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EDIÇÃO #3

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Duas Cartas de John Keats
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John Keats não viveu mais de 25 anos. A tuberculose atacou,
em sua casa, primeiro o irmão Tom, de quem ele cuidou e
contraiu a doença. No final, não adiantou procurar o clima
mais ameno da Itália, a morte chegou para ele em Piazza di
Spagna, Roma, em 23 de fevereiro de 1821. Foi enterrado na
Itália como um JOVEM POETA INGLÊS e, a seu pedido, como
“alguém cujo nome foi escrito na água”, este inglês que
consumiu sua curta vida na procura febril da poesia.

Os escassos 25 anos lhe impuseram um ritmo acelerado ao


qual ele teve a coragem de não se furtar, apesar da consciência
de que “Nada é melhor para os propósitos das grandes
produções do que um amadurecimento muito gradual dos
poderes intelectuais”. Em sua biografia de John Keats, W.
Jackson Bate descreve a maturação do poeta desde o momento
em que abandonou os estudos de medicina para dedicar-se
exclusivamente à poesia. Um passo importante nesse
desenvolvimento foi a aventura de isolar-se em Isle of Wight
para escrever um longo poema de 4.000 versos, o teste de
invenção que veio a se tornar Endymion. Apesar do prefácio
que Keats redigiu para a primeira edição desse poema,
desculpando-se pelas muitas faltas ali encontráveis, os críticos
foram impiedosos. Keats suportou o revés, sem deixar que a
frustração impedisse o entusiasmo por novos projetos. Para
ele, a aventura de Endymion foi um ato pioneiro, abrindo-lhe
portas que sem o longo esforço talvez se tivessem mantido
fechadas. Mais tarde, não hesitou em deixar inacabados
Hyperion e The Fall of Hyperion, por imaginar que já não o
satisfazia aquilo que era então capaz de criar. Sabia necessária
a busca de nova forma de expressão e, consequentemente, o
abandono do poema em andamento. Essa coragem de não
recuar diante do novo imprimiu à sua vida literária um ritmo
agitado, como se ele inconscientemente soubesse do fim
próximo. Resultado: a produção de seus 25 anos não foi
pequena, culminando nas grandes odes do último período,
lago sereno de perfeição, que certamente deixaram o nome de
seu autor escrito na água.

Além dos poemas, Keats escreveu numerosas cartas,


guardadas pelos amigos que logo se davam conta de seu valor
literário. Ali se encontra uma prosa de ritmo forte, com
descrições vivas, os interesses indo de observações do
cotidiano ao tema sempre presente da poesia.

A PRIMEIRA DAS DUAS CARTAS que serão aqui apresentadas


é dirigida aos irmãos George e Tom Keats, sendo
extraordinário que no meio de notícias desencontradas – peças
teatrais a que assistiu, artigos que leu, comentário sobre um
julgamento em que estava em risco a liberdade de expressão, o
quadro de Benjamin West que contemplou, almoços e jantares
com amigos – apareça de repente uma reflexão penetrante
sobre a natureza da arte.

