão
de beleza atribuída às mulheres é extremamente dolorosa, essas pessoas são
vítimas desde cedo da mídia que impõe um molde no qual devem se encaixar, essa
ditadura da beleza acaba com a autoestima, e, consequentemente, causa uma luta
incessante com um próprio corpo.

47
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Figura 6 - Revista Atrevida


Fonte: Edição de março de 1996

Na revista da edição de março de 96, encontramos uma matéria que se


refere ao corpo feminino, com o título “Celulite, eu? Esse problema não escolhe
idade, mas dá para você acabar com ele!”, na seção Beleza e Saúde, que remete a
essa “guerra” contra a celulite, trazendo dicas para acabar com essa “inimiga”.

Figura 7 - Revista Atrevida


Fonte: Edição de fevereiro de 2000

A revista da edição de fevereiro de 2000 trouxe uma matéria com o título


“Emagrecer? você pode, sim! Três leitoras contam (e provam como conseguiram
ficar em forma”, nela algumas leitoras relatam sobre a “guerra contra a balança” e
mostram dicas de dietas, alimentação e exercícios para emagrecer.

48
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Figura 8 - Revista Atrevida


Fonte: Edição de novembro de 1997

Na capa da edição de novembro de 97, em uma das reportagens cujo título


é “Sol à vista! Saiba como deixar seu bumbum sem estrias nem celulite”,
encontramos diversos truques para leitoras, o que se torna preocupante pois não se
ver incentivo à procura de um profissional da área da saúde para auxiliar as
adolescentes durante tais momentos, sendo que cada corpo tem suas
peculiaridades e não respondem da mesma forma. A confiança na revista era tão
grande, que muitas garotas seguiam à risca quase todas as dicas e truques
incentivados pela revista. Atualmente, a mídia ainda possui grande influência sobre
as pessoas, cada vez mais, os jovens estão se submetendo a tratamentos ou até
mesmo intervenções cirúrgicas para atingir um corpo padrão, acreditando que assim
conseguirão o bem-estar por eles mesmos, porque é isso que lhes é ensinado a
acreditar.
A revista de novembro de 1995, apresenta uma matéria chamada: “Cabelos
crespos? O que pode fazer para deixá-los sempre lindo!” (Atrevida, n° 15, 1995, p.
96).

Figura 9 - Revista Atrevida


Fonte: Edição de novembro de 1995

49
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

A matéria possui apenas modelos de fenótipo branco com cabelos


cacheados, não se nota a presença de adolescentes negras para discutir sobre o
tema. A forma como a revista inicia essa matéria, é discutindo a “crise” que essas
garotas passam por conta do cabelo crespo e para “encarar esta batalha” como cita
a revista, elas devem recorrer para “tratamentos e até deixando-os temporariamente
lisos”, pois de acordo com Atrevida, o “visual pode ficar muito mais legal”. Em
nenhum momento, orientam-nas para a aceitação do cabelo natural, mas sim que as
opções delas são os tratamentos ou alisamentos, visto que aceitar suas madeixas
não é uma possibilidade real para essas garotas.

Considerações finais

Após analisarmos as capas das revistas, pudemos identificar o padrão


embranquecedor que a Revista Atrevida seguia. Das 56 capas analisadas, apenas
uma traz uma modelo negra. Dessa forma, percebemos a exclusão étnico-racial.
Outro ponto analisado, foi a presença em todas as capas de modelos femininos
extremamente magras, não apresenta uma diversidade corporal, apenas um biotipo
exaltado pela revista Atrevida. Esse resultado abre caminhos para discussões sobre
o padrão de beleza exposto pela revista, cujos “ideais de corpos” servem de moldes
para analisar todos os outros, para a partir dele decidir o que deve ser aceito ou não.
De acordo com as ideias de Grosz, “Não há um modo que seja capaz de
representar o “humano” em toda sua riqueza e variabilidade. Deve ser criado um
campo plural, múltiplo, de “tipos” de corpos possíveis” (GROSZ, 2000, p. 83). O
corpo é diverso, e não existe uma maneira única de ser representado, por isso, a
importância de se reconhecer as especificidades que foram deixadas de lado por
muito tempo.
Durante anos, utilizaram-se das diferenças biológicas para justificar a
maneira que as relações sociais são estabelecidas, logo, a hierarquização masculina
se ver naturalizada, pois “a sociedade foi construída aos moldes do patriarcalismo,
em virtude disso, as mulheres, tiveram sua história, em grande parte, marcada pelo
silêncio e opressão” (PEREIRA; LIMA; MEDEIROS; 2018; p. 02).
As vivências femininas foram contadas na perspectiva masculina, dessa
maneira, a história das mulheres, por muitas vezes, foram distorcidas da realidade
para corresponder ao sistema patriarcal, no qual “As diferenças entre os corpos que
são ligados ao sexo, são constantemente solicitadas para testemunhar as relações e
fenômenos sociais que não tem nada a ver com a sexualidade” (SCOTT,1989, p.23).
A mídia estimula uma obrigação do indivíduo sempre se encaixar, se não se
parecer com o que ela reproduz, ele não será bem aceito pela sociedade, essa é a
maneira na qual o capitalismo se sustenta, pois logo a pessoa irá buscar maneiras
de ficar o mais perto possível do padrão, e isso será através da utilização de
produtos, de cirurgias plásticas, e de outros mecanismos que o sistema capitalista
oferece, uma vez que, ninguém alcança o padrão de forma natural. Juntamente com
a mídia, o capitalismo nos faz acreditar que precisamos mudar para nos sentirmos
bem.

50
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

as discussões relativas ao corpo, à corporalidade, às práticas e


manifestações corporais, pensamos que esta se torna um mecanismo
capaz de desmascarar, questionar e tensionar a realidade encontrada nas
páginas das revistas femininas, buscando incentivar uma leitura
diferenciada desse mecanismo midiático que possa promover uma
ressignificação dos valores neles veiculados (AMORIM, PERELLIN, s/p).

A escola detém um papel fundamental para estimular discussões, fazendo


os estudantes buscarem questionar a realidade e contribuir para desconstrução de
concepções preconceituosas que interferem diretamente na vida de diversas
pessoas que se encontram marginalizadas por não aderirem a tais padrões que a
sociedade nos obriga diariamente.

Referências

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 125-204


GROSZ, Elizabeth. Corpos Reconfigurados. Pagu (14), 2000, pp. 45-86
SCOTT, Joan. Gênero: categoria útil para a análise histórica. 3. ed. Recife: S.O.S
Corpo, 1996. p. 1-20 pdf.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia
do Livro, 1980.
FLOR, Gisele. Corpo, mídia e status social: reflexões sobre os padrões de beleza.
Rev. Estud. Comun., Curitiba, v. 10, n. 23, p. 267-274, set./dez. 2009.
AMORIM, Marina Vilela e Pellegrin, Ana de. Garota atrevida: representações sobre
corporalidade e comportamento.
PEREIRA, Michelle Thalyta Cavalcante Alves; DE LIMA, Jaqueline Vieira;
MEDEIROS, Drª Aldinida. O corpo violentado, subalterno e disciplinado de
Cordélia. Universidade Estadual da Paraíba, 2018.

GOMES, Jaqueline Frantz de Lara; GUIMARÃES, Rafael Eisinger. A imagem do


corpo e a escrita da identidade: a relação entre corporalidade e autoria
feminina na obra de eliane brum. VERBO DE MINAS, Juiz de Fora, v. 15, n. 26. p.
5-15, ago./dez. 2014.

Documentos:

REVISTA ATREVIDA: São Paulo: Editora Escala. Nº 08 ao 70 de mês de 1995 a


mês de 2000.

51
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

GÊNERO, PATRIARCALISMO E HETERONORMATIVIDADE

Luís Fernando Santos Vale1


Nila Michele Bastos Santos2

Introdução

O presente artigo é fruto do projeto de pesquisa aprovado no EDITAL PRPGI


Nº 03/2018 - PIBIC ENSINO MÉDIO 2018/2019 intitulado: “Gênero, Patriarcalismo e
Heteronormatividade”, que se propõe a compreender a formação do patriarcalismo
brasileiro, bem como este influenciou na construção de masculinidades
hegemônicas, e sua relação com a disseminação do comportamento
heteronormativo e machista. Para tanto, mergulharemos nas análises de gênero e
poder, além dos pressupostos da moderna teoria Queer, de modo que possamos
proporcionar uma maior visão da diversidade de identidades que o ser humano
possui. Desse modo, acreditamos contribuir para diminuição das desigualdades
entre gênero e homofobia, uma vez que a informação é a melhor arma contra o
preconceito existente.
A família tradicional foi erguida sob os pilares do sistema patriarcal herdado
dos portugueses. Este sistema submetia todos os membros ao “chefe da família”,
submissão essa que não se limitava apenas aos filhos e esposa, mas a qualquer um
que se deixasse ser dominado ou dependesse do chefe da linhagem. Desse modo,
esse modelo contribuiu para que os papéis sociais fossem distribuídos de forma
desigual, dando ao homem o papel de provedor e dominador das relações de poder,
enquanto à mulher, o papel de submissa e incapaz de conduzir-se sozinha.
Tais desigualdades geradas não atingiram apenas as mulheres, mas
qualquer um que ousou divergir do padrão patriarcal. As desigualdades provocadas
por este sistema perpetuaram-se por décadas e nos dias de hoje ainda são
refletidas no comportamento social, que ao se tornar norma propaga a discriminação
aos grupos que, ao longo da história, foram socialmente marginalizados pelo
sistema dominante.
Nesse contexto, o sexo masculino foi continuamente exaltado, utilizando a
desigualdade gerada para se manter no poder e impor a sua lei. Segundo Simone
de Beauvoir (1960 p. 12), “existem outros casos em que, durante um tempo mais ou
menos longo, uma categoria conseguiu dominar totalmente a outra. Frequentemente
é a desigualdade numérica que confere esse privilégio: a maioria impõe sua lei à
minoria ou a persegue”.
Entende-se assim que os privilégios da classe dominante são mantidos e
validados por uma desigualdade gerada de uma “superioridade”, neste caso a
masculina, que os mantém no topo da pirâmide do poder, em tal posição a camada

1 Bolsista PIBIC Ensino Médio 2018/2019 - Edital PRPGI Nº 03/2018 - Aluno do Ensino Médio
Integrado ao Curso de Petróleo e Gás do IFMA/Campus Pedreiras. E-mail:
vale.fernando@acad.ifma.edu.br
2 Orientadora PIBIC ENSINO MÉDIO 2018/2019 - EDITAL PRPGI nº 03/2018. Mestra em História

Social, Professora EBTT de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do


Maranhão. Coordenadora do NEABI – IFMA/campus Pedreiras e do LEGIP- Laboratório de Estudos
em Gênero do IFMA campus Pedreiras. E-mail: nila.santos@ifma.edu.br

52
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

dominante impõe suas regras como forma de manter e assegurar seus privilégios
sociais. As regras impostas pelo grupo dominante patriarcal ditam o comportamento
social tanto da mulher, como o da classe LGBT+ que são continuamente afetados
por ondas de preconceito em lugares públicos.
Estudar as relações de gênero é entender como se estabelecem as
desigualdades e comportamentos discriminatórios que permeiam a sociedade e que
são legitimados perante um discurso hegemônico, tanto a favor da
heteronormatividade, como das práticas machistas enraizadas em nossa cultura.
Para isso, Michel Foucault nos lembra de que o discurso hegemônico é entendido
como:

[...] uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em


estratégias diferentes. É essa distribuição que é preciso recompor, com o
que admite em coisas ditas e ocultas, em enunciações exigidas e interditas;
com o que supõe de variantes e de efeitos diferentes segundo quem fala,
sua posição de poder, o contexto institucional em que se encontra; com o
que comporta de deslocamentos e de reutilizações de fórmulas idênticas
para objetivos opostos. Os discursos, como os silêncios, nem são
submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele
(FOUCAULT, 1999, p. 111).

Compreende-se que o discurso hegemônico difundido por uma sociedade


conservadora, faz com que os grupos dominantes imponham suas leis de
comportamento social sem nenhuma objeção dos grupos oprimidos, uma vez que
este discurso é aceito como natural e verdadeiro. Logo, o discurso imposto favorece
ao ocultamento da identidade de uma pessoa homossexual, ou de qualquer outro
indivíduo que fuja ao padrão moralmente aceito, ou seja, à aversão a si mesmo para
evitar possíveis ataques preconceituosos ou para ser aceito em determinados
grupos. Dessa forma, concordamos com o pensamento de Judith Butler que diz:

[...] A feminilidade é assumida pela mulher que “deseja a masculinidade”,


mas que teme as consequências retaliadoras de assumir publicamente a
aparência de masculinidade. A masculinidade é assumida pelo
homossexual masculino que, presumivelmente, busca esconder – não dos
outros, mas de si mesmo – uma feminilidade ostensiva (BUTLER, 1990, p.
84).

Percebe-se que a ocultação da própria identidade de um indivíduo, é o meio


que ele encontra para se proteger das discriminações sofridas, mas funciona
também como uma forma de se inserir em determinados grupos sociais. Desse
modo, as estruturas existentes de preconceito se mantêm ao longo da história
assegurando os privilégios do grupo dominante. Essas estruturas durante séculos
ditam “o comportamento social” do homem e da mulher, favorecendo ao sexo
masculino, menosprezando e dando o papel de submissão ao sexo feminino e às
masculinidades que contrariam o padrão imposto. Nosso estudo centra-se
justamente em discutir esses papéis.

Gênero: de Beauvoir a Butler

Muito se tem discutido, recentemente, acerca dos papéis sociais do homem


e da mulher na sociedade como forma de equiparar os direitos das mulheres, os

53
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

quais lhe foram negados ao longo da história. O conceito de gênero é um ponto


central nos debates acerca do tema, logo analisar a formulação da ideia central de
gênero ao longo do tempo é essencial para entender como se fundamentou a atual
concepção do termo.
Antes do início da segunda onda do feminismo, os debates sobre gênero
não eram muitos comuns, o termo não possuía uma concepção central que o
definisse, ou seja, o termo não era utilizado como uma categoria que especificasse
as diferenças entre masculino e feminino. Com o início da segunda onda do
movimento feminista, o gênero passou a representar a categoria de mulher, mas se
limitando apenas às mulheres brancas, pois mulheres negras não eram
reconhecidas dentro da própria categoria de mulher, o que resultou em anos de
exclusão dentro do próprio movimento. Além disso, não havia uma distinção entre
sexo e gênero. O gênero enquanto categoria representativa era tido como fruto do
sexo, ou seja, o gênero constitui-se a partir do sexo biológico do indivíduo, contudo
essa definição prende-se apenas ao binário homem/mulher excluindo qualquer um
que fuja desse padrão.
Em sua obra “O segundo sexo”, Beauvoir chama a atenção para esse
binarismo e faz uma crítica ao sistema existente ao longo da história que reforça a
hierarquia social do homem e cumplicidade do sexo feminino em sua própria
opressão.

[...] Como se entende, então, que entre os sexos essa reciprocidade não
tenha sido colocada, que um dos termos se tenha imposto como único e
essencial, negando toda relatividade em relação a seu correlativo, definindo
este com alteridade pura? Nenhum sujeito se coloca de imediata e
espontaneamente como inessencial; não é Outro que se definindo como
Outro define o Um; ele é posto como Outro pelo Um definindo-se como
Um... Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso que se
sujeite a esse ponto de vista alheio (BEAUVOIR, 1960 p. 12).

