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Blood Bonds - J. Bree
Blood Bonds - J. Bree
Não sei por que é tão importante para mim acrescentar esse final,
mas acrescento, pensando que nem uma idiota que, se Silas perder a cabeça
e me matar, pelo menos North talvez… acredite que eu não era o pior
Vínculo do mundo.
Nossa, que deprimente pensar assim.
Vejo o exato instante em que Gryphon consegue falar com Kieran.
Ele ajeita a postura como o vice-líder sempre muito obediente que é. Fica
bem melhor assim do que com aquela marra de membro de Equipe Tática
irritado e ensanguentado que quer me assassinar, isso é fato.
Davies finalmente decide fazer alguma coisa e caminha até Kieran,
segura-o pelos braços e o coloca de pé. A perna machucada não consegue
suportar nada do peso e fica frouxa de lado. Ele geme um pouquinho, com
certeza cego de dor. Queria muito poder curá-lo, ou pelo menos tirar sua
dor, mas, não importa o que eu diga para Davies, ele não é meu Vínculo de
verdade, então não posso ajudá-lo.
Davies ou não percebe a perna, ou não se importa, e começa um de
seus monólogos adocicados.
— Um Transportador. É tanta mediocridade que eu chego a ficar
meio decepcionado. Esperava que uma belezinha como você fosse ter um
parceiro magnífico, mas estou preso a uma Curandeira, então suponho que
faça sentido que nossos grupos não sejam todos formados por poderes que
só se vê uma vez na vida. Mesmo assim, não vou mentir: eu esperava mais.
Meu vínculo volta para a dianteira da minha mente, insatisfeito com
o modo como Davies fala sobre nossos Vínculos, por mais que esteja
falando do cara errado. Ele não dá um chilique nem se comporta como um
mimadinho como tem feito há semanas na mansão dos Draven e, dessa vez,
sinto-me mais segura com ele tomando as rédeas por um instante. Meu
vínculo sempre fez todo o necessário para me manter viva, inteira e sã.
Impassível agora no papel do bom soldado e seguindo ordens de
Gryphon, Kieran olha para Davies sem deixar nada transparecer no rosto.
Sinto um orgulho bizarro dele por não estar se acovardando na frente deste
homem terrível… mas é bem provável que seja porque não conhece a
extensão de sua maldade.
Não como eu, pelo menos.
Davies o empurra e o faz ficar prostrado diante de mim mais uma
vez. Embora faça uma careta, Kieran não emite nenhum barulho que
entregue a óbvia dor que dispara por todo seu corpo. Olho para ele, agora
que meu vínculo está no comando, com a segurança de que não tem
problema se Davies vir a frieza e a distância em meus olhos vazios, porque
ele nunca viu desejo neles antes… nunca me viu olhando para meus
Vínculos, exigindo coisas deles.
Meus Vínculos.
Nossa, já estou com saudade. O que eu não daria para estar sentada
naquela aula idiota de Introdução aos Favorecidos com o Nox me olhando
feio, para estar à mesa de jantar ouvindo as exigências de North ou sendo
completamente ignorada por Gryphon. Eu aceitaria toda aquela baboseira
agora mesmo só para estar com eles de novo.
Caí mesmo como um patinho.
Davies me olha fixamente, observa meu vínculo analisar Kieran e
decide que não é só uma atuação. Seu sorriso de vitória me deixa enjoada.
— Pequena Alienadora… você vai completar o Vínculo com ele e
depois repetiremos todos os testes em você. Meu Deus, como eu senti
saudade dos seus gritos.
E então, ele me deixa acorrentada na cadeira, com olhos vazios,
escuros e gélidos, Kieran caído no chão aos meus pés, e sai da tenda.
Kieran está com algemas elétricas, do tipo que dispara volts de eletricidade
pelo corpo e mata o prisioneiro que se mexer, então não me surpreende que
Davies o tenha deixado aqui comigo. Também sei que há uma câmera nos
filmando. Embora tenha quase certeza de que não há microfone, não quero
ficar discutindo o que de fato está acontecendo.
Quando ele ergue os olhos para mim, irritado, faço shhhh e disparo
meu poder para pressentir quem está por perto e se alguém vai ouvir o
sermão indignado que tenho certeza de que está prestes a eclodir dele.
Davies está nas tendas principais com alguns de seus homens mais
poderosos e leais, mas nenhum deles consegue ouvir bosta nenhuma desta
distância, então estou segura. Tem muita gente nova aqui, mas não consigo
sentir nenhum Neuro ou dons Telecinéticos, por isso decido que vale o
risco. Recolho meu dom, olho nos olhos de Kieran e faço um gesto,
indicando que ele pode falar.
Eu nem devia ter me dado o trabalho.
— Não vou transar com você.
Bufo para ele e retruco, lembrando no último segundo de manter
minha voz e cabeça baixas apesar da indignação:
— Esse nunca foi o plano, Black! Para de pensar com a cabeça de
baixo.
Ele bufa como se eu é que estivesse sendo irracional, depois faz uma
careta ao mexer a perna e se ajeita de leve para aliviar um pouco da dor que
claramente está sentindo. Tomara que não esteja quebrada. Não sei direito
quanto tempo vou levar para dar o fora deste lugar e, por algum motivo
desconhecido, Franklin continua aqui; a ideia de ter que carregar Kieran nas
costas é demais para mim.
— Qual é o seu grande plano, então? Você ouviu o que o Silas
Davies falou. Ele vai querer que a gente “complete o Vínculo”.
Reviro os olhos com mais petulância que de costume por estar presa
nesta cadeira e minha bunda ficou dormente, mas também para esconder o
pavor que sinto só de ouvir esse nome.
— Eu sei muito bem como os próximos dias vão ser, então sossega.
É só ter paciência que vou tirar a gente daqui.
Ele me olha por um instante, depois xinga baixinho e meneia a
cabeça.
— Entra em contato com o Shore. Fala onde estamos e que
precisamos ser retirados daqui. Até parece que você tem chance de fazer
isso.
O som de seu nome faz meu vínculo transbordar pelo corpo; meus
olhos ficam pretos e perco todo o controle quando ele assume o comando,
então agacho e, num grunhido, digo para Kieran:
— Aguentei coisa demais pra você vir agora e ficar pronunciando
esse nome. Nunca fale de nenhum deles.
Ele hesita por um segundo, depois engole em seco.
Engole em seco mesmo, como se eu fosse apavorante, o que meu
vínculo ama, mas ele me devolve o comando e eu me jogo de volta na
cadeira, inspirando fundo pela boca.
— Você é maluca para caralho, sabia?
Dou de ombros e deixo uma risada baixa e ligeiramente trêmula sair.
— Não era você que morria de vontade de me ver acabar com a vida
de todo mundo? Fala sério! Não desista de mim por uma coisinha de nada
dessas. Meu vínculo mal falou contigo!
Kieran balança a cabeça e desvia o olhar.
— Pra mim já foi mais do que suficiente. Vou me esforçar para
nunca mais falar com ele.
Dou uma risadinha para caçoar dele, o que é idiotice, mas também
sinto um alívio esquisito por estarmos presos aqui juntos… por ter alguém
comigo dessa vez e não estar completamente sozinha. Além disso, já que
tinha que ser com alguém, até que fico feliz por ser Kieran.
Eu já teria enlouquecido se fosse Sage de novo. Ficaria preocupada
com ela se machucando ou sendo abusada e não conseguiria me concentrar
em meus planos. Se fosse um dos meus Vínculos de verdade? Meu Deus,
chega a ser impossível de conceber a carnificina que meu próprio vínculo
causaria por eles estarem em perigo. Um Tecnocinético não ajudaria em
nada, e aquela língua grande do Sawyer só o deixaria ainda mais
encrencado.
Felix também seria útil, só que eu também ficaria preocupada
demais com a possibilidade do Vinculado da minha bestie acabar morrendo
e não conseguiria me concentrar, então Kieran Black é a melhor opção.
Se ao menos Kyrie não estivesse nesta desgraça de campo com a
gente.
Um momento de silêncio transcorre entre nós enquanto tento achar
um jeito de fazer Kyrie vir parar nessa merda de tenda, até que Kieran volta
a falar, com uma voz que mal passa de um sussurro:
— Você está protegendo-os.
Para mim isso é óbvio, mas acho que ele deduziu o mesmo que os
outros: que eu odiava meus Vínculos e que tinha preferido fugir do que
ficar com eles.
Abaixo a cabeça de novo para quem estiver de olho na câmera não
ler meus lábios.
— Sempre. Tudo que eu fiz foi para proteger meus Vínculos. Cada
atitude, cada palavra que engoli, cada minuto que passei fugindo. Se você
não está morrendo de medo daquele homem, é porque não te repassaram
informações que prestam… ou não prestou atenção nelas. Ele é o Diabo em
pessoa.
Ele não responde por um instante. Sua respiração está estável e lenta
quando murmura de volta:
— Ele te torturou. A AI… eu li o que fizeram com você. Eles te
torturaram. Você nunca entregou os nomes dos seus Vínculos. Não cedeu.
Engulo em seco. Estou louca para mudar de assunto.
— Cedi sim. Deixei meu vínculo aguentar a dor por mim. Deixei
que ele se tornasse o monstro no meu lugar.
Dois anos.
Fui prisioneira em um desses campos por dois anos inteiros, e nem
uma vez sequer pensei nos nomes deles. Eu sabia quais eram, e, minha
nossa, como sabia. Eu tinha memorizado aqueles nomes no momento em
que acordei no quarto de hospital, com a enfermeira June parada ao lado da
cama com olhos marejados e uma pasta enfiada debaixo do braço. Lembro
de pensar em como era assustador que North fosse quase dez anos mais
velho do que eu. Os cinco anos que me separavam de Gryphon e Nox
também pareciam muito. Queria tanto conhecer Gabe e Atlas, pois eram
apenas alguns meses mais velhos, e queria que fossemos amigos até termos
idade suficiente para consumar o Vínculo.
Passei algumas horas naquele hospital planejando, esperando e
torcendo para eles se apressarem e me levarem para bem longe do horror do
que tinha acontecido com minha família.
Depois, nunca mais pensei neles.
Nunca me permiti.
E com quatro palavras, proferidas em desespero por meio da
conexão do nosso Vínculo, Gryphon se apresentou à maior ameaça que
nosso Grupo de Vínculos jamais poderia encontrar.
Por instinto, não penso em nada. Deixo o pânico me guiar mesmo
enquanto me obrigo a não pensar nos detalhes, nos motivos exatos pelos
quais estou tão apavorada. Confiro várias vezes se a fortaleza que construí
entre eu e meu Vinculado está intacta, depois confiro meu vínculo porque
talvez eu precise deixá-lo assumir e distrair Davies do que ele ouviu.
Meu vínculo está pronto e ansioso para ser libertado.
Vou aguentar a dor pelo máximo de tempo possível, depois vou
deixá-lo assumir e acabar com esta sessão de tortura. Se ainda assim Davies
me obrigar a matar inocentes… bom, já sou um monstro mesmo, e se isso
mantiver meus Vínculos e as pessoas que amamos a salvo, eu aceito,
mesmo odiando pra caralho.
Eu me odeio, mas esse é meu limite.
— Muito bem. Sem problemas, continue sendo essa teimosinha de
merda, então. Tenho ferramentas mais do que suficientes para arrancar a
verdade de você à base de sangue. Se vou precisar te deixar sangrando para
descobrir quem é ele, acho que vamos precisar de uma lâmina maior e com
um fio mais cego. O que acha de ser picotada com uma faquinha de
manteiga, pequena Alienadora? Vai me dar trabalho, mas, ah, que
satisfação.
Respira fundo.
Respira fundo, segura… inspira pelo nariz, conta até dois, solta pela
boca.
Eu consigo sobreviver.
Chego a me convencer disso, pelo menos até ele começar a golpear
a minha coxa, e então um grito entrecortado e rouco sai rasgando minha
garganta. Gryphon está socando a barreira, fazendo minha cabeça latejar, e
preciso vomitar.
Também é nessa hora que a cena se torna insuportável para Kieran e
ele grita com Davies, o que me assusta, porque, em meio a tanta dor, eu
tinha praticamente me esquecido de que ele estava aqui.
— Tira as mãos dela e eu conto onde ele está.
Embora a faca enterrada na minha coxa tenha parado de se mover,
Davies não a tira por completo. O músculo se contrai em volta da lâmina
como se meu corpo estivesse tentando expulsá-la, mas ele segura o cabo
com firmeza.
Enfim, pisco e abro os olhos, no entanto, o foco de Davies está em
Kieran. Quando olho para onde ele foi acorrentado, noto que o coitado
continua parecendo alguém com o pé cova, mas é com um brilho de
determinação nos olhos que diz:
— É o outro Vínculo que você vai querer, o que está na cabeça dela.
É mais forte que eu. Se eles consumarem o Vínculo, ela vai receber o
reforço de poder que você deseja. Ele é um Neuro, como você… e bem
parecido contigo, na verdade. Desde que se conheceram, vive na cabeça
dela. Se tem alguém capaz de te ajudar a controlar o vínculo dela, é ele.
Porra, para de cortar ela que eu digo onde ele está.
Quero gritar para ele calar a merda da boca, mas não consigo falar
com o nó que sinto na garganta causado por toda a dor e pelo instante em
que acho que vejo o triunfo nos olhos de Davies. Ele sabe que Kieran está
prestes a lhe dar outra peça do quebra-cabeças, outro brinquedo para ajudá-
lo a me transformar na arma que tanto deseja. Depois de anos sem
conseguir nada de mim, não tem a menor chance de ele sequer questionar a
oferta de Kieran.
Ele vai simplesmente aceitar, encontrar meu Vínculo e arrastá-lo até
aqui para passar tudo isso junto comigo.
Davies decide dar a cartada final e força a faca mais fundo, fatiando
o músculo. É aí que meu vínculo enfim entra em ação. Ele assume o
controle, poupa minha mente da agonia, e então não sinto mais nada.
Absorve tudo por mim, agindo como a melhor esponja do universo.
Contudo, meus olhos não mudam de cor. Meu vínculo não é bobo de
fazer isso aqui.
Kieran não faz ideia de que minha dor acabou e solta:
— Massachusetts. Ele está no Massachusetts. Me dá uma caneta.
Vou escrever o endereço, mas pare de machucá-la.
Um jorro horrível de sangue sai da minha perna quando Davies
finalmente tira a faca. Um vinco se forma entre as sobrancelhas de Kieran
ao ver isso, mas Davies pega um tecido e amarra um de seus torniquetes
para estancar o sangramento. Como um especialista em controlar fluxos
sanguíneos, costuma usar este conhecimento para me manter consciente o
máximo possível durante as sessões.
Ele limpa as mãos em uma toalha, vai até o outro lado da tenda,
onde Kieran está preso, e o encara de cima, como se fosse capaz de decifrar
se está ouvindo uma mentira.
