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O Cuidado Como Ética Universal no Campo da Saúde

PROPÓSITO:

O estudo das relações entre o cuidado em saúde e as relações de identidade de gênero é de natureza essencial para a formação
dos profissionais da área da saúde, uma vez que, em seu exercício profissional, estes serão os principais responsáveis por garantir
o direito universal à saúde para todos os cidadãos brasileiros, respeitando suas especificidades de gênero, raça/etnia, orientação e
práticas afetivas e sexuais.

INTRODUÇÃO:

Faz mais de uma década que o Brasil ocupa a incômoda primeira posição no ranking de países que mais matam pessoas trans no
mundo, sendo, portanto, o país mais violento para essa população. Esse grupo populacional está entre os mais sujeitos a toda
sorte de violências.

O fato de não possuírem identidade de gênero de acordo com a imposta pelos padrões vigentes em nossa sociedade faz com que
essas pessoas sejam vítimas de intensa discriminação, preconceito e violências. Em vista disso, essa população está muito mais
sujeita a uma série de agravos à saúde. Todavia, ao chegarem aos serviços de saúde, o que essa população muitas vezes encontra
é a reprodução das mesmas violências que as levaram a esses serviços, isso quando conseguem chegar, já que o estigma e a
discriminação são também grandes obstáculos ao acesso dessa população aos serviços de saúde.

O presente conteúdo traz as peculiaridades das demandas de saúde dessa população e tenta definir e propor formas de
acolhimento fundamentados numa ética do cuidado, no respeito às diferenças e no combate a todo tipo de preconceito. O
conhecimento e reconhecimento dessas lógicas discriminatórias constitui-se em princípio básico para o exercício de um cuidado
humanizado em saúde.

MÓDULO 1: Reconhecer as diferentes formas de violência institucional contra as minorias sexuais e suas diferentes formas de
funcionamento.

VIOLÊNCIAS INSTITUCIONAIS PARA O GRUPO DAS MINORIAS

Peculiaridade Das Violências Institucionais

Quando ouvimos falar em violências institucionais, devemos nos atentar sobre algumas peculiaridades sobre este tipo de
violência. Veja, a seguir, três peculiaridades importantes que devemos estar atentos:

 Primeira Peculiaridade:

A primeira peculiaridade para a qual precisamos nos atentar é sobre o fato de que essas violências não se resumem ao campo das
violências físicas, isto é, corporais. Daí, então, você poderia pensar em como essas violências podem estar referidas também a
palavras, xingamentos e assim por diante.

De fato, o campo das violências institucionais não fala apenas de maus tratos e violências físicas, mas passa também por agressões
verbais, humilhações, xingamentos, atitudes segregativas, excludentes, entre outras. Infelizmente, é isso o que acontece em
muitas de nossas instituições, como é o caso de hospitais, escolas, prisões, quartéis, abrigos de menores, serviços de saúde
mental, centros de ressocialização, serviços socioeducativos, serviços de assistência a idosos, serviços para pessoas que fazem uso
abusivo de drogas, entre muitos outros.

Guardadas as suas diferenças, e como muitos de nós sabemos, essas instituições possuem como função principal o cuidado e a
proteção das pessoas, ou pelo menos é isso que vem descrito em seus objetivos, propósitos ou missões.

Assim, pode nos parecer um contrassenso o fato de que, precisamente, aquelas instituições que foram pensadas e criadas para o
cuidado, ou seja, para produzir um bem, produzam o seu contrário. Como pode isso acontecer? Para que possamos nos aproximar
de uma compreensão, é necessário que nos atentemos agora para uma segunda peculiaridade das violências institucionais.

Porém, como você pode perceber, ambas as formas de violência, físicas ou verbais, podem ser identificadas com certa facilidade.
Não que elas estejam dadas, entregues facilmente à nossa percepção. Determinadas formas violentas de se dirigir ao outro podem
muito bem passar despercebidas. Entretanto, o que queremos dizer aqui é apenas que essas formas podem ser percebidas por
um observador mais atento.

Assim, essas duas manifestações de violência, na verdade, dizem respeito apenas ao que podemos chamar de violências visíveis.
Ainda que possuam particularidades, podemos dizer que estão num mesmo plano de visibilidade.
 Segunda Peculiaridade:

A segunda peculiaridade das violências institucionais, ou seja, daquilo que é específico das mesmas, é o fato de sua manifestação
não se realizar apenas ao nível do visível, mas, principalmente, ao nível daquilo que não se dá a ver, ou seja, do invisível. Para
utilizar uma metáfora famosa, podemos tomar como exemplo o iceberg, que é uma montanha de gelo que flutua nos oceanos, e
cuja parte visível representa apenas 10% de seu tamanho ou, muitas vezes, até menos.

Como se costuma dizer, o que vemos do iceberg é apenas a sua ponta, sendo que sua parte maior e mais robusta se encontra fora
do alcance de nossa visão. Pois bem, para que possamos compreender as violências institucionais, devemos estar atentos para o
fato de que estas, além de não se resumirem ao plano físico, também não podem ser resumidas ao campo do visível, e também do
dizível (violências físicas e verbais).

 Terceira Peculiaridade:

A terceira particularidade do conceito de violência institucional é a atenção que devemos tomar a fim de não confundirmos
instituição com estabelecimento, ou seja, com o prédio. Por exemplo, podemos dizer que, em determinado prédio, até então
inutilizado, passou a funcionar uma escola. Ora, neste exemplo, fica bem mais fácil entender o porquê da não identificação entre o
prédio e a instituição escolar.

Modo De Funcionamento Das Violências Institucionais

O que viria a determinar, se não o estabelecimento, a essência de uma instituição?

Independentemente do estabelecimento, o que define as instituições são saberes, práticas, discursos, leis, regras e normas que
se articulam, se determinam mutuamente e vigoram num determinado tempo histórico. Como definido por Baremblitt (1994),
as instituições são lógicas que podem se materializar em leis, regras, normas, saberes, maneiras de pensar, ou apenas em
regularidades de comportamento que não necessitam de estar escritas em algum lugar. Essas lógicas, a despeito de suas formas
de expressão, regulam a atividade humana, definindo deveres, aquilo que deve ser feito ou pensado, aquilo que não deve ser feito
ou pensado, assim como aquilo que é indiferente para nós.

É claro que os espaços também fazem parte desse conjunto de procedimentos que compõem a instituição, mas a questão aqui é
que os mesmos não definem a sua essência, mas apenas uma de suas propriedades, que pode estar presente ou não. Isso fica
evidente no exemplo citado, em que o prédio, mesmo não possuindo uma arquitetura propriamente escolar, pode, ainda assim,
ser chamado de escola. Em suma, a forma do estabelecimento pode fazer parte de uma instituição, ou até mesmo ser uma
extensão desta, porém não pode ser identificado com ela. Esse é inclusive um dos motivos de nosso estranhamento ao
constatarmos que uma instituição destinada ao cuidado produz violências e maus tratos em suas práticas cotidianas. Isso porque o
que conta efetivamente são os saberes e as lógicas institucionais que se produzem e reproduzem naquele espaço.

