Nesta aula faremos um passo em direção ao oriente, da península Ibéria até a
Itália. Comecemos com o reino lombardo, formado por uma tribo germânica que se instalou primeiramente na região da Panônia. Entre todas as tribos germânicas, os lombardos eram os menos instáveis, menos organizados, menos familiarizados com o mundo mediterrâneo no sec. VI. Eram menos desenvolvidos, menos civilizados que, por exemplo, os Ostrogodos. Em 568, os lombardos fizeram uma grande invasão na península itálica, que guiava a Itália para uma grande mudança tanto politica quanto social, que teve grande impacto, maior inclusive que a própria queda do Império ocidental no sec. V. A instalação dos lombardos se desenvolveu de maneira pouco organizada onde, por uma parte, se pode falar de um rei como símbolo de unidade, porém esse processo de invasão e fixação se deu por várias ações de combate, onde os grupos de guerreiros agiam de maneira autônoma e o processo de unificação dos lombardos se deu durante todo o séc. VII. Se trata, por exemplo de um processo muito diferente daquele do reino visigodo, que era já muito organizado e definido no final do séc. VI. Ao olharmos para o mapa da Itália no final do séc. VI, inicio do séc. VII, observaremos uma complexa rede de territórios dominados, de uma parte territórios bizantinos e de outra parte territórios lombardos. Temos, por exemplo, a parte da região da Costa Adriática, com destaque para Ravenna e Veneza, que estava se desenvolvendo muito naquele tempo, passando pela região central (Pianura Padanna) indo até Roma, com domínio bizantino, cortando ao meio os amplos territórios conquistados pelos lombardos. Tanto os territórios bizantinos quanto os lombardos eram muito amplos, careciam de um governo central, haja vista, o imperador bizantino residia em Bizâncio, e os lombardos não tinham um governo homogêneo. Também os territórios dominados por ambos não eram homogêneos. Do ponto de vista religioso, os lombardos eram ou arianos ou pagãos, onde, por causa da influência dos invasores pagãos, grande parte da Itália retorna ao paganismo, destruindo, assim, a antiga unidade social italiana, baseada na fé cristã. Antigos proprietários de terra foram espoliados de seus bens e foram reduzidos à margem da sociedade, enquanto os lombardos que agora assumiram a propriedade das antigas terras romanas surgem como nova classe dominante. Se fala de uma conquista extremamente violenta, onde, inclusive as próprias fontes primárias produzidas pelos lombardos confirma tal crueldade, onde a invasão e fixação dos lombardos significava uma grande ruptura na história da península Itálica. Por mais esse motivo podemos colocar o inicio da Idade Média no séc. VII (juntamente com o avanço árabe no mediterrâneo e a invasão e instalação dos lombardos na Itália). Tudo isso mudava a situação vivida na Europa naquele momento. Na verdade, o inicio de um reino lombardo, se pode falar somente a partir do rei Agilulfo (591-616), que era ariano e, ao contrário, sua mulher, Teodolinda era católica, para a qual o rei mandou construir uma capela católica no palácio de Monza. Contudo, ainda não era um reino organizado, unificado, mas Agilulfo era já uma figura forte e proeminente entre os lombardos. Durante o séc. VII persistiram no interior dos territórios lombardos divisões de caráter religioso, entre católicos e arianos. Somente a partir do reinado de Pertarito (661-688), onde o bispo ariano de Pavia se converte ao catolicismo, ou seja, cem anos após a conversão ao catolicismo dos visigodos na península Ibérica, contudo, diferentemente de Toledo, o bispo de Pavia não se tornaria primaz dos bispos do reino lombardo. Consideremos atentamente, pois a Itália, como berço do catolicismo desde a idade tardo antiga, e ainda no séc. VII era difícil para os lombardos assumir essa religião. Assim se evidencia o enfraquecimento e, consequentes, rupturas vividas no território italiano apresentadas pela invasão lombarda. Temos poucos testemunhos do cristianismo católico sob os lombardos, onde, por exemplo, temos a capa para Evangeliário de Monza, feito ainda no tempo de Teodolinda, no séc. VII, que testemunha uma riqueza cultural que estavam adquirindo e uma integração que buscavam viver, tomando para si elementos da cultura romana antiga neste novo tesouro litúrgico. De outro lado, também como testemunho deste tempo, temos a cripta de Sutri.
