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O discurso de decadência musical na Alemanha do final do século XVIII

(Rebello Alvarenga1)

O discurso de decadência musical não é uma exclusividade da nossa era. A


defesa da tradição frente aos riscos da inovação artística pode ser encontrada diversas
vezes ao longo da história. Somente entre o século XIX e início do XX, ela esteve
presente no advento dos meios de reprodução técnica do som como o gramofone e o
rádio; fez-se ouvir nas vozes dos detratores da música ligeira, do music-hall e das
operetas e marcou presença entre aqueles que repudiavam as exibições de pianistas
virtuoses no início do século XIX como um exemplo da condenatória concessão do
músico ao público e à moda. No entanto, se continuarmos recuando na história, iremos
encontrar outros exemplos de sua presença, surgida em momentos específicos em que o
novo choca-se com a tradição. Assim, nas últimas décadas do século XVIII, já podemos
perceber como o discurso de decadência musical surge como reação às mudanças nas
relações de apreciação, consumo e difusão da música, aparecendo em tratados e ensaios
de importantes músicos e estudiosos da música no período.
Entre os mais interessantes fenômenos relacionados ao discurso de decadência
musical no final do século XVIII, encontra-se a reação contra os ditames da moda por
parte de uma elite intelectual musical alemã, nascida em resposta às constantes
metamorfoses do mercado da música que encontramos na segunda metade do século
XVIII. Essas reações formam uma espécie dos primeiros exemplos da criação de um
discurso musical idealista, onde a necessidade de preservação e culto da arte musical
toma suas dimensões modernas.
O musicólogo David Gramit nos dá a dimensão deste fato em seu ensaio
“Selling the serious: The commodification of Music and Resistance to It in Germany,
circa 1800”. Neste texto, Gramit aponta que o constante crescimento do comércio de
partituras na Alemanha é percebido – mesmo de maneira inconsciente – como uma
dissolução das relações pessoais entre o músico profissional e seu empregador, através
da sua substituição progressiva por meios impessoais de distribuição do material
musical advindos do crescimento constante do número de impressões de partituras.
Como aponta o musicólogo, “a transformação da vida musical que começou no final do
século XVIII envolveu a substituição de uma rede de relações pessoais por uma carreira

