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O enriquecimento sem causa

1. Considerações gerais
A proibição do enriquecimento injustificado está consagrada no artigo 473º
que obriga aquele que enriqueceu sem causa justificativa à custa de outrem, a restituir
aquilo com que injustamente se locupletou. Deste modo, o credor da obrigação de
restituir é a pessoa à custa de quem o enriquecimento se deu e o devedor é o sujeito que
injustamente se locupletou à custa dele.

2. Pressupostos
São três os pressupostos da obrigação de restituir:

a - Existência de um enriquecimento.

I. São muitas as situações da vida prática em que se pode verificar o


enriquecimento sem causa, entendido como uma vantagem patrimonial, que tanto pode
consistir no aumento do activo, como na diminuição do passivo ou ainda na poupança
de despesas (prestação errónea de alimentos a outrem, causando uma economia à pessoa
verdadeiramente obrigada) ou na intromissão em direitos alheios: a pessoa que manda
restaurar móveis, pensando erroneamente que são seus; o sujeito que consome bebidas
que se destinavam a um vizinho com o mesmo nome; a publicidade gratuita obtida pela
afixação de cartazes de propaganda dos produtos de um comerciante em prédio alheio; a
estação de televisão que transmite uma representação teatral sem autorização do autor; o
gado que atravessa o terreno para pastar numa propriedade alheia, poupando despesas
com rações ao seu proprietário.

É ainda o caso do credor que cede o seu crédito a terceiro sem avisar o
devedor, fazendo com que este pague ao cedente. Em atenção à boa-fé do devedor, a lei
considera-o desonerado, dando o pagamento por bem feito (artigo 583º/2), apesar de ter
sido efectuado a quem já não era credor. De todo o modo, houve um enriquecimento
injusto do cedente obtido à custa do cessionário, cujo crédito se extinguiu com o
pagamento que o devedor fez ao cedente. Logo, o cedente tem que restituir o
locupletamento sem causa que obteve à custa do cessionário.

O enriquecimento tanto pode resultar de um acto da outra parte, como de


um acto de terceiro ou até do próprio enriquecido.
Em primeiro lugar, a vantagem obtida pelo enriquecido pode decorrer de um
acto praticado pelo empobrecido, como sucede na hipótese prevista no artigo 476º/1,
que trata do caso em que se pagou uma dívida inexistente no momento da prestação.

Pode contudo suceder que o enriquecimento provenha de um acto de


terceiro, como é o caso acima referido do artigo 583.º, em que o cedente é enriquecido
não pelo empobrecido mas pelo cumprimento efectuado pelo devedor de boa-fé. Além
disso, o enriquecimento pode ainda resultar de um acto do próprio enriquecido, como
acontece quando se fuma os cigarros ou se consome o vinho que se destinavam a outra
pessoa. Por conseguinte, o enriquecimento pressupõe sempre uma deslocação
patrimonial, a qual pode, contudo, não provir directamente do empobrecido.

II. Existe forte controvérsia sobre o critério de avaliação do enriquecimento.


Uns entendem que deve ser avaliado num sentido real, como a vantagem patrimonial
concreta de qualquer tipo com valor pecuniário e outros consideram que deve ser feita
num sentido patrimonial, através da comparação entre a situação patrimonial actual e a
situação patrimonial que existiria sem a obtenção do enriquecimento. A concepção mais
adequada à nossa lei é a que entende o enriquecimento como uma vantagem patrimonial
específica e não como um incremento patrimonial global, porquanto o artigo 473º
estabelece que a pessoa enriquecida à custa de outrem, deve restituir aquilo com que
injustamente se locupletou, não se fazendo referência a um incremento patrimonial
global. Estão assim compreendidas no conceito as vantagens patrimoniais de qualquer
tipo, incluindo utilidades imateriais, como a utilização de um veículo. Não podendo
estas vantagens ser restituídas em espécie, terá que se lhes aplicar a restituição do valor,
prevista no artigo 479º/1.

b - Obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;