Só que Davies não tem essa habilidade.
Kieran cumpre muito bem seu papel e não mostra nenhum sinal de
blefe ao olhar nos olhos de Davies, ditar um endereço e até passar as
coordenadas de um lugar que nunca ouvi falar.
Devagar, Davies abre um sorrisinho, certo de que saiu vitorioso, e
volta à escrivaninha.
— Se estiver mentindo a respeito desse Vínculo e de onde encontrá-
lo, vou voltar e torturar de verdade a Alienadora. Isso foi só um
aquecimento, mas se me tirar daqui à toa e eu não voltar com aquele Neuro,
amputo a perna dela. Não vai ter nenhuma anestesia, e ela não precisa das
duas pernas para ser minha arma. Da última vez esse era meu plano, a
próxima coisa que eu faria para ela começar a falar. Estou empolgado para
tentar.
Quero desmaiar só de ouvir isso, mas então ele volta à mesa e enfia
uma agulha no meu pescoço, injetando alguma coisa com efeito imediato, e
meu cérebro fica desorientado.
— Só uma garantia a mais para te manter aqui, pequena Alienadora.
Já volto com seu outro Vínculo. Seja boazinha e me espere.
Ele sai, e eu fico perdida pra caralho. Não consigo distinguir cima e
baixo, sinto que a mesa está rodopiando no espaço sideral e minha pele
começa a pinicar como se milhares de formigas em chamas tivessem sido
injetadas nas minhas veias.
Perco completamente a calma.
Ouço um estalo e um grito abafado, como se alguém tivesse tentado
morder um pano para evitar fazer barulho e visto que não deu certo. Depois,
ruídos de vômito. Meu estômago não gosta nadinha do som e protesta na
mesma hora, e eu viro a cabeça para vomitar. As amarras estão justas
demais e não consigo me mexer muito, mas tenho certeza de que há gorfo
escorrendo pelo meu queixo, só não consigo sentir nada além das sensações
que a droga está me causando.
Acho que estou chorando.
E eu nem quero chorar – os pequenos fragmentos sãos do meu
cérebro não estão sentindo esse tipo de emoção –, mas o fôlego está se
desvencilhando do meu peito e começo a sentir gosto de sal.
Há um grunhido e o barulho de um saco pesado sendo arrastado pela
terra. Então, de algum jeito, o rosto de Kieran aparece na frente do meu.
Não faço ideia de como diabos ele chegou aqui (deve ser uma alucinação) e
acho que choro mais ainda, de soluçar.
Ele está tentando falar comigo, mas as palavras estão distorcidas,
porque embora eu veja seus lábios se movendo, o que sai não faz sentido.
— Mata… só ele… peça ajuda… Oli, por favor… mata… sei que
consegue…
Franzo o cenho para ele e, por fim, consigo puxar o ar arfando. No
entanto, qualquer que seja a merda que Davies injetou em mim, volta a
revirar meu estômago e a bile sobe pela minha garganta.
Há um instante de escuridão, de um nada em que quero me aninhar
e ficar ali para sempre, mas então o rosto de Kieran aparece mais uma vez,
com vômito na camisa e na calça. Acho que é meu, mas ele não está bravo
ou enojado.
Está desesperado.
— Mata ele, Oli… mata o Franklin…
Não entendo o que ele está dizendo.
Ainda assim, meu vínculo entende.
Então, só o que existe é morte e dor, sangue e destruição. A droga
pode ter acabado comigo, mas meu vínculo sempre foi muito mais forte do
que qualquer pessoa é capaz de compreender, e ninguém me ameaça sem
ter que se entender com a deusa sombria que vive dentro de mim.
Três noites.
Faz apenas três noites que ela está ausente desta vez, e ainda assim o
caos que deixou para trás é inacreditável. O mau humor e o comportamento
obsessivo de Gryphon fazem sentido, já que o idiota foi burro o suficiente
para se Vincular totalmente a ela. Já o resto deles?
Patéticos.
Todos sabíamos que ela fugiria assim que tivesse oportunidade.
Gabe e Bassinger, incapazes de formular um único pensamento, não
raciocinaram que seria melhor deixar o rastreador de GPS dentro dela.
Além disso, temos também a seguinte questão: acho que o vínculo
de North está prestes a assumir o controle e dizimar o país inteiro para
recuperá-la. Depois de décadas brincando de conselheiro educado,
cultivando o homem pacato e cheio de morais que é, ele está prestes a
estragar tudo por ela.
Vínculos desgraçados.
É claro que não há um único sinal dela ou das dezenas de outros
Favorecidos que foram levados. Assim que voltamos de nossa missão
interrompida, encontramos Gabe transformado no maior lobo que já o vi
assumir, rosnando e brigando com Atlas, como se quisesse rasgar a garganta
dele.
Depois que os separamos, levou uma hora inteira para que Gabe se
acalmasse o suficiente para mudar de forma, e então nos contou que Atlas
sabia bastante a respeito do tempo que Fallows passou com a Resistência.
E do nome que deram a ela.
Nunca gostei dele e deixei minhas opiniões sobre a situação bastante
claras, porque já perdemos um Draven para uma agente disfarçada este ano.
Mantê-lo por perto só por causa de um Vínculo que, para começo de
conversa, nunca quis nenhum de nós, é estupidez.
North não me dá ouvidos.
Ele não me escuta mais, o que é só mais um ponto contra ela.
Mas, mesmo depois de Bassinger ser preso, passamos três dias
inteiros de mãos atadas, tentando, sem sorte, descobrir onde estão sendo
mantidos. Todos os campos e residências que monitoramos seguem as
atividades de sempre e não há nenhuma informação nova. Zero. Eles sabem
que estamos ouvindo, então assim que apanharam Fallows, as linhas caíram
em um silêncio sepulcral.
Voltamos a analisar todas as informações antigas em busca de
alguma pista ou qualquer indício que possamos ter deixado passar a respeito
da localização. Gryphon é melhor em estratégia do que com papelada e
passa a maior parte do tempo mantendo suas Equipes em alerta para o
momento em que encontrarmos alguma coisa, por isso resta a mim e North
a tarefa de passar um pente fino em tudo.
Só duas coisas chamam nossa atenção e nenhuma oferece algo
substancial o bastante para possamos avançar.
A primeira é na região mais elevada e fria do Alasca, onde uma
tentativa de resgate seria um completo pesadelo no que diz respeito à
logística.
Ou, talvez, no meio do deserto do Saara, o que também requereria
muita comunicação com as autoridades e comunidade Favorecida de lá para
ir buscá-los. Portanto, de qualquer modo, precisamos ter certeza antes de
continuarmos.
Não é o que acontece.
Durante o jantar do terceiro dia sem ela, enquanto todos discutimos
acaloradamente o próximo passo, já que Gabe está furioso por não estarmos
perambulando por um deserto ou pela tundra congelada até darmos de cara
com ela, Gryph se joga para longe da mesa gritando, e sua cadeira bate com
força no chão.
O sangue some de seu rosto quando ele sente. O espectro da dor de
Fallows, como se fosse sua própria. Meu vínculo começa a se contorcer no
peito, daquele jeito terrível que tem feito perto dela, mas seja lá o que
estiver acontecendo no campo da Resistência, Gryph sente com mais
intensidade graças à conexão entre eles.
Ele solta um urro e cai de joelhos quando as pernas falham. Não
ouço um som desses sair dele desde a última vez em que foi baleado em
serviço. North quase perde o controle do próprio vínculo e dispara até ele,
rosnando. Gabe se empurra para longe da mesa, mas suas mãos estão
tremendo e seu rosto está pálido, doentio.
Alguém está ferindo o Vínculo deles.
Sei disso porque também consigo sentir o eco, essa dor que não é
minha, e as palmas das minhas mãos imediatamente começam a suar. Meu
vínculo quer ajudar, salvá-la, sentir a dor em seu lugar e despedaçar quem
está ousando tocá-la.
Ela não é minha. Eu não devia me sentir assim por causa dela.
Não devia me sentir assim por causa de ninguém. Não sou tão
ingênuo para cair nesses truquezinhos, e de jeito nenhum vou me colocar
numa situação como aquela de novo.
Nunca mais.
— O que foi? O que está acontecendo com ela? — North esbraveja
enquanto seu celular começa a tocar sobre a mesa.
Ignoramos, mas assim que para de tocar, o de Gabe começa, e ele
grunhe olhando para o aparelho.
— É o Bassinger. Ele deve estar sentindo também.
Gryphon inspira pela boca, arfando.
— Ela está sendo torturada. Entrei na cabeça dela, mas ela me
empurrou pra fora de novo. Tem alguém retalhando ela.
MATE TODOS. ESSES BÁRBAROS IMUNDOS, TOCANDO NO QUE É NOSSO.
Balanço a cabeça como se o movimento fosse afastar o som do meu
vínculo. Minhas criaturas não gostam de dividir, nem mesmo com os
outros, e não importa o quanto eu diga a elas que não a terei, elas tampouco
querem que mais alguém encoste nela.
Gabe se levanta de supetão e vocifera:
— Onde é que ela está, caralho? Vamos para o deserto. Mande uma
equipe para a neve. Não dá mais pra gente continuar sentado à toa…
Ele é interrompido pelo crac barulhento da chegada de um
Transportador, e então Kieran Black se prostra gemendo diante de Gryph,
parecendo que foi espancado pela Resistência inteira. A julgar pelas
expressões nos rostos de North e de Gryphon, é melhor que tenha sido.
Porque Fallows não está com ele.
— Me arruma um Curandeiro. Agora — diz ele, rangendo os dentes.
Gryphon se ajoelha, segura-o pelo colete e o puxa em direção ao seu rosto.
North já está no celular mandando Felix Davenport descer aqui. Seu
segundo aparelho está na mão também, e ele começa a mandar as Equipes
Táticas se prepararem para sair.
— Black, cadê a minha Vinculada, cacete?
Kieran fica verde e contrai a mandíbula com a dor causada pela
forma com que Gryphon o segura, mas diz, engasgado:
— Me arruma um Curandeiro que eu volto para buscá-la.
Entro em contato com Azrael, a sombra que fica com ela e que ela
está se dedicando a domesticar, para descobrir o que diabos está
acontecendo lá. Ainda não há sinal de risco ou de problemas. Mando Azrael
ficar de alerta e ele choraminga um pouco por estar longe de Fallows num
momento de perigo – ele tem um fraco gigantesco pela garota.
— Você a abandonou?!
O grunhido de Gryphon deixa claro que é bem possível que ele mate
Black por isso, mas qualquer um que tenha olhos consegue ver o que está
acontecendo. Contudo, Black está bem o suficiente para esclarecer a
situação.
Ele retruca com uma voz rouca e cheia de dor:
— Estou com duas fraturas na perna e uma puta sepse em
andamento. Não tive força suficiente para trazer ela comigo. No segundo
que o Curandeiro terminar, posso te levar lá, mas me arranja um agora,
porque ela está sozinha.
Felix entra correndo pela porta, acompanhado pelos dois Benson, e
vai direto até Black, sem esperar pela ordem de curá-lo. O estado de Kieran
o faz xingar baixinho, mas seu dom é forte o suficiente para resolver. Ele é
o melhor da turma e um prodígio entre seus colegas, mas é tão humilde que
não daria para perceber nada disto só de olhá-lo. É um dos pouquíssimos
Curandeiros que estou disposto a permitir que me tratem.
Gryphon se afasta para deixar Kieran receber o tratamento, volta até
a mesa e pega as armas que tinha soltado do corpo para comer. Gabe vai até
os Benson e os atualiza em voz baixa do que aconteceu, e North está
praticamente vibrando com o celular na orelha, berrando ordens para
mobilizar as Equipes Alpha e Bravo. Sinto seu alívio por ver que ambas já
estavam de sobreaviso, já que andávamos esperando por este momento.
— Pode falar enquanto ele cura você. Diga que desgraça é essa que
está acontecendo com ela — grunhe Gryphon, conferindo pela última vez
que todas suas armas estão firmes no lugar. Black cerra os dentes enquanto
o osso de sua perna é refeito.
— É o Silas Davies. É isso o que está acontecendo com ela, e
também foi o Silas Davies que aconteceu da última vez. Ele é obcecado
para um caralho com ela. Ele estava… dando uma de açougueiro quando te
ouviu na mente dela. Tive que pensar rápido para evitar que a Fallows fosse
assassinada só por tentar manter todos vocês longe dele.
O filho da puta do Silas Davies.
Nada mais do que o lendário supervilão da Resistência, o bicho-
papão cujas façanhas são contadas aos sussurros nos recônditos mais
obscuros do mundo Favorecido.
North olha para mim e eu sei que é game over para ele. Essa era a
última peça do quebra-cabeças para entender o mistério que é seu Vínculo.
Neste momento, ele se dá conta de tudo o que precisava saber sobre ela.
Caiu feio, como um patinho, e agora pertence a ela, quer admita a si mesmo
ou não.
O Curandeiro afasta a mão do peito de Black e enrola o tecido da
calça para olhar direito o tornozelo mutilado. Está com uma aparência de
que não resta qualquer estrutura óssea ali, como se alguém o tivesse
atingido com uma marreta até sobrar apenas pó. Felix faz uma careta ao
apoiar uma mão de cada lado para dar início à reconstrução dali também.
A imagem me faz lembrar do trauma e sou obrigado a engolir o
vômito. Preciso me distrair, lembrar de que isso é muito diferente do que o
que aconteceu comigo. Tenho que me esforçar para garantir que minha voz
soe entediada:
— O que houve com você?
North e Gryph sabem exatamente o que estou fazendo, mas todos os
outros disparam olhares furiosos na minha direção, como se eu me
importasse com a opinião deles.
Parecendo um pouco menos doente, mas com o rosto ainda
encharcado de suor, Black me dá uma olhada breve e retruca:
— O fêmur foi quebrado logo que chegamos. A sepse é porque não
trataram a perna. Fraturei meu próprio tornozelo faz mais ou menos uma
hora para me soltar das correntes e fazer a Oli matar o John Franklin, o
Escudo mais forte da Resistência, para que eu conseguisse voltar aqui. A
propósito, ela matou, e o vínculo finalmente assumiu o controle. Eu a tirei
da mesa de tortura antes de vir. Conferi os sangramentos dela e me
certifiquei de que todos os torniquetes estivessem firmes. Ela vai ficar bem,
contanto que o Davies não volte antes de a tirarmos de lá. Sem querer ser
cuzão, Davenport, mas você precisa agilizar.
O Curandeiro lhe dá um olhar chateado e diz:
— Você estava com sepse, seus rins estavam parando de funcionar e
faltavam só umas doze horas para você sofrer falência múltipla de órgãos.
Desculpa se estou levando um minutinho para impedir sua morte iminente.
Com um barulhinho de engasgo no fundo da garganta, Sage ergue a
mão para cobrir a boca e abafar quaisquer outros sons horrorizados que
possa fazer.