Entende-se assim que o discurso hegemônico da imposição masculina


estabeleceu uma forma subconsciente de persuadir o “outro sexo” instalando uma
relação de subjugação e desigualdade entre ambos os sexos em que se favorece
continuamente o sexo masculino. Desse modo, o sexo feminino, sem perceber, se
torna um utensílio do sexo masculino para realizar seus prazeres e desejos. Por
muito tempo, esta submissão passiva do sexo feminino esteve atribuída ao discurso
falocêntrico, ou seja, o indivíduo enquanto possuidor de um pênis garantiria uma
supremacia de poder sobre as mulheres, o que acabou sendo considerado como
natural do próprio ser humano. Consequentemente, houve uma junção entre as
categorias sexo e gênero, isto é, sexo biológico definia assim o gênero.
Para Beauvoir, faz-se necessário distinguir sexo de gênero, pois para ela o
sexo é um fator biológico ligado à composição químico-física do corpo humano, já o
gênero é uma construção da sociedade, isto é, “ser homem” ou “ser mulher” não é
um dado natural, mas sim algo performativo e social que ao longo da história cada
cultura construiu criando padrões de comportamento para cada gênero. Segundo
seu pensamento,

NINGUÉM nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,


psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio

54
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto


intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.
Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um
Outro (BEAUVOIR, 1967 p. 09).

Percebe-se que Beauvoir define gênero como uma construção histórica,


social e cultural e não como um dado biológico natural dos indivíduos, pois o gênero
é erigido pela própria sociedade, que, consequentemente, modela os padrões de
comportamentos e as características para cada uma das representações da
identidade de gênero enquanto categoria de representação social. Da mesma forma,
a heterossexualidade e a submissão do sexo feminino são consideradas imposições
de uma sociedade que se mantém sob a base do sistema patriarcal. Esses padrões
criados, frequentemente submetem a mulher ao papel de dona da casa, esposa e
mãe que se devota incondicionalmente aos cuidados dos filhos, marido, casa e não
raramente à igreja que costuma apresentar justificativa divina para tal imposição
masculina. É o que deixa claro Simone Beauvoir

[...] Venerando a mulher em Deus, trata-a neste mundo como uma serva:
mais ainda, quanto mais se exigir dela uma submissão completa, mais
seguramente será ela dirigida para o caminho da salvação. Devotar-se aos
filhos, ao marido, ao lar, à propriedade, à Pátria, à Igreja, é sua função, a
função que a burguesia sempre lhe indicou; o homem dá sua atividade, a
mulher sua pessoa; santificar essa hierarquia em nome da vontade divina,
não é modificá-la em nada; ao contrário, é pretender fixá-la no eterno
(BEAUVOIR, 1960 p. 276).

Percebe-se que a legitimação de uma hierarquia social masculina desigual é


dada através de uma ideologia religiosa que consegue através de um discurso
hegemônico persuadir a classe oprimida, fazendo com que ela aceite e naturalize tal
situação. Desse modo, tal concepção é à base de um sistema que reproduz ao
longo do tempo uma desigualdade social, garantindo os privilégios do grupo
opressor.
Para a historiadora norte-americana Joan Scott, não se deve analisar o
gênero apenas nas relações entre homem e mulher, mas observar a esfera cultural,
social e política para entender como são construídas as diferenças entre os gêneros.
Para ela, o gênero é uma relação entre saber e poder: “Gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e
o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1990 p.
21), percebe-se que em seu pensamento quem detém o saber, também possui o
poder e são nessas diferenças que se estabelecem as relações de gênero. Assim, a
autora supõe que as relações estabelecidas entre os gêneros não são apenas frutos
das diferenças acerca dos sexos, mas de uma esfera mais ampla de fatores sociais,
culturais e políticos de uma dada sociedade.
Dessa forma, pode-se entender que os papéis sociais dados aos homens e
às mulheres, que foram distribuídos de forma desigual, não são absolutamente
baseados nas diferenças entre os sexos, ou seja, mesmo que haja uma relação
entre os papéis sociais e o sexo, não é o sexo que absolutamente os define, mas
sim, todo um conjunto de fatores os quais estão relacionados ao gênero. Dessa
forma, concordamos com o pensamento de Joan Scott

55
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

[...] Com a proliferação dos estudos do sexo e da sexualidade, o gênero se


tornou uma palavra particularmente útil, porque ele oferece um meio de
distinguir a prática sexual dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens.
Apesar do fato dos(as) pesquisadores(as) reconhecerem as relações entre
o sexo e (o que os sociólogos da família chamaram) “os papéis sexuais”,
estes(as) não colocam entre os dois uma relação simples ou direta. O uso
do “gênero” coloca a ênfase sobre todo um sistema de relações que pode
incluir o sexo, mas que não é diretamente determinado pelo sexo nem
determina diretamente a sexualidade (SCOTT, 1990 p. 07).

Compreende-se assim, que o sexo não é o único fator preponderante que


sustenta as desigualdades existentes entre os gêneros, mas é apenas um dos
múltiplos fatores que sustentam as disparidades entre ambos, e geralmente
favorecendo ao homem.
As definições de gênero, que se prendem apenas ao binômio homem/mulher
desconsiderando a multiplicidade de identidades que o ser humano possui, excluem
e marginalizam todas as identidades que fogem ao padrão heteronormativo – isto é,
um padrão de comportamento social imposto por uma heterossexualidade
compulsória. Esta concepção foi profundamente criticada pela filósofa Judith Butler
em sua obra “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”. Para
Butler, o gênero é como uma forma de representação da nossa própria identidade
que construímos ao longo de nossa vida, ou seja, o gênero é tido como uma forma
de identidade do ser humano que é influenciada pelo meio cultural, religioso, político
e costumes da sociedade em que vive. Segundo ela,

Se os atributos de gênero não são expressivos, mas performativos, então


constituem efetivamente a identidade que pretensamente expressariam ou
revelariam. A distinção entre expressão e performatividade é crucial. Se os
atributos e atos do gênero, as várias maneiras como o corpo mostra ou
produz sua significação cultural, são performativos, então não há identidade
preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido: não haveria
atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a postulação
de uma identidade de gênero verdadeira se revelaria uma ficção reguladora.
O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performances sociais
contínuas significa que as próprias noções de sexo essencial e de
masculinidade ou feminilidade verdadeiras ou permanentes também são
constituídas, como parte da estratégia que oculta o caráter performativo do
gênero e as possibilidades performativas de proliferação das configurações
de gênero fora das estruturas restritivas da dominação masculinista e da
heterossexualidade compulsória. Os gêneros não podem ser verdadeiros
nem falsos, reais nem aparentes, originais nem derivados. Como portadores
críveis desses atributos, contudo, m eles também podem se tornar completa
e radicalmente incríveis (Butler, 1990 p. 201).

A heterossexualidade é tida como norma em uma sociedade, não por ser


natural dos seres humanos, mas por uma imposição dos grupos dominantes para
que não haja manifestações de identidades contrárias à heterossexualidade
compulsória. Dessa maneira, os sujeitos oprimidos são obrigados a aceitar essa
imposição sem questioná-la, tornando-se assim agentes de sua própria opressão e
implicando na reprodução dos discursos opressivos. Assim, concorda-se com o
pensamento de Butler quando ela afirma que

O discurso toma-se opressivo quando exige que, para falar, o sujeito falante
participe dos próprios termos dessa opressão – isto é, aceite sem
questionar a impossibilidade ou inimeligibilidade do sujeito falante. Essa

56
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

heterossexualidade presumida, sustenta ela, age no interior do discurso


para transmitir uma ameaça: “você-será-hétero-ou-não-será-nada”
(BUTLER, 1990 p. 168).

Dessa forma Butler diz que a sociedade molda as expressões de gênero


dando sustentação para heteronormatividade compulsória, enquanto marginaliza
qualquer expressão de identidade que não siga este modelo. Portanto, é necessário
se desprender das forças de manipulação de uma sociedade opressora para dar voz
aos grupos oprimidos e, é justamente neste propósito que Butler se torna a
precursora da Teoria Queer. Teoria essa que defende o respeito às diferenças de
identidades, seja elas de gênero ou sexual e todas as outras que os seres humanos
possuem.

Identidade e diferença

É cada vez mais comum as análises em que o termo gênero representa as


categorias de identidades que os seres humanos possuem e como se auto
reconhecem diante dessa forma de representação. Neste tópico, abordaremos a
formação da identidade e diferença e como estes fatores são moldados pelo sistema
cultural, político e social, além de exemplificar como a diferença que surge nesse
contexto pode contribuir para as desigualdades de gênero e para lgbtfobia.
A identidade tem como conceito principal a de representação social de um
dado indivíduo ou grupo, que é construída de características semelhantes às das
que ele possui, “em uma primeira aproximação, parece ser fácil definir ‘identidade’. A
identidade é simplesmente aquilo que se é” (SILVA, 2000 p. 01). Em outras palavras
a identidade é algo particularmente “nosso", por isso pode parecer fácil definir
identidade, já que parte sempre da ideia do “eu", ou seja, como nós nos
reconhecemos, mas nossa identidade vai além disso, pois ela é uma construção
sociocultural do meio em que vivemos e dos ideais aos quais estamos submetidos.
A ideia de identidade sempre irá partir do “eu sou" e do “eu não sou”, pois quando
reconhecemos o que não somos, estabelecemos uma diferença entre nós e os
demais indivíduos, mostrando as nossas características que pertencem apenas ao
“eu” e que nos diferencia da maioria. Então, quando eu reconheço o que não sou,
isso abre “portas” para me definir enquanto indivíduo único portador de
características semelhantes a determinado grupo, e é aí que entra a questão do “eu
sou”, em que podemos perceber em uma simples frase de apresentação como “eu
sou maranhense" ou “eu sou um homem gay cis”, isto é, como podemos nos
reconhecer para participar de determinadas identidades universais já que
compartilhamos características de determinados grupos sociais.
Com isso, surge a ideia de “identidade X diferença”, pois a diferença se opõe
a identidade e as mesmas se relacionam na construção uma da outra, o que é
percebido no pensamento de Silva (2000, p. 01): “Na mesma linha de raciocínio,
também a diferença é concebida como uma entidade independente”. Apenas, neste
caso, em oposição à identidade, a diferença é aquilo que o outro é: "ela é italiana",
"ela é branca", "ela é homossexual", "ela é velha", "ela é mulher". Percebe-se assim
que a diferença tem como definição básica aquilo que o indivíduo não é, ou seja, o

57
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

que o outro é que eu não sou. Nesse caso, a diferença se opõe a identidade, já que
uma representa o que eu sou e a outra representa o que eu não sou, mas o que
outro indivíduo é, bem como me diferencia dele. Com isso, a diferença surge no
mesmo contexto e momento que a identidade, já que as duas são interdependentes,
ou seja, para existir uma, a outra também precisa existir. Dessa forma, as diferenças
existentes nesse sentido, são provavelmente sustentadas pela identidade criada e
tomada para si, como fator para distinguir e definir o que outros são e, portanto, me
diferenciar das identidades a qual não faço parte.
A identidade e diferença exercem entre si uma relação binária entre
afirmação/negação. Dessa forma, elas são potencializadas pelas limitações
gramaticais encontradas nas línguas, assim ambas são frutos da criação linguística
resultando das relações culturais e sociais, as quais são expressas em discursos
que formam os sujeitos, sendo que ambas são apenas instituídas como tal pelos
atos da linguagem. Dessa forma, corroboramos a ideia expressa no pensamento de
Tomaz da Silva

[...] Dizer, por sua vez, que identidade e diferença são o resultado de atos
de criação linguística significa dizer que elas são criadas por meio de atos
de linguagem. Isto parece uma obviedade. Mas como tendemos a tomá-las
como dadas, como "fatos da vida", com frequência esquecemos que a
identidade e a diferença têm que ser nomeadas. É apenas por meio de atos
de fala que instituímos a identidade e a diferença como tais. A definição da
identidade brasileira, por exemplo, é o resultado da criação de variados e
complexos atos linguísticos que a definem como sendo diferente de outras
identidades nacionais (SILVA, 2000 p. 02).

A identidade, assim como a diferença, por serem uma relação social estão
submetidas às relações de poder. Desse modo, podemos concluir que elas não são
apenas criadas, mas impostas. Nelas, há uma disputa pelos grupos sociais. Desse
modo, corrobora novamente Tomaz da Silva

[...] A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa
que sua definição - discursiva e linguística - está sujeita a vetores de força,
a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são
impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo
sem hierarquias; elas são disputadas. Não se trata, entretanto, apenas do
fato de que a definição da identidade e da diferença seja objeto de disputa
entre grupos sociais simetricamente situados relativamente ao poder. Na
disputa pela identidade, está envolvida uma disputa mais ampla por outros
recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e
a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais,
assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens
sociais (SILVA, 2000 p. 03).

Percebemos que os grupos sociais disputam a hegemonia destas


significações, por consequência tornam-se sinônimos de inclusão e exclusão. À vista
disso, a identidade e a diferença passam a ser utilizadas como termo de
demarcação, ou seja, de quem pertence e quem não pertence. Assim quando
definimos nossa identidade, estabelecemos uma demarcação de fronteiras para nos
diferenciarmos dos quais não compartilhamos características semelhantes de nossa
identidade, mas é justamente essas demarcações que confirmam e reafirmam as
relações de poder. É o que deixa claro Silva (2000, p. 04)

58
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

[...] A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre,


as operações de incluir e de excluir. Como vimos, dizer "o que somos"
significa também dizer "o que não somos". A identidade e a diferença se
traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não
pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a
identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o
que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma
forte separação entre "nós" e "eles". Essa demarcação de fronteiras, essa
separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam
relações de poder. "Nós" e "eles" não são, neste caso, simples distinções
gramaticais. Os pronomes "nós" e "eles" não são, aqui, simples categorias
gramaticais, mas evidentes indicadores de posições-de-sujeito fortemente
marcadas por relações de poder.

Estas significações são entendidas como forma de representações, mas


também podem ser entendidas como uma arma de propagação das desigualdades
existentes entre os grupos dominantes e os dominados, uma vez que a mesma irá
diferenciar estes dos demais e assim manter a relação de poder através de
mecanismo preconceituoso de marginalização entre classes sociais, grupos étnicos,
políticos e assim propagar estereótipos e preconceitos existentes contra mulheres,
classe LGBT e qualquer outro indivíduo que divergir do padrão do grupo dominante
das relações de poder.

