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Justica e Primeira Infancia Guia de Referencia para A Cobertura Jornalistica
Justica e Primeira Infancia Guia de Referencia para A Cobertura Jornalistica
Justiça e
Primeira Infância
Realização: ANDI/RNPI
Série Jornalista Amigo da Criança
Realização: ANDI/RNPI
Realização
REDE NACIONAL PRIMEIRA INFÂNCIA (RNPI) – SECRETARIA EXECUTIVA 2018-2021
Coordenadora: Miriam Izabel Cordeiro (Pragita)
Coordenadora-adjunta: Ana Potyara Tavares
Assessor para Assuntos Legislativos: Vital Didonet
Gerente de Programas: Eduardo Schwarz
Gerente de Comunicação: Luciana Abade
APOIO
OSF – Open Society Foundations
Sumário
06 Apresentação
24 Adoção
47 Educação
57 Hora da Pauta
71 Banco de Fontes
Apresentação
A legislação brasileira é clara: crianças e rio mude. Ao exercer sua função de “vigia”,
adolescentes são prioridade absoluta e o jornalismo desempenha uma atribuição
devem ter seus direitos amplamente asse- fundamental para as sociedades democrá-
gurados. Isso significa que essa parcela da ticas: fiscalizar e cobrar que entes públicos
população deveria estar no topo da escala e privados cumpram com suas responsabili-
de prioridades dos governos, da sociedade, dades e garantam os direitos da população.
da família e, também, do Sistema de Justiça.
É importante registrar que, os primeiros
No seu artigo 277, a Constituição Federal seis anos de vida de um indivíduo preci-
é explícita ao afirmar que é dever de todos sam ser tidos como uma prioridade dentro
garantir à criança e ao adolescente, com ab- da prioridade. O que acontece nessa fase
soluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à da vida resulta na base do desenvolvimen-
alimentação, à educação, ao lazer, à profis- to da pessoa, incidindo diretamente em
sionalização, à cultura, à dignidade, ao res- aspectos cognitivos, sociais e emocionais
peito, à liberdade e à convivência familiar e que acompanharão o indivíduo ao longo
comunitária, além de colocá-los a salvo de de toda a sua caminhada.
toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. Prática jornalística
Contudo, na prática, essa priorização ainda Os cuidados na atividade jornalística, sa-
é uma realidade distante – e o jornalismo bemos, devem ser constantes. Mas, se a
tem muito a contribuir para que esse cená- pauta envolver crianças, essa atenção pre-
cisa ser redobrada. Além disso, é comum exemplo: será que a lei determina que as
a publicação de matérias que dialogam crianças sejam retiradas dos pais caso es-
com os direitos das crianças, ainda que o tejam em situação de rua? Será que o juiz
assunto não as envolva diretamente. Estar acerta quando afasta a criança desses
atento a isso é particularmente importan- pais e a coloca em uma instituição?
te porque, qualquer que seja sua pauta,
ela pode contemplar o olhar da infância, Algumas respostas não estão dadas pela
em especial da primeira infância, aquele legislação, mas esta não deixa dúvida so-
período que vai do nascimento até os 6 bre os direitos das crianças. Por isso, a
anos de idade. Rede Nacional Primeira Infância - RNPI e
a ANDI – Comunicação e Direitos apre-
Mães encarceradas, violência em comu- sentam este guia, especialmente desen-
nidades, mulheres que não podem tra- volvido para contribuir com sua cober-
balhar porque não têm onde deixar seus tura de temas da Justiça relacionados à
filhos, escolas fechadas e sem distribui- primeira infância.
ção de merenda, falta de saneamento
básico... São inúmeros os exemplos de Neste documento, você encontrará uma
pautas que podem, direta ou indireta- apresentação das principais leis e pode-
mente, envolver direitos assegurados rá se aprofundar em alguns temas, como
para as crianças brasileiras e que dialo- adoção, encarceramento de mães de
gam com o Sistema de Justiça. crianças e educação. Aqui também estão
disponíveis sugestões de pauta, aborda-
Sendo o direito uma ciência humana, gens e dicas coletadas junto a profissio-
portanto, passível de interpretação, é nais da Justiça e da Comunicação, além de
importante ter subsídios para a cobertu- um banco de fontes.
ra jornalística de decisões judiciais e te-
mas que envolvem o judiciário. Mais um Boa leitura e bom trabalho!
8 Justiça e Primeira Infância
1 NESTE CAPÍTULO
Conhecer a base legal que garante os direitos das crianças é impor-
tante para o trabalho jornalístico. Veja as principais leis e iniciativas
ligadas à Justiça em relação à primeira infância:
C
omo descrito na apresentação deste e adolescentes tenham os direitos deles como
guia, atender aos direitos de crianças e norte. No entanto, nem todos os profissionais
adolescentes deve ser prioridade de to- da Justiça conhecem com profundidade os di-
dos, incluindo do Estado. A Constituição Fede- reitos das crianças. Por esse motivo, o Conse-
ral, promulgada em 1988, reconheceu a crian- lho Nacional de Justiça (CNJ), instituição públi-
ça como um sujeito de direito e atribuiu a ela ca que tem como objetivo o aperfeiçoamento,
a prerrogativa à proteção integral, que inclui controle administrativo e financeiro do Poder
os direitos fundamentais devidos a todos os Judiciário, tem abraçado a causa das crianças
seres, mas também às especificidades da infân- e investido em divulgação e formação para os
cia e da adolescência. O foco é garantir que ela profissionais no tema (saiba mais na seção que
possa se desenvolver de forma plena e integral. trata do Pacto Nacional pela Primeira Infância).
Se essa garantia de direitos é dever de todos, o Também no jornalismo, conhecer a base legal
Sistema de Justiça não fica de fora e também que garante os direitos das crianças é essen-
deve colocar meninos e meninas em primeiro cial por diversos motivos. O primeiro deles é
lugar. O Estatuto da Criança e do Adolescente ter noções para compreender de que forma o
(ECA), sancionado em 1990, assegura, por exem- Sistema de Justiça tem interpretado a legisla-
plo, sob pena de responsabilidade, a prioridade ção existente e, outro, se as decisões tomadas
absoluta na tramitação de processos e procedi- realmente colocam o interesse das crianças em
mentos jurídicos referentes a eles (artigo 4º). primeiro lugar, em especial as que se encon-
tram na primeira fase da infância, independen-
Em 2016, esse arcabouço legal voltado à in- temente de classe social, etnia, cor da pele ou
fância foi enriquecido pelo Marco Legal da qualquer outra especificidade.
Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016), criado
para estabelecer diretrizes e princípios para É de amplo conhecimento que a legislação brasi-
a formulação de políticas públicas voltadas às leira é bastante avançada no papel, mas, na práti-
crianças de 0 a 6 anos, fazendo deste grupo a ca, ainda há muito a fazer para proteger integral-
prioridade dentro da prioridade. mente as crianças e os adolescentes. Jornalistas
e formadores de opinião podem ajudar nisso!
Toda essa base legal visa permitir que as deci-
sões tomadas pelas instâncias do Poder Públi- Convidamos você a conhecer, a seguir, as princi-
co, famílias e sociedade em relação às crianças pais leis e iniciativas em relação à primeira infância.
Guia de referência para a cobertura jornalística 11
Em suas mais de 200 páginas, o ECA especifica direito ao respeito consiste na inviolabilidade
direitos e estabelece as normas sobre como a da integridade física, psíquica e moral da crian-
lei deve ser aplicada em casos de infração. Há ça e do adolescente, abrangendo a preservação
capítulos, seções e parágrafos dedicados à saú- da imagem, da identidade, da autonomia, dos
de, liberdade, respeito, dignidade, convivência valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos
familiar e comunitária, família natural e substi- pessoais”. E o 240 estabelece que “é crime pro-
tuta, guarda, tutela, adoção, educação, cultura, duzir, dirigir ou contracenar em representação
esporte, lazer, profissionalização e proteção no teatral, televisiva, cinematográfica, fotográfica
trabalho, entre outros. Também trata de assun- ou em qualquer outro meio visual com crianças
tos como programas de privação de liberdade ou adolescentes em cena pornográfica, de sexo
(apreensão de adolescentes que cometeram explícito ou vexatória. Pena: 2 a 6 anos de prisão
infração), obrigações de reparar danos (quan- e multa. Também é crime reproduzir, fotografar,
do o adolescente comete ato infracional com filmar ou registrar, agenciar, recrutar, coagir, ou,
reflexos patrimoniais) e autorização para viajar. de qualquer modo, intermediar a participação
de criança ou adolescente”.
O ECA esvaziou os antigos reformatórios,
abrigos e internatos, e permitiu a ampliação Os artigos evidenciam a necessidade do cuidado
do acesso à escola e a criação de conselhos tu- que deve existir com a veiculação das imagens de
telares e programas de combate à exploração crianças, mesmo no âmbito de uma reportagem.
sexual e ao trabalho infantil. Vamos discutir isso mais à frente, no capítulo 8.
Merecem destaque, no âmbito do jornalismo e 2 Rede Nacional Primeira Infância. Plano Nacional
da mídia em geral, os artigos 17 e 240 do ECA, pela Primeira Infância. Disponível em https://omlpi-
que tratam da preservação da imagem da crian- strapi.appcivico.com/uploads/PNPI.pdf. Acesso em
ça e do adolescente. O primeiro define que “O junho de 2023.
