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Feita de Memórias

Um lugar na colina.

Rui Pedro Serra Taveira


(Licenciado)

Professor Doutor Miguel Baptista-Bastos


(Orientador Científico)
Professor Doutor Jorge Firmino Nunes
(Orientador Científico)

Projecto Final para a Obtenção


do Grau de Mestre em Arquitetura Abril 2019
Rui Serra | Janeiro 2019

II
Feita de memórias

Feita de Memórias
Um lugar na colina.

Rui Pedro Serra Taveira


(Licenciado)

Professor Doutor Miguel Baptista-Bastos


(Orientador Científico)
Professor Doutor Jorge Firmino Nunes
(Orientador Científico)

Projecto Final para a Obtenção


do Grau de Mestre em Arquitetura Janeiro, 2019

III
Rui Serra | Janeiro 2019

IV
Feita de memórias

Spirit in will to express


Can make the great sun seem small.

The sun is
Thus the Universe.

Did we need Bach


Bach is
Thus music is.

Did we need Boullée


Did we need Ledoux
Boullée is
Ledoux is
Thus Architecture is.

Louis I. Kahn

(MOFFETT, 2003)

V
Rui Serra | Janeiro 2019

Título
Feita de memórias
Um lugar na colina.

Nome
Rui Pedro Serra Taveira

Orientação Científica
Professor Doutor Miguel Baptista-Bastos
Professor Doutor Jorge Firmino Nunes

Mestrado Integrado em Arquitectura

Lisboa, Janeiro de 2019

VI
Feita de memórias

Resumo.
O cemitério é um lugar que transparece o corpo social e nos conta
a sua história.

A sua função de acolher os defuntos representa, apenas,


uma face que oculta diferentes realidades. No seu íntimo,
o cemitério simboliza diferentes convicções associadas à
identidade, à memória e ao imaginário. Assim, o cemitério
tem a capacidade de reflectir os valores e princípios de
qualquer sociedade que nele habite.

Apesar destes ideais, o cemitério é hoje uma sombra do que foi.

A presente proposta pretende lançar as bases para um dis-


curso que sustente uma nova abordagem à representação
do lugar da memória. Assumiu-se, então, que a ideia de
cemitério que habita os nossos subconscientes, deveria
ser ultrapassada. De forma a devolver a sua capacidade
dramática e elevar a sua experiência de transcendência é
pensada uma transformação do lugar tradicional em algo
distinto, capaz de responder a uma série de ambições e
sentimentos pessoais da experiência do real.

Palavras-Chave: Cemitério Vertical | Lisboa | Utopia | Memória | Monumentalidade

VII
Rui Serra | Janeiro 2019

Title
Made of memories
A place onthe hill

Name
Rui Pedro Serra Taveira

Main Advisor
Teacher and Doctor Miguel Baptista-Bastos
Teacher and Doutor Jorge Firmino Nunes

Integrated Master in Architecture

Lisbon, January 2019

VIII
Feita de memórias

Abstract.
The cemetery is a place that transpires the social body and tells us
its history.

Its function of welcoming the deceased represents only


one face that hides diferente realities. Inside, the cemetery
symbolizes diferente beliefs associated with identity, me-
mory and the imaginary. Thus, the cemetery has the ca-
pacity to reflect the values and a principles of any society
in which it lives.

Despite these ideals, the cemetery is now a shadow of what it was.

The presente proposal intends to lay the foundations


for a discourse that supports a new approach to the re-
presentation of the place of memory. It was assumed,
then, that the definition of a cemetery that inhabits our
subconscious should be overcome. In order to return to
its dramatic capacity and elevate its experience of trans-
cendence, a transformation of the traditional place into
something distinct, capable of responding to a series of
ambitions and personal feelings of the experience of the
real, is thought of.

Keywords: Vertical Cemetery | Lisbon | Utopia | Memory | Monumentality

IX
Rui Serra | Janeiro 2019

Há pessoas que guardo na memória.

Às pessoas que guardo na memória.

X
Feita de memórias

Agradecimentos.

XI
Rui Serra | Janeiro 2019

XII
Feita de memórias

Índice.

. introdução 1

1. se numa curiosa viagem 21


2. por onde a sombra adensa 67

3. numa gravidade intensa 95

4. numa leveza de um pássaro e não de uma pena 111

5. os astros contam 145

6. histórias atribuladas 201

7. sobre o horror de uma masmorra e a alegria de uma taberna 229

8. feita de memórias 261

9. conclusão 353
bibliografia 439
peças desenhadas 447

XIII
Rui Serra | Janeiro 2019

XIV
Feita de memórias

Índice de figuras.
001. capa. Desenho elaborado pelo autor.

p.10- fig. 002. O primeiro voo. O Balão de Alberto Santos Dumont,


em 1884. in disciplesofflight.com/alberto-santos-dumont/

p.18- fig. 003. Saudade. Fotografia de Hans Baumgartner em Zürich.


1938. in http://onlyoldphotography.tumblr.com/tagged/Hans%20
Baumgartner

p.21- fig.004. Se numa curiosa viagem. Desenho elaborado pelo autor.

p.27- fig.005. A herança egípcia. Fotografia de Gordon Gahan para


o National Geographic, 1982. in https://medium.com/engl462/
visual-deceptions-national-geographic-and-the-pyramids-of-giza-3fe-
e6d448d0d

p.29- fig.006. Entre mundos. O nilo. in https://blanchetcecile.wor-


dpress.com/

p.34- fig.007. Louis Armstrong toca para a sua mulher em 1961. in


http://amroali.com/2015/06/what-louis-armstrong-taught-egypt-
-and-the-middle-east-about-itself/

p.36- fig.008. A pirâmide de Gizé. in https://www.pinterest.pt/


holt715/

p.38- fig.009. Templo de Hephaestus. in https://www.pinterest.pt/


pin/200058408427470679/?lp=true

p.39- fig.010. Templo Erecteion entre 421 a 406 a.C Cariátide- fi-
guras femininas esculpida servindo como um suporte de arqui-
tetura tomando o lugar de uma coluna ou um pilar de sustentação
com um entablamento na cabeça. in https://www.pinterest.it/
pin/301530137536947980/

p.42- fig.011. Heranças sustentadas. in https://www.pinterest.pt/


pin/515802963568628937/

p.43- fig.012. Coliseu de Roma. in https://www.pinterest.pt/karoli-


naryszka/places-architecture/?lp=true

p.44- fig.013. Panteão de Roma. in https://www.flickr.com/pho-


tos/115336591@N02/12113865064/

p.45- fig.014. Panteão de Roma. in https://www.liturgicalartsjournal.


com/2018/02/lessons-in-liturgical-arrangement-found.html

p.45-46- fig.015. Luz. Panteão de Roma. in https://www.pinterest.


pt/pin/335025659752331501/?lp=true

p.48- fig.016. Via Appia na Antiguidade Romana. in http://www.


theeditorssociety.com/2016/tag/city-guide/

XV
Rui Serra | Janeiro 2019

p.48- fig.017. Antiguidade Romana pelos dedos de Giovanni Bat-


tista Piranesi. in https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Giovan-
ni_Battista_Piranesi_-_Le_Antichità_romane,_tomo_III_(segundo_
frontispício)_1750-53.jpg

p.56- fig.018. Ingmar Bergman em gravações do filme “O sétimo


selo”. in https://i.pinimg.com/originals/4e/80/94/4e80948b60a-
ec682bbd2f973f93d7893.jpg

p.56- fig.019. A morte. Interpretação de Ingmar Bergman no filme “O


sétimo selo” em 1963 in http://obviousmag.org/viver_a_deriva_e_
sentir_que_tudo_esta_bem/2015/o-setimo-selo.html

p.62- fig.020. Proposta para o cemitério do Père Lachaise. in https://


commons.wikimedia.org/wiki/File:Projet_pour_le_cimetière_du_
Père-Lachaise.jpg

p.67- fig.021. Por onde a sombra adensa. Desenho elaborado pelo


autor.

p.89- fig.022. Um vão no Prado do Repouso por Tiago Ferreirinho,


Porto. Portugal. in Espaços Ocultos do Espaço.

p.89- fig.023. Casa Malaparte. Poesia num vão. in https://www.pin-


terest.es/bergadmasquef/liberamalaparte/

p.93- fig.024. Numa gravidade intensa. Desenho elaborado pelo autor

p.101- fig.025. Battersea Power Station, London, in 1968. Por Ar-


chitectural Press Archive / RIBA Library Photographs Collection. in
https://www.pinterest.pt/pin/539446861602337213/?lp=true

p.101- fig.026. A cabeça da Estátua da Liberdade desenhada pelo


escultor Francês Frederic Auguste Bartholdi no estúdio por volta
de 1880. in https://www.nbcnews.com/slideshow/life-lady-liber-
ty-45068369

p.101- fig.027. A fábrica por Carl Mydans. in https://www.art.com/


products/p14012358-sa-i2770584/carl-mydans-factory-workers-
-working-in-the-government-owned-opium-packing-plant.htm

p.101- fig.028. Roldanas por Craig Hannah. in https://hiveminer.


com/flickr_hvmnd.cgi?method=GET&textinput=oldham,pictu-
res&sorting=Interestingness&sort=Interestingness&originput=ol-
dham,pictures&photo_number=50&page=4&photo_type=250&se-
arch_domain=Tags&search_type=Tags&noform=t&tag_mode=all

p.102- fig.029. Peso. Indústria. Por Arkady Samoylovich Shaikhet. in


https://www.pinterest.pt/indusfactory/

p.106- fig.030. A forma do peso. Alçado do cenotáfio de Newton


desenhado por Étienne Louis em 1784. in http://thechoicesthops.
com/page/13

XVI
Feita de memórias

p.106- fig.031. Secção do cenotáfio de Newton desenhado por


Étienne Louis Boullée em 1784. in http://numerocinqmagazine.
com/2016/11/24/visit-etienne-louis-boullees-cenotaph-sir-isaac-
-newton-gary-garvin/

p.111- fig.032. Numa leveza de um pássaro e não de uma pena. Dese-


nho elaborado pelo autor.

p.113- fig.033. A leveza conhece o sonho. Dirigível número 9 - Santos


Dumont. in http://mundosurfm.com/sabias-que-alberto-santos-du-
mont-el-avion/

p.115- fig.034. As Aventuras do Barão de Münchhausen, compiladas


por Rudolph Erich Raspe e publicadas em Londres em 1785. in ht-
tps://br.pinterest.com/pin/491596115571754835/

p.115- fig.035. Dom Quixote de Gustave Doré. in https://elcastillo-


dekafka.wordpress.com/2013/02/12/el-quijote-como-novela-mo-
derna/quijote-dore-8/

p.119- fig.036. A capela do bosque. in https://www.pinterest.es/


pin/311029917992674177/?lp=true

p.123- fig.037. O bosque. in https://www.pinterest.it/


pin/355362226818729210/?lp=true

p.123- fig.038. Jackson Pollock, “One: Number 31”. in https://


www.flickr.com/photos/socialcriteria/41472580025

p.125- fig.039. O bosque. in http://artpictures.club/bigpicture.html

p.132- fig.040. O encontro. A capela de Asplund. in https://www.fli-


ckr.com/photos/ramonfernandez/43288792885/in/photostream/

p.132- fig.041. A chegada. A capela de Asplund. in https://www.


pinterest.com.mx/pin/308989224412988363/

p.132- fig.042. Apresenta-se. A capela de Asplund. in http://archil-


lect.com/146115

p.137- fig.043. O culminar de uma viagem. O altar. in https://www.


pinterest.es/pin/54043264251977997/?lp=true

p.145- fig.044. Os astros contam. Sergio Toppi. in https://www.pin-


terest.pt/pin/604256474979145978/?lp=true

p.150- fig.045. Um salto de fé na lente de Rajesh Kumar Singh. in


https://www.pinterest.pt/pin/233624299391021837/

p.151- fig.046. Mergulho no rio sagrado. O Rio Ganges - Brent Wine-


brenner. in https://www.gettyimages.dk/detail/photo/boy-jumping-
-into-ganges-high-res-stock-photography/148612222

XVII
Rui Serra | Janeiro 2019

p.151- fig.047. Crença. in https://freshideen.com/reisen-urlaub/rei-


se-nach-indien.html

p.163- fig.048. Acendem-se as velas. Acende-se a atmosfera. in


http://www.mexconnect.com/photos/2467-s-1108-burning-herbs-
-and-candles-create-a-relaxing-serene-environme

p.163- fig.049. Cravo-de-defunto. Os campos de Mictlan. in http://


fuckyeahmexico.tumblr.com/page/340

p.163- fig.050. Rapariga prepara as oferendas para o ritual hindu, na


Índia. Outubro 16, 2009 REUTERS/Krishnendu Halder. in http://
archive.boston.com/bigpicture/2009/10/diwali_2009.html

p.163- fig.051. O altar no dia mais importante. in 50 https://www.


thekitchn.com/creating-a-dia-de-los-muertos-131097

p.166- fig.052. Velas e Rituais. in https://www.pinterest.pt/monika-


jung/la-muerte/?lp=true

p.166- fig.053. Incensos ascestrais. in https://www.pinterest.pt/


pin/231091024609220127/?lp=true

p.166- fig.054. Histórias partilhadas. Histórias relembradas. in


http://lasbugambilias.com/tours/day-dead/

p.166- fig.055. Atmosferas e sentimentos. in, https://galcia.exblog.


jp/24684016/

p.170- fig.056. Jerusalém. in https://www.art.com/products/


p15231927-sa-i3617298/michele-falzone-western-wall-and-dome-
-of-the-rock-mosque-jerusalem-israel.htm

p.170- fig.057. O epicentro da crença. in https://www.pinterest.pt/


pin/224546731395852387/?lp=true

p.173- fig.058. O rio e o pescador, O rio mais sagrado na cidade


mais sagrada. in https://www.art.com/products/p3311948657-sa-
-i4386192/fisherman-casts-his-net-in-the-river-ganges-on-the-out-
skirts-of-allahabad-india.htm

p.173- fig.059. Leituras sagradas. Rio Ganges. in https://www.pinte-


rest.co.uk/pin/485403666058129230/?lp=true

p.175- fig.060. Nova Deli. Índia. Por Etienne Roudaut. in ht-


tps://500px.com/photo/5789558/new-delhi-by-etienne-roudaut

p.178- fig.061. Manikarnika Ghat. O mais sagrado crematório. in ht-


tps://www.flickr.com/photos/olivier-thao/5423772831

XVIII
Feita de memórias

p.178- fig.062. Manikarnika Ghat. in https://www.pinterest.pt/


pin/518336238360859458/

p.178- fig.063. Manikarnika Ghat. in https://www.pinterest.pt/


pin/518336238360886557/

p.192- fig.064. A escada que sobe. Caspar David Friedrich. in ht-


tps://www.pinterest.pt/pin/609604499535083809/?lp=true

p.195- fig.065 A prisão do devaneio. Giovanni Battista Piranesi. in


https://www.pinterest.co.uk/pin/19351473377484408/?lp=true

p.201- fig.066. Histórias atribuladas. Desenho elaborado pelo autor.

p.204- fig.067. Chichicastenango, cidade indígena. in https://www.


pinterest.pt/pin/385480049326612899/?lp=true

p.206- fig.068. Mercados e degraus que carregam memórias. in ht-


tps://www.pinterest.pt/pin/480266747758537412/?lp=true

p.206- fig.069. Uma cultura na Guatemala. in https://www.pinterest.


pt/pin/555631672749783096/

p.206- fig.070. O Quotidiano nos degraus. in https://in.pinterest.


com/pin/271201208782992619/?lp=true

p.208- fig.071. Traços de uma cultura. Identidades. in https://www.


pinterest.pt/pin/263319909447761049/?lp=true

p.208- fig.072. As cores e as flores. João Pessoa, 2008. in https://


nl.pinterest.com/pin/461548661788654938/?lp=true

p.210- fig.073. Memórias dolorosas espreitam a cidade. César Catalán.


in https://www.flickr.com/photos/cesarangel/13983984460

p.216- fig.074. A cor dos deuses. in https://www.mifuguemiraison.


com/fr/lac-atitlan-chichicastenango-guatemala/

p.220- fig.075. Sagrados rituais. in https://www.pinterest.es/


pin/55661745368011706/?lp=true

p.229- fig.076. Sobre o horror de uma masmorra e a alegria de uma ta-


berna. Goya. in https://www.brooklynmuseum.org/opencollection/
objects/47212

p.231- fig.077. Poesia de modena. Fabio Bascetta. in https://fabio-


-bascetta.divisare.pro/projects/366492-cimitero-san-cataldo

p.237- fig.078. Aldo Rossi: “Things Which Are Only Themselves”.


Luigi Ghirri | published August 1996. in https://twitter.com/ma-
rialovessea/status/1003235537841508352

XIX
Rui Serra | Janeiro 2019

p.239- fig.079. O desenho. San Cataldo. in Aldo Rossi, Cemetery of


San Cataldo. in https://www.archdaily.com/95400/ad-classics-san-
-cataldo-cemetery-aldo-rossi

p.242- fig.080. A morada. Dilton Lopes 2003. in https://www.flickr.


com/photos/diltonlopes/8719266674/in/photostream/

p.249- fig.081. A forma de uma nova face. in http://argonaut88.tum-


blr.com/image/105889841372

p.254- fig.082. Uma viagem. Dilton Lopes 2013. in https://www.


flickr.com/photos/diltonlopes/8719268794/in/photostream/

p.255- fig.083. Um destino. Dilton Lopes 2013. in https://www.fli-


ckr.com/photos/diltonlopes/8718152079/in/photostream/

p.261- fig.084. Desenho elaborado pelo autor.

p.263- fig.085. Feita de memórias. Desenho elaborado pelo autor.

p.273- fig.086. Caminhante sobre o mar de névoa. Pintu-


ra de Caspar David Friedrich. in https://www.pinterest.pt/
pin/386535580504468315/?lp=true

p.278- fig.087. Desenho elaborado pelo autor.

p.281- fig.088. Desenho elaborado pelo autor.

p.283- fig.089. Desenho elaborado pelo autor.

p.287- fig.090. A água conhece o tempo. Therme Vals – Zumthor. in


https://www.pinterest.pt/simcikmartin/pedagog/

p.288-fig.091. A água conhece o tempo. Therme Vals- Zumthor. in


https://www.pinterest.de/pin/648377677576651188/?lp=true

p.290- fig.092. Desenho elaborado pelo autor.

p.292- fig.093. Desenho elaborado pelo autor.

p.293- fig.094. Desenho elaborado pelo autor.

p.294- fig.095. Desenho elaborado pelo autor.

p.295- fig.096. Desenho elaborado pelo autor.

p.296- fig.097. Luz. Experiência Religiosa de Adam Belt. 2012. in


https://www.pinterest.pt/pin/234679830559339361/?lp=true

XX
Feita de memórias

p.296- fig.098. Luz. Experiência Religiosa de Adam Belt. 2012. in


https://www.pinterest.cl/pin/1196337379403497/

p.299- fig.099. O betão. A áspera textura. in http://aaa850313.blo-


gspot.com/2009/08/peter-zumthor_20.html

p.299- fig.100. O betão. A áspera textura. in https://www.pinterest.


pt/angelaexo/bruder-klaus-feldkapelle/?lp=true

p.301- fig.101. Desenho elaborado pelo autor.

p.303- fig.102. Desenho elaborado pelo autor.

p.307- fig.103. Desenho elaborado pelo autor.

p.313- fig.104. Desenho elaborado pelo autor.

p.317- fig.105 Desenho elaborado pelo autor.

p.329- fig.106. Instant city. Peter cook. in https://dprbcn.wordpress.


com/2010/05/03/weightless-paisajes-emergentes/

p.329- fig.107. Archigram, Japan Edition Book, Kajima Shuppankai,


1999. in https://www.pinterest.pt/pin/518336238362809441/

p.329- fig.108. Peter Cook Archigram Instant City. in https://www.


pinterest.pt/pin/518336238362809410/

p.330- fig.109. Archigram - Instant city. in https://www.pinterest.pt/


pin/518336238362809402/

p.330- fig.110. Instant City Archigram. in https://www.pinterest.pt/


pin/518336238362809397/

p.332- fig.111. Desenho elaborado pelo autor.

p.333- fig.112. Desenho elaborado pelo autor.

p.335- fig.113. Desenho elaborado pelo autor.

p.337- fig.114. Desenho elaborado pelo autor.

p.338- fig.115. Estudos mecânicos de Leonardo da Vinci. in https://


www.pinterest.pt/pin/518336238362809365/

p.363- fig.121. Desenho elaborado pelo autor.

p.366-386- fig.122. Banda desenhada elaborada pelo autor.

XXI
Rui Serra | Janeiro 2019

p.388-433- fig.123. Um caminho no papel. Desenhos elaborados pelo


autor.

p.434-435- fig.169. Montagem elaborado pelo autor.

p.436-437- fig.170. Montagem elaborada pelo autor.

XXII
Feita de memórias

XXIII
Rui Serra | Janeiro 2019

XXIV
Feita de memórias

During the time we grow up, we were told the story about
the people after death: their spirits rise to the sky, be-
coming a shining star. They are watching your life, your
progress as well as your life-long career, which endow you
the motivation to face challenges.

(ARCHOUTLOUD)

XXV
Rui Serra | Janeiro 2019

XXVI
Feita de memórias

Introdução.

Os arquétipos que caracterizam o lugar da morte repre-


sentam uma estrutura extraordinária que serve de matriz
para a expressão e para a evolução. Esta imagem de con-
ceitos intemporais, incrustada na memória colectiva das
diferentes sociedades, manifesta-se consoante o carácter
antropológico a que os lugares estão vinculados. A forma
imaterial, comum no subconsciente e nos sonhos de dife-
rentes culturas do que é interpretação do lugar da memó-
ria foi-nos atribuída através de um legado histórico.

1
Rui Serra | Janeiro 2019

A herança teve origem no Homem primitivo que ambicio-


nava representar este lugar para atingir dimensões míticas.
Os povos da antiguidade egípcia e maia elevaram pirâ-
mides descomunais para os seus deuses. O poder desta
manifestação cultural, social e religiosa traduzia-se em au-
tênticos monumentos que representavam o lugar e o meio
de comunicação com o sagrado. Estas estruturas, locali-
zavam-se no interior dos centros urbanos para preservar
a relação e a memória dos antepassados e por acreditar-se
que ofereciam protecção divina.

2
Feita de memórias

A cidade exprime mais do que meras transformações físicas.

A sua evolução dá-se através de um processo de constante


questionamento do que os lugares possam almejar. No
entanto, o cemitério enquanto lugar que suporta a memó-
ria da cidade permaneceu pendente.

Esquecido, este lugar perdeu a monumentalidade e espiri-


tualidade capaz de comunicar entre mundos.

