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O conceito de Idade Média e as

discussões historiográficas
Prof.ª Marta Carvalho Silveira
Descrição

Idade Média como uma leitura de divisão e organização do tempo.


Propósito

O conhecimento de conceitos básicos sobre o tempo e a interpretação do tempo


medieval são importantes para a compreensão do momento histórico e como referências
nas demandas políticas contemporâneas.

Objetivos
Módulo 1
A historiografia medieval

Reconhecer o significado de Idade Média.


Módulo 2
A história da História na Idade Média

Listar formas de produção da história na Idade Média.

Módulo 3
Fontes diversas para o estudo da Idade Média

Identificar metodologias para o estudo de fontes na Idade Média.

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Introdução
A historiografia do século XIX, seguindo um processo iniciado já em fins dos séculos
medievais, convencionou chamar de Idade Média o período entre os séculos V e XV.
Eminentemente política, essa historiografia demarcou o “início” e o “fim” da Idade
Média com dois movimentos que se referiram à desagregação do antigo Império
Romano. Dessa forma, o início da Idade Média foi situado em 476, quando uma tribo
germânica, os hérulos, ocupou a cidade de Roma, capital do Império Romano Ocidental.
Já a conquista da cidade de Constantinopla, capital do Império Romano Oriental (ou
Império Bizantino), em 1453, pelos turcos otomanos, marcou o fim da Idade Média.

Nota-se, então, que a identidade temporal medieval não foi instituída com base nos seus
próprios critérios estruturais, mas naqueles firmados pela modernidade e
contemporaneidade sob uma visão constituída acerca da Antiguidade greco-romana.

O desafio dos historiadores contemporâneos é, portanto, desprender-se da visão da


Idade Média constituída a partir dos critérios historiográficos do século XIX e buscar
conhecê-la, por meio da análise das fontes históricas, em suas próprias características
estruturais. Os historiadores atuais entendem que nenhum período histórico pode ser
conhecido plenamente em sua essência, mas consideram que, a partir dos múltiplos
vestígios históricos deixados pelos homens ao longo da sua existência, é possível
aproximarem-se da forma como entendiam a realidade e lidavam com ela.
1 - A historiografia medieval
Ao final deste módulo, você será capaz de reconhecer o significado de
Idade Média.

Historiografia em torno do conceito de


Idade Média
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Idade Média em perspectiva
Assista e observe as maneiras como a Idade Média já foi vista ao longo do tempo com
exemplos de pinturas, filmes, literaturas e as mil formas que ela já foi interpretada.

A construção da ideia de Idade Média pode ser encontrada em algumas obras, como por
exemplo:
Francesco Petrarca (1304-1374)

Poeta italiano que já se referia, de forma desdenhosa, ao período anterior ao seu


como tenebrae (OBREGÓN, 2012).

Giovanni Andrea Bussi (1415-1475)

Humanista e primeiro bibliotecário do Vaticano, além de secretário de vários papas, que


usou em suas obras os termos “medium tempus” e “media tempora”, e foi seguido por
vários humanistas do período.

Como vimos, difundia-se, assim, entre os humanistas de fins da Idade Média, o uso do
termo “tempo médio” para referir-se ao período em que viviam.

No século XVI, Giorgio Vasari (1511-1574), pintor e arquiteto, popularizou o uso do


termo “renascitá” (renascimento) para referir-se às inovações levadas a cabo pelos
artistas italianos, que se contrapunham à arte produzida nos séculos anteriores
(VASARI, 1896). Vasari difundiu em seus escritos o uso das expressões media
aetas, medias antiquitas e media tempora para referir-se aos períodos anteriores ao seu.
Giorgio Vasari (1511-1574).

Com o avançar das reflexões estéticas e filosóficas que os humanistas estabeleceram nos
séculos XV e XVI, a arte medieval, por fugir dos padrões greco-romanos clássicos, foi
vista como grosseira, como veremos nas considerações dos autores a seguir:

Rafael Sanzio (1483-1520)

Pintor e escultor italiano, que chamou de “gótica”, termo utilizado praticamente como
sinônimo de “bárbara”, dado seu pouco requinte técnico, em que a perspectiva e o jogo
de luzes, inovações da arte renascentista, não existiam.

François Rabelais (1483-1553)


Escritor francês, que se referia à Idade Média como a “espessa noite gótica”, e ajudou a
consagrar a noção da Idade Média como um período trevoso e sombrio.

Nascia, assim, o mito historiográfico da Idade Média como a Idade das Trevas, que foi
adotado, no século XVI, pelos eruditos alemães e franceses.

No século XVII, os eruditos preservaram o sentido filológico do termo Idade Média,


que deixava entrever o sentido básico legado pelos renascentistas. “Ou seja, também
para o século XVII os tempos “medievais” teriam sido de barbárie, ignorância e
superstição” (FRANCO JR., 2001, p. 12).

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Comentário

Esse foi o sentido empregado nos manuais escolares produzidos nesse século, o que deu
origem à construção de uma noção de Idade Média, no âmbito pedagógico, que se
expandiu para a cultura escolar ocidental e influenciou diretamente a forma como a
Idade Média ainda é ensinada no Brasil do século XXI.

Além disso, o século XVII foi o palco de uma série de embates religiosos decorrentes da
Reforma Protestante.

A Europa Ocidental se dividiu entre reinos católicos e protestantes, que enfrentaram


períodos de intensas guerras civis. Em decorrência disso, difundiu-se também entre os
eruditos uma tendência a fundamentar a concepção de Idade Média em elementos
político-religiosos, de forma que esse período passou a representar o domínio da Igreja
Católica.

Guerras religiosas na França, Massacre do Dia de São Bartolomeu.


Visões de mundo
Os intelectuais setecentistas consideravam-se racionalistas e, consequentemente,
deploravam a cultura medieval, por seus valores espirituais e sobrenaturais. Como
apontou Franco Jr. (2001), os homens ligados às monarquias absolutistas viam a Idade
Média como o período dos reis fracos e marcado pela anarquia feudal, que enfraquecia
o poder régio e lançava os reinos em guerras internas e caos social. Já a burguesia
comercial considerava os tempos medievais malfadados pelas limitações econômicas
que existiam em relação às práticas comerciais limitadas.

O desenvolvimento da filosofia iluminista, no século XVIII, perpetuou a concepção de


Idade Média elaborada no século anterior.

O século XVIII assume e aperfeiçoa – com as principais línguas


europeias substituindo o latim – esta divisão ternária da história
(Antiguidade, Idade Média, tempos modernos) para melhor celebrar
[...] a vitória das Luzes sobre o obscurantismo clerical e o triunfo de
uma civilização refinada sobre a grosseria da barbárie destes
longínquos séculos de ferro.

(AMALVI, 2006, p. 538)

Nesse momento, ficou caracterizada, portanto, a visão da Idade Média como a Idade das
Trevas. Os filósofos iluministas condenavam a Idade Média por representar uma ruptura
na marcha de desenvolvimento que a humanidade iniciara na Antiguidade e somente
recobrara na Idade Moderna. Como veremos a seguir, de acordo com os acontecimentos
nos séculos:

XVII

Esse século aristocrático e anticlerical, “censurava sobretudo a forte religiosidade


medieval, o pouco apego da Idade Média a um estrito racionalismo e o peso político de
que a Igreja então desfrutara.” (FRANCO JR., 2001, p. 12).
Contudo, apesar das intensas críticas à Idade Média, de acordo com Amalvi (2006), na
França ela continuou a inspirar obras literárias e musicais que identificavam nesse
período elementos referenciais da identidade cultural ocidental.

Autoridade espiritual. O julgamento de Wycliff.

XIX

A perspectiva iluminista da Idade Média foi matizada com o desenvolvimento de um


sentimento nacionalista no Ocidente europeu em virtude das mudanças políticas que
abarcaram o contexto da primeira metade do século XIX, marcado pelos efeitos que as
invasões napoleônicas haviam gerado no mapa político europeu, dentre os quais
assinala-se a formação da Itália e da Alemanha. Sobre essa suposta reabilitação da Idade
Média feita pelo romantismo, Le Goff (2005, p. 63) concluiu que “a Idade Média
tornou-se um folclore, uma espécie de infância da nação, felizmente atingindo a idade
adulta com o Renascimento.”
Clérigos estudando astronomia e geometria.

Nesta perspectiva, o Romantismo, movimento estético que investia na liberdade


artística, reforçou o pensamento nacionalista e investiu na Idade Média como um
“espaço das origens” e como forma de contraposição ao excessivo cientificismo e a
racionalização iluminista. “A nostalgia romântica pela Idade Média fazia com que ela
fosse considerada o momento de origem das nacionalidades, satisfazendo assim os
novos sentimentos do século XIX.” (FRANCO JR., 2001, p. 14). Os aspectos
maravilhosos e fantásticos do imaginário medieval encantaram muitos autores
românticos e terminaram construindo uma visão idealizada do período, que ainda hoje
alimenta suas representações veiculadas tanto na arte quanto na mídia, contribuindo
também para forjar outros estereótipos sobre o período medieval.