É, portanto, na análise da produção desses discursos e saberes que se encontra a chave para o que podemos conceber como
violência institucional e, ao mesmo tempo, de que forma essas violências estão intrinsecamente voltadas aos grupos minoritários.
Isso porque os saberes validados ou legitimados numa determinada instituição, isto é, os saberes dominantes ou hegemônicos,
por serem considerados científicos, não costumam ser percebidos e, consequentemente, questionados, como veiculadores de
violência. Encontra-se, aqui, a verdadeira invisibilidade das violências institucionais.

O mito da neutralidade científica impede que possamos conceber os saberes como produção humana, histórica, inerentes às
produções políticas e sociais de um determinado espaço-tempo e, portanto, reprodutores de valores, crenças, preconceitos,
hierarquias ou, em suma, como reprodutores das relações de poder de uma dada sociedade.

Talvez você deva ter conhecimento de como as instituições destinadas a indivíduos considerados loucos funcionavam, de como
essas instituições eram construídas, e quais eram seus métodos e instrumentos de tratamentos.

Muitos dos tratamentos eram os castigos físicos, mutilações, choques elétricos, isolamento, humilhações, entre muitos outros.
Isso tudo, nos dias de hoje, nos parece absurdo, mas, naquela época, eram percebidos como tratamento. Até meados do século
XX tudo isso passava despercebido, já que era legitimado pelo saber médico dominante.

Vale ressaltar que esse tipo especial de tratamento da questão da loucura só passa a existir a partir do momento em que esta é
considerada como uma doença, ou seja, quando ela se torna um objeto do saber médico.

Portanto, essas lógicas que conformam a essência de uma instituição, no campo da saúde, são expressas por saberes. Saberes
estes que implicam, necessariamente, relações de poder. São nessas relações de saber-poder que encontramos aquilo que é
específico das violências qualificadas como institucionais.
Já de início, o fato de alguém possuir um saber, e o outro não, estabelece uma hierarquia entre profissionais e usuários da saúde,
que pode implicar em abuso de poder ou não. Mas não é apenas porque o profissional de saúde detém um suposto saber sobre o
corpo do usuário que as violências podem se dar, uma vez que as violências são também intrínsecas aos próprios saberes que tais
profissionais veiculam e reproduzem.Como veremos mais adiante, a avaliação ética, ou o cuidado como uma ética, está não
apenas na possibilidade de abusar de um saber-poder, já que o outro supostamente não o possui, mas também na veiculação de
saberes que estão, eles mesmos, implicados com a discriminação, silenciamento e exclusão do outro.

Como veremos adiante, isso também acontece no campo das relações entre instituições de saúde e minorias sexuais (LGBTs), que,
historicamente, foram concebidas pelos saberes médico-científicos (dominantes e conformadores das instituições de saúde) como
patológicas.

Violências Institucionais E Minorias Sexuais

Historicamente, os saberes médico-científicos se aproximaram da sexualidade a partir da noção de normalidade ou, mais
precisamente, de sua suposição, poderíamos dizer hoje. A partir desse preceito, buscaram classificar aquilo que se aproximava e
aquilo que se afastava de uma ideia abstrata de normal. Ao que se afastava, deram o nome de patológico, uma vez que esses
saberes precisavam da descrição e da identificação de doenças para se legitimarem como científicos.

É nesse sentido que podemos dizer que o discurso da saúde é necessariamente atravessado por uma perspectiva normalizadora
do gênero e da sexualidade, e, consequentemente, por um silenciamento da diversidade, numa relação de violência e exclusão. É
importante você saber que essa maneira normalizante de proceder, característica do saber-poder biomédico, continua vigente
até os dias de hoje e vem sendo estudada sob o nome de “medicalização da vida”.

Aliás, para sermos mais exatos, a tese dos estudiosos contemporâneos é a de que o achatamento das diferenças via tais
procedimentos de medicalização da existência nunca foi tão grande quanto nos dias de hoje (FOUCAULT, 1988).

Foram esses saberes médico-científicos os responsáveis por classificar como perversas aquelas práticas sexuais que se desviavam
de seu objetivo principal que, segundo estes, era a procriação. Baseados numa certa concepção de natureza biológica, trataram de
rotular essas práticas como antinaturais, relacionadas, muitas vezes, a características inatas do indivíduo.

Se antes tais condutas desviantes eram julgadas e condenadas a partir de concepções religiosas, ligadas a possessões malignas,
por exemplo, agora elas passam a ter uma conotação mais natural, ligada a características orgânicas ou congênitas, e, portanto,
médicas. É a partir desse tipo de interpretação que os saberes biomédicos podem se apoderar desse objeto, estabelecendo com o
mesmo uma relação de saber que pressupõe um domínio, isto é, um poder de regulamentação.

É dentro desses discursos médico-científicos que as identidades sexuais foram sendo construídas ao longo de nossa história
moderna. E foi assim que a sexualidade passou a fazer parte do campo da saúde, tornando-se objeto de domínio do discurso
médico-científico.

É interessante observar que essa apropriação da sexualidade pelo discurso médico aparece, em sua época, como uma conquista,
uma virtude, já que retira da sexualidade seu caráter maligno, ligado à religião, e a “eleva” a uma categoria médica, ligada a causas
orgânicas, passíveis, portanto, de cura, controle ou tratamento.

Como você pode perceber, a apropriação das questões de gênero e sexualidade pelo discurso médico-científico se dá a partir das
categorias de anormalidade e de sua classificação como doença. É a partir dessas categorizações que os comportamentos de
gênero e sexualidade passam a ser concebidos e, sobretudo, enquadrados, avaliados e julgados a partir das distâncias com relação
a uma certa concepção dominante ou hegemônica de normalidade. Surge, aqui, o que podemos conceber como grupos de
minoria sexual, uma vez que estes, de acordo com o padrão dominante da sexualidade pretensamente considerada normal,
representam o desvio ou as minorias desviantes.

Michel Foucault (1926-1984), um estudioso da sexualidade, deu a esse processo o nome de dispositivo da sexualidade.
Dispositivo, para Foucault, significa um conjunto de discursos, saberes, práticas e instituições que se apropriam de um
determinado tema ou objeto com objetivos de controlá-los, articulando-os a certos interesses políticos de uma época. Por isso
que este mesmo autor vai dizer que toda produção de saber está articulada a um poder, ou seja, que toda relação de saber é uma
relação de saber-poder, não existindo saberes desinteressados ou neutralidade científica.