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Texto de 16/03/2016, disponível em: http://www.musicaesociedade.com.br/o-discurso-de-decadencia-
musical-na-alemanha-do-final-do-seculo-xviii/
musical orientada pelo mercado, mediada monetariamente pela publicação musical e
pelo concerto público” (Gramit, 2004, p. 84).
Esta nova configuração do mercado deixa o músico confuso quanto ao seu
papel no mundo musical. Afinal, como fruto destas transformações, muitos músicos
empreenderam carreiras tendo que lidar com diversas maneiras de circulação e
produção da música nascidas do choque entre o antigo sistema patronal e o crescente
livre mercado da música, perdendo muitas vezes o referencial. Esta questão toca de
maneira mais profunda a Alemanha devido ao fato do antigo sistema patronal atravessar
o século XIX de maneira mais presente que em outras regiões devido as configurações
políticas da região que preservara em grande parte a participação cultural e política de
suas cortes em seus diversos Estados independentes. Assim, o crescente comércio
musical choca-se com as antigas estruturas do mundo musical de uma maneira ainda
mais contraditória, pois evidencia ainda mais aquilo que o músico antevia como uma
ameaça. Assim sendo, como empreender uma carreira minimamente segura num mundo
musical em mudanças? Investir na manutenção do antigo e correr o risco de perder o
emprego ou deixar-se levar pela maré do mercado musical que operava ao ritmo do
gosto popular? Ceder ao mercado ou preservar a independência? Desta questão
fundamental brota um discurso que via como ameaçador o domínio do gosto popular
pelos ditames da moda, ameaçando a sobrevivência do sério e do eterno musical.
Um dos principais defensores deste discurso foi Johann Nikolaus Forkel,
musicista e teórico musical, autor dentre várias obras, da primeira biografia de Johann
Sebastian Bach. Segundo Forkel, em seu Musikalisch-kritische Bibliothek de 1778,
desde o início do século, a música havia declinado devido a busca dos compositores
pela novidade. Culpando não só os músicos como também o público, Forkel afirma que
“encorajado pelo aplauso de amadores, que parcamente estudam a arte com a dedicação
necessária para penetrar em suas profundezas, os compositores inundam–nos com suas
inovações até que finalmente toda a ordem, toda a verdadeira naturalidade e toda
expressão nobre e valiosa (…) sejam finalmente descartadas e substituídas por uma peça
indigna a uma criatura pensante” (Gramit, 2004, p. 86). Para Forkel, a educação musical
liderada pela instituição da crítica deveria remediar o processo de decadência que a
música havia adentrado. Além disso, os assuntos musicais necessitavam ser deixados a
cargo das instituições oficiais, na esperança que o sistema patronal pudesse frear os
danos surgidos pelas inconsistências de um mercado musical disforme e comandado
pelos caprichos do gosto.
Da mesma maneira, outros músicos e teóricos como Heinrich Christoph Koch
aumentaram o coro dos apocalípticos frente ao decadentismo musical. Para Koch, o fim
do sistema patronal claramente jogara a música na dependência do gosto pela moda.
Ainda mais fundamental é sua posição de que a música deve ser tratada como uma obra
de arte, sobrevivendo às efemeridades temporais. Desta maneira, Koch se estabelece
como um dos primeiros a discursar em prol do conceito de obra de arte musical,
fundamental para a canonização e o estabelecimento do repertório da música clássica.
Ao enxergar a clivagem entre uma esfera artística eterna e imutável e o universo das
manifestações musicais efêmeras, Koch se encontra na base de um discurso que
influenciará a separação progressiva da música clássica e erudita da música ligeira e
popular, bem como suscitará o estabelecimento de toda uma hierarquia de gostos e
apreciações musicais.
Mesmo sem citarem diretamente as razões econômicas e sociais pelas quais o
processo que qualificam de decadência musical se estabeleceu, tanto Forkel quanto
Koch nos dão alguns dos primeiros exemplos concretos do impacto provocado pela
presença de um público musical criado a partir da demanda de um mercado alimentado
por novos meios de distribuição da música. Desta maneira, seus discursos evidenciam as
maneiras pelas quais o discurso de autonomia do campo musical se estruturou como
reação ao crescente mercado musical, bem como nos trazem um dos exemplos pioneiros
da construção de um discurso de seriedade musical que foi adotado como fundamental
por uma geração de músicos preocupados com o status da música e do músico numa
sociedade que começava a despontar para uma verdadeira irrupção dos interesses
financeiros dentro do universo musical.
Referência:
GRAMIT, D. “Selling the serious. The commodification of music and
resistance to it in Germany, circa 1800”, em The Musician as Entrepreneur, 1700-1914:
Managers, Charlatans, and Idealists, Ed. Weber W. (Bloomington: Indiana University
Press, 2004) p. 81-99
A miscelânea de estilos musicais e as questões sociais envolvidas nos
concertos no século XVIII
(Rebello Alvarenga2)