Essa Idade Média dos escritores e músicos românticos era tão


preconceituosa quanto a dos renascentistas e dos iluministas. Para
estes dois, ela teria sido uma época negra, a ser relegada da memória
histórica. Para aqueles, um período esplêndido, um dos grandes
momentos da trajetória humana, algo a ser imitado, prolongado.

(FRANCO JR., 2001, p. 13)

E como o século XX tratou a Idade Média?


A primeira metade do século XX foi marcada por duas guerras mundiais, uma crise
econômica mundial e a ascensão de regimes totalitários. Tais regimes inspiraram-se em
um passado medieval idealizado para justificar a instalação de medidas autoritárias, a
pregação de nacionalismos extremados e o xenofobismo, que justificaram a perseguição
violenta de opositores e de minorias étnicas.

Século XX marcado por guerras.

O passado ideologicamente construído acerca do Sacro Império Romano Germânico,


por exemplo, serviu como justificativa para o estabelecimento do nazifascismo, bem
como o ideal da reconquista ibérica foi apropriado pelo governo franquista para
fomentar a identidade espanhola e rechaçar a influência cultural muçulmana. Mas,
paralelamente a esse tipo de uso político por regimes totalitários, a Idade Média se
manteve tanto como um espaço de reserva moral e simbólica na constituição histórica e
identitária do Ocidente, quanto como seu local de nascimento.

Paralelamente aos usos políticos nacionais da Idade Média, os historiadores,


empenhados em romper com a concepção de história do século XIX, que se tornara uma
seleção cronológica e narrativa de fatos ligados aos feitos dos grandes homens,
investiram em um entendimento mais profundo e dinâmico do processo histórico. Nesse
sentido, surgiram duas grandes correntes historiográficas:

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Marxista
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Analítica
Historiografias contemporâneas
A historiografia marxista parte do pressuposto de que as condições materiais de
existência direcionam o andamento do processo histórico, que se move a partir da luta
de classes travada no âmbito das sociedades, onde os indivíduos se organizam em torno
da posse dos meios de produção.

Aqueles que possuem e dominam os bens de produção fazem parte da classe dominante,

enquanto a classe dominada é constituída por aqueles que, sem possuir os bens de

produção, são obrigados a dobrar-se à exploração da classe dominante.

Pelo menos até o momento em que, alcançada a consciência de classe, os dominados


conduziriam as mudanças revolucionárias necessárias para que a sociedade avançasse
mais um degrau em direção a um novo modo de produção, que implicaria mudanças na
forma produtiva.

Pensando a sociedade a partir de um processo evolutivo que teria início nas sociedades
tribais primitivas e finalizaria com a implantação do modo de produção comunista, onde
a propriedade dos bens seria coletiva, os historiadores marxistas consideram a Idade
Média como o momento de vigência do modo de produção feudal.

Livro de horas Les très riches heures du duc, de Berry.

A característica mais efetiva do modo de produção feudal seria a divisão social entre as
classes:

Dominante

Constituída pelos senhores, detentores da propriedade da terra.


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Dominada

Constituída por camponeses explorados pelos senhores em um regime de servidão.

Nos âmbitos político, social e cultural, considerados pelos historiadores marxistas


subordinados às demandas econômicas, a ausência de um poder político central, a
subordinação dos diversos tipos sociais ao direcionamento senhorial e o predomínio da
ideologia cristã largamente difundida pela igreja romana seriam as características
essenciais da configuração feudal.

Algumas questões podem ser levantadas em relação ao uso da historiografia marxista na


construção do conceito de Idade Média. Sua contribuição aos estudos medievais ao
favorecer o estudo dos conflitos sociais no medievo, que se tornaram mais frequentes a
partir de então, deu margem à constituição de uma visão esquemática acerca do período
medieval, não favorecendo o estudo das peculiaridades espaciais e temporais que
caracterizaram os dez séculos que oficialmente compõem a Idade Média, a saber,
séculos V a XV.

O foco direcionado para as relações econômicas comprometem significativamente o

entendimento dos demais campos do processo histórico, os campos político, social e

cultural são entendidos de forma subordinada e a reboque das relações econômicas


determinantes.

Além disso, a concepção de que as relações de servidão eram preponderantes no


medievo fundamentaram um modelo analítico que partiu de elementos supostamente
europeus ocidentais para o entendimento de sociedades orientais, já que os
medievalistas marxistas entendiam que o modo de produção feudal foi vigente tanto no
Ocidente, quanto no Oriente, baseando-se nas relações de servidão.

A perspectiva analítica se desenvolveu no início do século XX, com a fundação, na


Escola de Altos Estudos da França, da chamada escola dos Annales, em 1929, por dois
historiadores:
Marc Bloch (1886-1944)

Lucien Febvre (1878-1956)

Eles pretendiam romper com a ideia de que a história deveria ficar atrelada somente ao
campo político ou econômico, mas deveria ser entendida em uma perspectiva total.

A história total considera que, para que o processo histórico seja de fato analisado, faz-
se necessário abarcar elementos referentes aos quatro campos fundamentais da história,
sem que exista uma hierarquia entre eles:

1. gavel

Político.

2. monetization_on

Econômico.

3. groups

Social.
4. psychology

Cultural.

Dessa forma, o que guia a análise realizada pelo historiador é a problemática por ele
levantada.

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Atenção!

A problemática é a alma da pesquisa. É ela que direciona o olhar do historiador em


meio a um mar de elementos contextuais e fontes históricas e permite que a pesquisa
desenvolvida esteja circunscrita a um dos campos da História, mas que só pode ser
entendido em consonância com os demais.

A história-problema é uma das grandes inovações da historiografia analítica e permite o


entendimento do processo histórico como algo que não se encontra restrito somente ao
passado, mas estabelece relações complexas e por vezes indiretas com a sociedade
contemporânea. Até porque conhecer o passado, na perspectiva analítica, é uma forma
de compreender o presente.

A complexidade do processo histórico pode ser desvendada, de acordo com os Annales,


a partir do entrecruzamento de três temporalidades:

1. Tempo curto

O tempo do acontecimento.

2. Tempo médio

O tempo da conjuntura.

3. Tempo longo

O tempo da estrutura.
Somente assim, o historiador poderá abarcar a multiplicidade de fatores que
caracterizam o fenômeno histórico alvo da sua problemática.

Cientes de que a história total, a história-problema e a concepção diversificada do tempo


histórico não poderiam ser devidamente efetivadas sem a análise das fontes históricas,
os Annales ampliaram a própria noção de documentação, entendendo como fontes
documentais todo vestígio deixado pelo homem sobre a Terra. Dessa forma, materiais
arqueológicos, textos, imagens, construções, objetos etc. se tornaram passíveis de serem
utilizados pelos historiadores como fontes de informações acerca da forma como as
sociedades se organizaram ao longo da história humana.

A ampliação da noção de documento possibilitou a profusão das temáticas a serem


estudadas, gerando também dificuldades quanto à manipulação metodológica adequada
desse aparato documental. Diante disso, a historiografia analítica fez da
interdisciplinaridade uma prática fundamental, entabulando contatos e criando pontes
com outros campos do conhecimento dos quais tomou emprestadas reflexões teóricas e
metodológicas variadas.

A escola dos Annales foi um movimento historiográfico.

Nota-se, então, que a historiografia analítica em muito contribuiu para a inovação dos
estudos históricos e é largamente utilizada pelos medievalistas para a análise das
temáticas e do contexto medieval. Isso porque as diretrizes teórico-metodológicas
propostas contribuíram grandemente para o alargamento das temáticas de pesquisa em
Idade Média, e a ampliação da noção de fonte histórica permitiu aos medievalistas
inovar em suas pesquisas explorando corpus documentais variados com a segurança
intelectual que as demais áreas do conhecimento têm a oferecer. Assim, no âmbito da
Escola dos Annales, realizaram-se muitas pesquisas em busca do homem medieval, o
entendimento que possuía da sua realidade e as formas que elaborou para lidar com ela
nos seus mais diversos níveis.

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Reflexão

Analisando as contribuições marxistas e analíticas para o entendimento da Idade Média,


nota-se o quanto elas promoveram, cada qual a sua forma, uma revisão dos estereótipos
constituídos em torno desse período, mesmo longe de extingui-los. Contudo,
favoreceram a elaboração de critérios teóricos e metodológicos que fundamentaram o
estudo de novas temáticas e a exploração de novas fontes documentais.

Idade Média: concepções de tempo e


dimensões cronológicas
Sendo uma sociedade essencialmente ruralizada, a concepção de tempo partilhada pelo
homem medieval é constituída a partir da sua vivência cotidiana e do ciclo natural. O
ritmo das estações regulava o trabalho no campo e a existência. Logo, não havia
preocupação com uma contagem precisa do tempo por parte da maioria dos homens
medievais.

O esforço em estabelecer uma contagem do tempo mais precisa ocorreu no âmbito

eclesiástico, que tinha entre suas necessidades fundamentar uma liturgia que garantisse

o exercício coletivo da religião.