As consequências fazem-se sentir.

3
Rui Serra | Janeiro 2019

Contrariamente ao simbolismo, ao poder e à relação com


a cidade que estas estruturas possuíam na antiguidade, o
Homem moderno assume o papel de mero espectador. E
é nestas circunstâncias que o presente trabalho se manifes-
ta e se constrói. Lançando as bases para uma nova imagem
do lugar do silêncio.

Assim, a proposta não pretende revisitar um passado, mas


estudar a sua dimensão antropológica no contexto da ac-
tualidade em que se insere. O projecto segue uma linha
condutora que visa uma perspectiva crítica que rompe
com o passado e potencia os valores que ainda resistem.
O lugar que nos transcende.

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Feita de memórias

Deste modo considera-se o tema em dois momentos.

Num primeiro momento, apresenta-se a génese do tema


e as suas singularidades. A origem. Uma primeira parte
onde o tema é introduzido e contextualizado numa pers-
pectiva social e histórica do que foi a evolução do raciocí-
nio do Homem perante a morte e o sagrado.

Num segundo momento, o leitor é convidado a partici-


par numa viagem em que se enfatizam diversos casos de
estudo escolhidos pelo modo como realçam determina-
dos valores considerados indispensáveis, mas que tendem
a passar despercebidos. Estes conceitos abrem as portas à
imaginação de um espaço completamente distinto do que
é o cemitério tradicional.

Por fim, o gesto, um Projecto.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Imaginado e desenhado no papel. Apresenta-se.

O lugar, a paisagem e o silêncio vão sendo revelados à


medida que se procurará induzir no leitor um imaginário
pelo lugar onde o tempo pára.

Num ensaio sensível, serão lançadas as bases de um pro-


jecto que contempla uma nova realidade. Um cemitério
vertical, capaz de responder a uma série de questões so-
ciais e arquitectónicas resultantes da sensibilidade associa-
da ao tema em questão.

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Feita de memórias

Procurar-se-á, como ponto de partida para o projecto, o


pretexto para o desenho de uma nova abordagem do que é
o lugar da morte e da relação antropológica que estabelece
perante determinadas situações com o corpo social da ci-
dade de Lisboa. Pensada para o lugar e o contexto, o tema
que flutua entre o imaginado e o real, pretende alcançar
uma relação espiritual e sagrada, devolvendo determina-
dos valores do que foi outrora o cemitério.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Num gesto antecipado é ainda idealizado um diário de


bordo que, através do desenho, conta a caminhada ao
longo do desenvolvimento do projecto. Aqui, o leitor
contempla uma diversidade de imagens capazes de dar
seguimento ao documento escrito numa introdução ao
processo de pensamento de projecto.

Não descuidando a componente científica que um docu-


mento como este carrega, é com paixão e entusiasmo que
se escreve e pensa a Arquitectura.

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Feita de memórias

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Feita de memórias

Cemitério: É o lugar da dormição ou descanso, do latim


coemeterium, que por sua vez deriva do grego koimete-
rium (dormitório), do verbo koimao – ou eu descanso,
eu durmo. Este nome lhe deram pela primeira vez os
cristãos de Antioquia, como afirma S. João Crisóstomo,
para significar a fé que tinham na ressurreição da carne.
Consideravam a morte como um sono, de que algum dia
haviam de despertar. E o lugar onde jaziam olhavam-no
como dormitório, no qual repousavam os mortos até ao
momento do juízo final. Este conceito, primitivamente, só
era aplicado aos lugares sepulcrais dos judeus e cristãos.
Antigamente empregaram-se os nomes de catacumbas,
sarcófagos, sepulcros, monumentos, túmulos. Os gentios
chamavam ao lugar do enterramento dos mortos necró-
pole ou cidade dos mortos. Chama- se também “campo
santo”, nome que se aplicou a primeira vez na Itália ao
célebre Camposanto de Pisa, fundado em 1218 com terra
do Santo Sepulcro de Jerusalém. O Cemitério pode defi-
nir-se canonicamente: lugar benzido pela autoridade do
Ordinário, para sepultar os cadáveres dos féis mortos no
grémio da Igreja. No direito Canónico entende-se sempre
que o Cemitério ou lugar do enterramento dos cristãos é
um lugar sagrado. (...) Todo o cemitério expressa, suscita
ou evoca a santidade da morte, o culto dos antepassados e
a consideração religiosa da tumba. Exprime os sentimen-
tos religiosos da humanidade. Origem: A palavra cemité-
rio foi usada pelos cristãos de Roma para designar a área
sepulcral e, pelos da Grécia e da Ásia Menor, a sepultura
familiar ou individual, onde os restos mortais aguardam a
ressurreição final.
(BIGOTTE, 1998 Pp.649-
653)

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A Morte é um dos maiores mistérios da vida.

o lugar da eternidade. Este fenómeno representa a inquietação maior do ser hu-


mano nas diversas culturas desde a Antiguidade. O con-
fronto e a inquietação que a interrupção da vida provo-
ca opõe-se ao mistério pelo desconhecido. (FERREIRA,
2010)

A temática da morte está incontestavelmente associada a


valores emocionais. E o choque causado não se deve ape-
nas a valores religiosos e culturais, mas também à identi-
dade de cada indivíduo. A morte, no seu todo, simboliza
essencialmente a perda. É o desaparecimento do corpo
enquanto elemento animado e presente.

Este desfecho de vivências representa o fim das experiên-


cias e, por isso, está associada à percepção, à memória e à
lembrança.

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Feita de memórias

O cemitério torna-se, assim, no lugar que assume este


marco de cessar de experiências. A perda e a memória es-
tão associadas ao lugar. Num primeiro momento, a cons-
ciência do fim de experiências, num segundo momento, a
recordação dessas experiências. Assim, a morte representa
apenas um cessar de comunicação, não de uma relação.

Por isto, a morte não pode ser considerada o fim. A vida


só termina no esquecimento e, enquanto houver um Ho-
mem que evoque a memória e o celebre, a sua presença
poderá ser sempre sentida. Nesse momento, de ausência
de uma memória ou de um marco que a evoque, a identi-
dade perde-se na eternidade. É nesta necessidade de recor-
dar que surge o cemitério como repositório de memórias.
Um lugar que comemora a memória e a identidade, mas
também que pára o tempo e marca a transição de dois
mundos.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Relembrar é o acto mais puro associado à memória, atra-


vés da mente. Isto é, a mente como sujeito, recorre á me-
mória para sentir, viver e experienciar o conforto de um
passado.

Assim, memória é a capacidade de contrariar a morte e


evocar o passado para o presente. A mente absorve as
experiências através dos sentidos, filtra-os e formata-os
numa memória. Localiza num tempo e espaço e armazena
a informação para ser recordada. Neste sentido, a memó-
ria é um elemento pertencente á mente, que nos permite
lembrar e reviver acontecimentos, num determinado es-
paço e tempo- permite-nos viajar na mente por um pas-
sado que ficou gravado na memória e para uma realidade
que terminou. A esfera do presente funde-se com imagens
de memória e fantasia. Neste sentido pode-se destacar a
compreensão da memória individual e da memória colec-
tiva associada ao arquétipo do espaço da morte e o que ele
simboliza para cada indivíduo. (CAMBIER, 2004)

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Feita de memórias

Qualquer sociedade tem como fim a sua perpetuação. A


resistência à passagem do tempo.

É neste sentido que o Homem, enquanto ser consciente,


criou o lugar onde os rituais lhe permitem encontrar um
equilíbrio e dominar a perda. O cemitério.

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Feita de memórias

1. se numa curiosa viagem

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O espaço e a morte.

Para ambicionar alcançar novas estruturas é imprescindí-


vel compreender a natureza do passado.

Uma viagem pela linha do horizonte da história a fim de


absorver a evolução, capaz de conferir o balanço necessá-
rio ao inconsciente para que seja possível a compreensão
do que restou e do que pode ainda ser invocado.

Para que seja possível imaginar um ousado salto até ao


futuro iminente. (MUMFORD, 1961)

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Feita de memórias

Existe uma preciosa força que une o espaço e a morte.


Uma ligação que teve origem desde a tomada de consci-
ência do Homem do que significa este cessar.

Viaja-se, então, à pré-história para enfrentar a génese. A


origem.

A morada primordial foi atribuída no momento em que


os nómadas, numa qualquer inquietação, ofereceram um
lugar ao lúgubre. A colocação e ordenação de grandes blo-
cos verticais em pedra serviu como prenúncio para a evo-
lução do que viria a ser a homenagem aos antepassados.
(MUMFORD, 1961)

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Rui Serra | Janeiro 2019

Os Egípcios e os Maias, talvez os mais religiosos dos Ho-


mens, assumiram o compromisso de dar sequência a este
lugar.

A poesia da eternidade serviu de guia para todo o enredo


que estava prestes a surgir. O Homem viu, representada
na pedra, sólida e resistente, a intensão e a vontade de
representação da eternidade, desafiando a gravidade e a
entropia.

Desafiando o tempo.

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Feita de memórias

Viviam-se tempos históricos.

Tempos em que imperava o reinado de Djoser.

Em Saggara, caravanas de escravos deslocam enormes blo-


cos e elevava-se a primeira pirâmide. Imaginada e dese-
nhada por Imhotep, a mando de Djoser, foi por ela que
se sacrificaram inúmeras mãos. Inúmeras costas. Inúmeras
vidas.

A montanha geometrizada era símbolo da obsessão pelos


céus. Pelo eterno divino. Uma ambição sagrada formali-
zada numa pirâmide, construída com as ensanguentadas
e calejadas mãos que, forçadas, legitimavam o poder do
Faraó. (MUMFORD, 1961)

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E, em prol de uma divindade, todos os sacrifícios valeriam


a pena.

A morada dos espíritos ancestrais,

o templo de um deus,

o embrião de uma cidade.

(MUMFORD, 1961)

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Rui Serra | Janeiro 2019

Esta estrutura representava um todo mágico e poderoso.


O início do que viria a ser o lugar da morte, pensado e
imaginado como integrante da cidade. Um elemento vital
indispensável á identidade das sociedades. Foi aqui, em
Saggara, que há cerca de 5 mil anos se formulou a ideia
do renascimento. Foi aqui que nasceu a vida após a morte.
(FREEMAN, 2016)

Por analogia ao desenho da cidade é erigida a cidade para


os antepassados. Separadas por uma linha de água, coube
ao lendário Nilo, não só reflectir os céus serenos, mas
também, criar o equilíbrio entre os dois mundos.

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Feita de memórias

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Podemos mesmo estabelecer um carácter semelhante com


a Eusápia de Italo Calvino. Cidade subterrânea criada no
imaginário onde os antepassados partilhavam o quotidia-
no com os vivos. (CALVINO, 2010)

Não há cidade mais propensa que Eusápia para gozar a


vida a fugir às ansiedades. E para que o salto da vida para
a morte seja menos brusco, os habitantes construíram de-
baixo de terra uma cópia idêntica da sua cidade.

(CALVINO, 2010, p. 111.)

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Feita de memórias

A crença de que este momento não representava um fim


era desenhada e gravada na pedra rugosa. Estes inacredi-
táveis poemas formalizados em gravuras relatam das mais
belas histórias da antiguidade egípcia.

Estas fabulosas escrituras simbolizam encantamentos má-


gicos e religiosos de Unas para a passagem para o pró-
ximo mundo. O atravessamento era replecto de perigos,
mas, contam as histórias, que estas magias permitiam
triunfar sobre os demónios.

O domínio sobre os medos.

Era não mais…

… que o domínio sobre a morte.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Estes encantamentos ocultos são um guia para as almas


que atravessam o inferno e o símbolo que permite com-
preender a importância da vida após a morte para os egíp-
cios.

Os desenhos são a memória.

Eles contam uma história.

E a história revela-nos a identidade.

Ao cair da noite a alma de Unas reanimaria o seu corpo


e faria uma perigosa jornada.

Ele atravessaria um lago de chamas. Passando por por-


tões guardados por demónios e serpentes.

Sem os seus encantos secretos, ele seria devorado. Com


eles, chegaria e sentar-se-ia com os deuses eternos no céu
estrelado.

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Feita de memórias

Assim, ele acorda e inicia a sua jornada.

Na noite seguinte, a mesma coisa.

E na noite seguinte. O mesmo. Para todo o sempre.

Porque, travando essa batalha eterna, e tornando-se uno


com o Deus Sol, o rei faz do mundo um lugar seguro.
(FREEMAN, 2016)

Para os antigos egípcios, este esforço era vital. Esta ba-


talha eterna garantia que o Sol nasceria mais uma vez na
manhã seguinte. A vida após a morte providenciava força
para sustentar os vivos.

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As múmias. As pirâmides. Os deuses faraós.

Por eles, mandou-se edificar

Numa bruta e eterna luta

Labirínticos templos

Enigmáticas esfinges

Enormes e incríveis marcos

Marcaram a paisagem

árida absoluta.

Todos eles figuram ainda no nosso imaginário.

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Feita de memórias

A sua crença nas entidades sagradas foi o combustível ne-


cessário para a elevação de monumentos fantásticos que
são, ainda hoje, o seu maior símbolo. Modeladas à mais
bela perfeição, o símbolo que persistiu ao tempo.

As pirâmides.

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Feita de memórias

Atenas. Cidade dos sonhos.

Cidade dos deuses, mitos e lendas. Das autênticas estátuas


em pedra branca que suportam os frontões de templos
sagrados. Dos teatros, das ruas pavimentadas por onde
deambulavam poetas e pensadores que sob o céu azul do
mediterrâneo cantavam das mais diversas poesias e filo-
sofias.

Aqui a vida era diferente. Existia uma crença: que nos céus
existe outra cidade, a cidade dos deuses.

O Monte Olimpo.

A casa celeste, de janelas em cristais e de portões feitos


de nuvens, habitada pelos deuses, que, ao som de doces
canções, festejavam com néctar e ambrosia.

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Irmão gémeo de Hipno - divindade do profundo sono


- e filho de Nyx - deusa mágica que consente que a noi-
te invada os céus e os pontue com milhares de estrelas e
planetas - os poetas escreviam devaneios sobre Thanatos.

Assim, os contos e os mitos narram admiráveis histórias


sobre esta irracional vertigem que assola e estremece o
mais pétreo dos Homens, que, inicialmente condenados
a um resignado e tristonho sono, dariam forma a génios
e benignos espíritos, encarregues de zelar por lugares e
antepassados.

O Genius Loci.

(FERREIRA, 2010)

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Feita de memórias

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Natural herdeiro que,

Por Milhares de mãos,

Por Milhares de vezes,

Sob esperanças e flagelos

Rasgando majestosas colinas e prados,

Galgando sobre rios e pântanos,

Um vento novo fizeram soprar.

(MUMFORD, 1961)

Homens ilustres,

que neles se revê,

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O império Romano.

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Feita de memórias

O Panteon, o mais belo monumento individual que Roma


deixou, simboliza o poder e a aspiração de Roma nos seus
melhores momentos. O interior, com a sua cúpula aberta
para o céu, traz uma profundeza de sentimento religioso
que transforma a Basílica de São Pedro num monumen-
to de vulgaridade espectacular, não redimido pela Capela
Sistina.

No Panteon, os deuses dos países e cidades que Roma


conquistava eram postos à vista: em seu tempo, uma es-
pécie de museu vivo de religiões comparadas, algumas das
quais, como o culto Ísis e Serápis, ou a religião mitraica
da salvação, se revelaram mais atraentes que os deuses de
Roma, antes que o Cristianismo as varresse para longe.

(MUMFORD, 1961, pp.134-134 )

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Rui Serra | Janeiro 2019

Influenciado pelos clássicos gregos, assumiram-se e parti-


lharam-se mitos e fábulas.

O culto aos antepassados revelava uma convicção. Uma


necessidade, enquanto sociedade, de honrar e poetizar he-
róis exemplares, mitificando-os e assumindo a crença de
que seriam os guardiães dos vivos.

Uma consciência.

Em Roma, o viajante era saudado por uma riqueza e um


poder que, ostentados através de grandiosas edificações
ao longo das vias de acesso à cidade, ansiavam pelo tardio
fascínio de Piranesi. Esta atitude pretendia celebrar e em-
poderar o espaço. (FERREIRA, 2010)

Apesar disso, essa intenção trouxe consequências.

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Feita de memórias

Não existe provavelmente nenhuma sociedade que não


trate os seus mortos com consideração...

uma vez que os mortos garantem, pela sua proteção, o


regresso regular das estações, a fecundidade dos jardins e
das mulheres. Tudo se passa como se um contrato tivesse
sido estabelecido entre os vivos e os mortos: em troca do
culto razoável que lhes é votado, os mortos ficarão no
além e os encontros temporários serão sempre dominados
pela preocupação do interesse dos vivos.

(FERREIRA, 2009, pp. 18)

A crença aumentava. O número de fiéis aumentava.

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Feita de memórias

O lugar da morte evoluiu e perdeu o carácter de silêncio


e espaço sagrado que o tornara único. As vias de acesso à
cidade passaram de autênticos museus da memória, para
quem lá passasse, para um lugar onde o comércio e as
festividades tinham lugar. Esta proximidade. Esta fami-
liaridade instalou-se progressivamente com a convicção
espiritual de que a intimidade com os mártires garantia
uma carga de protecção e esperança. Neste ambiente, os
antepassados acolhem e são, mais uma vez, considerados
os protectores dos vivos.

(MUMFORD, 1961)

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Rui Serra | Janeiro 2019

Igrejas foram erguidas para suportar esta nova necessida-


de. O lugar da morte era um lugar repleto de misticismo
e a atracção a este sentimento agarrava a cidade e o corpo
social.

Vivia-se em função das igrejas.

O papel do Renascimento foi essencial. A expressão do


pensamento e da intelectualidade deram forma a maravi-
lhosas obras de arte que permitiram que o espírito crítico
no processo de descoberta do próprio Homem alcançasse
outra amplitude. A morte estava presente. Não só na Ar-
quitectura. Não só na vida social. A morte estava presente
nas obras de arte e em todo o conhecimento. (FERREIRA,
2010)

O crescimento populacional dos séc. xvii e xviii expôs debilidades.

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Feita de memórias

A cidade estava suja e imunda. Os problemas higiénicos


resultantes do crescimento e das aglomerações agravaram-
-se e as epidemias afectaram sobretudo o espaço da morte.
As igrejas já não tinham capacidade e era tempo de se
intervir no território. E esta foi a chave para o repensar
do lugar.

Foi assim que a necessidade de qualificar o espaço da


morte deu origem ao cemitério.

Esta realidade aliou-se a uma outra de cariz social. Uma


vez que os mortos já não pertenciam exclusivamente ao
espaço confinado da igreja, mas agora dispersos pela ci-
dade, deu início a um preconceito. (FERREIRA, 2010)

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Rui Serra | Janeiro 2019

O preconceito de que a morte andava pelas ruas. Instável


e descontrolada.

Numa perspectiva de purificar a cidade, a morte foi irra-


diada para a periferia. Fora dos centros urbanos, isolada
e encerrada.

É nesta altura que a Morte de Si Próprio é substituída


pela Morte do Outro. O protagonista deixou de ser o
morto e é agora a família que assume maior destaque em
todo o ritual. A saudade e o luto ganham um poder dra-
mático enorme e o culto dos mortos alcança outra di-
mensão. A memória e o esquecimento assumem-se como
conceitos indispensáveis no luto enquanto estabelecem
um paralelismo entre a vida e a morte. Assim, enquanto
se for capaz de recordar, a pessoa não desaparece. E nasce
assim o culto da ida ao cemitério. A viagem e a visita.
(ARIÈS, 1977)

É assim que o homem enfrenta a morte.

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Feita de memórias

A ideia de um passado que já não volta inunda o pensa-


mento numa primeira fase. Esquecer o presente e voltar ao
passado. Nesta ausência de alternativa a mente paralisa e
apercebe-se do irreversível. Não existe retorno nem força
para confrontar a realidade. Num terceiro momento surge
a perspectiva de criar condições para viver. O recomeço.

Ao longo deste percurso emocional há uma viagem. Uma


viagem entre o passado e o futuro, enquanto se tenta fugir
ao presente.

E é com base nestes sentimentos que se criaram estes es-


paços de culto.

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O contributo dos românticos revelou-se, também ele, de-


cisivo. Não só questionaram o valor do espaço urbano,
como estabeleceram um controlo técnico e artístico na
relação dos espaços na cidade. Viver a urbe surge como
um novo conceito em constante mutação, uma vez que, os
seus valores eram constantemente questionados.

É com base num conjunto de ideias elaborados pelos mo-


delos da cidade moderna que surge a cidade contemporâ-
nea. As transformações são mais do que físicas. A cidade
molda-se e essas mudanças são o reflexo da cultura e das
suas ambições reais. Cada elemento expressa uma mani-
festação de diferentes estilos, diferentes tempos, em que a
experimentação toma conta da Arquitectura e a Arquitec-
tura toma conta dos espaços da cidade.

(FERREIRA, 2010)

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Feita de memórias

La Rochefoucauld dizia que para o Sol e para a morte não


se podia olhar de frente.

Desde então, os astrónomos, com os ardis infinitos da sua


ciência – de todas as ciências -, já pesaram o Sol,

já lhe calcularam a idade,

já lhe anunciaram o fim.

Mas a ciência ficou como que intimidada e tremente pe-


rante o outro sol,

a morte.

(MORIN 1970)

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Feita de memórias

Ainda que houvesse um pensamento criterioso em relação


ao que os espaços da cidade sonhavam almejar, houve um
menosprezo na relação entre o espaço lúgubre e o Ho-
mem. A proximidade com os monumentos de outrora foi
ferida e o Homem moderno assume um papel secundário.

Os elementos que caracterizam o espaço urbano servem


de ferramenta para a manifestação de experiências, acon-
tecimentos. A história e a identidade de uma cultura esta
ligada a espaços e funções complexas que se adaptam
progressivamente numa linha continua no tempo. Numa
tentativa de uma procura de um eventual equilíbrio, o Ho-
mem teve a necessidade de se relacionar com espaços com
os quais a relação se mantivesse estável. Inalterável. Fixa.

Estes espaços mantêm um carácter permanente e acom-


panham o tempo.

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O papel da religião na sociedade permitiu que o cemité-


rio se mantivesse intacto ainda que todos os elementos à
sua volta estivessem em constante mutação. A identidade
permaneceu. A sua função básica manteve-se inalterada e,
apenas o seu afastamento da cidade, permitiu que hou-
vesse uma desvalorização e uma quebra na relação entre o
mundo sagrado e o mundo profano.

No entanto, pode-se acrescentar outra premissa.

