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Manifesto neoconcreto
A expressão neoconcreto marca uma tomada de
posição em face da arte não figurativa "geométri- O racionalismo rouba à arte toda a autonomia
ca" (neoplasticismo, construtivismo, suprematismo, e substitui as qualidades intransferíveis da obra
escola de Ulm) e particularmente em face da arte de arte por noções da objetividade científica:
concreta levada a uma perigosa exacerbação ra- assim os conceitos de forma, espaço, tempo,
cionalista. Trabalhando no campo da pintura, estrutura - que na linguagem das artes estão
gravura, escultura e poesia, os artistas que partici- ligados a uma significação existencial, emotiva,
pam desta I Exposição Neoconcreta encontraram- afetiva - são confundidos com a aplicação teó-
-se, por força de suas experiências, na contingên- rica que deles faz a ciência. Na verdade, em
cia de rever as posições teóricas adotadas até nome de preconceitos que hoje a filosofia de-
aqui em face da arte concreta, uma vez que nuncia (M. Merleau Ponty, E. Cassirer, S.
nenhum deles "compreende" satisfatoriamente as Langer) -e que ruem em todos os campos a
possibilidades expressivas abertas por essas expe- começar pela biologia moderna, que supera o
riências. Nascida com o cubismo, de uma reação mecanicismo pavloviano - os concretos-racio-
à dissolvência impressionista da linguagem pictó- nalistas ainda vêem o homem como uma má-
rica, era natural que essa arte se colocasse numa OS BICHOS. LYGIA CLARK quina entre máquinas e procuram limitar a arte
atitude diametralmente oposta às facilidades téc- à expressão dessa realidade teórica.
nicas e alusivas da pintura corrente. As novas con-
quistas da física e da mecânica, abrindo uma O mesmo se pode dizer de Vantongerloo ou de
perspectiva ampla para o pensamento objetivo, Pevsner. Não importa que equações matemáticas “O neoconcreto, nascido de uma
incentivariam, nos continuadores dessa revolução, estejam na raiz de uma escultura ou de um necessidade de exprimir, dentro da
a tendência à racionalização cada vez maior dos quadro de Vantongerloo, desde que só à experi- linguagem estrutural da nova
processos e dos propósitos da pintura. ência direta da percepção ela entrega a "significa-
Uma noção mecanista de construção invadiria a
plástica, a complexa realidade do
ção" de seus ritmos e de suas cores. Se Pevsner
linguagem dos pintores e dos escultores, gerando partiu ou não de figuras da geometria descritiva, é homem moderno, nega a validez das
por sua vez reações igualmente extremistas, de uma questão sem interesse em face do novo atitudes cientifícistas e positivistas
caráter retrógrado como o realismo mágico ou espaço que as suas esculturas fazem nascer e da em arte e repõe o problema
irracionalista como Dada e o surrealismo. Não expressão cósmico-orgânica que, através dele,
resta dúvida, entretanto, que, por trás de suas teo-
da expressão”
suas formas revelam. Terá interesse cultural espe-
rias que consagravam a objetividade da ciência e cífico determinar as aproximações entre os objetos
a precisão da mecânica, os verdadeiros artistas - artísticos e os instrumentos científicos, entre a
como é o caso, por exemplo, de Mondrian ou Pe- intuição do artista e o pensamento objetivo do
vsner - construíam sua obra e, no corpo a corpo físico e do engenheiro. Mas, do ponto de vista Não concebemos a obra de arte nem com
com a expressão, superaram, muitas vezes, os estético, a obra começa a interessar precisamente o uma "máquina" nem como um "objeto", mas
limites impostos pela teoria. pelo que nela há que transcende essas aproxima- como um "qüasi-corpus", isto é, um ser cuja
Mas a obra desses artistas tem sido até hoje inter- ções exteriores: pelo universo de significações realidade não se esgota nas relações exteriores
pretada na base dos princípios teóricos que essa existenciais que ela a um tempo funda e revela. de seus elementos; um ser que, decomponível
obra mesma negou. Propomos uma reinterpreta- Malevitch, por ter reconhecido o primado da "pura em partes pela análise, só se dá plenamente à
ção do neoplasticismo, do construtivismo e dos sensibilidade na arte", salvou as suas definições abordagem direta, fenomenológica. Acredita-
demais movimentos afins, na base de suas con- teóricas das limitações do racionalismo e do me- mos que a obra de arte supera o mecanismo
quistas de expressão e dando prevalência à obra canicismo, dando à sua pintura uma dimensão material sobre o qual ela repousa, não por
sobre a teoria. Se pretendermos entender a pintu- transcendente que lhe garante hoje uma notável alguma virtude extraterrena: supera por trans-
ra de Mondrian pelas suas teorias, seremos obri- atualidade. Mas Malevitch pagou caro a coragem cender essas relações mecânicas (que a Gestalt
gados a escolher entre as duas. Ou bem a profe- de se opor, simultaneamente, ao fígurativismo e à objetiva) e criar uma significação tácita (M.