Guia de referência para a cobertura jornalística 13
orientar decisões, investimentos e ações de Em 2020, o PNPI foi revisto e atualizado pela
proteção e de promoção dos direitos das crian- própria RNPI. Mantendo o processo participa-
ças na primeira infância. tivo da edição anterior, a nova versão trouxe
novidades, como a colaboração do Poder Judi-
O foco nos primeiros anos de vida está rela- ciário, e diretrizes alinhadas com concepções
cionado às descobertas da neurociência em mais modernas trazidas por novos instrumen-
relação à plasticidade do cérebro e à influência tos como o Marco Legal da Primeira Infância
e reflexo das experiências vividas nessa fase ao (MLPI), de 2016, e os Objetivos de Desenvol-
longo da vida adulta. Uma criança que, desde vimento Sustentável (ODS), de 2015.
seu nascimento, receba afeto, cuidados adequa-
dos, segurança e tenha interação com o ambien- Entre as diretrizes políticas do PNPI está a
te ao seu redor tem alicerces muito mais firmes aplicação da corresponsabilidade da União, es-
sobre os quais constituir toda sua vida. tados e municípios na garantia dos direitos da
criança na primeira infância, segundo a compe-
O Brasil é signatário de diversos compromis- tência de cada ente, definidas pela Constitui-
sos internacionais pela proteção da infância e ção Federal. Outra é a determinação para que
promoção de políticas e ações para as crianças os estados e o Distrito Federal elaborem seus
e adolescentes, bem como possui uma sólida Planos Estaduais e Distrital, e os municípios,
base jurídica, mas não havia um documento seus Planos Municipais pela Primeira Infância.
que previsse ações e diretrizes para cumprir
esses comprometimentos. Entre 2009 e 2010, O PNPI representou muitos avanços3 no sen-
a Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), or- tido de estimular o poder público a atender às
ganização que à época era formada por cerca necessidades da primeira infância de forma
de 70 instituições da sociedade civil, governo, planejada e estratégica. Os principais aspectos
multilaterais e empresariais (hoje são mais de desse progresso são: concepção holística da
250), abriu ampla consulta pública para a ela-
boração do Plano. Aprovado em 2010 pelo
3 Rede Nacional Primeira Infância e ANDI –
Conselho Nacional dos Direitos da Criança Comunicação e Direitos. Guia para elaboração
e do Adolescente (Conanda), foi acolhido no do Plano Municipal pela Primeira Infância (PMPI)
início de 2011 pela então Secretaria Nacional 2020. Disponível em https://andi.org.br/publicacoes/
de Direitos Humanos, que assumiu a coorde- guia-para-elaboracao-do-plano-municipal-pela-
nação de sua execução. primeira-infancia/. Acesso em junho de 2023.
14 Justiça e Primeira Infância
criança; olhar aberto para ver todas as crian- anos em que governo, representantes da so-
ças e as diferentes infâncias; abordagem inter- ciedade, especialistas de universidades, entre
setorial; abrangência de todos os direitos da outros, debateram e realizaram audiências pú-
criança (em um único plano, com atendimento blicas em todo o país. Por isso, a lei aproxima as
integral e integrado); ampla participação em políticas públicas voltadas à primeira infância
sua elaboração; visão de longo prazo; aprova- àquilo que a ciência aponta como necessidades
ção pelo poder legislativo; plano de Estado. essenciais para o desenvolvimento infantil.
Para conhecer mais sobre a Rede Nacional Pri- De acordo com o artigo 5º do Marco Legal, as
meira Infância (RNPI), acesse o site primeirain- áreas prioritárias para políticas públicas para a
fancia.org.br. primeira infância são: saúde; alimentação e nu-
trição; educação infantil; convivência familiar e
comunitária; assistência social à família; cultu-
MARCO LEGAL DA ra; brincar e lazer; meio ambiente; bem como a
PRIMEIRA INFÂNCIA proteção contra toda forma de violência e de
Lei nº 13.257/2016, estabelece diretrizes para pressão consumista, prevenção de acidentes
a criação de políticas, planos, programas e ser- e adoção de medidas que evitem a exposição
viços para a primeira infância. A fim de garantir precoce à comunicação mercadológica.
o desenvolvimento da pessoa até os seis anos,
o Marco Legal da Primeira Infância é uma das O principal diferencial do Marco é trazer dire-
leis que resultaram em alterações no ECA ao trizes para “cuidar de quem cuida” da criança, ou
longo dessas três décadas (as outras tratam, por seja, trata também dos direitos da família. Nesse
exemplo, de educação sem castigo físico, medi- sentido, traz avanços importantes como a am-
das socioeducativas para adolescentes que co- pliação da licença-maternidade e da licença-pa-
meteram infrações e direitos a crianças e ado- ternidade e o direito de mulheres gestantes ou
lescentes vítimas ou testemunhas de violência). mães de crianças pequenas de cumprirem pri-
são provisória em casa (veja mais sobre isso no
O Marco estabelece garantias como direito a capítulo Prisão de gestantes e mães). No entanto,
ter mãe, pai ou cuidador em casa nos primeiros ainda é um grande desafio colocar esses direitos
meses de vida e o direito de brincar. Ele é re- em prática. Vagas em creches, por exemplo, se-
sultado de um processo participativo de cinco gue sendo uma questão problemática.
Guia de referência para a cobertura jornalística 15
2 NESTE CAPÍTULO
O jornalismo tem o papel social de evidenciar os direitos das crian-
ças e as ações para promovê-los, bem como denunciar situações de
omissão. Saiba que:
N
o jornalismo, existe a máxima de que Por mais mudanças – entre elas alguns avan-
todas as questões humanas podem, de ços – que tenha havido no cenário social
alguma forma, servir de matéria-prima e político do país desde a promulgação da
para o ofício. Logo, todos os temas de interesse Constituição, em 1988, muito ainda preci-
social e coletivo são passíveis de serem abor- sa ser feito para que as crianças brasileiras
dados com precisão e respeitando a busca pela tenham seus direitos respeitados e, assim,
verdade dos fatos que, no bom jornalismo, se oportunidades iguais para alcançarem seu
dá pela pluralidade de vozes5. pleno desenvolvimento, independentemen-
te de etnia, condição socioeconômica, local
Nós, da ANDI e da RNPI, acreditamos que a de moradia, estado de saúde, deficiência ou
imprensa é uma ferramenta fundamental de qualquer outra especificidade.
primento deles, são pautas que se encaixam do Marco Legal da Primeira Infância7 apon-
no papel social da profissão do jornalista – e tam que, em 2022, 48% das crianças de 0 a 5
que deveriam ser prioritárias, conforme prevê anos viviam em situação de pobreza (vivendo
o Código de Ética6 da profissão, da Federação em famílias com renda per capita de até meio
Nacional dos Jornalistas. Seu artigo 6º diz que salário mínimo) e um quarto delas se encon-
é dever do jornalista “defender os direitos do trava em pobreza extrema (vivendo em famí-
cidadão, contribuindo para a promoção das ga- lias com renda per capita de até um quarto de
rantias individuais e coletivas, em especial as salário mínimo). Além disso, 42% da popula-
das crianças, adolescentes, mulheres, idosos, ção nessa faixa etária morava em lugares sem
negros e minorias”. serviços de saneamento básico. Isso significa
que cerca de metade das crianças do grupo
O problema é que quanto mais novas forem as que, por lei, é prioritário em relação à assegu-
crianças e pertencentes a grupos minoritários, ração de seus direitos, não vive em condições
parece que mais invisíveis elas são. Em diver- adequadas que garantam uma boa saúde,
sos levantamentos que realizamos sobre a dignidade e bem-estar. Esse desrespeito à le-
atenção da mídia brasileira à primeira infância gislação deveria ser considerado um forte cri-
(0 a 6 anos), concluímos que criança enquanto tério de noticiabilidade8, além de atender ao
um ser integral, em sua totalidade, como cida- fundamento de ser de interesse público.
dã e ser de direitos, pouco aparece na mídia e
quase nunca é ouvida.
7 Rede Nacional Primeira Infância (RNPI). Observa
Outra questão de suma importância, porém – Observatório do Marco Legal da Primeira.
pouco difundida nos veículos de comunica- Disponível em: https://rnpiobserva.org.br/. Acesso em
ção, diz respeito à condição socioeconômica julho de 2023.
precária de muitas crianças com até 6 anos de 8 Critérios de noticiabilidade “correspondem ao
conjunto de critérios, operações e instrumentos
idade no país. Informações do Observatório
com os quais os aparatos de informação enfrentam
a tarefa de escolher cotidianamente, de um número
imprevisível e indefinido de acontecimentos,
uma quantidade finita e tendencialmente estável
6 Fenaj. Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. de notícia”, conforme WOLF, M. Teorias das
Disponível em: https://fenaj.org.br/codigo-de-etica- comunicações de massa. São Paulo: Ed. Martins
dos-jornalistas-brasileiros/. Acesso em julho de 2023. Fontes, 3ª Ed. 2008.