Para George e Tom Keats, 21, 27 (?) de


dezembro de 1817
Hampstead domingo

22 de dezembro de 1818

Meus queridos irmãos,

Tenho de implorar o seu perdão por não


ter escrito antes & & vi Kean voltar a público
em Richard III, & retornou admiravelmente,
& a pedido de Reynolds fui criticar seu Luke
em Riches – A crítica está no “Champion” de
hoje, que lhes envio com o “Examiner”, onde
vão encontrar uma queixa muito apropriada
sobre o obsoletismo das brincadeiras e
passatempos de Natal: mas ficou tão
misturada com o egocentrismo dessa
natureza balbuciante que o prazer se perde
inteiramente. O julgamento do editor Hone,
vocês devem achar muito divertido; & como
ingleses muito encorajador – seu Não Culpado
é algo que, se não tivesse acontecido, teria
embotado ainda mais o Enaltecimento da
Liberdade – Lord Ellenborough foi pago na
mesma moeda – Wooler & Hone nos
prestaram um serviço essencial – Passei duas
noites muito agradáveis com Dilke ontem e
hoje; neste momento acabo de chegar de sua
casa & sinto vontade de continuar esta carta,
que comecei de manhã, & da qual ele veio me
arrancar. Passei a noite de sexta com Wells &
e na manhã seguinte fui ver Death on the Pale
Horse. É um quadro maravilhoso, quando se
considera a idade de West; mas não há nele
nada que nos faça sentir intensamente;
nenhuma mulher que se tenha uma vontade
louca de beijar; nenhum rosto avultando até
tornar-se real. A excelência de qualquer Arte
é a sua intensidade, capaz de fazer todos os
elementos desagradáveis se evaporarem, por
estarem em íntima relação com a Beleza & a
Verdade – Examinem King Lear &
encontrarão isso exemplificado por toda
parte; mas nessa pintura temos o
desagradável, sem que seja provocada
qualquer maior profundidade de reflexão em
que se possa enterrar seu caráter repulsivo –
O quadro é maior do que o Cristo rejeitado –
Almocei com Haydon no domingo depois que
vocês partiram, & passei um dia muito
agradável, almocei também (pois tenho saído
muito ultimamente) com Horace Smith &
encontrei seus dois irmãos com Hill &
Kingstone & um certo Du Bois, só serviram
para me convencer do quanto o humor é
superior à espirituosidade em termos de
divertimento – Esses homens dizem coisas
que fazem as pessoas olharem surpreendidas,
sem fazer com que elas sintam, são todos
iguais; seus modos são iguais; conhecem os
modismos; têm um maneirismo até no jeito
de comer & beber, no simples gesto de pegar
uma garrafa – Falaram de Kean & de seus
amigos vulgares – Antes estivesse na
companhia deles que na de vocês, disse para
mim mesmo! Sei que gente assim nunca
servirá para mim, mas vou à casa de Reynolds
na quarta-feira – Brown & Dilke caminharam
comigo na volta da pantomima de Natal. Não
tive uma disputa, mas uma discussão formal
com Dilke, sobre diversos assuntos; várias
coisas se ajustaram na minha mente, & de
repente me ocorreu qual é a característica
que entra na formação de um Homem de
Realizações, especialmente em Literatura –
refiro-me à Capacidade Negativa [Negative
Capability], isto é, quando o homem é capaz
de ser entre incertezas, Mistérios, dúvidas,
sem qualquer irritação que o faça sair em
busca dos fatos & da razão – Coleridge, por
exemplo, deixaria passar despercebida uma
bela verossimilhança isolada, apreendida a
partir do Santuário do mistério, por ser
incapaz de se contentar com um
conhecimento pela metade. Levado adiante
em Volumes, isso talvez não nos conduzisse
além deste fato, de que com um grande poeta
o senso de Beleza supera qualquer outra
consideração, ou melhor, oblitera todas as
considerações.

Saiu o poema de Shelley & fala-se que


também foi condenado, tanto quanto Queen
Mab. Pobre Shelley, acho que tem sua Quota
de boas qualidades, realmente la!! Escrevam
logo para seu amigo muito sincero & Irmão
muito afetuoso