Em regra, este requisito significa que a vantagem patrimonial obtida pelo


enriquecido resultou do sacrifício económico suportado pelo empobrecido. Nem
sempre, contudo, ao enriquecimento sem causa corresponde o empobrecimento de
outrem. Será o caso do dono da casa onde outrem se instalou indevidamente mas que
não a teria arrendado em quaisquer circunstâncias ou do dono do automóvel com que
um amigo, utilizando abusivamente o veículo, ganhou um avultado prémio numa prova
desportiva mas que não estaria disposto a concorrer a essa competição.
Em nenhum destes casos, se pode falar, em rigor, de uma diminuição
patrimonial do dono da coisa e nem sequer na privação de um aumento dele, uma vez
que o titular não estava disposto a usar ou fruir a coisa nos termos em que o fez o
enriquecido. E todavia não pode duvidar-se que a vantagem do enriquecido foi obtida à
custa de outrem, dado ter sido alcançada com meios ou bens pertencentes a outrem. De
facto, tudo quanto os bens sejam capazes de render, pertence, em princípio, ao
respectivo titular. Por isso, a pessoa que se intromete na utilização de bens alheios e
consegue uma vantagem patrimonial, obtém-na à custa do titular do respectivo direito,
mesmo que este não estivesse disposto a realizar os actos de onde a vantagem proveio.

c - Ausência de causa justificativa para esse enriquecimento:

Este pressuposto significa que o enriquecimento não encontra apoio em


qualquer norma jurídica que o legitime.

3. Carácter subsidiário da obrigação de restituir

A obrigação de restituir o enriquecimento sem causa tem contudo natureza


subsidiária, visto que o artigo 474º diz que não há lugar à restituição por
enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado
ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.

Esta norma significa que a lei pretende que a acção de enriquecimento seja o
último recurso a utilizar pelo empobrecido. Deste modo, está-lhe vedada a sua utilização
no caso de possuir outro fundamento para uma acção de restituição (como sucede
quando há invalidade ou resolução do contrato), quando a lei pretende que a aquisição à
custa de outrem seja definitiva (usucapião) ou quando a lei atribui outros efeitos ao
enriquecimento sem causa (como acontece na modificação do contrato com base em
usura). O carácter subsidiário do instituto não significa, porém, que em concreto não
possa haver concurso de pretensões com a responsabilidade civil, porquanto a obrigação
de indemnizar visa reparar danos e o enriquecimento sem causa propõe-se corrigir
locupletamentos sem cobertura normativa (exemplo: a pessoa que se instalou
gratuitamente em casa de outrem, impedindo que este a arrendasse durante esse período,
tem que indemnizar o proprietário pelos danos que lhe causou e restituir-lhe o
enriquecimento que obteve com o uso gratuito do seu bem).

4. Modalidades de enriquecimento
Deve ter-se em consideração que a cláusula geral do artigo 473º/1 é
demasiado genérica para permitir a resolução de casos concretos. É assim necessário
proceder à divisão do instituto em várias categorias: enriquecimento por prestação,
enriquecimento por intervenção, enriquecimento por despesas realizadas em benefício
de outrem e enriquecimento por desconsideração de um património intermédio.

4. 1. Enriquecimento por prestação. Conceito e modalidades típicas

Esta modalidade respeita a situações em que alguém efectua uma prestação


a outrem, mas se verifica uma ausência de causa jurídica para que possa ocorrer por
parte deste a recepção dessa prestação. Diz-se que há ausência de causa jurídica sempre
que a prestação é realizada com vista à obtenção de determinado fim e esse fim não vem
a ser obtido, devendo assim a prestação ser restituída.

É necessária a verificação de vários requisitos: uma atribuição patrimonial


que produza um enriquecimento no receptor. Em segundo e terceiro lugar, esse
incremento patrimonial deve exigir consciência da prestação e vontade de prestar, sem
as quais não se está perante uma prestação, devendo o caso integrar-se noutra categoria
de enriquecimento sem causa; por exemplo, o porteiro que, por erro, coloca o seu
próprio carvão no aquecimento central da casa, não efectua uma prestação para efeitos
de enriquecimento. Por último, a atribuição patrimonial tem que visar um fim específico
(o incremento do património alheio) que, na maior parte das vezes, corresponde à
execução de um programa obrigacional. Sem este fim específico, não existe prestação,
sendo este precisamente o traço distintivo desta categoria de enriquecimento sem causa.

