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Estudos Bíblicos:

Sinóticos e Escritos
Joaninos
Material Teórico
Evangelho Segundo Mateus

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Valter Luiz

Revisão Textual:
Prof. Dr. Claudio Brites
Evangelho Segundo Mateus

• Introdução
• Autoria
• Data e Local de Origem
• Contexto Histórico-Social
• Fontes
• Estrutura Temática da Redação
• Jesus no Evangelho Segundo Mateus
• Chaves de Interpretação
• Conclusão

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Capacitar o aluno a desenvolver leitura crítica e contextualizada do
Evangelho segundo Mateus, oferecendo informações básicas sobre
autoria, data e contexto histórico dos interlocutores e destinatários
nas origens de sua redação. Apresentar os objetivos e a organização
temática desse Evangelho como resposta aos problemas e conflitos
vividos pela comunidade de fé que ele representa.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você
também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão
sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e
de aprendizagem.
UNIDADE Evangelho Segundo Mateus

Contextualização
Hoje em dia é muito frequente, quando se discute religião, afirmar ou negar a
coerência ética de seus padres, pastores, pais, mães de santo, ou qualquer outro
nome que se dê aos líderes de instituições religiosas. Vê-se crescer cada vez mais
o número de pessoas que se definem como sem religião. No último censo (2010),
eram 8% da população. Estima-se que já são 12% e, entre os jovens, quase 20%.
Tudo indica que é a credibilidade da instituição religiosa que está em questão e não
a doutrina religiosa em si mesma, afinal, a maior parte dos sem religião professa
algum tipo crença.

A credibilidade da doutrina e das propostas éticas de uma dada confissão


religiosa passa cada vez mais pelo testemunho de seus seguidores e, sobretudo, de
seus líderes.

A coerência entre o discurso e a conduta, isto é, entre teoria e prática é o ponto


chave para cobrar autoridades não só religiosas, mas principalmente políticas. Pois
é esse o enfoque mais importante do EMt quando o assunto é a fé religiosa e o
cumprimento de seus preceitos, Jesus é apresentado nesse evangelho não apenas
como anunciador de uma nova doutrina, mas sim como modelo de quem realmente
pratica a vontade do Pai.

Eis um bom motivo para ler, estudar e atualizar as críticas que Jesus faz a certas
lideranças religiosas de seu tempo, às quais ele chama contundentemente de
hipócritas (Mt 23, 13s). É forte, mas parece ser atual? Você não acha? Confira!

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Introdução
O Evangelho segundo Mateus (EMt) é também chamado de primeiro evangelho.
Por ser o documento que abre o Novo Testamento, antecede os demais textos
na sequência da ordem literária consumada desde as origens da formação do
cânone. Por esse motivo, o EMt foi por muito tempo considerado o mais antigo,
pressupostamente o primeiro a ser escrito e fonte dos outros evangelhos canônicos1.
Porém, mais recentemente, com base nos estudos históricos de crítica literária e
redacional, constatou-se que o Evangelho segundo Marcos2 (EM), de fato, foi o
primeiro a ser escrito e serviu como fonte dos demais evangelhos, inclusive do EMt.

A presente Unidade de estudos sobre o EMt quer oferecer um panorama com os


principais pontos que caracterizam e contextualizam a produção de sua mensagem,
tais como: autoria, data de composição, fontes, estrutura temática, interlocutores e
destinatários imediatos em seu contexto histórico e ambiente comunitário que são
próprios; além de algumas chaves fundamentais para a sua interpretação.

O protagonista e, ao mesmo tempo, tema central do EMt é a figura de Jesus,


apresentado como Cristo, isto é, como Messias. O que distingue o EMt do EM,
apesar de toda semelhança temática – uma vez que esse é a principal fonte do
primeiro, aliás, o EM é retomado e está quase integralmente no interior do EMt3
– já está anunciado desde o primeiro momento como título da obra: “Livro da
origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1). Enquanto o EM
identifica sua obra como “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”,
declarando que o messianismo confessado em Jesus está focado na filiação divina
e só secundariamente lhes são atribuídos outros títulos, o EMt está centrado na
apresentação do Messias Jesus conforme as tradições e esperanças judaicas mais
genuínas davídicas e abraâmicas.