Patriarcalismo: origem histórica do machismo, heteronormatividade e


masculinidade hegemônica

A tradicional família brasileira foi erguida sob as bases do sistema patriarcal


herdado dos portugueses. Esse sistema permitia que o “chefe da família” exercesse
uma relação de dominação sob os seus membros. Dessa forma, tal modelo
contribuiu para que houvesse uma disparidade entre os gêneros, o que acarretou na
distribuição desigual dos papéis sociais, dando ao homem o papel de provedor nas
relações de poder da sociedade enquanto à mulher restava o papel de submissão
ao marido e os afazeres domésticos.
A consolidação e manutenção deste sistema também contribuiu para
surgimento de uma masculinidade hegemônica, ocasionando a marginalização dos
indivíduos que fogem do padrão de conduta masculino socialmente naturalizado.
Este comportamento deu origem a uma heteronormatividade compulsória que não
afeta apenas a comunidade LGBTQIAP+, mas qualquer um que não se enquadre
nesse padrão heteronormativo.
Em meio a várias discussões sobre o estudo de gênero, tem-se dado uma
atenção maior para o que chamamos de comportamento heteronormativo ou
simplesmente heteronormatividade, além dos casos de machismo, que são
frequentes em nosso meio social, é cada vez mais frequente a problematização das
masculinidades hegemônicas.
A heteronormatividade é um termo utilizado para designar um
comportamento que é imposto a grupos que fogem do padrão da
heterossexualidade, ou seja, grupos heterossexuais que marginalizam, perseguem
ou inviabilizam qualquer indivíduo que fugir deste padrão. De forma mais clara, a
heteronormatividade é uma prática que discrimina pessoas da classe LGBTQIAP+,

59
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

ou que apresentam um comportamento afeminado, no caso dos homens, ou


masculinizado, no caso da mulher. A heteronormatividade pode ser percebida até
em casos aparentemente vistos como normais, como por exemplo quando uma
mulher grávida escolhe para menino a cor azul e para a menina a cor rosa, sem a
possibilidade de optar pelo contrário. Convencionou-se que meninos não podem
usar rosa, pois rosa remete à ideia de feminilidade, de algo doce, frágil e sensível,
características que naturalmente são associadas às mulheres, de modo que o
indivíduo do sexo masculino não pode apresentar tais aspectos, pois este, desde
sua tenra infância terá que se manter predominantemente “macho”.
A naturalização da heteronormatividade se dá através do seu discurso
hegemônico, uma vez que continuamente houve um discurso discriminatório sobre
as condutas não consideradas normais perante o olhar da sociedade patriarcal.
Esse discurso é que evidentemente fortalece e sustenta toda a conduta da
heteronormatividade compulsória, pois é tido como normal, o que legitima, mais
ainda, as práticas discriminatórias.
Esse discurso é propagado de tal forma que a norma estabelecida é um
elemento de persuasão. Michel Foucault nos lembra de que o discurso hegemônico
é como

[...] uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em


estratégias diferentes. É essa distribuição que é preciso recompor, com o
que admite em coisas ditas e ocultas, em enunciações exigidas e interditas;
com o que supõe de variantes e de efeitos diferentes segundo quem fala,
sua posição de poder, o contexto institucional em que se encontra; com o
que comporta de deslocamentos e de reutilizações de fórmulas idênticas
para objetivos opostos. Os discursos, como os silêncios, nem são
submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele
(FOUCAULT, 1999, p. 111).

Entende-se assim que o discurso serve como ferramenta de impor, manter e


sustentar a identidade criada de um homem macho, viril, insensível, rústico e hetero.
Seus privilégios são tanto frutos das desigualdades criadas entre homens e
mulheres quanto também da disparidade entre heterossexualidade e
homossexualidade.
Ao longo da história, esse padrão de homem heteronormativo
sucessivamente se manteve no topo dos propulsores da desigualdade e opressão,
inferimos que isso garantia a manutenção das estruturas que os mantinham no
poder, tal como o patriarcalismo, que ao idealizar a figura do macho alfa perpetua
ideia para os futuros descendentes do sexo masculino, criando assim uma cultura de
masculinização ideal.
A heteronormatividade estabelece assim uma correlação com o patriarcado.
Para manter a postura masculina “correta” no meio social, faz-se com que o
indivíduo do sexo masculino se reprima e cresça com a ideia de que ele não pode
apresentar traços que eventualmente é atribuído ao sexo feminino. Essa correlação
existente entre ambos, fortifica a ignorância masculina de uma verdade absoluta em
que a mulher deve se submeter a um relacionamento, cuja dependência financeira
esteja no marido e ela se designe apenas a servir o “chefe de casa”.
A priori as masculinidades hegemônicas podem ser um pouco semelhantes
à heteronormatividade, porém há uma enorme diferença em seus conceitos, pois a

60
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

masculinidade hegemônica é definida como atual configuração da prática que


naturaliza e legitima a dominação do homem na sociedade e explica a submissão
passiva das mulheres e outros grupos marginalizados, ou seja, ela tenta explicar
como e por que o homem mantém as relações de dominação sobre as mulheres e à
outras formas de identidades de gênero, tidas como “diferentes” em uma
determinada sociedade. Além disso, é importante enfatizar que existe várias formas
de masculinidades, entre elas há uma luta constante pelo “trono da dominância” que
de acordo com Connell e Messerschmidt

Esses estudos acrescentaram o realismo etnográfico de que a literatura de


papéis sexuais carecia, confirmando a pluralidade de masculinidades e as
complexidades da construção do gênero para os homens, e trazendo
evidências à luta ativa pela dominância, que é implícita ao conceito
gramsciniano de hegemonia (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2005 p.244).

Com o tempo a masculinidade hegemônica conseguiu diferenciar-se das


outras masculinidades. Dessa forma, ela exerce o papel de normativa, ela obriga
implicitamente que os indivíduos sigam os padrões heteronormativos, além de seguir
os preceitos do patriarcado. Assim, concordamos com Connell e Messerschmidt ao
afirmarem que

A masculinidade hegemônica se distinguiu de outras masculinidades,


especialmente das masculinidades subordinadas. A masculinidade
hegemônica não se assumiu normal num sentido estatístico; apenas uma
minoria dos homens talvez a adote. Mas certamente ela é normativa. Ela
incorpora a forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os
outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a
subordinação global das mulheres aos homens (CONNELL;
MESSERSCHMIDT, 2005 p. 245)

Dessa forma, podemos estabelecer uma “árvore genealógica” pela qual o


patriarcado seria o pai da heteronormatividade, da masculinidade hegemônica e, por
fim, avô do machismo, este último se firma como fruto da heteronormatividade e da
masculinidade hegemônica, uma vez que é perceptível uma relação de semelhança
entre ambos. Assim, podemos definir o machismo como uma prática que discrimina
e desvaloriza o universo feminino, o que acarreta a valorização do masculino. Vale
salientar que atitudes machistas podem ser reforçadas pelas mulheres que
nasceram em um ambiente de cultura machista e de superioridade masculina e tal
como falamos anteriormente, os oprimidos internalizam os discursos do opressor de
tal forma que os defendem e os propagam como o único a ser seguido.
O machismo em nossa sociedade se tornou tão natural ao ponto de não
percebermos a sua presença, isso mostra o quão essa prática está enraizada em
nossa cultura. Desse modo, há uma necessidade de problematizar e questionar de
fato essa estrutura discriminatória que persiste na história da nossa sociedade para
abrirmos caminhos mais claros na discussão sobre tal tema, para assim
proporcionar uma visão melhor de como tais práticas estão em nosso dia a dia, para
então não só identificarmos, mas sim combatermos toda e qualquer que seja a
forma de discriminação existente. Vale ressaltar que tanto a heteronormatividade
como as práticas machistas resultam em casos de homofobia e de feminicídio que
nos últimos anos tiveram aumentos significativos.

61
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Homofobia e feminicídio: os obstáculos a serem vencidos na busca pela


equidade

A homofobia assim como o feminicídio são produtos do comportamento


machista que impera na sociedade em que vivemos, pois no campo da sexualidade
somos designados a seguir a heterossexualidade compulsória que se associa a uma
falsa ideia de superioridade masculina. Dessa forma, o feminino é visto como
sinônimo de inferioridade, bem como de submissão, que tem como consequência a
marginalização de indivíduos que apresentam características tidas como do gênero
feminino. Logo, nessa lógica heteronormativa, um “verdadeiro” homem seria aquele
que renega qualquer associação aos traços do sexo oposto. Assim, essa
perspectiva patriarcal molda a masculinidade a partir de uma série de hostilidades
que resulta em uma personalidade violenta e discriminatória.
A pesquisa nacional sobre ambiente escolar no Brasil (ABGLT:2016) mostra
que 27% dos entrevistados afirmaram já ter sofrido agressões na escola, e 73%
foram xingados por conta de sua orientação sexual, 68% foram agredidos
verbalmente no ambiente escolar devido a como reconhece sua identidade de
gênero e 25% foram agredidos pelo mesmo motivo. Nos casos de feminicídio, os
dados não foram diferentes. No relatório divulgado pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, considerando as informações oficiais dos Estados relativos a
2017, os casos de mulheres vítimas de homicídio cresceram 6,5% em relação ao
ano anterior. Em 2017, foram registados 1.133 casos de feminicídio, um número
bastante elevado.
Esses números demonstram como o patriarcalismo se interliga com as
ondas de discriminação, pois o machismo e a homofobia são comportamentos
herdados do obscurantismo do sistema patriarcal. Apreender como esse sistema
funciona, é entender como se reproduz as discriminações, pois todo pensamento
machista e homofóbico tem sua origem na imposição da masculinidade, já que essa
obsessão de estar sempre no topo com o papel de detentor dos poderes e do outro
surge no sistema patriarcal. Nos dias atuais, podemos ver o reflexo de tais ações
que mostram o quanto nossa sociedade se tornou intolerante e demonstra o quão
tais ações são frutos da ordem compulsória do machismo e heteronormatividade que
ao longo da história definiram os comportamentos sociais das mulheres e da
comunidade LGBTQIAP+.

Considerações finais

O presente estudo nos levou a refletir sobre como os papéis sociais foram
desigualmente distribuídos entre homens e mulheres de forma que ao homem se
deu o papel de dominador das relações de poder e à mulher o papel de submissão e
os afazeres doméstico. Durante muito tempo, essa estrutura de poder foi aceita
como a norma pela sociedade, resultando em anos de desigualdades entre os
gêneros, bem como na disseminação de um comportamento heteronormativo que
discrimina qualquer indivíduo que não se enquadra nos padrões socialmente
aceitos.

62
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Por fim, faz-se necessário salientar que trabalhos como estes são de suma
importância por dar visibilidade a grupos que socialmente foram marginalizados,
oprimidos e discriminados. Desse modo, estudar as relações de gênero é entender
como se constrói as estruturas de discriminações sociais e como estas se propagam
no seio da sociedade, o que se torna um passo importante no combate às
disparidades existentes entre estes grupos sociais. Assim, visamos dar voz aos que
injustamente foram silenciados e promover a visibilidade das identidades oprimidas,
a fim de demonstrar a pluralidade de identidades que o ser humano possui.

Referências

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Vol. 1: A vontade de saber.


Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 13. ed.
Rio de Janeiro: Graal, 1999.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e
Realidade: Porto Alegre, 1990.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e diferença. In:
Identidade e diferença: a perspectivas dos estudos culturais. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia
do Livro, 1960.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade
/Judith Butler; tradução, Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CONELL, R. N; MESSERSCHMIDT, James W. Hegemonic masculinity: rethinking
the concept. Revista Gender e Society, v. 19, n. 6, p. 829-859, Dec. 2005.

63
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

ALFORRIAS FEMININAS NOS TESTAMENTOS DO MARANHÃO


SETECENTISTA
Maria Wanilde Santos Silva1
Laura Elisa de Albuquerque Leite Alves2
Nila Michele Bastos Santos3

Introdução

O presente artigo é fruto da segunda etapa da pesquisa financiada pelo


programa PIBIC ENSINO MÉDIO 2019/2020 do IFMA em parceria com o CNPq.
Constitui-se de análises dos testamentos do Maranhão Setecentista, de modo que,
tais documentos evidenciam a sobrevivência das mulheres negras e escravas que,
durante um longo período, foram consideradas como meros objetos, ou
simplesmente peças humanas.
Durante séculos, os negros foram privados de condições básicas
necessárias para o seu bem-estar físico e psicológico, sendo expostos a situações
degradantes que retiravam sua individualidade, transformando-os em meros objetos
para o trabalho. Essa coisificação foi mantida e dada como absoluta por diversos
historiadores das décadas de 70 e 80 invisibilizando, de certa forma ainda mais as
lutas e resistências protagonizadas por esse povo. As lacunas históricas são ainda
maiores quando se trata da mulher negra escravizada que sofria diversas formas de
abuso, dentre eles os sexuais que eram bastante frequentes, pois elas perdiam não
só o controle sobre suas vidas como também sobre seus corpos.
Por estarem muitas vezes em maior contato com seus senhores, era comum
que essas interações permitissem a formação de vínculos afetivos (bons ou maus),
que podiam se transformar em uma importante forma de resistência (mas não a
única) encontrada por essas mulheres: usar sua feminilidade para estimular tais
relações, pois poderia lhes permitir uma melhor qualidade de vida, podendo inclusive
lhes conceder alforrias em muitos casos. Infelizmente, o patriarcado presente na
sociedade impôs uma ótica sexista sobre esses laços afetivos, hiperssexualizando a
mulher negra. Outra prática bastante utilizada pelos escravizados era o
apadrinhamento (SILVA, 2016) que buscava obter a liberdade para si ou para a
criança apadrinhada, que era alcançada em grande parte apenas do leito de morte
de seus senhores os quais utilizavam seus testamentos para alforriá-los.
Os testamentos nos permitem visualizar e compreender as relações
escravo-senhor, que estão em uma região de amplas possibilidades, constituindo a

1 Bolsista do projeto PIBIC Ensino Médio 2019/2020- Edital PRPGI Nº 06 /2019 - Aluna do Ensino
Médio Integrado ao Curso de Eletromecânica do IFMA/Campus Pedreiras. E-mail: Maria w
anilde@acad.ifma.edu.br
2 Voluntária do projeto PIBIC Ensino Médio 2019/2020- Edital PRPGI Nº 06 /2019. Aluna do Ensino

Médio Integrado ao Curso de Petróleo e Gás do IFMA/Campus Pedreiras. E-mail:


laura.alves@acad.ifma.edu.br
3 Orientadora PIBIC ENSINO MÉDIO 2019/2020 - EDITAL PRPGI nº 06/2019. Mestra em História

Social, Professora EBTT de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do


Maranhão. Coordenadora do NEABI – IFMA/campus Pedreiras e do LEGIP- Laboratório de Estudos
em Gênero do IFMA campus Pedreiras. E-mail: nila.santos@ifma.edu.br

65
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

participação desses sujeitos em uma história em que eles são não somente
relacionados a dados quantitativos, mas às alforrias que eram provas dos vínculos
entre as liberdades concedidas e as relações afetivas. O que visamos compreender
é como funcionavam essas relações e os motivos das alforrias em seus
testamentos, e em que momento houve uma dissociação na forma de vê-los,
passando de “mercadorias” para pessoas dignas de liberdade e confiança, além do
papel desempenhado por eles na sociedade maranhense do século XVII.
Os estereótipos criados nesse período fortalecem as raízes do racismo
estrutural ainda tão marcante e presente na atualidade, em que pouco vem sendo
feito para repará-lo, causando um imenso prejuízo a população negra. Assim,
desenvolvemos uma cultura misógina, racista e intolerante que invisibiliza uma
parcela da população. Dessa forma, temos a falta de representatividade dos negros
em propagandas, telejornais e filmes, o padrão de beleza europeia é explicitamente
difundido, as religiões de matriz africana se tornam alvo de ódio e tudo isso provém
de um passado colonial escravocrata.

Metodologia

Optamos por uma análise bibliográfica e documental, com a tabulação dos


testamentos, sendo compreendido os períodos de 1700 a 1799, que apresenta uma
importante etapa da sociedade maranhense. A documentação está formada por
registros ricos em abundância de conteúdos historiográficos e sociais, tendo em
vista que se refere a vidas maranhenses em toda uma ancestralidade, quebrando
paradigmas sociais e culturais da época. Os documentos analisados foram
entregues transcritos, estando à inteira disponibilidade para a análise, tais análises
documentais tornam possível vislumbrar uma perspectiva profunda dos
acontecimentos e das teias de conexão entre os indivíduos. Tais indivíduos que se
referem à população negra escravizada, que segue ainda sendo marginalizada no
Brasil. Desse modo, para se obter uma profunda perspectiva dos sujeitos estudados,
foi importante investigar e compreender todo o universo de decifrações e
significações da sociedade do Maranhão colonial setecentista.
Orientamo-nos pelas concepções dos estudos de gênero e da História das
Mentalidades. As fontes de pesquisa são os Testamentos dos anos de 1700-1799, já
transcritos no livro “Cripto maranhense e seu legado” de autoria de Antônia da Silva
Mota, Kelcilene Rose Silva e José Dervil Mantovanin (2001) como também os
documentos primários contidas no Livro dos Testamentos 1751-1756, disponíveis no
Arquivo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do Maranhão – ATJ.
Nestes, foram destacadas as alforrias concedidas às mulheres negras
escravizadas, proporcionando um entendimento mais aprofundado dos sujeitos
estudados e a multiplicidade de sentidos que eles podem adquirir. O processo de
pesquisa bibliográfica se desenvolve por meio dos repositórios acadêmicos virtuais,
por meio de busca de obras e artigos com conexão ao estudo do projeto, a fim de
revisionar a historiografia passada sobre o tema, tendo em vista que a pesquisa
proporciona novos olhares de diferentes pessoas, sobre este estudo desenvolvido.