O enfraquecimento de Bizâncio
Como vimos, mesmo com a invasão e tentativa de estabelecimento de um
reino lombardo na Itália, grande parte dos territórios permaneciam sob domínio do governo bizantino e, devemos entender, como se dava a administração desses territórios por parte de Bizâncio. Depois da conquista da península Itálica por parte de Justiniano I, e depois continuada por Teodósio, não houve um reforço da presença bizantina administrativamente falando, onde o centro administrativo permanecia em Bizâncio, que fazia valer suas posições através de Ravenna. Deste modo, as invasões lombardas eram já sinal e acelerador desse enfraquecimento bizantino na Itália, que foi drasticamente reduzido em extensão de territórios controlados. Por esses dois fatores, o centro administrativo distante e as invasões lombardas, era difícil manter um governo eficaz. Durante o império romano a administração central era muito bem organizada, onde funcionários exerciam seu papel administrativo com autoridade derivada de sua posição, enquanto no séc. VII a autoridade dos administradores era baseada na posse da terra, ou seja, temos aqui uma ruptura, pois se antes tínhamos a autoridade administrativa baseada no direito e na organização própria do império romano, agora o direito e a organização dão lugar à posse da terra, significando, além de uma queda do ponto de vista evolutivo da sociedade, uma mudança social sem precedentes. O controle escorria sempre mais por entre os dedos do imperador, onde este não conseguia fazer valer sua autoridade através do Exarca de Ravena, mas o Papa, como autoridade local, começava a se afirmar acima, inclusive, da autoridade imperial. É interessante perceber que na antiguidade o papa não era uma autoridade política, mas a partir do séc. IV as propriedades territoriais do papa começam a crescer sempre mais, seja por doações seja por aquisições, mesmo durante a reconquista bizantina da Itália, grandes territórios foram confiados ao papa e aos bispos locais. Desta forma, como a posse da terra passou a ser fundamental para a administração, sempre mais decisiva para o estabelecimento de uma relação de autoridade, e se a estrutura social do Império Bizantino funcionava cada vez mais de forma precária, obviamente os proprietários de terra foram se tornando sempre mais importantes para a vida pública e isto valia também para os papas no séc. VI e VII. Os papas começavam a assumir responsabilidades sociais e políticas que antes não eram suas, numa crescente homogênea ao longo de décadas, onde passaram a ser, além da referência de fé, referência social, mas também jurídica, na aplicação do Direito, e ainda na defesa estratégica e militar de Roma. Assim se desenvolvia, pouco a pouco, aquilo que chamamos de Patrimonium Petri, que mais tarde se tornaria o Estado Pontifício. A Administração pública em Roma e nos territórios circunvizinhos, tornava-se, paulatinamente, clericalizada, o poder público se tornava também poder clerical, com uma mudança na aristocracia, onde esta almejava, de maneira crescente, alcançar a dignidade eclesiástica para também ter acesso ao poder político ou para manter a própria posição social, política e pública. Outro fator é que de maneira crescente à carência de infraestruturas públicas, correspondia uma assunção crescente dessas obrigações públicas pela Igreja. Assim os papas vão se tornando responsáveis pelo fornecimento de alimentos, pela construção de edifícios públicos e restauro daqueles antigos, e também pela defesa militar de Roma, ou seja, a Igreja se tornaria a garantidora do Bem Comum. A boa administração dos bens eclesiásticos foi garantindo aos papas a administração dos bens e da vida publica.
O papado no sec. VII
Ao estudarmos os papas do séc. VII, percebemos que estavam sempre à
sombra da grande figura de autoridade deste século que era o Papa Gregório Magno. São cerca de vinte papas e dois antipapas, com pontificados breves, onde os papas não tinham tempo de desenvolver uma condução própria seja em assuntos políticos que em assuntos eclesiásticos. A autoridade desses pontífices era limitada à cidade de Roma e aos territórios circundantes, além do que sua autoridade dependia das relações estabelecidas com Bizâncio. A única exceção eram as ilhas da antiga província romana da Britânia. Não vemos, nesse período, grandes relações oficiais estabelecidas com outras autoridades políticas como os francos, os visigodos ou os lombardos. Os papas estavam em grande dependência de Bizâncio. Havia sempre um apocrisiário papal presente à corte bizantina, isto é, um representante do papa que estreitava as relações. Todas as eleições papais deveriam ser convalidadas pelo imperador antes de tornarem-se públicas, ou seja, poderiam ou não ser confirmadas. No séc. VII o papa Martinho I, que governou a Igreja de 649 a 655, foi uma das figuras mais importantes, pois antes de ser eleito, foi apocrisiário na corte bizantina, ou seja, conhecia muito bem os bastidores da corte. Assim que foi eleito, antes de receber a confirmação imperial, convocou um sínodo com cento