20 Justiça e Primeira Infância
Noticiar os bons e maus exemplos de projetos, ças e Justiça. Algum caso de adoção que tenha
ações e políticas públicas que envolvem a in- dado um problema, pai famoso que não pagou
fância demanda, por parte do jornalista, certo pensão para o filho, casos envolvendo diferen-
conhecimento da legislação brasileira a respei- tes formas de violência contra uma criança, en-
to. Só com conhecimento é possível adotar a tre outras possibilidades.
única abordagem aceitável no que diz respeito
às crianças: aquela que está a favor de seus di- No entanto, o que a mídia pouco discute é a
reitos, que abrangem desde a necessidade de conjuntura em torno dos casos isolados que
receber cuidados e afeto, preferencialmente reporta. É verdade que, na Justiça, a maio-
de sua família de origem, acesso a serviços de ria dos casos são individuais, excetuando-se
saúde e educação, uma vida livre dos diversos aqueles de ações coletivas. Ainda assim, a co-
tipos de violência, entre outros. bertura desses temas pode ser o gancho para
a discussão de assuntos mais amplos que po-
A imensa vulnerabilidade em que se encontram dem impactar toda a sociedade ou boa parte
as crianças brasileiras só será reduzida a partir dela e ter influência na garantia dos direitos
da mobilização do poder público e da adesão de das crianças. É essencial que a coletividade
toda a sociedade à causa da infância. Acredita- seja bem-informada sobre quais casos são
mos que, nesse esforço conjunto, o jornalismo apenas uma exceção à regra e quais são re-
pode, por meio da inclusão de mais pautas sobre presentativos da maioria.
a primeira infância, ampliar a conscientização
da opinião pública sobre a relevância dessas Retomando o exemplo de adoção: de 2019
temáticas e colocá-las no centro do debate para até o início de janeiro de 2021, quase 9 mil
estimular e fiscalizar a implementação de ações- crianças e adolescentes foram adotados, o
-chave para o desenvolvimento infantil e para a que é bastante positivo. Mas, muitas vezes, a
evolução da nossa sociedade. imprensa privilegia dar visibilidade a um caso
isolado e problemático, como uma criança que
foi “devolvida”. Isso pode até render mais visu-
DO SINGULAR PARA O PLURAL alizações para o site ou mais audiência na TV
pela situação dramática apresentada – por-
Se puxar pela memória, todo mundo se lembra que é a excepcionalidade, como a tal história
de uma reportagem de telejornal, de veículo de de que é notícia quando o homem morde o ca-
notícias impresso ou on-line que envolva crian-
Guia de referência para a cobertura jornalística 21
chorro e não o contrário. Mas casos isolados sintomas e outros aspectos da doença, evi-
podem beirar a desinformação se não estive- denciou bastante as consequências para os
rem bem contextualizados. Um caso de ado- bebês das grávidas que foram contaminadas.
ção malsucedido apresentado com destaque Seis anos depois, ainda há, eventualmente,
pelos meios de comunicação pode fazer com reportagens sobre as crianças que nasceram
que pessoas aspirantes à adoção desistam da com microcefalia naquela época e como isso
ideia, acreditando que o caso não seja exce- afetou e interfere em seu desenvolvimento.
ção, mas regra. Outro exemplo evidente é o da autorização
para vacina de crianças a partir de 5 anos con-
Por outro lado, contar a história de uma famí- tra a Covid-19 e as reportagens mostrando as
lia e suas crianças morando em locais sem as crianças que faleceram pela doença – casos
adequadas condições sanitárias e acesso a ser- que haviam sido invisibilizados pela mídia até
viços de saneamento básico não é apenas falar então. Ainda que sejam minoria entre os casos
de um exemplo isolado, mas permite mostrar a fatais, as crianças saudáveis também corre-
realidade de 42% das crianças com até 5 anos, ram risco com a pandemia.
bem como de suas famílias ou responsáveis,
confome citado anteriormente, e contribui Essas são pautas óbvias sob o enfoque da
para trazer à discussão pública um flagelo que infância, no entanto, toda e qualquer pauta
atinge a tantos na sociedade brasileira. pode ser olhada sob essa lupa. Por exemplo:
1. crise econômica e desemprego - como está
Há, portanto, uma vasta diferença entre esses a segurança alimentar das crianças cujos pais
exemplos de pauta citados. não conseguem trabalho?; 2. garimpo ilegal
na Amazônia – a que tipo de violências as
crianças da região estão expostas devido à ile-
A LUPA DA PRIMEIRA INFÂNCIA galidade? As crianças indígenas estão sendo
atendidas em seu direito de receber assistên-
A epidemia do zika vírus no Brasil, entre os
cia à saúde?
anos de 2015 e 2016, deixou um exemplo,
ainda que triste, sobre como todas as pautas Trata-se aqui de assuntos relacionados aos
podem ser vistas pela lupa da infância ou, ain- direitos das crianças. É compreensível que o
da mais, da primeira infância. A cobertura da jornalista, a maior parte das vezes responsável
imprensa, à época, além de abordar a causa,
22 Justiça e Primeira Infância
Adoção
3 NESTE CAPÍTULO
A partir deste ponto, vamos a explicar a legislação para alguns te-
mas urgentes da primeira infância, seus desafios e problemas e o
cuidado que deve ter a abordagem jornalística. Para começar, este
capítulo abordará a questão da adoção.
• Adoção é uma excepcionalidade. Pelas leis existentes, a prio-
ridade é empenhar esforços para que a criança fique com a
família original (incluindo a extensa ou a ampliada).
• A adoção só acontece quando ela atende ao melhor interes-
se da criança e após todos os recursos possíveis para rein-
serção da criança à família de origem terem sido esgotados.
• Saiba o que é adoção à brasileira.
• É importante lembrar que a adoção é um processo para be-
nefício das crianças e não de casais em busca de filhos.
Guia de referência para a cobertura jornalística 25
• O perfil desejado pelos preten- formar a sociedade sobre eles e, assim, contri-
dentes a pais e o perfil das crianças buir para que os direitos de meninas e meninos
aptas a serem adotadas, na maioria sejam efetivamente respeitados.
das vezes, não é compatível, e isso
explica a falsa impresão de que o
processo é mais demorado do que FOCO NAS CRIANÇAS
realmente é.
A adoção é um ato jurídico que reconhece
• O processo de adoção demanda como filho uma criança ou adolescente inde-
tempo e preparo, seguindo regras pendentemente de ter laços consanguíneos
e etapas estabelecidas pelos ór- com os novos pais. A definição, de acordo com
gãos competentes. o artigo 41 do Estatuto da Criança e do Ado-
lescente (ECA), é:
N
tando, com os mesmos direitos e deveres, in-
o ECA está a base jurídica para cinco di- clusive sucessórios, desligando-o de qualquer
reitos fundamentais da infância e ado- vínculo com pais e parentes, salvo os impedi-
lescência: à vida e à saúde; liberdade, mentos matrimoniais.
respeito e dignidade; convivência familiar e co-
munitária; educação, cultura, esporte e lazer;
Essa é a definição jurídica de um ato que envol-
e profissionalização e proteção no trabalho. O
ve vidas, sentimentos e, acima de tudo, direitos.
Marco Legal da Primeira Infância aponta, com re-
Por mais que pareça uma relação óbvia – há uma
gras e princípios, o caminho para a materialização
criança ou adolescente precisando de família e
desses direitos para as crianças de até 6 anos.
há muitas famílias querendo filhos –, há muitos
meandros por trás de cada história de adoção
Ainda que esse público seja a prioridade para que, na cobertura geral da mídia, são ignorados.
as políticas públicas e ações, muitas vezes a
Justiça é solicitada a resguardar seus direi- O primeiro deles é o direito supremo da crian-
tos. Por isso, a partir deste capítulo, trazemos ça à convivência familiar. O Marco Legal da
alguns dos temas nos quais isso acontece e de Primeira Infância (Lei nº 13.257, de 2016)
que maneira a cobertura jornalística pode in- deu uma nova redação ao artigo 19 do ECA,
26 Justiça e Primeira Infância
O parágrafo 3º dessa mesma lei reforça isso ao Vale ressaltar novamente: a adoção ocorre
definir que a manutenção ou a reintegração de após todos os recursos possíveis para reinser-
criança ou adolescente à sua família terá prefe- ção da criança à família de origem terem sido
rência em relação a qualquer outra providên- esgotados. O prazo para que a criança possa
cia. Ela será incluída em serviços e programas ser acolhida pela família de origem, no entanto,
de proteção, apoio e promoção apenas quando não é indeterminado. A Justiça tem por norma
a permanência com a família não for possível. acelerar processos que envolvam pessoas com
menos de 18 anos. O ECA determina o prazo
Há que se vencer o preconceito de que apenas de 90 dias para busca à família estendida (para
famílias com boas condições financeiras têm o além da mãe e pai), desde que a criança tenha
necessário – ou melhores conjunturas – para algum tipo de vínculo afetivo com esse paren-
cuidar de um filho. Os direitos que as crianças te. Depois disso, dá-se início ao processo de
têm, como cuidado, brincar, proteção, educa- destituição do poder familiar.
