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Mauro Vieira. Fonte: Gabinete do Ministro das Relações Exteriores.

ENTREVISTA
“O sectarismo que testemunhamos nos últimos anos representa
a negação da diplomacia”  228
Mauro Vieira

Ano 2 / Nº 5 / Jan-Mar 2023


ENTREVISTA

“O sectarismo
que testemunhamos nos
últimos anos representa
a negação da diplomacia”
MAURO VIEIRA

Nascido em Niterói, RJ, Mauro Vieira graduou-se em Direito pela Universidade


Federal Fluminense (1973) e Diplomacia pelo Instituto Rio Branco (1974), além de
doutorado honoris causa em Letras pela Universidade de Georgetown, em Washing-
ton DC (2014).
No Ministério das Relações Exteriores, o embaixador Vieira atuou como coorde-
nador de Atos Internacionais; assessor do secretário-geral; assessor do ministro das
Relações Exteriores; chefe de gabinete do secretário-geral; e chefe de gabinete do
ministro das Relações Exteriores.
O embaixador Vieira também trabalhou no Ministério da Ciência e Tecnologia,
como secretário-geral adjunto de Ciência e Tecnologia, e no Ministério da Previ-
dência e Assistência Social, como secretário nacional de Administração do Instituto
de Previdência Social.
No exterior, atuou como segundo-secretário da embaixada do Brasil em Washington
D.C. (1978-1982); na Missão Permanente do Brasil junto à Associação Latino-Ame-
ricana de Integração (ALADI), em Montevidéu (1982-1985), como primeiro-secre-
tário; na embaixada do Brasil na Cidade do México (1990-1992), como conselheiro;
e na embaixada do Brasil em Paris (1995-1999), como ministro conselheiro.
Foi embaixador do Brasil na Argentina (2004-2010); embaixador do Brasil nos Esta-
dos Unidos da América (2010-2015); representante permanente do Brasil nas Nações
Unidas em Nova York (2016-2020) e embaixador do Brasil na Croácia (2020-2022).
Foi ministro das Relações Exteriores do Brasil entre 2015 e 2016.

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“O sectarismo que testemunhamos nos últimos anos representa a negação da diplomacia”

Foi indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para desempenhar a função
de ministro das Relações Exteriores do Brasil, a partir de 1º de janeiro de 2023.
(Fonte: Itamaraty).
Seguem trechos da entrevista concedida por escrito aos editores da CEBRI-Revista.

Em seu discurso de posse, Vossa e da diplomacia. O sectarismo que teste-


Excelência sustentou que a ideo- munhamos nos últimos anos representa
logia da política externa para a a negação da diplomacia, é a antidiplo-
América do Sul seria a “ideolo- macia e nada tem a ver com a tradição
gia da integração”. No entanto, brasileira. A integração, o foco no inte-
em recente viagem de Lula à resse nacional e o diálogo com os par-
Argentina e Uruguai, o governo ceiros voltam, portanto, a ser elementos
uruguaio reforçou o interesse de prioritários da política externa brasileira.
negociar um acordo de livre-co-
mércio em separado com a China, O sectarismo que
o que é proibido pelas regras do
Mercosul. É possível que a parali- testemunhamos nos
sação do Mercosul tenha forçado últimos anos representa
os países menores a buscar outras
alternativas. Como Vossa Exce-
a negação da diplomacia,
lência enxerga a posição uruguaia é a antidiplomacia
e como evitar que Montevidéu se e nada tem a ver com
veja forçada a escolher entre Mer-
cosul e China? a tradição brasileira.
MAURO VIEIRA: Ao falar em “ideolo- A visita do presidente Lula a Monte-
gia da integração”, busquei retomar vidéu é um bom exemplo dessa volta
princípios caros à política externa bra- às boas tradições de diálogo. Como
sileira que foram deixados de lado nos todos sabemos, o presidente Lacalle
últimos anos, é disso que se trata. Esses Pou tem uma orientação político-i-
fundamentos foram substituídos, na deológica distinta, o que em nenhum
gestão anterior, por retórica agressiva momento impediu um diálogo franco
e por atitudes até infantis em relação a e de alto nível, inclusive na questão do
países cujos governantes tinham orien- Mercosul. A negociação dos países do
tação política e ideológica distinta à do Mercosul como bloco é um dos pila-
governo anterior. A integração é o obje- res do Tratado de Assunção, e a posi-
tivo prioritário, e eventuais divergências ção do Brasil é clara a esse respeito,
devem ser tratadas por meio da política inclusive com vistas a um futuro diá-