Nos primórdios da Idade Média, era imperativo que a Igreja, em seu movimento de
expansão da cristianização no Ocidente, estabelecesse rituais litúrgicos que
substituíssem as práticas religiosas germânicas e consolidassem as práticas religiosas
cristãs.

Fundamenta-se, assim, no âmbito eclesiástico, uma concepção de tempo linear e


teleológica: que começa na criação do mundo por Deus e termina com a parúsia, a volta
de Cristo e o Juízo Final.
A definição das subdivisões nesse tempo universal coube aos clérigos, que, após
diversos concílios e divergências, estabeleceram as datas sacras fixas (como o Natal) e
móveis (como foi a Páscoa). O controle formal e artificial do tempo era, portanto, uma
prerrogativa dos clérigos e dos homens de gabinete, e a partir destes, expandiu-se,
lentamente, para círculos cada vez mais amplos (GLÉNISSON, 1979).

Concílios ecumênicos.

Apesar da laicidade que caracterizou a sociedade ocidental pós-iluminista, a concepção


do tempo linear, mas não mais teleológico, perpetuou-se da Idade Média, e afetou a
própria construção dos limites temporais medievais, sendo esses limites temporais
constituídos historiograficamente e claramente artificiais e ideologicamente elaborados.

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Reflexão

Como alertou Baschet, ao tratar-se desse amplo período, é preciso lembrar que ele
guarda uma heterogeneidade não só espacial, mas também temporal. “Falar da Idade
Média é, então, um procedimento redutor e perigoso, se permitirmos que se entenda por
esta expressão tratar-se de uma época igual a si mesma desde seu início até o seu fim e,
então, imóvel” (BASCHET, 2006, p. 22).

Cientes dessas diversidades conjunturais e estruturais entre os séculos medievais, os


medievalistas desenvolveram algumas periodizações para o estudo desse período. Mais
comum na historiografia francesa, o modelo temporal tripartido da Idade Média
difundiu-se largamente. A Alta Idade Média se estendeu dos séculos V a X e
caracterizou-se pela convergência de três modelos culturais:
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Romano
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Cristão
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Germânico

Culminou na organização dos primeiros reinos germânicos e formação do Império


Carolíngio, bem como sua desagregação e a consolidação do sistema feudal. Analise as
diferenças a seguir:

Idade Média Central

Corresponde aos séculos XI a XIII, e representou o que alguns autores consideraram o


florescimento social, econômico, cultural e político do Ocidente, em função do
incremento da vida urbana e das relações comerciais, da formação da burguesia, das
escolas catedralícias e das universidades, e da fundamentação das monarquias
medievais com a consolidação do poder régio.

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Baixa Idade Média

Corresponde aos séculos XIV e XV, e representou o período em que a crise do sistema
feudal se instalou, a peste bubônica se espalhou pelo Ocidente, impactando
enormemente a taxa demográfica e produtiva europeia, dentre outros fatores.

É comum também a divisão bipartida para o estudo do período medieval, na qual a Alta
Idade Média abarcaria os séculos V a X e a Baixa Idade Média, os séculos XI a XV. O
importante é notar que, em ambas as formas de estabelecer as subdivisões temporais
medievais, o ano 1000 é considerado um marco de intensas transformações que
representaram rupturas com o período anterior e a configuração de novas estruturas.

É comum também a divisão bipartida para o estudo do período medieval, na qual a Alta
Idade Média abarcaria os séculos V a X e a Baixa Idade Média, os séculos XI a XV.
Vejamos as considerações de alguns autores a seguir:
O ano 1000

Para autores como Georges Duby, o ano 1000 representou um período de


transformações econômicas internas, que promoveram o aumento demográfico e o
impulso produtivo dos séculos seguintes, e de transformações culturais, já que propiciou
as bases para a constituição de novos elementos de religiosidade popular e de exercício
do poder papal.
O ano 1000

Já para autores como Valerie Hansen, mais interessada em explorar as conexões


comerciais e culturais entre os diversos povos, o ano 1000 foi o período em que “as
rotas comerciais ganharam forma no mundo todo, permitindo que produtos, tecnologias,
religiões e pessoas saíssem de casa e fossem a um lugar novo” (HANSEN, 2021, p. 14).

O início da Idade Média é convencionalmente estabelecido em 476, com a conquista de


Roma pelos hérulos, mas essa datação não é unanimemente utilizada pelos
historiadores. Várias controvérsias historiográficas se estabeleceram em torno dessa
temática a reboque da discussão acerca do “fim” do Império Romano, que foi tratado,
ainda no século V, pelos autores pagãos. Estes imputaram-no à consolidação do
cristianismo e a fraqueza moral dele decorrente, que impediu uma resposta efetiva às
invasões bárbaras ocorridas na primeira metade do século V.

Já na ótica dos autores cristãos da patrística, inspirados por Agostinho de Hipona, o


“fim” de Roma se deu em função do cumprimento do plano salvífico cristão, quando
Deus, em função dos inúmeros pecados, puniu os romanos com a desagregação da sua
civilização e a violência das invasões bárbaras.
Os estudiosos do processo de transição da Antiguidade para a Idade Média debruçaram-
se sobre os elementos históricos que o caracterizaram e definiram novos marcos
cronológicos.

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Comentário

Os adeptos da noção de Antiguidade Tardia concentram suas pesquisas nas


continuidades culturais existentes entre a Antiguidade e a Idade Média, em detrimento
das mudanças ocorridas. Defendem, então, que entre os anos 200-700 foi constituído
um mundo radicalmente distinto do que fora a Antiguidade e do que viria a ser a Idade
Média, que pode ser acessado, especialmente, pelos estudos movidos no campo das
mentalidades, do cotidiano e da história cultural.

Para detectar essa nova configuração histórico-cultural, os adeptos dessa perspectiva


privilegiam o estudo das regiões do Mediterrâneo oriental e dão pouca relevância às
questões relativas ao declínio e à queda do Império Romano do Ocidente.

A tese da Antiguidade Tardia ganhou força, sobretudo, a partir do pós-Segunda Guerra


e foi difundida principalmente pelo historiador da arte suíço Burckhardt, sendo alguns
dos seus adeptos no campo da História historiadores como:

Henri-Irénée Marrou (1904-1977)


Peter Brown

O diálogo constante com a Antropologia e a Arqueologia endossa grande parte dos


estudos realizados por esses historiadores que se debruçam sobre as expressões
artísticas, intelectuais e estéticas do período.

Os críticos dessa tese, apesar de reconhecerem sua importância para desconstruir o


estereótipo da Idade Média como a Idade das Trevas, mostrando a vitalidade que existiu
nesse período transitório, apresentam três críticas fundamentais, de acordo com Silva
(2013):

1. looks_one

A falta de uma precisão cronológica, pois seu foco encontra-se nos elementos culturais,
o que pode dificultar seu uso para o estudo dos outros campos históricos.

2. looks_two

O foco nas continuidades, que são apontadas de forma genérica e baseadas em


evidências arqueológicas ou literárias dispersas.

3. looks_3

Como os estudos encontram-se concentrados na área mediterrânica oriental, fica


perceptível certa negligência em relação aos processos desenvolvidos no Ocidente,
correndo-se o risco de criar um panorama de exotismo religioso e cultural.

A noção de Primeira Idade Média


Tomando outro caminho para o entendimento dos elementos que compuseram o
processo histórico de transição da Antiguidade para a Idade Média, Franco Jr. (2001)
nomeou esse momento inicial como Primeira Idade Média, que se estenderia entre os
séculos:

III

Quando ocorreu a crise do Império Romano.

close

VIII

Quando os reinos germânicos foram inicialmente formados e o Império Carolíngio


consolidado.

A Primeira Idade Média se caracterizou, de acordo com seus defensores, pela intensa
troca cultural entre os elementos:

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Romanos

Representou a sobrevivência de instituições e símbolos culturais do Baixo Império


Romano que propiciaram o desenvolvimento do caráter sagrado da monarquia, da
aceitação dos germanos em território imperial, da petrificação da hierarquia social, do
fiscalismo sobre o campo e, da efervescência espiritual que possibilitou o sucesso
cristão.

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Germânicos

Representou a sobrevivência de elementos da cultura dos povos germânicos que


propiciaram a noção de pluralidade política e a difusão da concepção de obrigações
recíprocas entre chefes e guerreiros, além do deslocamento do eixo de gravidade
político e econômico para o norte.

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Cristãos

Já a cristianização, levada a cabo pelos bispos e monges, seria responsável pela


articulação entre a influência romana e germânica, e também como herdeira do caráter
universalista do romanismo, ajudou a dissimular o uso do latim vulgar e do cristianismo
como religião de Estado.