Tendo como ponto de partida os concertos de corte, os concertos públicos


foram uma verdadeira fonte de entretenimento musical na Europa do século XVIII. Foi
na França, no ano de 1725, que o termo concerto foi usado pela primeira vez em seu
sentido moderno, ou seja, na intenção de denominar não somente um gênero musical,
mas também a produção de apresentações musicais públicas (Taruskin, 2005, p.498).
Tais concertos, no entanto, obedeciam a práticas musicais muito diversas das que
estamos acostumados. Para melhor compreender a produção de concertos no século
XVIII, é preciso conhecer tanto os expedientes estéticos quanto os políticos em jogo.
O empreendimento de concertos no século XVIII era uma tarefa muito difícil e
extremamente custosa para que um compositor levasse a cabo um evento dedicado
exclusivamente a suas obras. Um concerto exclusivo, como alguns poucos
empreendidos por Mozart, era um feito extremamente raro. De fato, no século XVIII, o
concerto público era um empreendimento compartilhado entre vários músicos que
proporcionavam um verdadeiro caleidoscópio de peças distintas entre si, oferecendo
uma verdadeira miscelânea de gêneros e estilos musicais.
O termo miscelânea aparece pela primeira vez relacionado a cópias medievais
de orações e meditações (Weber, 2011, p. 25). Com o tempo, o termo se difundiu
podendo ser encontrado, por exemplo, em coletâneas de poetas ingleses. O termo
possuía uma conotação acolhedora, significando que naquele volume, o leitor poderia
encontrar textos que agradassem a diversos gostos. Na música, o termo se difundiu com
a proliferação das publicações de partituras e concertos públicos no século XVIII, sendo
que na França, o termo mélange e na Inglaterra o termomiscellaneous possuíam a
mesma conotação. Se no século XIX o conceito de obra de arte musical regulará as
práticas musicais do período, no século XVIII será a miscelânea o conceito regulador do
universo da música de então.
Apesar do termo aparentar para nós uma certa anarquia, levando-nos a induzir
que a prática permitia a elaboração de uma apresentação musical sem nenhuma regra ou
coerência, a programação de um concerto de miscelânea se atinha a algumas regras