Autoria
A tradição cristã desde cedo identificou o autor do EMt como sendo o apóstolo
Levi, o publicano coletor de impostos (Mc 2,13-14; lc 5,27-28), filho de Alfeu da
lista dos doze apóstolos (Mt 10,3; Lc 6,15; Mc 3,18). Pápias, bispo de Hierápolis na
Ásia Menor, por volta de 110 e 120, e depois, Eusébio de Cesareia, admitiram ser
Mateus o autor daquele que por muito tempo foi considerado o primeiro evangelho.
O fato é que houve muitas mãos a colaborar com a narrativa do EMt. No entanto,
o redator final permanece desconhecido. O que sabemos sobre ele está no texto
que nos foi legado. Trata-se de um escriba judeu helenizado, convertido à fé cristã,
profundamente consciente de que devia transmitir o Evangelho de Jesus em sua

1 Essa foi a tese defendida por Santo Agostinho (MONASTÉRIO, 2000, p. 16), que prevaleceu até recentemente.
2 Na sequência da Unidade os Evangelhos de Marcos, Lucas e João aparecerão respectivamente com as seguintes
abreviações: EM, ELc e EJo.
3 No EMt estão 2/3 do conteúdo do EM.

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UNIDADE Evangelho Segundo Mateus

novidade radical sem perder o que há de melhor da tradição judaica (13,52). É


um típico cristão judeu, próximo, mas crítico da sinagoga e da postura que tem os
escribas mais ortodoxos do judaísmo.

Data e Local de Origem


Ainda não há consenso sobre o local exato da origem do EMt, mas o debate está
em torno das regiões da Galiléia, Fenícia e Síria, mais especificamente a cidade de
Antioquia. A data exata também não se sabe, mas há consenso entre os especialistas
propondo o período da história judaica marcado pelo nascimento do que ficou
conhecido como Judaísmo formativo4, entre os anos 85 e 90 de nossa Era.

Contexto Histórico-Social
A década de 80 do primeiro século foi marcada por um grande esforço de
reorganização da comunidade judaica que buscava voltar às bases de suas tradições
escritas e de respeito às práticas religiosas. Não havia mais o templo de Jerusalém,
pois fora destruído não fazia muito tempo pelos romanos na Guerra Judaica. A
maioria dos partidos políticos e religiosos anteriores à destruição foram desfeitos,
restando apenas os fariseus e seus escribas. São eles que vão articular o judaísmo
formativo5, um movimento de formação e reconstituição da identidade judaica para
um povo sem templo, sem Estado e disperso por todo o império.

A Torá hebraica, as regras culturais dela provenientes e a Sinagoga como local


de reunião, encontro e transmissão da religião e costumes aos adeptos do judaísmo
transformaram-se em instituições fundamentais para garantir a sobrevivência de
um povo em sua singularidade étnica e religiosa.

As diversas tendências do judaísmo marcadas pelo pluralismo religioso que ante-


cederam à tragédia da guerra de 70 desapareceram, fazendo surgir o predomínio
do judaísmo rabínico, outro nome para o judaísmo formativo, uma vez que os ra-
binos judeus, escribas e mestres da lei protagonizaram esse novo desafio histórico
para um povo secularmente vitimado por várias dispersões ao longo de sua história.