66
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

História de mulheres

Por vezes, a “História das Mulheres” é vista por um único discurso


homogeneizador, o que não nos permite vislumbrar um prisma mais amplo, no que
se refere às mulheres escravizadas, compreender toda a complexidade dos métodos
utilizados por elas para obter algum tipo de “liberdade’’, é algo muitas vezes
distorcido e amplamente erotizado, gerando séculos de racismo estrutural que se
reflete socialmente na construção dos indivíduos. As relações afetivas eram, muitas
vezes, formas de resistência do escravizado na tentativa de obter algum controle
sobre sua vida e sobrevivência, portanto a ideia de que os escravos eram meras
mercadorias e que se consideravam objetos por receberem suas alforrias apenas
pelo altruísmo de seus senhores ou por uma consciência pesada, reforça uma visão
preconceituosa e objetifica o escravo tirando de si o direito de ser humano.
Nas análises e investigações do uso dos testamentos, é visível as
manifestações dessas mulheres em relação à sua condição escravista, em
particular, as maneiras de conseguir sua liberdade e atos de resistência. Desse
modo, este artigo tem como objetivo, no que condiz à condição particular e
específica da mulher negra escravizada, buscar compreender as conexões às quais
estavam sujeitas e o meio social ao qual pertenciam e que lhe era imposto. Objetiva-
se também analisar o tripé escravismo/patriarcado/racismo, fazendo uma
interconexão sobre as táticas de resistência e as maneiras como a mulher
escravizada procurava a liberdade, e/ou quando liberta, ascender socialmente.
Enfim, o que visamos compreender é como funcionavam as teias sociais entre
escravo-senhor e o que levava os escravos a obterem suas alforrias nos
testamentos de seus senhores, em que momento houve uma dissociação na forma
de vê-los, passando de “coisas’’ para pessoas dignas de liberdade e confiança, qual
o papel desempenhado por eles na sociedade maranhense do século XVII e como o
escravizado assumia diferentes formas de resistência perante sua condição, indo
além das revoltas, fugas e suicídios. Desse modo, procuramos assim entender os
impactos dessas relações na formação da sociedade atual e como elas afetam a
formação de uma cultura patriarcal e racista.
Nossa pesquisa se volta para as alforrias femininas e seus motivos,
atentando também ao fato de que mesmo sendo a maioria em testamentos, as
mulheres negras eram e ainda são invisibilizadas, suas histórias e lutas
desconsideradas, todo a nossa fonte de pesquisa provém de pequenas migalhas
obtidas através dos testamentos de senhores que apesar de conterem as cartas de
alforria não mostravam as relações existentes por trás delas, em que as escravas,
em sua maioria, perderam o controle não apenas de suas vidas como também de
seus corpos.
Os testamentos contribuem para uma nova visão e construção dos fatos e
das relações entre os indivíduos do período do Maranhão setecentista, o que incorre
ao acesso à informação e à construção de conhecimentos, por meio da valorosa
documentação dos registros de testamentos que transcendem o aspecto da vida
pessoal do testador. O senhor de engenho, o qual no seu leito de morte, transmite
ao documento suas últimas vontades, possibilitando a reconstituição da história das
famílias maranhenses, bem como a construção das relações presentes nele.

67
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Alforrias e relações afetivas

As alforrias são cartas de liberdade, e por meio dela, um escravo é


considerado livre de qualquer relação ao cativeiro e ordens do senhor de engenho,
como serviços prestados e os domínios que retinham sobre ele. Esses documentos
não estão somente ligados às questões jurídicas e cotidianas, mas também ao que
diz respeito às experiências escravistas, sendo de extrema importância o registro
deste processo e os personagens envolvidos no mesmo. Tais documentos permitem
explicar o funcionamento de parcelas expressivas das experiências humanas no
transcorrer do tempo, demonstrando que escravos e alforriados não foram apenas
“vítimas”, mas agentes históricos relevantes e ativos no passado brasileiro.
As fontes relacionadas à sociedade escravista, contradizem a concepção de
um escravo coisificado, submisso às vontades de seu senhor, sem interesses
próprios. Esses indivíduos escravizados desenvolveram uma série de “adaptações”
e buscaram adequar-se à nova realidade à qual estavam submetidos, realizando
assim, formas de resistências e estratégias, formas de sobreviver no espaço de
dominações onde haviam sido inseridos, em condições desumanas.
A liberdade vinha através de diversas lutas, sendo que algumas também se
relacionam às estratégias e às artimanhas árduas, desenvolvidas e utilizadas por
essas mulheres. Logo, poderiam surgir afetividades desenvolvidas com seus
senhores de modo que no leito de morte destes eram agradecidas por meio das
alforrias.
As alforrias eram feitas com base em diversos motivos, entre eles: “pelo
amor de Deus”, “pelos bons serviços prestados” e “condicionadas”. As
emancipações poderiam tornar-se reais, através de resistências e teias de
relacionamentos, o que poderia resultar em interesses recíprocos entre a escrava e
o senhor, sem desconsiderar outras formas de resistências, que de inúmeras formas
auxiliaram na sobrevivência e na proteção entre elas próprias contra castigos e
punições dos senhores.
Essas mulheres que além de lutar pela sua liberdade, lutavam pela liberdade
dos seus filhos, parentes, como também por quem não possuía laços sanguíneos,
mas lutavam diariamente pela sobrevivência de quantos pudessem; contra até outro
sistema mais complexo, o patriarcado, que ainda está presente em nossa
sociedade, e contra sua coisificação.

Escravidão e a condição das mulheres negras

A escravidão, de modo horrendo, afetou os povos negros africanos que


vieram para o Brasil em péssimas condições de transporte. Na travessia
transatlântica, muitas mortes foram ocasionadas pela falta de alimentação e higiene,
os tumbeiros, como eram chamados os navios traficantes, destinavam um espaço
mínimo e insalubre aos povos de diferentes locais do continente Africano.
Quando analisamos as visões sobre a escravidão feminina e masculinas,
temos diferentes pontos distintos relacionados aos dois gêneros. Na escravatura
masculina, a tendência se manifestava sobre o trabalho que exigia maior força e
resistência braçal, logo eram comumente destinados aos trabalhos, envolvendo as

68
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

lavouras ou mineração, que necessitavam de longos períodos de trabalho e


carregamento de grandes quantidades de peso.
Entretanto, ao se falar e analisar as condições que rondavam as mulheres
negras, no período escravista, devemos considerar a que tipo de dominações
estavam sendo impostas a essas mulheres, observamos os espaços e amplitudes
que elas tinham em relação com os senhores de engenho, e em como eles se
configuravam em suas condições de sobrevivência nas quais elas tinham que usar
diversos artifícios para possuir um mínimo de conforto ou de liberdade.
As mulheres escravizadas, em predominância, foram destinadas aos
trabalhos domésticos, ditos como menos trabalhosos e rígidos em comparação aos
trabalhos exercidos pelos homens, por ser trabalhos que não demandavam um
grande esforço físico. Embora o trabalho doméstico fosse observado como um
trabalho sem quaisquer esforços ou complicações, o que se deixou de ressaltar, foi
sobre o modo como as mulheres sofriam inúmeras explorações, não tendo nem
mesmo controle ou domínio de seu próprio corpo.
Diferentemente ao espaço masculino, as mulheres tinham diariamente um
maior contato com os seus “donos”, sendo convocadas a atenderem a quaisquer
anseios que fossem da vontade dos senhores. Dessa maneira, as mulheres
poderiam estar mais próximas de alcançar e conquistar a sua liberdade, mas, ao
mesmo tempo, sofriam uma ampla dominação e opressão a que estavam
destinadas.

Uma das evidências de que as condições das mulheres negras


escravizadas diferiam da dos homens negros é que enquanto estes eram
maioria nos trabalhos na mineração, engenhos e lavouras, elas eram
predominantes no âmbito da escravidão doméstica, estando, portanto, em
um contato mais prolongado e doméstico com seus senhores (VILA, CRUZ:
2010, p.3).

As atribuições designadas às mulheres circulavam entre cozinhar, lavar,


passar, limpar o casarão, cuidar dos filhos dos senhores, entre outras atividades
domésticas relacionadas à residência. Apesar das mulheres no período do
Maranhão setecentista estarem, de maneira geral, subjugadas às vontades dos
homens, dada à sociedade patriarcal na qual os homens detinham da maior
concentração de poder, as condições de vida das mulheres brancas não se
igualavam às condições em que as mulheres negras se encontravam. Nas casas
escravistas, as escravas substituíam as mulheres livres nos trabalhos domésticos,
que por vezes eram considerados desprezíveis e desagradáveis pelas senhoras,
sendo ainda, as escravizadas, vítimas de maus tratos ocasionados por ciúmes das
mesmas ou mesmo desejo dos senhores.
Diante disso, as mulheres negras eram dominadas por sua condição de ser
mulher, negra e escravizadas. De acordo com as teias de dominação que
perduraram para essas mulheres, elas não mantinham o conceito de “apenas
destinada ao espaço doméstico”, tendo em vista as relações de poder que eram
manipuladas pelos homens brancos, que retinham, além do controle da força de
trabalho dos escravos que possuíam, em suas mãos estavam seus corpos e as suas
próprias vidas. Logo, as mulheres negras escravizadas não tinham apenas as suas
atividades rotineiras domésticas, a exploração ultrapassava os domínios de seus

69
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

corpos, expondo-as a abusos de natureza física, psicológica e sexual, como o de


manter relações sexuais com o senhor de engenho. De acordo com Villa e Cruz
(2010, p. 16)

sendo dono da pessoa escravizada, o senhor tinha poder sobre o corpo


dessa pessoa no sentido sexual do termo. Não raro a escravidão incluía a
obrigação das mulheres escravizadas de servir sexualmente aos seus
senhores, aos amigos dos seus senhores ou a quaisquer outras pessoas
por eles indicadas.

A ótica da exploração transformou mulheres escravizadas em amas-de-leite,


pois elas deixavam de alimentar os seus próprios filhos para dar, proveniente de seu
corpo, o alimento para os filhos dos seus senhores. Amas-de-leite eram alugadas ou
vendidas, com ou sem os filhos que tinham, demonstrando mais uma vez a bruta e
horrenda condição em que elas se encontravam, exercendo quaisquer outras
atividades que o senhor de engenho desejasse.
Entretanto, os senhores de engenho assumiam posturas diferentes entre si.
Baseando-nos na análise dos testamentos, eles assumiam posturas e concepções
distintas, influenciadas por uma série de fatores particulares a seu espaço de
relações. Os conceitos relacionados à escravidão, em que os sentimentos que são
demonstrados a partir de seus comportamentos, exemplifica a complexidade entre
os sujeitos atuantes dos processos da escravidão.
Na leitura dos testamentos, podemos notar as relações pelas quais as
alforrias eram concedidas, podendo ser: “Pelo amor de Deus”, “Condicionadas” e
“Pelos bons serviços prestados”, entre outras alforrias sem um motivo justificável,
apenas pelo seu próprio desejo e vontade. Tais evidências relatam os últimos
anseios do senhor em seu leito de morte, algo significativo da existência humana, o
que torna a criação ainda de mais perguntas e curiosidades sobre o que poderia
estar relacionado para que tais alforrias fossem concedidas.

// Declaro que destes escravos se a tempo de meu fallescimento for viva a


cafuza Ignacia he minha ultima vontade que esta fique forra livre e izenta de
toda penção de captiveiro o que lhe faço pelo bom serviço e fidelidade com
que me tem servido e tambem quero que meus testamenteiros lhe dêm de
esmolla vinte mil reis e cazo que ella seja fallescida lhe mandarão dizer em
missas dez mil reis que tudo lhe faço pello amor de Deos e ser minha ultima
vontade //Traslado do testamento com que fallesceu João Pereira Torres
na Ribeira [do] Mearin. Arquivo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do
Maranhão – ATJ: Livro de Registro de Testamentos 1781-1791. nº2, fl. 25v,
04 fev. 1784).

Nesses testamentos, as relações existentes se aproximam de um espaço


mais íntimo do tratado apenas entre escrava e senhor. As teias de afetividades
como também as árduas ações exercidas pelas mulheres negras escravizadas,
visando sua liberdade e resistência pelas dominações escravistas diárias,
contradizem as concepções de que as mulheres não estariam atuando
fervorosamente pela sua própria vida. Em uma sociedade extremamente patriarcal,
sob uma tripla dominação – “Negra, escrava e mulher” – suas ações ultrapassam o
sentido do trabalho doméstico, ao qual, geralmente, ela era destinada.
Por outro lado, as escravas tinham mais oportunidades para estabelecer
laços afetivos com os senhores, sendo estes bastante comuns nos textos das cartas

70
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

de alforria. Esses laços não se desenvolviam apenas em decorrência de ter o senhor


feito de suas escravas parceiras sexuais. As amas-de-leite e mucamas, por exemplo
frequentemente tinham a estima de seus senhores (SOARES, 2006. p.76).
Nos atos usados por essas mulheres que ocorreram de forma mais ampla e
próxima entre eles, os artifícios usados por essas mulheres, ultrapassam as
concepções do escravo coisificado.
Essas mulheres tinham uma magnitude grandiosa no que é dito delas, as
condições às qual elas estavam submetidas transmitem ainda mais a
problematização sobre a sua história e condições sociais, soma-se ainda o peso de
desconstruir os papéis aos quais elas ainda são relacionadas, que ainda as querem
manter nos traços da tripla dominação em relação aos homens, das outras mulheres
de pele mais claras, que ainda detêm maiores privilégios no sistema econômico.
Nesses testamentos, as relações existentes se aproximam, como já
mencionamos, de um espaço mais íntimo do tratado apenas entre escrava e senhor
e nos traz questionamentos como:
Puderam essas mulheres estar em condições específicas e particulares que
as fizeram obter meios de estratégias e resistências? De que forma a sua
mobilidade social e os traços dos acontecimentos daquele período refletem na
sociedade atual em que nos encontramos? Quais condutas foram de exclusividade
das mulheres negras para alcançar a sua liberdade?
Esses questionamentos se enquadram em uma amplitude no que se refere
às condições vivenciadas por essas mulheres sob uma tripla dominação, resistiam e
lutavam contra o sistema que as oprimiam. A tripla dominação na qual as mulheres
estavam, se transmitia em todo o espaço e comportamento a sua volta. Sendo
mulheres, negras e escravas, elas sofriam uma dominação que se relacionava a
seu gênero, a seu tom de pele e a sua condição social, uma condição ainda mais
cruel, estando ao lado de maior opressão do gênero. Nas análises e estudos sobre
escravidão, é perceptível a preferência de tratar o homem negro, o associando as
áreas da economia, atestando as relações entre gênero e classe a junção de poder.
Ao gênero se somava a influência do pertencimento de uma classe dita como
inferior, na conjuntura das situações em que essas mulheres foram submetidas,
tendo em vista que estavam mais próximas aos senhores e eram vítimas de suas
práticas, o que transformava a sua imagem e comportamentos em uma forma
distorcida deles mesmos, o que corresponde a um outro questionamento: teriam
essas mulheres utilizado os desejos dos seus senhores como forma de resistir e de
sobreviver ao sistema opressor e minorar os efeitos da escravidão? Que medidas
relacionavam ao poder e às situações às quais essas mulheres se submetiam para
sobreviver à escravidão perpetuaram no quadro social distorcido como essas
mulheres são ainda vistas no Brasil moderno?
Independente das respostas, os artifícios usados por essas mulheres
ultrapassam as concepções de escravo coisificado que não tinha influência sobre
sua liberdade, sem papel atuante na sua história e em todo o contexto da
escravidão, não somente os papéis domésticos como limitação, mas ressaltando
ainda que as elas ainda teriam que trabalhar nos mercados como escravas se este
fosse o desejo do senhor de engenho. Essas mulheres têm uma magnitude
grandiosa no que é dito sobre elas. As condições às quais estavam submetidas,

71
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

transmitem ainda mais a problematização sobre as suas histórias e condições


sociais, soma-se ainda o peso da desconstrução dos papéis aos quais elas ainda
são relacionadas atualmente, que ainda as quer manter em relação aos traços da
tripla dominação em relação aos homens, das outras mulheres de pele mais claras,
que ainda detém de maiores privilégios no sistema econômico.