Não só o cemitério veio ocupar um lugar diferente no


corpo da cidade como esse mesmo afastamento levou a
uma nova relação antropológica com o lúgubre. O Ho-
mem deparou-se com a face oculta. O carácter sombrio
da morte.

Este poder psíquico manteve-se inalterado no tempo até


aos dias de hoje. O lado obscuro que personifica o espaço
e o torna sóbrio e frio.

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Feita de memórias

O cemitério manteve o seu carácter. Permaneceu suspenso


no tempo e acompanhou a cidade. Presenciou toda a his-
tória e registou-a no seu interior suportando a memória
da cidade.

A metamorfose da cidade reflecte as suas necessidades e


a sua identidade. Assim, a abordagem ao lugar da morte
deve ter em consideração a época em que se insere, a iden-
tidade e a cultura. Só assim poderemos compreender tudo
o que representa a sua imagem na actualidade.

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Rui Serra | Janeiro 2019

criação do cemitério. O processo de laicização da morte foi, de certo modo,


atenuado com Napoleão em relação à Revolução Fran-
cesa (…) De facto, o decreto imperial napoleónico de
12 de Junho de 1804 pretendia, entre outras coisas, res-
taurar e regularizar o culto dos mortos que tinha sido
profundamente afectado com a insensibilidade e falta de
respeito para com os defuntos nos excessos do período
revolucionário e pós-Revolução Francesa. Pretendeu Na-
poleão sobretudo colocar a gestão da morte debaixo de
um controlo governamental, com regras bem definidas, o
que até aí não sucedia.
(QUEIRÓS, 2002 Pp.50)

Vivia-se a revolução industrial. Paris, o centro da Europa


na época, entrava no século XIX com novos pensamen-
tos e motivações vanguardistas. Foi assente neste clima de
evolução e reflexão que em 1808 é desenhado o primeiro
cemitério no ocidente.

Uma nova tipologia tinha surgido.

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Feita de memórias

Conhecido por Père Lachaise e caracterizado pela sua


condição privilegiada na colina que olhava a cidade de
Paris, o novo espaço foi muralhado e encerrado, afastado
do corpo social.

Apesar deste afastamento, surgem mudanças. O novo


conceito pretendia afastar o preconceito e foi inspirado
no jardim inglês. Um império de enormes árvores com-
punham o esqueleto desta nova tipologia onde o espaço
verde reina. O que antes gerava um poder psíquico nega-
tivo era agora representado por um acolhimento que só a
natureza é capaz de oferecer. O abraço da natureza capaz
de alterar o espírito do lugar.

O cemitério passa a ser encarado como um belo jardim na


colina, onde os percursos e os caminhos, à sombra da ve-
getação compunham um quadro delicado e harmonioso.

(FERREIRA, 2010)

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Feita de memórias

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Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.

- Mas qual é a pedra que sustém a ponte? – pergunta


Kublai Kan.

- A ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra –


responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas
formam.

Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois


acrescenta: - Porque me falas das pedras? É só o arco que
me importa.

Polo responde: - Sem pedras não há arco.

(CALVINO, 2010 Pp. 85)

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Feita de memórias

2. por onde a sombra adensa

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História Em Lisboa, o terramoto de 1755 criou uma autêntica


história de terror. Assistia-se ao caos. A destruição e os
tormentos que se fizeram sentir serviram de momento de
charneira para a mobilização do movimento iluminista.

As ordens para o desenho da cidade estavam lançadas e


coube a Marquês de Pombal a responsabilidade de todo
o desenho que proporcionou o processo de expansão da
cidade para o país.

Foi no início do séc XIX que a primeira geração de ce-


mitérios conheceu a sua morada. Em Lisboa, dois pólos
foram criados para combater a insalubridade. Um no lado
ocidental da cidade, outro no lado oriental. Os românti-
cos ficaram responsáveis pelo desenho da nova face destes
espaços e usaram-na para evidenciar o seu carácter e ideais.

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Feita de memórias

Entretanto, em 1833, abre portas o cemitério dos Praze-


res. Os princípios eram idênticos aos de Père Lachaise em
Paris – a estrutura situar-se-ia fora do contexto urbano,
no limite da cidade e seria cercada por um sólido muro
que teria ao seu encargo a separação do espaço profano
do espaço sagrado.

A cidade apodrecia. A doença vivia em Lisboa e em vir-


tude de um surto de cólera, voraz e cruel, ditaram-se as
circunstâncias e estabelecerem-se as premissas para um lu-
gar capaz de assegurar o que outrora pertenceu às igrejas.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Terra de quintas, hortas, vinhas e pomares. Foi numa coli-


na ocidental de Lisboa que se ergueu o novo e tão ansiado
espaço da eternidade.

Na Estrela, o terreno amplo e arejado, reunia as exigên-


cias, capaz de acompanhar o tempo e o crescimento da
cidade.

A cidade mudou. Cresceu. Alteraram-se conceitos e pre-


conceitos.

Encostado ao limiar da colina, o cemitério viu a cidade


crescer até à sua porta. Habitações fixaram-se nas proxi-
midades e, hoje, o lugar é encurralado. Estrangulado pelo
profano, enquanto os seus altos muros carregam a ambi-
ção de sustentar, no seu interior, o carácter sagrado que
se vai perdendo.

70
Feita de memórias

De duas diferentes perspectivas se apresenta este curioso


lugar:

De quem se aproxima de Lisboa percorrendo, sobre o


Tejo, a ponte que abre as portas à cidade; e de quem des-
cobre este espaço, enquanto vagueia à descoberta pelas
sinuosas ruelas, escadarias e outros encantos e poemas que
caracterizam a cidade.

Da primeira situação experiencia-se algo de admirável e


surpreendente. Capaz de prender a atenção e abençoar a
chegada.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A melodia entoada pela dança dos perfis metálicos, eco-


am como que se de encantamentos mágicos se tratassem
e servem de pretexto para que a imaginação nos invada a
mente e nos transporte para outros remotos tempos. Tem-
pos de batalhas, conquistas e tratados selados em lacre
derretida por velas que acompanham desconhecidos reis
e seus devaneios.

72
Feita de memórias

Assim,

da ponte, avistam-se os pináculos verdes de longos cipres-


tes que permanecem imóveis e inabaláveis. Eles esperam
por nós. Dão-se a conhecer quase como que se de um
batalhão de guardiões em sentinela, sobre uma muralha
que descansa na colina se tratassem, vigiando e recebendo
curiosos visitantes.

A expectante chegada à margem eleva a experiência da ter-


ra e do céu. Do rio que se distancia à chegada da cidade
próxima, que nos recebe e acolhe no vale.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Da Rua,

um monumental e intimidante portão interrompe um es-


pesso muro que ladeia todo o terreno e contrasta as duas
realidades. Este portão guarda, no seu interior, uma cida-
de invisível.

Vinganças. Romances. Conquistas.

Guarda consigo os seus segredos e contém-nos gravados


nos muros,

nas ruas,

nas árvores e nas esculturas,

como traços que marcam

a palma de uma mão.

74
Feita de memórias

O cemitério é íntimo, secreto e sigiloso.

Esta descrição é-nos cedida pelos longos metros de muro


que o encerra e pelos esguios ciprestes que o preenchem.
Juntos, em equipa, colaboram para que não seja possível
o interromper de calma por olhares profanos exteriores.

Selado, torna-se controlado. Fecha-se a consciência ao ir-


reversível e amargo destino e esta imagem anula o peso do
preconceito incrustado no lugar da morte.

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Rui Serra | Janeiro 2019

É nesse momento que, recebido pela encantadora capela,


se inicia toda a viagem e se distribuem as enraizadas rue-
las. O interior espelha a cidade exterior. Aqui, tal como lá
fora, o seu esqueleto é constituído por artérias principais
com largas avenidas e praças

- onde ricos jazigos e mausoléos repousam e prestam ho-


menagem a quem os visita –

76
Feita de memórias

e ruelas secundárias que se cosem transversais, delineadas


com um traçado rigoroso e ortogonal.

A beleza e a simplicidade de um espaço ordenado no inte-


rior da espontânea cidade. Um gesto de equilíbrio.

Esta aparente organização traça um paralelismo com a ci-


dade dos vivos, onde as ruas possuem variadas hierarquias
e onde, tal como nestas, as famílias repousam amontoadas
em densos nichos.

- Onde a dor e a saudade contam coisas da cidade.

(António Zambujo)

Uma outra hierarquia grita por atenção.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A dimensão das ruas projecta o prestígio das famílias que


a habitam. A distinção dos lugares consoante as classes
sociais torna-se evidente à medida que, à sombra dos ci-
prestes, se deambula por entre intensas obras de arte que
acompanham as fachadas das ruelas e escondem no seu
interior pequenas e humildes ilhas de lápides que nos con-
tam sobre o passado e a saudade.

78
Feita de memórias

O cemitério oitocentista representa o universo sócio-cul-


tural. A arte delicadamente esculpida ambiciona concreti-
zar intenções, ao petrificar o sentimento.

Ao petrificar a saudade.

Ao petrificar o passado.

Este imaginário tem uma intenção. Estimula a visita e o


fascínio pelas obras de arte referência da época. As elegan-
tes esculturas e a Arquitectura de imponentes monumen-
tos davam forma ao sentimento, encerrando o momento
como sublime e registando a própria memória da cidade.
A evolução. Os seus costumes. As suas artes.

No seu conjunto, honram a memória.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Mas estes poderosos símbolos transportam com eles uma outra realidade.

Um outro carácter.

Além da imagem, material e palpável, estes objectos de


arte possuem um carácter oculto. O arquétipo da lápide,
mas também o do jazigo, retém em si qualquer coisa de
um fantástico imaginário. Parece irreal. Ou talvez inatin-
gível.

Este carácter pode até não ser possível de descrever, apenas


sentido. Falamos do lúgubre, da sombra e da melancolia.

80
Feita de memórias

Lúgubre O preconceito de que o espaço da morte seria habitado


por uma obscura presença acentuou-se com o seu afasta-
mento da cidade.

Uma ideia fantasmagórica.

Um espectro expectante.

Uma misteriosa aparição habitava e permanecia no som-


brio cemitério.

Esta cidade dos mortos. Este mundo oculto é o lugar


do lúgubre. Do luto e do fatídico final. E, ainda que o
desenho do cemitério, arejado e sob a luz quente do sol
procurasse representar uma outra efígie, este carácter frio
e sombrio nunca deixou de o acompanhar.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Este génio obscuro é um ornamento psíquico que vagueia


no espaço. A sua inquietante presença eleva a experiência
e seduz a imaginação e a inconsciência. Está presente na
expressão desenhada e esculpida nos rostos das esculturas.
Está presente no musgo que trepa pela gasta pedra da lá-
pide e que, com o tempo, apaga os nomes inscritos e leva
consigo a memória de quem partiu.

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Feita de memórias

O lúgubre nasce nos sólidos volumes. Alimenta-se da fria


sombra e da luz por onde bailam poeiras e ornamenta o
espaço com a essência do seu carácter psíquico. Um denso
dramatismo recai sobre a atmosfera e confere esta carga e
intensidade ao espaço. Uma poética melancolia.

O lúgubre é essencial. Especial.

Este ambiente mítico… é nesta atmosfera profunda que


os nossos olhos se tornam suspeitos e traem a percepção.
Tudo se torna ambíguo. As formas, as distâncias, a luz.
Criam vultos e movimentos que convidam e atraem o in-
consciente e a fantasia.

O mistério, estimulado pela fraca luz e pelo transe que


o provoca, encontra na fantasia o ingrediente chave para
o ambiente no qual vivem os espíritos. Os fantasmas. O
genius do lugar.

(PALLASMAA, 2005)

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Rui Serra | Janeiro 2019

Este carácter eleva toda a experiência para outra realidade.


É o símbolo da porta entreaberta que dá acesso a outro
inquietante e tenso mundo. O mundo dos mortos.

As lápides e os jazigos possuem este carácter. Tornaram-se


símbolos que representam este mundo e evocam o sobre-
natural. A forma materializada do que a morte representa
e portador de um elemento psíquico, o lúgubre, capaz de
transcender e consciencializar.

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Feita de memórias

Apesar da força exercida pelos mais puros arquétipos,


como o robusto e áspero muro e os altos ciprestes, que
resistem em permanecer, e a sete chaves e cadeados selar o
sagrado, a morte nunca deixou de habitar o espaço.

É o retrato do inconsciente e o símbolo do obscuro re-


primido, a sombra e as suas tensões abraçam o lugar e
cultivam o espírito.

(FERREIRA, 2010)

O passar do tempo reclama a sua condição e acompanha


a consciência de quem visita. Desde a metamorfose a que
as árvores se sujeitam pela passagem das estações à inva-
são demorada do resistente musgo que sobe pela pedra e
apaga os traços de esculturas que lá habitam.

Apaga o traço ao mesmo tempo que se apaga a saudade.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Essas sombrias forças do inconsciente acentuam a perso-


nalidade dramática impregnadas no lugar onde a natureza
nos conta a história do tempo.

A natureza revela o tempo.

O tempo revela o lúgubre.

E o lúgubre habita na sombra.

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Feita de memórias

Cobre-se entre espessas e longas muralhas.

O encontro do Homem e da natureza

Entre fases e metamorfoses

que imaginam o espírito mítico que habita o lúgubre

de subtileza.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Melancolia O final da viagem pelas ruas do lúgubre leva-nos até um


curioso lugar. Um lugar fascinante que, desde a primeira
vez nos detém e nos convida a reflectir. Um lugar onde,
no alto da encosta, o cemitério baixa as guardas e o agora
pequeno muro é parte de uma moldura e os ramos sus-
pensos das árvores não são mais que leves cortinas que se
abrem perante um palco que deixa ver para lá das frontei-
ras. Um rio. Uma ponte. Uma cidade. Uma nuvem branca
e um pedaço de céu azul.

O final da visita termina num convite para uma nova


viagem, onde os nossos olhos podem percorrer uma cena
de múltiplos eventos pelas ruas da cidade banhada numa
incandescente e amarela luz, como páginas de um livro
que se escreve à nossa frente.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Esta visão da cidade e do rio em direção a ocidente tem a


magia de nos transportar para a origem do império Por-
tuguês. Um último e impressionante olhar reconstruído
de tempos em que caravelas partiam em direção ao pôr do
sol, carregadas de esperança e esplendor sob os reflexos
dourados do rio tejo e dominando os vastos mares em
busca do desconhecido.

O olho envolve-se no mistério e no destino enquanto a


mente se ocupa numa viagem no espaço ilusório.

Onde a saudade permanece, tal como no cemitério.

90
Feita de memórias

Aqui encontram-se opostos que se complementam. A


vida e a morte, o passado e o futuro, a cidade viva e a
cidade dos mortos. No seu interior vive o luto em todos
os cantos e recantos, ruínas e ornamentos. No exterior, lá
fora, fica a saudade e a lembrança. A génese da memória
no seu estado mais belo.

Esta espécie de janela que se monta e enquadra a vista tem


a perícia e a habilidade de ser mais uma porta entreaberta
que traça a ponte entre os dois mundos. Articula o mo-
mento em que o presente se cruza com o fatídico destino.
Uma narrativa que nos confronta com o fim duma viagem
e com toda a poesia de analogias que o lugar representa.

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Rui Serra | Janeiro 2019

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Feita de memórias

3. numa gravidade intensa

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Rui Serra | Janeiro 2019

Encontrando-me no campo, bordejei um bosque à luz da


lua. A minha efígie produzida pela luz excita-me a aten-
ção. Por uma disposição de espírito particular, o efeito
desse simulacro pareceu-me duma tristeza extrema. As
árvores desenhadas sobre a terra pelas suas sombras cau-
saram-me profunda impressão. Esse quadro agigantou-se
na minha imaginação. Apercebi-me então de tudo o que
há de mais sombrio na natureza. Que vi aí? A massa dos
objectos destacando-se a negro sobre uma luz duma pa-
lidade extrema. A natureza parecia oferecer-se de luto aos
meus olhos. Atónito com os sentimentos que experimen-
tei ocupei-me a partir daí de fazer disso uma aplicação
particular à arquitectura. Ensaiei encontrar um conjunto
composto pelo efeito das sombras. (…)

Cuja decoração é formada por um quadro de sombras


desenhadas por sombras ainda mais sombrias- o lúgubre
da arquitectura

Etienne-Louis Boullée

(SIMÕES, 2010 Pp. 532)

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Feita de memórias

O lúgubre é uma presença. Habita o inconsciente e ma-


nifesta-se na sombra de objectos ambíguos e no silêncio
que reina.

Estes ambíguos objectos, encobertos numa sombra que


liberta a imaginação, possuem um valor capaz de mani-
pular o ornamento físico e palpável e transformá-lo em
sentimento. Uma energia. O carácter do lúgubre. O mun-
do oculto revela-se nestes pormenores, entre a luz páli-
da reflectida pela lua e a mancha negra que nos esconde
aos olhos curiosos a face escondida dos objectos. O lugar
atinge uma aura que o possui com um silêncio (tenebro-
so) pétreo. As emoções fervilham e dão a conhecer ao
Homem a sua insignificância perante a dimensão do des-
tino.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Étienne-Louis Boullée depara-se com este carácter som-


brio que os objectos emanam.

O lugar, esse, é descrito com um sentimento de que o


receio que o invade pelo desconhecido não deve superar
a vontade e a curiosidade do que se esconde à sua frente.
Os passos adivinham-se lentos e cuidadosos. O silêncio
é sagrado e não ousa ser corrompido. Este ambiente pa-
rece despertar uma panóplia de sensações à medida que
observa e analisa minuciosamente o espaço sombrio que
o envolve. As sinuosas e indecifráveis silhuetas que os lon-
gos ramos de árvores desenham. As sombras que surgem
do olhar profundo e que escondem seres misteriosos e
divindades ocultas da natureza.

Esta experiência, tão fascinante quanto intimidante, do


poder sombrio serviu de base para o que se seguia. A ma-
terialização da arquitectura das sombras da geração visio-
naria dos três mosqueteiros: Boullée, Ledoux, Lequeu.

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Feita de memórias

Na pintura, o sfumatto característico perpetuado pelo


génio de Leonardo da Vinci explorava os limites desta
elevação do sombrio. A sombra que pousa sobre os ob-
jectos e dá forma ao seu volume. A sombra dá forma aos
elementos dispostos no espaço, invade a mente e inventa
a terceira dimensão. A dimensão da profundidade, física e
emocional. O carácter. Aquela poesia dramática e intensa
que carrega a pintura renascentista de Tintoretto, Carava-
ggio e Rembrandt.

(FERREIRA, 2010)

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Rui Serra | Janeiro 2019

Com o espírito mergulhado neste carácter e a mente visi-


tada por fantasias e utopias, o sonho passaria por trans-
ferir todo este universo para o objecto arquitectónico. O
mistério. A incerteza do que existe para lá da porta entre-
aberta que deixa trespassar um feixe de luz pelo pavimen-
to. Esse precioso momento de dúvidas e medos que nos
assaltam a consciência. O momento entre a vida e a morte
esboçado e esculpido na arquitectura.

A capacidade de manipular a sombra permitiria intensi-


ficar a tristeza e a angústia. A presença do nada elevaria a
experiência da melancolia do luto a um patamar divino.

A sombra esconde significados capazes de uma profundi-


dade imensa. Significados esses que Boullée não poderia
mais ignorar. Uma ideia, ou talvez uma mera fantasia, de-
senvolvera-se. Que havia mais do que os olhos alcançavam
e que a vida e a realidade não se esgotam na face ilumi-
nada.

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Feita de memórias

Existe um outro mundo que a sombra esconde.

Um mundo incerto que, apenas por vezes, se deixava reve-


lar, ainda que fugazmente, tal como uma sombra que nos
escapa por entre os dedos. O fantasma.

Boullée compreendeu que este poder obscuro não provi-


nha apenas da sombra da face do objecto, mas também da
natureza que envolveria o corpo. A natureza como espaço
que suporta todo este mundo oculto e replecto de estra-
nhas sensações. O lúgubre na natureza.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Peso Anunciava-se a chegada da revolução industrial, trazendo


consigo a ruidosa e pesada maquinaria com a força da
mudança capaz de fazer sonhar todo o continente. A ole-
ada máquina. O sublime ferro. A energia a vapor.

Um momento na história que divide os tempos trazia mu-


danças. as calejadas mãos de camponeses capazes apenas
de produzir o mínimo necessário para o próprio consumo
seriam transferidas para as enormes fábricas de produ-
ção maciça. O seu suor juntava-se ao óleo das máquinas
para, em equipa, virar a página por toda a europa fora.
a força capaz de mover pesadíssimas máquinas a vapor
emprestava a sua imagem para promover o que se seguiria.
Um mundo fantástico e transformado. Um mundo do
futuro. Estas imagens de intensas e estrondosas máquinas
articuladas por engrenagens que se compunham por uma
serie de roldanas, de diversos tamanhos, que a troco de
um pedaço de carvão e de uma pinga de óleo sobre o seu
ferro eram capazes de quebrar todas as barreiras do novo
século. Barreiras físicas que prendiam os sonhos.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

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Feita de memórias

O século da motorização exibe a força e o peso como


trunfos que marcariam o progresso e a relação do homem
com a máquina. A sua nova ferramenta.

O peso da maquinaria pesada influenciara Boullée. A es-


cala intimidante do novo mundo foi a faísca necessária
que acendera o rastilho de criatividade na mente do arqui-
tecto. A promessa de que o espaço da morte nunca mais
seria igual começava-se a esboçar sobre papel. O ambiente
e a experiência que o peso, a escala e a monumentalidade
eram capazes de atingir permitiam Boullée sonhar.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A procura pela encenação de uma réplica da experiência


que descrevera lançaria o Homem numa atmosfera de
uma intensidade imensa, capaz de tocar na porta que se-
para os dois mundos.

Os estímulos estavam identificados.

Com as pirâmides do antigo Egipto, o Pantéon de Roma


e outras influencias a fervilhar em imagens pela sua mente
Boullée imaginou uma monumentalidade e uma verticali-
dade que seriam encarregues de criar o peso e o dramatis-
mo necessário, enquanto que o domínio da sombra e da
luz levariam as sensações de encontro ao mistério divino.

O dia e a noite.

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Feita de memórias

os poetas não construirão edifícios,

mas os arquitectos farão poesia,

e a atracção produzirá efeitos inesperados.

(FERREIRA, 2010 Pp. 516)

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Rui Serra | Janeiro 2019

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Feita de memórias

O sol e a lua uniram-se no projecto de um cenotáfio.


Combinados numa imensa e monumental esfera em ho-
menagem ao senhor das estrelas e dos planetas. Dos astros
e de toda a imensidão que é o universo. Isaac Newton.