North xinga e fala:
— Só nos diga onde a Oleander está. Você pode ficar aqui
recebendo tratamento, não precisa voltar lá. A gente tem Transportadores o
suficiente para ir atrás dela e assumir o controle da situação em segurança.
Black grunhe, solta um gemido baixo quando o som de seus ossos
quebrados se recompondo ecoa pelo cômodo, e diz, ofegante:
— Não dá… não sei exatamente onde fica… cheguei lá seguindo os
insurgentes. Posso mapear, mas não… não sei as coordenadas ou a
localização.
Xingo baixinho – óbvio que não seria tão fácil assim. Retruco:
— E quanto tempo falta até o Davies voltar ao campo? Estamos
ficando sem tempo enquanto você é remendado.
Black grunhe de novo quando o barulho de ossos sendo triturados
ressoa mais uma vez e rosna para mim:
— Eu mandei ele até Hail Mary para ganhar tempo. Não sou a porra
de um idiota.
Cacete.
Acho que vai servir.
Observo quando metade das pessoas no cômodo respira fundo,
porque Black tem razão – ele definitivamente não é nenhum idiota se
mandou Davies para lá. Hail Mary é nosso abrigo secreto no Massachusetts,
um labirinto repleto de armadilhas, arames farpados e câmeras de
segurança. Conheço o local muito bem, já que meu tio William me enviou
para lá com North durante minha adolescência, quando tivemos um
problema de segurança. Mesmo com todas as minhas criaturas de pesadelo,
eu não conseguia achar a saída.
Os olhos de North encontram os meus do outro lado da sala de
jantar quando ele tira o paletó, o que releva quantas armas diferentes podem
ser escondidas sob um terno Tom Ford, e diz:
— Se vai com a gente, precisa vestir o uniforme tático completo.
Você também, Gabe. Partimos no segundo em que Felix terminar e Kieran
puder se transportar.
Assim que nossos pés tocam o solo do acampamento, fica claro que
as coisas mudaram drasticamente desde que Black escapou. Puxo a
pescoceira para cobrir meu rosto, deixando minhas criaturas saírem, e vejo
através de Azrael, mas Kyrie continua nas celas. A diferença é que agora os
guardas da tenda estão todos mortos em uma pilha no chão, e as outras
mulheres estão tremendo e soluçando com o trauma do que acontece ao
redor.
Diferente da Kyrie.
Uma reação típica dos Shore a este tipo de coisa. Ela está agachada,
esperando só uma abertura para dar o fora de lá e matar qualquer membro
da Resistência que encontrar pela frente.
Inclino-me na direção de Gryph e murmuro:
— Diga a Kyrie que estamos aqui e indo até ela. As prisioneiras
parecem meio abaladas.
Ele se vira para me olhar e bufa, gesticulando com a mão,
impaciente.
— Acabamos de entrar em um massacre e nosso Vínculo está por aí,
ferido em algum canto daqui… Você não vai nem tentar encontrar ela
primeiro?
Olho para os cadáveres, para as dezenas de corpos caídos onde quer
que tenham morrido, e então volto a encará-lo.
— Não sou bobo. Isso é tudo obra desse nosso Vinculozinho
venenoso. Ela está muito bem, obrigado. Tem outros Favorecidos aqui que
não conseguem matar pessoas só com força de vontade.
North passa apressado por nós dois enquanto suas próprias criaturas
vão saindo com força total e esbraveja:
— Encontrem nosso Vínculo primeiro, depois buscamos os
prisioneiros e quaisquer sobreviventes.
Gabe vai atrás deles e, mesmo que seja o único de nós que já viu os
poderes assassinos dela de perto, parece um tanto abalado, o que não o
impede de seguir, implacável, em busca de seu Vínculo. Gryph grita ordens
para sua equipe antes de acompanhar os dois, completando a tríade de tolos
apaixonadinhos ao resgate de uma garota que não precisa ser salva.
Se ela será levada daqui antes que Silas Davies retorne? Com
certeza.
Se será salva dos bandidinhos da Resistência com quem ele a deixou
antes de sair? Não. Qualquer um que tenha olhos e dois neurônios
funcionais dentro do crânio consegue ver que ela tem tudo sob controle. A
única parte de mim doida para se reencontrar com ela, no momento está de
guarda na tenda das prisioneiras, então é para lá que eu vou, para confirmar
que não aconteceu nada com Azrael ou Kyrie antes de sair correndo atrás de
qualquer Vínculo que seja.
Rahab, Procel e Mephis me seguem de perto enquanto percorremos
as tendas, assumindo suas formas de Doberman ferozes conforme
avançamos. As outras criaturas estão espalhadas em diversos formatos e
tamanhos, aguardando o retorno de Davies para devorarem aquele
desgraçado. Contudo, não há motivo para nos preocuparmos de verdade
com os membros da Resistência que ficaram aqui.
Já estão todos mortos.
Ela é boa, isso eu reconheço, ainda mais por conseguir matar tanta
gente sem se esgotar. É mais poderosa do que qualquer um de nós
imaginava. Com exceção dos dados de espionagem que North e eu
estivemos vasculhando, o pouco que li foi totalmente focado no pouco que
sabemos a respeito de Alienadores de Almas, e nada do que estudei chega
perto deste nível de destruição.
Os olhos de vácuo fazem muito mais sentido agora.
MINHA.
Xingo e puxo a pescoceira mais para cima, de modo a ocultar meu
rosto para que ninguém da Equipe Alpha se apavore vendo a fúria em meu
rosto quando é apenas meu vínculo e as criaturas que fazem parte da
equação. Vínculos são perigosos, não vou me deixar desprotegido dessa
forma. Ainda que cada uma das minhas criaturas fique tão obcecada por ela
quanto Azrael está, nem assim a terei.
Nem mesmo para saborear aquele poder.
Kyrie se levanta num pulo assim que vê minha silhueta, e eu a
percebo esmorecer um pouco quando percebe que sou eu e não o irmão
dela. Não me ofendo. Eles cresceram unidos, e a perda dos pais só fez com
que se apoiassem ainda mais um no outro.
Exausta, ela volta a se encostar nas grades e resmunga:
— Graças a Deus. Por favor, diz que vocês já tiraram a Oli daqui.
Por que é que todo mundo só consegue pensar nisso, sendo que ela é
forte o suficiente para cuidar de si mesma neste lugar?
— Os outros foram atrás dela. Pensei que você estaria mais
preocupada em sair desta celinha em que se meteu.
Ela bufa e levanta a mão para afastar os cabelos cor de mel do
ombro, revelando onde Azrael está escondido em sua menor forma.
— A Oli o deixou comigo, e olha que tenho certeza de que teria sido
útil pra ela. Ele me salvou de um estupro coletivo por uma gangue de
escórias da Resistência no chuveiro, então me desculpe se me preocupo
com a menina.
Puta que pariu.
Eu me aproximo da cela e gesticulo para Rahab abrir a porta. Ele é
minha criatura mais brutal e quebra o cadeado para liberar Kyrie com
apenas um puxão. Assim que ela sai, Azrael pula de seu ombro e pousa
perto de mim em sua forma de Doberman adulto. Os outros ladram para ele,
seu próprio jeito de se cumprimentarem, mas ele fareja meus pés,
aparentemente sentindo o cheiro de tudo que aconteceu desde que nos
separamos.
Ou seja, o cheiro de uma porrada de frustração e de informações da
espionagem.
Kyrie estremece de leve, como se estivesse deixando um milhão de
calafrios saírem, e reclama:
— Não se ofenda, mas fico feliz de não estar mais com ele. Prefiro
um revólver e uma faca a um pesadelo.
Bufo para ela, e logo em seguida tiro uma Glock do coldre no meu
ombro e lhe entrego. Kyrie foi agente de Equipe Tática durante cinco anos,
e só saiu para tomar conta da cafeteria da mãe quando ficou claro que
Gloria estava determinada a fazê-los fecharem as portas, portanto, está mais
do que preparada para me dar cobertura enquanto tiramos os outros daqui.
Observo as outras mulheres, que continuam amontoadas, olhando
para mim como se eu fosse um monstro. Kyrie dá uma olhada para trás,
fecha a cara, e repreende:
— Este é o Nox Draven. Ele veio nos resgatar, então é bom todas o
tratarem com respeito, caso contrário vou deduzir que são simpatizantes da
Resistência e meter bala.
Olho para ela, que só dá de ombros.
— O Gryph me ensinou a lidar com essa baboseira de “monstro” há
muito tempo. O negócio é cortar o mal pela raiz e seguir em frente. Não
temos tempo nem energia para tratar ninguém a pão de ló agora.
Ela se afasta, apalpa o corpo de um dos guardas em busca das
chaves e começa a soltar as mulheres, agora envergonhadas e em silêncio.
Ainda teremos que libertar a tenda dos homens e, depois, lidar com a
desgraça que vai ser transportar todo mundo daqui. Não faço ideia de
quanto tempo se passou desde que Davies foi até Hail Mary, mas o nosso
deve estar acabando.
Precisamos nos mexer.
Azrael me encara com um olhar meigo, um que não deveria estar
demostrando tão abertamente na frente de estranhos, e choraminga como
um filhotinho. Ela o está estragando. Quanto mais tempo passam juntos,
mais ele deseja o tratamento gentil e amoroso que ela oferece. Todas
aquelas coçadinhas na barriga e carinhos… em breve ele será inútil em uma
luta.
Ele choraminga de novo e eu reviro os olhos.
— Tá bom, pode ir atrás dela. Vê se não come ninguém no caminho.
Fazer a limpa no campo é fácil demais.
Fácil demais e insuficiente para me satisfazer. Queria que fosse mais
desafiador ou tivesse mais gente para torturar, mas, tirando Franklin, há
apenas mulheres que ficaram falando besteira sobre mim e os poucos
guardas.
Embora eu sinta uma coisinha ao engatilhar seus pesadelos, um leve
prazer, não basta, e fico ávida para simplesmente arrancar suas almas do
corpo e acabar logo com isso. Que insatisfatório.
A mocinha que costuma estar no controle está em algum lugar no
fundo da minha consciência, mas a melhor forma de fazer o que é
necessário é deixá-la completamente de fora dessa. Ela é delicada demais
para esse tanto de destruição.
Já eu me deleito.
Sinto quando eles vêm me encontrar, sinto as orlas dos meus
sentidos projetados formigarem quando eles aparecem no campo, mas estou
concentrada demais nos três imbecis da Resistência na minha frente para ir
atrás daqueles meus Vínculos.
Já sei que virão até mim. Até quando as insignificantes rixas
humanas dessa gente entravam no caminho, eles continuavam vindo até
mim e à moça dentro de quem vivo.
Zarah, Linda e o guarda linguarudo, Cam, estão presos pelos pulsos
aos paus da tenda, com os pés balançando um pouquinho acima do solo.
Sou obrigada a reconhecer que as estruturas que eles montam são
resistentes mesmo. Foi uma merda pendurar os três ali, mas valeu cada
instante do esforço.
Linda e Zarah já estão mortas, suas mentes cederam rápido demais,
o que, sinceramente, era previsível vindo do tipo de gente que acredita na
propaganda ideológica da Resistência. Assim que elas se tornaram cascas
balbuciantes em que não havia mais nada além de um coração ainda a bater
no peito, terminei o serviço. Não há nada de satisfatório em ficar assistindo
um corpo desfalecer lentamente.
Cam, no entanto, cheio de espírito esportivo, continua aguentando
firme.
Ele se sacode enquanto engasga pouco a pouco com o sangue
vazando das suas órbitas oculares. É grotesco. Tenho que me lembrar de
esconder isso da mocinha, de enfiar essa memória lá no fundo dos recessos
de sua mente para que ela nunca sinta aquela pontada inútil de culpa por
causa disso. Ela vai sentir culpa, as coisas que faço para proteger a ambas
sempre a fazem sentir, mas eu não sinto. Eles se atreveram a botar as mãos
em nós, e por isso morreram.
Ouço a tenda farfalhar às minhas costas, mas não me viro para olhar,
porque não quero perder nem um segundo da morte de Cam. Consigo sentir
algo entrando no espaço fechado conosco, mas não é um Favorecido, sequer
é humano, e finalmente forço meus olhos a se desviarem de minha presa
para ver o que está aqui, interrompendo meu trabalho.
O ofídio é tão escuro quanto a mais sombria das noites sem estrela,
embora suas escamas cintilem mesmo assim. É sobrenatural, é perigoso e é
meu. Admiro-o, hipnotizada por sua beleza, com meus pés enraizados na
grama. Um deus sombrio por direito próprio.
Ele se ergue até que seus olhos (perfeições em vácuo) fiquem na
altura dos meus. Por um momento nós nos encaramos; é um instante de
aceitação, pois fomos feitos um para o outro e feitos um do outro antes de
sermos divididos e colocados neste planeta, apenas para procurarmos um
pelo outro por toda eternidade.
E então ele dá o bote.
Não em mim, é óbvio. Ele nunca feriria a mim ou à moça. Não, ele
dá o bote e arranca Cam de onde está pendurado. Sangue esguicha pelas
paredes da tenda, e acho bela a visão de estar assistindo a criatura do
Sombrio devorar aqueles que ousaram colocar as mãos em mim.
A abertura da tenda farfalha mais uma vez com a chegada deles.
Três fragmentos da minha alma, sendo que apenas um me concedeu o que
eu quero e os outros dois continuam ainda tão resistentes quanto à moça.
Uma onda de irritação percorre minha espinha, mas dou um passo à frente
para acariciar o corpo brilhoso da serpente, deleitando-me com o brilho
monstruoso de suas escamas contra a degradação manchada de sangue das
minhas mãos.
Meus Vínculos e suas habilidades são magníficos.
— Que diabos ela está fazendo? — sussurra o Metamorfo, e o
Sombrio o silencia antes de se aproximar de mim com passos leves.
Não me viro para olhá-los. Em vez disso, observo enquanto os
restos finais de Cam são consumidos em uma confusão de sangue e carne.
A forma como simplesmente desaparece é reconfortante, porque ele merece
ser inteiramente erradicado deste plano terrestre.
O ofídio volta a me encarar; seus olhos examinam cada centímetro
de mim, mas ficam retidos em minha perna, onde os danos que Davies
causou à moça encharcam o tecido da calça. Não me preocupa, não é nada
que atrapalhe a destruição que este lugar precisa sofrer e que eu, finalmente,
posso levar a cabo.
Esperei tempo demais dentro da moça por este momento. Nenhuma
lesão me impediria de reivindicar o que me é devido.
Quando o ofídio desliza por mim, esfregando-se na lateral do meu
corpo e voltando até seu mestre, levanto-me e enfim viro de frente para
meus Vínculos. Todos me encaram com expressões distintas. Surpresa,
terror, desprezo, preocupação, nojo. Sei que a maioria é dirigida aos homens
e mulheres que matei, mas, mesmo assim, fico um tanto encantada com a
reverência. Não importa que seja uma admiração horrorizada; eles me
olham como se soubessem que sou uma deusa.