Existem contudo várias modalidades possíveis de não obtenção do fim


visado com a prestação, que vêm previstas no artigo 473º/2, segundo o qual a obrigação
de restituir tem tradicionalmente por objecto o que for indevidamente recebido ou o que
for recebido em virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito
que não se verificou.

A - A repetição do indevido

A primeira situação a que se refere o artigo 473º/2 corresponde ao


pagamento do indevido, que vem tratado em pormenor nos artigos 476º a 478º.
São pressupostos comuns à repetição do indevido a realização de uma
prestação com intenção de cumprir uma obrigação, sem que exista uma obrigação
subjacente a essa prestação (indevido objectivo) ou sem que esta tenha lugar entre
solvens e accipiens 1(indevido subjectivo) ou deva ser realizada naquele momento
(cumprimento antecipado).

O primeiro pressuposto referido no artigo 476º/1 é que algo tenha sido


prestado com a intenção de cumprir uma obrigação (condictio indebiti); será o caso de
alguém prestar alimentos a outra pessoa, na convicção errónea de estes serem
legalmente devidos por si. Esta figura não se pode portanto aplicar quando o solvens
realiza a prestação, sabendo que a dívida não existe.

O segundo pressuposto é o de que a obrigação não exista no momento da


prestação (indevido objectivo); só assim haverá direito a pedir a sua restituição.

Situação diferente é aquela em que a obrigação existe no momento da


prestação mas respeite a sujeitos diferentes daquele que recebeu ou realizou a prestação.
Fala-se então em indevido subjectivo, que pode respeitar ao receptor da prestação ou ao
autor da prestação.

O primeiro caso ocorre quando a prestação é realizada a terceiro e não ao


verdadeiro credor; quando assim é, a prestação feita a terceiro pode ser restituída, a não
ser que a obrigação se tenha mesmo extinguido, apesar de ser realizada a terceiro, como
sucede nos casos do artigo 770º, em que a prestação produziu o efeito extintivo que
visava, pelo que não se admite a repetição do indevido.

O segundo caso verifica-se quando a prestação é realizada por terceiro e não


pelo verdadeiro devedor. Como o credor recebe aquilo que lhe é devido, não é fácil
obriga-lo a restituir. Logo, a restituição apenas tem lugar nos casos excepcionais dos
artigos 477º e 478º, em que se exige um erro do terceiro, cujos efeitos variam consoante
ele julgue cumprir uma obrigação própria ou julgue estar obrigado perante o devedor a
cumpri-la. Estas limitações visam tutelar o credor de boa-fé, pelo que, conhecendo ele o
erro do autor da prestação, estará sempre obrigado a restituir.

1
Accipiens: o que recebe. Solvens: devedor
A segunda hipótese de pagamento do indevido está prevista no artigo 477º,
que se verifica quando o terceiro cumpre uma obrigação alheia por julgar que é própria;
neste caso, o preceito faz depender a restituição de o erro ser desculpável (A paga a B
uma indemnização porque julgava que C, seu filho, tinha partido uma janela de B; vem
contudo a descobrir-se que tinha sido outra pessoa a partir a janela). Só não existe
direito de repetição quando se verifique alguma das circunstâncias previstas no artigo
477º/1, parte final.

No artigo 478º, regula-se a situação de o terceiro cumprir obrigação alheia


na convicção errónea de estar obrigado para com o devedor a cumpri-la (será a hipótese
de alguém pensar que era fiador de uma certa dívida, quando afinal tinha afiançado
outra). Como neste caso, o fim da prestação não é realizar uma atribuição ao credor mas
antes ao devedor, é a este que o terceiro deve exigir a restituição do enriquecimento,
salvo se o credor conhecia o erro do terceiro, caso em que a sua posição deixa de
merecer tutela.

