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JOAQUIM ALVES DE AGUIAR C inqüentonas e cinqüentões pau-

listanos vão se lembrar de um


programinha de televisão que, no
começo dos anos 60, animava os
fins de tarde de domingo. Era o
Gincana Kibon, da TV Record. Tratava-se
de uma espécie de desfile destinado a mos-
trar o talento de crianças e adolescentes. A
meninada cantava, tocava, encenava e, so-
bretudo, dançava, solando ou em grupos.
Tarantelas, polcas, quadrilhas e viras, mis-

Formação
tardia turados a balezinhos brasileiros, não podi-
am faltar. E nem falemos do indefectível
“A Morte do Cisne”, que volta e meia
marcava presença. A classe média vibrava
com o vaivém, as piruetas e o sapateado de
seus filhos, exibidos na televisão, sempre
um passaporte para a fama e o reconheci-
mento, ainda que tantas vezes entre os vi-
zinhos do bairro. Quantas mães lacrime-
jantes não descansaram de suas estrias,
projetando-se nas filhas, gazelinhas trepa-
das em sapatilhas! Quantos pais de peito
inflado não sonharam ali com bons parti-
dos para suas pimpolhas, pequenas ave-
marias cheias de graça! Mas a Gincana
Kibon era isto: bailados para o povo, ou
melhor, para a família paulista, “repleta de
boas intenções” e disposta a prosperar e
JOAQUIM ALVES DE consumir. Naquela sala de espera da dita-
AGUIAR é professor do dura militar, devem ter proliferado
Departamento de Teoria
escolinhas de balé, nas capitais e no inte-
Literária e Literatura
Comparada da FFLCH-USP. rior. Olhando em retrospecto, a arte de
Terpsícore parecia ter futuro entre nós, afi-
A Formação do Balé nal a nossa tradição no assunto era recente,
Brasileiro, de Roberto
Pereira, Rio de Janeiro, conforme logo se verá, e já se apresentava
FGV Editora, 2003. ao consumo das multidões. Mas não foi bem

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do Balé Brasileiro se organiza em torno
desse eixo, ou seja, da descrição e da aná-
lise dessas duas temporadas, segundo Ro-
berto Pereira, dois momentos decisivos da
história da tradição da dança de palco no
Brasil.
Desde o início, e para além da educação
técnica dos bailarinos, o grande desafio dos
coreógrafos estrangeiros radicados no país
(a maioria de procedência eslava) foi o de
criar por aqui um balé com a nossa cara. Os
espetáculos de 1937, por exemplo, já in-
cluíam no repertório duas coreografias de
músicas brasileiras; na temporada de 1943
aumentaria o percentual de peças nacio-
isso o que se viu. Nem o país se pautou pelo nais em meio às estrangeiras. As duas oca-
Nesta página e cultivo das belas-artes, nem as belas-artes siões formam um quadro bastante expres-
na seguinte, se popularizaram. Uma pena, porque, no sivo, analisado em detalhes por Roberto
Escola caso da dança, a nação sempre primou pelo Pereira. Nada parece lhe escapar: o ambi-
requebrado e pelo jogo de pernas, o que ente da dança, a biografia dos seus agentes,
Municipal de não foi suficiente para formar por aqui uma as intrigas de bastidores, as relações com a
Bailados, final escola sólida de balé. É que a dança pode oficialidade, os libretos, os programas, a
evoluir das ruas e salões, e o balé só se crítica, etc. O desafio não é pequeno, pois
da década de
realiza em espetáculos. Não são a mesma se trata de reconstituir um objeto fugidio,
20; na página coisa, conforme nos ensina o livro de Ro- marcado pela escassez de registros. O au-
anterior, Décio berto Pereira, A Formação do Balé Brasi- tor, que é crítico de dança e conhece como
leiro, que a editora da Fundação Getúlio poucos a história do balé (brasileiro e es-
Stuart no balé Vargas acaba de lançar. trangeiro), mergulhou em arquivos, fez
Amaya, 1939 A história dessa formação começa em entrevistas e leu bastante – sua bibliografia
1927, quando se criou a primeira escola compreende 17 páginas de títulos, indica-
oficial de bailados do Brasil, graças à ini- dor importante do esforço empreendido.
ciativa da coreógrafa russa Maria Olenewa. Aliás, antes de ser livro, o seu trabalho foi
Como era de esperar, levaria algum tempo apresentado como tese de doutoramento
até que o trabalho de Olenewa começasse na PUC de São Paulo.
a dar frutos, ou seja, que fosse criada uma Mas a questão é a seguinte: o desejo de
companhia estável de balé, o que só viria a constituir um balé realmente nacional en-
ocorrer com a criação do Corpo de Baile do contra no Estado Novo (1937-45) um cli-
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em ma favorável ao patrocínio de coreografias
1937. Daí para a primeira grande realiza- de corte verde-amarelo. As ligações entre
ção do balé nacional seria um passo curto, o nacionalismo da dança e a ideologia na-
pois data de 1939 aquela que foi a primeira cionalista da ditadura de Vargas se
temporada realmente importante do Corpo explicitam. Há, portanto, uma história den-
de Baile recém-instituído. Nessa ocasião, tro da história da formação do balé no país.
conforme descreve o autor, foram apresen- Essa história, interior, por assim dizer, co-
tadas doze coreografias diferentes, “em sete meça com representações romantizadas do
dias de espetáculos, em programas alterna- índio e evolui para representações, diga-
dos” (p. 133). Quer dizer: havia disposi- mos, mais realistas e mais abrangentes, do
ção, criatividade e platéia para o nosso balé. mestiço (o mulato, o caboclo). Nos termos
O público só esperaria mais alguns anos do livro, procura-se inserir no palco tradi-
para assistir a outra temporada de relevo: a cionalmente estrangeirado o “corpo brasi-
de 1943. Sem querer apressar, A Formação leiro”, sem o qual o bailado nacional não