A composição épica e sublime de uma geometria pura e


simétrica ambicionava a evocação da presença do poder
divino. Onde, na nua superfície das formas platónicas se
procurou decorar com um sentido de eternidade através
dos mais belos contrastes pontuados pela luz que surgiria
do mais profundo vazio negro. O ambiente único e en-
cantador tal e qual o céu numa noite pura preenchido de
pequenas estrelas, iluminava. Não só a perfurada abóbada
celeste, como a mente, em memória do génio do cosmos.

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Rui Serra | Janeiro 2019

As maciças formas elementares podem esconder em si um


sentido de complexidade latente. Essa complexidade vi-
nha da procura por analogias que estabelecessem um pa-
ralelismo com o planeta e o cosmos. Pequenos segredos a
que só a morte teria acesso.
(FERREIRA, 2010)

Aqui, o cenotáfio expõe-se através de uma figura monu-


mental onde o peso da matéria esconde a sua sensibilidade
única no interior e enriquece o que poderia ser a experi-
ência no espaço projectado em função das intenções e das
alusões de impulsos inconscientes que permitiam também
uma presença emocional.

(PALLASMAA, 2005)

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Feita de memórias

Divinos génios que,

A grandes feitos destinados,

Soaram o sino da eternidade

No atrevimento de fazer dum caos,

Um cosmos.

(FERREIRA, 2010)

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Rui Serra | Janeiro 2019

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Feita de memórias

4. numa leveza de um pássaro e não de


uma pena

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Rui Serra | Janeiro 2019

Leveza A revolução industrial foi marcada pela força. Pelos velo-


zes e complexos motores. Pelo peso e pela gravidade.

Ainda que a imagem do peso bruto fosse uma imagem


marcante patente desta era, novas intenções e fantasias
começavam a despertar. A par da face violenta, ruidosa e
monumental das máquinas de ferro e das prensas de lami-
nadoras, surgia um silencioso carácter de leveza.

A imaginação de mentes criativas explodia em fantasias


e invenções e o séc. XVIII foi também o tempo da ma-
gia da leveza e do poder da levitação. Antoine Galland,
com a primeira tradução do clássico oriental das Mil e
Uma Noites abria os horizontes da fantasia. Leves tapetes
voadores, mitológicos cavalos alados e génios feitos do
mesmo material de que são feitos os sonhos visitaram o
mundo ocidental.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Uma galopada criativa que sobrevoava todas as adversi-


dades. À boleia das aventuras do Barão de Munchausen
perpectuadas pelas fantásticas ilustrações de Gustave
Doré, o céu deixara de ser o limite. Estas histórias que se
equilibravam sobre a ténue linha entre a realidade e a fan-
tasia contam casos de vários feitos impensáveis e de fugas
impossíveis. desde o épico voo numa bala de canhão, pas-
sando a jornadas em que desceria da lua agarrado a uma
simples corda e acabando em longos voos transportado
sobre as asas de gansos. Todos estes feitos extraordinários
representavam o novo carácter que emergia. O desafio do
peso da máquina e da gravidade de Newton através da
leveza.

(CALVINO, 1990)

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Para se caracterizar melhor este conceito, Italo Calvino le-


va-nos numa viagem a Itália do século XIV, altura em que
Giovanni Boccaccio escreve o clássico Decameron. Esta
novela de cem contos apresenta-nos Guido Cavalcanti,
poeta florentino que nos oferece o derradeiro símbolo da
leveza.

Ainda que rico e elegante, o poeta é retratado como sen-


do também um austero filósofo que não simpatizava com
a vida boémia a que a Jeunesse Doreé Florentina exibia,
razão pela qual rejeitava todo e qualquer convite que se
assemelhasse a uma cavalgada de festa em festa. Esta recu-
sa certamente contribuíra para a pouca popularidade que
conquistara entre os grupos.

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Feita de memórias

Ora aconteceu que um dia, tendo Guido saído do Orto


San Michele, pelo Corso dos Adimari até San Giovanni,
que era muitas vezes o seu caminho, onde havia grandes
túmulos de mármore que hoje estão em Santa Reparata, e
muitos outros em volta da igreja de San Giovani, estando
ele entre as colunas de pórfiro que ali existiam, os túmu-
los e a porta de San Giovanni, que estava fechada, messer
Betto e a sua brigada a cavalo subindo a praça de Santa
Reparata, vendo Guido no meio daquelas sepulturas, dis-
seram: “ Vamos lá provocá-lo”; e, esporeando os cavalos à
maneira de um falso assalto, quase antes que ele se desse
conta, caíram-lhe em cima e começaram a dizer: “Guido,
recusas-te a ser da nossa brigada; mas quando no fim des-
cobrires que Deus não existe, o que farás?”.

Ao que Guido, vendo-se por eles cercado, prestamente re-


plicou: “Meus senhores, podeis dizer-me em vossa casa o
que vos apetecer”; e pondo a mão num daqueles túmulos,
que eram grandes, e levíssimo como era, deu um salto e
passou para o outro lado, e livrando-se deles foi-se em-
bora.

(CALVINO, 1990 Pp 25 e 26)

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Rui Serra | Janeiro 2019

Calvino considera-o o símbolo do novo milénio que se


ansiava. A imagem visual evocada. Este ágil e subtil sal-
to que Cavalcanti protagoniza sobre o seu peso levíssi-
mo como era para se libertar do cercado confronto. Para
Calvino, não era apenas o seu peso que o poeta carregara,
mas também o peso do mundo, demonstrando que a sua
gravidade contém o segredo da leveza.

(CALVINO, 1990 Pp 25 e 26)

Seria interessante conservar esta metáfora na memória


numa altura em que é inevitável falar de Gunnar Asplund,
arquitecto da leveza. De entre os poemas desenhados, lan-
ça-se um em particular. A obra-prima que divide a honra
com Sigurd Lewerentz, o cemitério Skogskyrkogården em
Estocolmo.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

A entrada no séc. xix prometia o sopro de novos ventos


de mudança.

Por esta altura, na Suécia, o cemitério, criado como um


apêndice urbano em forma de parque, manifestava-se
como um mero vazio que espelhava as consequências da
crise espiritual que se instalara. Tornara-se inevitável uma
tomada de posição. A pronta reacção exigia aos arquitec-
tos novas ideias que inspirassem a necessária reforma da
imagem espiritual do espaço do silêncio. E foi assim que,
munidos dos fundamentos que mais tarde seriam as pre-
missas adoptados por Louis Kahn, este lugar seria ima-
ginado com directrizes que se amarravam às instituições
humanas e a uma experiência simbólica e simbiótica entre
a natureza e a morte, mais do que o simbolismo doutri-
nal. O que é que o cemitério quer ser? A pergunta que
pairava na mente dos arquitectos. Even a brick wants to
be something. (KAHN. L)

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Feita de memórias

Em 1914, abria-se a todo o globo um enorme concurso


para a construção do cemitério no sul de Estocolmo. O
lugar, esse, um vasto e magico bosque de onde emergiam
pinheiros escandinavos, oferecia a liberdade para as mais
variadas e alternativas formas de pensar o espaço em ques-
tão. No entanto, foi a sublime, leve e delicada proposta de
Asplund e Lewerentz a contemplada vencedora e então
responsável pela sua concretização. Do papel ao bosque.

(FERREIRA, 2010)

O segredo passara pela sensível manipulação da forma


do lugar e das suas potencialidades para que pudessem
desenvolver-se como associações primitivas capazes de re-
novar uma imagem gasta de um protótipo tradicional que
se tinha estabelecido.

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Rui Serra | Janeiro 2019

O modo como a relação entre a Arquitectura e o lugar


foi encarado pela dupla foi o gerador de todos os pe-
quenos detalhes que abundavam em significados ocultos.
Imbuídos nas colinas e nos vales. todos os elementos que
compunham o espaço, desde o mais simples e delicado
tapete de relva verde do qual surgiam finas lápides, que
se escondiam por entre leves folhas caídas de extensos e
altos pinheiros que apontavam para uma cúpula de um
céu pintado de azul claro e profundo. O espírito do lugar
existente permaneceu primitivo e intocável. Os rústicos
caminhos traçados quase sugeriam um desmazelo pelo sa-
grado lugar, ainda assim, a sintonia com que lidavam com
as pequenas construções tornaram-no num lugar único.

(FERREIRA, 2010)

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

A mente sugere semelhanças com uma outra imagem à


medida que nos deparamos com este cenário montado
por uma densa floresta. A imagem de Boullée no passeio
pela floresta ao luar invade-nos a memória.

As semelhanças são evidentes. Aqui, o carácter do lúgu-


bre habita a sombra que pontualmente acolhe súbitos
suspiros de luz que ousaram esquivar-se dos ramos das
árvores. Esta dança protagonizada pela luz, por si só, já
transportava consigo uma carga emocional enorme. Con-
tudo, o encontro e o toque na fria pedra de uma lápide
era o momento único capaz de elevar toda a experiência a
um patamar sagrado.

O encontro com todos os elementos do bosque funde-


-se então numa experiência única. As linhas verticais dos
troncos são o primeiro elemento que compõe o espaço.
Seguem-se as rugosas texturas e macias superfícies; as co-
res do solo e os tons do céu; e até mesmo os aromas que
despertam no silêncio que impera.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

A experiência envolve num abraço multissensorial.

O espaço vive submerso num ambiente de uma calma e


harmonia arrepiante. Uma vasta área de longas árvores
permite o equilíbrio com um espaço amplo de uma clarei-
ra marcada pela elevação de uma cruz que orienta e orga-
niza o espaço à sua volta. Os verdes entrelaçam-se em tons
de diversos ocres que preenchem o espaço óptico. É um
bosque que entra pelo nosso inconsciente e se revela como
um lugar que vive num eterno crepúsculo quase proibido.
O lugar é envolvido por esta serena e repousada aura. Ao
contrário dos Prazeres, aqui, o lúgubre é caracterizado pe-
los elementos espontâneos que crescem num ambiente de
paisagem natural. A sombra é mais intensa e sugere uma
poesia que se esconde. A possibilidade de um passeio pela
imaginação do que não se vê. A poesia do invisível. A
poesia do nada esconde infinitas ambições.

126
Feita de memórias

Para Giacomo Leopardi, a poesia residia precisamente


no atraente desconhecido e a imaginação, que daí provia,
ostentava o poder de consolar a dor de viver. Assim, o
homem projecta o seu desejo no infinito, e só sente prazer
quando pode imaginar que ele não tem fim.

(CALVINO, 1990 Pp.81)

Para este agradável prazer ilusório contribui o precioso silêncio.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Let us go back in time to the building of the pyramids.


Hear the din of industry in a cloud of dust marking their
place. Now we see the pyramids in full presence. There
prevail the feeling “Silence”, from which is felt Man’s de-
sire express. This before the first stone was laid.

I note when a building is being made, free of servitude,


that the spirit to be is high allowing not a blade of grass
in its wake. When it stands complete and in use it seems
like it wants to tell you about the adventure of its making.
But all parts locked to serve makes this story of little in-
terest. When its use is spent and it becomes a ruin, the
wonder of its beginning appears agains. It feels well to
have itself entwined in foliage, once more high in spirit
and free of servitude.

I sense Light as the giver of all presences, and material as


spent light.

Louis I. Kahn

(VASSELA, 2013 Pp. 229)

128
Feita de memórias

Silêncio O silêncio surge como uma lembrança do peso de viver.


Uma lembrança da solidão e da frágil mortalidade huma-
na que põe em foco a nossa própria existência. O encan-
tamento de um silêncio tenebroso que nos chega tal como
num caminhar pela cidade muda numa serena madrugada
de verão. A tranquilidade que se sente neste vaguear pelo
bosque é transmitido pela presença da memória silenciada
na natureza. O mesmo silêncio de que, depois de tan-
tos sacrifícios e dores, vivem agora os templos do Antigo
Egipto. O mesmo silêncio que se envolve no interior de
uma poderosa catedral gótica e que nos lembra o último
eco.

Do último suspiro.

Da última nota de um canto gregoriano.

(PALLASMAA, 2005)

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Rui Serra | Janeiro 2019

O espaço envolve-se numa atmosfera em que a memória


traz consigo um silêncio encantador. Uma presença místi-
ca. Uma participação subjectiva da Arquitectura difícil de
se expor em palavras. A mente é inundada por um novo
mundo melancólico que nos faz viajar. Tal como numa
leve embriaguez em que somos conduzidos numa experi-
ência quase extracorpórea e, ao voltarmos, deparamo-nos
com um eu diferente, mas mais eu.

(ABREU, 2007)

Semelhante à experiência de Boullée em que o silêncio do-


mina o espaço: a suspensão do ruído exterior e a surpreen-
dente supressão de barulhentos pensamentos faz-nos le-
vitar. O silêncio é um fenómeno comum à experiência de
todas as obras de arte. Nesse silêncio a obra comunica-se.

(ABREU, 2007 Pp. 160)

130
Feita de memórias

A presença da obra manifesta-se através desta aura que nos


seduz. O equilíbrio da forma e a harmonia sentida entre o
lugar, a memória e os astros que parecem alinhados nesse
preciso momento e espaço. Um manifesto acolhimento
singular que nos valida que o que se encontra diante dos
nossos maravilhados olhos é não mais que a presença de
uma obra de Arquitectura.

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Rui Serra | Janeiro 2019

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

A Capela Insinuando-se por entre as sombras e o silêncio, o piná-


culo da criação.

O ambiente que a envolve, não permite aos olhos uma


imagem clara do objecto que lentamente se vai apresen-
tando. Por entre os troncos, surgem finas e brancas colu-
nas dóricas que quase sem qualquer esforço suspendem
um pórtico que segura a lapidada cobertura negra e se
desvanece pela neblina que nos rodeia. A deliciosa obra
prima de Asplund que pertence ao bosque. A capela do
bosque. Uma pequena e modesta capela, mas que tao refi-
nada carrega uma aura enorme, capaz de evocar o sagrado.
O retrato da porta entreaberta para um outro mundo.

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Feita de memórias

A modelação das diferentes formas elementares conta-


-nos sobre a perfeição e o equilíbrio num estilo classicista,
mas ligeiro. Quase parecendo uma tenda que ali pousou
ou um qualquer objecto efémero semelhante de tal é a
ausência de peso que guarda em si. A representação da
leveza. A predominância de materiais naturais, nomeada-
mente a madeira, são evidentes. Esta sensibilidade deixa
que a visão e o tacto contactem com as superfícies e que
os materiais contem a sua história. As suas origens e o seu
envelhecimento.

(PALLASMAA, 2005)

O leve salto que carrega o peso da vida está desenhado


nestas formas e nestes materiais.

(FERREIRA, 2010)

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Rui Serra | Janeiro 2019

Ainda assim, existe uma tensão que nos acompanha à


medida que é feita a lenta aproximação ao objecto. Uma
constante expectativa acompanha a passada e conduz-nos
para a entrada escura que esconde o seu interior. A inquie-
tação aumenta na ânsia de encontrar algo. Algo que faz
falta, que é necessário, mas que não é possível reconhecer
até que se sinta a sua presença. Essa presença encontra-se
no seu interior, onde uma abóbada interrompida por um
único vão aspira uma luz divina para o interior e nos des-
lumbra. O ansiado culminar.

Em suma, distingue-se na forma em que carrega em si três


características: está em constante mutação; é encantadora-
mente silencioso; é leveza em estado puro.

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Feita de memórias

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138
Feita de memórias

Assim, temos de recordar-nos de que se nos impressiona a


ideia do mundo constituído de átomos sem peso é porque
temos experiência do peso das coisas; tal como não pode-
ríamos admirar a leveza da linguagem se não soubéssemos
admirar também a linguagem dotada de peso.

(CALVINO, 1990 Pp. 29)

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Contudo, torna-se necessária uma última reflexão. É evi-


dente que a capacidade de acrescentar o carácter do lúgu-
bre ao lugar da natureza resulta num aumento exponencial
das relações dramáticas que o Homem tem com o seu
próprio destino.

A natureza que se envolve no espaço e que cresce apoiada


sobre os túmulos e quaisquer outros vestígios da memória
parece revelar o tempo enquanto lenta e silenciosa conso-
me a memória. A natureza une-se ao tempo.

140
Feita de memórias

Nos Prazeres, o lúgubre, ou seja, aquela mística força que


penetra a mente e a invade de emoções era relativo aos
objectos físicos de cariz fúnebre que pontuavam o espaço.
No Bosque, vive-se outra realidade. A selvagem natureza
é a crua constatação do tempo que passa e que culmina
no derradeiro destino final: a morte. Essa emoção mora
na natureza: nos leves e frágeis ramos que crescem pro-
gressivamente e abraçam o espaço, na poeira que dança na
neblina e que vive entre fios de luz e sombra intensa, nas
folhas verdes pesadas de orvalho e nas folhas de tons ocre
que revestem o solo.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A natureza conta-nos um conto. Um conto sobre ciclos.


O Homem vê nela reflectida a própria vida e imagina o
seu destino. Enquanto que na natureza, tudo o que termi-
na também recomeça dando lugar a outra forma de vida,
na vida do Homem o recomeço surge numa forma de fé.
Uma crença divina de uma vida após a morte.

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Feita de memórias

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Feita de memórias

5. os astros contam

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O implacável confronto perante a gélida morte é comum


a todos os Homens. A inevitável realidade surge sob a
forma de luto que nos consome através de uma impotên-
cia sobre o universo, o seu destino e as ásperas leis que o
governam. A saudade.

O que existe depois da morte? Há milhares de anos que


o receio pelo desconhecido fascina filósofos, incendia in-
tensos debates e perturba a mais intelectual consciência.

As convicções dividem se em crenças.

146
Feita de memórias

A falta de respostas abundava e, perante este tormento


sobre o desconhecido, do vazio, do nada, o Homem criou
as suas crenças. Algo em que pudesse depositar as suas
convicções e capaz de proporcionar um conforto que se
via necessário à alma. Neste âmbito, os deuses, podero-
sas entidades que habitavam o mundo espiritual, surgem
como resposta a todas as questões que o Homem não
podia responder. Do início, ao fim dos tempos.

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Rui Serra | Janeiro 2019

O vazio do desconhecido era assim preenchido com uma


promessa. A ansiada promessa de uma vida após a morte
e na eternidade.

Romper o contrato com as leis da natureza e almejar a


eternidade parecia agora um sonho tangível através da
ajuda divina.

Surge então a interrogação- qual é a função que a religião


assume no processo da morte em diferentes culturas, em
diferentes tempos?

148
Feita de memórias

A história. A cultura e os valores. A religião.

Simples palavras que, num complexo emaranhado de im-


previsíveis conexões configuram as mais distintas e únicas
sociedades capazes de se expressar em fantásticos rituais
sagrados perante as mais variadas concepções do que sim-
boliza a morte para as suas culturas.

Apesar do cemitério partilhar a mesma função nas mais


diversas culturas e de se associar a semelhantes valores em
todas elas, manifesta-se em diferentes e únicas abordagens.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Crença A crença numa entidade divina é um dos elementos que


mais contribuem para a compreensão de uma cultura. A
sua identidade. A crença assenta os seus princípios na me-
mória e na fé. É o acto de a um feito heróico corresponder
a um socorro divino que surge em desfavoráveis momen-
tos da história.

Permite ao Homem uma compreensão de inexplicáveis


experiências. Dá um sentido perante o incompreensível
e inspira um valor sagrado a todos os acontecimentos.
Assim, a religião preenche o vazio e o desconhecido num
conceito em que o desconhecimento é total e o vazio in-
cómodo.

Face a esta conjuntura de sentimentos perante o escuro e


incerto futuro, a religião surge como ferramenta capaz de
proporcionar, à alma, um conforto. A superação de uma
inquietação.

A superação de um medo.

Um medo que nega um fim.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Tal como a natureza do bosque nos conta sobre o ciclo


da vida, a religião pretende responder às questões mais
intrigantes do homem de saber de onde vem e para onde
caminha.

Ainda que a religião crie expectativas através de promessas


que se cumprirão após a morte, a única verdade absoluta
é que todo o Homem sucumbe ao peso do tempo. A sub-
missão sob o efémero destino. No entanto, o modo como
cada pessoa encara o seu destino fica à sua escolha. Ao seu
livre-arbítrio. Assim, serão as crenças fundadas em fanta-
sias utópicas, capazes de iludir através da fé e incutidas
pelo poder da religião, apenas uma forma de confortar
a alma?

152
Feita de memórias

Alma Envolto neste confuso ambiente de histórias e profecias,


o ser humano viu-se, desde cedo, ligado a culturas an-
cestrais que se aperceberam da existência de uma faísca
interior. Uma fagulha que brilha e se descobre nos olhos
luminosos.

Na Grécia Antiga, Platão e Aristóteles declaravam para


seus atentos discípulos que a alma é um poder da mente
comum a todos os seres. É a nossa identidade primitiva,
presente no momento em que nascemos e que não se mol-
da perante manipulações exteriores. É a essência do ser.
Esta predisposição permite-nos compreender a realidade
que surge ao nosso redor.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A analítica ciência alia-se à interpretação de antigos filó-


sofos e confere-lhe uma validação superior. mas vai mais
longe na tentativa de desmistificar a morte e quantificar
este fogo que nos move através de pesquisas e confissões
de experiências pessoais. Alma. Consciência. Mente. Psi-
que. Palavras que se misturam num diálogo na tentação de
atribuir um significado ao intangível que não se perde na
atmosfera no momento em que o tempo poe fim à vida.

154
Feita de memórias

Os Egípcios apelidaram-lhe de Ka. As religiões deram-lhe


o nome de Alma, uma força que nos permite conectar
com o divino. Uma força eterna que existe no infinito.
A crença na imortalidade da alma permite acreditar que
existe um sentido, uma finalidade e uma ordem no uni-
verso.

Uma cega expectativa.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Por vezes, a alma é descrita como a substância que carrega


a identidade do Homem, noutras, como o elemento vital
primordial.

Na primeira situação, acredita-se numa alma que se li-


berta e que é imortal, como no cristianismo, islamismo
e judaísmo. Na segunda, imagina-se a alma como a força
que governa o universo e que se dissipa pela natureza, uma
espécie de energia cósmica que o hinduísmo chama por
brama.

A alma é a chave do puzzle onde a crença deposita as


expectativas de uma vida imortal, que atraiçoe o tempo.

156
Feita de memórias

Esta fantasia. Esta crença de uma alma presente que va-


gueia pelo mundo não era exclusiva da mitologia egípcia.
Onde deuses encarnavam faraós. Onde faraós sonhavam
com impressionantes monumentos que durante o dia
viam elevar-se sobre ombros de milhares de pessoas em
honra de entidades divinas para que o decorrer da vida
não fosse interrompido e o sonho original se mantivesse
intacto. De que a vida eterna espreitava pela porta entrea-
berta dos dois mundos.