Essa tese do autor serviu para questionar a hipótese de que a sexualidade, no fim do século XVIII e início do século XIX, sofreria
uma espécie de repressão, no sentido de ser relegada ao silêncio, ao mutismo, à inexistência e à interdição. Ou seja, nessa época,
a crítica intelectual tratava a questão dizendo que o sexo seria um tabu na sociedade, e que sobre ele as pessoas eram
incentivadas a guardar silêncio, a reprimi-lo ou a restringi-lo às quatro paredes do quarto. Essa era a hipótese predominando em
sua época, qual seja, a “hipótese repressiva” (FOUCAULT, 1988). No entanto, a hipótese foucaultiana é um pouco diferente e
afirma que a sexualidade, ao contrário de ser reprimida, era, na verdade, colocada em discurso.
O que isso significa? Significa que o que esses intelectuais críticos não estavam percebendo era que o controle sobre a
sexualidade passava, sobretudo, por falar sobre ela; passava por produzir verdades e saberes sobre o sexo, e não em silenciá-lo. A
“colocação do sexo em discurso” (FOUCAULT, 1988), especialmente a partir dos saberes médico-científicos, estabeleceu verdades
a respeito dos corpos e de seus prazeres, cujos efeitos foram seu controle e policiamento. A sexualidade torna-se, então, uma
categoria médica, e seus desvios passam a ser considerados patologias, isto é, doenças.

Reparem que isso não é qualquer coisa! Vejamos bem, isto que se afirma é um exemplo que o próprio Foucault (1988) menciona,
não necessariamente com estas mesmas palavras: os indianos, diz ele, ao tomarem o sexo como objeto de reflexão, isto é, o corpo
e seus prazeres como objeto de estudo, construíram uma obra chamada Kama Sutra.

Essa obra, como você deve saber, visa aprimorar os prazeres do corpo, ampliar suas possibilidades visando uma maior satisfação
na vida amorosa. E o que fizeram os ocidentais, a partir desse mesmo objeto que constitui a sexualidade?

Em poucas palavras, eles construíram manuais psicopatológicos, catálogos de classificação de doenças. No final do século XVIII e
início do século XIX, a quase totalidade dos transtornos mentais, e até mesmo os orgânicos, tinham como origem alguma questão
relacionada a essa noção de sexualidade criada por homens brancos e heterossexuais da Europa. E para “tratá-los”, foram capazes
de inventar dispositivos que vão do cinto de castidade, passando pela internação manicomial, até chegar a torturas físicas.

Comentário: Para que você tenha noção do tamanho desse problema, é importante destacarmos que a homossexualidade só foi
retirada da categoria de doenças mentais pela Associação Americana de Psiquiatria no ano de 1973, sendo seguida pela brasileira
em 1985. E o mais curioso é que essa retirada não foi embasada numa revisão técnico-científica, mas na pressão popular de
movimentos de minoria sexual organizados, que questionavam esses discursos médico-patologizantes (OMS, 1997).

Ademais, devemos lembrar que as décadas de 1960 e 1970 fazem parte de um período político bastante turbulento em nossa
história recente, em que, nas lutas por liberdade, percebeu-se muito claramente o papel de controle social e político exercido pelo
dispositivo da sexualidade, bem como dos poderes médico-científicos como legitimadores de uma série de violências cometidas
no campo social em nome da ciência.

Na verdade, para Foucault (1988), o que estava em jogo nesses dispositivos de saber-poder, ou no que ele chamou de “dispositivo
da sexualidade”, não era tanto a repressão dessa temática, mas sua própria invenção enquanto objeto de estudo dos saberes
médicos. É a partir desse momento, e da forma como descrevemos acima, que a sexualidade ganha relevância, passando a fazer
parte de nossos discursos e, mais especialmente ainda, como definidora da pessoa, de sua identidade. Algo do tipo: “Fale sobre
tua sexualidade que eu te direi quem és”.

Você já parou para pensar sobre isso?! Como chegamos ao ponto de definirmos alguém pela forma como esse sujeito lida com seu
próprio corpo e sua forma de sentir prazer?!

Basta que alguém diga ou seja identificado como lésbica, gay, bissexual, travesti ou transexual para que nos fixemos nessa
identidade e desconsideremos toda a sua totalidade como pessoa. E isso sem contar com o fato de que, a essa identidade,
costumamos atribuir aspectos pejorativos.

Módulo 2: Distinguir os aspectos terminológicos ligados às minorias sexuais e suas principais demandas de cuidado em saúde.

O CUIDADO EM SAÚDE PARA TRAVESTIS, TRANSEXUAIS MASCULINOS E FEMININOS

Aspectos Terminológicos

Antes de entrarmos neste conteúdo, faz-se necessário o conhecimento prévio de alguns termos relativos ao tema em discussão.
Além de facilitar a posterior compreensão, evita que tenhamos que interromper nosso diálogo a todo momento, a fim de explicar
o significado das palavras. Nesse sentido, apresentamos para você um pequeno glossário (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL, 2015) dos principais termos utilizados nos estudos de gênero e sexualidade, disposto em ordem
alfabética para facilitar a localização. O conhecimento desses termos constitui-se em princípio básico do cuidado com essa
população, de forma que este possa ser ético e humanizado.

Veja a seguir o pequeno glossário em ordem alfabética:

 ASSEXUAIS: são pessoas que não experimentam atração sexual.


 BISSEXUAIS: são pessoas que têm atração sexual, física e/ou afetiva por pessoas de ambos os sexos.
 GAY: é o homem que tem atração sexual, física e/ou afetiva por outro homem.
 GÊNERO: é a construção social que atribui uma série de características para diferenciar homens e mulheres. O gênero é
construído socialmente, e não em decorrência da anatomia de seus corpos.
 HETERONORMATIVIDADE: é a constituição da heterossexualidade como norma de comportamento social, regulando
os modos de ser e viver os desejos e a sexualidade.
 ORIENTAÇÃO SEXUAL: é a atração física, sexual e/ou afetiva que uma pessoa tem pela outra. Indica a forma como ela
vai canalizar a sua sexualidade.
 HETEROSSEXUAL: é a pessoa que sente atração física, sexual e/ou afetiva por outra pessoa do sexo ou gênero oposto.
 HOMOSSEXUAL: é a pessoa que sente atração física, sexual e/ou afetiva por outra pessoa do mesmo sexo ou gênero.
 INTERSEXUAL: é a pessoa que possuí sexo ambíguo.
 LÉSBICA: é a mulher que tem atração sexual, física e/ou afetiva por outra mulher.
 IDENTIDADE DE GÊNERO: diz respeito à percepção de gênero com que a pessoa se reconhece, conforme os atributos,
comportamentos e papéis convencionalmente estabelecidos para homens e mulheres na sociedade. A identidade de
gênero independe dos órgãos genitais e de qualquer característica anatômica, porque a anatomia não define o gênero.
Independe também da orientação sexual.
 TRANSEXUAL: é a pessoa que possui uma identidade de gênero diferente da estabelecida socialmente para o seu sexo
biológico.
 CISGÊNERO: é a denominação para aquele cuja identidade de gênero equivale ao seu corpo biológico.
 TRANSGÊNERO: é a pessoa que possui expressão de gênero e/ou identidade de gênero diferente daquela atribuída ao
corpo biológico.
 TRAVESTI: é a pessoa que, independentemente da orientação sexual, assume características físicas e psicossociais
atribuídas ao sexo oposto. Contudo, ao contrário da pessoa transexual, aceita o seu sexo biológico.