B - A restituição da prestação por posterior desaparecimento da causa: o artigo


473º/2 inclui ainda entre as modalidades de enriquecimento por prestação, a hipótese de
alguém ter recebido uma prestação em virtude de uma causa que deixou de existir: o
inquilino que paga antecipadamente uma renda e o arrendamento caduca antes de se
iniciar o período a que a renda se reporta; o segurado que recebe da seguradora uma
indemnização pelo furto do seu veículo, o qual vem posteriormente a aparecer ou a
entidade patronal que faz adiantamentos de ordenados futuros ao trabalhador, vindo
entretanto a cessar a relação laboral.

C - Restituição da prestação por não verificação do efeito pretendido: a última


hipótese de enriquecimento sem causa prevista no artigo 473º/2, verifica-se no caso em
que alguém realiza uma prestação em vista de um efeito que não se verificou; será o
caso, por exemplo, de se pagar uma viagem que acaba por não se realizar ou de alguém
pagar o preço de uma compra quando apenas se celebrou um contrato-promessa.

4. 2. O enriquecimento por intervenção. Conceito e situações abrangidas

O enriquecimento sem causa compreende também as hipóteses em que


alguém obtém um locupletamento através de uma ingerência não autorizada no
património de outrem, como sucede nos casos de uso ou fruição de bens alheios
(alguém instala-se gratuitamente em casa de outrem), actos de consumo (vinhos,
charutos), disposição de bens alheios sem que haja culpa de alguém (v. g., venda de
coisa alheia por intermédio de procurador) ou apropriação de prestações reservadas ao
pagamento de contraprestação (v. g. o passageiro que circula em transporte público sem
pagar bilhete, utilizador de um parque de estacionamento que não paga a entrada).

Por consequência, deve ser atribuída ao titular do direito atingido uma


pretensão à restituição do enriquecimento sem causa com base na cláusula geral do
artigo 473º/1, sempre que essa pretensão não seja excluída pela aplicação de outro
regime jurídico. A finalidade visada com a pretensão consistirá precisamente na
recuperação da vantagem patrimonial obtida pelo interventor sempre que, segundo a
ordenação de bens aprovada pelo sistema jurídico, essa vantagem se considere como
pertencente ao titular do direito.

As hipóteses mais comuns de enriquecimento por intervenção respeitam à


ingerência em direitos absolutos, em especial, os direitos reais, os direitos de autor, a
propriedade industrial e os direitos de personalidade (por exemplo, alguém utiliza uma
casa alheia por estar convencido que tem o direito de o fazer, consome-se charutos ou
bebidas que se destinavam a outra pessoa mas que, por engano, lhe foram entregues; o
proprietário de um terreno cultiva parte da propriedade vizinha por estar em erro
desculpável sobre as extremas dos prédios, etc.)

O fundamento dominante desta figura corresponde à teoria do conteúdo da


destinação, segundo a qual qualquer direito subjectivo reserva ao seu titular a
exclusividade do gozo e fruição das utilidades económicas que o bem pode facultar. Há
assim uma ordenação jurídica dos bens que, sendo desrespeitada pela intervenção de
outrem no âmbito exclusivamente destinado ao titular do direito, permite-lhe intentar a
acção de enriquecimento sem causa.

4. 3. O enriquecimento resultante de despesas efectuadas por outrem

É a terceira modalidade de enriquecimento sem causa, a qual compreende


duas categorias: o enriquecimento por incremento de valor de coisas alheias e o
enriquecimento por pagamento de dívidas alheias.

A - Enriquecimento por incremento de valor de coisas alheias


São situações em que alguém efectua despesas (gastos de dinheiro, trabalho
ou materiais) em determinada coisa que não pertence ao autor desse incremento ou
então embora ele saiba que a coisa pertence a outrem, ignora que está a realizar as
despesas com materiais seus e não com materiais alheios. Quando essas despesas
determinarem a aquisição de um benefício por outrem, a lei admite uma acção de
enriquecimento. É o que sucede, por exemplo, nas despesas para produção de frutos
(artigo 1270º/2) ou na restituição das benfeitorias necessárias e uteis ao possuidor nos
termos do artigo 1273º.