Numa viagem pela outra face do globo, uma cultura


imortalizava-se nas páginas da história do século xiv pelos
seus inacreditáveis conhecimentos sobre o universo e o
cosmos. Era aqui, no centro da cidade do antigo México
que, há mais de 600 anos, a história sobre as culturas que
dependiam da energia dos mortos tinha continuidade.

O império azteca.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A skyline era desenhada pelas linhas do colossal Templo


Mayor. Um templo que traz à memória as pirâmides que
rompiam o céu do Egipto dava lugar a arrepiantes ceri-
mónias sagradas. Os primeiros conquistadores contavam
cenas de impiedosos sacrifícios em que sacerdotes aste-
cas eram protagonistas. O arrancar de corações que ainda
bombeavam sangue pelas artérias com as próprias mãos
em prol de uma entidade superior. Os corpos inanimados
lavavam em sangue os degraus do templo num ritual vital.

158
Feita de memórias

Os astros contavam que…

Sacrifícios Brutais

Que por verdes plantações

e um sol dourado,

Se ensanguentaram dorsais

Em sagrados rituais

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Rui Serra | Janeiro 2019

Sem os sacrifícios vitais, o sol perderia energia. Sem o


sangue precioso, as plantações morreriam e o universo
colapsava. Os deuses, desiludidos, não concederiam que
o sol nascesse de novo no dia seguinte. A sua jornada
seria interrompida. O sacrifício era o combustível essen-
cial para a continuação da vida, sem ele, sem essa energia
absorvida, a vida teria um fim dramático.

Assim, o sacrifício carrega em si um peso do tamanho dos


templos e ilustrava a ponte que conectava o mundo físico
do mundo espiritual dos antepassados. As pessoas sacrifi-
cadas teriam o poder de providenciar para as pessoas que
ficavam e, num ciclo, viabilizavam vida e auguravam um
bom futuro.

160
Feita de memórias

Os sacrifícios astecas e as colossais estruturas egípcias.


Dois universos distintos que se moviam ao vapor de uma
deslumbrada crença de uma poética vida após a morte que
assegurava o futuro sustento dos vivos. Hoje, milhões de
pessoas em todo o mundo acreditam que espíritos ante-
passados não só asseguram o futuro como escondem um
outro poder.

O poder da vida eterna.

A pesada herança dos sacrifícios astecas deu origem a um


curioso ritual. Em Portugal, o dia dos finados. No méxi-
co, o dia de los muertos. Apesar de partilharem a mesma
descendência e a mesma religião católica, as realidades
manifestam-se distintas.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Día de los Muertos No México, a tradição refere que quando a noite cega os
caminhos, as estrelas trazem consigo uma fabulosa atmos-
fera de música animada por diversas danças iluminadas
por milhares de velas que lentamente são consumidas pe-
las chamas e que pintam o cemitério de estrelas, tal como
o céu nocturno pontuado delicadamente com os seus lu-
minosos astros. Existe comida. Existe bebida. As pessoas,
vestidas a rigor, festejam em forma de agradecimento aos
antepassados.

Nada é capaz de nos exprimir o sentimento que se vive


que não seja a partir dos objectos mágicos que revestem
o espaço: os milhares pontos de luz, as múltiplas cores de
encantadoras flores, a música, as faces que se iluminam
pela luz quente das velas que se agita ao passar do vento.
Os gestos que contam histórias. Onde uma simples vela
pode alcançar representar uma iluminação divina, uma
alma, ou apenas o que é:

uma simples vela.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Tal como são importantíssimos todos os objectos que


Robinson Crusoe salva do naufrágio e os que ele fabrica
com as suas próprias mãos. Poderemos dizer que a partir
do momento em que surge um objecto numa narração, ele
adquire uma força especial, torna-se como o pólo de um
campo magnético, o nó de uma rede de relações invisíveis.
O simbolismo de um objecto pode ser mais ou menos
explicito, mas existe sempre. Poderemos dizer que numa
narração um objecto é sempre um objecto mágico.

(CALVINO, 1990 Pp. 49)

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Feita de memórias

Esta explosão ateada por um conjunto de antigos hábi-


tos e ancestrais crenças presenteava a vida quotidiana com
momentos espectaculares de rituais que evocam as almas
dos seus antepassados. As almas visitam o mundo físico
e são brindadas com oferendas. Contos e histórias preen-
chem uma noite que se quer longa.

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Rui Serra | Janeiro 2019

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Feita de memórias

Dia dos Finados Em Portugal, o segundo dia de Novembro cede a data à


celebração dos antepassados.

Tal como no México, o ritual inicia-se na decoração do


espaço. Às milhares de flores juntam-se multidões de pes-
soas que rezam aos espíritos dos antepassados que per-
manecem na memória. Contudo, o ambiente aparenta-se
distinto. O ambiente é pesado. A música e as danças são
substituídas por um silêncio melancólico. As memórias
de outros tempos trazem dor em forma de saudade, um
choro silencioso inunda o espaço que recorda cada perda.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A vida e a morte unem-se. Coexistem no espaço e no tempo por elas partilhado.

Enquanto que no México o ritual invoca o sentimento de


gratidão para com a protecção dos espíritos ancestrais,
em Portugal a atmosfera transporta-nos para um passado
doloroso. O reviver do luto.

Uma religião. Duas culturas. Dois sentimentos.

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Feita de memórias

Para os cristãos, o cemitério não se trata apenas de um


lugar onde é evocada a memória. Representa, também, um
lugar de esperança. A esperança de uma vida após a morte.

Esperança essa que teve origem num momento de sofri-


mento há mais de dois mil anos atrás, no momento em
que um homem de seu nome Jesus fora preso pelos roma-
nos e crucificado em pleno centro de Jerusalém.

Lugar onde, no templo antigo, Judeus preparavam sacri-


fícios que limpariam os pecados do seu povo. Assim, o
sangrento sacrifício de Jesus permitiria, mais uma vez, o
perdão. O derradeiro sacrifício escreveu, também ele, as
suas páginas da história e tornou-se na doutrina do cris-
tianismo. O reconhecimento de Jesus como Messias traria
a promessa do Cristianismo de uma vida eterna.

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Rui Serra | Janeiro 2019

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Feita de memórias

Hoje, a cidade acolhe, entre distúrbios e tensões, três re-


ligiões. O Cristianismo. O Judaísmo. O Islamismo. Para
os cristãos, o sacrifício de jesus enquanto filho de deus
permitiu ultrapassar o medo da morte ao saber que a vida
eterna seria garantida.

No entanto, existe outra forma de dominar esse medo.

A reencarnação.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A sagrada cidade de Varanasi, na Índia, guarda em si um


segredo hindu. O segredo, esse, permite a superação da
morte.

Há centenas de anos que as margens do rio Ganges pos-


suem uma atmosfera fantástica. Aqui, os corpos são ba-
nhados nas águas do rio sagrado antes de, aconchegados
num casulo de linho, serem consumidos pelas chamas.
Aqui, em Varanasi, permanece o crematório mais sagrado.

Da cidade mais sagrada.

No rio mais sagrado.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

A vida e a morte misturam-se com uma tremenda natura-


lidade. Faz parte da vida e, portanto, do quotidiano. Faz
parte da cultura. Os corpos são carregados por pessoas
simples que correm alegres pelas humildes ruas e entoam
canções e transbordam vida e felicidade. a festa, acredita-
-se, facilita a jornada que a alma tem pela frente e isso é
motivo de orgulho. Celebra-se uma vitória. Uma vitoria
sobre a morte.

O luto está presente, no entanto, a crença no karma con-


vence as gentes de que o espírito da pessoa segue em
frente para uma melhor forma de vida. Vivendo uma vida
boa, haverá as chances de uma vida melhor. Vivendo mal,
haverá consequências a ser pagas na próxima vida. O ciclo
eterno que se repete.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Apesar de uma nova vida, para os hindus, o sonho expec-


tante é precisamente o inverso. No fim, o cenário perfei-
to passa pela transição de corpo físico para uma energia
pura. A libertação da alma que se torna una com toda a
existência. Essa sim, eterna. A esta libertação. Esta trans-
formação em energia pura, deram o nome de Moksha.

176
Feita de memórias

Este estado é atingido após vidas de tentativas em ob-


tenção da existência perfeita, mas, em Varanasi os hindus
acreditam que as águas do rio Ganges correm na direcção
da vida eterna. Este divino lugar conserva um poder invul-
gar. Nascido a norte, nos Himalaias, as águas fluem puras
em direcção ao mar, a sul. Durante esta travessia, ocorrem
momentos especiais que conferem o poder divino a este
lugar em particular. Esses lugares são admiráveis porque
nesses momentos, a água corre de volta em direcção a
norte. Varanasi é um desses lugares.

Assim, acredita-se que a cremação do Manikarnika Ghat


seduz com um feitiço. considerada a cremação máxima
capaz de encaminhar a alma directamente ao estado de
libertação divino.

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Rui Serra | Janeiro 2019

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Feita de memórias

Faz parte da essência humana lutar contra a morte. O que


teve origem no momento em que o Homem descobriu na
caverna o seu abrigo, abandonando assim a sua frágil po-
sição à mercê de perigos constantes, teve seguimento no
domínio do fogo. Mais recentemente, o desenvolvimento
de vacinas e inovadoras tecnologias vieram assegurar que
as fronteiras da morte podem ser afastadas cada vez mais
para um longínquo futuro.

Enganar a morte, antes que a morte defraude a vida.

No entanto, existe um outro desejo. Se não podemos vi-


ver para lá do tempo que nos está destinado, queremos,
ao menos, ser lembrados. Um último desejo que move o
mundo. A ambição de ser relembrado após a nossa morte.
Um querer tao antigo quanto os faraós.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Voltamos, então, à antiga capital do antigo Egipto, Te-


bas. Para recordar uma memória que se conta por figuras
e símbolos cravados nas paredes de pedra do templo de
Milhões de Anos.

Conta a história que no tempo de Ramsés III foi man-


dado edificar um templo. Um autêntico monumento que
exprime uma vontade. A vontade de, por milhões de anos,
ser relembrado. A vontade de ser eterno.

Inspirado no reinado antecessor, o faraó que reencarnara


o Ka sagrado de Horus.

180
Feita de memórias

Passaram mais de três mil anos desde que, inspirado pelo


reinado antecessor, o faraó, que reencarnara o Ka sagrado
de Horus, imaginou o monumento que, pela pedra esca-
vada em símbolos, contaria a sua história. A história do
seu reinado que não poderia ser apagada representava a
sua tentativa de se tornar imortal.

O seu nome, embutido na pedra, permitiria que a sua


vida, o seu legado e a sua memória fossem renovados por
um instante. User-Maat-Re-Mery-Amun. Ao proferir o
seu nome, conta a lenda, o seu Ka ganha energia. O faraó
seria lembrado e tornava-se, assim, eterno.

181
Rui Serra | Janeiro 2019

Ramsés alcançou esse triunfo na busca da imortalidade.


O seu templo ruiu, mas o seu nome é ainda lembrado
milhares de anos após a sua morte. O espírito continua
connosco. A vida só termina no momento em que o últi-
mo homem que a relembre também morre. E, na ausência
de algo que retenha a sua memória. Na ausência de um
símbolo que reflicta em si uma identidade, a memória
perde-se no tempo. Perde-se para sempre.

Na verdade, todos ambicionamos viver na lembrança da-


queles que ficam. Eternos, como as estrelas.

E isto, por si só, é um poema da vida após a morte.

(FREEMAN, 2016)

182
Feita de memórias

Memória Nascemos sem identidade e é através de experiências di-


versificadas que nos moldamos enquanto indivíduos e
criamos a nossa própria identidade. As experiências es-
tão ligadas intrinsecamente a uma cultura, a um lugar e
num determinado tempo. Estes factores por sua vez parti-
lham antecedentes históricos comuns. Essas experiências,
transformadas em memórias funcionam como pilares na
estrutura de formação de uma entidade, criando a possi-
bilidade de se identificar com o que o rodeia originando
o sentimento de pertença a um lugar, a uma comunidade,
a um tempo.

183
Rui Serra | Janeiro 2019

Sem a memória, quem seriamos nós?

François-Rene de Chateaubriand
(CAMBIER, 2004)

184
Feita de memórias

Uma questão tão antiga quanto a acrópole em Atenas.


palco de intensos devaneios de intensos poetas.

No inconsciente colectivo dos Gregos, a memória e o es-


quecimento eram entidades autónomas que influenciavam
a própria existência. Mnemósina, mãe das Musas e deusa
da memória opunha-se a Lete, deusa do esquecimento.
Estas estórias presentes na Antiguidade serviram de base
à imaginação de visionários que se dedicaram a escrever
sobre a ontologia da memória.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Não sendo despidas de significado, lendas e alegorias não


ofereciam as ambicionadas respostas perante os mistérios
dos filósofos que há mais de dois mil anos meditavam
poisados sobre aleatórios degraus de um qualquer tem-
plo que acompanhava a angústia de um enigma chamado
memória.

Para Platão, mente inspiradora, a memória, tal como


a alma, preexiste em cada ser humano. A alma, energia
imortal, possuía em si todo o conhecimento do universo
que, no instante do nascimento, é coberto pelo manto do
esquecimento como se de um trágico feitiço dos deuses se
tratasse. Assim, acreditava Platão, tudo o que pensamos
aprender, não seria mais que um sopro pelo cobertor do
esquecimento que descobre um conhecimento que se pre-
sumia novo. É Platão quem pensa a alegoria da caverna
para ilustrar o conhecimento, assim como é Platão quem
cria a imagem de um bloco de cera para simbolizar a me-
mória.

186
Feita de memórias

Em meados do século XVII, John Locke viria a deixar


um outro testamento de como funciona a misteriosa me-
mória. Contrariando a tese de Platão, o filosofo inglês
criou a teoria da tábua rasa. O princípio segundo o qual
a mente se assemelhava a uma leve folha em branco que
se preencheria apenas através da experiência. A memória
como deposito de ideias adquiridas pelos cinco sentidos.

A eficácia do registo é proporcional à intensidade da


experiência. Quanto maior a intensidade. Quanto maio-
res os estímulos dos sentidos, maior a reacção afectiva e
consequentemente mais fácil será para a mente recordar a
experiência e preservá-la. No entanto, a imagem fiel passa
por uma série de filtros da nossa imaginação que a mol-
dam e o que se esperava que fosse uma memória de uma
experiência do real, não é mais que uma interpretação dos
sentidos. Um mero reflexo captado.

187
Rui Serra | Janeiro 2019

O superpoder de reter sucessivas e incontáveis experiên-


cias armazenadas num cofre prontas a serem requisitadas
a qualquer momento é uma capacidade inata no ser-hu-
mano. Contudo, a memória equilibra em si um fantástico
potencial: ressuscitar momentos que nos permitem tomar
consciência da própria existência num encadeamento de
sucessivos momentos; materializar a memória individual
numa fala, num escrito ou talvez num monumento que
liberta o acesso a uma história que não foi vivida. Uma
memória colectiva; e em terceiro, para concluir, alimen-
tada pela imaginação, serve de ferramenta na oficina da
mente para servir a invenção e a criação num ambicionado
futuro.

(CAMBIER, 2004)

188
Feita de memórias

Sem a memória,

a existência ficaria resumida a uma sequência de momen-


tos.

um presente que passa, mas que não é lembrado.

Um presente que passa, mas não pára.

Viveríamos, sem passado,

no presente,

mas projectados no futuro.

189
Rui Serra | Janeiro 2019

Aqui, a arquitectura assume um papel interessante.

Presente na realidade como cenário ou dando forma ao


palco onde se desenrolam as experiências, a arquitectu-
ra revela-se como um dos elementos basilares em todo
o processo de memorização. Um, entre outros elemen-
tos ocultos que funcionam como fios de informação que,
interligados, formalizam uma complexa teia de relações
íntimas acessíveis apenas à mente. O acto interior de re-
cordar.

Neste processo, outras linhas moldam esta enorme e la-


biríntica teia. Outras experiências, outros espaços, outras
aprendizagens. Todas elas completam a teia que traça a
identidade pessoal.

190
Feita de memórias

Mas outros tipos de memórias habitam a mente.

Esta engenhosa máquina de ligações interlaçadas tem,


também, a capacidade de usar outros tipos de memórias.
Memórias que não foram vividas. As que fazem parte do
mundo do imaginário.

Este maravilhoso mundo divide-se em dois. A memória


do inconsciente. E a memória da criatividade.

Bachelard descreve a poética do espaço entre dois pólos


que marcam a memória inconsciente. Entre o porão e
o sótão, a escada. A abordagem a esta imagem da casa,
abrigo do devaneio e protectora do sonhador, espera des-
vendar toda a elasticidade da mente sobre uma imagem
inconsciente que nos emociona em diferentes graus de
profundidade.

191
Rui Serra | Janeiro 2019

192
Feita de memórias

Para o poeta, as lembranças deste curioso lugar estão pro-


fundamente inscritas em nós. Os poderes do inconsciente
guardam as distantes lembranças de marcas profundas que
suscitam duas diferentes perspectivas. Da irracionalidade
do profundo porão, à racionalidade do telhado sonhador.
No meio, uma simples escada.

C. G. Jung serve-se da imagem dos dois pólos- o porão


e o sótão- para explorar os medos inconscientes que aqui
habitam. Dos barulhos que emergem do escuro porão, aos
ratos que correm em silêncio de volta aos seus buracos, as-
sim que o dono da casa visita o sótão. No sótão, a luz do
dia que invade pelo buraco do telhado permite controlar
os medos que surgem de noite. No porão, a escuridão é
permanente, dia e noite. A sombra revela medos ancestrais
que, mesmo com a luz de uma vela, o homem vê as som-
bras dançarem na muralha negra do porão.

(BACHELARD, 1994 Pp. 209)

193
Rui Serra | Janeiro 2019

Na memória, as escadas que nos levam.

Num lado, a escada que nos leva ao porão. Descemo-la


sempre- escreve Bachelard aludindo à descida que se fixa
na memória. o momento apreensivo que nos acompanha
na descida é o que caracteriza o seu carácter onírico. E é
esse momento que a memória guarda.

Enfim, a escada que nos leva ao sótão. Subimo-la sempre.


A intensa subida que não lembra uma descida de volta.
Quando volto a sonhar nos sótãos de outrora, não desço
mais.

(BACHELARD, 1994 Pp. 214)

O inconsciente guarda, silencioso, todas estas experiências


e todos estes medos irreais que, ainda que nunca se te-
nham manifestado reais, estão impressos profundamente
na mente.

194
Feita de memórias

195
Rui Serra | Janeiro 2019

Na lembrança, nessa longínqua região, memória e ima-


ginação misturam-se facilmente. A identidade é molda-
da por elementos variados que nos envolvem e que vão
construindo, pedra sobre pedra, a individualidade. Nesse
sentido, assemelhamo-nos a uma conhecida metáfora de
Zumthor. Lança-se uma pedra na água. A areia agita-se e
volta a assentar. O distúrbio foi necessário. A pedra en-
controu o seu lugar. Mas o lago já não é o mesmo.

(ZUMTHOR, 1998)

A relação que se desenvolve com cada uma dessas pedras


que nos agitam e fazem parte de nós fica armazenada nas
nossas memórias.

196
Feita de memórias

A memória transporta-nos a mundos distantes, e os ro-


mances levam-nos numa caminhada por cidades invoca-
das pela magia das palavras. Das grandes praças ensola-
radas que sugerem um poder inatingível, às pequenas e
estreitas ruas de uma qualquer cidade com a sua atmosfera
que transborda a vida de bairro.

Cenários sugeridos por filmes, mas que a nossa mente


absorve e nos faz experienciar através dos olhos do pro-
tagonista.

197
Rui Serra | Janeiro 2019

Estamos presentes no conto fantástico em que um poço


e um pendulo preenchem o espaço de uma cela e absor-
vemos todos os sentimentos que flutuam pela mente do
condenado à medida que o pêndulo desce e o tempo es-
cassa nas palavras de Edgar Allan Poe.

Sentimos na primeira pessoa a descrição tenebrosa da no-


vela que, escrita em vinte dias, durará para a eternidade.
A metamorfose de Kafka. A mente encantada pela escrita,
encarrega-se de nos transportar para a novela. As sensa-
ções e todas as mutações que surgem durante a transfor-
mação física sentimo-las quase como se, de facto, percor-
ressem o nosso corpo.

198
Feita de memórias

Na escrita mágica de Italo Calvino, somos conduzidos


pelas maravilhosas palavras com que Marco Polo descreve
cidades invisíveis a Kublai Kan. Fazemos parte da estória.
Assumimos uma personagem e, portanto, assumimos uma
memória.

Viagens por mentes criativas que levantam a poeira da


nossa mente e que se instalam como memórias. O poder
da imaginação.

Essas memórias, de algum jeito, parecem tao vivas como


qualquer outro lugar que já tenhamos visitado.

(PALLASMAA, 2005)

199
Rui Serra | Janeiro 2019

200
Feita de memórias

6. histórias atribuladas

201
Rui Serra | Janeiro 2019

Enquanto seres humanos,

temos a capacidade de conservar na nossa memória uma


pessoa que nos marcou,

uma experiência,

um lugar.

Os lugares provocam a experiência, mas perderiam todo o


seu encanto sem a capacidade da mente de nos transpor-
tar para outros mundos imaginados.

A memória resgata os detalhes dos sons e todo o movi-


mento da cidade, os seus cheiros, os padrões e os jogos de
luz. Permite-nos parar, escolher um momento passado,
e desfrutá-lo. Podemos até escolher se nos sentamos na
esplanada ao sol da memória, ou se, antes, preferimos um
lugar á sombra, tranquilo e que nos permita refugiar com
o nosso pensamento na cidade das recordações.

(LOPES, 2005)

202
Feita de memórias

Este fascinante imaginário vive no inconsciente, criando


misteriosos lugares, profundas personagens e um infinito
de devaneios.

Memórias que acompanham o crescimento.

O que torna esses lugares, essas experiências, tão impor-


tantes que os permitiu alcançar um espaço restrito na nos-
sa memória?

203
Rui Serra | Janeiro 2019

204
Feita de memórias

Na Guatemala, o viajante é convidado a conhecer um lu-


gar que existe para lá da realidade. Um precioso lugar, de
história atribulada, onde a memória e o sonho se mistu-
ram facilmente. A esse lugar, deram-lhe o nome, Chichi-
castenango.

No centro da Guatemala, numa colina que, embalada por


uma muralha, se encosta ao Lago de Atitlán, um povo que
reúne dos mais belos mercados de todo o país.

205
Rui Serra | Janeiro 2019

206
Feita de memórias

Inutilmente, tentarei agora, descrever a cidade indígena.