Minorias Sexuais

A expressão minoria sexual diz respeito aos grupos populacionais que se inserem na sigla LGBT, que significa Lésbicas, Gays,
Bissexuais e Transexuais. Nos últimos anos, tem ganhado força uma outra forma de representar essa população, a partir de uma
ampliação dessa primeira sigla, abarcando também as letras QIA+, que significam, respectivamente, Queer, Intersexo e Assexual,
sendo que o sinal de + representa o restante da pluralidade de orientações sexuais e diversidade de gênero ainda não abarcada
pela sigla.

LGBTQIA+ é, portanto, a forma como tais comunidades vêm representando a si mesmas.

Você já deve ter visto algumas pessoas questionando e até mesmo zombando do alargamento dessas siglas, o que, em si mesmo,
já constitui uma forma de violência, uma vez que parte de um julgamento preconceituoso e, principalmente, de um desinteresse
pela compreensão. Como diz o ditado: “Para julgar, basta não conhecer”. E você que se propõe a estudar deve saber muito bem
que a melhor arma contra o preconceito é o conhecimento e o interesse por aquilo que me é estranho, diferente, isto é, por
aquilo que eu ainda não conheço.

Ora, ninguém deseja voluntariamente ser representado por um conjunto de letras, mas, se é assim, qual seria então a utilidade
destas, você pode estar se perguntando. Respondemos que essas designações obedecem a um regime de luta relativo ao
apagamento das diferentes formas de expressão da sexualidade, ou seja, para que as diferentes maneiras de existir ganhem
visibilidade e sejam reconhecidas em termos de direitos sociais e civis.

É devido a isso que essa população conquistou direitos que até então lhes eram negados pela via de sua invisibilização social, isto
é, pelo seu não reconhecimento. Como dissemos anteriormente, foi precisamente pela via dessas lutas que, na década de 1970, a
homossexualidade deixou de receber o estigma de doença, apenas para citar um exemplo.

Já que não se trata, aqui, de discutirmos todas as nuances dessa questão, podemos dizer, em resumo, que é justamente por isso
que, hoje, temos políticas públicas de saúde no âmbito nacional destinadas especificamente a essa população. Por isso que
também estamos aqui na busca por aprender e refletir melhor sobre esse tema, já que um dos direcionamentos dessas políticas é
também a inclusão da questão LGBTQIA+ na formação dos profissionais de saúde. Essa já é, como você pode perceber, uma ação
em direção ao cuidado dessa população, relativo a uma das conquistas dos movimentos que se reúnem em torno dessa sigla.

Em suma, não se trata de querer fazer com que a diversidade dos modos de vida caiba numa sigla, mas sim que esta sigla unifique
e fortaleça as lutas em prol do reconhecimento e da conquista de direitos sociais, como é o caso do direito universal ao cuidado
em saúde. Assim, a sigla LGBTQIA+ pretende representar as minorias sociais discriminadas por questões de gênero e sexualidade.
Essas minorias discriminadas são aquelas que possuem identidades de gênero e orientações sexuais que não se enquadram no
padrão cis-heteronormativo, e, portanto, não recebem a atenção devida na construção de nossas políticas públicas de saúde.

Pessoas Trans

Pessoas trans são aquelas que se identificam com uma masculinidade ou com uma feminilidade diferente da que lhes impõe a
sociedade em função do seu sexo biológico. Ou seja, a construção de sua identidade de gênero não está submetida à
determinação do sexo biológico. Isso porque, como vimos na definição anterior, a identidade de gênero independe dos órgãos
genitais e de qualquer característica anatômica, porque a anatomia não define o gênero.

Por exemplo: você já parou para pensar que não há algo que diferencie a cintura de uma pessoa do sexo masculino e do sexo
feminino a ponto de um poder usar saia e o outro não? Pois bem, essas determinações são exclusivamente culturais e dentro
delas torna-se possível criar tantos estilos quanto são as pessoas. É importantíssimo que você se lembre, ainda, que a identidade
trans também não se relaciona com a orientação sexual. Parece óbvio, mas como sabemos, o óbvio costuma ser algo muito difícil
de ser compreendido. Então, devemos lembrar que o fato de alguém usar determinadas roupas e de se comportar de maneira
mais masculinizada ou mais feminilizada também não define sua orientação sexual, ou seja, por quem essa pessoa se afeiçoará
sexualmente e/ou afetivamente.

Dentro do universo trans, temos as travestis, as mulheres e os homens transexuais. Mulheres transexuais são mulheres que não
se identificam com seus genitais biológicos masculinos, nem com as determinações sociais decorrentes destes. Assim, em alguns
casos, elas podem optar por realizar modificações corporais como hormonoterapia e cirurgia de redesignação sexual. Os homens
trans, por sua vez, são homens que não se identificam com seus genitais biológicos femininos, nem com as atribuições sociais
decorrentes destes. Da mesma forma que as mulheres, também podem, em muitos casos, optar por realizar modificações
corporais como hormonoterapia e cirurgia de redesignação sexual.

Por último, temos as travestis, que apesar de estarem relacionadas com o universo feminino, podem carregar no corpo marcas
tanto femininas quanto masculinas, optando por fazer ou não modificações corporais no sentido da feminilização, uma vez que a
classificação de travesti não as exige.

Todos esses procedimentos de modificação corporal, relacionados com o campo da saúde, estão regulamentados pelo Ministério
da Saúde por meio da portaria nº 457, de agosto de 2008, e ampliados pela Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. A esses
procedimentos dá-se o nome de Processo Transexualizador (PrTr), visando garantir o acesso, o acolhimento e o atendimento
integral a essa população. Inclui-se nesse processo transexualizador, além da adequação do corpo biológico à identidade de
gênero, o direito à utilização do nome social, instituído desde 2009 pela Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009.

Nome social, neste caso, nada mais é que o nome de escolha do usuário ou da usuária que acessa os serviços de saúde. É aquele
que reflete sua identidade de gênero, independentemente do nome que foi registrado em seu registro civil.

Atenção: Para além de uma questão ética, o não cumprimento dessas normativas por parte do profissional de saúde implica em
variadas sanções e até em crime, como é o caso do não respeito ao uso do nome social.

Especificidade Das Demandas De Cuidado Em Saúde Da População LGBTQIA+

Pensar as relações entre saúde e população LGBTQIA+, bem como as questões e os dilemas colocados por essas relações requer
que tomemos como paradigma o conceito ampliado de saúde, tal como instituído pela Lei 8080/90, e por diversas outras
normatizações que se seguiram a esta, no âmbito do SUS.