John
Negative Capability – Capacidade
Negativa

A consideração sobre a intensidade da arte já é um convite à


reflexão, mas a sua Capacidade Negativa tem o poder de
produzir um choque elétrico em nossa consciência. Esse
negativo se infiltrando no ato de criação revela por inteiro a
matéria inconstante de que somos feitos. É uma noção do
poeta pelo avesso, aquele que é capaz de captar o ritmo da
vida, conhecer o que existe entranhado no que não existe, e
até acompanhar a correnteza do rio fluindo ao contrário.
Numa carta a sua filha, Scott Fitzgerald escreveu a respeito do
ato de escrever: “Ninguém jamais se tornou escritor apenas
por querer ser escritor. Se você tem algo a dizer, algo que
sente que ninguém disse antes, tem de sentir
desesperadamente que encontrará algum modo de expressá-lo
que ninguém ainda descobriu, e assim o que tem a dizer e o
modo de dizê-lo se fundem numa só matéria – tão
indissoluvelmente como se tivessem sido concebidos juntos…”
Apesar de frisar que o ato de escrever não depende apenas da
vontade, o escritor americano passa a descrevê-lo como
produto de nossa ciência e talento, como a expressão
consciente de algo que sentimos em nosso interior. Isto é, o
papel da vontade ainda é predominante, e Fitzgerald parece
estar batendo com a cabeça na parede. Não sei, mas acho que
Keats no século XIX chegou bem mais perto da verdade,
mesmo antes de Freud ter falado do inconsciente como parte
de nosso ser. Quem já não teve a experiência de começar a
escrever um texto e depois descobrir que o resultado é muito
diferente do que pretendia fazer? Entre a cabeça que pensa e a
mão que desenha as letras, acontecem muito mais coisas do
que sonha a nossa vã filosofia. Será que realmente sabemos o
que queremos dizer, ou esse conhecimento se forma no
processo que vai da cabeça à mão e da mão à cabeça? A
imagem que me vem à mente quando penso na Capacidade
Negativa de Keats é a da navegação. Sem dúvida, há mapas,
há bússolas, há o treinamento dos navegadores, mas navegar
será sempre uma aventura por causa do imprevisível. Como
um navegador, o escritor se aventura pelo desconhecido que
existe dentro e fora de si, e, como diz Keats, é este saber ser
entre os mistérios o leme que dirige a mão que escreve. Sem
esse contato com o que não conhecemos, será sempre bem ralo
o que conseguimos escrever, pois acabamos nos furtando ao
que a vida possui talvez de mais precioso. Por meio de sua
capacidade negativa, o artista consegue, se não fazer incursões
pelo imponderável, ao menos margear o mar em que vivemos
imersos.
A SEGUNDA CARTA foi escrita para John Hamilton Reynolds,
um jovem amigo que possuía o mesmo humor efervescente de
Keats. Quando se conheceram, Reynolds já tinha três livros
publicados, apesar de ter apenas 22 anos. A idade próxima, a
semelhança de humor e o interesse comum pela poesia
uniram imediatamente os dois jovens. E, nos primeiros
tempos, o poeta chegou a encontrar na casa de Reynolds, que
tinha quatro irmãs, uma espécie de lar. Órfão desde os 15
anos, Keats ficou agradecido por essa acolhida, mesmo que em
época posterior tivesse se cansado da atmosfera um tanto
frívola criada pela Sra. Reynolds e suas filhas. Em relação a
Reynolds, nunca houve maior decepção, e foi sem dúvida a
esse amigo que ele escreveu sem reservas sobre suas
esperanças e aspirações.