B - Enriquecimento por pagamento de dívidas alheias

Esta hipótese verifica-se quando o empobrecido liberta o enriquecido de


certa dívida que este tem para com um terceiro sem ter o objectivo de realizar uma
prestação. Um caso deste género ocorre no artigo 468º/2, onde se prevê que, caso o
gestor deixe de agir em conformidade com o interesse e a vontade do dono do negócio,
este não tem que o reembolsar pelas despesas efectuadas mas responde em relação a ele
nos termos do enriquecimento sem causa.

C – A necessidade de tutela do enriquecido contra o enriquecimento forçado

No âmbito desta modalidade de enriquecimento, pode acontecer que o


enriquecido sofra um locupletamento forçado, porque não só não contribuiu para ele
como também não o desejou.

A lei prevê várias situações de enriquecimento imposto, dando-lhes


respostas diferentes conforme os casos. No âmbito do contrato de empreitada, o artigo
1214º ocupa-se deste problema: se a obra tiver sido alterada sem autorização do dono da
obra, o nº 2 exclui expressamente o dever de restituir o enriquecimento, permitindo que
o dono aceite a obra com as alterações introduzidas pelo empreiteiro; caso tenha havido
uma autorização verbal, o nº 3 obriga então o dono da obra a responder pelo seu
enriquecimento.

Em outros casos, a lei não vai tão longe em matéria de protecção do


enriquecido. É o caso previsto nos artigos 1341º e 1342º, n. º 2, em que a aquisição da
obra, sementeira ou plantação realizada de má-fé em terreno alheio, depende do
reembolso do enriquecimento sem causa por parte do dono do terreno. Este contudo
pode não aceitar a aquisição, exigindo a restituição do terreno ao seu estado anterior,
continuando nessa medida a ser protegido o seu interesse em evitar enriquecimentos
impostos.

Em outras situações, a lei não concede essa tutela ao enriquecido, como


sucede quando a gestão de negócios é exercida em desconformidade com o interesse e a
vontade do dominus, visto que, neste caso, o artigo 468º/2 dispõe que o dominus
responde segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Também no âmbito do reembolso das benfeitorias necessárias e úteis, o


artigo 1273º/2 determina que o possuidor de boa ou má-fé podem exigir a restituição do
enriquecimento quando, para evitar o detrimento da coisa, não possam levantar as
benfeitorias uteis, autorizando assim a imposição de enriquecimento em relação ao
proprietário da coisa.

O problema que se coloca agora diz respeito ao modo como devem ser
resolvidos os casos de enriquecimento forçado que caem fora do âmbito de previsão de
uma qualquer disposição legal. Obrigar o enriquecido a restituir, em qualquer caso, um
enriquecimento obtido contra a sua vontade, contradiz a autonomia privada, princípio
fundamental do Direito das Obrigações, porquanto significa reconhecer a possibilidade
de alguém constituir obrigações noutra esfera jurídica contra a vontade do seu titular.
Mas, por outro lado, permitir que esse locupletamento se consolide na esfera do
enriquecido, também contraria a regra que proíbe, em geral, o enriquecimento
injustificado.

A orientação mais equilibrada sustenta que a tutela contra enriquecimentos


forçados apenas se justifica havendo boa-fé do enriquecido, devendo nesse caso definir-
se o limite do enriquecimento por referência às decisões patrimoniais do enriquecido, de
forma a averiguar se, de acordo com a sua planificação patrimonial subjectiva, o que
veio a receber corresponde a algum enriquecimento ou se não tem qualquer utilidade
para o beneficiado. Com efeito, havendo má-fé, isto é, se o enriquecido tiver
conhecimento da ausência de causa jurídica daquela aquisição, deve proceder à sua
restituição. Havendo boa-fé, resta saber se existiu ou não poupança de despesas; se
houve essa poupança, porque o enriquecido planeava realizar as referidas despesas,
então deve restituir o enriquecimento; caso contrário, ou seja, se o enriquecido não
planeava efectuar aquela despesa ou incremento patrimonial, então não deve ser
obrigado a restituir.
4. 4. Enriquecimento por desconsideração de património

