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Psicanálise Online Com Crianças - Uma Prática em Construção
Psicanálise Online Com Crianças - Uma Prática em Construção
Psicanálise Online Com Crianças - Uma Prática em Construção
Resumo
Em tempos de isolamento social, o recurso ao atendimento online com adultos tem sido uma
prática constante entre os analistas. É consenso, porém, que não substitui o atendimento pre-
sencial, mas pode ser efetiva. A autora, a partir de sua experiência da psicanálise online com
crianças, defende a ideia de que o mesmo atendimento pode ser feito uma vez que os objetos voz
e olhar, e a escuta do analista podem se manter. Este texto é uma reflexão sobre esse trabalho
que, movido pela impossibilidade da presença dos corpos de analista e analisando, sustentou
uma prática analítica neste momento de privação da presença imposto pelo distanciamento
social.
crianças e trazer esta reflexão sobre mi- um Outro tão onipotente aos seus olhos.
nha clínica com elas nestes tempos de
pandemia. Não! O Outro está furado e, durante a
Comecemos com uma breve aborda- análise, a criança se dá conta disso:
gem de psicanálise presencial com crian-
ças. Minha mãe acha que sabe tudo, quer
No trabalho com crianças, a dimensão mandar em tudo. Ela não sabe, mas não
imaginária, que nos traz o corpo, o sentido é tão certinha quanto acha que é.
e a agressividade, não pode ser ignorada.
Aqui o psicanalista entra por inteiro – A percepção do furo no Outro e de
voz, olhar, cheiro, corpo. Corpo sem tato, seus próprios limites é o que propicia a saí-
sem tatear. Sua presença se confunde e se da da alienação e a operação de separação.
funde com seu corpo e, isto é evidente, Com isso é possibilitada a saída do lugar
quando ele brinca, dramatiza ou joga. pernicioso de objeto exclusivo do gozo
Seus personagens, normalmente para- parental – não ser mais um defensor cego,
sitados pelos desejos que lhe são atribuídos uma ponte ou um brinquedo dos pais. É
pelas crianças, entram em cena e cumprem um dos grandes ganhos para a criança em
seus papéis, mas, de repente, se rasgam e sua análise.
surge um dito ou uma ação diferente da Em Nota sobre a criança, Lacan
combinada, que pode vir a ser um ato ([1969] 2003, p. 369) estabelece uma
que tira tudo do lugar, virando tudo de ligação entre o sintoma da criança e a
ponta-cabeça. família. Ele nos diz que
As crianças se defendem:
[...] o sintoma da criança acha-se em
Lá vem você com esse papinho de psi- condição de responder ao que existe de
cóloga!... sintomático na estrutura familiar.
Isto não tava no combinado. Assim não
vale! Segundo Lacan, o sintoma pode repre-
sentar a “verdade do casal familiar”. O que
Mas as cenas se seguem, se encadean- é indicado aqui é que, em seu sintoma, a
do e desencadeando, conforme o que é criança denuncia que algo vai mal – com
escutado pelo psicanalista nas entrelinhas ela ou com a família, ou com o par paren-
das falas, nas frestas das brincadeiras, nos tal, ou com todos.
suspiros, nas risadas e nas caras feias. E é Nesse sentido, ela muitas vezes é
nesse desencadear que surge a esperança encaminhada ao analista para restabe-
do novo, de um laço diferente com o Ou- lecimento de um status quo de gozo, ou
tro, com a Lei, com o mundo. seja, que a verdade semidita do sintoma
A fantasia em construção tem a pos- seja tratada através do atendimento da
sibilidade de novos desdobramentos. E o criança.
real desconhecido não precisa ser mais tão Dessa forma poderá haver, sob a ótica
avassalador e promovedor de sintomas. parental, o restabelecimento da ordem
Chapeuzinho Vermelho ou o porquinho familiar, do narcisismo dos pais e o alívio
aprendem a fazer diferente na presença do sofrimento da criança. Mas a análise
dos lobos. Lobos que sempre virão porque infantil não tem por objetivo a adaptação
fazem parte da vida, mas que não os to- da criança e muito menos o bem-estar
marão mais de assalto, vítimas de um não familiar. Isso pode ser a consequência.
saber do perigo, de um não saber fazer com Por outro lado, concordo com Silvia
a angústia suscitada pelo encontro com Zornig citada por Flechet (1989) quando
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ela estabelece duas categorias de sintoma: Com base no que foi dito aqui, pode-
o sintoma descrito acima como resposta mos afirmar que, aquele que se dedica ao
à neurose dos pais e o sintoma analítico tratamento psicanalítico de crianças não
propriamente dito, articulado ao recalca- deve negligenciar os pais e a importância
mento primário e correlato à constituição da transferência deles com o analista, caso
da neurose do sujeito. contrário a análise pode não se sustentar.