Para J. H. Reynolds, 3 de maio de 1818

Teignmouth, 3 de maio

Meu caro Reynolds,

O que lamento é ter andado num estado de


Espírito muito ansioso, inapropriado para
escrever a um enfermo. Não consigo escrever
por muito tempo dissimulando um
sentimento. Teria sobrecarregado você com
mais tristeza, o que, tenho certeza, não
deseja. Estou agora, graças a Deus, num
humor capaz de lhe dar uma boa ninharia –
pois Tom, depois de uma noite sem pregar o
olho, e ardendo de febre, levantou-se após um
sono diurno restaurador e está melhor, como
há muito tempo não se sentia; e você, espero
que tenha andado de novo ao redor do
Common sem qualquer outro efeito senão o
de revigorar-se – Quanto à matéria em
questão, espero poder dizer, com Sir Andrew,
que “Tenho bastante matéria na minha
cabeça” a seu favor. E agora, em segundo
lugar, pois penso ter acabado meu Imprimis,
alegro-me por você mandar o tempo pelos
ares – em toda a sua carta há uma tendência a
xingar o clima, e você sabe que satisfação
refinada uma pessoa experimenta quando vê
amaldiçoada uma irritação: alguém
imaginaria que, tendo crescido nestes últimos
quatro mil anos um Rebento-neto da velha
árvore proibida, uma Eva moderna acabara
de profaná-lo e, em duplo ataque, vieram
“Notus e Afer, pretos de nuvens trovejantes
desde Sierra-leona” – Vou sentir o cheiro de
meias de lã mais cedo do que esperava. Tom
quer ir para a Cidade – teremos nos campos
de urzes alguns dias como os do último verão
e por que não com o mesmo livro; ou que me
diz de uma carta que Chaucer imprimiu em
gótico em 1596: sim, tenho uma, hurra! Vou
mandar encaderná-la em estilo gótico com
uma bela capa escura – um pouco no sentido
de não modernizá-la. E também não vejo
razão, já que estive fora este mês passado,
para não dar uma espiada em seu
Spenceriano – entretanto, você fala de seu
escritório, a meu ver um pouco cedo demais,
pois não compreendo por que uma Mente
como a sua não seria capaz de abrigar e
digerir todo o Mistério da Lei com a mesma
facilidade com que Parson Hugh digere
Pepins – o que não o privou de seu Canário
poético – Se eu tivesse de estudar de novo a
ciência médica, ou melhor a Medicina – sinto
que isso não faria a menor diferença para a
minha Poesia; quando a Mente está na sua
infância, uma Tendência é realmente uma
Tendência, mas quando adquirimos mais
força, uma Tendência deixa de ser uma
Tendência. Consideramos então todo campo
do conhecimento excelente e calculado para
atingir uma grande totalidade. Estou tão
convencido disso que me alegro por não ter
me desfeito de meus livros de medicina, que
examinarei de novo para manter vivo o
pouco que sei nesse sentido; e, além disso, por
meio de você e de Rice, pretendo me tornar
uma espécie de advogado amador. Um
conhecimento amplo é indispensável aos
intelectuais – afasta o calor e a febre; e, ao
alargar a reflexão, ajuda a mitigar a Carga do
Mistério: algo que começo a compreender um
pouco, e que oprimiu você na frase mais
sombria e verdadeira de sua Carta. A
diferença entre ter Sensações elevadas com
ou sem conhecimento parece-me ser a
seguinte – no último caso, caímos sem cessar
num abismo de vinte mil metros e somos
novamente soprados para cima, sem asas e
com todo (o) horror de uma Criatura de
ombros nus – no primeiro caso, nossos
ombros estão emplumados e seguimos sem
medo através do mesmo ar e espaço. Isso é
poder brincar devido a uma vantagem
abstrata – quando consideramos a Vida
humana e os afetos, é impossível imaginar
que se possa traçar um paralelo entre o
coração e a cabeça – (você me perdoará por
assim abandonar meu tom profundo e
considerar a questão mantendo-me de pé à
tona d’água, como colegiais deslocando-se
pela água) – é impossível saber até que ponto
o conhecimento nos consolará da morte de
um amigo e do mal “que a carne tem por
herança” – Com respeito aos afetos e à Poesia,
você deve conhecer por empatia meus
pensamentos nesse sentido; e ouso dizer que
esses poucos versos serão apenas uma
ratificação: eu os escrevi na festa da
primavera, 1º de maio – e pretendo acabar a
ode oportunamente. –

Mother of Hermes! and still youthful Maia!


May I sing to thee
As thou wast hymned on the shores of
Baiae?
Or may I woo thee
In earlier Sicilian? or thy smiles
Seek as they once were sought, in Grecian
isles,
By Bards who died content in pleasant
sward,
Leaving great verse unto a little clan?
O give me their old vigour, and unheard,
Save of the quiet Primrose, and the span
Of Heaven, and few ears
Rounded by thee my song should die away
Content as theirs
Rich in the simple worship of a day.—

Mãe de Hermes! e ainda jovem Maia!


Posso cantar para ti
Assim como te cantaram hinos nas praias
de Baiae?
Posso te namorar
Em siciliano primitivo? ou buscar teus
sorrisos
Como outrora eram buscados, em ilhas
gregas,
Por Bardos que morriam satisfeitos em
aprazível
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaagramado,
Deixando grandes versos a uns poucos?
Oh concede-me seu antigo vigor e, sem ser
escutada
A não ser pela quieta prímula, pela
imensidão
Do Céu, e por alguns ouvidos
Reunidos por ti, minha canção se
extinguiria
Satisfeita como a deles
Rica no simples culto de um dia.—

