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III

C onan empurrou a porta de marfim com cautela, abrindo-a


silenciosamente. Sob a soleira brilhante, observou as estranhas
cercanias como um lobo à espreita, pronto para lutar ou fugir em um instante.
Adentrara uma câmara grande, de teto abobado cor de ouro; as paredes eram
de jade verde, e o chão de mármore, parcialmente coberto por grossos
tapetes. Fumaça e o odor exótico de incenso flutuavam de um braseiro num
tripé dourado, atrás do qual sentava-se um ídolo num tipo de divã de
mármore. Conan olhava horrorizado; a imagem tinha o corpo de um homem,
nu e de coloração esverdeada, mas a cabeça era um pesadelo insano. Grande
demais para um corpo humano, ela não tinha qualquer atributo de gente.
Conan observou as orelhas bojudas e o nariz alongado, de cujas laterais dois
enormes chifres se pronunciavam, com bolas douradas nas extremidades. Os
olhos estavam fechados, como se dormisse.
Então era essa a razão para o nome Torre do Elefante, já que a cabeça da
coisa era bastante similar às feras descritas pelo shemita. Aquele era o deus
de Yara. Sendo assim, onde estaria a joia, senão escondida dentro do ídolo,
uma vez que era chamada de Coração do Elefante?
Conan se aproximou, observando atentamente o ídolo inerte, e os olhos
da coisa se abriram de repente. O cimério congelou. Não era imagem alguma;
era uma coisa viva, e ele estava encurralado dentro do aposento dela!
O fato de ele não ter explodido imediatamente num frenesi assassino
evidencia o grau de horror que o acometera e paralisara. Em seu lugar, um
homem civilizado teria buscado refúgio na conclusão óbvia de que havia
enlouquecido, mas não ocorreu ao cimério duvidar de seus sentidos. Sabia
que estava cara a cara com um demônio do Mundo Antigo, e tal percepção
privou-lhe de todas as suas faculdades, com exceção da visão.
A tromba pavorosa ergueu-se interrogativa, enquanto os olhos de topázio
viam, mas sem enxergar, e Conan soube que o monstro era cego. O
pensamento permitiu que seus membros congelados amolecessem, e ele
começou a recuar em silêncio na direção da porta. Mas a criatura escutou. A
sensível tromba se pronunciou em sua direção e o horror de Conan tornou a
congelá-lo quando o ser falou numa voz estranha e gaguejante, que nunca
mudava de tom ou timbre. O cimério percebeu que aquelas mandíbulas não
haviam sido criadas para proferir o discurso humano.
— Quem está aí? Você voltou para me torturar, Yara? Algum dia
deixará de fazê-lo? Ah, Yag-Kosha, não existe fim para a agonia?
Lágrimas escorreram pelos olhos cegos e o olhar de Conan se desviou
para os membros estendidos sobre o divã de mármore. Percebeu que o
monstro não se ergueria para atacá-lo. Conhecia as marcas da tortura e as
cicatrizes do fogo, e, a despeito de toda sua resiliência, sentiu-se horrorizado
diante daquelas deformidades arruinadas que seu raciocínio denotava terem
sido, outrora, membros tão dignos quanto os seus próprios. De súbito, todo o
medo e repulsa desapareceram, dando lugar a grande piedade. Conan não
sabia o que era aquela criatura, mas as evidências do seu sofrimento eram tão
terríveis e comoventes, que uma estranha tristeza se apossou de seu ser. O
cimério sentiu estar olhando para uma tragédia cósmica e, sem saber o
motivo, se encolheu de vergonha, como se a culpa de toda uma raça tivesse
caído sobre os seus ombros.
— Eu não sou Yara — disse. — Sou só um ladrão. Não vou machucar
você.
— Aproxime-se, para que eu possa tocá-lo — a criatura gaguejou, e
Conan se aproximou sem medo, a espada baixa, esquecida na mão. A tromba
sensível tateou seu rosto e ombros, tal qual um cego o faria, e o toque foi leve
como o da mão de uma garotinha.
— Você não faz parte da raça de demônios de Yara — suspirou a
criatura. — A marca limpa e valorosa das terras selvagens está em você.
Conheço seu povo de antigamente, a quem chamava por outro nome, muito
tempo atrás, quando outro mundo ergueu seus pináculos adornados de joias
para as estrelas. Há sangue nos seus dedos.
— Uma aranha na câmara superior e um leão no jardim — Conan
esclareceu.
— Também matou um homem esta noite — respondeu o outro. — E há
morte no alto da Torre. Eu sinto… eu sei.
— Sim — disse Conan. — O príncipe dos ladrões morreu pela picada da
criatura.