4 Judaísmo formativo é o movimento religioso de judeus da diáspora, liderado principalmente por rabinos e escribas,
que buscava organizar a vida religiosa em torno da sinagoga e da obediência estrita das regras da Torá, uma vez que
o Templo de Jerusalém fora destruído e seus seguidores expulsos da cidade pelos romanos.
5 J. Andrew Overman (1997), em sua obra O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, mostra as implicações do
Judaísmo formativo no EMt. Seu objetivo é entender os conflitos entre as lideranças judaicas e o grupo dos discípulos
de Jesus representados pelo EMt. Os primeiros procuram reorganizar e normatizar a religião judaica em torno da Lei
e da Sinagoga. Na ótica dessas lideranças, trata-se de viabilizar alternativa de afirmação de sua identidade como povo
que mais uma vez foi expulso de Jerusalém, perdeu sua terra, não tem mais Estado e viu seu Templo ser destruído pelos
romanos na Guerra Judaica. Evidentemente, o EMt significa a formulação de outra alternativa diante dessa situação.

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A postura dogmática e impositiva do judaísmo rabínico entrou em conflito com
os grupos e as comunidades judaicas convertidas ao cristianismo. O Evangelho
segundo Mateus é a expressão desse conflito na ótica das comunidades cristãs que
vieram do judaísmo e se abriram à cultura greco-romana, aceitando conviver no
mesmo ambiente com gente proveniente do paganismo.

Considerar esse contexto histórico sociorreligioso é pressuposto fundamental


para compreender o propósito, a linguagem e a estratégia do EMt que visa, por
sua vez, afirmar a identidade da comunidade dos seguidores de Jesus frente aos
irmãos da sinagoga.

O EMt representa então o esforço de afirmação de uma entidade nova em torno


de Jesus e a resistência das autoridades, escribas e rabinos da sinagoga em não
aceitar a postura mais aberta dos cristãos em relação às prescrições estritas da Torá.

Observe como isso transparece no texto: de um lado está a comunidade ou


rede de comunidades representadas pelo EMt propondo a nova interpretação da
lei segundo a ótica da radicalidade da justiça cumprida por Jesus (5,17-20), do
outro lado, estão os representantes dos fariseus e seus escribas (5,20s), procurando
preservar a interpretação ortodoxa, opressiva e restritiva da Lei, contrária aos
ensinamentos adotados pelos seguidores do Nazareno:
17 Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los,
mas dar-lhes pleno cumprimento,
18 porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra,
não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja
realizado. [...]
20 Com efeito, eu vos asseguro que se a vossa justiça não ultrapassar a
dos escribas e a dos fariseus, não entrarei no Reino dos Céus (Mt 5,17-
18.20. O grifo é nosso).

Você reparou como Jesus no EMt é duro na crítica que faz aos fariseus e escribas? “Ai de vós,
Explor

escribas e fariseus, hipócritas [...]” (Mt 23, 13-32). Neste capítulo (Mt 23) são sete vezes,
sete advertências ao mesmo grupo. O adjetivo “hipócrita” é forte e caracteriza os principais
adversários da comunidade de Mateus. Viu como isso tem a ver com o contexto histórico
e sociorreligioso marcado pelo predomínio do judaísmo formativo de rabinos que tentam
revigorar a identidade da religião judaica? Afinal, eles lideram um povo que vê novamente
ser destruído seu grande símbolo religioso, o templo de Jerusalém. Além disso, trata-se
de um povo que mais uma vez é obrigado a experimentar o exílio, longe de sua terra e,
principalmente, de sua cidade sagrada.

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UNIDADE Evangelho Segundo Mateus

Fontes
Como os outros evangelhos, o EMt é redigido a partir das tradições da memória
oral, isto é, de relatos que contavam e os principais acontecimentos envolvendo
palavras, atos, curas e narrativas sobre a vida de Jesus.

Havia também fontes já escritas, usadas em determinadas circunstâncias para


celebrar a memória de Jesus como Messias crucificado e ressuscitado e exortar a
comunidade ao seu seguimento. As duas principais fontes do EMt é o próprio EM
e a coleção de palavras de Jesus conhecida como fonte Q. Dos 661 versículos do
EM, mais de 600 estão no EMt e quase sempre na mesma sequência. Veja a tabela
dessa presença do EMc no EMt:

Mateus Marcos
3,1-4,22 1,1-20
(4,23-25;5,1-2) (1,21)
7,2-29 1,22
8,2-4
8,14-17 1,29-34
1,40-45
8,18-34
9,1-17 2,1-22
9,18-26
9,35
10,1-16
12,1-16 2,23-3,12
3,16-19
12, 24-32 3,22-30
12,46-50 3,31-35
13,1-35 4,1-34
4,35-5,20
5,21-43
13,53-58 6,1-6a
6,6b
6,7-11
Figura 1
Fonte: Neirynck, 2011

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A fonte Q é admitida como texto escrito que antecedeu em sua origem a
escritura dos outros evangelhos. Quando se compara os três evangelhos sinóticos
(Mt, Mc e Lc), logo se constata que há um conjunto de trechos comuns entre Mt e
Lc que não se encontram em Mc. Esse conjunto comum a Mt e Lc não marcanos
foi provavelmente produzido na “comunidade cristã de Jerusalém antes da guerra
judaica (66-73 dC)” (KONINGS, 2000, p. 155). O nome Q indica por convenção
a sigla Q cuja origem é abreviação da palavra alemã Quelle, que significa
exatamente fonte. Parece redundante em português, mas é isso mesmo, fonte
Q é uma fonte “Fonte”. Como são textos que se referem a palavras, parábolas
e breves discursos de Jesus, também são chamados de logias, do grego, que
significa palavras ou sentenças.

Q é então uma coleção de ditos de Jesus exclusivos dos EMt e ELc, mas não do
EMc. Veja como isso pode ser graficamente ilustrado:

Mc → Mt
↓ ↑
Lc ← Q

As bem-aventuranças (Mt 5,1-12), a oração do Pai Nosso (Mt 6,9-13) e o envio


dos apóstolos para a missão (Mt 10, 1-16) são alguns dos textos no EMt atribuídos
à fonte Q.

A semelhança entre Mt e Lc quando se trata de um texto da fonte Q chega a


ser impressionante quando se compara os textos em suas versões gregas mais
próximas das composições originais. Compare, por exemplo, Mt 6,24 e Lc 16,13:
às vezes, evidentemente, se a comparação for feita com base nas traduções em
português a partir de Bíblias segundo diferentes tradutores, talvez não se perceba
tanto como o texto é praticamente o mesmo. Das 28 palavras presentes na versão
grega, 27 são as mesmas tanto num texto como no outro. A Bíblia de Jerusalém
(2012) aqui utilizada como referência, deixa essa coincidência ser notada:
Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará
o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis
servir a Deus e ao Dinheiro (Mt 6,24).
Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará
o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis
servir a Deus e ao Dinheiro (Lc 16,13).

Contudo, a singularidade do EMt está no modo como ele reescreve suas fontes
e estrutura o seu texto segundo tradições e fontes que lhes são próprias.

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UNIDADE Evangelho Segundo Mateus

Estrutura Temática da Redação


O EMt é fruto de uma estrutura muito bem organizada para transmitir não
apenas pelo conteúdo, mas também pela forma, aquilo que está no título de toda
obra e repete de variadas formas ao longo da narrativa, a saber, que o Evangelho é
livro sobre as origens de Jesus, a mais completa e perfeita tradução das esperanças
e promessas depositadas em Abraão e Davi: “Livro da origem de Jesus, filho de
Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1).

É uma composição literária feita na estrutura básica de cinco livros, pois pretende
ser a nova Torá, isto é, o novo Pentateuco (os cinco livros que abrem a Bíblia: Gn, Ex,
Lv, Nm e Dt). O EMt é uma obra que intercala textos narrativos com textos discursivos.