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logo com a China. E não se trata de O governo Biden passou por con-
uma posição somente do Brasil e da testações similares ao governo
Argentina. Há poucos dias estive em Lula em relação ao resultado elei-
Assunção, e o Paraguai também con- toral. Ambos os países sofrem com
sidera fundamental que as negociações a ascensão de grupos de extrema-
externas do Mercosul continuem a ser -direita que não aceitam os resul-
conduzidas como bloco, como prevê o tados eleitorais quando perdem.
tratado. Além disso, na visita a Mon- Vossa Excelência acredita que o
tevidéu o presidente Lula argumen- tema da defesa da democracia
tou, com razão, que estamos na reta pode aproximar os governos Biden
final de uma negociação de mais de 20 e Lula? Vossa Excelência acredita
anos com a União Europeia e que o que o relacionamento bilateral
mais prudente agora será concluir esse entre EUA e Brasil pode atingir
acordo antes de abrir outra negociação um novo patamar de cooperação
de fôlego com outra potência comer- por conta desse desafio comum?
cial, como a China. O próprio presi- MV: A visita do presidente Lula a
dente Lula indicou que há interesse Washington e as conversas mantidas na
nessa possível negociação do Mercosul Casa Branca com o presidente Biden
sobre a China. Ambos os presidentes sobre a realidade internacional e esses
mantêm aberto o canal de diálogo não fenômenos desagregadores não dei-
somente sobre o assunto, mas também xam dúvidas sobre esse desafio comum.
sobre a agenda bilateral, e prova disso Há plena consciência de que ambos os
foi a visita de três ministros uruguaios países têm um amplo espaço de coope-
a Brasília no dia 7 de março. Assim se ração nessa área e que a experiência
dá forma a esse trabalho em favor da brasileira de combate à desinformação
integração. O tempo do sectarismo é em massa, por exemplo, oferece lições
uma página virada, felizmente. a compartilhar com as democracias do
Os presidentes Lula e Lacalle Pou con- mundo, inclusive a norte-americana.
cordaram quanto à necessidade de revi- Nos meus contatos desde a posse, per-
talização do Mercosul e de seus mecanis- cebo grande respeito e admiração pela
mos. Mas é exagerado falar em paralisia. resiliência das instituições brasileiras
E quando se exagera ao falar em uma diante do forte teste de estresse que o
suposta paralisia do Mercosul, eu cos- país superou pela via eleitoral e com
tumo recomendar que olhemos os núme- um sistema de votação e apuração que
ros. Os agentes econômicos vêm desmen- é modelo. Que esse sistema tenha sido
tindo essa visão, e todos os países do bloco posto em dúvida, a partir de mentiras,
se beneficiam desses fluxos e da retomada demonstra a gravidade dos perigos que
que estamos acompanhando. enfrentamos como sociedades.

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“O sectarismo que testemunhamos nos últimos anos representa a negação da diplomacia”

Nos meus contatos desde na Blair House, onde estava hospedada


a delegação. O trabalho começou ali e
a posse, percebo grande tem sido intenso nas últimas semanas.
respeito e admiração pela Esse dado não quer dizer, no entanto,
resiliência das instituições que estamos obrigados a concordar
sempre. Brasil e Estados Unidos são
brasileiras diante do forte países relevantes, soberanos e que dia-
teste de estresse que o país logam de igual para igual. Aprendemos,
superou pela via eleitoral e ao longo da história, a tratar eventuais
divergências com respeito e com matu-
com um sistema de votação ridade. Divergências são normais, e não
e apuração que é modelo. há qualquer problema nisso.
Que esse sistema tenha sido
posto em dúvida, a partir Em março, o presidente Lula visi-
tará a China. Em diversas oca-
de mentiras, demonstra a siões, o presidente sinalizou que
gravidade dos perigos que deseja incrementar o perfil das
enfrentamos como sociedades. trocas comerciais e tecnológi-
cas com a China. Recentemente,
Mas esse é apenas um dos aspectos de o governo chinês sinalizou que
uma agenda bilateral muito rica e que deseja negociar um acordo comer-
está sendo retomada rapidamente a cial com o Mercosul. Como Vossa
partir da visita, com reuniões e visitas de Excelência enxerga um potencial
alto nível não somente na diplomacia, acordo de livre-comércio entre
mas também em áreas de grande visibi- Mercosul e China? Em seu dis-
lidade, como comércio, meio ambiente curso de posse, Vossa Excelência
e mudança climática. O engajamento ressaltou a necessidade de finali-
de Washington no Fundo Amazônia, zar os acordos do Mercosul com
por exemplo, foi um gesto positivo que Israel e Egito. Um novo acordo
deve levar à participação de outros paí- com a China estaria dentro desse
ses. Acredito que já estamos devolvendo contexto de Mercosul mais ativo
a relação bilateral ao nível de parceria na arena comercial global?
estratégica que ela merece, com trabalho MV: Em primeiro lugar, como lem-
e diálogo em várias áreas. Esse diálogo, brou o presidente Lula em Montevi-
aliás, começou no mesmo dia da visita déu, o passo prioritário é o que envolve
do presidente Lula, com reuniões técni- a negociação pendente de assinatura
cas de equipes de ambos os países ainda com a União Europeia. Depois, é pre-