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Texto de 08/02/2016, disponível em: http://www.musicaesociedade.com.br/a-miscelanea-de-estilos-
musicais-e-as-questoes-sociais-envolvidas-nos-concertos-do-seculo-xviii/
comuns. Sendo um empreendimento compartilhado entre vários músicos e contando
com uma audiência cujos gostos musicais eram díspares (apesar do processo de
hierarquização dos gostos musicais estar apenas em seu estágio embrionário), os
programas musicais eram ajustados a um padrão geralmente simétrico (Weber, 2011, p.
60). Em primeiro lugar, unindo todo o programa, estava o virtuosismo musical. A
prática virtuose fazia com que os ouvintes percebessem um programa variado como um
todo comum e coerente. Além disto, não podia haver dois ou mais exemplos
consecutivos de cada gênero musical.
O revezamento entre cantores masculinos e femininos deveria ser respeitado,
assim como os instrumentos solistas deveriam ser diferentes entre uma peça musical e
outra. Um recital de piano nos padrões existentes atualmente, certamente seria muito
aborrecedor para um público de concertos no século XVIII que esperava, antes de tudo,
variedade e muita novidade. Um concerto de miscelânea era dividido em duas partes.
Abria-se o programa com uma peça orquestral, geralmente o primeiro movimento de
uma sinfonia. A quantidade de movimentos apresentada num concerto variava de região
para região.
Em Viena e em algumas cidades da Alemanha, era comum que se colocasse os
movimentos de uma sinfonia em lugares diversos do programa. Em Londres era comum
oferecer um único movimento de uma sinfonia ao final de um concerto. Curiosamente,
esse movimento isolado era então chamado pelos londrinos de “peça completa”. Em
algumas cidades, a última peça de cada parte de um programa era geralmente um
conjunto vocal de ópera com até seis cantores. Para facilitar a comparação, observemos
as sequências de gêneros e estilos adotadas na Gewandhaus de Leipzig e no Concert
Spirituel de Paris:
Sequência de gêneros da Gewandhaus de Leipzig c. 1781-1820 (Weber,
2011, p. 63)
Abertura de ópera ou movimento sinfônico
Número de ópera, geralmente uma ária
Concerto solista geralmente composto pelo intérprete
Conjunto de ópera de Duo a sexteto
Intervalo
Abertura de ópera ou sinfonia
Ária de ópera
Número coral de ópera
Sinfonia ou outra peça instrumental
Concert Spirituel, París, 9 de Dezembro de 1782 (Weber, 2011, p. 65)
Sinfonia – Haydn
Ária italiana – Sarti
Concerto para fagote – P. D. Deshayes
O salutaris, moteto a capela – F. J. Gossec
Concerto para oboé “sobre várias melodias conhecidas” – Besozzi (?)
Ode sacrée – N. J. Chartrain
Concerto para violino – N. J. Chartrain
Aria italiana – Nicólo Piccini
Sinfonia – J. F. Sterkel
A liberdade de programar concertos no século XVIII também variava de região
para região. Algumas cidades possuíam uma instituição central que controlava a
programação de concertos e programas. Em Paris, o Concert Spirituel possuía o
privilégio outorgado pelo Estado para programar os concertos locais, fazendo com que o
número de músicos que podiam oferecer concertos pagos na cidade fosse muito mais
reduzido que em outros locais (Weber, 2011, p. 64). As restrições de concerto em Paris
eram tão amplas que era proibido, inclusive, dar concertos ao ar livre. O curioso é que
apesar de tanto rigor, o surgimento das séries de concertos da instituição tem um motivo
um tanto quanto heterodoxo.
O musicólogo norte americano Richard Taruskin vê no nascimento do Concert
Spirituel uma desculpa para a produção de entretenimentos musicais em feriados
religiosos, especialmente durante a quaresma quando a casa de ópera da cidade era
fechada. Assim sendo, a pedra fundamental do repertório era a música sacra. No
entanto, por ser uma substituta para a temporada de ópera, seus concertos começavam
com uma espécie de abertura sinfônica. O famoso concerto de natal de Corelli cumpriu
esta função no dia 18 de março de 1725 (Taruskin, 2005, p. 499).
No caso de Leipzig, a Gewandhaus era regida por um diretório vinculado ao
conselho administrativo da cidade. Os membros do conselho local, geralmente
comerciantes de tecidos, juízes, professores de direito e editores, trabalhavam em
conjunto com o diretor musical na eleição tanto das obras quanto dos músicos a se
apresentarem nos concertos (Weber, 2011, p. 62). Já em Londres e Viena, o controle da
programação de concertos era muito menor, levando a uma verdadeira profusão de
opções numa espécie de “livre mercado musical”.
Londres possuía, de fato, uma liberdade pouco usual na programação de
concertos. Não existia na cidade nenhuma série ou instituição que dominasse a cidade,
como acontecia em Paris ou Leipzig. Fora isso, a quantidade de salas de concerto e
tavernas públicas destinadas a apresentações musicais era sem paralelo. O controle do
governo sobre esses empreendimentos também era mínimo. No entanto, a ausência de
controle externo e a cultura de livre mercado musical estabelecida na cidade também
tinham suas ambivalências. Uma das consequências negativas de tamanha falta de
regulação era a notória ausência de compositores ingleses na maioria dos concertos em
Londres (Weber, 2011, p. 68).
No caso da França, a monarquia dos Bourbons outorgou a Academie Royale de
Musique o privilégio do controle das montagens de ópera em Paris, favorecendo a
montagem de óperas de compositores locais (Weber, 2011, p. 71). Tal fato vai ter
repercussão, inclusive, na famosa Querelle des Bouffons, onde iluministas como Jean
Jacques Rousseau defendiam as montagens de óperas italianas e a italianização da ópera
francesa. A questão também encontrará ecos na Alemanha do século XVIII. Tanto
ataques ao gosto cosmopolita alemão quanto ataques à retórica nacionalista serão
frequentes nas publicações musicais na região (Weber, 2011, p. 74).
Como pudemos observar, programar um concerto público implica numa série
de acordos entre várias forças sociais. A confecção de um programa de concerto no
século XVIII implica uma série de fatores externos as simples questões estéticas. Como
aponta William Weber, um verdadeiro equilíbrio entre público, músicos, gostos
musicais e outras questões concernentes à sociedade fazem da produção de concertos
“uma espécie de processo político” (Weber, 2011, p. 11).
Referências:
TARUSKIN, R. Oxford history of western music. 3, Music in the nineteenth
century. New York: Oxford University Press, 2005
WEBER, W. La gran Transformación en el gusto musical: la programación de
conciertos de Haydn a Brahms. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011

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