Nesse âmbito, como você já deve ter conhecimento, a saúde tem um sentido abrangente, amplo, sendo a resultante das
condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, acesso e posse da
terra e acesso a serviços de saúde. Como descrito no art. 3º da legislação mencionada anteriormente:

“A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio
ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da
população expressam a organização social e econômica do País.” (BRASIL, 1990)

Pois bem, falar das relações entre saúde e população LGBTQIA+ passa, necessariamente, por considerarmos esse conceito
ampliado de saúde, dando especial atenção para isso que se denomina determinantes sociais da saúde (DSS), que se traduz no
entendimento de que as condições de vida e trabalho dos indivíduos e de grupos da população estão relacionadas com sua
situação de saúde, ou seja, a saúde está diretamente relacionada às condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham.

Você já parou para pensar como vivem as pessoas trans em nosso país?

Segundo Benevides (2021), faz 12 anos que o Brasil ocupa a incômoda primeira posição no ranking de países que mais matam
pessoas trans no mundo, sendo, portanto, o país mais violento para essa população. Esse grupo populacional está entre os mais
sujeitos a toda sorte de violências.

Em geral, tudo começa pela própria rejeição das famílias, passando pela exclusão escolar, até chegar às dificuldades de acesso ao
mercado de trabalho formal, tendo de assumir posições em postos de trabalho precarizados e, muitas vezes, encontrando na
prostituição a única via de adquirir sustento.
O fato de não possuírem identidade de gênero de acordo com a imposta pelos padrões vigentes em nossa sociedade, a saber, o
padrão cis-heteronormativo, faz com que essas pessoas sejam vítimas de intensa discriminação, preconceito e violências. O
questionamento que essa população coloca para a sociedade é muito mais radical do que aquele levantado pela orientação
sexual, que costuma possuir um grau de tolerância maior em nossa sociedade.

Isso porque os maiores conflitos gerados pela questão da sexualidade se dão no campo das identidades de gênero, naquilo que
nossa sociedade reconhece como uma espécie de traição dos valores mais caros para si. Por exemplo, você já deve ter
testemunhado alguém fazendo esse tipo de comentário com relação a uma pessoa homossexual: “Fulano pode fazer o que quiser,
desde que entre quatro paredes”. Ou, então, que alguém pode até ser homossexual, porém não precisa sair por aí rebolando,
trajando roupas que feminizam seu corpo, expressando trejeitos femininos, usando maquiagem. É quando alguns outros dirão,
desfilando sua própria ignorância: “Deus fez o homem e a mulher!” Mas, como já sabemos, é preconceito, e a discriminação
contra as diferentes formas de expressão sexual e afetiva representam uma ofensa à diversidade humana e às liberdades básicas
garantidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal.

Dentro desta sociedade, você pode até possuir uma orientação sexual divergente, desde que você não extrapole a questão do
gênero, isto é, desde que se vista e se comporte de acordo com aquilo que seu sexo biológico supostamente determinaria, que
seria, em outras palavras, o padrão cisgênero.

Trata-se, aqui, do questionamento da lógica hegemônica que vigora em nossa sociedade, qual seja, a do sexo biológico como
determinante da identidade de gênero. Estes são os menos tolerados entre as minorias sexuais inseridas na sigla LGBTQIA+ e,
consequentemente, os que estão mais sujeitos à violência e à ausência dos fatores que compõem os determinantes da saúde,
como educação, trabalho, moradia e, especialmente, acesso aos serviços de saúde.

Em vista disso, essa população está muito mais sujeita a uma série de agravos à saúde, sendo que uma das principais marcas das
políticas de saúde voltadas para essa população é o reconhecimento dos efeitos da discriminação e exclusão sexual em seu
processo saúde-doença.

“Compreender a determinação social no dinâmico processo saúde-doença das pessoas e coletividades requer admitir que a
exclusão social decorrente do desemprego, da falta de acesso à moradia e à alimentação digna, bem como da dificuldade de
acesso à educação, saúde, lazer, cultura interferem, diretamente, na qualidade de vida e de saúde. Requer também o
reconhecimento de que todas as formas de discriminação, como no caso das homofobias que compreendem lesbofobia, gayfobia,
bifobia, travestifobia e transfobia, devem ser consideradas na determinação social de sofrimento e de doença.” (PNSILGBT,
BRASIL, 2013, p. 13)

As condições de agravos à saúde mais comuns, decorrentes dessas determinações sociais relacionadas à sexualidade, são: os
altíssimos níveis de agressões, violências e assassinatos sofridos; os alarmantes índices de sofrimento psíquico, como ansiedade,
depressão e tentativa de suicídio; o alto índice de vulnerabilidade a violências sexuais, o que pode corresponder a um maior risco
de DSTs, como aids, HIV e hepatites; o uso abusivo de hormônios femininos; complicações relativas à aplicação de silicone
industrial; agravos relativos ao uso de testosteronas de uso animal, de qualidade duvidosa ou em concentrações inadequadas;
danos ao tecido mamário e ao músculo peitoral pelo uso prolongado de faixas compressoras para esconder as mamas;
automutilação decorrente do intenso sofrimento do sujeito por ter um corpo com o qual não tem qualquer identificação, como
tentativas de autoamputação do pênis, dos testículos ou mamas, dentre muitos outros (BRASIL, 2013).

Como você pode perceber, muitos dos agravos relatados acima se referem à dificuldade no acesso aos serviços de saúde. São
muitos os estudos que, ao relacionarem cuidado em saúde e diversidade sexual, têm apontado o estigma e a discriminação como
grandes obstáculos ao acesso dessa população aos serviços de saúde. Isso porque os próprios serviços de saúde são também
compostos pelos mesmos membros dessa sociedade descrita acima, ou seja, os serviços de saúde se organizam a partir de uma
lógica cis-heteronormativa que produz exclusão, daí a exigência de uma ética no cuidado em saúde.

Módulo 3: Identificar uma concepção de ética que visa contribuir para a produção de um cuidado inclusivo e humanizado em
saúde para a população LGBTQIA+.

FORMAS DE CUIDAR MAIS ALIADAS À VIDA, LIVRES DE PRECONCEITOS E EXCLUSÕES

O Cuidado Como Ética Universal No Campo Da Saúde

Pensar o cuidado no campo da saúde como uma ética requer que realizemos, pelo menos, dois movimentos iniciais.

I. Primeiro: O primeiro é o de analisar os diferentes sentidos que o termo ética tem adquirido ao longo das últimas
décadas, naquilo que podemos chamar de senso comum. Definimos senso comum aqui como uma forma de
apropriação espontânea do termo ética, baseado em experiências cotidianas, vivências institucionais, notícias de
jornais, debates televisivos ou em interações por meio das redes sociais. Referem-se, em última análise, aos usos
práticos ou efetivos do termo, baseados nos costumes sociais de certo espaço geográfico e tempo histórico, sem
preocupações relativas às definições ou conclusões científicas.
II. Segundo: O segundo movimento é aquele que nos obriga a revisitar o significado tradicional do termo ética, relativo ao
campo dos saberes formais ou científicos. Nesse caso, nosso objetivo será o de resgatar ou mesmo o de colocar em
análise seu significado histórico, a fim de depurá-lo e, sobretudo, fazer com que este possa nos servir de ferramenta
para nossas práticas no campo da saúde. Trata-se aqui da ética como um campo de discussão filosófica, campo de
reflexão teórica e de produção de conhecimento.