Por fim, o Sombrio fala:
— Oleander, você está sangrando.
Olho para baixo e vejo que o torniquete, de fato, saiu do lugar, mas a
dor é insignificante. Talvez a perda de sangue possa me afetar, mas ainda
não chegamos nesse ponto.
Meu Vinculado impede que o Metamorfo venha na minha direção
com a palma da mão em seu peito. Uma luz branca se acende em seus
olhos, e ele diz:
— Vinculada, deixe-me consertar.
Consertar não é bem o que eu quero. Quero todos eles nus, quero
seus corpos se contorcendo junto ao meu, quero meu sangue cobrindo todos
nós e os marcando. Quero parar de jogar esses joguinhos infantis e
medrosos.
Ele ergue um pouco o queixo e sua respiração se intensifica. Seu
peito se expande em reação ao meu desejo, e é exatamente isso que quero.
O Sombrio avança, entra na frente dos outros dois sem hesitar e me
oferece a mão. Seus olhos permanecem de um azul profundo; ele está
mantendo seu próprio vínculo sob controle.
Quero romper esse controle.
Quero abri-lo e extrair meu Vínculo de dentro de seu invólucro
cuidadoso, libertar o poder que pertence a mim e me deleitar em nosso
Vínculo compartilhado.
Ele me decifra bem demais e fala devagar, medindo cada palavra
que deixa sair:
— Deixe-nos levá-la para casa, e daremos o que você quiser. O que
quer que precise, qualquer que seja seu capricho, será tudo seu, mas você
vai morrer se não controlarmos o sangramento logo.
Amaldiçoo o invólucro de carne inútil dentro do qual estou presa, e
por fim aceito sua mão. Deixo que ele me conduza até a escrivaninha e me
coloque sobre ela com delicadeza para avaliar os danos e ajeitar o
torniquete.
O Metamorfo se aproxima de novo e, só um pouco hesitante, segura
minha outra mão, entrelaçando nossos dedos como se estivesse tentando…
me consolar. Não vou ser eu a lhe informar que não preciso de consolo.
Preciso completar meus Vínculos e destruir tudo.
Meu Vinculado estala a língua para mim e murmura:
— E eu aposto que é bem por isso que a Oli não quer. Talvez você
devesse conter um pouco os planos de extermínio, quem sabe assim você
consiga o que deseja.
Olho feio para ele, que só dá de ombros. Que irritante. O Metamorfo
o olha um pouco confuso, mas volto meu foco ao Sombrio. Seus dedos,
firmes e certeiros, avaliam o terrível estado da minha perna, ocultando a
imagem da vista dos outros dois com seu corpo. Quando percebe que estou
observando, diz baixinho:
— Precisamos te levar a um Curandeiro. Os cortes estão perto da
artéria e você andou demais com a perna assim. Deixe um de nós carregá-la
a um Transportador, assim podemos te levar a alguém.
Inclino a cabeça de lado e suspiro.
— O Vinculado da garota-Incêndio. Mais ninguém.
O Sombrio assente e ergue a mão para acariciar meu rosto.
— Vamos levá-la ao Kieran e ele vai te transportar até o Felix. Neste
momento, só confiamos no nosso círculo íntimo. Vou carregar você agora.
Eu o quero, mas preciso de forças agora e ela flui com mais
facilidade entre meu Vinculado e eu, graças à nossa ligação, então digo:
— Não. Quero ele.
O Sombrio assente sem hesitar e se afasta; meu Vinculado se
aproxima e me ergue nos braços. Ele toma cuidado com o ferimento,
aninhando minha coxa de forma protetiva com um braço à lateral do seu
corpo, e aconchega meu peito ao seu.
Há tecido demais entre nós para a transferência de poder de que
preciso, mas, antes que eu possa exigir que ele tire a roupa e me dê o que
preciso, já estamos saindo da tenda.
No instante em que chegamos em espaço aberto, há olhos demais
sobre nós.
Tanto os sobreviventes quanto a cavalaria nos encaram enquanto nos
movemos pelo acampamento. O porquê é óbvio, já que estamos tendo que
passar por dúzias de corpos para voltar ao Transportador, mas tudo isso é
irrelevante para mim. Não me importo com o que eles acham do que fiz
aqui, porém a julgar pelas expressões nos rostos dos meus Vínculos, eles se
importam.
Sinto que eu deveria ressaltar que sou uma deusa misericordiosa e
só mato aqueles que torturam, mutilam e assassinam em proveito próprio,
de forma nefasta. Os serezinhos vivendo tranquilamente não significam
nada para mim.
— Puta que pariu, fiquem felizes por não conseguirem ouvir o que
está passando na cabeça dela agora. Um monte de coisa relacionada ao
nosso Vínculo e o medo que ela tem disto aqui está fazendo sentido agora
— diz meu Vinculado, e resisto à vontade de enfiar a mão no seu peito e
arrancar o coração.
— Você não faria isso. Nós dois sabemos que precisa de mim.
Mesmo assim. Seria divertido.
Quando chegamos ao fim das tendas e à pequena clareira,
encontramos o Transportador esperando por nós com o outro Sombrio, o
que está danificado.
Ele não reage à nossa chegada, quase nem olha na minha direção,
mas o Transportador fica todo embasbacado de alívio.
— Oli! Graças a Deus! Achei que… Meu Deus, Gryph, o que houve
com ela?
— A Oli precisa sair daqui, e agora não é uma hora boa pra
conversar com ela.
— A Oli não está exatamente presente no momento, e o vínculo dela
está tentando planejar como dominar o mundo, então talvez seja melhor
esperar um pouquinho — diz o Metamorfo com um sorriso presunçoso,
todo convencido e seguro de si agora que sabe o que está acontecendo.
Viro o rosto contra o peito do meu Vinculado para olhar nos olhos
do Transportador, reconhecendo que foram suas palavras que me puxaram
para fora da moça e possibilitaram esta destruição. Ele retribui o olhar com
tanto alívio que parece até que ficou mesmo aqui com o coração na mão,
esperando os outros me encontrarem.
Decido mantê-lo vivo. A garota-Incêndio, o Vinculado dela, e esse
aí. Talvez o Tecno linguarudo também, mas só talvez. Eu os deixaria para
morrer por último, logo antes dos meus Vínculos e eu, se chegasse a esse
ponto.
— Vou me certificar de contar isso para a Sage, Vinculada.
Eu lhe dou um olhar furioso que não adianta de nada para remover o
sorrisinho petulante de seus lábios.
— Sai da minha cabeça, seu Vinculado xereta, ou talvez eu repense
meus planos de arrancar seu coração.
Ele ri baixinho.
— Tenho que admitir que é engraçado ver esse seu lado. Não dá
para evitar. Além disso, você saiu correndo direto para os braços do perigo
de novo, sem nenhum dos seus Vínculos. Está me devendo umas risadas.
Não tenho tempo de dizer exatamente como não foi bem assim, que
não devo nada a nenhum deles e que todos deveriam estar me idolatrando
por sequer existir, porque o Transportador se aproxima de nós e, oferecendo
sua mão firme e ensanguentada, diz:
— Vamos dar o fora dessa zona antes que mais alguém acabe
esfaqueado.
Nem reclamo com Gryphon por estar lendo minha mente. Não posso
me permitir acreditar no que ele está dizendo. Não posso me dar ao luxo de
me expor a esse tipo de dor, mas é então que olhos de North encontram os
meus e eu os vejo se encherem de carinho.
Carinho.
Ele se debruça para frente e eu paro de respirar. Sinto que está
prestes a me beijar, bem aqui, pela primeira vez, na frente de sabe lá quem,
e minhas bochechas ruborizam, mas em vez disso, ele murmura baixinho
para mim:
— Vá com o Gryphon. Vou encerrar isto aqui assim que puder.
Suas mãos seguram meus quadris quando me levanto, equilibrando-
me até eu ter certeza de que minhas pernas vão me aguentar, e, assim que
dou o primeiro passo e faço uma careta, Gryphon passa um braço pela
minha cintura. Permito-me uma última breve olhada no rosto de North antes
de o deixarmos. Se eu achava que tinha sentido desespero em suas mãos me
segurando antes, aquilo nem se compara ao obscuro sentimento de posse
que vejo em seus olhos agora.
Ele está me encarando como se eu fosse sua presa.
Logo desvio o olhar e deixo Gryphon me conduzir devagar para fora
dali. Mantenho os olhos no chão para ninguém ver o momento de choque
que estou vivenciando. Quando a dor em minha coxa recém-curada me faz
resmungar, Gryphon murmura:
— Só não estou te carregando de uma vez porque o Felix falou que
você precisava esticar os músculos. Ele me mandou não aliviar sua dor para
poder te examinar de novo e ser mais específico no tratamento, mas se
estiver ruim demais, eu te carrego. Dane-se o que ele diz.
Nego com a cabeça e cerro os dentes.
— Ele é o Curandeiro, é melhor a gente obedecer. De qualquer
forma, não está tão ruim, parece mais uma lesão antiga ou algo assim. Mas,
por favor, diz que tem um banheiro por perto, porque vai ser bem
constrangedor se eu tiver que esperar até chegar no meu quarto.
Minhas tentativas idiotas de fazer piada só o fazem menear a
cabeça; ele me conduz a um banheiro a só duas portas de distância, onde
passo um tempão convencendo Gryphon a me deixar fazer xixi sozinha. Ele
tenta me persuadir a deixá-lo ficar de costas, mas caramba, de jeito nenhum
vai sair alguma coisa assim. Sem chance. Ele é doido de sequer sugerir uma
coisa dessas.
Brutus aparece de trás da minha orelha e pula nos azulejos aos meus
pés. Lágrimas enchem meus olhos porque estou cansada, emotiva e aliviada
pra caralho por tê-lo de volta. Sério mesmo, as poucas horas que passamos
afastados pareceram uma eternidade, e percebo que Nox tem uma baita
carta na manga contra mim agora.
Se tirar meu bebê de mim, vai ser meu fim.
Assim que escuta a descarga, Gryphon se apressa para dentro do
banheiro e me esquadrinha com seus olhos, procurando por qualquer lesão
que eu possa ter sofrido sentada na droga do vaso, e eu bufo.
— Para de ser ridículo. Estou curada e perfeitamente segura aqui.
Brutus está comigo e, não sei se você já sabe, mas meu poder é literalmente
arrancar as almas das pessoas matando elas no mesmo instante. Acho que
aguento uns minutinhos no banheiro sem que você precise ter um surto.
Seus olhos se estreitam para mim, mas me viro de costas para lavar
as mãos. Brutus se enrosca nos meus calcanhares e me apoia, como se
soubesse que a dor na minha coxa agora se tornou uma queimação que faz
meu joelho tremer um pouco.
— Pelo menos agora sei que é você mesma que acordou. Essa
pachorra é inconfundível.
Eu me viro para pegar a toalha e lhe dou um sorrisão.
— Mas você sentiu falta, né? Odeia admitir, mas sentiu falta do meu
atrevimento.
Ele avança, segura meu pulso e me arrasta para seus braços,
ignorando o rosnado de irritação de Brutus.
— Admito cada parte do que estou sentindo. Te perdi de novo, mas
dessa vez foi pior porque eu não tinha mais só a mera ideia de um Vínculo.
Agora você é você. Você é minha, e nos deixou mais uma vez.
Retruco:
— Fui buscar sua…
— Eu sei. Foi buscar minha irmã por mim, e eu posso te amar por
isso e estar furioso pra cacete contigo ao mesmo tempo. Nunca mais vou te
deixar aqui. Nunca mais vou confiar em ninguém, nem no nosso próprio
Grupo Vincular, para cuidar de você.
Vou apenas ignorar o uso dessa palavra com A. Tenho certeza de
que foi só um escorregão, então me limito a assentir.
— Gostei desse plano. A sensação de te deixar foi… não vamos
mais fazer isso. Não tem motivo para não podermos ficar juntos aqui daqui
para frente, certo?
Ele semicerra os olhos como se não acreditasse no que estou
dizendo, o que é ridículo, porque ele pode detectar minhas mentiras e eu
nunca fui tão honesta assim com ele em todos os meses desde que nos
conhecemos. Porém, depois de um minuto, ele supera seja lá o que o está
incomodando, volta a me recolher em seus braços e saímos do banheiro, de
volta ao… sei lá qual é a droga do nome da sala que deixamos há pouco.
Inferno, talvez?
Purgatório, ou talvez até seja Limbo, porque estou presa lá sem
saber que porra é essa que está acontecendo com o North e aquela ternura
com a qual ele me olhou.
Ternura.
Eu não teria acreditado se não tivesse visto aqueles olhos de
pertinho, se não tivesse o encarado como se ele fosse o sol em pessoa. A
esperança de que agora ele talvez acredite em mim cresce no meu interior
como erva daninha, impossível de arrancar, embora possa me sufocar até a
morte caso não seja verdade.
Preciso me impedir de pensar nisso.
É constrangedor, mas assim que pisamos no corredor, damos de cara
com ninguém menos que Kieran e Kyrie, a irmã do meu Vinculado.
Kyrie dá um sorriso malicioso ao nos ver cambaleando juntinhos, ou
talvez seja porque acabamos de sair juntos de um banheiro, coisa que dá,
sim, um pouco de vergonha.
Quando Gryphon só fica olhando para os dois, com um sorriso se
espalhando devagar pelo rosto ao ver sua irmã completamente sã e salva,
ela bufa e dispara:
— Solta sua Vinculada para eu te abraçar. E também é assustador te
ver sorrindo desse jeito, controla isso aí um pouco.
Gryphon me ajuda a usar a parede como apoio e então a puxa para
um abraço, fechando bem os olhos e soltando um leve suspiro aliviado.
— Que tal você nunca mais se deixar ser levada de novo, assim
minha bendita Vinculada não precisa sair correndo atrás de você? Que pé
no meu saco, Ky.
Ela faz um ruído e o empurra.
— Eu não pedi, mas foi bem útil ter a Oli por perto. Você tinha que
ouvir o jeito que falam dela, parece até que a menina é uma mensageira da
morte ou algo assim. Achei bem bizarro… até eu ver as pessoas caindo
mortas por todos os lados. Aí fez um pouco mais de sentido.
Gryphon faz um barulho baixo de desdém e responde, irritado:
— Eles mereciam uma morte muito mais lenta depois de tudo que
fizeram, mas pelo menos, para variar, não houve sobreviventes.
Kieran faz um som igualmente irritado, intrometendo-se no pequeno
bate-boca, e diz:
— É, só que o cuzão responsável por tudo escapou. Ele continua
solto por aí e continua obcecado pela Vinculadinha assassina, Shore.
Então os três se viram para olhar para mim, que já ia me arrastando
devagar pelo corredor, para longe da conversa, e faço uma careta.