Mt 1-2: Introdução → origem e nascimento de Jesus


3-4: Narrativa → início do ministério
5-7: 1º Discurso → Sermão da Montanha
8-9: Narrativa → Curas e Milagres
10: 2º Discurso → Envio missionário dos discípulos
11-12: Narrativa → Controvérsias com os adversários
13: 3º Discurso → Parábolas do Reino
14-17: Narrativa → O reconhecimento de Jesus por seus discípulos
18: 4º Discurso → Igreja/Comunidade de irmãos
19-22: Narrativa → Narrativa sobre a proximidade do Reino
23-25: 5º Discurso → Crítica à hipocrisia religiosa e o Juízo Final
Mt 26-28: Conclusão → Paizão, morte e ressurreição de Jesus

Jesus no Evangelho Segundo Mateus


Jesus em Mateus é tudo o que já havia sido professado no EM, mas é também
o mestre que transmite o verdadeiro ensino e pleno significado do espírito da lei
(Mt 5,20-48) e das práticas religiosas (Mt 6-7). Ele não é apenas o mestre que
ensina com palavras, mas aquele que pratica o que ensina (Mt 7,21), cura (Mt 4,23-
25; Mt 8-9), abençoa, profetiza (Mt 7,15-20) e realiza, à sua volta, solidariedade,
fraternidade e comunhão, resgatando doentes, pobres e famintos da situação de
exclusão (Mt 11,3-6).

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Jesus é sim o Messias (Mt 16,16), o Filho do Homem (Mt 16,27-28; 17, 9.12.22;
20,18), o Filho amado do Pai (Mt 17,5b) professado no EM. Porém, distinto do
EM, para o EMt Jesus é sim o Filho de Davi (Mt 1,1), mas não subordinado à figura
do Rei Davi, isto é, Jesus é maior do que Davi (Mt 22,41-46). Por isso, a filiação
davídica em Mateus rejeita o caminho da violência e assume a tipologia do Messias
sofredor (Mt 12,15-21; 16, 21-24), como em Marcos (Mc 8, 31).

Jesus no EMt é aquele que critica a hipocrisia dos escribas e fariseus (Mt 23,13-
32), pois eles exigiam dos outros que cumprissem inúmeras regras e preceitos
religiosos de seu tempo, mas “omitiam as coisas mais importantes da Lei: a justiça,
a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23,23).

Jesus é o mestre profeta que ensina e pratica a nova justiça e uma nova fidelidade
à lei de Moisés (Mt 5,20s). Por isso ele é o novo Moisés e seu evangelho na expressão
das bem-aventuranças do sermão da montanha é a nova Torá (Mt 5,1-12).

No EMt, Jesus é o Messias, pregador do Reino dos Céus (Mt 13) e está conven-
cido de sua chegada iminente (Mt 16,27-28). Ele é também o Filho do Homem,
juiz escatológico6 do Reino, aquele que julgará a humanidade de acordo com os
critérios da justiça e solidariedade aos pobres, famintos, forasteiros, doentes e
prisioneiros (Mt 25,31s).

Chaves de Interpretação
O recado das origens messiânicas de Jesus
O EMt tem evidentemente a proclamação de Jesus como Messias. Seu obje-
tivo é mostrar que em Jesus, o Cristo, se realizam plenamente as promessas de
Deus a Abraão e a Davi. Sua genealogia (Mt 1,1-17) destaca a presença de cinco
mulheres que se destacaram na história da Bíblia pela ousadia, irreverência e
situação de marginalização que souberam superar a partir da abertura à graça de
Deus em suas vidas.

1ª) Tamar (Mt 1,3), viúva que fez valer seu direito previsto na lei de maneira
a garantir a justiça que lhe era devida (Gn 38). Abandonada pelos irmãos de seu
marido e por seu sogro que, pela lei do levirato (Dt 25,5-10),7 devia assumi-la
como se fosse sua esposa, ela e o irmão/filho falecido. Judá, seu sogro. Depois
de uma atitude extremamente arrojada, disfarça-se de prostituta e, numa relação
com o sogro, acaba ficando grávida. Quando a família de seu marido descobre sua

6 Escatológico é o que diz respeito ao “Escaton”, palavra grega que significa “fim”. No contexto da teologia e esperanças
messiânicas do Novo Testamento indica o final dos tempos quando chegará o Reino dos Céus e o Filho do Homem
julgará cada um segundo o seu comportamento (Mt 16,27; Mt 25,31s).
7 A lei do levirato prescrevia que a mulher sem filhos, cujo marido havia morrido, devia ser assumida pelo irmão ou o
sogro do falecido e com ela gerar um filho em nome do seu ex-marido, para assim garantir o acesso à propriedade e
todos os demais direitos da herança que lhe cabiam numa sociedade patriarcal. Sem esse resgate, o que lhe restava
era voltar à casa do pai ou prostituir-se para poder sobreviver.