Se o “início” da Idade Média está longe de ser um consenso entre os historiadores, o


mesmo ocorre com o seu “fim”. Tradicionalmente, a conquista da cidade de
Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453, teria marcado o término do período
medieval. Como alternativa a essa perspectiva historiográfica, vejamos as considerações
de outros autores:

Le Goff
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Le Goff propôs a existência de uma “Longa Idade Média”, que se estenderia do século
IV ao XVIII, ou seja, entre o fim do Império Romano e o desenvolvimento da
Revolução Industrial. O objetivo do historiador era subverter as ilusões do
Renascimento e dos Tempos Modernos. Esse longo período não seria imóvel, e sim
possuidor de especificidades, como as que caracterizam sua última fase, habitualmente
chamada de Tempos Modernos.
Dessa forma, o Renascimento não teria marcado o fim da Idade Média, mas faria parte
de um conjunto de renascimentos que ocorreram no período e que possuíam a
característica comum de buscar uma idade do ouro que ficou para trás.

Revolução Industrial, representação de edifícios industriais com Chaminés e Fumaça.

Baschet
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Baschet (2006), acerca do “fim” da Idade Média, situa o marco final desse período
histórico no ano de 1492. A “descoberta” da América foi considerada um
acontecimento-chave, especialmente pelos medievalistas latino-americanos, por ter
propiciado uma alteração na lógica de organização e de produção da sociedade
europeia, instaurando o sistema colonial.

Nessa perspectiva, a Idade Média seria uma espécie de “antimundo anterior ao reinado
do mercado” (BASCHET, 2006, p. 15). Tomando outro caminho para analisar as
relações entre o mundo medieval e o mundo moderno e ressaltando seu impacto sobre a
constituição das sociedades coloniais americanas, especialmente as da América
Espanhola, Baschet (2006) entendeu que os fatores motivadores que impulsionaram os
europeus na descoberta de novas terras encontraram-se ligados a uma mentalidade
medieval.

A conquista de novos territórios se deu com base em um desejo econômico de conseguir


mais territórios, produtos e metais preciosos, mas também em um desejo espiritual de
difundir uma visão de mundo e de valores medievais e de materializar a geografia
imaginária da Idade Média (BASCHET, 2006). Apoiando-se nos estudos do
antropólogo Lévi-Strauss, Baschet conclui: “Como sugeriu Lévi-Strauss, os espanhóis
deixaram suas terras menos para adquirir conhecimentos inéditos do que para confirmar
suas velhas crenças: e eles projetaram sobre o Novo Mundo a realidade e a tradição do
antigo” (BASCHET, 2006, p. 28).

Representação do primeiro desembarque de Cristóvão Colombo na América.

Como vimos, toda essa discussão mostra-se válida para que os historiadores se sintam
estimulados a cada vez mais avançar sobre novos tempos e novos espaços, explorando,
sobretudo, suas conexões, contudo, atentos ao alerta dado, como veremos a seguir:

Já tenho dito que, no meu modo de ver, um fato histórico é sempre


construído por um historiador. Da mesma forma o são os períodos – e
estes mais ainda. Não há nada a nos assinalar que se entra numa
época, nem que se saia da outra.

(Le Goff, 2005, p. 54)

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Vem que eu te explico!
Os vídeos a seguir abordam os assuntos mais relevantes do conteúdo que você acabou
de estudar.

Módulo 1 - Vem que eu te explico!


Idade Média para os Renascentistas

Módulo 1 - Vem que eu te explico!


Idade Média para os Marxistas
Módulo 1 - Vem que eu te explico!
Idade média para os Nazistas
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Falta pouco para atingir seus
objetivos.
Vamos praticar alguns conceitos?
Questão 1

Identifique o elemento que se relaciona à formação do conceito de Idade Média como


temporalidade da experiência humana.

O fortalecimento político do Império Carolíngio.

As invasões externas ocorridas nos séculos V e VI.

A limitação do poder romano, permanecendo a Antiguidade como ideia.

A ampliação do poder papal.

As leituras dos séculos XVI e XIX que interpretam a Idade Média.

Responder
Questão 2

Sobre os marcos para definir a Idade Média, é correto afirmar:

A definição da Idade Média é objeto de debate entre os estudiosos, mas é comum que
busquemos tendências para a organização cronológica.

B
A Queda de Constantinopla, a inauguração do papado e as reformas protestantes são
inadequadamente relacionados à Idade Média.

O início no século V e o fim no século XV seguem uma lógica que respeita a estrutura
do período.

A definição da Idade Média será sempre imprecisa, em razão da escassez de fontes para
determinar com precisão esse período.

Foram determinados contemporaneamente, por razões políticas.

Responder

2 - A história da História na Idade Média


Ao final deste módulo, você será capaz de listar formas de produção da
história na Idade Média.
Como se escreve a história na Idade Média?
Há uma tendência por parte dos historiadores, especialmente aqueles que não trabalham
diretamente com a Idade Média, de não reconhecer o período medieval como um espaço
onde tenha se produzido história.

O fato de os homens medievais não terem escrito a História seguindo os preceitos


científicos adotados no século XIX não significa em absoluto que não tenham produzido
sua história, a partir de critérios próprios. Algumas características gerais predominaram
na noção de história presente na sociedade medieval, como:

Podemos destacar a predominância de uma perspectiva teleológica, em que Deus dirige


o rumo da humanidade.

Pintura medieval em mural que decora a Igreja de Sant Climent de Taüll (Espanha).

Outra característica é seu caráter mnemônico, ou seja, o registro de fatos e feitos


passados e contemporâneos voltado a preservar a memória das grandes figuras
eclesiásticas e laicas medievais, visto que boa parte das obras produzidas com esse
intuito foram patrocinadas pelo alto clero, pela alta nobreza e pelas monarquias.
Representação da Coroação do Imperador Carlos Magno.

Uma terceira característica é a presença de elementos sobrenaturais dispostos na


narrativa como sinais da manifestação divina, aprovando ou condenando a ação dos
personagens.

Altar Frontal da igreja de Santa Maria d’Avià.

Um quarto ponto é a presença, nas narrativas com teor histórico, de documentos


originários do campo eclesiástico ou laico, que por vezes foram utilizados para
corroborar o relato. E por fim, podemos apontar o uso indiscriminado de números que
reforçam ou desmerecem a ação dos personagens.

A Folha de Morgan, da Bíblia de Winchester.

A produção histórica na Alta Idade Média


(séculos V a X)
De acordo com Bourdé e Martin (2018, p. 41), “A riqueza da produção historiográfica
na Alta Idade Média é muitas vezes subestimada, já que certos autores preferem reter
desse período apenas o abastardamento dos modelos antigos”. Na tentativa de mostrar
que houve uma produção de histórica alto-medieval própria, os autores ressaltaram as
contribuições de Agostinho de Hipona (354-430), Gregório de Tours (538-594), Isidoro
de Sevilha (560-636), Beda, o Venerável (673-735), Paulo Diácono (720-799) e
Flodoardo de Reims (893-966).

Todos esses autores eram clérigos. Ocupando posições importantes no corpo clerical,
tiveram acesso a arquivos, pessoas e circunstâncias que lhes permitiram combinar, em
seus relatos, fatos passados e contemporâneos. Além disso, todos receberam a tarefa de
redigirem seus relatos do alto clero ou dos reis para registrar a história de uma diocese,
de um reino etc. Vejamos sobre as obras de cada um deles a seguir:

Agostinho de Hipona
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Preocupado em criar um entendimento teológico para a história humana e sobretudo
empenhado em rebater a tese de que o cristianismo teria arruinado o Império Romano,
especialmente a partir do saque da cidade de Roma pelas tropas visigodas, em 410,
Agostinho de Hipona redigiu Cidade de Deus, em 22 livros, entre 413 e 426. Nessa
obra, Agostinho empenhou-se em valorizar o cristianismo, em detrimento da religião
romana tradicional, e em explicar sua concepção histórico-teológica, inspirada no
platonismo grego, que considerava a cidade terrestre um reflexo da cidade celeste, onde
Deus reinava com sua corte e garantia a ordem perfeita. A cidade de Deus, portanto, é
aberta a todos aqueles que se dedicam à vontade divina e “agem na história sob a forma
de uma Igreja militante, que peregrina por esta terra e luta na expectativa do triunfo”
(BOURDÉ; MARTIN, 2018, p. 42).

A concepção agostiniana predominou entre os autores alto-medievais e “serviu como


base teórica para a cristandade medieval” (BOURDÉ; MARTIN, 2018, p. 43). Foi
apropriada, em fins do século VI, pelo papa Gregório VI, o Grande (590-604), que
difundiu um “agostinismo elementar e vulgarizado” e que, de acordo com Marrou
(1983), sustenta a tese de que Deus não só rege a História, como também rege a
natureza e, por meio dela, emite os sinais da sua vontade, que precisam ser decifrados
pelos homens, embora possa interferir quando quiser “através de milagres e prodígios,
nos ciclos naturais e no curso da história” (BOURDÉ; MARTIN, 2018, p. 43). A
perspectiva histórica agostiniana influenciou diretamente as obras posteriores que, a
partir dela, registraram a história de locais e reinos específicos, inserindo-os no
caminhar da história humana.
Xilogravura representando Agostinho escrevendo A Cidade de Deus.