Entenda melhor a seguir o primeiro e segundo movimentos:

Primeiro movimento: a ética como panaceia universal

Nas últimas décadas, tornou-se comum entre os teóricos a percepção de que o termo “ética” teria sofrido uma superinflação. Ou
seja, tradicionalmente considerada como um ramo da filosofia ou mesmo como uma de suas disciplinas, a ética teria estendido
seus domínios em demasia, fazendo-se presente nos mais variados discursos e nos mais diversos âmbitos da vida social.

Fala-se em ética na política, ética na ciência, ética no trânsito, ética no ambiente de trabalho, ética profissional, ética nas
comunicações, nas redes sociais e até mesmo na vida cotidiana. Simultaneamente, pede-se, ainda, para que os indivíduos se
posicionem num campo ético em relação a numerosos acontecimentos, nos mais variados âmbitos da vida. É como se a cada
indivíduo fosse permitido ter uma ética própria, o que nos levaria, se esse fosse o caso, a um relativismo generalizado de valores,
ou a um vale-tudo.

O fenômeno contemporâneo do “ter a minha opinião” ou do “ter a minha verdade” pode ser considerado como um bom exemplo.
Isso porque, em sua vida cotidiana, muitos indivíduos costumam se sentir pressionados a se posicionarem eticamente frente aos
mais diversos assuntos, e isso, muitas vezes, sem se darem conta, ou sem estarem conscientes.

A obrigação sentida por esses indivíduos está diretamente relacionada a essa perspectiva banalizada da ética, uma vez que, a
partir dessa compreensão, não ter opinião passa a ser um sintoma de fraqueza moral, ou seja, uma falta de ética, fazendo com
que esses indivíduos sofram uma desvalorização social frente ao grupo a que pertencem.

Outro inconveniente que o uso indiscriminado do termo ética coloca é o fato de este ser utilizado muitas vezes para transformar
problemas sociais, ou seja, problemas de causalidades complexas, em problemas individuais, culpabilizando os sujeitos
isoladamente.

Poderíamos pensar, por exemplo, em determinado conflito que se passa em uma escola, mais especificamente entre um professor
e seus alunos.

Um professor teria perdido a paciência, cometendo algum excesso no trato com os estudantes. No caso deste exemplo, o
problema em questão poderia muito facilmente ser considerado ou interpretado como uma questão de “ética docente”, nesse
caso a falta dela.

O professor poderia, então, ser chamado a responder pela sua atitude por meio de uma série de procedimentos que vão da
simples advertência até o que se poderia chamar de reciclagem ou capacitação. Ora, todas as questões estruturais relativas à
desvalorização do trabalho docente, aos baixos salários, às condições de ensino, à precarização da escola, à falta de autonomia
pedagógica, ao número de alunos em sala de aula, entre outros, ficariam intocadas, ou seja, não seriam colocadas em análise.

Como podemos perceber nesse exemplo, os problemas históricos e estruturais da educação podem ser facilmente interpretados
como um suposto problema de ética individual, nesse caso, possivelmente, sendo chamada de “ética profissional” ou “ética
docente”.

Contudo, as questões relatadas acima representam apenas parte do problema causado pelo uso indiscriminado do termo “ética”.
A outra parte diz respeito ao fato de que a amplificação e generalização indiscriminada do termo acaba empobrecendo seu
sentido próprio, isto é, fazendo com que este perca sua força e seu potencial de produzir reflexão. Tal termo possibilita grande
abrangência de entendimentos e, assim sendo, parece compreensível a importância de se pensar o cuidado no campo da saúde.
Isto posto, entende-se que a ética requer que realizemos uma pequena investigação acerca de seu sentido originário.

Segundo movimento: as origens da reflexão ética e sua relação com o cuidado

A origem etimológica da palavra ética vem do grego ethos, que significa modo de ser.

Na antiguidade grega, seu sentido estava relacionado à busca de uma boa maneira de agir, de uma sabedoria relativa às condutas
para que se pudesse alcançar uma vida boa, justa, honrosa e bela.
Essa concepção de ética é bastante curiosa para nós, contemporâneos, uma vez que está muito distante da maneira como
concebemos nossa existência. Se tomarmos a discussão do que é arte, por exemplo, veremos que esse debate atravessou séculos,
no sentido de se definir se uma tal atividade ou ofício poderia ser considerado arte ou não. Todavia, a despeito das concordâncias
e discordâncias, ou da adequação ou não de uma tal atividade dentro daquilo que fora definido como arte, o fato é que, quando
pensamos em arte, pensamos logo na produção de objetos dados à nossa percepção, como quadros, esculturas, filmes, músicas,
peças de teatro, livros, entre outros.

Como você pode ver, a arte é geralmente pensada como uma produção de coisas. Para os gregos, entretanto, o principal objeto da
arte era a própria vida, ou a maneira de se conduzir no mundo, entre pessoas e coisas. Ou seja, como fazer da própria vida uma
obra de arte.

Daí ser a ética uma sabedoria, uma reflexão ou uma arte das condutas, do modo de agir no mundo. É por isso também que a ética,
como veremos mais adiante, está relacionada com uma prática de liberdade, com um cuidado consigo mesmo, e não com simples
obediência.

Se ser ético está relacionado com uma forma de construir a própria vida singularmente, com um fazer artístico, ela não pode estar
submetida apenas a fórmulas, códigos, manuais, protocolos ou padrões ditados por um outro.

A ética é uma prática de reflexão sobre nossa autonomia, sobre como construir com o outro relações de liberdade e bem-estar.

Como você deve estar imaginando, a reflexão filosófica sobre a produção de uma vida boa, justa, bela e honrada não é tarefa fácil.
Isso porque muitas são as coisas que, em nossa existência, não dependem de nós, ou seja, da nossa vontade. É o que os gregos
denominavam fortuna ou destino, mas não no sentido de algo selado definitivamente, mas daquelas coisas que não estão sob
nossa jurisdição. Internamente, somos ainda povoados por paixões que muitas vezes dominam nossas ações no mundo. Agimos e
só depois nos damos conta do que fizemos. Existe todo um mundo psicofisiológico de sensações e pensamentos que não passam
necessariamente por nossa consciência, e ainda que estes se tornem conscientes, não é certo que nossa força de vontade seja
suficiente para estabelecer um domínio adequado sobre os mesmos. Há, portanto, batalhas externas e internas a serem travadas,
caso nosso horizonte seja uma vida ética.