Talvez você esteja ansioso para saber a que


frase na sua Carta me refiro. Você diz: “Temo
que haja pouca chance de qualquer outra
coisa nesta vida”. Com isso parece ter andado
com um afã mais doloroso e agudo pelo
mesmo labirinto que eu – até o momento
cheguei à mesma conclusão. Meus desvios
para sair dali têm sido numerosos: um deles é
refletir sobre o gênio de Wordsworth e, como
um auxílio, assim como o ouro é o apogeu da
riqueza humana, – a maneira como ele difere
de Milton. E aqui nada tenho senão
conjeturas, pois não sei ao certo se a
ansiedade aparentemente menor de Milton
em relação à Humanidade provém de ele
enxergar mais longe que Wordsworth ou não;
ou se Wordsworth tem, na verdade, paixão
épica e martiriza-se pelo coração humano, o
principal terreno de sua canção – Com
respeito a seu gênio tão somente – achamos
verdadeiro o que ele diz a partir do que
experimentamos e só podemos julgar mais
além por meio de experiência mais ampla –
pois axiomas em filosofia não são axiomas até
serem provados em nossos pulsos: lemos
coisas – excelentes, mas nunca as sentimos
completamente enquanto não percorremos os
mesmos passos do Autor – Sei que isso não é
simples: você compreenderá exatamente o
que quero dizer, quando eu lhe disser que
agora vou gostar mais de Hamlet do que
gostei até então – Ou, melhor – Você sabe que
nenhum homem pode considerar a cópula
algo bestial ou triste enquanto não estiver
farto dela, e que, portanto, todo o filosofar a
respeito seriam simples palavras. Enquanto
não adoecemos, não compreendemos; – em
suma, como diz Byron: “Conhecimento é Dor”;
e vou mais além ao dizer que “Dor é
Sabedoria” – e mais além, pelo que sabemos
com certeza! “Sabedoria é loucura” – Assim,
veja como me distanciei de Wordsworth e
Milton: e vou também me afastar do que
ocupava minha cabeça, para observar que
algumas cartas são bons quadrados, outras
belos ovais, e dentre outras, algumas
redondas, outras esferoides – e por que não
haveria uma espécie com duas bordas
denteadas como uma Ratoeira? Espero que
ache todas as minhas cartas longas desse tipo,
e tudo acabará bem; pois mal se tocando na
mola, de modo delicado e etéreo, as bordas
denteadas logo saltarão para comprimir a
carta de forma apropriada, e assim você
poderá fazer de meus fragmentos um bom e
salutar pão, colocando nele seu próprio
fermento – Se não achar essa dita Ratoeira
suficientemente maleável – ai de mim, pois é
uma total impossibilidade para a minha tinta
criar manchas de outra maneira: Se rabisco
longas cartas, tenho que pôr minhas fantasias
a brincar. Tenho que ser pesado ou leve
demais, páginas a fio – Tenho que ser singular
e livre de Tropos e figuras – Tenho que seguir
meu jogo de damas como quiser, e, para meu
proveito e sua erudição, fazer uma dama
branca e preta ou uma dama preta e branca, e
avançar no preto e no branco, por toda parte,
como me agradar – Tenho que passar de
Hazlitt a Partmore, e fazer Wordsworth e
Coleman brincarem de pular carniça – ou
manter um deles preso todo um meio feriado
na brincadeira de tentar prender com uma
vara o cordão enrolado – “De Gray a Gay, de
Little a Shakespeare” – E assim como um
longo processo requer duas ou mais sessões
do Tribunal, uma longa carta também vai
precisar de duas ou mais sessões de Assento,
razão pela qual continuarei depois do jantar.

Você não viu uma Gaivota, uma Orca, uma
Andorinha-do-mar, ou qualquer coisa que dê
a esta Linha um comprimento apropriado e
também preencha esta parte em branco?

Que como uma Gaivota eu possa “mergulhar”