Daí a necessidade de uma escuta cri- Vorcaro (1998, p. 75) nos lembra:
teriosa dos pais, como nos advertem Silva
e Rudge (2017), a fim de que possamos, O analista, portanto, está no lugar de
enquanto analistas da criança, “[...] perce- suportar uma transferência de dois lados,
ber as amarrações entre pais e filhos nesse já que não pode ser, para ele, espantoso,
enlace patológico”. Assim, será possível o que os pais lhe demandem algo para o
redimensionamento das questões trazidas seu filho.
pelos pais ao procurar um analista.
Com a criança, o analista como cor- E continua:
po, voz, olhar e escuta, testemunha os
deslocamentos do inconsciente transmu- Tal transferência de dois lados institui o
tados em jogos e brincadeiras. Seu olhar, analista num duplo lugar: sujeito suposto
diferente da visão, visa o para-além da saber para os pais e sujeito suposto adivi-
imagem apresentada e junto com a escuta nhar para a criança, para quem a fala do
localiza, pontua o não dito de um novo analista ressoa no “como você adivinhou”
sujeito. Ele se deixa surpreender pelas (Vorcaro, 1998, p. 75).
manobras dos pequenos, mas denuncia
e pontua o ‘causa-dor’ de tudo. Pontua- Mas...
ções que provocam reações e colocam a Tudo isso seria possível online?
criança frente a frente com seus impulsos Seria possível na ausência do corpo
e pulsões. do analista?
E o sintoma, assim questionado, vai Voz e olhar se sustentariam através de
entrando em convulsão e em lenta dissolu- milhares de pixels?
ção. A inibição é sacudida e vai caindo em E os brinquedos?
lascas deixando livre o sujeito. A angústia Como atuar com crianças na ausência
entra em lenta dissipação à medida em que de jogos e brinquedos, fora da segurança
a aproximação do Outro já não se faz tão sigilosa das quatro paredes do consultório?
ameaçadora. É até possível brincar com o Todas essas questões me pegaram em
monstro e provocá-lo: cheio no início da quarentena e do isola-
mento social.
Vampirinho!... Ah! eu aqui, oh!!! Vem Analista de crianças há muitos anos,
me pegar! nunca tinha passado por nada semelhante
ao que está acontecendo nem imaginei
De seduzido, o sujeito passa a sedutor, que um dia viveria algo assim. Eu já havia
repetindo o terceiro tempo do circuito atendido alguns adultos online por ocasião
pulsional, se fazendo objeto para o Ou- de viagens, mudanças e doenças, mas
tro, não mais apassivado, mas de maneira criança?
ativa, escolhida, balizada por seu desejo. Nunca imaginei que isso fosse pos-
Dessa forma, os medos, as inseguranças, sível. Mas quando o real se impõe a nós
as inibições podem dar lugar ao objeto de como impossível, nos resta, como sujeitos
desejo, e a criança mais livre pode alçar analisados, a saída de uma nova constru-
novos voos. ção, uma reinvenção que nos possibilita
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Psicanálise online com crianças – uma prática em construção
seguir em frente enquanto sujeitos dese- Fui receosa, mas sem ‘pré-conceito’,
jantes. Sim, me dei conta de que, se eu mesmo porque, como disse anteriormen-
quisesse sustentar o laço construído com te, nada do que vivemos e estudamos até
meus pequenos analisantes, teria que me então nos preparou para o trauma desse
valer de meu desejo de analista e construir corte em nossa vida. Não havendo, pois,
uma nova prática. corpo teórico acerca desse desamparo
Mas daria certo? radical, não havia um conceito contra o
Enquanto me debatia durante a qual me opor.
primeira semana de isolamento com a Dessa forma, combinei com a mãe um
questão ética desse tipo de atendimento, novo setting para as sessões: um lugar na
comecei a ouvir as primeiras das muitas casa com privacidade, uma mesa com ma-
lives que surgiram como um novo fenô- terial de desenho, alguns brinquedos es-
meno no campo da psicanálise. Contudo, colhidos pela criança. Frisei a importância
todas se referiam ao atendimento online de ela estar sozinha como se estivesse no
de adultos, da sua validade apesar de não consultório e sem nenhuma interrupção
substituir o presencial. de qualquer tipo.