cia de uma total integração da arte na vida coti- abstração mecanicista, tendo sido considerado até Ponty) que emerge nela pela primeira vez. Se
diana parece-nos possível e vemos na obra de hoje, por certos teóricos racionalistas, como um tivéssemos que buscar um símile para a obra
Mondrian os primeiros passos nesse sentido ou ingénuo que não tinha compreendido o verdadei- de arte, não o poderíamos encontrar, portanto,
essa integração nos parece cada vez mais remota ro sentido da no vá plástica... Na verdade, Male- nem na máquina nem no objeto mas, como S.
e a sua obra se nos mostra frustrada. Ou bem a vitch já exprimia, dentro da pintura "geométrica", Langer e W. Wleidlé, nos organismos vivos.
vertical e a horizontal são mesmo os ritmos funda- uma insatisfação, uma vontade de transcendência Essa comparação, entretanto, ainda não basta-
mentais do universo e a obra de Mondrian é uma do racional e do sensorial, que hoje se manifesta ria para expressar a realidade específica do
ilustração desse princípio universal ou o princípio de maneira irreprimível. organismo estético.
é falho e sua obra se revela fundada sobre uma O neoconcreto, nascido de uma necessidade de É porque a obra de arte não se limita a ocupar
ilusão. Mas a verdade é que a obra de Mondrian exprimir, dentro da linguagem estrutural da nova um lugar no espaço objetivo — mas o trans-
aí está, viva e fecunda, acima dessas contradições plástica, a complexa realidade do homem moder- cende ao fundar nele uma significação nova —
teóricas. De nada nos servirá ver em Mondrian o no, nega a validez das atitudes cientifícistas e po- que as noções objetivas de tempo, espaço,
destrutor da superfície, do plano e da linha, se sitivistas em arte e repõe o problema da expres- forma, cor, etc., não são suficientes para com-
não se atenta para o novo espaço que essa des- são, incorporando as novas dimensões "verbais" preender a obra de arte, para dar conta de sua
truição constrói. criadas pela arte não figurativa construtiva. "realidade".
A dificuldade de uma terminologia precisa para Essa posição é válida igualmente para a O racionalismo rouba à arte toda a autonomia
exprimir um mundo que não se rende a noções poesia neoconcreta que denuncia, na poesia e substitui as qualidades intransferíveis da obra
levou a crítica de arte ao uso indiscriminado de concreta, o mesmo objetivismo mecanicista da de arte por noções da objetividade científica:
palavras que traem a complexidade da obra pintura. Os poetas concretos racionalistas assim os conceitos de forma, espaço, tempo,
criada. A influência da tecnologia e da ciência também puseram como ideal de sua arte a estrutura - que na linguagem das artes estão
também aqui se manifestou, a ponto de hoje, imitação da máquina. Também para eles o ligados a uma significação existencial, emotiva,
invertendo-se os papéis, certos artistas, ofusca- espaço e o tempo não são mais que relações afetiva - são confundidos com a aplicação teó-
dos por essa terminologia, tentarem fazer a exteriores entre palavras - objeto. Ora, se rica que deles faz a ciência. Na verdade, em
obra de arte partindo dessas noções objetivas assim é, a página se reduz a um espaço gráfi- nome de preconceitos que hoje a filosofia de-
para aplicá-las como método criativo. co e a palavra a um elemento desse espaço. nuncia (M. Merleau Ponty, E. Cassirer, S.
Inevitavelmente, os artistas que assim procedem Como na pintura, o visual aqui se reduz ao Langer) -e que ruem em todos os campos a
apenas ilustram noções a priori, limitados que ótico e o poema não ultrapassa a dimensão começar pela biologia moderna, que supera o
estão por um método que já prescreve, de ante- gráfica. A poesia neoconcreta rejeita tais mecanicismo pavloviano - os concretos-racio-
mão, o resultado do trabalho. Furtando-se à noções espúrias e, fiel à natureza mesma na nalistas ainda vêem o homem como uma má-
criação intuitiva, reduzindo-se a um corpo obje- linguagem, afirma o poema como um ser quina entre máquinas e procuram limitar a arte
tivo num espaço objetivo, o artista concreto temporal. No tempo e não no espaço a pala- à expressão dessa realidade teórica.
vra desdobra a sua complexa natureza signifi- Não concebemos a obra de arte nem com
cativa. A página na poesia neoconcreta é a o uma "máquina" nem como um "objeto", mas
“É porque a obra de arte transcende espacialização do tempo verbal; é pausa, como um "qüasi-corpus", isto é, um ser cuja
o espaço mecânico que, nela, as silêncio, tempo. Não se trata, evidentemente, realidade não se esgota nas relações exteriores
noções de causa e efeito perdem de voltar ao conceito de tempo da poesia "dis- de seus elementos; um ser que, decomponível
cursiva", porque enquanto nesta a linguagem em partes pela análise, só se dá plenamente à
qualquer validez, e as noções de flui em sucessão, na poesia neoconcreta a abordagem direta, fenomenológica. Acredita-
tempo, espaço, forma e cor, estão linguagem se abre em duração. Consequente- mos que a obra de arte supera o mecanismo
de tal modo integradas — pelo fato mente, ao contrário do concretismo racionalis- material sobre o qual ela repousa, não por
mesmo de que não preexistiam como ta, que toma a palavra como objeto e a trans- alguma virtude extraterrena: supera por trans-
cender essas relações mecânicas (que a Gestalt
noções à obra — e neoconcreta”
objetiva) e criar uma significação tácita (M.