ção, atenção à saúde, convívio familiar e co-
munitário, segurança, entre outros, previstos
tanto no ECA como na Declaração Universal
dos Direitos da Criança, não estão vinculados A adoção é um processo para
a condições econômicas, sociais ou culturais.
benefício das crianças e não de
Nesse sentido, o Marco Legal reconhece que a
família tem direito à assistência social a fim de
casais em busca de filhos.
beneficiar a criança.
Guia de referência para a cobertura jornalística 27
A família de origem inclui a família extensa prioridade, nem sempre os prazos são
ou ampliada, aquela que vai além da unidade possíveis de serem cumpridos.
pais e filhos. É formada por parentes próximos
(avós e tios, por exemplo) com os quais a crian- • A permanência da criança com a família
ça ou o adolescente tem convivência e vínculos ampliada só se dará se esse for do me-
de afinidade e afetividade, segundo o artigo 25 lhor interesse da criança e do adoles-
do ECA. Mas a lei estabelece também limites cente e permitir sua proteção integral.
para essa situação.
• O ECA trazia originalmente, em seu arti-
• A busca por alguém da família amplia- go 19, a escrita “assegurada a convivên-
da para ser o responsável pela criança cia familiar e comunitária, em ambiente
é de até 90 dias em casos de entrega livre da presença de pessoas dependen-
voluntária da criança pela mãe ou pais tes de substâncias entorpecentes”. O
para a justiça. Depois disso, o proces- trecho foi atualizado a partir do Marco
so de destituição do poder familiar co- Legal para “assegurada a convivência
meça a correr e tem o prazo limite de familiar e comunitária, em ambiente que
até 120 dias para conclusão. Uma vez garanta seu desenvolvimento integral”.
concluído, o prazo ideal para a criança Ou seja, a dependência química, assim
aguardar em acolhimento institucional como a pobreza, tampouco é motivo
(abrigo) para adoção é de no máximo para destituição do poder familiar, des-
18 meses. Embora processos envol- de que a criança tenha seus direitos pre-
vendo crianças e adolescentes sejam servados e esteja livre de ameaças.
28 Justiça e Primeira Infância
criança podem perder a guarda e serem proces- se sobrepõe ao da família extensa. Ou seja, nes-
sados, já que cometeram um crime que pode ser ses casos, não é feita a busca pelos familiares.
tipificado como falsidade ideológica ou até, em
alguns casos, quando envolve intermediários Também está garantido à mãe o direito de vol-
ou dinheiro, como tráfico de crianças. O mes- tar atrás em sua decisão até 10 dias após a sen-
mo vale para casos em que é feito o registro da tença de extinção do poder familiar.
criança diretamente no nome do casal que a re-
cebeu. Há, ainda, casais que aguardam por me- A criança que é desvinculada passa a fazer par-
ses ou anos antes de pedir a guarda, tentando te, instantaneamente, do Sistema Nacional de
forçar o judiciário a dar a guarda e adoção defi- Adoção e Acolhimento, sendo vinculada ao pri-
nitiva sob a alegação de que a criança já está ha- meiro pretendente habilitado que aguarde por
bituada à família e laços afetivos foram criados. uma criança no mesmo perfil.
4 NESTE CAPÍTULO
Como a legislação diz que a criança tem direito à convivência fami-
liar, o mais comum é que um bebê fique com a mãe encarcerada até
que complete seis meses de idade. Mas há crianças maiores vivendo
nas prisões tendo seus direitos, e também das suas mães, ignorados.
• No caso de bebê ou filho(a) pequeno(a), a criança deve per-
manecer com a mãe na prisão se for o melhor para ela, desde
que haja um ambiente e serviços apropriados, como creche.
• A mãe tem o direito de indicar com quem ela quer que seu
filho fique. Caso não seja possível, a criança irá para uma ins-
tituição de acolhimento. Mas tem direito à convivência com
a mãe.
• O Marco Legal da Primeira Infância afirma que gestantes,
mulheres com filhos até 12 anos ou responsáveis por crian-
Guia de referência para a cobertura jornalística 33
ças ou pessoas com deficiência podem Não precisaria ser assim, porque o Marco Legal
ter a prisão preventiva substituída por da Primeira Infância diz que as gestantes, mu-
prisão domiciliar. lheres com filhos até 12 anos ou responsáveis
por crianças ou pessoas com deficiência podem
• As mães já julgadas e condenadas têm
ter a prisão preventiva substituída por prisão
direito à progressão especial para um
domiciliar se o juiz assim autorizar. E mais: mes-
regime menos rigoroso, mas é preciso
mo após o julgamento, alguns juízes entendem
manifestação por parte do Ministério
que não haveria motivo para não continuar se-
Público e do defensor.
guindo a mesma lógica e, portanto, as mães tam-
• Um habeas corpus coletivo, requerido bém poderiam cumprir pena domiciliar.
pelo Coletivo de Advogados em Direi-
tos Humanos (CADHu), foi concedido Para isso, bastaria que fosse seguido o arti-
em 2018 em favor de todas as gestantes go 318-A, que é bastante completo e traz as
e mães presas preventivamente. condições para que a prisão preventiva seja
convertida em domiciliar: 1. Que a mulher não
tenha cometido crime com violência ou grave
A
Declaração Universal dos Direitos ameaça a pessoa; 2. Não tenha cometido crime
Humanos afirma, no primeiro trecho contra seu filho ou dependente. Nesses casos,
de seu artigo 1º, que “todos os seres a lei entende que ela não representa perigo à
humanos nascem livres e iguais em dignidade sociedade e a seus filhos e pode cumprir a pre-
e direitos”. Mas o direito ao nascimento livre ventiva em casa. E essa decisão cabe ao juiz.
é negado a centenas de bebês que nascem de
mães encarceradas no Brasil. Dados do Sisde- Pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de
pen10, de dezembro de 2019, revelam que 297 Justiça (CNJ)11, em parceria com o Programa
bebês de até seis meses viviam encarcerados
com suas mães no país. Eram, no total, 1.446
crianças pagando pena junto com a mãe. 11 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mulheres
presas e adolescentes em regime de internação que
estejam grávidas e/ou que sejam mães de crianças até
10 Secretaria Nacional de Políticas Penais. Sisdepen. 6 anos de idade. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/
Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/ wp-content/uploads/2022/04/eixo1-primeira-infancia-
servicos/sisdepen. Acesso em julho de 2023. relatorio-final.pdf. Acesso em agosto de 2023.
34 Justiça e Primeira Infância
das Nações Unidas para o Desenvolvimento do delito e da agente, foram identificadas ques-
(Pnud), mostra que essa é uma legislação que tões como o alto grau de resistência dos magis-
não tem sido integralmente aplicada no Brasil. trados às audiências de custódia e a cultura do
Segundo o levantamento, em 2020, 31,6% das encarceramento, explicitada em argumentos
gestantes ouvidas em audiências de custódia como a sensação de impunidade que a medi-
tiveram a prisão preventiva decretada. Além da gera junto à população; o favorecimento do
disso, das 32 unidades prisionais pesquisadas, aliciamento de mulheres grávidas ou mães; e
somente em duas era possível fazer os exames que o convívio com a mãe acusada de infração
pré-natal. Em 23, as mulheres podiam ser en- penal pode ser um risco ao bem-estar e à inte-
caminhadas a locais externos de exames e em gridade da criança.
sete não havia qualquer possibilidade de acom-
panhamento médico da gestação.
A CRIANÇA ENCARCERADA
Para conhecer as variáveis que influenciam na con-
cessão – ou não – da prisão domiciliar a mulheres Conforme tratado no capítulo sobre adoção, a
e adolescentes grávidas ou mães de crianças com legislação brasileira diz que a criança tem direi-
até 12 anos presas preventivamente, a ANDI – to à convivência familiar e a prioridade é que
Comunicação e Direitos e a Rede Nacional Primei- ela seja mantida em sua família de origem. Um
ra Infância (RNPI), em parceria estratégica com o bebê que nasce de uma mãe encarcerada, no
Instituto Alana, entrevistaram12 juízes e juízas das entanto, não tem esse direito exercido a menos
Varas de Infância e Juventude e Varas Criminais, que o advogado de defesa ou a Defensoria Pú-
de Audiências de Custódia ou especializadas. blica batalhe muito por isso.
Entre os resultados encontrados, além de as- As possibilidades para que o bebê tenha direito
pectos previstos em lei, como a periculosidade ao convívio com sua mãe é permanecer encar-
cerado com ela. Nesse caso, o mais comum é
que eles fiquem juntos até que ele complete seis
12 ANDI/RNPI. Observa Analisa: A aplicação do meses, ou seja, o tempo mínimo de amamenta-
direito à prisão domiciliar de mulheres gestantes ção, direito garantido pelo artigo 9º do ECA:
ou mães cumprindo prisão preventiva. Disponível
em: https://rnpiobserva.org.br/biblioteca. Acesso em “O poder público, as instituições e os
agosto de 2023. empregadores propiciarão condições
Guia de referência para a cobertura jornalística 35
sua regra 49, traz: “Decisões para autorizar os/ Apenas 10% dos pais cuidam dos filhos14 quan-
as filhos/as a permanecerem com suas mães na do a mãe está encarcerada e ela tem pouco po-
prisão deverão ser fundamentadas no melhor der de decisão sobre o futuro deles, conforme
interesse da criança. Crianças na prisão com descreve o trecho acima, escrito por Drauzio
suas mães jamais serão tratadas como presas”. Varella em seu livro Prisioneiras.