— Olha, eu não ia conseguir matar aquele homem, então era questão
de deixar ele vivo ou morrer tentando, e sei que pelo menos eu estou feliz
com o resultado.
Kyrie se aproxima e é de forma um tanto vacilante e cautelosa que
me abraça, mas fica claro que está mais com medo de me causar dor do que
de tocar em uma Arrebatadora de Almas.
— Obrigada. Essa ferinha aí embaixo me salvou ao invés de te
impedir de ser entalhada, e nunca vou conseguir te retribuir.
Não faço nem ideia de como agir com a gratidão de alguém.
Que constrangedor.
Então, opto por fazer graça da situação como uma profissional:
— Eu sabia que eu estava a salvo naquele campo de certas coisas
das quais você não estaria, não foi uma escolha difícil. Além disso, quem
nunca foi fatiada e virou picadinho nas horas vagas, né?
Ninguém nem sorri para minha péssima tentativa de piada; parece
que minhas gracinhas não estão funcionando hoje. Olho para Gryphon e
digo:
— Sem querer ser uma mala sem alça, mas preciso me sentar.
Ele imediatamente me ergue nos braços e, quando tento protestar,
retruca:
— Você já andou o bastante. Se o Davenport achar ruim, eu me
resolvo com ele.
Kyrie começa a rir às nossas costas, mas Gryphon ignora e caminha
de volta para a sala, que agora percebo que é o escritório de North.
Escorrego para o chão, pois não quero ser inapropriada na frente de gente
que não conheço, embora Gryphon resmungue alguns protestos a respeito.
North ainda está sentado no mesmo lugar, com a camisa abotoada
apenas pela metade e uma expressão ameaçadora no rosto, encarando dois
homens mais velhos de quem me lembro vagamente daquela desgraça de
jantar a que comparecemos uma vida inteira atrás.
Assim que entramos no cômodo, um deles me dá uma olhada breve
e diz:
— Bom, ela está aqui agora…
North o interrompe com palavras encharcadas de amargura:
— Se tentar abordar meu Vínculo agora, Hannity, não me
responsabilizarei pelos meus atos.
Congelo, mas Gryphon entra na minha frente e me segura perto de si
com um braço atrás do corpo, claramente me ocultando da vista de qualquer
um nesta sala que possa querer alguma coisa de mim.
Hannity pigarreia e escolhe a palavras com muito cuidado:
— Só estou tentando dizer que apenas uma pessoa sabe exatamente
o que aconteceu. Se pudéssemos ouvir direto do seu Vínculo…
— Não. Não vai ouvir nada dela, tampouco irão os demais membros
do Conselho. Vocês só estão sentados aqui agora porque o Gryphon os
aprovou. Se esse status mudar, se ele encontrar qualquer indício de traição
em algum de vocês, serão tratados de acordo.
— E como planeja fazer isso, North? Você é forte, mas não é um
deus.
Eu devia deixar pra lá, mas meu vínculo não fica nada satisfeito com
esses homens o questionando dessa forma. Os braços de Gryphon me
seguram apertado quando ele sente meu vínculo assumir e meus olhos se
transformarem. Eu me inclino só o suficiente para que Hannity e Rockelle
consigam me ver, e digo:
— Eu que vou. Ele nem vai ter a chance de mandar August e suas
criaturas para cima de vocês, porque eu vou matar vocês e amontoar os seus
cadáveres no chão antes.
Observo os dois homens, dois sujeitos adultos, que são Favorecidos
de Nível Superior, engolirem em seco ao verem meus olhos vazios. O
êxtase nos olhos de North só me deixa ainda mais inebriada por ele.
A sensação é boa pra caramba. O vínculo no meu peito fica
orgulhoso.
Sei que existe uma boa chance de Gryphon também estar ouvindo.
Ainda não descobri como bloquear meus pensamentos mais íntimos sem
obstruir completamente o acesso, e acho que ele teria um faniquito se eu
inventasse de fazer isso agora, mas ele nos dá privacidade por enquanto.
Não há nenhuma debandada de Vínculos batendo à porta, ninguém
tentando interromper este momento, o que me faz pensar que talvez todos
estivessem esperando isso acontecer. Ou para aplacar meu vínculo, ou
porque quando North revelou meus motivos, ficou bastante óbvio que ele
faria o que fosse preciso para se atar a mim quando eu voltasse para casa.
Agora só precisarei lidar com qualquer aumento de poder que eu
acabe recebendo e tentar não fritar nenhum pobre coitado que não mereça.
North se vira para deitar no lençol ao meu lado, sem ligar que nós
dois estejamos um pouquinho nojentos.
— Não vai acontecer. Pare de pensar assim. Se tem uma coisa da
qual tenho certeza, Oleander, é que você não vai fazer mal a ninguém. Você
não é um monstro.
Não sei bem se concordo. É prova do quanto as coisas mudaram
entre nós que eu responda sem titubear:
— Eu mal consigo lidar com o poder que já tenho. Se ficar mais
forte… não acho que vou conseguir controlar.
Ele passa a mão pela minha testa e afasta os fios prateados do meu
rosto.
— Vamos ver o que acontece quando você acordar de novo e, o que
quer que aconteça, enfrentaremos juntos. De qualquer jeito, você não vai
sair de casa por enquanto, não até termos certeza de que é seguro de novo.
Podemos manter apenas o mínimo de contato possível com gente de fora do
nosso Vínculo. A gente consegue, Oleander.
Ele parece tão certo do que está dizendo, parece confiar tanto em
mim… e eu quero acreditar. Quero, mas ainda não sei como. Acho que
tenho que ir dando passinhos de formiga.
O que os outros vão achar de estarmos Vinculados? Em especial se
eu disser que não me sinto à vontade para completar o Vínculo com mais
ninguém… pelo menos por enquanto.
Mais uma vez, encontro-me em uma confusão criada por mim
mesma.
Eu devia desmaiar de uma vez e perder os próximos três dias como
sei que vai acontecer, mas estou pilhada depois do que aconteceu. Viro de
lado para olhar para North e sorrio quando seus olhos acompanham cada
movimento que faço, mesmo na segurança sombria do quarto.
— Acho que preciso de outro banho depois dessa.
Ele coloca uma das mãos atrás da cabeça; seu peito fica se
contraindo de um jeito delicioso que parece uma sedução feita sob medida
para mim.
— Tudo o que você quiser, Vinculada. Melhor aproveitar enquanto
posso ficar à sua disposição.
Não quero pensar no mundo real, em toda morte e terror com que
teremos de lidar quando sairmos daqui, então mantenho a conversa
descontraída:
— Você quer mesmo me carregar no colo de novo? Porque minhas
pernas pararam de funcionar, e nem é por causa das lesões.
Ele dá um sorrisinho convencido e me ergue sem dizer mais nada.
Ficar olhando para as mesmas quatro paredes vários dias seguidos é o
suficiente para me deixar louco, ainda mais num cômodo tão sem graça e
mal decorado quanto o quarto de visitas em que os Draven me enfiaram
quando cheguei aqui. Tem azuis demais, em vários tons feios pra cacete, e a
cama é desconfortável pra porra. Se eu conseguir consertar as coisas com
Oli, vou comprar um colchão novo.
Não quero pensar no que acontecerá se não conseguir.
Não tem nada para fazer aqui além de olhar para as paredes, tarefas
de matérias que já estou repetindo, ou bater punheta pensando no Vínculo
perfeito que consegui estragar, embora tenha tentado evitar de todas as
formas possíveis.
Pode até ser errado, mas opto pela punheta.
Tem duas formas de ver a situação: ou sou tarado por fazer isso
pensando numa garota que, muito provavelmente, está achando que eu a traí
do jeito mais filho da puta possível, ou sou um Vínculo devoto que não
consegue mais ficar de pau duro de outro jeito. Ambas são verdadeiras. Já
cansei de tentar encontrar um sentido nessa história.
Eu a sinto assim que ela surge na minha cabeça.
Como é possível viver uma experiência extracorpórea que nem está
acontecendo? Sei lá, mas em um minuto estou sozinho com o pinto na mão,
e no seguinte consigo sentir o choque e a confusão de Oli, que não entende
onde diabos ela foi parar e o que está vendo. É como se eu a tivesse atraído
para cá com nada mais nada menos do que a força do meu desejo.
Não que eu precisasse dessa ajudinha, mas o fulgor de tesão que
sinto emanar dela faz muitíssimo bem para o meu ego.
COMO É QUE EU VIM PARAR AQUI?
Sorrio, torcendo para ela conseguir sentir o meu sorriso, embora não
possa vê-lo.
ACHO QUE VOCÊ GANHOU UM PODERZINHO EXTRA, DOÇURA. NÃO SEI COMO
ISSO ACONTECEU, MAS QUE BOM QUE ESTÁ AQUI.
Sinto o anseio pulsar no meu peito, sinal de que ela anda com tanta
saudade de mim quanto eu dela, e isso me deixa furioso.
SE VOCÊ PRECISA DE MIM, EU DERRUBO ESSA PORTA E VOU TE ENCONTRAR.
ESTOU ME COMPORTANDO PORQUE NÃO QUERIA TE ARRASTAR PARA UMA CONFUSÃO, MAS
SE PRECISA DE MIM, GATA, VOU TE ENCONTRAR AGORA.
Ela hesita, e sinto meu coração se partir um pouco. Não julgo. Não a
julgo por porra nenhuma, mas, cacete, estou tão ávido para que Oli acredite
em mim que a hipótese de ela não querer perscrutar as minhas memórias
acaba comigo.
Esforçando-me para esconder o desespero na voz, tento de novo:
NÃO QUERO ESCONDER NADA DA MINHA VIDA DE VOCÊ. TEM MUITA COISA FEIA,
MUITA DESGRAÇA, E MUITOS MOTIVOS PARA VERGONHA, MAS EU NUNCA ESCONDERIA
NADA DE VOCÊ, NEM MESMO SE ACHASSE QUE MUDARIA A OPINIÃO QUE TEM DE MIM.
PREFIRO TE VER ODIANDO ESSAS PARTES DE MIM, MAS SEM DUVIDAR DO QUE EU DIGO,
DO QUE CONTINUAR VIVENDO COM ESSA BARREIRA ENTRE A GENTE. NÃO TE TER E SABER
QUE VOCÊ NÃO CONFIA EM MIM É INCONCEBÍVEL PARA MIM, VÍNCULO. INCONCEBÍVEL.
Ela fica ainda mais quieta no meu peito, e eu a deixo em paz. Por
mais que queira, não posso obrigá-la, porque se a decisão não for toda dela,
qual o sentido?
Pego a toalha no chão ao lado da cama e me limpo. Levanto e vou
até o banheiro, evitando os espelhos porque não estou a fim de olhar o rosto
do meu pai neste instante. É só por sua causa que acabei metido nessa
confusão, e o fato de que eu poderia passar por um gêmeo só um pouquinho
mais novo dele está me dando nos nervos.
Oli continua em silêncio durante todo o banho; sua mente me faz
companhia apenas enquanto me lavo. Depois de me secar e vestir em uma
cueca boxer limpa, coloco um filme, algo bem nada a ver que já assisti mil
vezes, e volto a deitar na cama.
Quando me acomodo, fica claro que Oli quer dizer alguma coisa,
mas ela continua quieta durante o filme todo. Não quero adormecer e perder
sua companhia, mas há algo tão reconfortante em sua presença que, aos
poucos, a fadiga de inúmeras noites mal dormidas vai me dominando.
Logo antes de eu apagar, ela finalmente fala:
NÃO QUERO OLHAR. QUERO QUE VOCÊ MESMO ME CONTE. QUERO OUVIR DE
VOCÊ.
A cama está quentinha demais para querer levantar, mas sei de imediato que
voltei para meu próprio corpo. Não quero abrir os olhos e existir hoje;
embora cada osso meu doa, sinto um peso estranhamente ameno nas costas.
Levo um segundo para perceber que Brutus veio deitar comigo.
O que significa que North tanto já acordou, como não está aqui,
porque ontem à noite ele foi irredutível em sua regra de “nada de cãezinhos
na cama”, por mais que eu tenha insistido.
Mesmo que meus sentidos estejam dormentes graças ao sono
profundo, sei que alguns dos meus Vínculos estão aqui comigo. Não sei
dizer quais, o que é frustrante, mas já vale de alguma coisa.
Escuto um barulho ao lado, e então Gryphon murmura no meu
ouvido:
— Para de cara feia, Vinculada. Assim eu fico querendo matar
alguma coisa por você.
Abro só um olho em sua direção.
— Que horas são? Você tem comida aí?
Ele dá um sorrisinho e seus olhos brilham como se me achasse
extremamente engraçadinha. Ouço mais movimentos do outro lado do
quarto, e North começa a solicitar comida da cozinha. Minha barriga ronca
só de ouvir a lista de coisas que ele pede.
Porra, quero ovos mexidos e waffles, bacon extra e algumas
panquecas de batata. E café, uma garrafa cheia, com muito creme e açúcar.
Começo a me levantar e percebo que fui dormir nua depois de North
ter me comido no chuveiro. Semicerro os olhos pelo quarto e, muito embora
eu nem ligue de ficar pelada na frente dos meus dois Vinculados ao mesmo
tempo, Gabe está sentado em uma das poltronas luxuosas com o celular em
mãos, e Nox está discutindo com North a respeito de plantas de prédios
sobre uma escrivaninha que apareceu do nada enquanto eu dormia.
Agarro o edredom igual a uma donzela escandalizada, só para
perceber que, mais uma vez, estou usando um pijama de seda com riscas de
giz. North Draven é um cuzão sorrateiro que se sente à vontade para tomar
umas liberdades bem esquisitas quando estou inconsciente.
Gryphon começa a rir que nem um babaca, e eu jogo meu
travesseiro na cara dele enquanto saio marchando até o banheiro para fazer
xixi. Ninguém reclama de eu estar andando, mas todos me observam com
atenção, até mesmo Nox, embora com a cara de nojo de sempre.
Quando lavo mãos e o rosto, dou uma boa olhada no espelho e
confiro as cores e a aparência geral da minha pele e cabelo. O prata está
ainda mais claro; juro que a ausência de cor está piorando. Com muita
delicadeza, vejo como meu vínculo vai, só para saber como estamos indo, e,
droga, embora esteja todo sentimental pela falta de Gabe e Nox, não parece
ter ganhado nenhum truque bizarro novo ou picos de poder.
Não é nada, mas por enquanto já fico agradecida.
Vasculho as gavetas até encontrar uma cheia de tralhas bem
específicas para mulheres. Fico orgulhosa de mim mesma quando continuo
calma e mando um breve:
DE QUEM SÃO ESSAS COISAS?
A resposta toda engraçadinha vem na mesma hora:
SUAS. SE QUISER ALGO QUE NÃO TENHA AÍ, É SÓ DIZER.
Caramba, não vou ficar toda derretida pelo mínimo de gentileza.
É SUFICIENTE. OBRIGADA.