— Então… então! — A estranha voz inumana elevou-se num tipo de
cântico grave. — Uma morte na taverna e uma morte no telhado. Eu sei… eu
sinto. E o terceiro despertará a magia com a qual nem mesmo Yara sonha… a
magia da libertação, deuses verdes de Yag!
Lágrimas tornaram a cair, enquanto o corpo torturado sacudiu-se para
frente e para trás, acometido por uma miríade de emoções. Conan observava,
estupefato.
Então, as convulsões cessaram; os olhos cegos e delicados voltaram-se
para o cimério e a tromba acenou.
— Ouça, homem — disse o curioso ser. — Eu sou repulsivo e
monstruoso para você, não? Não precisa responder, sei que sou. Mas, se
pudesse vê-lo, você me pareceria tão estranho quanto. Há muitos mundos
além deste e a vida tem muitas formas. Não sou nem deus, nem demônio,
mas carne e sangue como você, embora a substância difira em parte, e a
forma tenha sido feita de um molde diferente. Eu sou muito velho, homem
das terras desertas; vim a este planeta há muito tempo ao lado de outros,
egressos do mundo verde de Yag, que circula eternamente às margens deste
universo. Nós singramos o espaço com nossas poderosas asas, que nos
impeliam pelo cosmo mais rápido do que a luz, porque lutamos contra os reis
de Yag, mas fomos derrotados e exilados. E jamais pudemos retornar, uma
vez que, na Terra, as asas murcharam em nossos ombros. Aqui, vivíamos à
parte da vida terrena. Enfrentamos formas de vida estranhas e terríveis que
caminhavam pelo mundo, o que nos tornou temidos e, nas distantes selvas do
leste, onde construímos nossa morada, não éramos molestados.
— Vimos o homem crescer a partir do macaco — ele prosseguiu — e
construir as cidades cintilantes da Valusia, Camelia, Commoria e suas irmãs.
Nós as vimos cambalear ante os ataques dos atlantes, pictos e lemurianos.
Vimos os mares se erguerem e engolfarem a Atlântida, a Lemúria, as ilhas
dos pictos e todas as cidades brilhantes civilizadas. Vimos os sobreviventes
pictos e atlantes construírem seus impérios de pedra e irem à ruína,
envolvidos em mais guerras sanguinárias. Vimos os pictos reverterem à
selvageria abismal, os atlantes voltarem à condição simiesca. Vimos novos
selvagens se dirigirem ao sul em ondas de conquista vindas do círculo ártico
para construir uma nova civilização, com novos reinos chamados Nemédia,
Koth, Aquilônia e seus irmãos. Vimos seu povo, sob um novo nome,
prosperar das selvas dos macacos que já tinham sido os atlantes. Vimos os
descendentes dos lemurianos que sobreviveram ao cataclismo tornarem a se
erguer do estado selvagem e cavalgarem para o oeste, como hirkanianos. E
vimos esta raça de demônios, sobreviventes da antiga civilização que havia
antes da Atlântida afundar, obter mais uma vez cultura e poder… este
amaldiçoado reino de Zamora.
— Eu vi tudo isso, nem ajudando, nem impedindo a lei imutável do
cosmo, e um a um, fomos morrendo, pois nós de Yag não somos imortais,
embora nossas vidas tenham a mesma duração de planetas e constelações.
Enfim, fiquei só, sonhando com os tempos idos, em meio aos templos em
ruínas da selva perdida de Khitai, adorado como um deus por uma antiga raça
de pele amarela. Então Yara veio, versado em conhecimentos arcanos,
transmitidos desde os dias da barbárie, desde antes da Atlântida afundar. No
início, ele sentava-se aos meus pés e aprendia minha sabedoria. Mas não
estava satisfeito com o que eu ensinava, pois se tratava de magia branca, e ele
desejava a erudição do mal para escravizar reis e satisfazer sua ambição
diabólica. Eu não ensinaria a ele nenhum dos segredos negros que obtive à
minha revelia ao longo das eras. Mas a sabedoria dele era maior do que eu
imaginava; com a maldade obtida nas tumbas crepusculares da sombria
Stygia, ele me aprisionou dentro de um segredo particular que não pretendo
desnudar; e, virando meu próprio poder contra mim, me escravizou. Ah,
deuses de Yag, meu cálice tem sido amargo desde aquele momento!
— Ele me trouxe das selvas perdidas de Khitai, onde os macacos
cinzentos dançavam ao som das flautas dos sacerdotes de pele amarela, e
oferendas de frutas e vinho se empilhavam em meus altares. Deixei de ser um
deus para o gentil povo das selvas… e tornei-me escravo de um demônio em
forma de homem.
As lágrimas voltaram a escorrer dos olhos cegos.