No entanto, com as crianças... Quem Fui para a sessão e... surpresa! Foi
me autorizaria? um dos atendimentos mais interessantes
Eu! com crianças que já conduzi, no qual
Essa resposta coincidiu com a de- meu pequeno analisante, num movimen-
manda de um cliente de 10 anos que, ao to claro e inédito até então de separação,
ver o irmão adolescente sendo atendido se colocava fora das disputas parentais
online pelo analista, insistiu com a mãe que acirradas no momento do isolamento
também queria ser atendido por mim. A social.
mãe me ligou. Demanda de análise feita, Seus pais, tomados por um ódio irre-
me restava aceitar ou declinar. freável, se agrediam e buscavam angariar
A opção mais fácil seria a segunda, a simpatia dos três filhos ao seu ponto de
mas eu já havia me autorizado e andava vista. Os filhos, jogados ora contra um,
preocupada não apenas com o isolamento, ora contra outro, ficavam angustiados,
com a angústia de morte suscitada por atordoados, com medo de apoiar um e
uma ameaça invisível, mas também com perder o outro.
a aproximação forçada da família sem Meu paciente, sem querer tomar a de-
possibilidade de escapatória através da fesa ou o partido de ninguém, colocou-se
natação, do judô e do balé. naquela sessão de análise fora da disputa.
Pais e filhos confinados, na maioria Eles se provocam e brigam. Eles que
dos casos em apartamentos, sem parques se resolvam!
ou jardins, sem amigos ou inimigos. O per- Foi um primeiro passo, nunca antes
curso feito até então em análise por essas dado, mas um primeiro passo! Sei que
crianças seria o suficiente para sustentar a caminhada ainda seria longa, mas me
tudo isso, toda a angústia suscitada por animei e, a partir dessa experiência, propus
esta nova realidade? às outras famílias e aos meus pequenos
Com tais questões em mente e um analisantes o atendimento online.
pouco tranquila pelo fato de essa crian- Alguns pais preocupados “com o vín-
ça ter um simbólico bem constituído e culo” da criança com a analista, concorda-
uma transferência bem estabelecida, ram, mas com uma frequência quinzenal;
aceitei fazer uma sessão, escutá-la e outros com a semanal. E o trabalho tem
avaliar as possibilidades de tal tipo de acontecido com algumas intercorrências,
atendimento. mas tem sido possível.
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Percebo que minha voz e meu olhar, Minha experiência, no entanto, se deu
objetos que sobraram do corte operado com crianças que já estavam em análise
pelo online, têm sustentado o trabalho. antes do isolamento social, que já haviam
Mímicas, brincadeiras de espelho, danci- estabelecido uma relação transferencial
nhas, cambalhotas e pulos no sofá trazem comigo, isto é, que descobriram a possi-
o corpo de volta à cena através da imagem bilidade de vir a ser sujeito de seu desejo
refletida na tela. Eles se movem para mim nesta relação em que seu dito tem valor
e para eles mesmos, num deleite gozoso de verdade, é levado a sério e comporta
com a própria imagem. consequências.
Brincadeiras sem sentido explodiram Alfredo Jerusalinsk (2011, p. 28)
e, num primeiro momento, o duplo senti- afirma:
do do simbólico cedeu lugar ao nonsense
do real. Contudo, com a persistência de A transferência na infância consiste
analista e analisandos, o trabalho tem em que o analista permita à criança:
acontecido. O simbólico começa a dar as a expansão ficcional no Outro encar-
caras em brincadeiras de casinha, relatos nado seguramente por seus pais ou em
de sonhos, comentários de livros, filmes e quem seja, que não foi permitida. Por
séries, desenhos, etc. isto que o analista se torna confiável
Dessa forma, tem sido possível ouvir para a criança. Não porque exerça uma
a angústia de morte trazida por um vírus autoridade como dizia Anna Freud, ou
ameaçador, castrador e incompreensível, porque é um adulto, é confiável porque
elaborar a tristeza de estar separado de lhe permite a expansão ficcional que os
amigos e parentes queridos, a chatura das outros não lhe permitiram. Permite-lhe
aulas online, a pressão e a contrapressão buscar a margem desta ficção, a margem
vividas em casa pelo contato cotidiano do imaginário à qual os outros não lhe
sem intervalos com os familiares. permitiram aceder, seja porque não o
Como pano de fundo, paira o medo da demarcaram ou lhe negaram o exercício
morte trazido pela Covid-19, anunciada do saber imaginário que lhe é próprio da
em todos os veículos de comunicação, infância.
além do temor da perda dos pais, com o
consequente desamparo. Entendo essa expansão ficcional como
Fui levada à intimidade dos quartos e um saber não sabido pela criança sobre
das salas, travei conhecimento com pets e sua verdade, sobre o par parental, sobre
brinquedos preferidos e participei de um a família. Saber sobre seu sintoma e sobre
giro virtual pela casa de meus pacientes. seu lugar de sintoma na família:
Crianças que no consultório só jo-
gavam numa repetição que funcionava Lá em casa o errado sempre sou eu!