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UNIDADE Evangelho Segundo Mateus

gravidez, resolve condená-la ao apedrejamento. Nesse momento, ela apresenta


o cajado do homem que é o pai de seu filho: Judá. Ele então é obrigado a
reconhecer: “Essa mulher é mais justa do que eu” (Gn 38,26). E foi assim que
Tamar ficou na memória do povo como a mulher que fez valer, por caminhos
estranhos e pouco convencionais, a justiça que lhe era devida;

2ª) Raab (Mt 1,5a), a prostituta estrangeira que foi salva junto com sua família
por acolher em sua casa os enviados de Josué para inspecionar a cidade de Jericó
que iria ser vencida (Js 6,22-25). Ela tornou-se símbolo de solidariedade e coragem,
pois desde sua condição de marginalidade, identificou-se com o grupo de Josué,
juntando-se ao povo de Deus, independentemente de sua origem não ser judaica;

3ª) Rute (Mt 1,5b), mulher estrangeira, viúva que, numa situação de extrema
dificuldade, não foi capaz de abandonar sua sogra, Noemi. Ela também, como
Tamar, fez valer o direito da lei do levirato que igualmente lhe era negado por
caminho nada comum. A memória popular a partir do relato bíblico no livro de
Rute a colocou como a mulher que gerou os ancestrais do Rei Davi e, assim, deu
a ela a honra de ser protagonista do cumprimento das promessas messiânicas (Rt
4,9-22);

4ª) A mulher de Urias (Mt 1,6). Trata-se da mulher cobiçada por Davi de
nome Bersabéia, por quem se apaixonou e cometeu o grave pecado do adultério
usando de seu poder de Rei. Ao saber que ela estava grávida, Davi colocou o seu
marido à frente do batalhão de guerra e o fez morrer (2Sm 11-12). O profeta Natã
é portador da crítica e condenação de Davi por esse grave delito. Bersabéia não
é condenada pelo texto bíblico, pois esse a considerou vítima de uma sociedade
patriarcal injusta, cujo rei abusa de mulheres de modo a desrespeitar as leis de
Deus. O fato inusitado é que Deus transformou o mal em bem. De Bersabéia
nasceu Salomão, o filho de Davi que deu continuidade à posteridade da realeza
davídica, instituição que manteve viva as promessas de um reinado justo e de paz
(2Sm 7; Is 9,5-6);

5ª) Maria, a mãe de Jesus (Mt 1,16). Como as mulheres anteriores


mencionadas na genealogia, Maria encontrou-se grávida, mas o pai humano para
os seus contemporâneos era desconhecido. O EMt, num belíssimo relato, mostra a
intervenção do anjo do Senhor pedindo a José, seu esposo, que acolhesse Maria,
pois o que nela foi gerado é obra do Espírito Santo (Mt 1,18-25).

Assim, o EMt apresenta de uma forma simbólica, através do relato genealógico,


que Jesus era sim o Messias. Embora sua ascendência davídica fosse contestada
por muitos de seus contemporâneos, afinal ele era identificado como sendo Galileu
da Vila de Nazaré (13,53-58), ele era o mais genuíno representante das promessas
e do legado do povo de Deus.

Uma comunidade aberta aos pagãos como a de Mateus, que integra e acolhe
judeus e não judeus, mulheres e homens, via através do relato introdutório (Mt
1-2) o exemplo de que a cidadania no Reino já estava contemplada na história da
salvação e era, de fato, atestada pelas Escrituras Sagradas.