— Aprisionou-me nesta torre que fui obrigado a construir para ele numa
única noite. Dominou-me pelo fogo, pela tortura e por outras punições tão
estranhamente extraterrenas, que você não compreenderia. A agonia foi tanta
que, se pudesse, há muito teria tirado minha própria vida. Mas ele me
manteve vivo… desfigurado, cego e quebrado… para cumprir suas ordens
malignas. E, durante trezentos anos, é o que tenho feito deste divã de
mármore, denegrindo minha alma com pecados cósmicos e maculando minha
sabedoria com crimes, por não ter escolha. Entretanto, nem todos os segredos
ele conseguiu arrancar de mim, e minha última dádiva será a feitiçaria do
Sangue e da Joia. Pois sinto que o fim está próximo. Você é a mão do
Destino. Eu imploro, apanhe a joia que encontrará naquele altar ali.
Conan virou-se para o altar de ouro e mármore indicado e apanhou uma
grande joia redonda, clara como um cristal vermelho; e soube que se tratava
do Coração do Elefante.
— Agora, ao grande feitiço… Um tão poderoso que a Terra jamais viu e
tampouco voltará a ver por milhares e milhares de milênios. Pelo meu sangue
vital, eu o conjuro… pelo sangue nascido no seio verde e por Yag, que sonha
na grande vastidão azul do espaço. Pegue a sua espada, homem, e arranque o
meu coração; a seguir, aperte-o, de modo que o sangue escorra sobre a pedra
vermelha. Desça por essas escadas e vá até a câmara de ébano, onde Yara
estará sentado, envolvido por sonhos malignos da lótus. Pronuncie seu nome
e ele despertará. Posicione esta joia diante dele e diga, “Yag-Kosha lhe oferta
uma última dádiva e um último encantamento”. Então saia rápido da Torre;
não tema, pois seu caminho estará desimpedido. A vida do homem não é a
vida de Yag, nem a morte do homem é a morte de Yag. Liberte-me desta cela
de carne cega e destruída, e eu, mais uma vez, voltarei a ser Yogah, de Yag,
coroado pela manhã, com asas para voar, pés para dançar, olhos para ver e
mãos para quebrar.
Conan se aproximou inseguro, e Yag-Kosha, ou Yogah, como se sentisse
a sua incerteza, indicou onde ele deveria golpear. Conan cerrou os dentes e
afundou a espada na carne. Sangue fluiu pela lâmina e por sua mão; o
monstro convulsionou e caiu para trás, estático. Decerto aquela vida havia se
esvaído; ao menos a vida como Conan a entendia, e o bárbaro pôs-se a
trabalhar na sinistra tarefa que lhe fora confiada. Ele rapidamente retirou do
corpo algo que parecia ser o coração da estranha criatura, ainda que diferisse
bastante de qualquer um que já tivesse visto. Segurando o órgão ainda
pulsante em cima da joia brilhante, ele o apertou com ambas as mãos, e uma
chuva de sangue caiu sobre a pedra. Para a sua surpresa, ele não escorreu,
mas foi sugado para dentro da joia, como água absorvida por uma esponja.
Hesitantemente segurando a joia, saiu daquela câmara fantástica e
retornou aos degraus prateados. Não olhou para trás; instintivamente, sabia
que algum tipo de transmutação estava ocorrendo no corpo sobre o divã de
mármore, e também sentia que não se tratava de algo a ser testemunhado por
olhos humanos.
O bárbaro fechou a porta de mármore e, sem pestanejar, desceu os
degraus de prata. Não lhe ocorreu ignorar as instruções dadas. Parou diante
de uma porta de ébano, no centro da qual havia uma soturna caveira prateada,
e a abriu. Olhou para dentro da câmara de ébano e viu, num divã de seda
preta, uma figura alta reclinada. Yara, o sacerdote e feiticeiro, estava diante
dele, os olhos abertos e dilatados pelas fumaças da lótus amarela, com o olhar
perdido, como se estivesse fixo nos golfos e abismos negros que vão além do
conhecimento humano.
— Yara! — Conan disse, como um juiz que pronuncia uma sentença —
Desperte!
Os olhos voltaram ao normal no mesmo instante, tornando-se frios e
cruéis como os de um abutre. A figura trajada de seda se levantou, bem mais
alta do que o cimério.
— Cão! — O sibilo soou como a voz de uma cobra. — O que faz aqui?
Conan colocou a joia sobre uma grande mesa de ébano.
— Aquele que mandou esta joia pediu para que eu dissesse: “Yag-Kosha
lhe oferta uma última dádiva e um último encantamento”.