Nesse documento, assim como na legislação É comum que as crianças, quando retiradas das
brasileira, o filho permanece com a mãe na pri- mães, seja após os seis meses de aleitamento
são se for o melhor para ele, desde que haja um ou quando a mãe vai presa e não tem com quem
ambiente e serviços propícios para isso. Che- deixar os filhos, sejam institucionalizadas em
car se esse direito vem sendo cumprido para as abrigos. Isso porque a mulher presa tem seu
crianças em penitenciárias pode ser uma boa direito familiar suspenso. Após o cumprimento
pauta para uma reportagem, que tal? Mais uma da pena, ela volta a ter esse poder.
sugestão: quantas mães dessas 1.446 crianças
não teriam direito a prisão domiciliar porque A mãe, no entanto, tem o direito de indicar, via
ainda não foram julgadas? Defensoria Pública, com quem gostaria que
seu filho ficasse. Se não houver essa indicação,
LONGE DO COLO MATERNO mas um familiar próximo se manifestar a favor
de assumir a responsabilidade pela criança, ou
“Mães de muitos filhos, como é o caso da mesmo um vizinho, conhecido, alguém do con-
maioria, são forçadas a aceitar a solução vívio da família, é possível que ele obtenha o
de vê-los espalhados por casas de paren- direito à guarda. A mãe tem o direito de saber
tes ou vizinhos e, na falta de ambos, em a quem está sendo concedida a guarda de seu
instituições públicas sob a responsabili- filho e a Defensoria pode realizar a defesa da
dade do Conselho Tutelar, condições em mulher, indicando se ela concorda ou não.
que podem passar anos sem vê-los ou
até perdê-los para sempre” – Prisionei-
ras13, livro de Drauzio Varella, página 45
14 CÂMARA, Milena. Crianças e o cárcere:
um problema de todos. Disponível em: https://
13 VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. 1ª ed. São Paulo: diariodopoder.com.br/opiniao/criancas-e-o-carcere-um-
Companhia das Letras, 2017. problema-de-todos. Acesso em agosto de 2023.
Guia de referência para a cobertura jornalística 37
Caso não haja esse familiar disponível, a crian- crianças ou pessoas com deficiência, quando
ça irá para uma instituição de acolhimento. Se satisfeitos, cumulativamente, os seguintes
a pena a ser cumprida pela mãe for longa, au- requisitos (i) não ter cometido crime com vio-
menta a probabilidade de o Ministério Público lência ou grave ameaça a pessoa; (ii) não ter co-
proceder com a perda do direito familiar para metido o crime contra seu filho ou dependente;
que a criança tenha a possibilidade de conviver (iii) ter cumprido ao menos 1/8 (um oitavo) da
com outra família por meio da adoção. A mãe pena no regime anterior; (iv) ser primária e ter
deve ser informada a respeito, mas tende a bom comportamento carcerário, comprovado
perder o paradeiro do filho. pelo diretor do estabelecimento; (v) não ter
integrado organização criminosa”.
No entanto, mesmo abrigada, a criança tem
direito à convivência com a mãe, especial- Parece simples, mas a lei não se aplica auto-
mente nos casos de penas mais curtas. Dessa maticamente. Ela prevê que esse direito só
maneira, a equipe do abrigo deve levá-la para poderá ser considerado quando houver mani-
visitar a mãe, conforme o artigo 19, parágrafo festação por parte do Ministério Público e do
4º do ECA: “Será garantida a convivência da defensor. Essa necessidade de intervenção
criança e do adolescente com a mãe ou o pai tem sido uma barreira para que as mães con-
privado de liberdade, por meio de visitas pe- sigam esse direito. Segundo a pesquisa “Imple-
riódicas promovidas pelo responsável ou, nas mentação da prisão domiciliar para mulheres
hipóteses de acolhimento institucional, pela no Brasil à luz da lei de acesso à informação15”,
entidade responsável, independentemente lançada em 2021 pelo Instituto Terra, Trabalho
de autorização judicial”. e Cidadania (ITTC), 43,76% das mulheres que
teriam direito à progressão de pena permane-
cem presas mesmo tendo filhos.
E A MÃE QUE JÁ FOI JULGADA?
O parágrafo 2º do artigo 112 da Lei de Execu-
ção Penal prevê que as presas mães de crian-
15 ITTC. Implementação da prisão domiciliar
ças de até 12 anos tenham direito à progres- para mu- lheres no Brasil à luz da lei de acesso à
são especial para um regime menos rigoroso informação Disponível em: https://ittc.org.br/prisao-
(por exemplo, a prisão domiciliar) se “à mulher domiciliar-para-mulheres-no-brasil-lei-de-acesso-a-
gestante ou que for mãe ou responsável por informacao/. Acesso em agosto de 2023.
38 Justiça e Primeira Infância
5 NESTE CAPÍTULO
• Em 2014, a Lei Menino Bernardo (no 13.010), ou Lei da Pal-
mada proibiu o uso de castigos físicos ou tratamentos cruéis
e degradantes contra crianças e adolescentes no Brasil. Sai-
ba o que foi este caso.
A
Lei Menino Bernardo, conhecida como Lei
da Palmada, é a de número 13.010/2014 A avó materna chegou a denunciar maus-tratos fí-
e proibiu o uso de castigos físicos ou tra- sicos, um suposto caso de tentativa de asfixia, mas
tamentos cruéis e degradantes contra crianças a denúncia não foi levada à frente. Em dezembro
e adolescentes no Brasil. É responsável por alte- de 2013, poucos meses antes de ser morto, Ber-
rações em trechos do ECA e do Código Civil (Lei nardo foi sozinho ao Fórum da cidade e pediu para
nº 10.406/2002). A lei foi promulgada no mesmo falar com o juiz. Diante deste, relatou que sofria
ano em que Bernardo Boldrini, uma criança de maus-tratos, era xingado pela madrasta, não podia
11 anos, que vivia em Três Passos (RS), foi morto lhe dirigir a palavra, não podia brincar com a irmã
pela madrasta. ou entrar na piscina de casa. Pediu ao juiz que lhe
desse uma nova família – que ele próprio escolhe-
O menino exemplifica bem por que profissionais ra entre os conhecidos na cidade.
envolvidos com o tema da violência na infância
usam o termo no plural: “violências”. Órfão por A promotora da cidade ingressou com uma me-
parte de mãe, vivia com o pai médico e a madras- dida protetiva de troca provisória da guarda de
42 Justiça e Primeira Infância
Bernardo, sugerindo que ele ficasse com a avó gradante e de maus-tratos contra criança
materna. Ao receber a ação do Ministério Pú- ou adolescente serão obrigatoriamente
blico, o juiz local chamou pai e filho para uma comunicados ao Conselho Tutelar da res-
reconciliação em 11 de fevereiro. O Conselho pectiva localidade, sem prejuízo de outras
Tutelar não foi comunicado. providências legais. (Redação dada pela
Lei nº 13.010, de 2014)”
Em 4 de abril, Bernardo foi morto por super-
dosagem de medicação, dada de forma oral e O ECA traz ainda, no mesmo artigo, parágrafo
intravenosa pela madrasta enfermeira. Ela, o segundo:
pai e duas pessoas que ajudaram a concretizar
o crime foram julgados e condenados. “Os serviços de saúde em suas diferen-
tes portas de entrada, os serviços de
Segundo trecho de reportagem16 do jornal Zero assistência social em seu componente
Hora, de 27/09/2014: “Em um dos relatórios da especializado, o Centro de Referên-
rede de proteção sobre Bernardo, consta: ‘A co- cia Especializado de Assistência Social
munidade de Três Passos, em geral, sabe que Ber- (Creas) e os demais órgãos do Sistema
nardo é negligenciado pelo pai e pela madrasta’”. de Garantia de Direitos da Criança e do
Adolescente deverão conferir máxima
PROTEÇÃO LEGAL À CRIANÇA prioridade ao atendimento das crianças
na faixa etária da primeira infância com
suspeita ou confirmação de violência de
Após a aprovação da Lei Menino Bernardo, o
qualquer natureza, formulando projeto
ECA teve seu artigo 13 modificado para a se-
terapêutico singular que inclua interven-
guinte redação:
ção em rede e, se necessário, acompa-
“Os casos de suspeita ou confirmação de nhamento domiciliar” (incluído pela Lei
castigo físico, de tratamento cruel ou de- nº 13.257, de 2016)”.
crianças, ainda mais na primeira infância, sob o Óbitos em decorrência de agressão, por
jugo de diversos tipos de violência e sem o so- faixa etária, nos últimos três anos:
corro e a proteção aos quais têm direito.
Educação
6 NESTE CAPÍTULO
• Estudos mostram que 90% do cérebro humano se forma até
os seis anos de idade e é na primeira infância que as compe-
tências sociais e emocionais se constroem.
• Oferecer uma educação de qualidade ao longo dos primei-
ros seis anos de vida é contribuir para um futuro menos de-
sigual socialmente.