– espero que sem me perder de vista – e
também, como uma Gaivota, espero ter a
sorte de fisgar um peixe de bom tamanho –
Este cruzar de uma carta não deixa de ter sua
associação – pois o padrão xadrez
naturalmente nos leva a uma Ordenhadeira,
uma Ordenhadeira a Hogarth, Hogarth a
Shakespeare, Shakespeare a Hazlitt – Hazlitt
a Shakespeare, e assim apenas puxando um
fio, fazemos soar o repique de todo um
carrilhão – Que continue a repicar, enquanto,
com a sua paciência, — vou voltar a
Wordsworth – se ele tem uma visão ampliada
ou uma grandeza circunscrita – se é uma
águia no ninho ou em pleno voo – e, para ser
mais explícito e mostrar-lhe a que altura
chego ao lado do gigante, vou propor uma
símile da vida humana assim como a
compreendo agora: isto é, até o ponto a que
digo termos os dois chegado – Bem – comparo
a vida humana a uma grande Mansão de
Muitos Aposentos, dos quais só posso
descrever dois, porque as portas dos
restantes ainda continuam até o momento
fechadas para mim – O primeiro em que
entramos, chamamos de Câmara infantil ou
sem reflexão, na qual nos deixamos estar
enquanto não pensamos – Permanecemos ali
por muito tempo e, apesar de as portas da
segunda Câmara se manterem bem abertas,
deixando à mostra uma aparência brilhante,
não desejamos sair correndo na sua direção;
mas, por fim, somos imperceptivelmente
impelidos pelo despertar do princípio do
pensamento – dentro de nós – Mal entramos
na segunda Câmara, que chamarei de a
Câmara do Pensamento Virgem [Chamber of
Maiden Thought], ficamos embriagados com
a luz e a atmosfera, não vemos senão
maravilhas agradáveis, e pensamos em ficar
ali para sempre em puro gozo: Entretanto,
entre os efeitos que essa aura gera está
aquele extraordinário de aguçar a visão que
se tem do coração e da natureza do Homem –
o de fazer nossos nervos compreenderem que
o Mundo é cheio de Sofrimento e Desgosto,
Dor, Doença e opressão – com o que Essa
Câmara do Pensamento Virgem torna-se
gradativamente escurecida, ao mesmo tempo
em que, por todos os seus lados, muitas
portas são abertas – mas todas escuras – todas
abrindo para corredores escuros – Não vemos
o equilíbrio do bem e do mal. Ficamos numa
Bruma – “Nós” estamos agora nesse estado –
Sentimos a “carga do Mistério”. Até esse
ponto chegou Wordsworth, pelo que posso
conceber, quando escreveu “Tintern Abbey”,
e parece-me que seu Gênio explora aqueles
Corredores escuros. Ele é um Gênio e
superior /a/ nós, na medida em que, mais do
que nós, pode fazer descobertas e iluminá-los
– Nesse ponto tenho de considerar
Wordsworth mais profundo que Milton –
embora ache que isso tenha mais a ver com o
progresso geral e gregário do intelecto que
com grandeza individual de Mente – De
Paradise Lost e outras obras de Milton,
espero que não seja demasiada arrogância
dizer, mesmo cá entre nós: sua Filosofia,
humana e divina, pode ser passavelmente
compreendida por alguém não muito entrado
em anos. Na sua época, os ingleses acabavam
de se libertar de uma grande superstição – e
os Homens tinham se apoderado de certos
pontos de apoio no seu modo de raciocinar,
demasiado recentes para serem objeto de
dúvida, e demasiado contestados pelos
principais países da Europa para não serem
considerados etéreos e autenticamente
divinos – quem poderia contradizer suas
ideias sobre a virtude, o vício e a Castidade
em Comus, exatamente na época do
abandono das peças enfeitadas que
escondiam as braguilhas e de uma centena de
outras desgraças? Quem não ficaria satisfeito
com suas insinuações sobre o bem e o mal em
Paradise Lost, quando acabava de se livrar
da Inquisição e das fogueiras em Smithfield?
A Reforma produziu esses grandes e
imediatos benefícios: o fato de o
Protestantismo ser considerado sob o olhar
direto do céu, e o de seus próprios Dogmas e
demais superstições, então como que
regenerados, constituírem aqueles pontos de
apoio aparentemente seguros do Raciocínio –
Pelo que mencionei, Milton, quaisquer que
tenham sido seus pensamentos mais tarde,
parece ter ficado satisfeito com eles em seus
escritos – Seu pensamento não penetrou no
coração humano, como o de Wordsworth –
Entretanto, como filósofo, Milton tinha
poderes tão grandes quanto os de
Wordsworth – O que se deve concluir então?
Oh, muitas coisas – Isso prova que há
realmente um grande progresso do intelecto –
Prova que uma poderosa providência sujeita
as Mentes mais poderosas ao serviço do
tempo vigente, quer em relação ao
Conhecimento humano, quer em relação à
Religião – Muitas vezes tive pena do
Preceptor que tem de escutar “Nome:Musa” –
repetido frequentemente nos seus ouvidos –
Espero que você não sinta a mesma dor com
estes rabiscos – Eu talvez tenha lido sobre
essas coisas antes, mas nunca tive uma
percepção sequer pouco clara das mesmas: e,
além disso, gosto de recitar minha lição para
quem vai suportar a chatice por atenção a
mim – Afinal há certamente algo real no
Mundo – O presente de Moore para Hazlitt é
real – Gosto desse Moore, e alegro-me por tê-
lo visto no Teatro pouco antes de sair da
Cidade. Tom cuspiu um pouco de sangue esta
tarde, o que é um tanto deprimente – mas sei
– a verdade é que há algo real no Mundo. Sua
terceira Câmara da Vida será gentil e repleta
de sorte – abastecida com o vinho do amor – e
o Pão da Amizade – Quando vir George, se ele
ainda não tiver recebido carta minha, diga-
lhe que muito provavelmente encontrará
uma em casa – diga a Bailey que espero vê-lo
em breve – Dê lembranças minhas a todos. As
folhas estão de fora por aqui há muitos dias –
Escrevi a George pedindo as primeiras
estrofes de minha Isabel – Vou recebê-las em
breve e copiarei todo o poema para você