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ciso saber se há interesse da China em acordo? E como percebe os inte-


negociar com o bloco e qual o alcance resses dos europeus em finalizar
de uma futura negociação, o que, natu- o acordo?
ralmente, envolve também diálogo MV: Nos contatos que mantivemos
estreito com o setor privado e com os desde a posse com líderes de países
demais sócios. Temos o objetivo de
europeus e com autoridades da União
que o Mercosul desempenhe um papel
Europeia, o interesse tem sido demons-
mais ativo no campo das negociações
trado de modo claro. No entanto,
comerciais, mas não ignoramos proble-
aguardamos passos do bloco europeu
mas como o da paralisia da Organiza-
que indiquem como seria o processo de
ção Mundial do Comércio, dado que
ratificação de um eventual acordo, bem
fortalece tendências protecionistas no
como mais detalhes sobre o que a UE
interior dos países e na própria atua-
pretende com a “side letter” com exigên-
ção internacional deles em matéria de
cias adicionais para os países do Merco-
comércio. É preciso dedicar esforços
sul na área ambiental. Negociadores de
também a resolver os problemas do sis-
tema multilateral de comércio, porque ambos os blocos tiveram uma primeira
esses problemas têm freado avanços na reunião em Buenos Aires no início do
direção de uma liberalização comercial mês, e estamos avaliando os resultados
mais equilibrada e justa. dessa primeira troca de informações.
O compromisso do Brasil com a sus-
tentabilidade ambiental é claro e tem
Durante a visita do chanceler sido reiterado na prática pelo governo
federal alemão Olaf Scholz ao
Lula, desde o primeiro dia de ges-
Brasil, o presidente Lula reafir-
tão, com o combate à criminalidade
mou o desejo de o Brasil finalizar
ambiental, seja por meio do garimpo
o acordo comercial do Merco-
ilegal ou do desmatamento. Esse com-
sul com a União Europeia ainda
bate revelou a tragédia na área dos
neste semestre. Em outra oca-
ianomâmis em Roraima. É preciso
sião, o presidente sinalizou certa
sempre lembrar esse fato.
insatisfação do governo brasileiro
com o tema das compras gover- Pela importância que tem, é natural
namentais, com a baixa ampli- que o acordo seja revisado por dife-
tude das cotas agrícolas e com rentes áreas de um governo que acaba
o acordo automotivo negociado. de assumir e que também seja objeto
Com a perspectiva de uma polí- de diálogo com o setor privado, que
tica ativa de reindustrialização já está acontecendo. Mas o presidente
nacional do novo governo, como Lula já manifestou um claro interesse
Vossa Excelência enxerga esse em avançar.

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“O sectarismo que testemunhamos nos últimos anos representa a negação da diplomacia”