Ponty) que emerge nela pela primeira vez. Se
objetivo num espaço objetivo, o artista concreto tivéssemos que buscar um símile para a obra
racionalista, com seus quadros, apenas solicita de arte, não o poderíamos encontrar, portanto,
de i e do espectador uma reação de estímulo e nem na máquina nem no objeto mas, como S.
reflexo: fala ao olho como instrumento e não Langer e W. Wleidlé, nos organismos vivos.
ao olho como um modo humano de ter o Essa comparação, entretanto, ainda não basta-
mundo e se dar a ele; fala ao olho-máquina e ria para expressar a realidade específica do
não ao olho-corpo. organismo estético.
É porque a obra de arte transcende o espaço É porque a obra de arte não se limita a ocupar
mecânico que, nela, as noções de causa e um lugar no espaço objetivo — mas o trans-
efeito perdem qualquer validez, e as noções de cende ao fundar nele uma significação nova —
tempo, espaço, forma e cor, estão de tal modo que as noções objetivas de tempo, espaço,
integradas — pelo fato mesmo de que não forma, cor, etc., não são suficientes para com-
preexistiam como noções à obra — e neocon- preender a obra de arte, para dar conta de sua
creta, afirmando a integração absoluta desses OS BICHOS. LYGIA CLARK "realidade". A dificuldade de uma terminologia
elementos, acredita que o vocabulário "geomé- precisa para exprimir um mundo que não se
trico" que utiliza pode assumir a expressão de rende a noções levou a crítica de arte ao uso
realidades humanas complexas, tal como o Por sua vez, a prosa neoconcreta, abrindo um
indiscriminado de palavras que traem a com-
provam muitas das obras de Mondrian, Malevi- novo campo para as experiências expressivas,
plexidade da obra criada. A influência da tec-
tch, Pevsner, Gabo, Sofia, Teauber-Arp, etc. Se recupera a linguagem como fluxo, superando
nologia e da ciência também aqui se manifes-
mesmo esses artistas às vezes confundiam o suas contingências sintáticas e dando um senti-
tou, a ponto de hoje, invertendo-se os papéis,
conceito de forma-mecânica com o de forma do novo e mais amplo a certas soluções até
certos artistas, ofuscados por essa terminolo-
expressiva, urge esclarecer que, na linguagem aqui dadas equivocamente como poesia. E as
gia, tentarem fazer a obra de arte partindo
da arte, as formas ditas geométricas perdem o sim que, na pintura como na poesia, na prosa
dessas noções objetivas para aplicá-las como
caráter objetivo da geometria para se fazerem como na escultura e na gravura, a arte neo-
método criativo.
veículo da imaginação. A Gestalt, sendo ainda concreta reafirma a independência da criação
Inevitavelmente, os artistas que assim proce-
uma psicologia causal, também é insuficiente artística em face do conhecimento objetivo (ci-
dem apenas ilustram noções a priori, limitados
para nos fazer compreender esse fenómeno ência) e do conhecimento prático (moral, políti-
que estão por um método que já prescreve, de
que dissolve o espaço e a forma como realida- ca, indústria, etc.).
antemão, o resultado do trabalho. Furtando-se
des causalmente determináveis e os dá como Os participantes desta I Exposição Neoconcreta
à criação intuitiva, reduzindo-se a um corpo
tempo como espacialização da obra. Entenda- não constituem um "grupo". Não os ligam prin-
objetivo num espaço objetivo, o artista concreto
-se por espacialização da obra o fato de que cípios dogmáticos. A afinidade evidente das
ela está sempre se fazendo presente, está pesquisas que realizam em vários campos os
sempre recomeçando o impulso que a criou e aproximou e os reuniu. O compromisso que os
prende, prende-os primeiramente cada um à
de que ela era já a origem. E se essa descrição
sua experiência, e eles estarão juntos enquanto
AMÍLCAR DE CASTRO, FERREIRA
nos remete igualmente à experiência primeira -
plena - do real, é que a arte neoconcreta não dure a afinidade profunda que os aproximou. GULLAR, FRANZ WEISSMANN,
pretende nada menos que reacender essa ex- LYGIA CLARK, LYGIA PAPE, REY-
periência. A arte neoconcreta funda um novo
"espaço" expressivo. NALDO JARDIM, THEON
SPANÚDIS
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