Resultados das análises documentais

As questões sobre o gênero estão fortemente presentes na análise deste


projeto em que o gênero, em diversos pontos, está interligado ao período
compreendido nos estudos. Esta relação se evidencia nas pesquisas bibliográficas
e, principalmente, nas questões tratadas nas cartas de alforrias, mostrando assim, a
conexão presente entre as relações pessoais e o gênero, e em como isso é
praticado nos testamentos analisados.
Foram lidos um total de 136 testamentos, encontrados tanto na publicação
“Cripto maranhense e seu legado” de autoria de Antônia da Silva Mota, Kelcilene
Rose Silva e José Dervil Mantovanin (2001), quanto nos documentos primários
contidos no Livro dos Testamentos 1751-1756, disponíveis no Arquivo da Biblioteca
do Tribunal de Justiça do Maranhão – ATJ.
Faltaram 40 testamentos, necessários para alcançar a meta do projeto,
justifica-se essa carência devido à grande dificuldade em encontrar os documentos
já transcritos. Entretanto, os 136 testamentos analisados foram de grande
importância para este estudo, pois conseguiram alcançar o panorama proposto
neste projeto.
Dos 136 testamentos, 82 não apresentam alforrias de nenhum gênero; 11
testamentos são apresentados tanto homens quanto mulheres, donos de escravos,
que deixaram bens, sem motivos descritos, aos seus escravos.

Gráfico 01: Porcentagem de alforrias por gênero

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos Arquivo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do
Maranhão – ATJ: Livro de Registro de Testamento 1751-1756 e MOTA, Antônia da Silva; SILVA,
Kelcilene Rose; MANTOVANI, José Dervil. Cripto maranhenses e seu legado. São Paulo: Siciliano,
2001.

72
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Nos testamentos analisados, as alforrias femininas são em um total de 65. A


contabilização das alforrias masculinas são de 37. Podemos assim vislumbrar a
diferença entre as alforrias e as questões de gênero. Ressaltando ainda, que as
mulheres no meio escravista foram de menor número e valiam menos, em
comparação ao gênero masculino. A contabilização apresenta que as mulheres
receberam mais cartas de alforrias. Liberdade conquistada por diversos motivos
descritos nos testamentos.

Gráfico 02: Justificativas das Alforrias

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos Arquivo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do
Maranhão – ATJ: Livro de Registro de Testamento 1751-1756 e MOTA, Antônia da Silva; SILVA,
Kelcilene Rose; MANTOVANI, José Dervil. Cripto maranhenses e seu legado. São Paulo: Siciliano,
2001.

No período colonial, temos uma forte presença religiosa nos testamentos,


direcionada a rituais fúnebres, como também à alma do indivíduo que solicitou o
testamento.
Temos assim, um total de 21 alforrias pelos "Pelo amor de Deus". São cartas
de liberdade de cunho religioso, onde o indivíduo descreve a alforria, por um bem
maior a sua alma, frequentemente presente nos testamentos. Entretanto, o motivo
de alforria de maior número nas análises, são as cartas de liberdade "sem motivos",
nas quais não foi possível identificarmos a descrição da alforria, pois nelas não são
relatados os motivos, são liberdades concedidas sem razões ao testamenteiro.
Encontramos ainda as alforrias "Pelos bons serviços prestados", que se
referem aos serviços feitos pelas mulheres escravizadas independente do tempo,
que de alguma forma específica de cada caso se tornaram o motivo dessas
mulheres adquirirem sua liberdade. Em último lugar, tabulamos 7 alforrias
condicionadas, que se referem aos desejos do indivíduo que fez o testamento; em
cumprimento do que fora solicitado, essas mulheres poderiam se tornar forras e
livres do cativeiro.
Nos testamentos lidos não foram encontrados registros de procedência, a
grande maioria das alforriadas não tinham sua aparência descrita como também não
tinha seu lugar de origem registrado.

73
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Em um testamento a alforria se refere a uma mulher negra da nação


“Cachêo”. Nos testamentos lidos, temos 5 citações de escravas “mamalucas” e 1
gentio de terra.
Nos documentos estudados não foram encontrados alforrias com a
descrição de idade, porém, foram relatadas idades de escravas referentes ao
momento da concessão de bens às mesmas, com nome e idade descritos.

Quadro 01: Nome e idade de escravizadas que receberam algum tipo de herança
de seu senhor(a)
Jeronima 8 anos
Jina 30 anos
Angela 17 anos
Gtherina 4 anos
Florencia 9 meses
Quiteira 25 anos
Josefa 30 anos
Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos Arquivo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do
Maranhão – ATJ: Livro de Registro de Testamento 1751-1756 e MOTA, Antônia da Silva; SILVA,
Kelcilene Rose; MANTOVANI, José Dervil. Cripto maranhenses e seu legado. São Paulo: Siciliano,
2001.

Por meio das tabulações dos 136 testamentos, muitos são as conjecturas da
existência de uma relação mais próxima entre escravizados e senhores de engenho,
que poderiam levar a concessão de alforria como herança.
As teias de dominação e resistência se tornam tênues no processo de
aquisição de alforrias, estas de extrema necessidade e importância, para o domínio
do próprio corpo e da vida dos escravizados. Os documentos evidenciam uma clara
distinção, dada pelos senhores a sua escravaria, enquanto uns recebiam a liberdade
como herança, outros eram encaminhados como legados para outros indivíduos, ou
espólios a serem vendidos e escravizados em outro local.
Assim, cada ação para se tornar livre; cada esforço para possuir sua carta
de alforria, era importante.

Considerações finais: da dificuldade em encontrar fontes, às reflexões sobre a


atualidade

Um dos principais problemas encontrados nesta pesquisa foi a grande


dificuldade em ter acesso aos testamentos e, principalmente, a problemática em
relação às alforrias, pois as justificativas dadas pelos senhores para libertar seus
escravos raramente indicavam seu grau de relação, o que leva a dúvidas quanto ao
tipo de afetividade existente entre eles.
Muitos testamentos explicam as alforrias como uma forma de perdoar as
almas culpadas dos senhores; outros alegam o bom trabalho ou a lealdade do
indivíduo escravizado, mas eles nunca explicam como essas escolhas eram feitas
ou o motivo de um escravo se destacar entre o demais, mantendo assim as teias
sociais no privado. Além disso, a pouca visibilidade negra, ao longo da história, e a

74
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

ideia de que os escravos não tinham nenhum tipo de controle sobre as próprias
vidas, eram meros objetos, reflete diretamente a falta de textos que explicam essas
relações.
Tudo aqui estudado provém de pequenos fragmentos deixados no corpo
documental dos testamentos já mencionados e estes não nos dão a total ideia dos
acontecimentos, tornando implícito seu contexto. Assim fazemos deduções
baseadas nas “migalhas”, nos “indícios” e “sinais” escondidos nas entrelinhas das
fontes, em um esforço para entender o que regia as relações sociais do Maranhão
setecentista e as influências dos escravizados nas sociabilidades.
Além disto, nestes documentos podemos encontrar uma série de
problemas relacionados às ações do período escravocrata e que ainda hoje são
normalizadas e perpetuadas através de termos ou comentários preconceituosos, à
humilhação e morte da população negra marginalizada. Para entender melhor todo o
contexto em que vivemos, é preciso entender que o Brasil teve séculos de
escravidão e quando a Lei Áurea foi assinada não houve nenhum tipo de assistência
à população negra.
O Estado não tentou diminuir o abismo social existente entre as etnias, pelo
contrário, as mulheres foram hipersexualizadas e os homens vistos como
preguiçosos ou criminosos. Muitas leis foram criadas visando essa exclusão, o
próprio vocabulário que nós usamos provém de palavras e expressões racistas que
perpetuam até hoje, tais como “denegrir”, “serviço de preto”, “criado-mudo” , “Tuas
nega”, “Mulata”, , “da cor do pecado”, etc.
Assim, desenvolvemos uma cultura sexista, racista e intolerante que
invisibiliza uma parcela da população. Dessa forma, temos a falta de
representatividade dos negros em propagandas, telejornais, filmes, já que o padrão
de beleza europeia é explicitamente difundido, as religiões de matriz africana se
tornam alvo de ódio, a mulher negra é sexualizada com diversos estereótipos,
propaga-se um embranquecimento da população para afastar a noção de ser negro
e assim o racismo foi sendo estruturado.
Este artigo destacou pontos relacionados às condições das mulheres negras
e escravas no Maranhão setecentista, por meio das análises dos testamentos do
mesmo período e sob o olhar teórico dos estudos relacionados a essas mulheres em
uma ampla resistência ao sistema opressor da escravatura e da forma como elas
mantinham as relações afetivas com seus senhores, e como eles se tornam visíveis
nas leituras dos testamentos, que o senhor ao conceder a liberdade à escrava,
poderia até mesmo deixar bens ou conceder a liberdade aos filhos dela, se
houvesse.
Por meios das análises, vislumbramos todo um universo relacionado à
amplitude dessas mulheres, devido às situações que elas vivenciaram e os modos
de sobrevivência que lhes eram possibilitados por meio de suas lutas e criatividades
para alcançar a liberdade, tendo em vista também, que as relações entre a escrava
e o seu senhor poderiam não estar somente relacionadas a casos envolvendo seu
corpo, por conta das relações afetivas poderiam acontecer pelo trabalho e das
situações particulares de cada história.
Essas mulheres evidenciam as lutas que travaram entre sua própria
mentalidade, suas próprias vontades, para ceder a algumas situações e realizar

75
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

outras como forma de resistir, logo, por meio dessas mulheres o Brasil se construiu
e a relevância delas se reflete na nossa história e nas concepções da escravidão,
que são a base de construção do nosso país.

Referências

MOTA, Antonia da Silva. SILVA, Kelcilene Rose. MANTOVANI, Jose Derivil. Cripto
maranhense e seu legado. São Paulo: Editora Siciliano, 2001.
SILVA, A A. Senhores do maranhão colonial: um estudo das disposições
testamentárias masculinas no Maranhão setecentista (1750-1780). Monografia
(Bacharelado em História). Universidade Federal do Maranhão. 2016.
SOARES, Cecília C. Moreira. Mulher negra na Bahia no século XIX. Salvador:
EDUNEB, 2006.
VILA, Ivonete Costa; CRUZ; Paulo Divino Ribeiro da. Mulheres negras no século
XIX: entre submissão e rebeldia. Revista África e Africanidades - Ano 3 - n. 9,
maio, 2010 - ISSN 1983-2354. Disponível em: >www.africaeafricanidades.com.br

Fontes primárias:

Arquivo da Biblioteca do Tribunal de Justiça do Maranhão – ATJ: Livro de Registro


de Testamento 1751-1756..

76
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

AINDA SOMOS "ATREVIDA”? UM ESTUDO COMPARATIVO DOS


PADRÕES DE BELEZA PRESENTES NA REVISTA ADOLESCENTE
DO SÉCULO XX COM A ATUALIDADE

Hiza Júlia Ruben Corrêa Leal1


Nila Michele Bastos Santos2

Introdução

A desigualdade de gênero é devida a um contexto sócio-histórico-cultural


que afeta a realidade das mulheres das mais variadas formas. Ela é reforçada a todo
momento na sociedade, principalmente pela mídia, que, como veremos no presente
estudo, impõe uma imagem às mulheres que afeta desde a identidade até a própria
autoestima desse grupo no nosso dia a dia.
Levando em consideração a realidade apresentada, os meios de
comunicação possuem importante espaço quanto à difusão dessa construção de
como deve ser a mulher, um exemplo são os padrões de beleza, que estão
diretamente relacionados a como o corpo deve ser e a uma ideia de que existe uma
obrigação do indivíduo de se adequar àquilo que é estabelecido.
Nesta pesquisa, intitulada: “Ainda somos ‘Atrevida’?: um estudo comparativo
dos padrões de beleza presentes na revista do século XX com a atualidade”,
buscamos entender como esses padrões foram passados durante os últimos cinco
anos do século XX por meio da revista ATREVIDA, que tinha como público-alvo
meninas adolescentes, e problematizá-los, além disso, também objetivamos
entender qual meio está tendo no presente a mesma visibilidade pelas adolescentes
como a revista ATREVIDA tinha nos anos 90, assim podendo fazer comparações
quanto às representações de gênero abordadas nos meios de épocas diferentes e,
por fim, entender se elas perduraram ou não.
O projeto foi feito por análise documental das revistas, análise bibliográfica
tanto de livros sobre questões de gênero até dissertações sobre padrão de beleza.
O projeto torna-se cada vez mais importante quando analisamos o tanto de
mulheres que na tentativa de se adequarem a esses padrões contam com
intervenções estéticas, sustentando toda uma indústria baseada em serviços e
produtos como plásticas, cosméticos etc., mulheres estas que ainda desenvolvem
doenças como bulimia, anorexia e depressão, devido à pressão que existe para se
colocar dentro desta imagem que foi construída.