Cidade, essa, que quem a viu, não esquece. Poderia falar
em quantos degraus da igreja descansam as senhoras que
vendem flores, como são as improvisadas construções de
madeira que em tempos de mercado sustentam dos mais
belos produtos, das máscaras que invocam demónios, das
camisas de tecidos bordados em bonitas cores, dos bri-
lhos que os metais ao sol reflectem, do cheiro do milho
assado sobre o abrasador calor do carvão. Podia também
descrever as suas ruas e os sucessivos eventos que a acom-
panham, os toldos suspensos sobre as alegres cabeças, as
carrinhas que, de manhã, carregam as mais peculiares es-
peciarias e sementes de cores intensas que se confundem
com os vistosos tecidos. O som maravilhoso da língua de
toda a herança maia.

207
Rui Serra | Janeiro 2019

208
Feita de memórias

Mas, o que leva a subir a colina para vir até aqui não é só
a troca de mercadorias que se encontram dentro e fora do
país, apresentadas nos mesmos balcões, feitos da mesma
madeira. Não é só para vender, nem é só para comprar
que aqui se vem. Não é disto que é feita a cidade. Aqui,
contrabandeiam-se estados de espírito, fantasias e aconte-
cimentos do seu passado.

Provavelmente, o motivo que segura esta realidade indíge-


na passe por valores ancestrais que se mantêm, ainda hoje,
enraizados na cultura.

209
Rui Serra | Janeiro 2019

210
Feita de memórias

História Em Chichicastenango conta-se uma história de superação.

O povo indígena K’iche, desbravava território em busca de


um refúgio depois da sua cidade de origem ter sido des-
truída por devastadoras e impiedosas chamas. A pequena
colina fora a escolhida para acolher a frágil civilização.
O nome, fora atribuído pela fisionomia do lugar. Uma
colina de pinheiros e chicastes era baptizada de Chichicas-
tenango e ladeada por uma muralha quase em simultâneo.

O povo vivia em harmonia. Os deuses e os antepassados


trabalhavam em prol da comunidade e as oferendas per-
mitiam ambicionar boas épocas de colheitas. No entanto,
tempos de terror espreitavam por uma oportunidade de
por à prova a humilde civilização.

211
Rui Serra | Janeiro 2019

Conta-se que, num dos dias de 1524 e certamente num


castelo espanhol, um rei, nos labirintos do sonho, ima-
ginou uma conquista. O velho rei buscava, para lá dos
oceanos, uma terra prometida.

A violenta chegada ao novo continente não se fez esperar.

Em troca de simples terras e, talvez, de preciosos metais, a


conquista de um território que se desenrolava por brutais
métodos. Para lá das mortes, na tentativa de controlar os
vivos, a chegada era constantemente sinónimo de más no-
ticias para os povos indígenas. A destruição dos templos
era palavra de ordem. Era assim que, através da substi-
tuição de templos por igrejas e um punhado de cruzes
se exaltava o controlo perante uma cultura. O domínio
através de outros valores religiosos.

O domínio sobre os deuses.

212
Feita de memórias

Era necessário agir. E foi neste preciso momento que,


num acto de coragem, se salvou uma cultura.

Os Índios viviam da relação que mantinham com deuses e


antepassados. Assim, apercebendo-se da terrível realidade
que os assombrara e antes que fosse possível a destruição
de todo o templo, foi retirada a estátua de pedra do deus
Abaj e escondida no meio das montanhas, longe do con-
trolo espanhol. A resistência tinha começado.

A encosta que viria a acolher os deuses e todos os rituais


não era mais que o espaço cemiterial. Este precioso lugar
ganhava um poder místico muito mais intenso. Aos olhos
do povo e escondido dos invasores, o lugar na colina pas-
sava a ser o vínculo ancestral secreto com a cultura que se
pensava perdida.

Os deuses foram à colina.

213
Rui Serra | Janeiro 2019

Chichi, como é conhecida a humilde cidade, várias vezes


decaiu e renasceu, tendo sempre a primeira como arqué-
tipo elementar de toda a glória. Talvez por isto, a cidade
não deixe de suscitar novos suspiros a cada volver das es-
trelas.

(CALVINO, 2010)

214
Feita de memórias

Colina No alto da vizinha colina, uma nova casa para os deuses.

Esta cidade concilia em si duas meias cidades. Numa fica


a colina dos vivos. Noutra, a colina sagrada, destinada aos
mortos e, agora também, aos rituais.

Envolto num ambiente poético de memórias tao intensas


quanto as cores que aqui moram, existe uma ligação entre
a cultura antiga que crê na imortalidade das almas. Na
colina vizinha, ergue-se o cemitério. Despido de muros,
os jazigos cuidadosamente plantados voltados para a cida-
de intensificam a relação entre as duas colinas. A relação
torna-se mais profunda e o lugar intangível é admirado ao
longe, na cidade dos vivos. Nesta imagem imersa de fan-
tasia, uma peculiar característica distingue este cemitério
de qualquer outro- A cor. O cemitério que, de alguma
maneira, parece imitar os coloridos tecidos estabelece um
elo entre a cultura e a memória.

215
Rui Serra | Janeiro 2019

216
Feita de memórias

As cores estão carregadas de simbologias. Referem-se à


identidade de quem lá fica: o branco, símbolo da pureza,
é atribuído ao pai; o turquesa, símbolo da protecção, é
destinado à mãe; a cor rosa e a azul são para as crianças
de sexo feminino e masculino respectivamente; por fim, o
amarelo para os avós, símbolo da protecção do sol sobre
a humanidade.

Aqui, os elementos que evocam o valor da memória su-


portam um carácter estético, mas também narrativo. Tal
como nas pirâmides, em que a arquitectura era um invólu-
cro replecto de pinturas que, nas paredes, exprimem me-
mórias, fantasias e rituais, também aqui o povo indígena
se serviu da arquitectura para comunicar. Exaltar memó-
rias de antepassados e, através de um legado, comunicar
com o sagrado e futuras gerações.

217
Rui Serra | Janeiro 2019

A cor aproximou os homens dos seus deuses. As relações


criadas através deste simbolismo, permitiram ao homem
conectar-se com o sagrado e, ainda que repleta de cruzes e
outros símbolos, a verdade é que o ambiente melancólico
a que o espaço da morte é associado é anulado.

Neste singular cemitério vivem-se também outras realida-


des que vão alem do lugar da morte. A estátua do deus,
outrora escondida, permanece no mesmo lugar entre cam-
pas e jazigos. As cerimónias maias preenchem o espaço ao
redor dos altares em que homens e mulheres balançam os
braços à medida que proferem cantilenas mágicas que se
encontram no ar com colunas de fumo das oferendas e in-
censos queimados. Agora, parecem contentes os homens
e as mulheres.

Em Chichicastenango, a memória colectiva transformou o


lugar do cemitério num templo sagrado em que o real e a
fantasia parecem coabitar na pequena montanha mágica.

218
Feita de memórias

A montanha, sustenta, então, duas distintas realidades. O


espaço cemiterial- lugar da memória onde se presta o cul-
to aos antepassados, é, em simultâneo, o espaço de santu-
ário- um templo imaginado constitui o, agora, lugar onde
os rituais e os sacrifícios maias alcançam uma poesia que
une o culto aos antepassados ao culto dos deuses.

Os espanhóis deixaram o país, no entanto, os altares per-


maneceram intocáveis. Deste modo, é também ele um
memorial que sustenta a memória colectiva. Um marco
que permite relembrar a batalha travada, as vítimas e a co-
ragem daqueles que, num acto de audácia, salvaram uma
cultura. Esta memória fortaleceu a relação com o mundo
oculto e, talvez por isso, o povo se tenha mantido, parado
no tempo, respeitando as suas origens.

219
Rui Serra | Janeiro 2019

220
Feita de memórias

As origens, provenientes da tribo Maia, estão repletas de


deuses. Para eles, a natureza está coberta de uma magia
única. Essa magia habita nas verdes plantas que, de manhã,
se cobrem com o fresco orvalho, nas pedras que, em gru-
po, sustentam colinas, nos rios que correm em direcção
aos oceanos e nos animais que o habitam. Na montanha,
o jaguar junta-se ao morcego e à serpente, à aguia e ao ma-
caco e, juntamente também a tantos outros, são venerados
e protegidos. Seres quase mitológicos possuidores de es-
píritos de deuses caminham entre os vales e as montanhas.
Uma presença invisível entre o real e a fantasia.

O mundo, para a tribo, é visto como um complexo de


misteriosas ligações, muitas vezes ocultas à percepção hu-
mana. Tal como os deuses ancestrais ditam o misterioso
destino, os astros, vigiados com atenção, assumem o seu
papel de marcar a passagem do tempo.

221
Rui Serra | Janeiro 2019

Nesta perspectiva, a montanha como elemento que guar-


da em si não apenas a vida, como a morte e as divindades
assimilou, também ela, um carácter divino. A montanha é
a porta entreaberta que estabelece a relação entre os dois
mundos, onde habitam os espíritos. Estas fantásticas rela-
ções simbólicas serviram como causa natural para a vene-
ração da montanha em Chichicastenango. Aqui, passa-se
mais que um espectacular mercado que às quintas-feiras
abre no cimo de uma colina. Aqui, surgem histórias de
memórias sobre invasões, deuses e todo o legado de uma
das mais inteligentes civilizações da história.

A civilização Maia.

222
Feita de memórias

A colina é, também, o locus que armazena em camadas


uma memória colectiva do povo de chichi.

Este conceito místico, presente nos tratados clássicos de


arquitectura e continuado por Palladio e Milizia, viria a
ser caracterizado por Aldo Rossi que lhe atribuíra um va-
lor poderosíssimo. Define-a como uma relação singular,
mas universal, entre o lugar e a arquitectura que nele ha-
bita.
(ROSSI, 2015)

A cidade concentra em si dois diferentes valores: a realida-


de e a fantasia. A primeira é referente à cidade real e con-
creta. A segunda refere-se a uma energia transcendente da
própria materialidade- uma imagem da memória da pró-
pria cidade, moldada por todos os eventos do seu passado
e fundamental para a compreensão do lugar e da cultura.

223
Rui Serra | Janeiro 2019

Em Chichicastenango, o passado foi de domínios, supe-


ração e mitos. Estas experiências riquíssimas estão enrai-
zadas num determinado tempo, lugar e cultura. Aconteci-
mentos que marcam a história e que, quando lembrados,
emanam uma aura com uma carga emotiva enorme.

Experiências que fogem ao controlo humano e que o in-


vadem de misteriosas emoções. Italo Calvino descreve o
orgulho pela vastidão ilimitada dos territórios; a noite
com o cheiro dos elefantes depois de chover e da cinza de
sândalo que arrefece nas braseiras; a vertigem que faz tre-
mer rios e as montanhas historiados em fila na exuberante
garupa dos planisférios.

(CALVINO, 2010)

224
Feita de memórias

Pontos singulares que,

de alguma forma,

parecem predestinados à história.

(ROSSI, 2015)

A identificação desses “pontos singulares” pode ser atribuída a um


acontecimento determinado que tenha sucedido naquele sítio, ou pode
depender de inúmeras causas que de alguma maneira possam ter con-
tribuído para o reconhecimento da peculiaridade do lugar.

225
Rui Serra | Janeiro 2019

Para Christopher Alexander, este quê de fantasia, esta


força transcendente, que surge das emoções que o espaço
transmite, trata-se de um carácter sem nome que torna o
lugar único e insubstituível.

Este arrepio que nos percorre a espinha quando nos ve-


mos perante uma presença simbólica. A vibração sentida
no decorrer do devaneio que o lugar nos causa é a valida-
ção da descoberta de uma entidade que governa a obra, o
fantasma. A esta individualidade, a este carácter único que
se manifesta como uma autêntica amizade, Norberg-S-
chulz intitulou de Genius Loci. O espírito do lugar.

A arquitectura como entidade portadora de uma alma. E


é essa alma que lhe confere uma morada e a eleva a um
espaço sagrado.

(ABREU, 2007)

226
Feita de memórias

(...) é disto que a cidade é feita, (...) das relações entre as


medidas do seu espaço e os acontecimentos do seu pas-
sado.

(CALVINO, 2010 Pp. 14)

227
Rui Serra | Janeiro 2019

228
Feita de memórias

7. sobre o horror de uma masmorra


e a alegria de uma taberna

229
Rui Serra | Janeiro 2019

All the pleasures of the intellect arise from the association


of ideas.

(KNIGHT, 1806)

230
Feita de memórias

231
Rui Serra | Janeiro 2019

Carácter O cemitério esconde significados ocultos.

A sua função de acolher os antepassados, esconde, por


trás, um universo inteiro de símbolos e caracteres. É o
lugar da memória, seja individual, seja colectiva. Guarda
em si a história de uma cultura através dos tempos e re-
vela-nos a sua identidade. Por vezes, é também capaz de
incorporar o lugar de templo e dar espaço a rituais que
invocam as divindades. Realidades que se escondem, mas
que surgem em leves detalhes capazes de transcender o
lugar físico.

232
Feita de memórias

No entanto, o Homem, mesmo através de circuitos in-


conscientes da mente, tem o poder de conferir distintos
carácteres a distintos lugares. O homem relaciona-se com
os espaços que o rodeiam. Associa-os a experiências e a
memórias. O subconsciente, talvez movido pela experi-
ência de um sentimento que o espaço causa em si desde
os primórdios, talvez intimidado pela sombra que habita
o espaço, acabou por eleger um carácter também ao ce-
mitério. É o lugar da perda, da saudade, do lúgubre. Da
sombra fria e da noite escura. O lugar do derradeiro e des-
conhecido final. Este carácter é atribuído pela experiência
da forma e pela função que o acolhe.

Assim, o lugar associa-se a um carácter funesto.

233
Rui Serra | Janeiro 2019

O cemitério, de ambiente melancólico e realidade tensa.

O cemitério, lugar de tristes lápides e pesadas campas.

O cemitério, lugar que desespera por um novo carácter.

Uma nova identidade.

234
Feita de memórias

O carácter é responsável pelas emoções. A sua manipu-


lação, pelas mãos do arquitecto, cria relações e molda a
experiência. O impacto que ousa criar varia entre o medo
e horror se é uma masmorra, reverência se é uma igreja,
respeito pelo poder do estado se é um palácio governa-
mental, piedade se é uma tumba, carinho se é uma resi-
dência, alegria se é uma taberna.
(LOOS, 1943)

Será então possível manipular estas características que


associam o espaço da morte essencialmente à perda e à
tristeza e, com isso, moldar o seu carácter?

235
Rui Serra | Janeiro 2019

Deturpar uma imagem pré-estabelecida e que, serena,


ameaçava manter-se no inconsciente das sociedades era,
agora, uma intenção que se via como necessária para rom-
per com o carácter descrito.

Aldo Rossi dava um passo firme no que viria a ser a nova


abordagem.

Uma nova ideia.

A descaracterização do lugar da morte, para um novo


carácter, mais natural, ganhava novos contornos com o
desenho do cemitério de San Cataldo. A manipulação da
identidade do lugar foi pensada através de novas formas
que, apesar de não estarem ao alcance de interferir na
identidade do corpo social, eram possuidoras do poder
necessário para atenuar a imagem de um espaço outrora
frio e pesado.

236
Feita de memórias

237
Rui Serra | Janeiro 2019

As formas, provenientes de arquétipos eternizados por


C. Jung, permitiam ao mesmo tempo uma nova liberdade
para o desenho do espaço da morte e evitavam uma im-
posição de formas agressivas e alienígenas, nuas de simbo-
logias e de ligações com a memória e o inconsciente. Os
arquétipos conferem uma imagem que a mente compreen-
de como familiar e, assim, substituíam os elementos que
lhe conferiam o anterior carácter e carregavam em si uma
memória colectiva relativa à passagem do tempo, tocando
na sensibilidade do individuo e do seu percurso enquanto
ser que habita este mundo.

238
Feita de memórias

239
Rui Serra | Janeiro 2019

História 1971 foi o ano da metamorfose. A oportunidade surgiu


num concurso em que Aldo Rossi, junto a Gianni Bra-
ghieri uniam esforços em busca de um imaginário que am-
bicionava alterar o que até então estava consolidado como
a identidade do lugar da morte. A proposta convenceu os
críticos e os jurados e, sete anos passados, viria a elevar-se
em Modena uma nova face do lugar do silêncio. A casa
dos mortos.

Rossi serve-se da arquitectura como ferramenta para ex-


pressar as suas memórias. O seu passado é recordado com
uma certa melancolia e os seus projectos são um reflexo
das suas viagens e do conhecimento acumulado. A sua
infância, os estudos, as leituras e as memórias de variadas
experiências escritas que eternizou em livros suportam as
evidentes analogias que, por sua vez, suportam a identida-
de do lugar. São os caracteres ocultos que lhe conferem a
identidade ao mesmo tempo que a forma se transforma e
distancia do cemitério comum.

240
Feita de memórias

Para a nova face, Rossi, procurou uma nova identidade.


A imagem da morte e o seu carácter funesto pediam uma
nova abordagem.

Compreendida a realidade, a subversão do espaço torna-


va-se evidente e necessária. Os elementos que se associa-
vam a esse carácter eram abandonados e assim cresceria
uma nova identidade. Aqui, em Modena, não há lapides.
Não há campas nem jazigos. As pessoas não repousam
sob o solo nem ficam à mercê de intempéries. Aqui, em
Modena, não habita o lúgubre.

241
Rui Serra | Janeiro 2019

242
Feita de memórias

A procura pela génese despertava um enorme interesse no


arquitecto. O mergulho na origem da história e da evolu-
ção serviriam como alicerces que, aliando-se à memória,
revestiria o projecto de analogias. Percebeu que o elemen-
to da tumba em nada se distinguia do elemento da casa
e o que era a casa dos vivos seria também o protótipo da
casa dos mortos. Nesta linha de pensamento, contrarian-
do a vertente de evidenciar o dramático destino, Rossi
ambiciona expressar a passagem do tempo e as memórias
que se acumulam nessa viagem. Para isso, são elevados
dois elementos que acompanham o Homem. A casa e o
trabalho.

243
Rui Serra | Janeiro 2019

A casa como involucro onde no seu interior guarda a iden-


tidade de quem lá habita. Não só a identidade, como tam-
bém as suas memórias e a sua origem. A essência do Ho-
mem no seu esconderijo. Esta maravilhosa imagem é-nos
sugerida por Victor Hugo que descreve a íntima relação
entre Quasímodo e Notre Dame. A sua mítica morada.

(ABREU, 2007)

244
Feita de memórias

Notre Dame, à medida que ele [Quasímodo] crescia e se


desenvolvia, fora sucessivamente para ele o ovo, o ninho, a
casa, a pátria, o universo. [...].

Havia uma espécie de harmonia misteriosa e pré-existente


entre aquela criatura e aquele edifício. [...].

Tinha-se formado não sei que laço íntimo, que prendia


o homúnculo à igreja. [...Uma] união singular, simétrica,
imediata, quase consubstancial, de um homem a um edi-
fício. [...].

Era asua morada, a sua toca, o seu invólucro. Havia entre


a velha igreja e ele uma simpatia instintiva e tão profunda,
tantas afinidades magnéticas, tantas afinidades materiais,
que di-lo-iam aderido ao templo como a tartaruga à cara-
paça. A rugosa catedral era a sua casa.

Victor Hugo

(ABREU, 2007 Pp.179)

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Rui Serra | Janeiro 2019

A casa como morada. O lugar que nos protege e reúne as


condições para que o Homem possa ser quem é, na sua
essência. Na sua essência, desempenha dois papeis funda-
mentais ao Homem: o acolhimento e o lançamento para
o mundo.

No primeiro momento recolhe-se e guarda-nos no seu in-


terior, protege o corpo e a mente e funciona como porto
de abrigo. É aqui que obtemos o aconchego que inces-
santemente procuramos e é aqui que acontece o encontro
com a própria consciência.

Num segundo momento transfigura-se para o que se


pode comparar a um trampolim que nos lança para o des-
conhecido.

A casa de partida é a mesma que a casa de chegada.

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Feita de memórias

Broch, compreendendo o efeito da casa enquanto morada,


contempla-a num outro feito. O efeito de suspensão do
tempo. Onde o Homem é livre da pressão do tempo e
revela a sua verdadeira essência.

Foi neste sentido que, ao longo do processo, o arquitecto


entendeu a casa como a morada do Homem, não só na
vida. Assim como a lápide que marcada para a eternidade
revela, em memória, a identidade, também a casa, enquan-
to lar, tem esse poder.

O trabalho surge na mesma sequência.

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Rui Serra | Janeiro 2019

O segundo elemento que, na ausência de casa, acompanha


o percurso, as ambições e os sonhos do Homem. Na in-
fância, a escola. Na vida adulta, o trabalho. Na velhice, a
reforma que, não só é compreendida como o final de uma
longa carreira, como também o início que determina a
irreversibilidade cruel da passagem do tempo.

Um conceito que acompanha as evoluções da vida. As eta-


pas da vida convergem com as etapas da carreira e consti-
tuem marcas temporais que localizam as memórias indi-
viduais. É comum, na busca da localização temporal de
uma lembrança, associar-se o tempo de determinada expe-
riência a eventos na carreira. Uma experiência intensa que
reservou em si o direito de pertencer às nossas memórias
é lembrada através de associações com a vida profissional.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

O cubo vermelho que se impõe empresta a forma ao ele-


mento da casa.

Sem teto que cubra o vazio interior, mantem uma relação


visual com o céu mediterrâneo que facilmente se transfor-
ma num poema entre a terra e um céu sagrado que se mis-
tura com o paraíso. O espaço físico e o espaço espiritual.
Nas suas vermelhas paredes, desenha uma rígida sequên-
cia de simples vãos. Livres de qualquer ornamento evocam
uma memória aos Homens que perderam a vida na guerra
através da metáfora de uma casa em ruínas. O cubo, em
ruínas, é a analogia da morte no próprio lugar da morte.

No seu interior, o pátio governa o espaço muralhado


por longas galerias que se encostam às paredes do cubo.
Munidas de escadarias metálicas, o percurso é desenhado
em ascensão aos céus, enquanto que os vãos são cercados
por vazios que vão sendo preenchidos com as vítimas de
guerra.
Vazios que se preenchem.

De memórias.

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Feita de memórias

Os paralelepípedos limitam o espaço. extensos volumes


que, desta vez, emprestam a forma à analogia ao traba-
lho. O desenho, pensado como uma fábrica, é sustentado
por longas fachadas que suportam uma leve cobertura que
aponta aos céus com duas águas. A ordem reina também
aqui. O desenho extremamente organizado e metódico
traça um percurso pelas urnas que abraçam as galerias. A
luz, proveniente de rasgos no volume, embala a caminhada
a um ritmo que se confunde com as passadas. No fim da
galeria, uma janela. A luz ao fundo como porta para o
mundo espiritual é mais uma das analogias ocultas que
habitam na extraordinária mente de Aldo Rossi e confe-
rem ao espaço a consciência de um irremediável fim.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Atrás do Cubo, um triângulo.