Yara se encolheu, o rosto pálido. A joia não era mais clara como um
cristal; suas profundezas turvas pulsavam e tremiam, e curiosas ondas de
fumaça de cores mutáveis cruzavam a superfície lisa. Como que atraído
hipnoticamente, Yara curvou-se sobre a mesa e agarrou a joia, observando
suas profundezas sombrias, como se um ímã atraísse a alma trêmula para fora
do corpo. E, conforme observava, Conan pensou que seus olhos poderiam
estar pregando-lhe algum truque. Pois, quando Yara se levantara do divã,
parecera gozar de uma estatura gigantesca; contudo, agora, via que sua
cabeça mal lhe batia no ombro. Ele piscou, intrigado e, pela primeira vez
naquela noite, duvidou dos próprios sentidos. Então, chocado, percebeu que o
sacerdote estava diminuindo de tamanho… ficando cada vez menor, bem
diante dos seus olhos.
Despido de qualquer envolvimento emocional, continuou a observar,
como um homem assiste a uma peça; imerso num sentimento de irrealidade
esmagadora, o cimério não estava sequer certo da própria identidade; sabia
apenas que olhava para as evidências externas de um jogo invisível de vastas
forças cósmicas além da sua compreensão.
Agora Yara não era maior do que uma criança; então, do tamanho de um
bebê ele se espalhou sobre a mesa, ainda agarrado à joia. A seguir, finalmente
percebendo seu destino, o feiticeiro teve um sobressalto e largou a pedra
preciosa. Mesmo assim, continuava encolhendo, e Conan viu uma minúscula
figura correndo freneticamente por sobre a mesa de ébano, acenando os
braços pequenos e guinchando numa voz que era como o chio de um inseto.
Ele encolheu até que a grande joia se avolumasse à sua frente como uma
colina, e Conan o viu cobrir os olhos com as mãos, como se quisesse protegê-
los do brilho, ainda cambaleando tal qual um louco. O bárbaro sentiu que
alguma força magnética invisível puxava Yara em direção à joia. Por três
vezes ele correu desvairado num círculo estreito; por três vezes lutou para
fazer a volta e correr ao longo da mesa. Então, com um grito que ecoou
fracamente nos ouvidos do observador, o sacerdote ergueu os braços e correu
diretamente para o globo ardente.
Curvando-se, Conan viu Yara escalar a superfície lisa e curva, como um
homem subindo uma montanha de vidro. No topo da gema, ainda de braços
para cima, o sacerdote invocou nomes sombrios, que somente os deuses
conhecem. Súbito, afundou para o âmago da joia, como um homem afunda
no mar, e Conan viu ondas de fumaça fecharem-se por sobre a sua cabeça.
Agora, via-o no coração carmesim da joia, mais uma vez clara como cristal;
via-o pequeno e longínquo, como se assistisse a uma cena distante. E, dentro
do Coração, surgiu uma figura alada, verde e brilhante, com o corpo de um
homem e a cabeça de um elefante… não mais cego nem aleijado. Yara
sacudiu os braços e correu em desespero, perseguido de perto pelo vingador.
Então, como a explosão de uma bolha, a grande joia desapareceu num arco-
íris de brilhos iridescentes, e a mesa de ébano ficou vazia, tão vazia quanto,
Conan imaginava, o divã de mármore na câmara acima, onde estivera o corpo
de um estranho ser transcósmico chamado de Yag-Kosha e de Yogah.
O cimério virou-se e fugiu dali, descendo as escadarias prateadas. Estava
tão desnorteado, que não pensou em escapar da Torre da mesma maneira que
entrou. Ele correu pelos sombrios e sinuosos degraus prateados,
desembocando numa larga câmara na base da escadaria. Ali, parou por um
instante; tinha chegado à sala dos guardas. Viu o brilho de seus coletes
prateados, o resplendor do cabo cravejado de suas espadas. Aglomeravam-se
ao redor da mesa de jantar, suas plumas cinzentas oscilando do alto dos
capacetes; estavam deitados no chão de lápis-lazúli, em meio a dados e
canecas de vinho. Conan sabia que estavam mortos. A promessa tinha sido
feita e mantida; se a festa chegara ao fim por feitiçaria, magia ou pela sombra
de grandes asas verdes, o bárbaro não sabia, mas via seu caminho livre. E
uma porta prateada estava aberta, emoldurada pela claridade da alvorada.
O cimério chegou aos jardins verdejantes e, quando o vento matinal
soprou sobre ele a fragrância fresca de plantas luxuriantes, sentiu-se como
um homem despertando de um sonho. Virou-se incerto e observou a críptica
construção de onde saíra. Teria sido ele enfeitiçado ou encantado? Teria
sonhado tudo aquilo que vivenciara? Diante de seus olhos, a Torre reluzente
oscilou contra o amanhecer vermelho, e sua borda incrustrada de joias
iluminada pela luz da manhã desabou em escombros brilhantes.

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