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poderia se consolidar. Percebe-se aí uma
evolução, talvez nem tanto no sentido esté-
tico quanto no ideológico, e tudo segundo
os interesses mútuos da dança e do Estado.
Se nos espetáculos de 1937 figuras tipica-
mente brasileiras eram encarnadas por bai-
larinos estrangeiros, restando ao pessoal da
casa papéis de coadjuvantes, na temporada
de 1943 o bailado brasileiro terá “fisiono-
mia inteiramente nacional”, ou seja, “balés
brasileiros dançados por brasileiros” (p.
215). De acordo com Roberto Pereira, é
desse encontro da coreografia com o nacio-
nalismo do período getulista que se forma
a nossa tradição de balé.
Para demonstrar o processo segundo o tura se entrelaçam, sem perder suas especi-
qual essa tradição se constitui, o autor lan- ficidades e dando continuidade a um pro-
ça mão do sistema literário concebido por cesso formativo, são vistas em duas tem-
Antonio Candido para pensar a formação poradas do Balé do Municipal do Rio, se-
de outra tradição, a da literatura brasileira. paradas uma da outra por apenas seis anos.
Este é o lance mais engenhoso do livro. Como se vê, a velocidade dessa formação
Quem esperaria ver num trabalho sobre o beira o vertiginoso. Diante disso, o leitor
balé a aplicação de um conceito pensado pode perguntar: um período tão curto teria
para explicar a formação das letras nacio- sido suficiente para fundar uma tradição de
nais? Como se sabe, Antonio Candido tra- balé no Brasil?
tou de dois momentos decisivos: o Arca- A resposta dada pelo livro é sim, e seu
dismo e o Romantismo. Segundo o crítico, lastro se encontra no casamento do nacio-
nessas duas épocas teria ocorrido maior nalismo coreográfico com as demandas
integração de autores, obras e público, num culturais e ideológicas do Estado Novo.
sistema que teve continuidade e que inau- Todavia, acho que seria necessário ter ido
gurou a tradição literária do país; uma tra- um pouco adiante no tempo, dando notí-
dição que ganhou impulso graças ao desejo cias dos momentos que sucederam aqueles
dos brasileiros cultos de ter sua própria li- considerados decisivos. Digo isso pensan-
teratura. Pois bem: Roberto Pereira toma do em Antonio Candido, pois no horizonte
dessa formação os pressupostos para indi- da Formação da Literatura Brasileira está
car outra formação: a do balé brasileiro. Machado de Assis. Embora o crítico não
Uma formação tardia, conforme se vê, se- tenha se ocupado dos períodos posteriores
parada da outra por mais de um século. ao arcadismo e ao romantismo, é com o
Com efeito, acompanhamos bem o an- grande romancista do realismo e do pós-
seio de formar aqui um balé brasileiro, e a realismo que a formação literária brasileira
constituição, a partir das primeiras realiza- se consolida. Então é isto: talvez Roberto
ções, de um público para a dança de palco, Pereira pudesse ter indicado aos seus leito-
além do aparecimento de uma crítica espe- res o horizonte do esquema que, com notá-
cializada, capaz de acompanhar o andamen- vel originalidade e indiscutível competên-
to da arte recém-instalada entre nós. A trans- cia, preparou. No que teria dado o nosso
posição das idéias de uma formação para balé, formado naquele punhado de anos?
outra parece ter pertinência. De fato, imi- Uma das suas realizações pode ter sido o
tando (no melhor sentido) o Mestre, Ro- programinha de televisão com o qual ini-
berto Pereira se detém em dois momentos ciei o comentário. É pouco. Pouco mesmo.
decisivos. Quer dizer: aquelas duas épocas Mas onde está (onde esteve?) o Machado
(Arcadismo e Romantismo), que na litera- do balé brasileiro?

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