Dominar as paixões e a fortuna, a fim de se produzir uma vida boa, era o que os gregos tinham em mente na construção de seus
preceitos filosóficos, ainda que houvesse diferentes maneiras de conceber tanto a virtude ética quanto o caminho para alcançá-la.

Essa virtude ética também recebia outros nomes, como felicidade, soberano bem, bem supremo, justiça, vida bela, entre outros. A
busca pelo soberano bem envolvia uma série de preceitos, normas e regras, em vista de se aproximar da virtude e da correção.

Esses preceitos podem ser traduzidos por aquilo que hoje conhecemos como função da saúde, da educação, da economia, do
direito, da política, das artes e das ciências em geral.

Como podemos notar, não havia ainda a divisão dos saberes em disciplinas, fenômeno que teve seu início na modernidade. Aliás,
uma vez que se trata aqui de pensar a ética como uma ferramenta para nossas práticas em saúde, é preciso lembrar que todos
esses procedimentos relacionados à ética poderiam, ainda, ser resumidos sob a denominação de remédio, ou de uma saúde
Paideia (Termo usado pelos gregos sobre a noção de educação na sociedade grega clássica. Aqui, o termo também está sendo
usado no sentido de uma cura ou de uma salvação. ) (JAEGER, 2013), como também era chamada.

O cuidado com a vida, isto é, consigo mesmo e com o outro, ou, simplesmente, a ética, era pensada como a busca ou a conquista
de um remédio para a existência, para uma vida que valesse a pena ser vivida. Como veremos com mais detalhes adiante, o
conceito de ética não somente pode ser pensado como uma ferramenta para nossas práticas em saúde na contemporaneidade.
Na verdade, é o próprio conceito que, em seu sentido original, nos remete imediatamente a práticas de cuidado de si e do outro.

Como você já deve ter percebido a partir daquilo que foi descrito, não seria razoável pensar na existência de uma só ética, mas de
muitas. Porém, isso não significa dizer que existiria uma ética de cada um, coisa que já questionamos anteriormente, mas no
sentido da ética como forma de conduzir de um povo, numa determinada época.

Por exemplo, você já deve ter ouvido falar na tese de que vivemos numa sociedade do consumo. Isso quer dizer que nossa
maneira de sentir, ser e pensar é caracterizada por uma permanente insatisfação e pelo incessante desejo do novo, fazendo com
que estabeleçamos relações descartáveis com coisas e pessoas. Essa maneira de se conduzir é denominada por muitos teóricos
como ética do capitalismo.

Ao longo da história, existiram outras, como aquelas formas de se conduzir baseadas numa lei transcendente, em que a justiça e o
bem já estariam prontos em algum lugar fora de nós, bastando que um filósofo ou um sacerdote as revelasse. Nesse caso, nosso
papel seria apenas o de obedecer a essas leis, mesmo que as considerássemos injustas, uma vez que elas eram as representantes
de um bem supremo, transcendentes a nós mesmos e, portanto, impassíveis de questionamento. Essa ética pode ser denominada
ética platônica ou também ética cristã, já que esta última foi um desdobramento da primeira.
Poderíamos ir muito mais além com essa lista, porém, ela nos desviaria de nosso objetivo, que é o de pensar em uma perspectiva
ética que sirva como ferramenta para pensar nossas formas de nos conduzirmos no cuidado em saúde e nossas relações com a
produção de verdades nesse campo. Para isso, tomaremos como ferramenta de reflexão a “ética do cuidado de si”, proposta pelo
pensador francês Michel Foucault, o mesmo que nos serviu para refletir sobre o tema da sexualidade e das relações de saber-
poder relacionadas a esta, pois acreditamos que ela nos permite pensar em formas de cuidar mais alinhadas à vida, combatendo
as lógicas do preconceito e da exclusão no campo do cuidado em saúde.

Terceiro Movimento: A Ética Do “Cuidado De Si” Como Ferramenta Para Formas De Cuidar
Mais Alinhadas À Vida

“Os desafios na reestruturação de serviços, rotinas e procedimentos na rede do SUS serão relativamente fáceis de serem
superados. Mais difícil, entretanto, será a superação do preconceito e da discriminação que requer, de cada um e do coletivo,
mudanças de valores baseadas no respeito às diferenças”. (PNSILGBT, 2013, p. 16)

Falávamos de algumas consequências problemáticas no uso indiscriminado da palavra ética. Outra consequência, deixada para ser
mencionada agora, é a sensação de desordem revelada por aqueles indivíduos que, a todo tempo, dizem faltar ética nas relações
humanas. Frente às variadas situações de conflito inerentes às relações humanas, tais indivíduos costumam apontar sempre as
mesmas causas, a saber: a escassez de leis mais rigorosas, a falta de cumprimento das que já existem e a ausência de punições.

A consequência de tais interpretações faz-se ainda acompanhar por discursos que clamam por maiores controles que,
supostamente, melhor regulariam as relações entre os indivíduos, doravante interpretadas como desordenadas, caóticas,
degeneradas. É que esses indivíduos confundem a instabilidade própria das relações democráticas contemporâneas com a noção
de desordem, sendo o atual apelo à ética uma nostalgia autoritária que clama para o retorno de regras mais rígidas que,
supostamente, teriam sido perdidas em algum momento do passado.

Como você pode notar, a insistente referência à ética, antes de estar relacionada com uma reflexão sobre o cuidado, a saúde e a
liberdade, é facilmente transformada em uma espécie de moralização das relações, isto é, como fechamento da possibilidade de
se pensar em outras formas de estar no mundo, uma vez que, em vez de afirmar a crise dos códigos endurecidos como
possibilidade de invenção de novas maneiras de ser e de estar com o outro, demandam por mais limites e contenções.

Segundo Andrade, Givigi e Abrahã (2018), o campo do cuidado em saúde também não é diferente, pois, neste, as referências à
ética têm como foco principal o respeito aos códigos que prescrevem as condutas das respectivas profissões, nas quais as faltas
são atribuídas ao não cumprimento dessas normativas, descrito por códigos de “ética” que, na verdade, dizem respeito apenas a
parâmetros legais que definem aquilo que se deve ou não fazer, bem como suas punições.

Como você pode perceber, trata-se, mais uma vez, de um uso inadequado da palavra, pois, colocada nesses termos, não haveria
sequer espaço para discussão e criação de estratégias singulares mais alinhadas ao cuidado com o outro. Consequentemente, não
haveria também espaço para a reflexão ética, pois a ética, como dissemos anteriormente, é uma atividade de criação, uma
estética, como sugere Foucault (2004). Nesses termos, toda a complexidade da reflexão e da criação ética seria restringida em
favor do mero julgamento moral das ações e da procura de culpados.