às vezes como resistência, numa clara Não vou ficar mais entre esses dois [pai
adesividade da libido num fechamento e mãe] que, em suas brigas, ficam me
à análise, passaram a desenhar, contar puxando pra lá, pra cá, pra lá, pra cá.
casos, inventar histórias trazendo lacunas
no discurso que viabilizaram o lampejo do Aqui sigo Jerusalinsk (2011) em sua
inconsciente. excelente diferenciação entre sinthome e
É interessante pensar nisto: esta nova symptôme (grafia do francês antigo) na
modalidade de atendimento trouxe, em infância.
alguns casos, o deslizamento significante,
como nesse caso de jogador a contador [...] sinthome é o sintoma da estrutura ou
de histórias... da formação inconsciente da estrutura,
E aqui nesta categoria ele inclui tudo E eu acrescentaria que tais operações
o que fazem as crianças: o desenhar, o dra- do analista podem ocorrer tanto nas aná-
matizar, o terror noturno, a fobia noturna, lises presenciais quanto nas análises online,
as fabulações, etc. é o que esse trabalho tem me mostrado
ser possível.
Mas é próprio da infância que ocorra Com o isolamento social, as crianças
tudo isso, se não ocorre, algo anda mal ficam mais sujeitas à pressão das demandas
(Jerusalinsk, 2011, p. 65). constantes que vêm dos pais. A escola foi
levada a lhes cortar o prazer do convívio
Já o symptôme, ou sintoma, ele coloca com os pares lhes deixando apenas o
como sintoma clínico, algo na “ordem da despreparado e enfadonho ensino online.
enfermidade psíquica”, “manifestação a Clubes, parques, praças, esportes, tudo
ser curada” (Jerusalinsk, 2011, p. 68). foi vedado.
Aqui Além disso, com o isolamento, elas
se viram separadas de amigos, parentes e
Não se trata de uma proposição como atividades que lhes davam prazer e, como
a da terapia breve, de tomar o sintoma todos nós, passaram por perdas e rupturas.
e reeducá-lo, mas de interpretar, ou Nesse caso, porém, por serem crianças,
seja, de produzir o corte, a costura ou a sua condição simbólica ainda está em
torção necessária na cadeia significante construção.
no ponto em que o representante do Confusas, elas enfrentam esta pande-
fracasso de resposta à demanda do Outro mia com suas fantasias às vezes persecu-
obriga a produzir um symptôme. Dito de tórias e terroríficas, amparadas apenas no
outro modo, se a produção do sinthome dito dos pais, enfraquecido, ele mesmo,
com th, o sintoma da estrutura fracassa pelas fantasias e pelos desejos insatisfeitos
como resposta à demanda do Outro, o dos adultos. Podemos dizer que, nesse pa-
sujeito tem que inventar uma coisa. Aí é norama, o sinthome de algumas crianças,
que vem o sintoma clínico (Jerusalinsk, vem se mostrando insuficiente no enfren-
2011, p. 68). tamento desse real.
A elas resta o incremento dos sin-
Se, por um lado, o sinthome pode ser tomas como expressão de suas angústias
visto como uma brincadeira de criança – mais mentiras, mais agressividade, mais
com a qual ela elabora angústias desper- comilança, mais improdutividade escolar,
tadas por um não saber-fazer frente ao mais brigas, mais inibição, mais angústia.
que lhe é demandado, por outro lado, o Dessa forma, com toda a limitação
sintoma é o que interroga o sujeito num defendo o trabalho online com crianças. É
Decifra-me ou devoro-te, o que nos desafia o que temos neste momento e, mesmo com
na clínica e o que pede a operação do dificuldade, tem tido sua eficácia na escuta
analista. desse sofrimento. Não vou dizer que tudo
Aqui um saber tem que ser criado a são flores, que tudo dá certo e tem final
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Maria Carolina Bellico Fonseca
Referências
ANDRADE, C. D. No meio do caminho.
Disponível em: http://www.algumapoesia.com.
br/drummond/drummond04.htm. Acesso em: dia
mês ano.
Sobre a autora