Gregório de Tours
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A obra de Gregório de Tours, é um exemplo da tendência agostiniana, e podemos


considerá-lo como um dos grandes cronistas do reino franco. Nascido em Clermont e
membro de uma ilustre família senatorial romana, Gregório tornou-se bispo de Tours e
envolveu-se diretamente nos conflitos políticos que envolveram a realeza franca e a de
Borgonha. Dirigiu suas obras para o enaltecimento do reino e da igreja franca,
estimulando o culto ao túmulo de São Martin, apóstolo dos gauleses, que havia sido
sepultado na cidade de Tours.

O bispo de Tours escreveu “dez livros de história, sete de milagres, um sobre a vida dos
Padres da Igreja, um comentário dos Salmos e um livro sobre os ofícios eclesiásticos”
(BOURDÉ; MARTIN, 2018, p. 44). Inovou no estilo, colocando-se como testemunha
da história, uma fonte viva que se somava a outras, já que Gregório coletava relatos
vindos do âmbito tanto eclesiástico quanto laico. O uso dos testemunhos orais não
prescindia das fontes escritas variadas que eram cuidadosamente ponderadas pelo autor.

É claro na obra de Gregório de Tours o louvor à história dos francos, o que delegava aos
inimigos do reino (os outros povos germânicos e os judeus) um olhar estereotipado e
pejorativo. Em História dos Francos, o bispo criou novo espaço historiográfico, porque
fundiu o relato cronístico ao hagiográfico, utilizando recursos narrativos para envolver
seus leitores, abusando dos elementos sobrenaturais e milagrosos para justiçar a ação
dos personagens e os atos narrados. De acordo com Bourdé e Martin (2018, p. 47):
O bispo de Tours nos diz, aliás, que as relíquias e os amuletos são eficazes para os que
têm fé. Deus se tornou o autor principal da história. Direta ou indiretamente, através de
seus intermediários na terra, ele manipula ao mesmo tempo as forças naturais e os
agentes históricos.

Manuscrito com as obras hagiográficas completas de Gregório de Tours.

Flodoardo de Reims
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Também inspirando-se na concepção histórica agostiniana e no direcionamento para


uma narrativa da história de um reino ou uma diocese específica, Flodoardo de Reims,
além de seguir a tendência já existente de inspirar-se nos autores clássicos e em relatos
hagiográficos, e de colocar-se como testemunha da história, apresentou algumas
inovações na sua narrativa ao ter o cuidado de inserir em seu relato documentos dos
mais diversos tipos (atas, contratos de compra e venda de escravos, testamentos,
cânones de concílios, cartas papais etc.) e tratá-los de forma impessoal. Contudo, não
teve o mesmo cuidado com personagens (a quem atribuiu características e valores de
acordo com critérios próprios) e lugares citados (por vezes imprecisos, se comparado a
outras fontes), além de abusar das cifras fantasiosas e dos discursos fictícios escritos por
ele mesmo.

O cuidado de Flodoardo com a forma da escrita rendeu-lhe o reconhecimento por parte


dos historiadores, que identificaram a importância que a retórica e o uso costumaz da
documentação ocupou em sua obra. “Tudo bem pesado, Flodoardo não inventou grande
coisa, mas como operário consciencioso da história, teve o mérito de utilizar arquivos
bastante variados, às vezes de maneira um tanto árida” (BOURDÉ; MARTIN, 2018, p.
55).

Obra digitalizada “Les Annales de Flodoard“ de Flodoardo de Reims.

Outros intelectuais
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Seguiram a linha de narrativa histórica de Gregório de Tours. Paulo, o Diácono, Isidoro


de Sevilha e Beda, o Venerável, que se dedicaram a escrever, respectivamente, a
história dos reinos lombardo, visigodo e anglo-saxão.
Manuscrito da "História Eclesiástica do Povo Inglês" obra de Beda.

Formas de escrever História na Idade Média


para os pares
A forma como os autores alto-medievais usaram para escrever a história se relaciona
completamente com o contexto político marcado por acontecimentos como a
desagregação do Império Romano, e sua consequente fragmentação, que promoveu a
formação dos reinos germânicos. Reinos estes que, para fundamentar o poder régio,
recém-implantado, entre povos não habituados a uma realeza permanente nem ao
sedentarismo, careceu de justificativas ideológico-religiosas, providas pelo cristianismo,
para assegurar as bases do poder monárquico.

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Reflexão

Na nova configuração política e religiosa que o Ocidente viu surgir após o Império
Romano, a Igreja (tanto por parte do papado, quanto dos monges e dos bispos,
especialmente) desempenhou um papel fundamental, tanto na cristianização dos povos
germânicos, quanto na justificação do poder régio, entendido como atribuído ao rei pela
vontade divina.

Os primeiros relatos históricos produzidos, portanto, se empenhavam não só em marcar


as origens históricas do reino protagonista da narrativa, inserindo-o na história da
humanidade dirigida por Deus, mas também em identificar a conversão dos reis ao
cristianismo e a ação de figuras e instituições religiosas como o marco histórico da sua
formação e de constituição da sua identidade coletiva. De posse dessas informações é
mais fácil entendermos os fatores motivadores que levaram Gregório de Tours, Paulo, o
Diácono, Isidoro de Sevilha e Beda, o Venerável, dentre outros, a produzirem suas
obras.

A formação do Império Carolíngio, a partir do reino franco, representou um passo à


frente nesse aprimoramento dos relatos históricos. Portador de um projeto imperial,
claramente inspirado no modelo romano, Carlos Magno empenhou-se em garantir certa
identidade político-cultural comum a um império marcado pela heterogeneidade de
povos na sua composição.

Carlos Magno, e a sua frente, com o livro na mão, Alcuíno

Nesse sentido, Carlos Magno cercou-se de homens sábios, originários do clero, que o
auxiliaram no que foi nomeado por historiadores de “renascença carolíngia”. Apesar de
as realizações da alta cultura carolíngia não serem tão amplas quanto se considerou
posteriormente e nem o imperador ter uma cultura tão profunda quanto a imagem a
posteriori propôs, Carlos Magno “Pensava que o saber, a instrução, era uma
manifestação e um instrumento de poder necessários” (LE GOFF, 2007, 58).
Alcuíno de York (735-804).

Uma das figuras que levou adiante o projeto cultural carolíngio foi Alcuíno de York
(735-804), ele foi o principal conselheiro do imperador. Responsável por retomar e
difundir a escrita em latim, Alcuíno foi autor de uma gramática latina e de uma série de
obras de cunho educativo, base para a formação daqueles que frequentavam as escolas
palacianas e episcopais, onde se ensinavam as sete artes liberais.

Vejamos as sete artes liberais a seguir:

Trivium

Gramática, Lógica e Retórica.

Quadrivium

Aritmética, Geometria, Astronomia e Música.

A renascença carolíngia estimulou a difusão da escrita, a educação e a cópia de textos


clássicos, advindos em sua maioria do intercâmbio comercial e cultural com o Império
Bizantino. As cópias foram em sua maioria realizadas e arquivadas nos monastérios.
Sobre o impacto dessa renascença:

Sem cair no exagero, é preciso, todavia, reconhecer que a atividade


intelectual carolíngia foi um dos estratos da cultura europeia. A
importância do saber para o governo de um estado e seu prestígio foi
sublinhada por Carlos Magno no capitular De litteris colendis.
(LE GOFF, 2007, p. 60)

Os impactos da “renascença” carolíngia se expandiram para além do reinado de Carlos


Magno, vigorando no reinado dos seus sucessores, seu filho Luís, o Pio, e seu neto,
Carlos, o Calvo.

O declínio da Dinastia Carolíngia e a chegada das ondas invasoras dos séculos IX e X,


que implicaram ataques militares e conquistas territoriais promovidas pelos húngaros ou
lombardos (que se deslocavam a partir do Leste Europeu), pelos vikings (oriundos da
Escandinávia) e pelos muçulmanos (que buscavam ampliar suas conquistas em direção
ao domínio da bacia ocidental mediterrânica), tornaram os monastérios os espaços mais
seguros para a preservação das obras copiadas, evitando, mas não impedindo, que
fossem destruídas nos ataques dos invasores.

Quando se estuda a história do monasticismo no Ocidente medieval, observa-se o


grande papel que os mosteiros tiveram na preservação, na reprodução dos textos
clássicos e na produção de conhecimentos. Fugindo da vida urbana, por opção, os
mosteiros eram fundados em áreas ermas que propiciavam o afastamento da sociedade e
a instalação de uma vida coletiva marcada pela busca da espiritualidade, que não
beneficiaria somente os monges, mas garantiria as bençãos divinas sobre toda a
comunidade.

Representação dos monges no Monastério.

Logo, em momentos de colapso da vida urbana, em função de invasões e revoltas


internas, os monastérios:
Estavam, portanto, notavelmente bem adaptados para cuidar da
preservação do saber em tempos de decadência e devastação. Eles
estão entre as instituições de mais longa vida contínua existente no
mundo medieval. A longevidade é componente integral do mosteiro,
parte de seu DNA institucional.