À diferença disso, e alinhados com Foucault, podemos adotar uma perspectiva ética que pensa que as relações entre os seres
humanos devem ser cuidadas com práticas de liberdade, que é a própria condição da ética, e não com práticas de controle e
diminuição da autonomia do outro e de nós mesmos, o que apenas reforçaria condutas de julgamento, discriminação e exclusão.

Se a ética não se identifica com a submissão aos valores estabelecidos, às prescrições e aos códigos que se propõem dizer a
verdade sobre os modos singulares de funcionamento da vida, o que, então, seria ela? E mais, por que devemos pensar uma ética
do cuidado em saúde que, antes de mais nada, deve ser um cuidado de si?

De fato, é o próprio Foucault (2004) quem vai dizer que não se deve passar o cuidado do outro na frente do cuidado de si, e é ele
também, mas não somente, quem dirá que a ética é a prática refletida da liberdade, e não o assujeitamento aos valores de uma
dada instituição, sociedade, entre outros.

É importante ressaltar que a ética do cuidado de si pensada por Foucault não faz oposição ao cuidado com o outro. Bem ao
contrário, segundo este, é o cuidado de si que pode regular nossas relações com o outro.

Como ele mesmo diz:

“O risco de dominar os outros e de exercer sobre eles um poder indevido decorre precisamente do fato de não ter cuidado de si
mesmo e de ter se tornado escravo de seus desejos.” (FOUCAULT, 2004, p. 271)

Cuidar do outro exige, portanto, que conheçamos nossos próprios afetos, nossos apetites, os efeitos de poder dos lugares que
ocupamos, as verdades de que somos portadores, os valores que fazem com que nos reconheçamos como indivíduos, as
prescrições que embasam nossa conduta, os modelos de humano que reproduzimos e as concepções de vida e saúde em jogo
nessa reprodução.

Como você pode ter notado, a ética não significa o cumprimento dos valores e das verdades legitimadas, mas uma reflexão sobre
estas.

E por que isso nos remeteria a um cuidado conosco mesmo?

Na verdade, simplesmente pelo fato de que somos constituídos por estes mesmos valores, aquilo que eu penso e sinto está
diretamente relacionado com o modo como nossa sociedade constrói sua forma de ver e sentir o mundo.

Assim, no campo do cuidado em saúde, cabe-nos refletir, além da forma como somos constituídos pelos saberes legitimados como
verdades, devemos analisar também os lugares de saber-poder que ocupamos nessas relações. É essa a ética que devem guardar
aqueles que se habilitam e são habilitados a fazer circular discursos verdadeiros no campo da saúde.

Pôr em questão a forma como somos constituídos pelas relações de saber-poder e também a forma como habitamos tais relações
é o trabalho ético que devemos praticar nas relações de cuidado.

Como podemos observar, tal análise constitui-se em uma atitude que interroga as implicações do lugar que ocupamos na ordem
do saber/poder, e, neste caso, do saber/poder que se opera no campo das práticas em saúde. Todavia, de acordo com Foucault
(2004), essa é uma empreitada que possui um caráter paradoxal, uma vez que aquilo que visa pôr em questão não são somente os
lugares que ocupamos, mas, sobretudo, nós mesmos.

Essa atitude para consigo ou esse ethos questionador de si que caminha na direção da produção de modos de vida singulares é o
que Foucault denomina cuidado de si. E é aqui que se situa o tema da ética e, ao mesmo tempo, a novidade do discurso
foucaultiano.

No campo das relações entre saúde e sexualidade isso fica ainda mais evidente, pois, como vimos, a homossexualidade deixou de
ser considerada uma patologia na década de 1970 apenas por pressões de movimentos sociais organizados. Isso quer dizer que,
antes disso, se nos relacionássemos com essa população mediados pelos saberes dominantes no campo da saúde, qual seja, o
saber biomédico, estaríamos produzindo violência e exclusão, ainda que realizando um trabalho considerado qualificado
tecnicamente, cumpridor dos protocolos em voga na ocasião.

No campo do cuidado com a população trans, isso costuma acontecer, por exemplo, no processo transexualizador, em que os
profissionais que agem de acordo com os procedimentos do SUS, ao seguirem o padrão diagnóstico, excluem aqueles indivíduos
considerados como não adequados a esses padrões.

É a própria norma que aqui se torna discriminatória e violenta, daí a ética ser uma reflexão sobre como nos relacionamos não
apenas com o outro, mas também com os saberes e as verdades que nos constituem e que veiculamos, uma vez que tomamos
essas verdades como se fossem nossas.

Por fim, e com relação a isso, não poderíamos deixar de afirmar que travestis e transexuais ainda são vistos pela medicina como
seres portadores de patologia, identificados por uma Classificação Internacional de Doenças.

Ainda hoje, para os saberes médicos e “psis” (psicologia, psicanálise e psiquiatria), a transexualidade é vista como algo patológico,
descrito no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) como “Disforia de Gênero”, e pela Classificação
Internacional de Doenças (CID-10), como “transtorno de identidade de gênero”.

Recentemente, a OMS anunciou que fará mudanças nessa classificação, a partir do CID-11, que deverá entrar em vigor em janeiro
de 2022. Nesse novo manual, a transexualidade deixa de ser considerada “transtorno de identidade de gênero” e passa a ser
classificada como “incongruência de gênero” (APA, 2014; OMS, 1997).

Como apontou, certa vez, um militante do movimento LGBT: “Saímos de transtornados, depois para disfóricos, para sermos agora
incongruentes”.

CONCLUSÃO:

Temos, então, dois direcionamentos para que possamos pensar um cuidado ético, alinhado com a vida e livre de preconceitos e
discriminações, embasados pelas discussões empreendidas pela ética do cuidado de si foucaultiana. Um que pressupõe o
assujeitamento dos indivíduos a códigos preestabelecidos, cujo paradigma é a produção de verdades que engessam as relações
entre trabalhadores e usuários. O outro é aquele cujo paradigma pressupõe uma autonomia que coloca em jogo a possibilidade de
nos conduzirmos, de nos cuidarmos, de inventarmos outras formas de cuidar baseadas em relações não discriminatórias. O
cuidado de si significa, em suma, a invenção de formas singulares de ser e estar com o outro, baseadas no respeito às diferenças e
no aumento da potência de existir de ambos. Ser ético não significa dizer que meu direito termina onde começa o do outro, mas
sim que a minha liberdade começa onde começa a do outro, e também minha saúde e meu bem-estar.

Assim, o cuidado que queremos no campo da saúde aponta para este último direcionamento, isto é, para a possibilidade de
produções singulares que se abram para diferentes modos de ver, ouvir, pensar, sentir, cuidar e amar. Um cuidado que provoque,
nas relações com o outro, possibilidades de transformações, seja no trabalhador, seja no usuário, de modo que o que vai nortear o
cuidado será menos o protocolo, a norma e a regra, e mais a possibilidade de criação que se abre no fazer em saúde a partir de
cada encontro, ou seja, um cuidado norteado pela vida em sua singularidade, e pela normalização e mortificação do outro.

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