Penteio o cabelo para não continuar com cara de quem quase morreu
de tanto dar para o North e seus tentáculos de névoas, e faço um rabo de
cavalo no alto da cabeça. Já fico ofegante depois de tão pouco movimento
e, quando volto para o quarto, ando em linha reta até a cama. Gryphon me
ajuda, ajeitando a coberta sobre o meu corpo e enxotando o filhotinho até
eu ficar bem acomodada. Surpreendo-me por Brutus permitir, mas, no
instante em que Gryphon se afasta, ele volta para cima de mim.
Gryphon me entrega um copo d’água e reclama:
— Vou mandar ele embora agora mesmo se estiver pesado demais.
O Davenport vem mais tarde olhar sua perna e terminar o tratamento. Nada
de se machucar tudo de novo só porque você quer mimar a criatura.
Dou de ombros e olho para Gabe, do outro lado do quarto. Ele está
usando um suéter que quero roubar e, quando ergue o rosto e vê que estou
encarando, sorri para mim.
Gryphon balança a mão na frente do meu rosto bem no momento em
que uma batida na porta nos interrompe, e eu retruco:
— Ele é feito de sombras e névoa, não pesa nada. O Brutus só está
preocupado comigo, assim como você. Deixa ele em paz.
Ele me olha feio enquanto North abre a porta, e então sua atenção
muda de foco.
A comida tem um cheiro incrível, mas me sinto mal pela funcionária
que traz os pratos. Cada um dos meus Vínculos aqui se vira para observar
todos os seus movimentos. Após dispor tudo sobre a mesa para North, ela
se vira em direção à porta, mas é interrompida por Gryphon.
Abro a boca, pronta para defender a coitada, quando ele diz:
— Alguém além de você e do chef mexeram em qualquer parte
desta comida?
Ela responde de cara:
— Não, senhor.
— Você fez alguma coisa com esta comida, acrescentou ou despejou
qualquer coisa nela?
— Não, senhor. Ninguém mexeu ou adulterou qualquer nada.
Caramba, meu Deus. Agora vai ser assim? Vamos ficar
questionando tudo, até dentro desta droga de mansão?
Quando a mulher sai e a porta se fecha, Gryphon responde meus
pensamentos bem particulares:
— Isso mesmo. É exatamente assim que fazemos as coisas agora.
Ninguém entra ou sai sem falar comigo antes. Ninguém além dos seus
Vínculos e de amigos específicos tem permissão de ficar com você.
Ninguém além do chef pode mexer na sua comida.
Não tenho nada a dizer, além de:
— Sai da minha cabeça.
— Para de pensar tão alto.
Retruco:
— Bom, se eu soubesse como é que estou fazendo isso, eu pararia.
Compra uns protetores de ouvido, sei lá!
Não me dou a trabalho de tentar levantar e pegar o que quero comer.
North chega lá antes e escolhe por mim. Ele está olhando feio para tudo,
como se não tivesse tanta certeza de que o interrogatório de Gryphon foi
suficiente. É doidice, mas o gesto faz meu coração palpitar todo esquisito
mesmo assim.
Eu me forço a sentar com as costas apoiadas nos travesseiros e,
depois que North me entrega o prato, ele serve uma caneca de café. Tem
duas ali, então uma deve ser para mim, né? Ele não me negaria isso depois
de eu ter tomado aquele copão gigante de água todinho.
Graças aos céus, North me entrega a porra do café e depois volta até
onde Nox continua olhando feio para os papeis. Eles recomeçam a mesma
discussão de antes sobre brechas de segurança e de como garantir a
sobrevivência dos ocupantes. Não faz muito sentido para mim, porque fico
com a impressão que estão falando de um abrigo antibomba e isso não
parece o tipo de coisa que é nossa prioridade agora.
Gryphon arrasta uma poltrona para se sentar perto de mim com seu
próprio prato, e volto a fazer as perguntas mais importantes:
— Por que vamos ficar aqui se temos tanta certeza de que vão atacar
de novo? Não podemos… evacuar? Nossa, e como seria isso?
North assente e troca um olhar com Nox.
— Estamos examinando a possibilidade, mas não podemos
simplesmente abandonar as famílias mais humildes aqui. Além disso,
realocar uma quantidade dessas de Favorecidos de uma vez só envolve
muito trabalho, embora não fosse a primeira vez. Podemos fazer de novo se
as coisas continuarem piorando.
Isso já aconteceu antes? Eu não sabia, mas tem muito que não sei a
respeito dessa comunidade, então só assinto e dou mais uma mordidinha na
minha torrada, evitando a carranca de Gryphon, já que é óbvio que ele está
bem rabugento hoje. E esse mau-humor não tem nada a ver comigo, porque
eu dormi por… espera aí.
— Quanto tempo eu dormi dessa vez?
North responde sem erguer os olhos da papelada:
— Quatorze horas. Não estávamos esperando você acordar ainda.
Parece que está conseguindo lidar melhor com o uso do poder.
Hum.
Seria ótimo não precisar usar meu dom de novo tão cedo, mas acho
que é bom saber que os cochilos de três dias talvez sejam coisa do passado.
No instante em que seu prato está limpo, Gryphon pega o meu, coloca mais
frutas e se inclina para me dar um beijo forte na boca.
ESTAREI NA ACADEMIA TREINANDO COM ALGUNS CARAS DA EQUIPE. CHAMA SE
PRECISAR DE MIM.
Não sei porque ele está falando só comigo, mas assinto e o deixo me
dar um último selinho antes de sair pela porta em silêncio. Não sei qual o
problema dele; tomara que desconte em algum dos caras lá embaixo.
Belisco as frutas e depois coloco o prato vazio na mesa de cabeceira
antes de voltar ao aconchego dos travesseiros para aproveitar o resto do
meu café cercada pelos meus Vínculos. Gabe termina de comer, recolhe as
louças, coloca tudo de volta na bandeja e deixa no corredor para alguém
recolher.
North verifica o celular e se aproxima de mim, beijando meus lábios
com firmeza na frente de todo mundo. Assim… Gryphon também me
beijou, mas ainda acho bizarro pra cacete quando se trata de North.
— Estaremos lá embaixo. Fique aqui ou no seu quarto. Se quiser
alguma coisa, me chame. Não saia perambulando por aí.
Ele faz cara de quem não está para brincadeira quando ergo uma
sobrancelha, e eu reviro os olhos.
— Tá bom, mas você não pode me deixar presa aqui para sempre.
Depois que minha saúde estiver perfeita de novo, vou ficar entediada e virar
um pesadelo.
Nox bufa, dirigindo-se à porta.
— Isso você já é, Venenosa.
North semicerra os olhos para as costas dele, e eu seguro seu queixo
para virar seu rosto de volta para o meu.
— Não se meta. Posso lutar minhas próprias batalhas contra ele.
Seu olhar deixa bem claro que ele jamais ficaria de fora disso, e
então ele se levanta e vai atrás de Nox. Tenho certeza de que a descida deles
no elevador será adorável, mas que seja.
Tenho Gabe todinho para mim.
Ele me dá um sorrisinho e resmunga:
— Graças a Deus, por um segundo achei que acabaria no meio de
uma guerra entre os Draven. Eu preferiria ir para academia levar uma surra
do Gryph.
Dou risadinha.
— Vem cá, deita comigo. Já que vou ficar presa aqui, que pelo
menos isso me renda uma conchinha.
Gabe me observa por um instante, então sobe na cama com cuidado,
mexendo-se como quem espera que eu me desfaça em pedaços embaixo
dele ou algo assim, e quando eu olho feio e o puxo para cima de mim, ele
resmunga. Com minhas pernas abertas de cada lado do seu corpo e sua
cabeça aninhada gentilmente na minha barriga, ele mal está apoiado em
mim. O pouco peso é mais reconfortante do que… sufocante.
Inspiro fundo e devagar e me sinto plena mais uma vez.
— Chega de fugir — diz Gabe, em um tom que quase soa
emburrado, e eu entrelaço os dedos em seu cabelo.
— Foi sem querer querendo. Eu sabia para onde a Kyrie estava indo
e não podia deixá-la à mercê daquilo. Eu sobrevivi. Estou bem e o Kieran
vai se recuperar. Me sinto culpada por ter arrastado ele junto, mas vamos
todos ficar bem porque eu fui lá.
Gabe bufa, espalma a mão na lateral da minha coxa e faz um
carinho gentil por cima do edredom, como se imaginasse todas as lesões
que desapareceram graças aos cuidados de Felix. Ainda sinto uma dor leve
ali, nada comparada à dor desnorteante à que sucumbi quando deixei meu
vínculo assumir e executar aquela vingança sangrenta nos campos.
Os dedos de Gabe acariciam o edredom com gentileza.
— Black vai desejar não ter levantado naquela manhã depois que o
Gryphon e o North acabarem com ele. Os dois estão planejando umas
punições bem criativas.
Ai, meu santinho.
Ridículo.
Certo, ele tem razão quanto à morte de William, mas estou ocupada
estudando. Então, concentro-me com tanta força que meu cérebro quase
explode, mas consigo enviar uma imagem do Brutus deitado sobre minhas
pernas e de mim apoiada em August, que está sentado de guarda enquanto
finjo estudar.
ESTOU A SALVO COM ESSES DOIS. ALÉM DISSO, A SAGE É CONHECIDA POR
QUEIMAR PRÉDIOS DE BILHÕES DE ANOS INTEIROS QUANDO É PROVOCADA, ENTÃO, SE
ROLAR UMA BRIGA, APOSTO QUE ELA GANHA.
Sou recepcionada por um silêncio pesaroso que deixa claro que ele
está odiando essa ideia, mas quer ter um bom motivo para não me deixar
ver meu próprio Vínculo. Fico em silêncio por um minuto, mas quando o
sinto hesitar, insisto um pouco mais:
EU NÃO… ESTOU ME SENTINDO BEM E PRECISO DELE.
É a verdade, mas mesmo assim parece manipulação dizer isso, já
que North imediatamente cede, concordando em passar por cima de seus
próprios medos e preocupações pelo meu próprio bem, para que eu me sinta
melhor.
LEVE AS CRIATURAS COM VOCÊ. VOU DIZER AO NOX PARA NÃO SE INTROMETER,
CONTANTO QUE VOCÊ NÃO PEÇA AJUDA. SAIBA QUE SÓ ESTOU CONCORDANDO PORQUE
GRYPHON TEM CERTEZA A RESPEITO DELE, POR MAIS QUE A GENTE NÃO TENHA. SE ELE
TIVESSE DADO QUALQUER SINAL DE QUE É ARDILOSO ATÉ AGORA, EU NÃO ACEITARIA,
VINCULADA.
As palavras soam controladoras, mas agora eu o entendo melhor. É
uma tentativa de me tranquilizar e informar o quanto sou importante para
ele; North só não é muito bom em dizer essas palavras.
SE EU SENTIR QUE TEM ALGO DE ERRADO, TE AVISO. O GRYPHON TAMBÉM ESTÁ
POR PERTO? MEU VÍNCULO NÃO SE OPÕE TOTALMENTE A MATAR NOSSOS VÍNCULOS SE
EU ESTIVER EM PERIGO, ENTÃO NÃO SE PREOCUPE COM ISSO, respondo, tentando
usar meu próprio tipo de apaziguação, embora ele não goste muito.
Visto uma calça e um dos suéteres de Nox para controlar a saudade
mais um tempinho. Quando posso, costumo evitar as coisas dele perto de
Atlas, mas estou tensa demais hoje.
Suspiro e falo com Gryphon a caminho do quarto de Atlas enquanto
os cãezinhos vão andando junto comigo e sendo bonzinhos um com o outro:
ACHO QUE PRECISO DORMIR NO QUARTO DO ATLAS HOJE E NÃO NO SEU.
PODE… SER? TAMBÉM PRECISO DORMIR COM O NOX DE NOVO, AMANHÃ SE POSSÍVEL.
SERÁ QUE DÁ OU ELE VAI ACHAR RUIM?
Quando saio do elevador e tento virar no lugar errado, August dá
uma cabeçada na minha coxa para me direcionar no caminho correto; um
guia perfeito para percorrer essa casa ridícula.
EU RESOLVO ISSO. NÃO SE PREOCUPE COM ELE, VINCULADA. SE CONCENTRE
SÓ NO ATLAS POR ENQUANTO. QUERO SABER O QUE ELE VAI TE DIZER, ENTÃO VEM ME
VER DEPOIS.
Vínculos idiotas.
Viro para o outro lado, de volta para Kieran.
— Não preciso de terapia. Preciso de uma soneca e que todos
deixem meu vínculo em paz para ele não surtar e sair comendo almas de
novo. Só isso. Então deixa pra lá.
Sage me olha nos olhos do outro lado mesa e, com cara de culpada,
morde o lábio inferior.
— Não faz isso comigo, Sage. Não me jogue aos lobos desse jeito.
A gente tem que ficar uma do lado da outra aqui!
Ela torce o nariz, sorri e diz:
— Eu adoro meu psicólogo. Que tal você se consultar ele?
North se intromete antes que eu possa me queixar da traição da
minha bestie:
— Quem é? Vou agendar para ele vir até aqui, depois de passar por
todas as medidas de segurança.
Sage abre a boca, mas falo por cima dela, reclamando com North:
— Definitivamente não preciso de mais um homem sondando minha
cabeça. Já estou de saco cheio dessa merda!
Minha revolta faz com que todas as outras conversas à mesa cessem,
e uma das empregadas, que estava trazendo mais pratos, corre de volta para
a cozinha, preocupada com as consequências que sofrerei por ter sido tão
grossa.
Eu não fui.
Um pouco só. Tá legal, tenho certeza de que North ainda tem muitas
punições que está disposto a aplicar se eu não seguir seus planos de bom
grado, mas vou impor este limite. Não quero falar com ninguém. Não quero
abrir meu coração para algum estranho. Ainda não estou pronta para esse
tipo de coisa.
Mal quero falar sobre isso com meus Vínculos, que foram feitos
para me amar e aceitar independentemente de qualquer coisa.
Sawyer se inclina para perto da irmã e sussurra alto em deboche:
— Será que estamos prestes a ver os dois transarem em cima das
batatas? Porque eu não vi isso no cardápio, mas topo assistir da primeira
fila.
O olhar que North lhe direciona me dá vontade de morrer por ele.
Enfio uma garfada de legumes na boca para ficar ocupada demais para me
envolver naquilo, como se pudesse ignorar a presepada que esta conversa
virou até esse papo sumir. Gray só grunhe e cobre os olhos com as mãos,
como se estivesse se preparando para o caos que Sawyer acabou atraindo
para ele também.
Sawyer pede licença e se retira da mesa logo em seguida,
aparentemente frouxo demais para aguentar a ira de North. Gray vai junto e,
pouco depois, Sage me dá um sorriso pedindo desculpas e também sai com
seus Vínculos. Eu tinha esperanças de conversar de verdade com ela, mas a
tensão está palpável no cômodo e não a julgo por querer se mandar
rapidinho.