Há casos excepcionais em que a lei desconsidera o património de alguém


com quem o empobrecido entra em relação e demanda directamente um terceiro que
obteve a sua aquisição não a partir do empobrecido mas sim a partir do património
intermédio que se interpõe entre o terceiro e o empobrecido. É precisamente a hipótese
do artigo 481º, onde se prevê que o adquirente por título gratuito de coisa que o
alienante enriquecido devesse restituir, responde na medida do seu enriquecimento.
Neste caso, desconsidera-se um património intermédio, que é o património do alienante,
podendo o empobrecido agir directamente contra o terceiro, que adquiriu a título
gratuito.

5. Objecto da obrigação de restituir o enriquecimento sem causa. Concepção real e


concepção patrimonial da restituição

O artigo 479º/1 estabelece que o objecto da obrigação de restituir


compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em
espécie não for possível, o valor correspondente. Por seu lado, o nº 2 acrescenta que a
obrigação não pode exceder a medida do enriquecimento existente à data da citação
para a acção de restituição ou no momento em que o enriquecido tem conhecimento da
falta de causa do seu enriquecimento ou da falta do efeito que se pretendia obter com a
prestação (artigo 480º, parte final). Deste modo, são dois os problemas que este preceito
suscita e que devem ser estudados.

Em primeiro lugar, importa definir o que se deve entender por “tudo quanto
se tenha obtido”. Há duas acepções possíveis: a primeira é a concepção real do
enriquecimento e diz que o objecto da obrigação de restituir é o valor objectivo da
aquisição, o qual corresponde em regra ao seu valor de mercado. A segunda é a
concepção patrimonial do enriquecimento e diz que o objecto da restituição é o aumento
patrimonial por ela causado, correspondendo à diferença entre o património actual do
enriquecido e aquele que existiria se não tivesse havido enriquecimento. As diferenças
entre o enriquecimento real e o enriquecimento patrimonial podem ser consideráveis,
como decorre do seguinte exemplo:
A passa um mês de férias, sem autorização, em casa de B, que este não iria
utilizar nem arrendar durante aquele período. Por seu lado, se não fosse este facto, A
também não teria gozado férias.

O enriquecimento real corresponde ao uso da casa durante aquele mês; o


valor deste enriquecimento real é, em princípio, o valor de mercado do arrendamento
daquela casa durante esse período. Neste caso, não existe empobrecimento patrimonial
porque B não iria arrendar a casa naquele período e também não existe enriquecimento
patrimonial porque A não teria arrendado outra casa, se não tivesse utilizado aquela.

Deste modo, no âmbito deste grupo de casos mais importantes, que se


prendem com o enriquecimento por intervenção, o interventor deve simplesmente
restituir o valor da exploração dos bens alheios, uma vez que, perante o artigo 479º/1, o
objecto da obrigação de restituição é primariamente dirigido em relação ao que foi
obtido à custa de outrem e não em relação ao incremento patrimonial. Assim, o que
deve ser restituído é sempre o valor da exploração e não os ganhos patrimoniais do
interventor; também não interessa o facto de não haver empobrecimento, porquanto este
instituto se destina a corrigir enriquecimentos e não a suprimir danos. Logo, se alguém
ocupar durante as férias uma casa alheia, como no exemplo acima ou retirar areia do
terreno vizinho, o objecto da restituição será o custo locativo da casa ou o preço da areia
subtraída, ou seja, calcula-se o valor de mercado do bem, sem considerar o seu impacto
no património do adquirente.

Em segundo lugar, o montante da restituição é o valor actual do


enriquecimento que restar à data em que cessa a boa-fé do enriquecido, pelo que se
nessa data não existir qualquer enriquecimento, então nada haverá para restituir. Este
regime tem portanto um aspecto particular bastante importante, visto estar prevista uma
causa de extinção autónoma da obrigação de restituir, que é representada pelo
desaparecimento do enriquecimento cujos efeitos não variam consoante se verifique ou
não a existência de culpa do enriquecido nessa extinção.