1 Hiza Júlia Ruben Corrêa Leal- Bolsista PIBIC Ensino Médio 2019/2020 - Edital PRPGI Nº 04/2019 -
Aluno do Ensino Médio Integrado ao Curso de Eletromecânica do IFMA/Campus Pedreiras.
E-mail: hiza.leal@acad.ifma.edu.br
2 Orientadora PIBIC ENSINO MÉDIO 2019/2020 - EDITAL PRPGI nº 04/2019. Mestra em História

Social, Professora EBTT de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do


Maranhão. Coordenadora do NEABI – IFMA/campus Pedreiras e do LEGIP- Laboratório de Estudos
em Gênero do IFMA campus Pedreiras. E-mail: nila.santos@ifma.edu.br

77
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Metodologia

O estudo se estabeleceu em uma pesquisa tanto bibliográfica quanto


exploratória e documental, no NEABI do campus Pedreiras. Como dito na
introdução, realizamos uma análise documental dos textos tanto verbais quanto não
verbais, como as capas, as fotos nas colunas de moda, os editoriais e até as
receitas das edições de 1995 até os anos 2000 da Revista Atrevida. Estes textos
foram importantes para a análise de quais discursos são reforçados e para a análise
de quais corpos aparecem e, consequentemente, quais são invisibilizados. A maioria
das revistas foi lida, mas somente dez foram analisadas em relação a revisão de
conteúdo, e estas foram escolhidas aleatoriamente.
Também foi lido o relatório parcial do trabalho: Atrevida! As
representações de Gênero na revista adolescente do final do Século XX de
Silvana Maranhão Lucas. Este foi o trabalho que deu início a esta pesquisa e nos
serviu como base. Também realizamos um estudo bibliográfico de autoras como
Bell Hooks, Elizabeth Grosz e Joan Scott, que trazem um direcionamento sobre
raça, classe e gênero para a pesquisa, que são temas que estão ligados à
problematização dos discursos das revistas.
Foram estudados artigos das mais diversas áreas como comunicação e
enfermagem para entender como a linguagem é construída para persuadir e
sustentar os diversos discursos relacionados a poder, principalmente em relação ao
capitalismo, e o efeito desses padrões na saúde de mulheres contemporâneas, de
Helaine Dias de Araújo Oliveira com sua tese de mestrado em Comunicação e
Semiótica e Márcia Rebeca Rocha de Souza, Jeane Freitas de Oliveira, Enilda
Rosendo do Nascimento e Evanilda Souza de Santana Carvalho com sua tese
em Enfermagem.
Também foram estudados trabalhos brasileiros de Márcia Tiburi e Djamila
Ribeiro, que trazem as mais diversas questões de gêneros, que explicam desde a
construção destas opressões, como elas atuam e como existe a exclusão de
mulheres negras no próprio movimento feminista, explicando também como os
padrões de beleza são limitantes e prejudiciais às mulheres e reforçam sempre a
importância do diálogo e do estudo sobre gênero.
Foi analisado o texto de Jordão Farias que deu um direcionamento sobre a
importância da representatividade negra na mídia e como ela está relacionada ao
sentimento de pertencimento a um grupo. Produzimos também um formulário para
identificar os principais meios de comunicação sobre estética e beleza utilizados por
Meninas adolescentes atualmente, eles foram respondidos por 110 adolescentes de
diversas escolas, inclusive dos institutos federais,
A partir das respostas tiramos diversas informações importantes para a
pesquisa, como elas costumam buscar conteúdo sobre estética e quais plataformas
as entrevistadas mais usam, conseguimos produzir gráficos com as páginas/perfis
que produzem conteúdo na área de beleza e estética mais citados pelas
entrevistadas e, por fim, analisamos os cinco perfis/páginas mais citados e
comparamos seus discursos com os das revistas.
Também foram feitas as participações nos mais diversos eventos do NEABI
nos quais sempre que participamos, reforçamos a importância do estudo sobre

78
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

gênero e de como os meios de comunicação podem reforçar as mais diversas


opressões.

Análise da documentação

De modo geral, a revista por ter como público-alvo meninas adolescentes e


adaptar a sua linguagem para algo que estaria próximo da realidade delas, se
utilizando de expressões, gírias, e também criando táticas para se aproximar da
leitora, como respondendo perguntas em quadros como Sabe tudo sobre sexo ou
Sabe tudo sobre tudo, a revista consegue ser mais convincente para a leitora,
construindo uma ideia de que seria a “melhor amiga” desta.
Contudo, essa relação se torna passível de crítica levando em consideração
que a revista além de carregar um apelo comercial, reproduz diversos discursos
problemáticos, que eram reflexos da época, assim normalizando esses discursos
para as leitoras. Márcia Tiburi afirma em seu livro que o porquê de esses discursos
serem tão normalizados “Talvez seja realmente difícil compreender a dominação
masculina, porque estamos mergulhados nela. A própria ideia de compreensão é
controlada pelo sistema patriarcal” (TIBURI; 2018, p.70).
Levando em consideração a análise da revista, observamos que em seus
textos não verbais existe um padrão de quais meninas podiam a aparecer e quais
não, onde são invisibilizados corpos não brancos e não magros. A análise abarcou
também os textos verbais que retratavam assuntos relacionados em sua maioria à
beleza, moda e comportamento, ou seja, na análise do todo é perceptível que o
discurso exclui a maior parte da população brasileira de seus aspectos colocados
como ideais.
Sobre o padrão das modelos que eram escolhidas para fazer parte das fotos
quase nenhuma possuía um corpo que fosse diferente de branco e magro, a não ser
quando a revista retratava uma temática específica, como na edição de janeiro de
1997 na qual a revista trouxe uma reportagem sobre moda denominada “O vestido
certo para o seu tipo de corpo”, com dicas para as meninas consideradas
“cheinhas”, em que aparecia uma menina não magra em comparação às outras
modelos da mesma manchete, mas mesmo assim ainda aceitável, ou seja, não
muito “cheinha”, aliás, a revista usa esta palavra como forma de amenizar a palavra
gorda, passando uma ideia de que esta seria ofensiva, ou seja, que ser gorda não é
algo normal.

Figura 01: Capa e manchete


Fonte: Atrevida, janeiro de 1997

79
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Quando é observado a questão de raça, modelos negras são totalmente


invisibilizadas, exceto quando são celebridades, como Michael Jackson e Taís
Araújo. Inclusive, elas são totalmente invisíveis nas capas das revistas, exceto em
uma única edição, em março de 1999, na qual a modelo tinha ganhado um sorteio
para aparecer ali junto com outras 11 meninas, maioria branca.
Em reportagens e colunas de moda quase não aparecem modelos negras,
com exceção de algumas reportagens específicas em que aparecem como
figurantes, como na reportagem sobre moda chamada de “Salve Salvador!”, na
edição de novembro de 1996, em que há uma modelo negra que atende uma
modelo branca vestida de baiana. Então, quando meninas negras são representadas
elas estão sendo figurantes em espaços específicos, fazendo algo para as outras
modelos (brancas) e não apresentando as roupas, ou, no caso da capa, quando a
revista não tem controle sobre a escolha da modelo.

Figura 02: Capa de março de 1999 e Foto da manchete: Salve Salvador!


Fonte: Atrevida, edição de novembro de 1996
A revista muitas vezes traz modos de como chegar a um certo ideal de
beleza, seja pela forma de dicas, nas quais a revista sempre direciona as meninas a
fazerem usos de produtos e serviços específicos, além das diversas recomendações
de dietas milagrosas. Isso é tão frequente na revista que até quando a revista traz
alguma receita, nela está atrelada os números de calorias do lado como alerta para
as meninas não exagerarem e acabarem engordando, um discurso que está sempre
mais atrelado a manutenção da aparência do que da preocupação com a saúde das
leitoras, assim tornando o discurso de não aceitação do próprio corpo cada vez mais
natural.
Em seu conteúdo, a revista se utiliza de diversas manchetes que tratam de
temas como: beleza, moda, saúde, comportamento etc. Na capa, existem as
chamadas para as principais manchetes, estas sempre são voltadas para chamar
atenção de algum garoto ou então para poder manter um relacionamento, sendo a
maioria relacionada ao agrado do sexo masculino.
Outra questão que é analisada na revista é a relação entre dois quadros
sobre opiniões, o “Palavra de Menino”, no qual diversos meninos dão opiniões, a
maioria sobre o comportamento e imagem das garotas, e o “Pensando Alto”, em que

80
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

é dada uma pauta que pode ser considerada polêmica, porque abordam assuntos
como política, educação, sociedade etc., e nela era pedida a opinião das leitoras por
cartas, as duas opiniões opostas mais bem argumentadas eram publicadas.
No entanto, o “Palavra de Menino” sempre tinha mais destaque em relação
ao “Pensando Alto”, que era sempre colocado no fim da revista, enquanto o outro
levava destaque até nas chamadas da capa. Fazendo com que a opinião dos
meninos sobre como as meninas deviam ser levadas em destaque em detrimento
das opiniões das meninas sobre o mundo em volta delas, assim a revista deixava
claro quais opiniões as meninas deviam dar mais importância.

Figura 03: Título do quadro “Palavra de menino” e título do quadro “Pensando Alto”
Fonte: Atrevida
De modo geral, a revista traz uma imagem irreal e estereotipada de como a
menina deveria ser e sustenta uma ideia de que ela deve se adequar àquilo para
poder ser aceita, ou seja, que é responsabilidade dela se manter naquele ideal, com
uma promessa falha de conquista da felicidade, resumindo completamente a
existência delas a sua aparência ou a quem elas se relacionam, a fim de manter
uma indústria que vive dessas “dicas para melhorar seu visual”, alimentando a ideia
de que elas devem se adaptar aquilo para serem aceitas.
No trabalho, “Droga de Corpo! Imagens e Representações do corpo feminino
em revistas brasileiras”, as autoras explicam essa ideia:

Se, historicamente, as mulheres preocupavam-se com sua


beleza, atualmente ser/estar bela é responsabilidade da mulher imposta
pela sociedade. A busca por padrões estéticos deixou de ser um dever
social que pode ser conseguido ou não, e passou a ser um dever moral,
para o qual a mulher deverá se esforçar o suficiente para conquistar
(SOUZA; OLIVEIRA; NASCIMENTO; CARVALHO,2013, p.13).

Com o término da análise das revistas, produzimos um formulário para


identificar os principais meios de comunicação sobre estética e beleza utilizados por
meninas adolescentes atualmente, eles foram respondidos por 110 adolescentes de
diversas escolas, inclusive institutos federais. Dele produzimos a seguinte tabela
com os principais Perfis/páginas mais citados pelas entrevistadas, os quais usamos
como base para fazer a análise.

81
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Dentre as páginas mais citadas, a maioria é de mulheres brancas e magras,


porém nelas já é mostrada mais diversidade do que na revista. Já temos a presença
de mulheres negras, mesmo com a pele clara, principalmente apresentando
conteúdos como tratamentos para cabelos cacheados e crespos e estilo de vida,
como Ana Lídia Lopes e Nataly Neri, mulheres gordas ou fora do ideal magro,
como a Caroline Martins e Alexandra Gurgel.
Tabela 01: Perfis/páginas citadas pelas entrevistadas

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos Formulários respondidos por meninas adolescentes de
diversas escolas, inclusive dos institutos federais.

Abaixo temos imagens dos perfis e das produtoras de conteúdo citadas.

Figura 1: Perfil de Ana Lídia Lopes


Fonte: Rede social Instagram

82
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Figura 2: Perfil de Carol Martins


Fonte: Rede social Instagram

Figura 3: Perfil Alexandra Gurgel (Xanda)


Fonte: Rede social Instagram

Figura 4: Perfil Natály Neri


Fonte: Rede social Instagram

83
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Considerações finais

O presente estudo buscou comparar os padrões e estereótipos que eram


apresentados para meninas adolescentes durante o final do século XX pelos meios
de comunicação como os que foram apresentados durante um pouco mais de uma
década e meia do século XXI. Nos textos da revista, é observado que esse meio
reforçou diversas expectativas sobre um público que por passar por uma fase de
vulnerabilidade como a adolescência, provavelmente, se tornou mais propenso a
normalizar esse discurso, essa preocupação está muito presente hoje, pois como
meninas adolescentes são um público consumidor muito forte, ainda existem
diversos conteúdos voltados para ele, que se durante os anos 90 estavam dentro da
Revista Atrevida, agora está presente nas redes sociais, como o Instagram.
No entanto, apesar de neste segundo cenário analisado ser observado uma
maior diversidade, acredito que esse padrão só se adequou ao público que agora
consome as redes sociais, pois estes espaços buscam se adequar aos seus
consumidores e agora é visto uma necessidade de mais diversidade, mas esta está
pouco presente, pois ainda é vista em espaços muito limitados, mesmo já tendo uma
certa independência e protagonismo que não é visto na revista, seja devido às
políticas públicas e à necessidade de representatividade que é mais discutida e
necessária, principalmente dentro deste espaço, a internet, onde essas discussões
estão cada dia mais difundidas.

Referências

FARIAS, Jordão. A (falta de) Representatividade negra: usos, sentidos e efeitos


na sociedade brasileira. Jun. 12, 2018. Disponível em:
https://medium.com/@fariasjordao/a-falta-de-representatividade-negra-usos-
sentidos-e-efeitos-na-sociedade-brasileira-16f89770927
GROSZ, Elizabeth. “Corpos reconfigurados”. Pagu (14), 2000, pp. 45-86
HOOKS, Bell. “Ensinando a transgredir”. WMF, 1994, pp. 193-210
OLIVEIRA, Helaine Dias de Araújo. Ser adolescente: construções identitárias em
revista. Orientador: Dr. José Luiz Aidar Prado. 2010. 115 f. Dissertação (Mestrado
em Comunicação e Semiótica) - Pontifícia Universidade Católica De São Paulo, São
Paulo, 2010.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? 1°ed. São
Paulo.Companhia das Letras. 2018
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: Gender and the
Politics of History. New York: Columbia University Press, 1989. Tradução: Cristine
Ruffino Dabat e Maria Betânia Ávila. SOS CORPO. 3.ed. Recife, 1996. Disponível
em: http://www.observem.com/upload/935db796164ce35091c80e10df659a66.pdf
SOUZA, Márcia Rebeca Rocha de; OLIVEIRA, Jeane Freitas de; NASCIMENTO,
Enilda Rosendo do; CARVALHO, Evanilda Souza de Santana; Droga de Corpo!
Imagens e representações do corpo feminino em revistas brasileiras. Rev
Gaúcha Enferm. 2013;34(2):62-69.
TIBURI, Márcia Angelita. Feminismo, para todas, todes e todos. 7°ed. Rio de
Janeiro. Rosa dos Tempos. 2018.

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

MACHISMO E SEXISMO EM PROPAGANDAS PUBLICITÁRIAS

Samyra Kelly Ribeiro Arruda1


Nila Michele Bastos santos2

Introdução

As propagandas publicitárias são um importante veículo para a


disseminação não apenas de produtos, mas também de ideias, elas promovem
mudanças de pensamento além de mudanças nos hábitos de consumo do
consumidor. Assim, a publicidade passou a interferir nos aspectos psicológicos,
antropológicos e sociológicos de uma sociedade a fim de seduzir, encantar, provocar
desejos, mostrar o novo e provar o quanto ele é bom.
Ao logo desse estudo, observamos como a propaganda publicitária, para
convencer e conquistar a atenção do público, se utiliza de diversos meios e
estratégias que sobrepassam a mera exaltação do produto. É possível identificar
alguns desses métodos nas propagandas de cerveja, as quais associam seus
produtos à uma exagerada exposição do corpo feminino e exaltação da sexualidade
para alcançar o consumidor, e especialmente o consumidor masculino.
Para este artigo foram analisadas 30 propagandas publicitárias que se
dividiram entre produtos de limpezas e bebidas alcoólicas, especificamente cervejas,
nas quais constatou-se como as mulheres foram apresentadas como objetos
sexuais para o público-alvo majoritariamente masculino. Muitas dessas propagandas
incitam violências (simbólicas ou não) contra mulheres, mas são vistas com
normalidade aos olhos da sociedade.
As imagens femininas, vinculadas aos produtos de higiene doméstica
também apresentaram um forte estereótipo atribuído às mulheres, pois essas
propagandas apresentam ideias e imagens do que é ser Mulher: a dona de casa
“prendada”, mãe de família, que deve institivamente saber cuidar da limpeza,
cozinhar bem e cuidar dos filhos.
Essas representações postas pela publicidade refletem o contexto
sociocultural e histórico da época em que são lançadas, logo ao analisarmos como
os corpos femininos são retratados nas peças publicitárias, percebemos um discurso
machista, carregado de estereótipos de gênero, objetificação da mulher - por meio
da erotização de seu corpo - e submissão ao sexo masculino, em uma tentativa de
aproximar produto e público alvo.