Ficamos em silêncio por um minuto, então Nox abre sua boca
grande.
Eu devia ter imaginado que seriam assim, porque as coisas têm
andado muito tranquilas por aqui. É claro que ele quer estragar a paz de
todo mundo.
— Então o Bassinger não conseguiu te convencer a completar o
Vínculo com ele também? Ou só está interessada no Vínculo com os mais
poderosos do grupo? Você é bem mais calculista do que eu esperava,
Venenosa.
Reviro os olhos e faço que não com a cabeça para North, quando, da
outra ponta da mesa ele lança um olhar mortífero para o irmão. Não preciso
que ele lute esta batalha por mim. Se eu deixá-lo começar, isso nunca vai
parar.
Em vez disso, suspiro e me viro para enfrentar Nox. Para variar, ele
não está bebendo, mas está com um foco que não exibe há semanas, como
se qualquer que seja a coisa que o tirara dos eixos tenha passado e agora ele
voltou a ser o comedido professor universitário.
Revido mesmo assim.
— Não vou ficar quieta e deixar você falar besteira sobre mim ou
tentar fazer eu me sentir mal por completar o Vínculo com o North. Nem
agora, nem nunca, Draven, então desista logo. E não que seja da conta de
ninguém o que eu decido fazer com o meu próprio corpo, mas vou pensar
no que o meu vínculo precisa agora. Se ficar mais forte, tomaremos as
decisões a partir disso. Mas, como eu disse, não é nem da sua conta, nem de
mais ninguém. Não te devo bosta nenhuma só por ser um dos meus
Vínculos, Nox.
A mão de Gabe desliza sobre minha coxa e me aperta com gentileza,
em um gesto silencioso de apoio, que é óbvio que Nox percebe e esbraveja
com nós dois:
— E esse favoritismo? Parece que ficar se arrastando atrás dela
como um cachorrinho carente não está te ajudando em nada, Gabe. Você
devia mesmo mudar de tática se a deseja tanto assim.
Gabe vira uma estátua ao meu lado e eu semicerro meus olhos na
direção de Nox. Na maior parte do tempo, não ligo para seus ataques contra
mim, mas estou descobrindo que nada me irrita mais rápido do que quando
ele ataca um dos meus outros Vínculos.
Em especial o Vínculo que aceitou a mim e aos meus motivos para
ir extremamente devagar no relacionamento.
— A única pessoa aqui que precisa mudar alguma coisa é você. Não
sei que merda aconteceu entre nós que te deixa tão perturbado comigo, mas
não te devo bosta nenhuma. O Gabe também não.
— Então você está simplesmente mentindo e manipulado todos os
seus Vínculos para conseguir o que quer? Tentei alertar meu irmão de que é
isso que acontece…
Interrompo antes que eu tenha de ouvir mais alguma parte da sua
versão corrompida das coisas:
— Ah, é? E se eu completar o Vínculo com todos vocês e de repente
meu poder ficar ainda mais forte? E se eu espirrar e matar a cidade toda?
Vai tomar no cu, Nox. Vai tomar no cu você e essa sua vidinha
inacreditavelmente privilegiada. Pelo menos suas sombras se controlam
quando você manda. Você para no momento em que quiser. Eu não tenho
essa opção.
Ele contorce os lábios para mim, mas é óbvio que North já cansou
de ouvir um agredindo ao outro e diz em um tom gélido:
— Sai daqui, Nox. Não está se ajudando em nada neste momento.
Ele encara North por um minuto, então pega um dos guardanapos de
linho, limpa as mãos, empurra o prato para longe e arrasta a cadeira para
trás sem dizer mais nada.
Estendo a mão para o cheesecake de chocolate à minha frente. Já
terminei com a comida de verdade e chegou a hora de me entupir de açúcar.
Coloco toda minha petulância na voz, só para feri-lo mais um pouquinho,
ao comentar:
— Que garoto bonzinho, fazendo direitinho o que foi mandado.
A reação é imediata e extrema.
Uma emoção em que não consigo acreditar perpassa o rosto de Nox
logo antes de seu vínculo entrar em ação, tomar o controle e transformar
seus olhos em vácuo. As sombras começam a sair de seu corpo em uma
corrente demorada e ameaçadora.
PARE.
A voz de North ecoa na minha cabeça, mas não sei que diabos fiz
para engatilhar o vínculo de Nox. As sombras pretas envolvem seus pulsos,
e a criatura que sai de seu peito para me encarar está com a boca
arreganhada, exibindo os dentes brilhantes ao rosnar em minha direção sem
fazer som.
O QUE FOI QUE EU FIZ?
North age no mesmo instante, com firmeza e em um tom objetivo
que ajuda a apaziguar um pouco do pânico no meu coração:
NADA. É QUE ISSO É UM PROBLEMA PARA ELE E VOCÊ PRECISA DEIXAR PRA LÁ.
ELE NÃO CONSEGUE CONTROLAR COMO REAGE A… ESSE TIPO DE COISA.
Tento olhar em seus olhos por cima da mesa, mas seu foco está todo
em Nox; seus olhos próprios olhos estão ficando pretos também.
— Porra — murmura Gabe. Ele apoia um braço à minha frente na
mesa, preparando-se para me proteger. Eu gostaria de pensar que é só
besteira de Vínculo superprotetor, mas Gryphon está se deslocando devagar
do outro lado, claramente tentando não provocar nenhum dos irmãos ao
mesmo tempo que vem na minha direção.
O QUE FOI QUE EU FIZ?
Sinto um nariz frio e molhado no meu tornozelo e abaixo os olhos
para Brutus. Ele está arrasado, transbordando tristeza, mas ainda assim
verificando se estou bem, enquanto seu Favorecido está tendo uma versão
muito máscula de um piripaque à mesa de jantar.
Graças a Deus, Sage e os outros não estão mais aqui.
Gryphon responde:
VOCÊ NÃO FEZ DE PROPÓSITO, MAS NÃO FALE DESSE JEITO COM O NOX, OLI.
SEI QUE NÃO É JUSTO, PORQUE ELE JÁ TINHA PASSADO DOS LIMITES, MAS VOCÊ ATIVOU
UM GATILHO DENTRO DELE E NOX NÃO CONSEGUE SE IMPEDIR DE TER ESTE TIPO DE
REAÇÃO.
Quero continuar com a roupa que estou, mas meus Vinculados não
querem nem saber. North me empurra, coage e repreende até enfiar um traje
tático completo em mim, sobre o qual eu reclamo em alto e bom som
porque tenho certeza de que estou parecendo um bebê usando as roupas do
papai.
Também não ajuda que, quando saio do vestiário e entro no saguão
onde todos estão esperando, Gabe morra de rir da minha cara, risada essa
que devagar se transforma numa gargalhada alta de ficar sem ar.
Olho furiosa para North, mas ele me ignora. Gryphon, que voltou
com Kieran para sermos transportados juntos, dá um pescotapa em Gabe e
retruca:
— Cala a boca, imbecil, antes que ela comece a reclamar de novo.
— Como assim de novo? Ela nunca parou — resmunga North, e
descubro as vantagens das botas com solado grosso quando piso no pé dele
e o Vinculado carrancudo faz uma careta de verdade.
Vou considerar uma vitória.
Atlas aparece em um uniforme tático modificado, em geral porque
tem menos painéis protetivos, e meu coração bate um pouquinho mais
rápido por um segundo até eu me dar conta de que ele é indestrutível e não
precisa de nada disso.
— Se você levar um tiro, a bala só, tipo, bate e volta, ou você se
cura mais rápido? O quanto vou ter que me preocupar com você?
Ele sorri e pendura um braço sobre meus ombros.
— Ela bate e volta, o que é o motivo para eu ter permissão de ir
junto hoje. Sou seu escudo humano do dia, sua sombra poderosa te
seguindo a cada passo.
Fico só olhando para ele por um momento, tentando imaginar as
balas simplesmente sendo rebatidas de sua pele, e dou um sorriso,
segurando sua mão e puxando seu corpo para perto do meu.
— Perfeito. Se prepare para conhecer meu vínculo. Tente não me
julgar demais quando ela começar a torturar todos nas redondezas.
Ele me dá um sorrisinho e abaixa a cabeça para murmurar:
— Já te falei que sei tudo sobre o seu vínculo. Nada que aconteça
pode me afugentar. Você e eu, nada pode se interpor entre nós.
Se não houvesse um milhão de agentes da Equipe Tática zanzando
ao nosso redor neste espaço apertado, eu o beijaria, mas não parece certo
começar a dar uns amassos perto dessa gente, então dou um passo curto
para trás e respiro fundo.
Gabe olha de um para o outro, então se aproxima para me flanquear
do outro lado, fazendo-me sentir minúscula entre os dois. Gryphon termina
de bolar planos com Kieran, ladrando ordens para cada uma das equipes, e
North está tendo uma discussão silenciosa com Nox em um canto. Ambos
parecem estar se coçando para ir logo e, é claro, há um aro de névoa preta
em volta do pulso de North, um dos poucos sinais de que ele está perto de
perder o controle do seu dom. Ele se sente tão responsável pelo ataque
quanto eu, mas de outra perspectiva.
Ele é o conselheiro que foi derrotado a cada etapa, tentando tirar o
máximo de pessoas que consegue vivas dessa situação, mas as outras
famílias de Nível Superior querem se esconder no próprio dinheiro e não
fazer nada. Querem desperdiçar seus dons e poderes de Vinculados porque
acham que este tipo de trabalho não é do seu nível, não importa o que North
diga.
Ainda assim, ele sente que não está fazendo o suficiente.
SE CONCENTRA NO TRABALHO, VINCULADA, SENÃO VOU TE DEIXAR AQUI.
Volto minha atenção a Gryphon e ergo uma sobrancelha em sua
direção.
ESTOU CONCENTRADA. NADA DEIXA MEU VÍNCULO MAIS FURIOSO DO QUE A
ESCÓRIA DA RESISTENCIA MAGOANDO MEUS VINCULADOS E VÍNCULOS. ELA É MUITO
SENTIMENTAL QUANTO AO QUE É NOSSO.
Bom.
Parece razoável.
Assistir Gabe ajudando nas obras é um jeito ótimo de passar a tarde,
e dá para ver por que é neste trabalho que ele é mais útil. Gabe é forte,
superinteligente e sabe exatamente o que os pedreiros precisam quando
começam a armar uma nova estrutura. Há outras seis casas nesta rua em
diferentes etapas de construção, e eu ajudo na que está na fase de
acabamento, carregando suprimentos e segurando as enormes chapas de
drywall para os caras trabalhando.
No começo, todos me olham como se eu só tivesse vindo atrapalhar,
mas, depois de poucas horas de trabalho duro e esforçado, já estão me
incluindo nas histórias e fazendo piada. É difícil, mas consigo esvaziar meu
cérebro o suficiente para ajudar de verdade. Na hora em que Gabe vem me
procurar, estou no alto de uma escada, usando um pregador pneumático e
dando gritinhos de alegria por ter conseguido fixar uma parte do teto no
lugar certo sem abrir buracos nos meus dedos e mãos.
Ele sorri para mim como se eu fosse o próprio Sol o deixando
quentinho por dentro.
Olho para ele do mesmo jeito, e ficamos parecendo dois idiotas
babões apaixonados. Sei disso porque Elliot, o contramestre, faz questão de
me informar com bastante deboche em sua voz rouca de homem mais
velho.
— Não sei se percebeu, mas ela é minha Vínculo. Alguma coisa
estaria errada pra caralho se eu não fosse um merdinha babão por ela. Além
disso, olha só pra ela, toda empoeirada e com esse sorrisão na cara.
Ninguém pode me julgar — reclama Gabe.
Com um aceno, Eliott nos dispensa, exigindo que apareçamos na
hora amanhã de manhã.
— Não prometo nada. Sou uma princesa, preciso do meu sono da
beleza — responde Gabe, passando o braço pelos meus ombros.
Ele está tão sujo e suado quanto eu, por isso não fico com vergonha
do quanto devo estar fedendo.
Caminhamos juntos pelas ruas quase vazias. Neste lado da cidade há
praticamente só sujeira e cascalho, já que as casas ainda não estão prontas
para serem habitadas. Em algum momento, haverá carros e outros veículos
por aqui, mas ainda não chegamos nesse estágio. A logística necessária para
criar uma cidade inteira e sua comunidade me dá enxaqueca. Não consigo
pensar demais nisso sem querer vomitar de pena do North.
Como vai funcionar o dinheiro aqui?
Distribuição de trabalho, educação? E o que vamos fazer quanto aos
conflitos de vizinhança? Tenho quase certeza de que ainda estamos nos
Estados Unidos, mas será que o governo sabe da existência deste lugar?
Teremos impostos a pagar?
É demais para mim agora.
Concentro-me em assuntos mais leves, nas perguntas que posso
fazer para receber respostas simples.
— Como aprendeu a construir casas? Ou é um talento natural?
Ele bufa.
— Acho que não existe talento natural para erguer paredes, mas meu
pai era sócio na firma de construção da família. Meu bisavô a fundou, e era
tipo uma tradição todos os membros da família trabalharem lá nas férias de
verão. Meu pai assumiu a parte da administração, e um dos meus tios ainda
trabalha nas obras. Ele está finalizando um serviço em Nevada e depois
vem pra cá com a família. O que restou dela, pelo menos.
Faço uma careta. Essa parece ser a realidade comum de todos aqui
no Santuário. A perda da família, a perda dos vínculos, a perda das pessoas
mais importantes das nossas vidas.
Ele hesita por um instante, então pergunta:
— O que sua família fazia? Antes do acidente?
Isso me abala por um segundo, mas é claro que ele perguntaria sobre
minha família, é claro que se interessaria em saber. Somos Vínculos e não
lhe contei praticamente nada da minha vida antes de a Resistência me levar.
Contei muito, muito pouco.
— A gente vivia se mudando. Eu não entendia por que, mas agora…
agora tenho certeza de que o Davies sabia a meu respeito. Acho que meus
pais estavam fugindo para me manter longe dele. Meu pai, o biológico,
trabalhava em alguma coisa no mercado de ações. Andrew era engenheiro,
tinha um negócio remoto prestando consultorias e vivia no computador.
Vincenzo tinha sido chef de cozinha antes, mas parou para ficar em casa
comigo e com a mamãe. Ele foi um Neuro e passou um tempão me
treinando para controlar minhas emoções e meu vínculo. A mamãe… na
verdade, não sei no que ela trabalhava. Nunca perguntei.
Minha voz falha um pouco, e o braço de Gabe me aperta mais,
envolvendo-me de perto em seu calor.
— Você era criança. Não teve tempo de crescer e perguntar todas as
coisas que queria saber. Não tem motivo para se sentir culpada, Vínculo.