Seu amigo afetuoso

John Keats

Chamber of Maiden Thought – Câmara do


Pensamento Virgem

A carta é um produto típico do que chamei o humor


efervescente de Keats. Cheia de brincadeiras, como a de riscar
o mergulho de uma gaivota, é entrecortada por imagens
encadeadas, um poema, reviravoltas, interrupções. Mas ele
sempre retorna ao tema principal, uma comparação entre os
poetas William Wordsworth e John Milton em que atribui ao
primeiro a superioridade de gênio. Para facilitar a
compreensão, eis uma relação de vários autores que ele cita
em meio à sua argumentação e desvios epistolares. Hogarth –
famoso pintor e gravador inglês; Hazlitt – ensaísta e crítico
literário; Peter George Partmore – autor; George Coleman –
jovem dramaturgo; John Gay – poeta e dramaturgo; Thomas
Gray – poeta; Little – pseudônimo de Thomas Moore, poeta;
Peter Moore – gerente do Drury Lane Theater. Ah, e o Common
são as terras comuns inglesas, prados e campos públicos. É um
prazer muito grande seguir o espírito inquieto ao longo da
carta, mas ela é apresentada aqui pela símile de Keats sobre o
pensamento humano: a casa de muitos aposentos dos quais só
dois chegam a ser descritos, sendo os demais apenas sugeridos
pelas portas escuras que se abrem para passagens escuras. A
Câmara do Pensamento Virgem, o estágio que ele diz ter
atingido até o momento, é aquela que permite ver a luz, o
brilho, o esplendor, mas também as sombras. Ao lado do
prazer iluminado, as portas escuras que se abrem para o
mistério e o desconhecido. É uma símile poderosa, e não
surpreende que ela recorra toda vez que avaliamos obras do
engenho humano, assim como quando Keats procurava
determinar o valor de Wordsworth e Milton. Alguém duvida
que os poetas trágicos gregos e Shakespeare escancararam
todas essas portas, batendo-as com gosto, levantando a poeira,
lançando o sol pelas passagens? Considerando, por exemplo,
um caso de nossa língua portuguesa, sabemos que Machado de
Assis e Eça de Queirós elevaram nossas letras a alturas
desmesuradas. O português de estilo magistral e o brasileiro
ímpar chegaram a rivalizar em vida, Machado apontando em
artigo certa carência na obra de Eça de Queirós. Apesar do
deslumbramento gerado pelos escritos do português, parece
possível afirmar que foi Machado de Assis quem investigou e
iluminou o escuro das passagens, contentando-se Eça em
deleitar seus leitores com as luzes da Câmara do Pensamento
Virgem. Acho que não seria ousadia demais interpretar a
símile de Keats, sugerindo que para iluminar as sombras dos
aposentos desconhecidos é preciso mais que talento: faz-se
necessário muita coragem e gênio. E muitas vezes nos
surpreendemos encontrando tais requisitos de Titãs em
autores aparentemente frágeis. Ou Emily Brontë, no seu
pequeno universo e com um único romance, não conseguiu
espiar pelas portas desconhecidas?

Assim é que o poeta do “nome escrito na água” propõe duas


imagens poderosas, a Capacidade Negativa e a Câmara do
Pensamento Virgem que mergulham fundo em nós e ainda
hoje reverberam significados.

Rosaura Eichenberg

As cartas foram traduzidas a partir de


Letters of John Keats – A selection edited by Robert Gittings. Oxford,
Oxford Universitty Press,1970.

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