Longos e gémeos volumes que, circunscritos num trian-


gulo, se organizam paralelamente e dariam lugar aos ossá-
rios. O triângulo pousa a base na direcção do cubo e, tal
como uma seta, encaminha-nos pela avenida que divide,
em dois, as esguias formas que o compõem. As formas,
que de certa maneira sugerem uma relação osteológica,
criam uma dinâmica à medida que se vão elevando suces-
sivamente, aproximando-nos de um aguardado e poderoso
desenlace que culmina num enorme cone que se ergue por
entre as nuvens.

A coluna vertebral, que se apoia na casa e nos apresenta o


final. Que nos apresenta a torre.

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Feita de memórias

A torre, nunca construída, é desenhada como a chaminé


de uma fábrica deserta que assume a função de fossa co-
mum. Em memória aos oprimidos, os remorsos ditaram o
monumento mais alto de toda a composição, estabelecen-
do assim o final de um percurso.

Um projecto, inundado em significados ocultos que não


podem ser ignorados reinterpretava o lugar da morte e
guardava ainda uma última analogia. Um percurso exímio
que pretendia reflectir uma viagem que se compara às ex-
periências entre a vida e a morte. A analogia final que se
relaciona com culturas antigas e mitológicas.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

O cemitério não é apenas o lugar onde repousam os ante-


passados. Este lugar místico invade a mente num encontro
entre a memória colectiva e a memória individual.

A memória surge de eventos sociais, culturais e, gravada


na nossa mente, é despoletada pelo lugar que serviu de
palco a tais acontecimentos. No entanto, Rossi, deparou-
-se com um contratempo. Modena não era possuidora de
qualquer memória histórica ou sequer bagagem emocio-
nal, para os italianos, que pudesse ser evocada.

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Feita de memórias

O cemitério representa a porta de um desconhecido


mundo. A sua imagem, tanto quanto a sua função, não
apresenta nada de elegante ou atraente. Coube a Rossi
responder perante esta caracterização e, através de uma
poderosa imagem associada a memórias e emoções rasgava
completamente com um estereotipo, procurando subver-
ter o carácter original. O espaço da morte é totalmen-
te desmontado e desmaterializado. Os simples volumes
como o cubo, o paralelepípedo e o cone, criam um jogo
de arquétipos que se unem numa composição cheia de
harmonia e analogias que chamam a si uma panóplia de
recordações referentes à morada, à identidade e ao percur-
so e substituíam a sepultura, a campa e o jazigo.

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Rui Serra | Janeiro 2019

O Homem identifica um lugar consoante a imagem com


que este se apresenta. Rossi entendeu que, alterando a
imagem física de um espaço da cidade, detinha o poder
de penetrar na memória colectiva do corpo social, alte-
rando-a.

Rossi usou a memória para manipular o espaço. Serviu-se


da imagem e atenuou um preconceito revolucionando a
imagem do espaço da morte.

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Feita de memórias

De um devaneio, uma ideia

De uma ideia, uma porta entreaberta

Depois da forma, as palavras.

As requintadas e sensíveis analogias que nos levam a viajar


na memória e onde encontramos uma correspondência
sublime que nos confirma que o que repousa diante dos
nossos humildes olhos não é mais que uma obra de arte.

Histórias e contos de múltiplos significados capazes de


atravessar as palavras e as matérias e fazer transcender uma
obra a um patamar onírico. Capaz de comunicar com o
nosso íntimo.

Capaz de nos tocar.

Qual é , afinal, o poder de uma ideia?

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Feita de memórias

8. feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Ao amanhecer, disse:

— Sire, já falei de todas as cidades que conheço.

— Resta uma que você jamais menciona.

Marco Polo abaixou a cabeça.

— Veneza — disse o Khan.

Marco sorriu. — E de que outra cidade imagina que eu


estava falando?

O imperador não se afetou. — No entanto, você nunca


citou o seu nome.

E Polo: — Todas as vezes que descrevo uma cidade digo


algo a respeito de Veneza.

(CALVINO, 2010)

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Feita de memórias

Agora, vou-vos contar a história sobre um gesto, que tem esta coisa admirável
de abrir uma porta que se julgava entreaberta.

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Começamos por Lisboa, onde o viajante é seduzido a co-


nhecer a cidade por velhos postais de humildes molduras
que a representam num passado longínquo. A mesma ave-
nida com carroças movidas a cavalos, onde o tempo deu
lugar a uma estação de autocarros. A calçada no lugar do
alcatrão. Modestos degraus por onde brincavam as crian-
ças, agora um parque automóvel. E a sincera casa que de
noite respirava fado deu lugar às luzes intensas de uma
discoteca.

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Feita de memórias

Quem lá nasceu diz que a conhece como as rugas das suas


ásperas mãos e que, em noites atribuladas, imagina que a
percorre pelas suas estreitas ruas enfeitadas pela roupa que
balança levemente nos estendais. Recordam-se caminhos
mágicos que escondem inesperados panoramas. Numa es-
quina, a cadeira do barbeiro antecede as bancadas do mer-
cado replectas de cores intensas de alegres verduras. Na
viagem, contam-se trinta e duas portas que se abrem para
o Rio e outras catorze que se abrem para o vale. Numa
colina acompanhada por uma muralha e um punhado de
torres vê-se o encontro do mar com o rio e num quiosque,
os jornais que contam histórias descansam empilhados.

Uns sobre os outros.

Nestas ruas de lembranças, a cidade nunca muda.

Aquela cidade ainda existe em quem ousa recordar.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Para não decepcionar os viajantes, conta-se um mito. Lis-


boa, a cidade das sete colinas.

Mito esse que teve origem nos Romanos. Que de conquis-


ta em conquista se depararam com a romântica Lisboa.
Curiosos e certamente perplexos, viram na acidentada
cidade semelhanças com a capital do glorioso império,
nascido entre sete colinas, e sem demoras a baptizaram
de Lisboa das sete colinas. Colinas que a viram crescer e
guardam em si testemunhos históricos.

São colinas. E são sete.


Encantadoras como sonhos, dizem.

E que apaixonam viajantes.

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Feita de memórias

Acima, a serra.

O mais alto lugar da cidade ousa tocar o céu e tem de seu


nome Monsanto. Onde nos pequenos e degradados pos-
tais se cobre apenas de leves searas e pontuais moinhos.

Não passava de uma imensa e nua serra que relembrava as


bárbaras invasões Romanas que outrora varreram a coli-
na de destruição, onde apenas restou, na base da encosta,
vestígios de um ancestral povoado neolítico de Vila Pouca
que atribuía à colina a noção de espaço sagrado, relatam
os velhos moradores.

Mãe de todas as colinas, sonhava ,esquecida, com míticos


bosques que dançam ao som do vento.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Até ao séc. XX, que, a mando de Duarte Pacheco e pelas


mãos de Keil do Amaral e Ribeiro Telles se deu início
à ilha verde que detinha o poder de, por um aqueduto
lendário, fornecer da mais pura água e, agora, do mais
puro ar.

A floresta que descansa no cume da serra cumprimenta a


cidade todas as manhãs e guarda em si o sol que se escon-
de até ao amanhecer seguinte.

A sua imensidão e os seus restritos acessos acolheram os


fantasmas e elevaram-na a um espaço de reflexão e isola-
mento à vista da cidade.

Sobre as colinas romanas, um Monte


Olimpo.

268
Feita de memórias

Esta imensidão surge de um conjunto de sensações que


não derivam realmente de conhecimentos de geografia,
mas antes, de imagens que nos surgem nos sonhos e nos
arquétipos do bosque. As impressões não mentem. A en-
trada no bosque revela-se como um mergulho num novo
mundo irreal.

Em breve, se não soubermos onde vamos, já não sabere-


mos onde estamos.
( BACHELARD, 1994)

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Rui Serra | Janeiro 2019

Afinal, do que se trata esta imensidão?

Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filo-


sófica do devaneio. O devaneio alimenta-se de espetácu-
los variados; mas por uma espécie de inclinação inerente,
ele contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza
determina uma atitude tão especial, um estado de alma
tao particular que o devaneio coloca o sonhador fora do
mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo
do infinito.

No refúgio da lembrança. Engolidos pela imensidão e


longe da imersão de estímulos da sociedade moderna, po-
demos ambicionar uma renovação na simples contempla-
ção de uma grandeza que nos guarda.

( BACHELARD, 1994)

Sentimos a ascensão a um ser que humilde-


mente admira e sente.

270
Feita de memórias

As sensações são diversas, ambíguas e imprevisíveis. A


floresta carrega em si o mistério do infinito que, coberto
por um véu de troncos e galhos, cega os olhos e liberta
o gesto. E isto, por si só, é um verdadeiro transcendente
psíquico.

Antes de nos perdermos em doces pormenores de luz e


sombra, o bosque oferece-nos a sua essência.

A floresta, tranquila, faz-se notar no silêncio coagulado


em mil hectares de verdura que permanece imóvel en-
quanto nos guia por um poema em que cada verso nos
fala da melodia de uma brisa infinita que vive na dança
das folhas das árvores ao som de mil almas. Essa melodia,
tão bela, e serena como é, não perturba o silêncio e a tran-
quilidade da nobre floresta.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A natureza apoderou-se do espaço tridimensional e con-


feriu-lhe o poder de um lugar sagrado e o espaço outrora
nu, ganhou um carácter inegável com uma atmosfera úni-
ca que o envolve.

O topo da mais alta colina guarda não só a memória co-


lectiva de um povo em cada uma das suas camadas, mas
também, mesmo para o mais cético dos homens, uma
qualidade extraordinária. Lugares sagrados, diferentes dos
outros, que parecem vindos de um outro e longínquo uni-
verso, mas que numa feliz contradição nos fazem sentir
em casa.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Neste momento, a ansiedade foi apaziguada.

A paz da floresta é para ele a paz da alma. A floresta é um


estado de alma.

( BACHELARD, 1994)

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Feita de memórias

A floresta antiga é uma imagem mítica.

Os poetas sentem-na

Com a alma de quem sonha

Este
predestinado
lugar.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A floresta mítica é ancestral. Nunca a conheci de outro


modo. Existe para lá das minhas lembranças e é protago-
nista das mais belas histórias que os avós contam. Não
me esqueci.

Esta é a minha floresta ancestral.

Ao percorrê-la, tudo era luz. E a luz, essa, era doce.

276
Feita de memórias

Os percursos que nos trazem sucessivos acontecimentos


e a súbitas revelações despertam a visão que sucumbe à
sedutora ideia de absorver o que nos rodeia e, em simultâ-
neo faz explodir memórias que suscitam emoções.

À medida que a percorremos, experiências passadas são


invocadas. Algumas, fazem parte dos arquétipos. Imagens
que possuímos desde sempre. Outras, talvez, de uma me-
mória colectiva impossível de datar. A indiferença não
existe. A arquitectura é sentimento.

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Rui Serra | Janeiro 2019

O espetáculo que as longas e esguias árvores nos oferece


parecem encaminhar-nos a um simples muro que enqua-
dra o trilho. O muro é interrompido. Os seus extremos
continuam como braços que se escondem por detrás da
infinita e enigmática natureza que nos rodeiam.

Depois do muro, um volume, um lago e uma fonte.

278
Feita de memórias

O volume, quase transparente, insinua-se entre as árvores.


Duas lâminas de betão, que parecem levitar, deixaram-se
consumir pelo tempo e pela natureza carregando musgos
que lhes conferem diferentes tonalidades. Mil tons que
flutuam de um simples e quente amarelo, pelos verdes e
até castanhos. As cores parecem não acabar e fazem pare-
cer que aquelas suaves lâminas ali nasceram. Curiosamen-
te, parecem orgulhosas por esse feito. Agora, pertencem
ao bosque.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Entre as delicadas lâminas de betão, um refinado painel


de vidro. Parece de cristal. No exterior, parece reflectir
esta maravilhosa atmosfera. No interior, parece, de qual-
quer forma mágica, conseguir aspirar a tranquilidade e o
silêncio da floresta.

Fomos recebidos pelos deuses que habitam a floresta.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Do primeiro volume, um longo braço que se estende e


que termina numa encantadora fonte. Neste momento,
o lendário aqueduto vem-nos à memória e lembramos a
história gravada nos antigos postais.

A fonte marca um início que desagua num lago. A forma


assemelha-se a uma lua nova que desceu do céu nocturno
para marcar este caminho cósmico de alinhamentos deli-
cados.

O lago audaz é um espelho. Um óculo que concede aos


poetas mergulhar um simples olhar capaz de lhes revelar a
sua própria profundidade.

A profundida do ser.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Antes disso, concede também ao universo a primordial


visão de si mesmo sobre o reflexo nas negras e ambíguas
águas. As estrelas desceram à colina numa beleza infinita.

Todas elas parecem repousar aqui.

O som da água, que de tão leve e cristalina parece voar


antes de mergulhar delicadamente no lago, é um daque-
les sons que falava anteriormente. Sons da floresta, que
não perturbam o silêncio. Neste som, a natureza parece
comunicar. Por momentos, imaginamos encantamentos
mágicos que nos contam sobre o caminho que nos espera
para lá da finíssima linha de água que ao longo dos anos
esculpiu o seu caminho e que nos promete acompanhar
nas nossas lentas e curiosas passadas.

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Feita de memórias

A água é amiga da luz e dos sons, ela carrega consigo os


seus significados.

(Borja Fernández )

A água canta. É a música que deambula pela floresta e


que dialoga com todos os elementos que pontuam o lu-
gar. A leve entoação que nos faz transcender e oferece a
companhia do espírito que ali habita. Aqui, neste universo
de complexas sensações, não falta a água que escorre e
mancha a pedra. Aqui, não falta a luz, nem falta o som,
nem tampouco a sombra que pinta o solo de formas que
lembram nuvens.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A linha de água terminou. Uma vírgula no caminho lem-


bra o alinhamento cósmico e faz-nos ver a lua em quar-
to-crescente. Diante dos nossos olhos, a casa dos deuses,
imóvel, parece pousar sobre as nuvens. A ela, acede-se a
partir de uma longa escadaria que reflecte o misticismo
da colina.

Enquanto subimos, surge na memória um outro lugar.


Depois do bosque, a colina dos deuses que habitava em
Chichicastenango. Por breves segundos recordamos a his-
tória do povo e dos seus sacrifícios.

A tensão aumenta.

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Feita de memórias

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Feita de memórias

Questionamo-nos sobre as memórias que nos invadem e


sobre o carácter do lugar que visitamos enquanto o per-
curso vai narrando, sem pressas, uma história.

A ingreme subida é acompanhada pelo exaltar do coração.

Contrai.
Dilata.
Desperta
um suspense dentro dele ao observar duas finas e delica-
das torres que surgem entre os ramos. Os últimos degraus
aproximam-nos da ambicionada aparição.

Um arrepio sobe pela espinha.

A brisa e a luz intensificam-se quando finalmente nos en-


contramos diante do culminar da caminhada.

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Feita de memórias

Tal e qual o Santo Graal, duas intensas torres possuem a


qualidade que lhe dá a capacidade de evocar uma imagem
no imaginário. Trata-se do portal para o imaginário de um
mundo novo.

Abismado numa estática veneração, o poeta suspende a


sua perpétua inquietação como se o mundo inteiro ousas-
se desaparecer diante dos seus arregalados olhos, para lá
dos limites do portal.

O cemitério dá-se a conhecer. Os alinhamentos, o equilí-


brio, a simetria e as formas puras revelam-nos uma iden-
tidade. O betão que o reveste é semelhante ao descrito no
primeiro volume que nos recebe.

O tempo vive nesse envelhecido betão.

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Feita de memórias

A lua cheia recebe-nos com a memória de uma civilização.

Uma poesia imensa numa forma.

Apesar de simétricas, as torres suportam a complexidade e


a contradição de que nos fala Robert Venturi.

San Cataldo reclama por uma homenagem e, também


aqui, o percurso trata de uma clara analogia às diversas
fases da vida.

Num início, o átrio. O alto pé-direito é abraçado por uma


majestosa cúpula que no seu ponto mais alto se rompe
por um óculo. O olho do mundo desenha todo o esquele-
to até ao topo e, num relance, mostra-nos o caminho que
nos espera até ao fim.

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Feita de memórias

Quase de imediato, o poeta é seduzido por um espontâ-


neo jardim que o atrai numa aparente estrutura que flutua
de tão leve aparência e que nos transporta para a nossa
infância. Os cheiros, as cores, a pureza. Um baú de me-
mórias que se pensava perdido num remoto passado.

De volta ao interior, a longa subida revela-nos a luz e a


sombra que vão intercalando e sugerem o dia e a noite
que tomamos como garantida. Aqui, no interior do cemi-
tério, pleno de dramatismo, a textura assume-se como o
elemento que detém o poder de recordar outros tempos.
Na penumbra, o betão cru, iluminado apenas pela luz que
provém do topo, mostra-nos a casa dos nossos antepas-
sados.

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Rui Serra | Janeiro 2019

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Feita de memórias

A cofragem queimada cristalizou a matéria e o interior re-


veste-se de uma poesia comovente. A textura assemelha-se
a uma gruta. Rugosa. Irregular. Árida e tosca.

Natural.

Deslumbrante.

Imagens das mais primitivas grutas, onde permanecem os


antepassados de legados inesquecíveis, passam pela mente
por breves segundos antes de ser suplantada pela ideia de
algo superior.

Uma alegoria.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A alegoria da Caverna pensada por um eterno sábio.

O reflexo do génio de Platão conta-nos sobre uma alegada


conversa entre Sócrates, seu mentor, e Glauco, seu irmão,
numa maravilhosa analogia que nos toca. Trata-se da in-
cessável busca por respostas que nos permitem superar,
de alguma forma, a ignorância que nos assombra sobre
o mundo que habitamos e de que nada sabemos. Uma
fresca perspectiva. A elevação do espírito por um ambi-
cionado conhecimento.

A atmosfera proporciona um momento de meditação.

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Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Por esta altura, aproxima-se o topo do monumento. De-


pois da caverna que cuidadosamente guarda os nossos an-
tepassados, uma pausa. A analogia sugere um fim e lem-
bramos a velhice. Aqui, um simples círculo interrompe
a fachada e permite a desejada contemplação da cidade.

O círculo trata o fim de um ciclo.

O poeta pára por um momento. Nas nuvens, observa a


cidade e lembra o seu percurso.

300
Feita de memórias

301
Rui Serra | Janeiro 2019

Num primeiro instante, recorda a vida que teve. A nostal-


gia de infância que nunca o deixou de acompanhar exige
certamente mais tempo, antes que a mente sugira memó-
rias colectivas da cidade que o viu nascer. A cidade dos
seus pais. Dos seus avós. De todos os seus antepassados
que acredita que o protegem tal como faziam na antiga
Roma.

Lisboa,
a cidade que nasceu em 7 colinas,
guarda uma

para a lembrança.

302
Feita de memórias

Uma longa espiral, que de preciosos degraus, nos aguarda,


antes de nos acompanhar ao topo. A passada continua
lenta. Aos olhos, a luz natural que nos aquece vinda dos
céus parece mais ofuscante que nunca. Pensei numa luz
sagrada que cega quem ambiciona tocar os deuses. Por
impulso, a cabeça baixa. A vénia agrada aos deuses que
nos abrem as portas ao derradeiro final.

Um majestoso raio de luz rompe a húmida penumbra e,


perante os incrédulos olhos, forma-se uma aurora boreal.

303
Rui Serra | Janeiro 2019

O inexplicável fenómeno baptizado por Galileu Galilei


presta homenagem à deusa romana do amanhecer e ao
deus grego dos ventos que embalam espíritos. A forma,
caracteriza-se por suaves ondulações de meigos tons que
pairam no espaço. Sente-se uma paz que inunda o pre-
cioso lugar. A poesia é inexplicável e isso não preocupa o
maravilhado poeta que se resigna, humildemente, a sentir
o espaço. Medita. A cortina de luz que viaja imprevisível
e difusa escreve em si milhares de valiosas lendas escandi-
navas de uma beleza imensa.

Condenado ao indubitável insucesso de, por simples pala-


vras, aproximar-me do encanto de milhares de lendas que
aqui se pintam, tentarei, inutilmente, descrever invulgares
origens do relâmpago de arenque.

304
Feita de memórias

Aqui, imaginavam nos deslumbrantes raios os reflexos de


vastos cardumes de arenques que reflectiam para os céus
nocturnos as radiantes escamas que rasgam oceanos.

Noutra lenda, o nome que significa fogos de raposa fa-


la-nos de raposas que, feitas de fogo, corriam pelos céus
polares e deixavam um rasto de faíscas que hipnotizavam
civilizações inteiras.

Noutras, as misteriosas luzes, acreditava-se serem os seus


ancestrais que, ora dançavam, em alegres rituais, ao redor
do fogo, ora jogavam futebol com uma caveira de morsa
pelos profundos céus.

Por fim, uma das mais belas, fala-nos sobre as Valquírias,


mitológicas virgens da guerra que das suas armaduras der-
ramam as luzes do norte.

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Rui Serra | Janeiro 2019

A lenda lembra as virgens

De fantásticos cavalos alados

Pelas míticas e encantadoras nuvens

Em busca dos infortunados

De guerra,

soldados

306
Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Olhei,

Nos ceús, o vento

Livre, carregava nos braços um imenso fogo.

De intensas brasas e labaredas

A luz de sua cor âmbar

Capaz do mundo

deslumbrar.

308
Feita de memórias

Valquírias. As virgens guerreiras da mitologia nórdica que


serviam a divindade que criara o mundo tal e qual como
o conhecemos. Criara o dia, assim como a noite. Criador
de todos os seres, Odin dono de Valhala, palácio de As-
gard. Apreciador de vastos banquetes e festins regados a
hidromel, batalhas e duelos, tinha em Valhala, para além
de quinhentas e quarenta portas, o seu principal palco,
onde os protagonistas não eram mais que heróis mortos
em sangrentas batalhas na Terra.

Para agradar a Odin, as virgens divindades percorriam ex-


tensos campos de batalha na incessante busca pelos mais
valiosos combatentes que caíam em combate. Conta a
lenda que às mensageiras, teria sido atribuída a exigente
responsabilidade de preparar um exército dos mais lendá-
rios guerreiros e de preparar o dia da decisiva batalha do
fim do mundo em que enfrentariam, olhos nos olhos, os
descendentes de Ymir.

309
Rui Serra | Janeiro 2019

De armaduras inquebráveis e sobre os seus mágicos cor-


céis, era o brilho de seus escudos que produzia, dizem os
nórdicos, as deslumbrantes formas que se pintavam nos
céus.