1 Bolsista PIBIC Ensino Médio 2019/2020 - Edital PRPGI Nº 04/2019 - Estudante do Curso de
Eletromecânica Integrado ao Ensino Médio do IFMA- Campus Pedreiras. E-mail:
kelly.ribeiro@acad.ifma.edu.br
2 Orientadora PIBIC ENSINO MÉDIO 2019/2020 - EDITAL PRPGI nº 04/2019. Mestra em História

Social, Professora EBTT de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do


Maranhão. Coordenadora do NEABI – IFMA/campus Pedreiras e do LEGIP- Laboratório de Estudos
em Gênero do IFMA campus Pedreiras. E-mail: nila.santos@ifma.edu.br

85
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Metodologia

A análise se constitui de uma pesquisa bibliográfica, na qual foram


analisados vários referenciais teóricos que tratam de Machismo, Patriarcalismo,
Publicidade e Propagandas. Iniciamos, realizando uma busca nos repositórios
acadêmicos on-line, paralelo à leitura e resenha dos diversos artigos já previamente
escolhidos pela orientadora Nila Michele.
A pesquisa on-line também nos possibilitou separar diversas propagandas
nas quais as mulheres eram simbolicamente associadas aos produtos que se
anunciava. Destaca-se aqui as peças publicitárias da Cerveja Itaipava, as quais
associaram a estação do ano "verão" e uma mulher com pouquíssima roupa e corpo
“perfeito” à sua cerveja, e as peças da Cerveja Devassa, rodeadas de polêmicas
relacionadas a hipersexualização ao ponto de ter sua primeira campanha publicitária
removida pelo Conar (o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária).

Resultados e discussão

Como alguns dos resultados, tivemos a produção de textos e a


apresentação do projeto em eventos nacionais, estaduais e eventos próprios do
Campus Pedreiras, de modo que os discentes e outros integrantes da comunidade
em geral que presenciaram as apresentações puderam perceber a violência
simbólica e estereotipação excessiva para com as mulheres que determinadas
publicidades perpetuaram e ainda perpetuam, foi também incentivado que eles
ampliassem e treinassem seus olhares críticos sobre esse tipo de mídia a fim de
combater o preconceito e desigualdade entre os gêneros.
Ao começar essa discussão, é plausível reforçar que o Brasil, uma de
sociedade capitalista e consumista, abre portas diariamente para a criação e
divulgação de diversos produtos, seja em baixa ou alta escala, por grandes ou
pequenas empresas. Destes diversos produtos, escolhemos, para serem os objetos
de estudo do projeto, as propagandas de bebidas alcoólicas, mais especificamente
cervejas e chopes, além das de produtos de limpeza e higiene, ambos bastante
presentes na vida cotidiana do brasileiro. Outra semelhança é a presença constante
da figura feminina nas propagandas dessas duas seções distintas do mercado,
embora sua presença ocorra de maneira diferente, e com objetivos distintos, nas
duas partes.
De acordo com a Pesquisa Industrial Anual de Produto, realizada pelo IBGE
em 2017, cervejas e chopes foram o 13° produto mais vendido em todo o Brasil,
chegando a vender um valor acumulado de mais de 25 bilhões de reais. Com esses
números, não causa estranheza que o investimento em propagandas seja
equivalente ao nível de consumo. Na TV, jornais, revistas, e atualmente nas redes
sociais, não é difícil encontrar propagandas de uma marca ou outra de cerveja.
Nelas, a imagem da mulher é continuamente exposta de maneira erótica
e/ou sensual, apelando para o público masculino de maneira exagerada e
desnecessária, partindo da falácia de que o homem consome mais cerveja do que
as mulheres (ideia já desmentida pela CervBrasil, a Associação Brasileira da

86
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Indústria da Cerveja). Por conta disso, é comum ver imagens como as seguintes
quando o assunto é propaganda de cerveja:

Fig. 1: Propaganda da Cerveja Glacial. Fig. 2: Propaganda da Cerveja Antarctica

Fonte: speedbeer.blogspot.com Fonte: portfólio do site Lets Vamos

As duas propagandas, a primeira de ano desconhecido e a segunda de


2015, contém vários elementos semelhantes: praias como paisagem de fundo, a
modelo apenas de biquíni nas cores da marca que representa, ambos os corpos
magros e definidos com curvas acentuadas, a cerveja em segundo plano quando
comparada com a figura da mulher, ao ponto de fazer o consumidor se perguntar
"Afinal, estão anunciando cerveja ou mulheres?".
De acordo com a pesquisadora da Universidade de Brasília, Berenice
Bento: “Não há sutileza, as mulheres estão ali para serem consumidas. Os anúncios
revelam que a mulher é algo para servir ao homem e mostram como estamos longe
de uma sociedade com igualdade de gêneros”.
Nas propagandas de cerveja, o público-alvo é claramente o público
masculino, e as mulheres são utilizadas como mais um objeto de desejo do homem,
associadas ao produto em busca de uma consequente associação entre o desejo do
homem pela mulher com o desejo dele pela cerveja.
Já nos anúncios de produtos de limpeza e higiene, a situação é diferente,
ainda que o foco das propagandas continue o mesmo: as mulheres.

87
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Fig. 3: Propaganda Sabão OMO Fig. 4: Propaganda Sabão/Amaciante


Brilhante

Fonte: www.propagandashistoricas.com.br Fonte: www.propagandashistoricas.com.br

Nessas imagens, o público-alvo mudou, e o objetivo agora é chamar a


atenção do público feminino. Em ambas as propagandas temos mulheres de
aparência mais "elegante", bem-vestidas, sem o apelo à sensualidade que é tão
comum nas propagandas de cerveja. Também diferente das bebidas, a
desconstrução nos anúncios de produtos de limpeza começou bem mais cedo, e nos
dias de hoje é relativamente normal encontrar propagandas com modelos
masculinos ou que apenas apresentam os produtos sendo utilizados por toda a
família.
É também possível perceber menos propagandas de cerveja onde o corpo
da mulher é exacerbadamente sexualizado, e isso se deve tanto às leis que proíbem
tal ato, quanto à nossa atual realidade. Com mais informações e fácil acesso aos
meios necessários, o consumidor pode denunciar qualquer propaganda que ache
ofensiva diretamente para o Conar), como foi feito com a campanha "Esqueci o Não
em casa", da Ambev. A campanha foi denunciada por mais de 50 pessoas e
criticada de forma intensa nas redes sociais, causando sua retirada das ruas.
Há também casos em que a própria marca mudou suas táticas de
propagandas com o tempo, como foi o caso da Cerveja Antarctica:
Fig. 5; Fig. 6; Fig. 7: Propagandas da Cerveja Antarctica.

Fonte: https://mundodasmarcas.blogspot.com/

As 3 figuras são propagandas da marca de cerveja “Antarctica” que


circularam no início dos anos 2000, quando a marca tinha como principal modelo a
atriz Juliana Paes, que, como garota propaganda, interpretava “a Boa”. Dona do Bar

88
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

da Boa, estava sempre com roupas extremamente curtas e blusas apertadas a


extremo, buscando trazer o foco do consumidor para os seios da atriz, às vezes, até
mais do que para a própria cerveja.
Atualmente, a marca investe bem mais no quesito social através de
iniciativas como “Coisa Boa Gera Coisa Boa”, minisséries como “Quase Numa Boa”
e até mesmo reality shows como o “Academia De Boa”, maneiras originais de
promover sua marca sem apelar para a sexualização antes tão presentes em suas
propagandas.

Fig. 8; Fig. 9; Capturas de Tela de vídeos e playlists do “Canal da Boa”

Fonte: Canal Antarctica BOA. Youtube.com

Considerações finais

Concluindo, vimos como as propagandas contribuem para a formação de


duas identidades femininas “ideais” para dois diferentes grupos de consumo. Nas
propagandas de produtos de limpeza, direcionadas principalmente às mulheres, é
comum a utilização de mulheres bem-vestidas, recatadas, o uso de ambientes como
a casa própria ou as alas de limpeza de mercados também são marcantes, assim
como a presença da família (marido e filhos, quase sempre uma família branca
heteronormativa). Essa é a imagem de mulher que é repassada para as mulheres e
meninas brasileiras, de acordo com as propagandas de produtos de limpeza.
Já quando vemos as propagandas de cerveja, direcionadas ao público
masculino, o normal é a visão da mulher como objeto. Essas propagandas
comumente aparentam vender, junto às bebidas alcoólicas, o próprio corpo das
modelos que participam delas. Para o homem, a mulher é apresentada pelas
propagandas de cerveja como um objetivo sexual de corpo perfeito, muitas vezes
pronta para servi-lo uma cerveja gelada.
Ambas essas narrativas são extremamente problemáticas e nos permitem
refletir sobre o machismo e patriarcalismo presentes nas propagandas publicitárias
brasileiras como um todo.

89
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Referências

CARVALHO, Lorena C. A figura da mulher nas propagandas de produtos de


limpeza: uma análise discursiva do percurso identitário feminino. Revista Eletrônica
de Letras (Online), v.7 , n.7, edição 7, jan-dez 2014
DIAS, Fábio Barbosa. Loira gelada, loira gostosa: um estudo de representações
imagéticas femininas em peças publicitárias de cerveja. 2011. 100 páginas.
Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Estadual de Londrina,
Londrina. 2011.
QUERINO, Geni A. A presença e a erotização do corpo feminino nas
propagandas de cerveja no Brasil. Encontro Nacional de Pesquisa em
Comunicação e Imagem - ENCOI, nov 2014.

90
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

AFROFUTURISMO: ESTÉTICA, ANCESTRALIDADE E


PROTAGONISMO NEGRO

Nila Michele Bastos Santos1

Introdução

Movimento cultural, estético e social, assim é conhecido o Afrofuturismo, um


gênero artístico que resgata elementos da cultura africana mesclando-os com a
ficção científica, seu principal objetivo está em retratar o passado dos negros com a
possibilidade de um futuro com uma maior participação nas sociedades em que
estão inseridas. O movimento faz uma interrogação altamente pertinente sobre os
eventos históricos envolvendo os africanos e seus descendentes, lutando acima de
tudo no combate do racismo que ainda se encontra em todos os lugares do mundo.
A proposta apresentada por esse movimento é simples: pensar em um futuro em
que pessoas negras existem.
Desse modo, o movimento afrofuturista vai se colocar contra a imposição
cultural da beleza europeia e reconhecer a importância das estéticas negras e
valores dos movimentos de resistência, como os movimentos negros e movimentos
de feminismo negro. Em outras palavras o afrofuturismo chega como um mecanismo
que visa a representatividade do negro dentro do contexto sociocultural.
A representação, segundo Stuart Hall (2009), é uma forma de reivindicar a
diferença e o pertencimento dentro de um universo de identificações, mas se
concentrarmos nosso olhar nas populações negras brasileira o que observamos é
que durante muito tempo os afro-brasileiros tiveram sua representação negada, as
bonecas e bonecos postos para nossas crianças são brancos, os desenhos
animados e HQ’s são de heróis brancos, os protagonistas das novelas são brancos,
os filmes que chegam às nossas casas são de brancos, os cantores são brancos, os
âncoras dos jornais são brancos, enfim a mídia e a arte que nos cerca é
majoritariamente branca.
Desse modo, como se reconhecer em uma cultura cuja representatividade
não é vista? Como sentir-se orgulhoso de uma cultura da qual ninguém reconhece?
Como conhecer e propagar uma cultura se os espaços de comunicação são
negados?
O Afrofuturismo, que pretendemos estudar pode nos dá algumas respostas,
segundo Caroline Santos Lima,

Esse movimento é uma reação ao preconceito, ao racismo, á invisibilidade


negra no cinema (com aspectos positivos), arte, música, representação
televisiva. O afrofuturismo é uma das tentativas de renunciar à estas
negativas construídas historicamente e socialmente, dentro do contexto de

1Mestra em História Social, Professora EBTT de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Maranhão. Coordenadora do NEABI – IFMA/campus Pedreiras e do LEGIP-
Laboratório de Estudos em Gênero do IFMA campus Pedreiras. E-mail: nila.santos@ifma.edu.br

91
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

escravidão, exploração, negação do espaço ocupado anteriormente por


apenas brancos. (Lima, 2016. p. 3)

Tal debate não pode ser negado à educação básica, é preciso investigar as
permanências e rupturas do racismo estrutural, desconstruir representações de
inferioridade Negra e denunciar preconceitos historicamente construídos que se
perpetuam como violências simbólicas em nossa sociedade.
Ora, apenas, em 2003, a cultura e a história afro-brasileiras tornaram-se
componente obrigatório na educação básica, contudo a predominância de uma
educação branca e europeizante contribuiu para que as imagens das populações
negras não possuíssem representatividades benéficas.
Negros e negras, no Brasil, são comumente associados à escravidão e
ainda que esse sistema tenha sido marcante na história dessas populações, ele foi
autoritariamente imposto e de maneira nenhuma representa o todo desses
indivíduos. É, portanto, necessário criar mecanismos em que crianças e jovens
negros e negras se percebam na sociedade como sujeitos únicos, belos e capazes
de fazer suas próprias escolhas, livres de estereótipos de inferioridade e ineptidão.
Para isso, a representatividade importa!
É fundamental que a criança se veja em posições de destaque, como
médica, como engenheira. A criança tem que perceber que ela pode ser o que ela
quiser (BENTO apud BUZATTI: 2016, p. 03). Temos que tirar o negro dessas
posições estereotipadas, do serviçal, da empregada doméstica, de personagens
hipersexualizados e o Afrofuturismo nos permite isso.

Da ancestralidade nasce um futuro negro

Não somente a educação básica deve sofrer transformações, a mídia é outro


veículo que sustenta e produz o racismo estrutural em nossa sociedade, ela
diariamente produz e veicula um discurso que naturaliza a superioridade branca e
aprova o mito da democracia racial.
A falta de representatividade nesses espaços prejudica a própria formação
da identidade dos sujeitos negros, que expostos a essas situações de discriminação
sofrem múltiplos efeitos de dor como angústia, inferioridade, insegurança
autocensura, rigidez, alienação e negação da própria natureza. O pior é perceber
que mesmo sendo obrigado a passar por tudo isso a sociedade racista ainda culpa o
negro por não se reconhecer enquanto negro e assim se “auto discriminar”.
Daí a importância em prover estudos que investiguem esse processo social
de inferiorização da população negra e abrir espaços de representatividades
benéficas para esses indivíduos. Ao estudarmos o movimento Afrofuturismo – que
em seu objetivo maior está a valorização da identidade negra – divulgando-o como
uma importante arma contra o racismo, estamos contribuindo para desconstruir o
fetiche introjetado de uma história única: branca, europeia, capitalista, judaico-cristã
e preconceituosa.
Dessa forma, projetos educacionais ligados ao Afrofuturismo se justificam
por se enquadrar dentro das ações de políticas afirmativas para o combate ao
racismo e ao preconceito, uma vez que por essa concepção empreende-se esforços

92
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

para empoderar o povo negro com cabedal intelectual que contestem a visão de
inferioridade e subserviência que historicamente foi construído sobre ele.
A história do povo negro no Brasil é uma história repleta de discriminação,
lutas, resistências e invisibilidades. Ela é constantemente associada à escravatura,
de forma que negro e escravo são vistos como sinônimos. De fato, não podemos
negar que inúmeras comunidades negras africanas foram cruelmente escravizadas
durante séculos, contudo essa foi uma condição que lhes foi imposta por um
colonizador europeu, determinada pelos contextos histórico-sociais em que foram
inseridos e não por determinações naturais, ou divinas. Ou seja, a escravidão não
faz parte da natureza afrodescendente, muito menos dá conta da diversidade de sua
cultura.
Portanto, se compreendemos que a cultura é dinâmica e que verdades
cristalizadas não conseguem explicar a complexidade das experiências humanas
poderemos repensar essa agregação do negro afrodescendente, tão-somente à
escravidão. Defini-los apenas como “mercadorias humanas” de um sistema
econômico reforçam uma concepção de imutabilidade e determinam identidades
fixas que impedem as visualizações de relações para além das coercitivas. Essas
noções tornam-se extremamente perigosas, pois reduzem os processos históricos e
contribuem para manutenção de preconceitos.
Essa cristalização da questão da identidade vem sendo palco de intensos
debates, nas ciências humanas. De um lado temos as “velhas identidades”, que por
tanto tempo estabilizaram o mundo social e definiram os papéis de pertencimento
ligado às culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, principalmente, aos
nacionalismos culturais (GILROY: 2001) - nessa visão o indivíduo é visto como um
sujeito unificado e fechado em si. Na outra ponta da discussão, temos uma
identidade fragmentada composta não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias e até não resolvida. Nessa perspectiva, Stuart Hall
(2006, p. 12-13) reflete:

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes


direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o
nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória
sobre nós mesmos ou uma confortadora 'narrativa do eu'. A identidade
plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés
disso, à medida em que os sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam, somos confrontados por multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, em cada uma das
quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente (grifo nosso).