O ministro da Fazenda Fernando de acessão. Não há solução rápida,


Haddad declarou em Davos, na no caso, e é preciso ter paciência e
Suíça, que o governo havia criado uma estratégia definida, até porque,
um grupo de trabalho para avaliar em determinadas áreas, a entrada na
o processo de acessão do Brasil OCDE requer mudanças legislativas.
à OCDE. Várias associações de É um processo complexo.
classe, como CNI e CNA, registram A outra expectativa que considero des-
seu apoio ao processo de aces- medida é sobre esse rótulo de “clube dos
são do Brasil. O presidente Lula ricos”. Ingressar em uma organização
declarou que o Brasil tem inte- não tem o poder de mudar o “status”
resse de tornar-se membro pleno de desenvolvimento econômico de um
da organização, mas não como país, e a própria composição da OCDE
“país menor”. No entanto, há paí- demonstra esse fato. A organização é
ses pequenos da OCDE que têm um foro importante de coordenação e
receio de o Brasil se tornar mem- de compartilhamento de boas práticas,
bro pleno, porque o Brasil terá e o Brasil participa dela há décadas,
grande peso, uma vez que o país com bons resultados setoriais. Ser aceito
é conhecido pela sua diplomacia como membro pleno é uma consequên-
ágil e capaz. Assim, como Vossa cia natural desse processo histórico de
Excelência percebe o processo aproximação, e a OCDE também tem
de acessão do Brasil à OCDE? O muito a ganhar com o ingresso de um
Brasil poderá ser o único país país com o peso do Brasil.
membro da OCDE e dos BRICS
simultaneamente. Esta posição é
positiva ou negativa para o país? A visita do presidente eleito ao
Egito para participar da COP 27
MV: Não acredito nesses temores, já
foi um marco da retomada da
que a tradição da diplomacia brasileira
política ambiental internacio-
sempre foi a de dialogar e buscar incluir
nal do Brasil. Em paralelo à rea-
todos na busca de soluções, e os países
firmação de compromissos pelo
sabem disso. Portanto, na OCDE esse governo federal, também esti-
perfil se manterá. veram presentes na conferência
Quanto ao processo de acessão, aberto outros atores como governadores,
no ano passado, é preciso não gerar parlamentares, representantes do
expectativas exageradas: em primeiro setor privado e da sociedade civil.
lugar, Colômbia e Costa Rica, os últi- Como Vossa Excelência avalia o
mos países latino-americanos a ingres- potencial e os desafios de incluir
sar como membros plenos da organiza- na política externa ambiental e
ção, demoraram sete anos no processo climática do país os interesses

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e percepções dessas outras par- A frase do presidente Lula


tes interessadas que, nos últimos
anos, ganharam relevância no sis- “O Brasil voltou”, dita
tema multilateral? no Egito, foi acompanhada
MV: A frase do presidente Lula “O Bra- de uma repercussão
sil voltou”, dita no Egito, foi acompa-
nhada de uma repercussão altamente altamente positiva sobre
positiva sobre a superação das ameaças a superação das ameaças
antidemocráticas, com a alternância de
poder no Brasil. E ela reflete a realidade
antidemocráticas,
da nossa atuação externa neste início de com a alternância
gestão. Nossos interlocutores na comu- de poder no Brasil.
nidade internacional têm sido claros em
acolher, de forma calorosa, essa volta. omissão governamental. A retomada
As agendas de contatos do presidente da participação dos atores da sociedade
e a minha própria nos primeiros dois não é apenas bem-vinda, representa um
meses falam por si. A política ambiental elemento tradicional de formulação da
é um pilar dessa atuação externa e vem política externa brasileira no regime
acompanhada por políticas e ações inter- democrático. Dialogar com esses atores
nas que respaldarão a posição brasileira no plano interno, seja na área ambien-
e tratarão de reverter o desmonte das tal, seja na área comercial, ou em tantas
estruturas de Executivo e dos organismos outras, sempre foi parte indissociável do
de controle verificado na gestão anterior. trabalho cotidiano do diplomata bra-
A sociedade brasileira acompanhou esse sileiro. E esse diálogo sempre ofereceu
processo destrutivo de perto e recente- um forte respaldo às nossas equipes
mente indignou-se com as imagens da negociadoras no plano multilateral,
tragédia dos ianomâmis, que somente como tem de ser com países democráti-
foi possível em virtude de uma clara cos relevantes no debate.

Como citar: Vieira, Mauro. 2023. “O sectarismo To cite this work: Vieira, Mauro. 2022. “The
que testemunhamos nos últimos anos representa Sectarism We Have Witnessed in Recent Years
a negação da diplomacia”. Entrevista à CEBRI- Represents Diplomacy´s Negation.” Interview to
Revista. CEBRI-Revista Ano 2, Número 5 (Jan- CEBRI-Journal. CEBRI-Journal Year 2, No. 5 (Jan-
Mar): 228-234. Mar): 228-234.

DOI: https://doi.org/10.54827/issn2764-7897.
cebri2023.05.06.01.228-234.pt
Entrevista enviada por mídia escrita em 15 de março de 2023.

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