• A legislação brasileira defende o investimento em educação
na primeira infância, por meio da Constituição Federal, do
ECA, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), do Marco Legal da Primeira Infância, entre outros.
• O Marco Legal traz diretrizes para conectar o que é reco-
mendado pela ciência para a evolução dos indivíduos até os
seis anos e as iniciativas e políticas públicas que devem tor-
48 Justiça e Primeira Infância
C
omo dito ao longo deste Guia, a pri- o investimento em educação na primeira in-
meira infância é um momento de ricas fância. Para a Constituição Federal de 1988, a
oportunidades de desenvolvimento, que criança é uma cidadã e sujeito de direitos cuja
deve ser assegurado para todos. Os estímulos proteção integral merece prioridade absoluta.
recebidos nessa fase influenciam a maneira E por essa proteção passa a garantia de direi-
como as pessoas aprendem e interagem com a tos inalienáveis como a educação, sendo dever
sociedade pelo resto da vida. Isso porque 90% do Estado provê-la, em creches e pré-escolas.
do cérebro humano se forma até os seis anos Seu artigo 30 ainda explica que cabe ao municí-
de idade e, mais que a capacidade intelectual, pio, em parceria com estados e União, o desen-
é na primeira infância que as competências so- volvimento de programas de educação infantil
ciais e emocionais se constroem. Oferecer uma e ensino fundamental. A Lei nº 9.394, de 1996,
Guia de referência para a cobertura jornalística 49
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio- Mas a educação infantil é mais do que uma
nal (LDB), reforça o direito à educação gratuita base para a escola primária ou um lugar seguro
a crianças de até cinco anos de idade. para as famílias deixarem seus filhos. Nossos
arcabouços legais sustentam que a educação
O ECA reafirma vários desses pontos. Em seu oferecida deve respeitar a fase de desenvolvi-
artigo 54º, diz que é dever do Estado assegurar mento físico, cognitivo, social, emocional que a
“IV – atendimento em creche e pré-escola às criança se encontra, e que por isso precisa ter
crianças de zero a cinco anos de idade (redação suas particularidades respeitadas.
dada pela Lei nº 13.306, de 2016)”. Já o artigo
53º traz que: A Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
reconhece a educação infantil como etapa
“A criança e o adolescente têm direito essencial e estabelece seis direitos nortea-
à educação, visando ao pleno desenvol- dores de aprendizado para essa fase da vida:
vimento de sua pessoa, preparo para conviver, brincar, participar, explorar, expres-
o exercício da cidadania e qualificação sar e conhecer-se. “Como primeira etapa da
para o trabalho, assegurando-se-lhes: educação básica, a educação infantil é o início
e o fundamento do processo educacional. A
I. igualdade de condições para o acesso e
entrada na creche ou na pré-escola significa,
permanência na escola;
na maioria das vezes, a primeira separação
II. direito de ser respeitado por seus edu- das crianças dos seus vínculos afetivos fami-
cadores; liares para se incorporarem a uma situação de
III. direito de contestar critérios avaliati- socialização estruturada”.
vos, podendo recorrer às instâncias es-
colares superiores; O Marco Legal da Primeira Infância é outro
exemplo de base legal que valoriza os primei-
IV. direito de organização e participação
ros anos da vida da criança como importan-
em entidades estudantis;
tes para seu desenvolvimento. Por meio de
V. acesso à escola pública e gratuita próxi- suas diretrizes, ele faz uma ponte entre o
ma de sua residência. É direito dos pais que é recomendado pela ciência para a evo-
ou responsáveis ter ciência do processo lução adequada dos indivíduos até os seis
pedagógico, bem como participar da de- anos e as iniciativas e políticas públicas que
finição das propostas educacionais”. devem tornar essas boas práticas acessíveis
50 Justiça e Primeira Infância
Desde 2016, quando entrou em vigor a Emen- Nesse sentido, o esforço precisa ser maior. De
da Constitucional nº 59, aprovada em 2009, a acordo com levantamento do Comitê Técnico
pré-escola tornou-se obrigatória para crianças da Educação do Instituto Rui Barbosa (CTE-
entre 4 e 5 anos, aumentando o período em -IRB), o Brasil precisa criar 3,4 milhões de va-
que a escola deve ser obrigatória: dos 4 aos gas na educação infantil. Cerca de 1,2 milhão
17 anos. Já a creche não é obrigatória, mas a de crianças em idade pré-escolar seguem fora
lei estabelece que o Estado deve oferecer va- da escola e o percentual de atendimento das
gas nesta primeira etapa da educação infantil creches não ultrapassa 31%. Cabe, portanto,
para as famílias que tiverem interesse em ma- aos municípios identificar as crianças que não
tricular seus filhos. A primeira meta do Plano foram incluídas e conscientizar as famílias so-
Nacional da Educação (PNE), formulado pelo bre a obrigatoriedade a partir dos 4 anos. Além
Ministério da Educação, discorre sobre a am- dos impactos nocivos ao desenvolvimento in-
pliação das vagas para que, até 2024, pelo me-
nos metade das crianças de 0 a 3 anos esteja na
20 INEP. Censo Escolar da Educação Básica 2022.
creche. Esse conjunto de diretrizes para guiar a
Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/centrais-
educação brasileira também previa a universa- de-conteudo/acervo-linha-editorial/publicacoes-
lização da educação infantil na pré-escola até institucionais/estatisticas-e-indicadores-educacionais/
2016, o que não foi atingido – atualmente, 81% censo-da-educacao-basica-2022-notas-estatisticas.
das crianças de 4 e 5 estão matriculadas. Acesso em agosto de 2023.
Guia de referência para a cobertura jornalística 51
fantil, pais que tiverem filhos em idade escolar ria Municipal de Educação assinaram um termo
fora da escola podem ser penalizados e até de cooperação para evitar a judicialização dos
mesmo perder a guarda. casos de vagas faltantes em creches. Daniel
Secco, do Núcleo Especializado da Infância e
A QUEM RECORRER SE NÃO Juventude da Defensoria, diz que, com a pande-
HOUVER VAGA DISPONÍVEL mia, o município de São Paulo alega não haver
fila de espera. “O fato de não haver fila pode
É válido lembrar que os pais ou responsáveis apenas indicar que os pais ficaram desemprega-
por crianças em idade escolar que não estão dos por conta da crise provocada pela pandemia
na escola por falta de vaga na rede pública são e deixaram de procurar por vagas”, afirmou.
amparados pelo ECA. Eles devem acionar a
Defensoria Pública para conseguir o direito à Uma boa pauta é mostrar a falta de alternati-
vas para muitas famílias quando não há vagas
em creche. Em casos extremos, as crianças
acabam por ficar sozinhas, com um irmão mais
As etapas da educação infantil velho. Diante de uma situação dessas, é impor-
tante que você, jornalista, coloque em discus-
• Creches: até 3 anos de idade são o abandono da família por parte do Estado,
• Pré-escola: crianças de 4 e 5 anos que não cumpriu seu dever de ampará-la. Isso
porque o mais comum, nesse tipo de cobertura,
é que a família, sem alternativa, ainda seja acu-
sada de negligência.
matrícula. A mesma lógica se aplica às creches.
Se uma criança não frequenta a primeira etapa Taxa de atendimento por região do Brasil
da educação infantil por escassez de vaga, os Pré-escola (crianças de 4 e 5 anos)
pais devem procurar a Secretaria Municipal de
Região Sul: 85%
Educação e recorrer à Defensoria Pública com
o apoio do Conselho Tutelar local, se necessário, Região Sudeste: 82%
para assegurarem o direito aos filhos. Região Nordeste: 81%
Região Centro-Oeste: 79%
Em São Paulo, a Defensoria Pública e a Secreta- Região Norte: 74%.
52 Justiça e Primeira Infância
7 NESTE CAPÍTULO
• Saúde e guarda dos filhos em caso de separação dos pais são
outros temas recorrentes na cobertura de questões rela-
cionadas ao universo infanto-juvenil.
• No que se refere à saúde, diversos direitos não são res-
peitados. Por exemplo, muitas famílias dependentes do
Sistema Único de Saúde (SUS) não sabem que é direito da
criança ser atendida por um pediatra.
• Parte do desrespeito a esse direito se dá em função do dé-
ficit no número de pediatras disponíveis no serviço público
em relação à demanda. São 16 milhões de crianças com até
6 anos que dependem exclusivamente do SUS.
• Uma das consequências desse cenário consiste na “judicia-
lização da saúde”, termo que tem sido empregado pela alta
54 Justiça e Primeira Infância
A
legislação brasileira, ao garantir o di- e adolescentes de zero a 15 anos, ou seja, até
reito à proteção e ao desenvolvimento completarem 16 anos ou 192 meses, sendo
integral das crianças, em especial da este limite etário passível de alteração de acor-
primeira infância, considera que os cidadãos do com as normas e rotinas do estabelecimento
nessa faixa etária têm outros direitos além de saúde responsável pelo atendimento”.
dos que abordamos até aqui: direito à família
e à convivência com ela, à educação de quali- A lei foi uma conquista para os adolescentes
dade e à proteção quanto aos diversos tipos nos serviços de pediatria da rede de saúde do
de violência. país, pela possibilidade de continuarem a usu-
Guia de referência para a cobertura jornalística 55
fruir do vínculo já construído com esses servi- crianças de até 6 anos que dependem exclusi-
ços e seus profissionais – ainda mais no caso vamente do SUS.
daqueles com doenças crônicas.