Entretanto, apesar de avanços nas discussões acadêmicas, o que ainda


vemos no cotidiano das relações étnicas raciais brasileiras é a presença das “velhas
identidades”, que fundamentam estereótipos e crenças nas quais perpetuam um
pensamento limitado de inferioridade africana e contribuem para a construção de um
padrão de comportamento social que visa censurar os traços culturais oriundos dos
africanos. Segundo a autora Ama Mazama (2009, p. 112),

93
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

A Europa forjou grande parte de sua identidade moderna à custa dos


africanos, particularmente por meio da construção da imagem do europeu
como mais civilizado e do africano como seu espelho negativo, isto é, como
primitivo, supersticioso, incivilizado, a histórico e assim por diante.

Essa visão, racista e preconceituosa, tem o intuito de dificultar o diálogo


entre grupos sociais que fazem parte da sociedade brasileira, e assim, fixar os
estereótipos que propagam uma essência falsa, maldosa, inferior que acaba não
reconhecendo as diferenças. Na contramão dessa visão distorcida – infelizmente tão
presente nos dias atuais – é que alguns movimentos (em sua maioria negra) lutam
para desmistificar e quebrar essas ideologias, propositalmente criadas por povos de
culturas diferentes que buscaram estabelecer os seus elementos e traços culturais
como ponto central de tudo.
Trata-se de estratégias para garantia de poder, nas quais os indivíduos ou
grupos que se diferenciaram por serem ou pregarem o oposto do que é
estabelecido, são julgados como inferiores, inaptos ou anormais, tendo como
consequência a marginalização, a perseguição e em alguns casos até a privação da
liberdade de expressar sua própria cultura.
Segundo Frans Fanon (2008, p. 177), “A civilização branca, a cultura
europeia, impuseram ao negro um desvio existencial” uma vez que suas
comunidades foram historicamente desumanizadas, assim a pouca, ou mesmo a
falta, de representatividade negra nos espaços sociais permitem que pessoas
negras, na ânsia de combater os estereótipos degradantes e diminuir o preconceito,
tentam se aproximar das imagens de pessoas não negras, negando seus próprios
traços, cultura e identidade.
O advento da TV, no Brasil, contribuiu mais ainda para normalizar essas
práticas de negação e aumentar as desigualdades raciais no país, pois assim como
em outras áreas a oportunidades para os negros na TV sempre foram poucas e
mesmo quando apareciam os atores e atrizes eram tratados de forma inferior e
estereotipadas. De acordo com a pesquisa promovida por Joel Zito (2002), que
analisou cerca de 70% das telenovelas brasileiras, os atores negros não passavam
de 10% em comparação aos brancos. Ora, a indústria cultural de massa nasce
centrada na ideologia do branqueamento, nos ideais estéticos brancos, nos valores
europeus.

Desde crianças enxergamos o negro de forma inferiorizada. Nos livros


didáticos ou nas histórias em quadrinhos, o negro sempre está em “seu
lugar”, o segundo plano em relação ao branco. E nos desenhos animados é
difícil até para achá-los, pois os negros estando sempre associados ao que
é ruim, certamente não povoam histórias de fantasias infantis (ARAÚJO,
2003, p. 45).

O movimento do Afrofuturismo vem, justamente para combater esse


preconceito historicamente enraizado, promovendo imagens benéficas de negros e
negras trazendo assim as marcas simbólicas de representatividade tão importante
na construção das identidades plurais.
Não há bem como precisar o exato momento do surgimento do movimento,
mas por volta da década de 1960 Sun Ra, compositor norte-americano, começa a

94
CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

abordar em suas composições conceitos afrocêntricos associando elementos do


passado da cultura africana com espaço e futuro,

o poeta e compositor de jazz Sun Rá, após vivenciar uma experiência


extraterrestre, incluiu em suas composições elementos que remetiam ao
espaço, futuro e ao mesmo tempo à ancestralidade africana. Artistas como
a Octavia Butler, Ytasha Womack, Basquiat e Spike Lee também fizeram
produções no mesmo sentido (BRASIL, 2015).

Contudo é somente no ano de 1994 que o afrofuturismo se tornou


firmemente um movimento cultural, isso por conta do escritor e cineasta americano
Mark Dery, que apresentou um ensaio chamado “Black To The Future: ficção
científica e cybercultura do século XX a serviço de uma apropriação imaginária da
experiência e da identidade negra,”, nele o escritor criticou a falta dos personagens
afro-americanos nas produções de ficção científica tendo em vista que esta
literatura, em diversas ocasiões expõe sobre temas como preconceito,
discriminação, injustiças, entre outras várias situações que são comumente
vivenciadas pelos negros.

por que há tão poucos escritores afro-americanos que escrevem ficção


científica, um gênero que trabalha justamente o encontro com o outro – o
estranho numa terra estranha – algo que parece singularmente interessante
para tratar de questões próprias dos escritores afro-americanos? (DERY,
1995, p. 179, apud RANGEL, p. 130).

Mark Dery denominou a ficção científica de produção de autores negros


como afrofuturismo, uma ficção especulativa, cujos atores e atrizes negros possuem
o protagonismo e suas histórias não apresentam lógicas eurocêntricas. Ele é,

Tanto uma estética artística quanto uma estrutura para uma teoria crítica, o
afrofuturismo combina elementos da ficção científica, ficção histórica, ficção
especulativa, fantasia, afrocenticidade e realismo mágico com crenças não
ocidentais. Em alguns casos, é uma de elaboração total do passado e uma
especulação sobre o futuro carregado de críticas culturais (WOMACK, 2013.
Apud DIAS e SOUZA, 2018, p. 300)

O sucesso da obra fortaleceu ideais para a construção do movimento,


fazendo com que mais pessoas aderissem ao estilo que se propagava através da
música, teatro, cinema, livros, moda e outras estéticas que visavam obter uma boa
visibilidade e levantar a ideia do empoderamento negro. A partir do ensaio, o
movimento obteve a voz e a imagem que ansiava. Com o crescimento e propagação
do movimento, muitas pessoas começaram a aderir ao estilo se identificando e
orgulhando-se pela oportunidade de participar e mostrar o poder que por muito
tempo lhes foi tirado e negado.
A rapidez das informações e a democratização da internet, devido a
crescente e ininterrupta globalização, associada ao aumento de estudos sobre a
importância da diversidade tornaram-se importantes armas na propagação e adesão
ao movimento. Dessa forma, as representatividades benéficas já começaram a
aparecer.

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Na indústria cinematográfica, por exemplo, podemos destacar o filme


“Pantera negra”, que além de apresentar a estética afrofuturista teve em seu elenco
e produção 95% de negros. Sua apresentação o tornou mais que um filme: É um
acontecimento.
Todo o filme é sobre uma sociedade altamente avançada composta de
pessoas negras, a história é protagonizada por atores e atrizes negros, além do
diretor também ser negro. Parece meio óbvio, mas vamos lembrar quantos heróis
negros já ocuparam a tela de um cinema? A cidade fictícia chamada Wakanda é
localizada na África, apontada como a região que mais sofre com as mazelas do
mundo, “Pantera Negra” afronta essa realidade colocando sua cidade carregada de
elementos ricos, futuristas e de avançadíssima tecnologia.
O filme é um grande marco na história do movimento afrofuturista, pois traz
a importância da existência de heróis negros na história da humanidade, ainda que
ficcionais. Trata-se de representatividade, que também está na construção do
imaginário; “imaginar futuros da ficção em que pessoas negras existem é uma
subversão. Parece besteira, mas não é. Elas têm menos perspectiva de presente, o
que leva a menos perspectiva de futuro’" (HONORATO, 2018).
O filme, que recebeu sete indicações ao Oscar incluindo melhor filme,
ganhou três: Melhor Direção de Arte, Melhor Trilha Sonora, Melhor Figurino.
“Pantera Negra” fez história, não apenas por possuir seu elenco negro, mas por
apresentar um movimento que mostra que podem sim existir heróis negros com
superpoderes e que estes são de suma importância para o empoderamento dos
descendentes de africanos ao redor do mundo, pois são os símbolos da
representação cultural, tão almejada.
É certo que o afrofuturismo, apesar de toda expressividade, ainda luta por
seus espaços uma vez que é através das representações artísticas que esse
movimento demonstra a sua resistência e suas batalhas contra os preconceitos já
enraizados por fatores históricos e sociais e as artes – pelo menos em nosso país -
ainda são colocadas em segundo plano nas políticas governamentais.
São por meio dos artistas, militantes, que o afrofuturismo cresce dia após
dia, é por meio das relações sociais, nas quais o conhecimento sobre esse
movimento é propagado, para aqueles que não o possuem.
No Brasil, o movimento é relativamente novo e academicamente ainda existe
poucas pesquisas na área, portanto, sua aplicação na educação básica pode
parecer complexa a priori, mas é perfeitamente possível, uma vez que sua
aplicabilidade na prática também gera mais pesquisas sobre essa estética. Ao
levantarmos debates atuais como os propostos pelo afrofuturismo, essa estética
cultural, filosófica, histórica e artística que combina elementos de ficção científica,
ficção histórica, fantasia, afrocentrismo e realismo mágico com cosmologias não-
ocidentais estaremos não apenas criticando os dilemas atuais dos negros, mas
também nos colocando contra todas as formas de preconceitos.

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

O afrofuturismo na educação: experiências no IFMA campus Pedreiras

No campus Pedreiras a introdução da temática afrofuturista se deu mediante


ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, os primeiros debates ocorreram
de forma oral com os membros discentes do núcleo e, posteriormente, em 2018, um
projeto artístico e cultural foi submetido ao edital de incentivo a cultura da
PROEN/IFMA, sendo contemplado com fomento para um bolsista do ensino médio
tecnológico.
O projeto intitulado, “Afrofuturismo e outras Diversidades” tinha por objetivo
divulgar a nova estética artística intitulada de afrofuturismo, e a influência queer,
como mais uma forma de resistência ao preconceito racial, de gênero, social e
sexual. O projeto contou com a produções de fotografias, cujo modelos foram alunos
e alunas negras do próprio Institutos, na estética afrofuturista, os resultados foram
expostos em exposições fotográficas na praça do Jardim da cidade de Pedreiras –
Ma e em eventos estaduais do NEABI e PROEN do IFMA.

Figura 01: Ensaio fotográfico afrofuturista


Fonte: Arquivo pessoal, foto de Pedro Alcântara (aluno IFMA campus Pedreiras)

Figura 02: Exposição no campus Pedreiras


Fonte: Arquivo pessoal, fotos de Pedro Alcântara (aluno IFMA campus Pedreiras)

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

A rápida aceitação dos alunos para a proposta artística levou ao


desenvolvimento de novos projetos de pesquisas e, em 2019, foi aprovado o projeto
“AFROFUTURISMO: estética, ancestralidade e protagonismo negro”, no edital PIBIC
ENSINO MÉDIO da PRPGI/ IFMA. A pesquisa visou compreender o surgimento do
movimento, sua expansão além de comparar as representações imagéticas postas
pelo movimento com as imagens do povo Negro, comumente divulgadas nos livros
didáticos da Educação básica. O projeto que contou incialmente com uma bolsista e
duas voluntárias, foi renovado novamente com fomento em 2020. Os resultados
parciais foram divulgados em eventos promovidos pelo NEABI/IFMA e, também, no
XII ENCONTRO REGIONAL DA ANPUH-MA.
De maneira mais ampla, a fim de alcançar um número maior de alunos, foi
promovido a IV SEMANA DA CONSCIÊNCIA NEGRA DO IFMA-PEDREIRAS com o
tema Representatividade, Ancestralidade e Afrofuturismo. O evento ocorreu de
forma virtual, devido à crise sanitária global de Covid-19, a fim de evitar
aglomerações e manter o isolamento social recomendado pela Organização Mundial
de Saúde. As palestras sobre a temática foram transmitidas no canal do YouTube do
NEABI, campus Pedreiras e contaram com pesquisadores da USP, UNB, UFMA e
IFMA, além dos alunos egressos, do campus Pedreiras, que relataram suas
experiências como jovens pesquisadores do NEABI.
Durante o evento, foi lançando I CONCURSO ARTÍSTICO CUTURAL DA
Semana da Consciência Negra do IFMA-Pedreiras.
O concurso, que seguiu a temática do evento de REPRESENTATIVIDADE,
ANCESTRALIDADE E AFROFUTURISMO, estabeleceu as categorias de:
1. Melhor Fotografia autoral com temática de AFROFUTURISMO.
2. Melhor Desenho autoral com temática de ANCESTRALIDADE.
3. Melhor Vídeo autoral com temática de REPRESENTATIVIDADE ou
RACISMO
Os resultados dos vencedores e menções honrosas foram anunciados em
live promovida no canal do Neabi-Pedreiras na plataforma on-line do YouTube.

Figura 03: Melhor Fotografia autoral com temática de AFROFUTURISMO


Fonte: Arquivo pessoal

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

Figura 05: Melhor Desenho autoral com temática de ANCESTRALIDADE


Fonte: Arquivo pessoal
A estratégia da ludicidade contribuiu para o debate das relações étnicas e
para a divulgação do movimento afrofuturista, de maneira acessível e clara.
Os esforços de professores e alunos que construíram e promoveram tais
atividades, em consonância com os ideais do Afrofuturismo, só demonstram que
ainda que complexo é possível sim promover uma educação libertadora e
antirracista com vista a promover uma sociedade baseada nos princípios da
igualdade, equidade, justiça social e alteridade.

Considerações finais

Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas – ONU, em seu objetivo


nº 10.2 estipula: “Até 2030, empoderar e promover a inclusão social, econômica e
política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia,
origem, religião, condição econômica ou outra” (ONUBR: 2015, on-line).
Evidentemente, sabemos que os objetivos da Agenda 2030 não podem ser
concretizados de maneira rápida e, justamente por isso, que cremos que projetos e
estudos como os desenvolvidos pelo NEABI, campus Pedreiras, ajudam a
disseminar as sementes que levarão isso a acontecer.
Ao trazermos o debate do afrofuturismo para a educação básica, estamos
ampliando os estudos sobre representatividade negra, produzimos textos e slides
didáticos, com fácil alcance popular de modo que os leitores puderam perceber as
violências simbólicas que ainda são divulgadas na mídia, percebendo desta forma
as permanências de preconceitos historicamente construídos e assim buscando
mecanismos que desconstruam e combatam os estereótipos de inferioridade e
marginalidade que tão largamente ainda são difundidos contra as populações
negras.
Apresentando e expandindo o universo da estética afrofuturista, podemos
mostrar possibilidades – que antes eram tolhidas pela sociedade racista antes
mesmo delas serem sonhadas. O afrofuturismo, enquanto movimento cultural,
filosófico, estético, social e político, cuja produção promove o encontro entre a
ancestralidade, mitologia e diáspora africana negra, vem desfazendo certos
pensamentos negativos em relação ao povo negro e afirmando que se o futuro é

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

negro ele é bom! Ele é excelente, pois ele estará pautado na alteridade, equidade e
justiça.

Referências

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CADERNO DE BOLSA: olhares sobre a diversidade

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