(McNEELY; WOLVERTON, 2013, p. 52)

O papel dos monastérios, no que tange ao conhecimento, não era só o de reprodução e


preservação da cultura clássica, mas também produção de conhecimentos que
auxiliassem o homem na sua caminhada terrestre, a respeito da vida, da morte e da
salvação, de acordo com os princípios cristãos. Os monastérios, portanto, contribuíram
para consolidar na alta cultura medieval a concepção de tempo cristã e os parâmetros a
partir dos quais os homens deveriam relacionar-se com o conhecimento e com Deus.

A influência da cultura intelectual monástica foi bastante consolidada no Império


Carolíngio quando Carlos Magno promoveu a reforma dos monastérios propondo o uso
da regra beneditina como referência, e manteve-se forte mesmo por ocasião da segunda
onda invasora dos séculos IX e X.

A adoção da regra beneditina difundiu ainda mais a prática da escrita de textos que
perfaziam os aspectos teológicos e históricos, de forma que as narrativas históricas e
hagiográficas se retroalimentavam, em um esforço de construir a memória de uma
instituição eclesiástica, das cortes senhoriais e das casas régias.

A Regra de São Bento.


A produção histórica na Baixa Idade Média
(séculos XI a XV)
Foi no ambiente monástico que surgiu a chamada reforma gregoriana e todo o projeto
de teocracia papal que pretendia estabelecer a primazia do papado sobre os poderes
seculares, garantir o respeito à hierarquia eclesiástica e submeter a sociedade ao
direcionamento moral da Igreja. Além disso, as cruzadas pregadas pela primeira vez
pelo papa Urbano II, em 1095, conclamaram toda a cristandade a lutar contra os
muçulmanos infiéis, resultantes do clima reformista reinante na Igreja.

O ambiente reformista da Igreja e as Cruzadas promoveram a intensificação da


produção cronística e ampliaram o acesso ocidental às obras orientais, via mundo
muçulmano.

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Curiosidade

O contato entre o mundo muçulmano e o ocidente já existia antes mesmo das Cruzadas
e se dava, principalmente, a partir da Península Ibérica e da Península Itálica, onde o
trânsito de mercadorias (incluindo-se manuscritos) e pessoas era intenso.

Se as cruzadas não representaram o fim do isolamento do Ocidente em relação ao


Oriente, como pensou Pirenne (1992), elas intensificaram o volume do comércio e do
contato cultural e intelectual entre essas regiões.

Durante muito tempo, os historiadores lidaram com uma concepção de Idade Média
voltada somente para o Ocidente. Embora existam diferenças culturais marcantes entre
as sociedades ocidental e oriental ao longo do período medieval, grande parte delas
advindas das referências religiosas, a medievalística contemporânea já caminha para o
entendimento de uma visão conectada da História Medieval. Sem negar os processos
históricos locais, a história conectada, como o próprio nome aponta, pretende explorar
as conexões existentes entre os diversos espaços e culturas.
Um forte movimento de tradução de textos gregos e árabes marca o fortalecimento da intelectualidade europeia.

Iluminura representando um acadêmico medieval fazendo medições sobre um manuscrito.

A ascensão do domínio político-territorial muçulmano na bacia mediterrânica oriental e


ocidental implicou a intensificação das rotas comerciais que uniram a Península Ibérica
ao Extremo Oriente.

A difusão da língua árabe como símbolo da identidade muçulmana intensificou o acesso


a inúmeras obras clássicas (que haviam sido traduzidas do grego para o siríaco, sob o
patrocínio dos imperadores persas sassânidas) e a obras provenientes do Extremo
Oriente traduzidas para o árabe, além daquelas que eram produzidas nas madrassas
muçulmanas.

Tais obras circulavam nos principais centros de tradução do árabe para o latim, ou para
as línguas vernáculas, presentes na Península Itálica e na Península Ibérica, e dali
difundiam-se pela rede de abadias e centros de saber espalhados pelo Ocidente
medieval, também alimentados pelos sábios bizantinos.

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Atenção!

As transformações que marcaram os séculos XI e XII possibilitam notar a ampliação


das fontes escritas que se dedicaram ao registro da memória e aos relatos com um cunho
histórico. Como lembram Bourdé e Martín (2018, p. 61): Nunca se sublinhará a extrema
variedade dos gêneros históricos na época feudal.

O século XI foi marcado pelo incremento da economia senhorial e por mudanças


climáticas que favoreceram a ampliação das áreas agrícolas, por meio do uso de novas
tecnologias, como o arado, o cultivo trienal, o moinho de vento etc.

O aumento da taxa demográfica, a intensificação da vida urbana e das atividades


comerciais e artesanais e a formação da burguesia foram resultados dessa dinâmica de
crescimento socioeconômico.

As cidades se tornaram centros não só econômicos, mas também de saber. As escolas


catedralícias ofereciam àqueles que pudessem pagar uma educação pautada nas sete
artes liberais, o que representou o ascenso dos laicos à cultura letrada, o
desenvolvimento de novos ofícios (como os juristas, por exemplo) que eram absorvidos
na nova vida urbana e nas cortes régias e a difusão da prática da escrita. A partir do
século XIII e nos séculos seguintes, essa difusão pedagógica e da escrita manteve-se nas
escolas catedralícias e perpetuou-se nas universidades recém-fundadas.
Manuscrito medieval mostrando uma reunião de doutores.

A História escrita a partir das universidades


O saber produzido nas escolas catedralícias e nas universidades foi a base a partir da
qual desenvolveu-se no Ocidente medieval uma nova perspectiva acerca da própria
existência humana. Na efervescência intelectual que caracterizou o século XII, uma
nova concepção acerca do ser humano e da sua função na história estabeleceu-se, a
ponto de alguns historiadores considerarem esse período como o nascimento de uma
“consciência ativa da história” que se remeteu aos campos filosófico, teológico,
jurídico, entre outros.

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Reflexão

Sobre essa nova consciência, Bourdé e Martin (2018, p. 59) concluíram que esse novo
censo da história vai de par com um novo senso da natureza, percebida como um cosmo
ordenado, e do papel do homem no seu seio. O homo faber, cuja ação se inscreve no
tempo, tem por tarefa prolongar e completar a obra criadora de Deus.

Inaugura-se, assim, uma antropologia que pretende refletir sobre o ser humano e seu
papel na história. A aventura do homem na terra passou a ser valorizada, e não somente
algo efêmero frente a importância da vida celeste.

Sob a nomenclatura de crônicas, é comum reunir-se vários tipos de relatos que se


propuseram a construir uma narrativa em torno dos feitos de personagens importantes,
alinhando datas e lugares que a corroborem.

Contudo, há uma variedade de tipologias narrativas ainda pouco mensurada pelos


historiadores. Apesar das indefinições a que se remete, na Idade Média, a noção de
crônica era “tanto uma narrativa do dia a dia quanto um afresco abrangendo vários
séculos” (BOURDÉ; MARTIN, 2018, p. 59).

Tradução búlgara da Crónica de Constantino Manasses (século XII).

Dedicando-se ao registro da ação do homem no tempo, os cronistas medievais,


portadores de uma erudição de base, produzem uma narrativa simples e clara, fundada
na cronologia e em oposição às fábulas, que reuniam ficções.
Nota-se, então, entre os cronistas, do século XII em diante, apesar da diversidade

narrativa, alguns cinco elementos comuns.

Um primeiro elemento que caracteriza as crônicas produzidas a partir do século XII e


que se manteve no gênero desde a Alta Idade Média foi as narrativas terem sido,
geralmente, encomendadas por autoridades eclesiásticas ou laicas. No período baixo-
medieval houve um aumento considerável das crônicas régias, produzidas em
decorrência do patrocínio de monarcas, ávidos por demarcar, na memória histórica
coletiva, a origem dos seus reinos e suas contribuições (e das suas dinastias) para seu
desenvolvimento, a fim de justificar a hierarquia e a centralidade do poder monárquico.
Vários foram os cronistas régios, que poderiam ser laicos ou clérigos, como veremos a
seguir:

Clérigos

Os clérigos dominaram por muito tempo esse ofício. Os primeiros foram


majoritariamente os monges beneditinos, mas, com o tempo, o clero secular dedicou-se
aos registros históricos. Esse foi o caso de Guillaume de Potiers e Adão de Bremen.

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Laicos

Com a ampliação do acesso à cultura escrita, conforme mencionado, os historiadores


laicos tornaram-se mais numerosos no período baixo-medieval, sendo majoritários, no
século XV, entre os cronistas borgonheses e bretões.

Um segundo elemento a se levar em consideração é que as crônicas baixo-medievais


resultavam tanto do esforço de autoria individual quanto coletiva. Os chamados
“homens de corte” eram os herdeiros dos clérigos da corte e dos jograis feudais que se
dedicavam a narrar os grandes feitos dos barões e dos santos, seguindo os moldes
cronísticos alto-medievais. Os “historiadores de gabinete” eram empregados nas cortes
régias e episcopais e tinham acesso privilegiado aos documentos originais. O avanço
das chancelarias, decorrente, sobretudo, da necessidade político-administrativa das
monarquias do século XIII, tornou-as os espaços da memória burocrática e as fez
disputar com os monastérios o posto de guardiãs e de registro da memória régia.
Vejamos os cronistas a seguir:

Jan Dlugosz

O cronista que escreveu História da Polônia, entre 1445 e 1480, e teve amplo acesso
aos arquivos do capítulo e da chancelaria da Cracóvia, além daqueles que se
encontravam em diversos conventos, sendo exemplo de cronista que empreendeu vasta
pesquisa documental para redigir sua crônica.