O conto das Valquírias, donas da Aurora Boreal, leva-nos,


inevitavelmente, às misteriosas Nornas.

As três anciãs de Asgard detinham um épico poder.

Contam os antigos que nasceram de uma particular fonte.


A fonte Urd. Fonte de toda a vida e por onde cresce a ár-
vore colossal Yggdrasill, o eixo do mundo guardado pelas
três anciãs. Segundo a lenda, todas as manhãs, para que a
folhagem permaneça verde e vigorosa, as três irmãs fazem
chover sobre as ancestrais raízes, um jarro de hidromel, a
bebida dos deuses. Urd, a mais velha das irmãs, desem-
penha o papel de guardiã dos tempos Passados. A idade
conta números exorbitantes e guarda todos os segredos
ancestrais. Verdante, assume a forma de Mãe e observa
atentamente o Presente.

310
Feita de memórias

Skuld, a virgem, guarda a sete chaves um pergaminho que


abraça as preciosas profecias do futuro. Um dos maiores
poderes de todo o universo depende das ágeis mãos de
Skuld. O destino dos homens, mas, sobretudo, o destino
dos deuses.

As três anciãs de Asgard detinham um épico poder. O


poder de tecer o mais valioso bem.

O poder sobre o tempo.

311
Rui Serra | Janeiro 2019

tempo
“Tempo. Um continuum não-espacial em que os even-
tos ocorrem numa sucessão aparentemente irreversível de
passado, presente e futuro. (1) Um período ou espaço
limitado de existência contínua, como o intervalo entre
dois eventos sucessivos. (2)

Tempo. É, para falar de maneira não rigorosa, o passo da


mudança das coisas. (Isto é, o tempo não é absoluto, po-
rém relacional). Distinguem-se dois conceitos de tempo:
o físico (ou ontológico) e o perceptual (ou psicológico).
O tempo físico é, em geral, encarado como algo objetivo,
enquanto o tempo psicológico é, por definição, tempo
(ou então duração) percebido por um sujeito. (3) “

(1) American Heritage Dictionary

(2) The Oxford English Dictionary

(3) BUNGE, M. Dicionário de Filosofia. Tradução de Gita K.


Guinsburg. São Paulo: Perspectivas, 2002. (Coleção Big Bang)

312
Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

O tempo. Este mágico e complexo conceito passeia pela


existência e está na origem da angústia da existência que
tanto fala a poética filosofia.

O conceito divide-se em dois tempos.

O tempo, de poder infinito, que transcende tudo e que


envolve toda a existência e vulgariza a vida humana. Este
é o tempo das cavernas, o tempo que marca datas de im-
portantes batalhas, o tempo de obscenas pirâmides no
vazio deserto ao qual o tempo sopra sobre a leve areia. É
o tempo que se quantifica em horas, anos, séculos até ao
mais longínquo milénio. É este tempo que está presente
nos relógios de sol, que faz correr a água das clepsidras e
que move os ponteiros os descomunais ponteiros do big
ben. Ultimamente, o tempo que controla a vida com base
numa cronologia assente nos alicerces dos fenómenos da
natureza.

314
Feita de memórias

Um outro tempo esconde-se por de trás da mais previsível


descrição. O tempo imanente. É o tempo que sentimos e
experienciamos. Um tempo subjectivo que, sendo impos-
sível de quantificar, flutua sobre a linha da cronologia, im-
previsível. Um tempo sentido. Alonga e contrai-se. Que
passa e é sentido, consoante o espírito de quem o sente.

Diferente do tempo cronológico, aqui, um segundo tem


em si o tempo da eternidade e uma vida inteira pode resu-
mir-se a um extraordinário momento.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Existimos no tempo. Existimos nesta contínua experiên-


cia contextualizada num passado, num presente e num
futuro. A existência é temporal e, assim, cada ser reflecte
um espaço de tempo. A existência é tempo em constante
formação. Tempo que se faz.

A existência é tempo e o tempo permite manifestações da


experiência.

Sentir o tempo é, assim, sentirmo-nos numa existência.

Sentirmo-nos num tempo.

316
Feita de memórias

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Rui Serra | Janeiro 2019

Lembrando Heidegger, a temporalidade ocorre no delica-


do campo da consciência. O passado e o futuro aliam-se
ao presente e o Ser, consciente como é, projecta a morte
como limite do futuro. O Ser para a morte.

(HEIDEGGER, 1989)

O nebuloso tempo está em constante movimento. Talvez


passe por aí a interrogação e o mistério que legitima toda
a filosofia

- a angústia do nada.

A angústia do tempo que conduz á morte.

(BROCH, 1965)

318
Feita de memórias

Let me forget about today until tomorrow

(BOB DYLAN, 1965)

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Rui Serra | Janeiro 2019

Vivemos num lançamento constante num ambicionado


futuro. A ansiedade é permanente. Desde a ambição dos
nossos olhos em prever o passo seguinte, ao que se seguirá
para além de uma porta, passando pela tentativa de pro-
jectar o dia e acabando num planeamento de toda a vida.

A ansiedade.

A angústia.

O sentimento provocado pelo tempo que passa, irreversí-


vel, e não volta mais pinta-se numa imagem implacável de
Cronos a devorar os seus indefesos filhos.

320
Feita de memórias

Essa crua realidade, retratada por Goya, não é mais do


que a mitológica imagem de um tempo, que devora o ser,
assim que ele toma consciência do próprio tempo. Uma
experiência do Eu, quase quotidiana, presente na mente
em tudo o que fazemos.
(ABREU, 2007)

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Rui Serra | Janeiro 2019

Talvez fosse ocioso discutir este assunto, caso por detrás


dele se não escondesse o problema que só por si legitima
toda a filosofia: a angústia do nada, a angústia do tempo
que conduz à morte. E talvez toda esta inquietação inspi-
rada pela má arquitectura, que faz com que eu me encara-
cole no meu canto, talvez toda esta inquietação mais não
seja do que esta angústia. A verdade é que, faça o homem
o que fizer, tudo que ele faz tem por fim anular o tempo,
suprimi lo, e a esta supressão se chama espaço.

A própria música, que existe unicamente no tempo e que


enche o espaço, transmuda o tempo em espaço, e a teo-
ria com mais verosimilhança é que todo o pensamento
se realiza no espaço e que o processo do pensamento re-
presenta uma amálgama de espaços lógicos de múltiplas
dimensões, indizivelmente complicados. Mas, se assim é,
igualmente pode admitir se que todas estas manifestações
que se relacionam imediatamente com o espaço recebem
em apanágio uma significação e uma evidência sensível,
que não pertencem a mais nenhuma actividade humana.

(BROCH, 1965. pp. 432 433)

322
Feita de memórias

A angústia causada pela continuidade do tempo motivou


o homem a ambicionar algo que o fizesse esquecer. Esque-
cer o tempo e esquecer a sua finitude. Algo que detenha o
poder de suspensão do tempo que Broch refere.

Assim, o homem manifesta-se. Ele procura incutir em de-


terminadas coisas um significado pessoal e, neste sentido,
essas mesmas coisas transformam-se em repositórios. Re-
positórios de consciência pessoal, de símbolos e de am-
bições do Eu. Algo que o represente e que sobreviva ao
profético tempo. No fundo, um eco de si próprio perante
os outros. Um lugar de encontro.

Uma marca de si,

no tempo.

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Rui Serra | Janeiro 2019

O tempo vincula-se a um lugar.


Um lugar é uma pausa no tempo.
(TUAN, 1997)

Talvez seja esse o motivo da empatia que sentimos ao


experienciar uma ruína.

324
Feita de memórias

O tempo marca a sua passagem nos vestígios que deixa


no espaço. Essas marcas representam a história do lugar, o
carácter do lugar e todos os acontecimentos que o marca-
ram. O que já foi e o que é. A sua identidade.

Os lugares definem-se pela sua história. Pelo que passou.


Pelos seus marcos. Assim, torna-se inevitável considerar
que o tempo modifica as coisas. O tempo dá carácter aos
lugares e permite, então, transformar espaços, em lugares.

Neste sentido, o conceito de lugar é inerente a um pro-


duto da mente. Contudo, mais intenso na medida em que
a experiência se realiza num “aqui e agora”. Assim, não é
relevante a duração da experiência, mas antes a sua inten-
sidade.
(HEIDEGGER, 1989)

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Rui Serra | Janeiro 2019

Tuan relaciona o tempo e o lugar em três curiosos aspec-


tos.

O tempo e o lugar adquirem uma ligação. Nesta situação,


o lugar comporta-se como um amigo de longa data. Uma
amizade que evolui e que nos acompanha. Um amigo. O
lugar que foi capaz de estabelecer uma ligação com o Eu
através do tempo que lá passámos.

O segundo lugar trata-se do mágico lugar capaz de sus-


pender o tempo.

Que nos abriga.

Que nos defende.

O refúgio que é só nosso e de mais ninguém. A casa.

326
Feita de memórias

Por fim, o lugar que nos revela o tempo. Onde ousamos


navegar na recordação de tempos passados.

O lugar das nossas memorias. A casa de infância. É a casa


dos nossos avós. A rua por onde brincámos e crescemos.
A escola antiga.

Estas características trabalham em conjunto e oferecem ao


Homem a cura da sua angústia.

Em casa, o tempo pára.

(TUAN, 1997)

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As torres levaram-nos numa viagem. Os deuses abrem-nos


o portal da memória e surge um terceiro momento. Uma
torre ímpar, diferente de qualquer outra, complecta a trí-
ade sagrada. Forma-se o intemporal triângulo usado por
tribos que, por conhecimentos inigualáveis do cosmos,
chegaram à utopia de perpetuar a sua memória.

A curiosa torre é diferente de todas as outras. Algo ima-


terial. Uma torre de sonhos e memórias compreende mi-
lhares de balões voadores que sobem lentamente e que, a
certo ponto, se perdem na confusão de estrelas que pre-
enche os céus.

Cada balão, uma memória.

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Feita de memórias

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Feita de memórias

Uma memória de quem deixou de existir no mundo mate-


rial, mas que, por enquanto, permanece viva na mente de
quem recorda. O balão é um símbolo. À vista de toda a
cidade, a torre de estrelas lembra quem é recordado e não
só. Lembra também, a quem cá permaneceu, que existe
alguém que nunca deverá ser esquecido.

Estes maravilhosos símbolos da memória nascem no cen-


tro de uma poderosa cúpula que se esconde sob o solo.

Cá em baixo, um imenso relógio de água rompe a geome-


tria da cúpula e provoca um ambiente notável, em que o
peso da água que permanece aprisionada numa cápsula
de um aparente leve vidro se parece um aquário onde na-
dam reflexos que lembram espíritos dançantes. A clepsi-
dra é o coração da ideia. No fim, anéis feitos de simples
e ordinárias gostas de água caem em todos os instantes.
Um. Outro. Um atrás do outro, vão caindo. Neste lugar,
a água cria um lugar único e maravilhoso que nos rodeia
de autênticas lágrimas que choram por quem vai e não
volta mais.

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Feita de memórias

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Light is the material of projection.

Water, the material of reflection.

what happens at the moment they collide?

(autor desconhecido)

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Feita de memórias

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O percurso da água revela-se curioso.

No momento em que finalmente se libertam do monu-


mental reservatório voam em direcção a um complexo
sistema de oleadas roldanas que a esperam para que, no
seu peso, se encontrem as forças necessários que levem a
maior das rodas dentadas a acordar do profundo sono e a
girar, lentamente.

Uma máquina perfeita.

Um relógio movido a água conta o tempo da lembrança.

Haverá poesia maior que esta?

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Feita de memórias

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Feita de memórias

A água é o combustível.

As rodas, que pausadamente giram, são o veículo que atin-


ge o ambicionado fim. Um sistema de milhares de fios
alinha-se à espera da próxima vez que as rodas ordenarem
mais uma volta. Nesse ápice, os milhares de fios soltam
um pedaço em simultâneo, tal e qual uma afinada orques-
tra que espera pelas precisas instruções das mãos de um
mágico maestro.

No centro da clepsidra, uma capela suspensa esconde-se


atrás dos deliciosos fios que surgem em seu redor e aos
quais foi designado que carregassem o peso da memória
em forma de balão.

A imagem destes fios, milimetricamente alinhados lem-


bram um conto mitológico.

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Feita de memórias

Nornas, Moiras ou Parcas.

Três diferentes culturas reconheciam poder às três irmãs


que controlavam o tempo.

Para os gregos, conhecidos sábios, as três lúgubres mulhe-


res de longas unhas e dentes grandes eram responsáveis
pelo destino. O método era simples e cada uma tinha a
oportunidade de oferecer o seu contributo. A primeira,
seria responsável por fabricar os fios, ao passo que a se-
gunda seria encarregue de tecer, restando para a última, a
fria crueldade de cortar o que seria o fio da vida. A Roda
da Fortuna era o nome da máquina responsável por de-
terminar o destino de cada indivíduo e por onde teciam
os leves e frágeis fios.

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A Roda da Fortuna seria, segundo a lenda, responsável


pelos períodos de boa ou indesejada sorte, dependendo
das voltas que dava e onde se posicionavam os fios. Em
cima, significavam um período de sorte e fortuna. Em bai-
xo, seria sinal de mau augúrio.

A mitologia Romana baptizara as três irmãs de Nona,


Décima e Morta. Nona segurava o fuso e tecia o fio que
assegurava os nascimentos. Décima, tratava o fio depois
de tecido e assegurava a sorte em vida. Morta, fazendo
justiça ao nome, seria a responsável por decidir o mo-
mento em que se cortavam os fios, determinando assim
o fim da vida.

Na capela das Moiras.

342
Feita de memórias

A analogia é visível. O fio do balão é a vida que persiste


na memória de quem fica e recorda. O fio é o seu legado
que se distancía nos ceús.

User

Maat

Re

Mery

Amum.

A lenda do faraó que persiste na memória sempre que o


seu nome é proferido interrompe o voo do balão.

A vida só termina no momento em que o último homem


que a relembre também morre. O balão é o objecto que
retém a memória e a identidade e, na ausência de alguém
que, numa eventual visita, o puxe de volta, ele perde-se nos
céus. Perde-se para sempre.

Na verdade, todos ambicionamos viver na lembrança


daqueles que ficam.

Eternos, como as estrelas.

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As gotas que fluem.

Os balões que lembram.

A memória que permanece.

Um último e secreto espaço complecta o profundo de-


senho.

A água que escorre da clepsidra guia-nos o caminho. Nes-


te precioso lugar, no Dia dos Mortos, a clepsidra derrama
a última gota antes que se volte a encher, contando, nova-
mente, o tempo que falta até ao mítico dia em que a me-
mória é protagonista. O Dia dos Mortos do ano seguinte.

A derradeira gota, de alguma forma, parece mágica. Uma


porta, que segredos vastos guarda e que nunca abre, pare-
ce ter esperado por este momento ao abrir-se, em simultâ-
neo com o momento em que a gota toca o chão. Abre-se
um mundo.

Seguindo a gota, o poeta é novamente seduzido a descer.

344
Feita de memórias

Neste lugar, onde a luz não almeja chegar, o tempo pára.

Um reservatório, tal e qual o anterior guarda em si toda a


água que caía ao longo de todos os dias em que o plane-
ta completava mais uma circunferência em torno do seu
fogo. O sol.

Em torno da água que descansa, uma leve estrutura metá-


lica de brancos andaimes sobre a qual se foi desenhando,
ao longo dos anos, um percurso até à base do reservatório.
O percurso, é um passeio que comemora a memória de
passados ancestrais.

Onde os braços da leve estrutura se encontram, encos-


tam-se diamantes. Reais diamantes que dizem ser feitos
da mesma matéria de que são feitos os antepassados e que
possuem neles, todas as memórias do universo.

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Feita de memórias

A atmosfera faz lembrar um céu à noite estrelado em


redor de uma fogueira. Aqui, nas profundezas do negro
vazio surgem os diamantes que reflectem a luz. São as
estrelas. São os astros. São o cosmos numa noite pura que
guarda os segredos que só a morte detém.

O fim de toda a experiência termina onde se começou.

Entre as árvores da floresta, uma clareira dominada pelo


desenho de Keil do Amaral que se abre e nos recebe neste
delicioso lugar que nos permite parar, permanecer e me-
ditar. Para o poeta, a experiência revelou uma intensidade
que o convida a reflectir. Lá no alto, no ponto mais alto.
Pertencemos à colina e pertencemos à cidade. O enqua-
dramento cénico leva-nos a repousar diante de uma pin-
tura romântica que estende a floresta até ao rio. As ondas
são imperceptíveis mas o reflexo do sol é visível. Poético.
Parece retirado de um sonho ou de uma longínqua me-
mória.

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A cidade que nasceu em sete colinas, não esqueceu o rio e


o final da intensa viagem não mais é a imagem da metafó-
rica porta que, finalmente, se abre.

Uma viagem ilusória pelo intangível.

Um sonho e uma melodia.

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Feita de memórias

É aqui que o poeta vive.

Este é o seu ninho.

Entre campos e colinas

Essas memórias tingidas.

É este o poder de uma ideia

Feita de memórias.

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Feita de memórias

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352
Feita de memórias

conclusão

Nunca esquecerei a história de uma linda e pequena casa


cor-de-rosa claro. Era uma casinha de pedra, olhava-me
com um ar tão afável e mirava tao orgulhosamente as suas
frias vizinhas, que o meu coração se alegrava sempre que
passava diante dela. Subitamente, na semana passada, ia
a passar na rua, olhei para a minha amiga e que ouço eu?
Um grito dilacerante: “Pintaram-me de amarelo!” Ma-
landros! Bárbaros! Não tiveram piedade de nada, nem das
colunas, nem das cornijas; eis a minha amiga amarelo-ca-
nário. Quase tive, por causa disto, um derramamento de
bílis, e até agora não tive coragem para ir ver a pobrezinha,
estropiada, pintalgada com as cores do Celeste Império.

(DOSTOIEVSKI, 2003, pp.6)

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O cemitério é o lugar mágico que nos conta a história dos


mais antigos tempos. Lê-se como um livro que nos leva
numa viagem. Fala-nos sobre personagens que elevaram
civilizações inteiras e de quem ninguém restou para recor-
dar. Neste precioso lugar, o cemitério vive de identidades,
memórias e sonhos.

Relata acontecimentos históricos, descreve minuciosa-


mente culturas e sociedades e transforma-se ele próprio
num depósito de manifestos que permanecem no tempo
eterno. Um lugar da cidade que a reflecte e a lança para
um futuro.

Apesar da magia, o espaço da morte teve origem em dra-


máticos momentos.

354
Feita de memórias

O desespero provocado pela peste marcou o lugar com


uma presença indesejada e distanciou-o da cidade. En-
cerrado em robustos muros, o lugar que outrora tinha a
capacidade de nos unir aos antepassados, era agora des-
prezado, escondido e longe.

O problema teve origem na sua génese. A criação do cemi-


tério sustenta-se sobre uma frágil estrutura. A necessidade
aliada da pressão. Juntas criaram um fantasma que ainda
permanece no pensamento do ocidente.

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Rui Serra | Janeiro 2019

O cemitério continua triste e sombrio. Os valores sagra-


dos que se contam em lendas e contos de outros tempos
vão-se perdendo lentamente e fica o permanente luto.

O espírito que o habita já não conta empolgantes his-


tórias. Em vez disso, esconde-se e encolhe-se, por detrás
do muro que o aprisionou. Trata-se de uma divindade de
carácter distorcido.

… e até agora não tive coragem para ir ver a pobrezinha…

(DOSTOIEVSKI, 2003, pp.6)

356
Feita de memórias

Em terras distantes de culturas indígenas a fantasia mis-


tura-se com o mistério. Aí, os rituais preservaram-se até
aos dias de hoje e o tabu do ocidente merece o respeito de
um olhar divino.

A morte encara um carácter distinto e a memória dos


antepassados é lembrada com orgulho em contos que se
contam ao redor de uma fogueira. As velas que brilham de
noite compõem a atmosfera e o espaço testemunha uma
experiência mágica. Nessas míticas terras, o cemitério faz
parte da essência da povoação.

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Rui Serra | Janeiro 2019

Aldo Rossi, apercebendo-se da imagem escura e melan-


cólica que habitava o espaço na europa, procurou criar
algo novo. Contrariar uma imagem que se via embutida
no cemitério tradicional e que distorcia a identidade que
o lugar da memória ambicionava era uma necessidade que
emergia na mente do arquitecto. O pensamento, claro e
objectivo, passou pela manipulação da forma típica a que
o lugar estava enclausurado, criando um lugar em que o
percurso e a experiência nos mostram uma narrativa pelo
tempo em alusão à vida.

A arrojada experiência de Rossi concluiu que a experiên-


cia do lugar está relacionada com a imagem física com que
o espaço se expressa, manipulando o carácter e os valores e
atribuindo uma relação com a cidade que se perdera pela
história. O cemitério reflecte uma identidade social. Rossi
alterou a sua imagem e revolucionou a experiência.

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Feita de memórias

Observando a história deste mítico lugar são visíveis as


correntes favoráveis, assim como os temporais de retro-
cesso.

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Com base na porta que Aldo Rossi se atreveu a abrir, sur-


ge uma pertinente questão.

Terá chegado, finalmente, a altura de se reflectir sobre o


desenho de um lugar que suspira por uma outra imagem?

A pergunta foi o início de um projecto. É sobre este pen-


samento que surge o lugar na colina de Lisboa que pro-
cura lançar para o papel um devaneio capaz de sustentar
uma abordagem renovada. Uma ideia assente nas institui-
ções humanas de Louis Kahn pretende lembrar a origem e
os valores de civilizações que se regiam pelas leis do cos-
mos e dos antepassados. Uma ideia que permite lembrar
o passado e sonhar um desejado futuro.

360
Feita de memórias

Talvez seja necessário mudar primeiro a imagem física do


lugar para que a experiência se altere e, finalmente, num
momento de sorte, se possa tocar na alma de uma socie-
dade e se alterem convicções.

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O sonhador, para o definir pormenorizadamente, não é


um homem, é uma espécie de criatura de género neutro.
Aloja-se, na maior parte do tempo, num inacessível refú-
gio, como se pretendesse até ocultar-se da luz do dia.

Porque gostará ele tanto das suas quatro paredes, mono-


tonamente pintadas de verde, sujas, tristes e enegrecidas
pelo fumo do tabaco?

(DOSTOIEVSKI, 2003, pp.31)

Ousemos sonhar.

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During the time we grow up, we


were told about one litle story.

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The story about the people after de-


ath: their spirits rise to the sky, beco-
ming a shining star. They are watching
your life, your progress as well as your
life-long career, which endow you the
motivation to face challenges.

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