A explicação deste regime tão favorável para o enriquecido, resulta do facto


de, estando de boa-fé, ele desconhecer a falta de causa do seu enriquecimento e, por
isso, ignorar que vai surgir uma obrigação de restituir, porque acredita no carácter
definitivo da sua aquisição. Deste modo, a lei não lhe impõe qualquer penalização pelo
facto de ele delapidar o valor do enriquecimento, entendendo que se justifica proteger a
sua confiança na regularidade da aquisição. A lei entende assim que a delapidação do
investimento constitui um risco que cabe ao credor suportar, mesmo em caso de
existência de culpa do devedor. Este regime apenas deixa de se aplicar em caso de má-
fé do enriquecido, prevista no artigo 480º.

Deste modo, se até ao momento em que cessa a boa-fé, o enriquecido fez


despesas conexas com o facto de ter confiado na regularidade da sua aquisição, sofreu
desvantagens patrimoniais, se o objecto da obrigação se perdeu, foi doado ou
consumido, sem que tivesse ficado proveito de outra natureza, tudo isso é atendido para
diminuir a sua responsabilidade pela restituição.

Do mesmo modo, também devem ser abatidos os proventos obtidos por


conta dos factores pessoais do enriquecido, como por exemplo a sua perícia pessoal.
Assim, se alguém utiliza abusivamente o automóvel alheio e concorrer com ele a um
rally, ganhando o primeiro prémio, este valor deve ser deduzido ao montante da
restituição, porque em rigor não foi alcançado à custa do dono da coisa, devendo-se
antes à especial qualidade de piloto do enriquecido.

5. 1. Agravamento da obrigação de restituir

Quando o enriquecido está de má-fé, aplica-se o regime do artigo 480º, pelo


que, além do montante estabelecido no preceito anterior, ele passa também a responder
pelo perecimento ou deterioração da coisa que ele tiver culposamente provocado, pelos
frutos que por sua culpa deixem de ser percebidos e pelos juros legais das quantias a
que o empobrecido tiver direito.

5. 2. Obrigação de restituir no caso de alienação gratuita

Já houve ocasião de tratar da hipótese do artigo 481º/11, onde se prevê que


o adquirente por título gratuito de coisa que o alienante enriquecido devesse restituir,
responde na medida do seu enriquecimento. Falta porém acrescentar que, tendo a
transmissão lugar quando o alienante já estava de má-fé, este responde nos termos do
artigo 480º, bem como o adquirente, caso também esteja de má-fé.

A lei não dá solução para a hipótese de o alienante estar de má-fé e o


terceiro adquirente de boa-fé. Tendo em conta o lugar paralelo do artigo 289.º/2, deve
entender-se que o empobrecido apenas poderá agir contra o terceiro adquirente, quando
não for possível obter a restituição do enriquecimento junto do alienante, em virtude da
insolvência deste.

6. Prescrição do direito à restituição

O artigo 482º estabelece que o direito à restituição do que foi obtido sem
justa causa está sujeito à prescrição de três anos a contar da data em que o credor teve
conhecimento do direito que lhe assiste e da pessoa do responsável. O prazo é curto
porque a lei pretende pressionar o credor a exercer o seu direito logo que reúna os
elementos necessários para agir.

O conhecimento do direito que assiste ao empobrecido e da pessoa


responsável nem sempre acontecem ao mesmo tempo. A pessoa que alimentou uma
criança durante algum tempo, na errada convicção de ser seu filho, pode descobrir em
certo momento o erro de que foi vítima mas só mais tarde vir a saber quem é o
verdadeiro progenitor.

Finalmente, o prazo de três anos não prejudica a prescrição ordinária de


vinte anos (artigo 309º) que se conta a partir da data do enriquecimento, ou seja, mesmo
que o credor não chegue a ter conhecimento do seu direito ou da pessoa do responsável,
opera sempre o prazo da prescrição ordinária.

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