Jean Froissart

Atuou mais como um “cronista-repórter”. Considerado por Bourdé e Martin (2018) “o


pai da história oral”, escreveu suas obras tendo como base os relatos que recolhia em
suas viagens por meio de entrevistas detalhadas feitas às suas testemunhas. Apesar do
relato envolvente, o remanejamento de fatos e lugares, por vezes, comprometeu a
veracidade das informações.
As crônicas produzidas poderiam ser resultantes tanto do esforço de um cronista quanto
do de uma equipe de autores, que poderiam ter suas autorias declaradas ou não na obra,
podendo atuar como uma equipe ou isoladamente.

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Exemplo

Historia Compostelana é um exemplo de autoria cronística coletiva, produzida a mando


do arcebispo de Santiago de Compostela, Diego Gelmírez, no século XII, com o
objetivo de enaltecer a origem da sua diocese frente às demais dioceses do reino, mas
especialmente frente à diocese de Toledo, com quem disputava a primazia da igreja
castelhana. O projeto da obra era tão ambicioso, que se estendeu por vários anos e, ao
longo do texto, é possível identificar a autoria de quatro clérigos que, em momentos
diversos, foram responsáveis pela redação da obra.

Um marco na produção cronística foi General Estoria, uma obra destinada a contar a
história da Espanha desde sua origem até o reinado do rei de Leão e Castela, Fernando
III.

Sua produção foi coordenada pelo rei Afonso X, filho e sucessor do monarca, sob a
direção do monge franciscano Juan Gil de Zamora, que tinha sob sua liderança uma
equipe de cronistas que atuavam no scriptorium afonsino. Sua feitura contar com a
supervisão ativa do monarca, e patrono da obra, a quem também se atribuiu o fato de ter
sido escrita em castelhano, inaugurando uma tendência de escrever as crônicas na língua
vernácula, e não em latim, tornou-a referência na produção cronística baixo-medieval.

Afonso X de Castela (221-1284).


O terceiro elemento que pode ser identificado nas crônicas baixo-medievais é o fato de
elas serem produzidas tendo em vista a apresentação de um personagem principal.
Seguindo a tendência de alinhar feitos e costurá-los em um relato narrativo que
caracteriza esse gênero desde a Alta Idade Média, as crônicas dos séculos XII em diante
centravam-se mais nas ações individuais, como veremos:

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O homenageado na crônica era representado como portador de virtudes morais que


geralmente o assemelhavam aos ideais cavaleirescos, mas não só ele como toda sua
parentela.

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Por outro lado, seus opositores, suas linhagens e seus feitos eram frequentemente
difamados. Logo, a história dos protagonistas da crônica misturava-se à história dos
reinos, em uma busca intensa por uma origem gloriosa.

Isso nos remete ao quarto elemento que caracterizou as fontes desse período, a
inserção das narrativas dos reinos e dos seus protagonistas na história humana. Dessa
forma, era comum que os cronistas régios, principalmente, recuassem aos tempos mais
longínquos para elaborar a história do reino e nele observar elementos que
demonstravam a intervenção divina nos momentos críticos. Contudo, rompendo com a
tendência das crônicas alto-medievais, que frequentemente faziam uso dos elementos
sobrenaturais próprios dos relatos hagiográficos, os cronistas baixo-medievais
diminuíram consideravelmente as inserções sobrenaturais nos seus relatos.

Chega-se, então, à quinta característica da literatura cronística baixo-medieval, o uso


de informações adquiridas em documentos, por vezes transcritos na narrativa. O fato de
as chancelarias terem sido fundadas e ampliado sua forma de organização interferiu
diretamente na forma como os cronistas construíram sua narrativa. Portanto, as crônicas
produzidas nos séculos XIV e XV não incluem somente menções aos textos cronísticos
mais antigos, mas também à transcrição direta de documentos e dados sobre sua
localização arquivística.
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Crônicas e História nos reinos ibéricos
Vamos a um estudo de caso com a professora Marta, em que ela discute a importância
das crônicas e da História na formação dos reinos ibéricos na Baixa Idade Média.

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Vem que eu te explico!
Os vídeos a seguir abordam os assuntos mais relevantes do conteúdo que você acabou
de estudar.

Módulo 2 - Vem que eu te explico!


Agostinho e a História
Módulo 2 - Vem que eu te explico!
Alcuíno de York e Beda - Visões de História

Módulo 2 - Vem que eu te explico!


Guillame de Potiers e Adão de Bremen: visões de história
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Falta pouco para atingir seus
objetivos.
Vamos praticar alguns conceitos?
Questão 1

Quanto à missão da escrita da História e seu registro durante a Idade Média, pode-se
afirmar que

as crônicas se limitavam ao papel lúdico, para entretenimento da nobreza.

as crônicas e histórias eram um instrumento para reduzir o poder da Igreja.

as crônicas e histórias só poderiam ser escritas por laicos.

as crônicas e as histórias eram instrumentos de legitimidade.

as histórias buscavam retomar os valores clássicos.

Responder
Questão 2

A produção de história durante a Baixa Idade Média foi fortemente impactada pela
criação e consolidação das

catedrais.

B
monarquias.

práticas papais.

guerras santas.

universidades.

Responder

3 - Fontes diversas para o estudo da


Idade Média
Ao final deste módulo, você será capaz de identificar metodologias para o
estudo de fontes na Idade Média.

As variedades metodológicas
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Documentos, Famílias e desafios de
investigar a História medieval
Neste vídeo, será apresentado o que é um documento por meio de um estudo de caso,
usando as legislações para mostrar como é complexo estudar o passado.

Uma das grandes contribuições da Escola dos Annales para a historiografia foi a
“revolução documental” estabelecida ao entender qualquer vestígio deixado pelo
homem sobre a Terra como uma fonte para o estudo da História, quebrando o
entendimento de que somente os documentos oficiais escritos deveriam ser
considerados fontes válidas para o fazer história. A ampliação da noção de fonte
histórica propiciou, então, que os historiadores explorassem novas temáticas e novos
objetos.

De qualquer forma, se os historiadores estão mais preocupados que


seus antecessores com uma maior variedade de atividades humanas,
devem examinar uma maior variedade de evidências. Algumas dessas
evidências são visuais, outras orais.

(BURKE, 1992, p. 14)

Para lidar com a variedade de fontes que envolve essa revolução documental, os
historiadores estão permanentemente instados a recorrer a outros campos do
conhecimento para encontrar elementos que lhes permitam desenvolver novas
metodologias de análise documental. É assim que a análise de discurso, a análise de
conteúdo, o comparativismo, a semiótica, os métodos quantitativos, a história serial etc.
adentraram o mundo historiográfico e têm sido revisitados e aprimorados com o passar
do tempo.
No que se refere aos estudos medievais, a ampliação do leque documental contribuiu

essencial e significativamente para derrubar alguns estereótipos ainda sedimentados

atribuídos ao período medieval.

O desenvolvimento das chancelarias medievais legou aos medievalistas uma gama de


documentos oficiais, sobretudo a partir do século XIII. A isso somou-se o interesse de
historiadores ligados às monarquias e às instituições eclesiásticas de preservar a
memória institucional por meio da organização dos arquivos nacionais e clericais.

Portanto, muitas crônicas, cartas e decretos oficiais, atas conciliares, dentre outras
formas oficiais de documentação, encontram-se catalogados em grandes arquivos e,
com o advento da tecnologia virtual, disponibilizados na Internet para consulta também
em sua versão manuscrita.

Boa parte das obras literárias medievais, que foram preservadas por bibliotecários e
livreiros ao longo dos anos, encontram-se disponíveis em versões físicas e digitais, em
língua original ou já traduzidas para diversos idiomas. As obras têm servido como
objetos de estudo de profissionais de várias áreas, dentre elas historiadores, que,
partilhando de um olhar interdisciplinar, especialmente em parceria com linguistas e
filólogos, têm buscado nelas referências da cultura e do modo de pensar medieval.

Digitalização da Coleção medieval A Miscelânea Rothschild, disponível no Museu de Israel.

Os textos filosóficos e teológicos têm sido largamente visitados por historiadores,


filósofos e teólogos em busca de entender a forma como os homens medievais
concebiam o mundo e as formas espirituais.

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Curiosidade

Obras como as de Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, passando pelos escritos de


sábios muçulmanos como Avicena e Averróis, têm circulado e alimentado a produção
de conhecimento desde a Modernidade, e são largamente difundidas em versões virtuais
e impressas ao longo dos anos.