e cinco bispos. Isso foi uma grande demonstração de soberania, que foi prontamente respondida pelo imperador com o envio de um delegado para reestabelecer sua autoridade sobre Roma e sobre o Papado. Contudo, este delegado não cumpriu sua missão, pois passou ao lado do papa contra o imperador. Em 653 acontece a prisão do papa Martinho I, que foi levado à Constantinopla e morreu dois anos depois no exílio, em uma prisão junto à costa do Mar Negro. Um papa morto no exílio, foi um grande drama para os cristãos contemporâneos, mas também foi sinal de um enfraquecimento da presença bizantina na Itália, pois convocar um sínodo, sem aprovação imperial e mais ainda, com o delegado enviado por Bizâncio mudando de posição. Além disso, foram precisos quatro anos para prender o papa que permanecia sempre em território bizantino. Todos esses sinais demonstram que o poder de Bizâncio não era mais tão forte. Ao fim do séc. VII a figura de Papa Sérgio I, que governou a Igreja de 687 a 701. Ele demonstrou grande força ao negar sua assinatura de confirmação nos decretos de um sínodo bizantino. O Imperador tenta prendê-lo, mas não consegue por causa do auxílio prestado ao papa por grandes proprietários de terra italianos que se voltaram contra o imperador. Assim vemos uma independência sempre crescente por parte dos papas, que significava mais amplamente uma autonomia do ocidente em relação ao Império bizantino. Finalmente, Papa Constantino, que esteve no trono petrino de 708 a 715, foi o último papa a ir até Constantinopla (depois dele somente Paulo VI em 1964). Não haviam grandes eventos nesse século que mudariam as relações entre papas e Bizâncio, mas houve um progressivo e silencioso deslocamento dos centros de poder. E sem esse silencioso deslocamento a Idade Média se torna incompreensível, incluindo a situação das igrejas nos séculos seguintes. Se observarmos bem, os papas Matinho I, Sergio I e Constantino tinham relações com Bizâncio muito embora estivessem em progressiva mudança e adquirindo crescente autonomia. Cem anos mais tarde, na noite de Natal do ano 800, Papa Leão III coroaria Carlos Magno, na Basílica de São Pedro, como Imperador, colocando-o em igual dignidade ao imperador bizantino e, obviamente, sem sua aprovação.
As consequências dos eventos do séc. VII
Ao verificarmos as situações do Império Bizantino e do Papado, e das relações
entre eles, no séc. VII, podemos concluir que muito embora não tenham havido muitos grandes eventos, os pequenos e constantes deslocamentos formavam a base para o desenvolvimento da sociedade medieval e, naturalmente, da Igreja, haja vista, como temos insistido, não se podia separar vida social, política e fé neste período. São fatores, tais deslocamentos, que se tornavam essenciais para os séculos seguintes. Surge, com isso, a pergunta acerca do que significam tais pequenas mudanças em vista da coroação imperial de Carlos Magno que aconteceu no natal de 800. Não poderíamos compreender tal evento, sem ter em vista que é uma consequência desses pequenos e constantes deslocamentos acontecidos no séc. VII. Roma não era a grande cidade europeia, mas, não obstante, continuava a ser um grande centro espiritual e cultural, que agora adquiria uma força sempre mais crescente com a ruptura em relação a Bizâncio. Também com o surgimento e avanço do mundo árabe muçulmano, várias famílias aristocráticas que se tinham fixado no oriente, se deslocavam para a Sicília ou para Roma. Não somente famílias nobres faziam essa mudança, mas também comunidades religiosas inteiras deixavam a Síria, a Asia Menor, a Grécia, a África e outros pontos agora dominados pelos muçulmanos, e se instalavam em Roma. Muitos desses monges, passando por Roma, foram se instalar na Britânia. Tal deslocamento significou um grande enriquecimento espiritual, cultural e litúrgico para Roma, mas também para outros pontos onde foram se instalando. Novas bibliotecas surgiram com os escritos trazidos e esses, após serem copiados, formaram novas grandes coleções que enriqueceriam outras bibliotecas, ampliando o conhecimento que com as invasões bárbaras fora perdido. Roma, portanto, torna- se um ponto de contato cultural importantíssimo entre oriente e ocidente. Muitos desses monges da Galia e da Britania, são enviados à Roma para terem contato com a cultura que era oferecida. Muitos edifícios são testemunho desses contatos culturais, como, por exemplo, São Lourenço extra muros, que apresenta seus balcões laterais com arquitetura bizantina, o arco do transepto que apresenta um mosaico metade bizantino, do séc. VII e metade romano do séc. VI. Também temos a figura da Madonna, no Pantheon, que representa a arte litúrgica do séc. VII, quando aquele edifício fora transformado em igreja cristã. Ainda se pode ver na Igreja de Santa Inês extra muros, construída no início do séc. VII, também os balcões laterais e também os mosaicos da abside. Ainda há a abside da capela lateral de Santo Stefano Rotondo, e a capela, que se encontra junto ao batistério de San Giovanni in Laterano, apresenta também este estilo de mosaico.