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Seguimento de Jesus e modelo de Igreja
O seguimento de Jesus
O EMt dá-se sobretudo na vivência das bem-aventuranças (5,1-12). Ser discípulo
é pertencer ao Reino dos Céus e ser “pobre no espírito” (Mt 5,3). E quem são
os pobres no espírito? São os sujeitos que se depreendem das demais bem-
aventuranças: os desvalidos, pobres, sofredores e vítimas da injustiça desse mundo;
os mansos, os aflitos, os famintos e sedentos de justiça, os misericordiosos, os
puros de coração, os promotores da paz e aqueles que são perseguidos por causa
da justiça (Mt 5, 4-12) .

As exigências para ser discípulo de Jesus são muito claras no EMt: fazer a
vontade do Pai (Mt 12,49-50). No EMt, Jesus é apresentado usando muitas palavras
e parábolas que indicam ações e práticas coerentes (Mt 7,21-24) com o que se
prega (Mt 21,28-32). Fariseus e escribas são chamados de hipócritas exatamente
porque eles mesmos não cumprem as exigências que impõem aos outros (Mt 23).
Jesus usava muito as palavras “fazer”, “praticar”, “agir”. Nós as registramos
ce3rca de 80 vezes em seus ensinamentos. De fato, a pessoas é aquilo
que faz: “Toda árvore boa produz bons frutos, e toda árvore má produz
maus frutos. É pelos frutos que vocês os conhecerão” (7,16; cf também
5,16; 12,33-17; 13,23; 21,43). Seguindo as orientações de Jesus, por
meio de seus frutos é que reconheceremos os verdadeiros e os falsos
profetas (7,15.20) (MOSCONI, 1998, p. 90).

Modelo de Igreja
O modelo de Igreja em Mateus também é baseado na pregação do Reino dos
Céus e das bem-aventuranças. Em primeiro lugar, ser Igreja, no EMt, é seguir
o modelo da fraternidade, colocando como prioridade de sua prática pobres e
pequenos (Mt 11,25-27), crianças (18,1-5), doentes (Mt 9,35-38) e pecadores (Mt
9, 10-13). A correção fraterna comunitária (Mt 18,15-18), o perdão (Mt 18,21-22)
e a confissão, pela fé, de Jesus como Messias, o filho do Deus vivo, tal como Pedro
o fez (Mt 16,16-20), são as características que identificam a Igreja de Mateus.

Ética comunitária centrada na Justiça


A ética do EMt é de radical compromisso com o cumprimento da lei em
função da justiça (Mt 5,17-20). Entretanto, trata-se não do cumprimento legalista
da lei, seguida de maneira cega e inescrupulosa que impõe regras sem o devido
discernimento do princípio da justiça:

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do


endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a
misericórdia e a fidelidade. Importava praticas estas coisas, mas sem omitir aquelas
(Mt 23,23).

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UNIDADE Evangelho Segundo Mateus

O princípio ético fundamental do EMt exige que o cumprimento da justiça seja


colocado acima dos escrúpulos da lei e da tradição (Mt 15,1-9). A justiça precisa
ser praticada no testemunho do perdão (Mt 18, 21-22), da correção fraterna (Mt
18,15-18), e não do juízo condenatório dos irmãos (Mt 7,1-5).

Esperança Escatológica na Vinda do Reino dos Céus


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A proclamação do Reino dos Céus é central no EMt e ocupa grande parte do


texto. O ministério de Jesus pela Galileia é marcado por práticas e discursos que
revelam a proximidade do Reino dos Céus (Mt 3,1-9,38). As bem-aventuranças
mostram os protagonistas do Reino (5,1-12); o Juízo final, por sua vez, aponta os
critérios da prática de solidariedade com os pobres que leva as pessoas a entrarem
no Reino (Mt 25,31s).

As parábolas de Jesus ensinam como discernir e identificar a presença do Reino.


Sobretudo no capítulo 13, elas começam com a seguinte expressão: “O Reino dos
Céus é semelhante [...]” (Mt 13,24.31.33.44.45.47).