A Idade Média também produziu uma série de tratados ligados a diversas áreas de
conhecimento. Contudo, nem sempre os medievalistas se empenharam em desbravá-los.
Em grande parte, isso se dá porque a noção de cientificidade da modernidade difundiu a
noção de que a Idade Média não produzia ciência, limitando-se os sábios medievais a
simplesmente copiarem antigos tratados greco-romanos. Essa perspectiva equivocada
deixou fora do radar dos medievalistas o estudo das obras tratadísticas que mais
recentemente têm sido revisitadas, como os tratados de:

 Medicina (como aqueles produzidos por Trótula de Salerno e Hildegard de Bingen),

 Geologia (o Lapidário de Afonso X, por exemplo), dentre outros.

Além disso, a Idade Média foi um período profícuo na produção de códigos jurídicos
que basearam o Direito moderno e que possui referências no Direito contemporâneo. No
período alto-medieval, foram produzidos códigos germânicos (como a Lei Sálica, dos
francos, e o Código Visigótico) por iniciativa dos monarcas germânicos e das forças
episcopais locais interessados em regular o convívio entre romanos e germânicos que
habitavam os reinos. Vejamos:

Direito canônico

No século XII, a Igreja retomou intensamente os estudos do Direito romano,


especialmente do Corpus Juris Civilis.
O código romano compilado a mando do imperador bizantino Justiniano (482-565) –, e
tomou dele os elementos necessários para compor o Direito canônico.

Direito régio
No século XIII, sobretudo com a formação das monarquias medievais, o Direito régio
foi elaborado a partir das várias referências jurídicas do período. Para aqueles que se
interessam em entender as leis como mecanismos de exercício de poder e como
facilitadoras e disciplinadoras das dinâmicas sociais, é só buscar os textos legais, já
largamente difundidos na formas impressa e virtual.

Em busca de documentos
O contato mais intenso com a arqueologia tem propiciado mais um salto nos estudos
relativos ao período medieval. Conforme a arqueologia amplia suas descobertas, mais
os historiadores têm elementos para entender a forma como os povos se conectavam
comercial e economicamente, observando o deslocamento de pessoas e de produtos
entre as diversas regiões, como pretendem os historiadores da história global, por
exemplo. Mas também lhes é permitido desvendar a forma como os homens medievais
lidavam com suas realidades cotidianas, como a alimentação, o vestuário, a moradia, os
instrumentos de trabalho, de diversão, dentre outros.

A ampliação documental gerou o alargamento das temáticas e das formas de fazer


história. Sendo assim, a história medieval tem sido visitada por historiadores
interessados em estudar as categorias de gênero, em explorar as conexões globais e
mesmo a forma como as práticas e os símbolos medievais foram sendo apropriados
pelos períodos modernos e contemporâneos.

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Curiosidade

Em linhas gerais o estudo sobre as mulheres e sua atuação na sociedade medieval tem
sido de interesse de vários medievalistas. Estes optam por compreender esse tema a
partir do papel social que essas mulheres desenvolveram, o que caracteriza a História
Social das mulheres, ou aos elementos culturais (práticas e símbolos) que envolvem a
construção da noção feminilidade e de masculinidade na sociedade medieval, sendo esta
a ótica dos estudos de gênero.

Outra perspectiva historiográfica que tem incrementado os estudos medievais é a


História Global e a História Conectada, como veremos a seguir:
História Global
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Wallerstein (1974) elaborou uma teoria política e econômica que, partindo da relação
moderna de interdependência inter-regional e transnacional, iniciada no século XVI
com a instauração do sistema colonial, propôs uma divisão mundial entre países
centrais, semiperiféricos e periféricos. A influência de Wallerstein foi em grande
medida responsável por criar pontes entre as perspectivas globais ainda incipientes na
História e na Sociologia, abrindo os olhos e inspirando algumas gerações de
pesquisadores a pensar as desigualdades na escala global a partir do processo de
descolonização do século XIX.

História Conectada
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Na década seguinte, Abu-Lughod (1991) avançou com os estudos em perspectiva global


quando demonstrou que a interdependência regional já existia em períodos anteriores ao
século XVI, no entanto, sem centros hegemônicos. Partindo desse pressuposto, Abu-
Lughod evidenciou as conexões comerciais entre os continentes africano, europeu e
asiático centrando-se nos séculos XIII e XIV, sem identificar um centro hegemônico. A
autora defende que as práticas desenvolvidas a partir da inter-relação regional pré-
moderna lançaram os fundamentos que possibilitaram o desenvolvimento de uma nova
ordem mundial, no século XVI, na qual a Europa assumiria a hegemonia da maior parte
do mundo. Dessa forma, demonstrou que as características dos sistemas-mundo não são
invariáveis e que não existe um único caminho de conexão entre eles.

Caminhando no estudo das conexões entre os diversos espaços e povos, Libera (1999)
criticou a equiparação do conceito de Idade Média ao de Ocidente cristão. Dessa forma,
o que não era simultaneamente ocidental e cristão era colocado à margem pelos
estudiosos, considerado exótico e sem legitimidade própria. Em reação a isso, De Libera
propôs-se a entender a Filosofia Medieval a partir da perspectiva da translatio
studiorum, ou seja, do movimento fluído do conhecimento executado por obras e
agentes do saber que se moviam pelas rotas de comércio, mercados, cortes,
universidades, madrassas e escolas de tradução pré-modernas.
Apesar de a História Global ser ainda pouco precisa metodologicamente e abrigar
diversas perspectivas teóricas na sua constituição, sendo um campo analítico ainda em
desenvolvimento, ela tem contribuído bastante para a exploração de novos espaços e
culturas, investindo na análise das suas conexões. Contudo, o uso de uma perspectiva
global pode originar análises excessivamente generalizantes e não significa a derrocada
dos estudos voltados para sociedades específicas, espacialmente localizadas, pois esses
estudos específicos e locais é que oferecem subsídios para o estabelecimento das
análises globais.

A Idade Média e a cultura


Outra perspectiva historiográfica que tem contribuído para o entendimento das
representações que se constituíram em torno da cultura e dos símbolos medievais pelos
períodos históricos posteriores recebe nomes como medievalismos e/ou
neomedievalismos. Como vimos anteriormente, a Idade Média serviu como uma espécie
de reserva de símbolos e de referências tanto para os historiadores quanto para os
artistas. No que se refere ao campo artístico, os símbolos medievais estiveram presentes
na:

1. Literatura

2. Pintura
3. Arquitetura divulgadora dos estilos gótico e neogótico

O medievalismo, como campo de estudo, surgiu na década de 1970, a partir de uma


dupla iniciativa: a de Workman (1997, p. 29), “quem primeiro sistematizou e incentivou
a criação de um campo acadêmico que reunisse pesquisas cujo objeto fosse as
apropriações da Idade Média em períodos pós-medievais”, e de uma conferência
realizada na cidade de Salzburg sobre a recepção da poesia medieval.

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Comentário

As reflexões iniciadas nesse âmbito inauguraram o interesse dos medievalistas por,


mediante uma interlocução transdisciplinar, refletir sobre a forma como a noção de
Idade Média e as temáticas a ela vinculadas foram historicamente constituídas e
culturalmente apropriadas a partir de motivações específicas, em que elementos
políticos e ideológicos são protagonistas.

A complexidade dos medievalismos abriga subdivisões, e uma delas é o


neomedievalismo, que trata mais especificamente da forma como a cultura pop
contemporânea acerca-se das referências simbólicas medievais, sobretudo no que tange
aos elementos fantásticos, como veremos a seguir:
Filme inspirado na Idade Média.
Referências simbólicas medievais

Para produzir filmes, séries, histórias em quadrinhos, livros e jogos.

“Meme” produzido com base em Illuminura da época medieval.


Referências simbólicas medievais

Também para outros produtos culturais que cada vez mais alcançam o grande público
contemporâneo.

Os estudos medievais, portanto, são cada vez mais marcados pelo dinamismo das
abordagens e do uso das fontes históricas, mas ainda há muito o que caminhar no
sentido de pelo menos minimizar os efeitos negativos que os estereótipos largamente
difundidos acerca desse período ainda geram no meio acadêmico e no senso comum.
Por isso, concluimos com um alerta que ainda é bastante válido.

A Idade Média tem má reputação. Talvez, mais do que qualquer outro


período histórico; mil anos de história da Europa Ocidental, entre os
séculos V a XV, entregues às ideias preconcebidas e a um menosprezo
inextirpável, cuja função é, sem dúvida, permitir que as épocas
ulteriores forjem a convicção de sua própria modernidade e de sua
capacidade em encarar os valores da civilização. A obstinação dos
historiadores em desafiar os lugares-comuns não fez nada contra isso,
ou muito pouco. A opinião comum continua sendo associar a Idade
Média às ideias de barbárie, de obscurantismo e de intolerância, de
regressão econômica e de desorganização política. Os usos
jornalísticos e da mídia confirmam esse movimento, fazendo apelo
regularmente aos epítetos “medieval”, ou mesmo “medievalesco”,
quando se trata de qualificar uma crise política, um declínio dos
valores ou um retorno do integralismo religioso.

(BASCHET, 2006, p. 23)

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