Por outro lado, a Justiça é bastante solicitada
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) defi- em casos de medicamentos, tratamentos e ci-
ne como campo de atuação do pediatra o ser rurgias de alto custo não disponíveis no SUS e
humano entre zero e 20 anos, mas a lei con- no caso de cirurgias muito específicas, cuja re-
siderou o perfil de formação de pediatras (e a alização não acontece em localidades próximas
quantidade deles) e a estrutura dos serviços. à residência da família.
Assim definiu o parâmetro de 16 anos, o que é
um avanço, visto que não existia essa definição O termo “judicialização da saúde” tem sido em-
pelo Ministério da Saúde. pregado pelo alto volume de pedidos à Justiça
relacionados à saúde. É um direito do pacien-
Há, no entanto, um déficit no número de pedia- te e dos familiares demandarem atendimento
tras no serviço público em relação à demanda. adequado, especialmente para as crianças, que
O Brasil tem, segundo o Instituto Brasileiro de são prioridade.
Pesquisa e Estatística (IBGE), 5.568 municí-
pios. De acordo com o Ministério da Saúde, há É obrigação do Estado prover o tratamento
42 mil unidades básicas de saúde (UBS), com adequado de saúde, portanto os pais de
44 mil equipes de Saúde da Família e 1.229 crianças que precisam de um medicamento de
equipes de Atenção Primária. São apenas 5,7 alto custo, por exemplo, podem solicitar à De-
mil pediatras e 5,3 mil ginecologistas-obstetras fensoria Pública que faça valer esse direito. Se
(para realizar partos) vinculados a essas equi- o medicamento não estiver disponível em sua
pes. Um número que, efetivamente, não dá localidade de moradia, mas fizer parte da lista
conta da demanda de cerca de 1622 milhões de do SUS, a resposta do juiz tende a ser positiva
para que o Estado supra a necessidade.
GUARDA COMPARTILHADA
Há muitos outros temas que envolvem Justiça
e primeira infância. Talvez o mais comum deles
seja o da decisão da guarda do filho de pais que
se divorciam. Até 2014, antes de promulgada
a Lei nº 13.058, o mais comum era que a guar-
da fosse naturalmente da mãe. Ao pai cabia o
pagamento de pensão alimentícia. Com a apro-
vação dessa lei, a guarda compartilhada passou
a ser a norma – a não ser que um dos genito-
res abra mão desse direito – desde que seja o
melhor para atender aos interesses da criança,
conforme o parágrafo 2º:
Hora da Pauta
8 NESTE CAPÍTULO
Nas páginas seguintes você encontrará dicas para o desenvolvi-
mento de pautas que tratem de Justiça para a primeira infância,
bem como sugestões de assuntos a serem abordados.
Todas as pautas jornalísticas podem ser desenvolvidas sob o olhar
da primeira infância. Veja como fazer isso:
• Direcione seu olhar para a criança.
• Mantenha o foco no “todo”, já que casos isolados podem ser
exceções e flertar com a desinformação.
• Sempre que possível, ouça a criança.
• Cuidado com a imagem da criança.
• Evite o uso de palavras e expressões pejorativas.
58 Justiça e Primeira Infância
vítimas de violência. Mas, para além desses ca- Lembre-se também que, com a internet, a ima-
sos, o artigo 5º, inciso X da Constituição Federal gem pode ser encontrada em sites de busca de
brasileira posiciona o direito de imagem como forma descontextualizada e ganhar uma sobre-
direito e garantia fundamental, e prevê indeni- vida pública não prevista inicialmente.
zação em caso de violação. O Supremo Tribu-
nal de Justiça (STJ) também já entendeu que:
“Em se tratando de direito à imagem, a obrigação
da reparação decorre do próprio uso indevido do FIQUE ATENTO
direito personalíssimo, não havendo de cogitar-se
da prova da existência de prejuízo ou dano, nem a • Evite cair na facilidade de pegar somen-
consequência do uso, se ofensivo ou não23.” te declarações fofas das crianças, com o
intuito de ter uma reportagem em que
ela faça o papel de engraçadinha. Ela
Ou seja, pouco importa a intenção do uso da ima- tem opinião e ponto de vista que podem
gem – se de forma positiva ou negativa –, o uso enriquecer a reportagem.
sem autorização é passível de punição. Por esse
• Evite fazer reportagens que mostram
motivo, é essencial que toda imagem de criança investimentos na primeira infância de
a ser utilizada em reportagens, seja foto ou vídeo, forma utilitária, apontando vantagens
esteja autorizada pelos pais por escrito. que serão obtidas na idade adulta. In-
vestimentos devem ser feitos porque
Ainda, recomenda-se que os pais sejam bem as crianças, em especial as que estão na
orientados sobre o teor da reportagem, suas primeira infância, são seres dotados de
possíveis repercussões para a criança, o alcance direitos para terem seu desenvolvimen-
to integral garantido e vida plena já.
do veículo em termos de audiência e quaisquer
outros detalhes para que eles tomem a decisão • Não use expressões como “adolescen-
pela autorização de forma bastante consciente. tes que se prostituem”, “meninas pros-
titutas”, “menores trabalhadores do
sexo” ou “serviço sexual de menores”. A
23 Resp. Nº 230268-SP, 2ª Seção, Rel. Min. Sálvio prostituição é um conceito que remete a
de Figueiredo Teixeira, DJU 04.08.2003, p. 216). consentimento e crianças submetidas a
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/ essa situação estão sendo coagidas por
jurisprudencia/stj/1377753211. Acesso em agosto um adulto, sendo vítimas de exploração.
de 2023. Vale notar que essas expressões colo-
60 Justiça e Primeira Infância
• Menor
• Menor de idade
• Criança em situação de rua
• Menor abandonado
• Criança em situação de vul-
EXPLORAÇÃO • Menor carente
nerabilidade social
INFANTIL • Incapaz
• Criança fora da escola
• Menino de rua
• Criança excluída
• Moleque de rua
• Trombadinha
que o termo “menor” não deve ser usado27. O abuso não se limita a adolescentes. A infân-
cia também é desrespeitada nesses progra-
O racismo também prepondera na violação mas. O documento cita matérias que exibem,
de direitos. Não surpreende que a maioria das por exemplo, uma menina decapitada, um bebê
narrativas no levantamento feito pela ANDI supostamente vendido pela mãe e diversas
viole direitos de pessoas negras, sejam elas exi- crianças vítimas de violência sexual, para citar
bidas como suspeitas ou como vítimas. Entre apenas alguns casos.
os suspeitos com direitos violados, 1.068 eram
negros e 399 eram brancos. Quando se trata do Código de Ética dos Jorna-
listas Brasileiros, o descaso é quase absoluto.
A violação do ECA se desdobra ainda em di- Nas 1.928 narrativas analisadas no guia da
versas frentes. Para citar algumas delas: des- ANDI, houve 1.962 momentos de desrespeito
respeito à presunção de inocência, incitação ao a essa norma autorregulatória dos profissio-
crime e à violência, inicitação à desobediência nais de imprensa.
às leis ou às decisões judiciárias, discurso de
ódio ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, Essas atrações sensacionalistas também infrin-
condição socioeconômica, orientação sexual gem códigos internacionais, como os Princí-
ou procedência nacional, violação do direito ao pios de Camden sobre Liberdade de Expressão
silêncio, tortura psicológica e tratamento de- e Igualdade, a Declaração Conjunta do Relator
sumano ou degradante. Especial das Nações Unidas para a Liberdade
de Opinião e Expressão, entre outros.
27 Termo de sentido vago, utilizado para definir Vale ressaltar ainda que as matérias desses
a pessoa com menos de 18 anos. Desde que o programas focam toda sua atenção na ação
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) policial e não nos desdobramentos legais e na
entrou em vigor, é considerado inapropriado para aplicação das leis. As narrativas exploram o fato
designar crianças e adolescentes, pois tem sentido pontual, sem dar espaço a contextos sociais e
pejorativo. Esse termo reproduz e endossa de forma a uma realidade mais ampla. Em 67% dos ca-
subjetiva discriminações arraigadas e uma postura
sos analisados, não há menção às causas para
de exclusão social que remete ao extinto Código de
Menores (ANDI – Glossário). Disponível em: https:// a violência. Em 93,1% deles, não há nenhuma
andi.org.br/glossario/. Acesso em agosto de 2023. sugestão para solucionar a violência.