A proclamação do Reino dos Céus é central no EMt e ocupa grande parte do


texto. O ministério de Jesus pela Galileia é marcado por práticas e discursos que
revelam a proximidade do Reino dos Céus (Mt 3,1-9,38). As bem-aventuranças
mostram os protagonistas do Reino (5,1-12); o Juízo final, por sua vez, aponta os
critérios da prática de solidariedade com os pobres que leva as pessoas a entrarem
no Reino (Mt 25,31s).

As parábolas de Jesus ensinam como discernir e identificar a presença do Reino.


Sobretudo no capítulo 13, elas começam com a seguinte expressão: “O Reino dos
Céus é semelhante [...]” (Mt 13,24.31.33.44.45.47).
O Reino dos Céus é semelhante ao tesouro escondido num campo; um
homem o acha e torna a esconder e, na sua alegria, vai, vende tudo o que
possui e compra aquele campo (Mt 13,44-46).

Conclusão
A finalidade da narrativa de Mateus, como foi demonstrado, é encorajar a sua co-
munidade a praticar a verdadeira justiça que tem, no testemunho de Jesus como Mes-
sias, o seu modelo mais perfeito. A legitimidade da prática religiosa e o anúncio do
Evangelho pregado pelos seguidores de Jesus não vêm da obediência cega à lei, mas
do testemunho da misericórdia de Deus através da solidariedade vivida junto aos mais
pobres, carentes, doentes e necessitados do mundo (Mt 9,10-13;10,8-9, 25,31s).

8 Cf. a explicação na nota de rodapé nº 8

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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Livros
Como ler o Evangelho de Mateus
Leia o livro: STORNIOLO, I. Como ler o Evangelho de Mateus. O caminho da Justiça.
São Paulo: Paulus, 1997. 216p. É um livro bem didático para completar a informações
sobre o conteúdo do EMt.

Vídeos
01- Mateus capítulo 1, versículo 1 ao 25 - Deus Conosco - Arel o Leão de Deus - Desenhos Bíblicos
Assista à animação que introduz o Evangelho de Mateus. Numa linguagem simples,
através de desenho animado, Arel, o Leão de Deus, o narrador, conta o primeiro
capítulo do EMt.
https://youtu.be/90IfeOm2CFM

Filmes
Evangelho Segundo Mateus
Trata-se de um filme que buscou mostrar Jesus como o maior revolucionário de todos
os tempos segundo o relato de Mateus, o evangelista narrador, que, desde o início,
como personagem, segue o roteiro de seu próprio Evangelho.
Direção: Pier Paolo Pasolini
Elenco: Enrique Irazoqui, Susanna Pasolini, Marcello Morante mais
Gêneros Drama, Histórico, Biografia
Data: 1964 (2h 17min).
Nacionalidades França, Itália.

Leitura
O Evangelho de Mateus e o Judaísmo
Leia o artigo de Dorothy A. Lee, O Evangelho de Mateus e o Judaísmo. Postado em
01/07/2005 no Portal de Diálogo Cristão-Judaico: Jewish-Christian Relations.
Trata-se de uma abordagem bastante objetiva das relações entre o EMt e o Judaísmo.
De fato, é um excelente complemento ao estudo desta Unidade.
https://goo.gl/kXNcV6

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UNIDADE Evangelho Segundo Mateus

Referências
A Bíblia de Jerusalém. Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2012.

AUNEAU, J. et al.. Evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos. São Paulo:


Paulinas, 1985.

BROWN, R. E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004.

KONINGS, J. A Bíblia nas suas origens e hoje. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. 17. ed. São Paulo: Paulus, 1982.

MONASTÉRIO, R. A. O enigma dos sinóticos. In: O’CALLAGHAN, J. (Org.). A


Formação do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 11-25.

MOSCONI, L. O evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus. 11. ed. São


Paulo: Loyola, 2007.

NEIRYNCK, Frans. O problema sinótico. IN: JERÔNIMO, São. Novo


Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e Artigos Sistemáticos. São
Paulo: Paulus, 2011.

OVERMAN, J. A. O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo. São Paulo:


Loyola,1997.

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