66 Justiça e Primeira Infância
Para a realização deste guia, foram entrevis- até os seis primeiros meses de vida e
tados especialistas e profissionais das áreas é responsabilidade do empregador da
da Justiça e da Comunicação que deram mãe providenciar as condições para
algumas dicas de pautas interessantes – e que isso aconteça.
importantes – que podem contribuir para
divulgar os direitos da primeira infância: • Responsabilidade pela primeira in-
fância: Reportagens que conscienti-
• Famílias acolhedoras: A criança tem a zem a população sobre sua respon-
oportunidade de, ao invés de ser insti- sabilidade na garantia de direitos à
tucionalizada, quando não pode ficar primeira infância, conforme deter-
com a família de origem, ir para uma minado no Marco Legal da Primeira
família que cuidará dela. O índice de Infância, e que apontem as maneiras
famílias acolhedoras ainda é muito pe- para se fazer denúncias (inclusive
queno, mas seria vantajoso o aumento anônimas) sobre casos de violência
dessa oportunidade de as crianças vi- podem fazer diferença na vida de
verem em uma casa, em ambiente aco- milhares de crianças. O caso Menino
lhedor. A família recebe, como ajuda de Bernardo é emblemático de como
custo, meio salário mínimo. toda a sociedade foi negligente na ga-
rantia de sua proteção.
• Amamentação: em todas as mulheres
têm as condições mínimas para conti- • Disque-Denúncia: Como funciona o
nuar amamentando seu filho ao voltar Disque 100 – o que é preciso saber
da licença-maternidade. É direito da para fazer uma denúncia e como se dá o
criança ser amamentada pelo menos encaminhamento da comunicação.
68 Justiça e Primeira Infância
• Sinais de violência: Uma reportagem • Educar sem palmada: Pautas que mos-
para orientar pais, professores e outras trem como é possível educar sem casti-
pessoas próximas à criança sobre quais gos físicos. Entrevistar profissionais da
são os sinais de que uma criança pode área de proteção à criança, educação,
estar sofrendo negligência ou violên- assistência social e psicologia sobre
cia, como alterações no comportamen- alternativas. Para saber mais sobre o
to, recusa em ficar com uma pessoa em assunto, acesse a publicação Castigos
específico, desenhos sombrios, apatia, físicos e humilhantes: Guia de referên-
sono agitado e outros. cia para a cobertura jornalística, dispo-
nibilizada pela ANDI e parceiros.
Guia de referência para a cobertura jornalística 69
Quem é quem no
Sistema de Justiça da Infância
9
O Sistema de Justiça começa no delegado de polícia e vai até o mi-
nistro do Supremo Tribunal Federal (STF), que é o nível máximo do
sistema. No caso do Sistema de Justiça da Infância e da Juventude,
estão inclusos o Juizado da Infância e Juventude, a Promotoria da
Infância e da Juventude, polícias, defensoria pública e conselhos
tutelares, entre outros. O ECA, em seu artigo 148, traz a descrição
das atribuições e competências de cada parte. Conheça:
Ministério Público – pode ser acionado por Defensoria Pública – age na proteção dos di-
qualquer pessoa caso haja flagrante desrespei- reitos das crianças e adolescentes, por exem-
to aos direitos. Sua função é atuar na defesa plo, na busca por acesso a creche e escola, edu-
dos direitos e interesses da sociedade. Pode cação, garantia de medida protetiva em caso
instaurar um inquérito civil para apurar os fa- de violência, entre outros.
tos. Se for comprovado o desrespeito à lei, pode
ser proposto um termo de ajuste da conduta ou
uma ação na Justiça (se não houver acordo). Os
promotores de justiça são os integrantes do MP.
Criados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ambos estão vinculados à estru-
tura do Poder Executivo (embora sejam independentes) e desempenham funções comple-
mentares. Cabe aos Conselhos de Direitos (nacional, estaduais e municipais) acompanhar
e monitorar a formulação das políticas públicas para essa parcela da população. Já o Tutelar
tem como atribuição zelar pelo pleno exercício dos direitos das crianças e adolescentes.
Para isso, os conselhos atuam em estreita aliança com o Sistema de Justiça, sendo muitas
vezes os responsáveis por acioná-lo em casos de violação de direitos de meninos e meninas.
Guia de referência para a cobertura jornalística 71
Banco de Fontes
Organização da sociedade civil, sem fins de lucro Organização não governamental na luta por
e apartidária, que articula ações inovadoras em igualdade de direitos.
mídia para o desenvolvimento. Disponibiliza, no
Atuação nacional – enfrentamento à violência
site, uma área com recursos voltados a jornalistas
institucional; fortalecimento do espaço demo-
na cobertura dos temas de infância e juventude.
crático; defesa dos direitos socioambientais.
Atuação nacional – infância e juventude; inclusão
e sustentabilidade; políticas de comunicação.
CNJ - Conselho Nacional de Justiça
www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pacto-
CONANDA - Conselho Nacional dos Direi- nacional-pela-primeira-infancia
tos da Criança e do Adolescente
imprensa@cnj.jus.br
www.direitosdacrianca.gov.br/conanda/novo-
-endereco-do-conanda Instituição pública com o objetivo de aperfeiçoar o
conanda@mdh.gov.br trabalho do sistema judiciário brasileiro, principal-
mente no que diz respeito ao controle e à transpa-
Criado em 1991, foi previsto pelo Estatuto da rência administrativa e processual. Promoveu um
Criança e do Adolescente como o principal ór- grande movimento em prol da infância por meio
gão do sistema de garantia de direitos. Por meio do Pacto Nacional pela Primeira Infância.
da gestão compartilhada, governo e sociedade ci-
vil definem, no âmbito do Conselho, as diretrizes Atuação nacional.
para a Política Nacional de Promoção, Proteção e
Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes.
Atuação nacional.
Guia de referência para a cobertura jornalística 73
PRIMEIRA INFÂNCIA
Fundação Maria Cecília Souto Vidigal RNPI – Rede Nacional Primeira Infância
www.fmcsv.org.br www.primeirainfancia.org.br
fmscv@fmscv.org.br secrnpi@gmail.com
Fundação privada que busca desenvolver e Iniciativa da Rede Nacional Primeira Infância
compartilhar o conhecimento de experiências (RNPI) e da ANDI – Comunicação e Direitos
que funcionam no desenvolvimento da primei- que consiste em uma plataforma com três ei-
ra infância. xos de atuação: Indicadores; Planos pela Pri-
meira Infância; e Biblioteca.
Atuação nacional e internacional.
Atuação nacional.
Guia de referência para a cobertura jornalística 75
BRINCAR
EDUCAÇÃO E CIDADANIA
Movimento internacional por uma infância dig- Fundação de direito privado, sem fins lucrati-
na e saudável, com atenção ao aprender, brin- vos, que tem como objetivo mobilizar a socie-
car, comer e dormir. dade para questões relacionadas aos direitos
da infância e da adolescência, tanto por meio
Atuação nacional e internacional.
de ações, programas e projetos, como pelo es-
tímulo ao fortalecimento de políticas públicas
ChildFund Brasil – Fundo para crianças de garantia à infância e adolescência. Traba-
www.childfundbrasil.org.br lham com o Cenário de Indicadores da Infância
comunicacao@childfundbrasil.org.br (em todas as áreas) e com o monitoramento do
Congresso Nacional.
Organização de desenvolvimento social, ela- Atuação nacional.
bora e monitora programas e projetos sociais
junto a crianças, adolescentes, jovens, famílias
e comunidades em situação de risco social. IDDD – Instituto de Defesa do Direito de
Tem como carro-chefe o apadrinhamento de Defesa
crianças. www.iddd.org.br
Atuação nacional. iddd@iddd.org.br
SAÚDE
Entidade de direito privado, sem fins lucra- Organização sem fins lucrativos com objetivo
tivos, congrega os Secretários de Estado da de representar os interesses e lutar pelos di-
Saúde e seus substitutos legais, enquanto reitos e pelo bem-estar dos bebês prematuros
gestores oficiais das Secretarias de Estado e suas famílias.
da Saúde dos estados e do Distrito Federal.
Atuação nacional.
Tem o objetivo de disseminar conhecimentos
científicos relativos ao desenvolvimento das
crianças na Primeira Infância. Programa Mãe Coruja Pernambucana
Atuação nacional. www.maecoruja.pe.gov.br
contatomaecorujape@gmail.com
VISIBILIZAÇÃO/INCLUSÃO
Projeto autônomo e voluntário criado para Organização não governamental que atua em
promover a inclusão das pessoas com deficiên- diversos países buscando promover a igualda-
cia por meio da difusão de informação. de de gênero e a prevenção da violência com
foco no envolvimento de homens e mulheres
Atuação nacional.
na transformação de masculinidades.
Atuação internacional.
Instituto Jô Clemente
www.ijc.org.br
atendimento@ijc.org.br
VIOLÊNCIAS
Colaborar com o desenvolvimento de crianças Organização não governamental, sem fins lu-
e adolescentes com experiência de acolhimen- crativos, que trabalha com crianças e adoles-
to, a fim de fortalecê-los para que apropriem e centes com direitos violados – separados ou
transformem suas histórias. em vias de se separar de suas famílias, vivendo
em abrigos, nas ruas da cidade, em contexto de
Atuação em mais de 10 estados brasileiros.
exploração sexual, trabalho infantil, drogas e
violência doméstica.
Rede Não Bata, Eduque
Atuação nacional.
www.naobataeduque.org.br
naobataeduque@gmail.com
GÊNERO E RAÇA
Acesse: www.andi.org.br
Realização
Eventorealizada
Publicação realizado com
com o apoio
o apoio
dada Open
Open Society
Society Foundations
Foundation