Faço que sim, mas a culpa continua aqui mesmo assim. Sempre
estará comigo.
Chegamos em casa e corro para usar o banheiro no quarto de North.
Os outros ainda não voltaram, e quando Gabe se oferece para buscar janta
para nós, recuso com a cabeça.
— Quero encontrar o North. Hoje é a noite do Nox e eu preciso…
ter certeza de que está tudo bem. Sempre faço isso.
Gabe faz uma carranca, mas assente, e me acompanha ao escritório
de North sem pestanejar. Ele vai comigo até o elevador, então me dá um
beijo intenso de despedida. Faz apenas dois dias que dormi em sua cama,
mas, como não estamos Vinculados, parece uma eternidade.
Não sei se essa falta que sinto deles um dia vai passar. Estou fadada
a me sentir incompleta para sempre.
Passo meu cartão no leitor para ter acesso ao andar de North, e
quando as portas voltam a se abrir diretamente no escritório dele, eu o
encontro em uma ligação com o cenho franzido, folheando papeis de um
jeito frustrado. Ele ergue os olhos para mim e sua testa relaxa um pouco.
August sai de trás dele e vem saltitando feliz em minha direção.
Eu me agacho para fazer um cafuné e paparicá-lo aos sussurros para
não interromper a ligação, mas o tom de North fica cada vez mais ríspido, e
está claro que ele quer acabar logo com isso para falar comigo.
Embora eu me sinta mal por atrapalhar, não é o suficiente para ir
embora. Quase não o vi desde que chegamos aqui; já estou sentindo falta
daqueles dias intermináveis que passamos confinados à cama dele, no furor
de completarmos nosso Vínculo.
— Conselheiro Rockelle, acabei por hoje. Podemos continuar
amanhã. Não vou trabalhar até tarde de novo. Até eu tenho limites.
Quando me sento do outro lado da mesa, August apoia a cabeça no
meu colo e se senta aos meus pés; um montinho de névoa sem peso que,
mesmo assim, é reconfortante. North lança um olhar breve para mim e
outro para a distância entre nós, então arrasta um pouco a cadeira para trás e
gesticula para eu me sentar em seu colo, como se achasse que vou subir
nele mesmo estando no telefone, fazendo coisas importantes de conselheiro.
Bom…
É exatamente o que eu faço.
Quando minha bunda se instala no colo de North, a carranca some
de uma vez; com a mão em minha coxa, ele me gruda em seu corpo. Quase
faço um barulhinho vergonhoso de alegria por estar com ele de novo.
Não sei dizer se o Conselheiro Rockelle gostaria de ouvir.
Inclino-me para enterrar o nariz no pescoço de North, que desliga na
cara do outro conselheiro, joga o telefone na mesa e relaxa na cadeira,
abraçando-me tão apertado que quase não consigo respirar.
— Vou sair do conselho. Não aguento mais bancar o dócil e ficar
longe de você.
Rio com a boca no pescoço dele, mais um suspiro do que um riso, e
lhe beijo a orelha antes de murmurar:
— Nós dois sabemos que você ficaria entediado rapidinho… ou que
eu acabaria fugindo. Não aguentaria ser o único alvo desse seu jeito
mandão.
Ele bufa, e então grunhe.
— O conselho devia servir para o bem da comunidade, não para
ficar discutindo qual nome dar às coisas ou quantas lagostas cada família
deve ter direito por semana.
Afasto-me um pouco dele e faço uma careta.
— É sério? Era por isso que o conselheiro estava enchendo o seu
saco? Diga para ele vir construir casas comigo, o Gabe e o Elliot. Vamos
dar tanto trabalho que ele não vai ter tempo de se preocupar com idiotices.
Aliás, me dá um pregador pneumático? Tem espaço para isso no
orçamento?
Ele ergue uma sobrancelha para mim, depois esfrega os olhos.
— Mas é claro que já te deixaram brincar com uma arma de alta
potência. Eu estava mesmo precisando me preocupar com mais um
pesadelo.
Como ele parece estar genuinamente a ponto de começar a gritar
com as pessoas, faço uma tentativa de distraí-lo e salvar Elliot:
— Então quer dizer que você está trabalhando até tarde em lagostas
e nomes? Devo te deixar sozinho com mais frequência? Dormir em outra
cama para não te distrair?
Ele nem tira a mão dos olhos para resmungar:
— Não importa para onde se esgueire nas minhas noites, vou buscar
você de qualquer jeito. Se quiser que eu te foda no lençol do Atlas enquanto
ele vê o que está perdendo, vá em frente, Vinculada.
Minhas bochechas ruborizam, e ele sabe que conseguiu me deixar
envergonhada; é mais difícil me acostumar com seu flerte casual e
pervertido do que com o de Gryphon. Não sei por quê, mas quando ele diz
“foda”, meus joelhos fraquejam.
Ele dilata as narinas e me olha de cima, com um aro preto
circundando suas írises, o que mostra o quanto está se esforçando para
manter o controle.
— Ou prefere que eu te foda aqui? Você está com cheiro de sexo.
Inspiro fundo, mas sinto apenas o perfume caríssimo dele, cujas
notas almiscaradas se tornaram um afrodisíaco agora que conheço o gosto
do seu pau. Deslizo a língua pelo meu lábio inferior antes de dizer:
— Só vou dizer que é bom você não conseguir ler minha mente
igual ao Gryphon. Estaria ouvindo muitas coisas constrangedoras sobre
mim agora.
Seus olhos descem até meus lábios, e ele murmura:
— Se esta noite fosse de qualquer um dos outros, eu te deitaria nesta
mesa e te comeria até você não conseguir andar.
Engulo em seco e assinto. Ambos sabemos que não é boa ideia fazer
isso nas noites de Nox. Não que eu saiba a razão exata, mas sei o suficiente
dos limites cuidadosos entre os irmãos para entender que North não irá
violá-los. Não sei se é pela minha segurança, ou pela de Nox, mas vou agir
de acordo.
É ridículo o quanto estou ficando boa nisso.
O quarto está silencioso quando entro com máxima discrição, tentando não
sujar tudo de sangue. As sessões noturnas de treino que substituíram minhas
sessões noturnas de bebedeira não estão sendo mais fáceis para meu corpo,
e continua escorrendo sangue do meu nariz, onde o Black teve sorte de
conseguir acertar um golpe.
Os nós dos meus dedos estão ensanguentados e em carne viva da
surra que ele tomou em troca.
Ele está voltando para casa, onde tem acesso ao melhor Curandeiro
da nossa geração, portanto não sinto um pingo de culpa. Azrael ergue a
cabeça na cama, e é nítido seu alívio pela minha presença. A criatura de
North está aqui também e, quando fecho a cara para ela e gesticulo para a
porta, noto a frustração do meu irmão. Não preciso da merda de uma babá.
Se ele quer que eu deixe a garota dormir aqui, vai ter que confiar que ela
sairá viva de manhã.
A criatura sai, com Rahab, minha criatura mais feroz, mordendo
suas pernas. Tenho que intervir para garantir que não acordem a garota com
essas desavenças infantis.
Ando devagar pelo cômodo, meus olhos se transformando para eu
enxergar com clareza. Nada está fora do lugar. Nunca fica quando ela entra
aqui. Ela vai direto para a cama e dorme no meu travesseiro, envolta pelos
meus cheiros como se fossem a única coisa capaz de manter seu coração
batendo.
É estranhamente respeitoso, e mais do que já ofereci em
contrapartida.
Se eu não conhecesse meu irmão melhor do que ele conhece a si
mesmo, suspeitaria que ele teria contado a ela. Uma pequena parte, só um
mero detalhezinho do caco que ele chama de irmão, mas ele não faria isso.
North nunca contou nem para William, seu parente consanguíneo
mais próximo depois que nosso pai foi executado. Não, fui eu que soltei a
verdade para ele durante um dos meus episódios. Eu sentiria mais desprezo
por mim mesmo por causa daquele momento, mas eu só tinha nove anos e
despejei terapia suficiente em minha alma desde então para deixar essa fase
da minha vida para trás.
Agora só tento esquecer de tudo me embebedando ou lutando até a
dor substituir as lembranças.
Após tirar o uniforme tático que vesti para treinar, uma camiseta e
calça cargo, encontro uma toalha gasta para limpar o sangue do corpo.
Enquanto relaxo os músculos e respiro fundo algumas vezes, minhas
criaturas saem lentamente de mim. Mephis para aos meus pés e fica perto,
mesmo quando todas as outras se espalham pelo quarto. Não devia me
surpreender por várias delas assumirem a forma de filhotinhos e outras
criaturas meigas.
Todas querem ser amadas pela garota.
É repugnante.
Meu estômago revira de ver todas lutando para ficar perto dela na
cama – e fazem isso de forma brutal o suficiente para que ela suspire e role
dormindo, o que faz seu cabelo se soltar do elástico e se espalhar sobre os
meus travesseiros de um jeito tentador.
Desvio o olhar e começo a vestir uma calça de moletom, então
começo a procurar na pequena seleção que trouxe na mudança até encontrar
uma das camisetas macias. São as únicas com que gosto de dormir e, claro,
também as que a garota mais gosta de roubar.
Faço carinho na cabeça de Mephis, afagando suas orelhas e
apreciando a forma como ele se encanta ao receber minha atenção. Tanto
Mephis quanto Rahab me esperam decidir onde vou dormir antes de se
posicionarem, sempre do meu lado. Por mais que também queiram a garota,
nunca me trocariam por ela.
Eu devia dormir no sofá, a uma distância segura dela. O móvel é
confortável o bastante. Devia, mas a cama está tentadora demais, e não seria
a primeira vez que eu dormiria ali com ela.
Apenas em raras ocasiões, e todas quando tenho certeza que está
ferrada no sono.
É mais fácil agora que já conversei com a vínculo dela. Agora que
sei exatamente o que ela quer de mim e contei o que ela não poderia ter,
chegamos a um acordo e, como imaginei, quando me deito em meio aos
lençóis, os olhos da garota estão bem abertos.
No entanto, é a vínculo que está me encarando.
Encaro de volta, pouco disposto a conversar, e ela não se aproxima.
Já sabe que não deve.
Quando Mephis sobe na cama e se deita entre nós, a vínculo
finalmente fala:
— Precisa de dor para dormir? Não estou gostando.
Ergo a mão, aperto o nariz com um dedo e desfruto da dor pulsante.
— Não preciso. Já acalmou minha mente. Estou bem agora.
O dom dela me preenche no mesmo instante e a dor desaparece de
uma vez só. Gryph e Black vão questionar amanhã onde foram parar os
machucados e, como a garota não vai se recordar de nada, vai ser mais
difícil evitá-los, então vou ter que arrumar algum trabalho para fazer longe
dos dois nos próximos dias.
Evitá-los se tornou uma grande habilidade minha, algo que
aperfeiçoei com entusiasmo.
Quando viro de costas e tento encontrar uma posição confortável,
agora que não preciso mais evitar pontos doloridos, a vínculo volta a falar:
— Eles estão vindo. Não vão nos deixar em paz.
Assinto olhando para o teto.
— É claro. Seriam burros de deixar alguém como você nas mãos do
inimigo.
Ela passa um momento em silêncio, depois diz:
— E você? Quando descobrirem, o que acha que farão para botar as
mãos em um deus sombrio como você?
Deus sombrio.
Ela é obcecada por essa forma de pensar, mas passei muito tempo
tentando evitar o outro ser com quem divido a pele. North pode estar
preocupado com as criaturas, mas eu sempre soube que é a voz, a outra
alma, a verdadeira coisa a se temer.
Sei que nossos vínculos não são iguais aos outros.
— Me deixe conversar com ele. Estou com saudade.
Olho a vínculo de soslaio, mas ela não se moveu, não violou
nenhum dos meus limites cuidadosamente estabelecidos.
Ela nunca faz isso.
Sou eu quem violo as coisas, não a vínculo presa dentro da garota
que parece ter sido tirada das minhas mais profundas e sombrias fantasias e
deixada sobre meus travesseiros.
Não confio em nenhuma das duas.
— Se vocês dois completarem o Vínculo enquanto ela dorme, os
outros vão me matar, sabe disso. Nunca vão acreditar que não fui eu.
A vínculo abre um sorriso lento, e consegue parecer mais velha do
que o rosto de dezenove anos que veste.
— Vou me comportar direitinho. Deixe-me passar um tempinho com
ele. Durma e nos deixe sozinhos.
Eu não devia, mas meu próprio vínculo desperta dos confins mais
escuros da minha mente e avisa que quer conversar.
NADA DE TREPAR. O NORTH MATARIA NÓS DOIS.
Meu vínculo fica irritadiço com a ordem, mas responde:
NÃO VAMOS. QUERO PASSAR UMA NOITE COM MINHA VÍNCULO.
É insensato, mas abro mão do controle e os deixo se reunirem. Tento
ficar presente por tempo suficiente para, pelo menos, saber o que estão
fazendo, mas meu vínculo me bloqueia para terem privacidade.
Acordo horas depois, logo antes do amanhecer, com a garota deitada
sobre o meu peito e o nariz colado no meu pescoço, e meu coração dispara
no segundo em que desperto e a sinto ali.
O único motivo pelo qual não a jogo do outro lado do quarto para
tirá-la de cima de cima de mim é porque não quero ter que explicar para
nenhum dos outros por que eu estava na cama.
Consigo colocá-la de volta no lugar e ajeitar os lençóis do meu lado
antes de disparar para o banheiro e abrir o chuveiro para abafar o som do
meu vômito. Após essa parte acabar, entro sob o jato quente da água, ainda
vestido. Não vou suportar olhar para mim mesmo agora, nem para as
cicatrizes, nem para a reação física de acordar com ela sobre mim que as
náuseas não conseguiram conter.
Rahab senta-se embaixo do chuveiro, a água atravessando seu corpo
como se fosse um fantasma, e Mephis fica de guarda na porta. De vez em
quando, ele enfia a cabeça pela sólida porta de madeira para ver o que está
acontecendo no quarto.
Gryph vem buscar a garota enquanto estou ensaboando o cabelo. Ele
faz uma cara feia para a porta do banheiro e para Mephis quando a garota
menciona que precisa usar o vaso, mas a leva para usar o do seu próprio
quarto antes de irem treinar. Eu devia me sentir mal. Devia ter algum nível
de empatia pela maneira como meu cérebro fodido estraga tudo, mas não
consigo.
Estou ocupado demais tentando limpá-la da minha pele antes de
perder completamente a porra do juízo.
— O que aconteceu com você? Não era para a Oleander dormir
contigo ontem à noite? Você está um caco.
Vou até a cafeteira sem parar para conversar com ele, escolho a
maior xícara da coleção e a encho até a borda com o líquido escuro. Está
óbvio para mim que os vínculos passaram a noite toda conversando, então,
embora minha mente tenha “dormido”, meu corpo ficou acordado.
O novo escritório de North é igualzinho ao antigo quanto à
disposição, mas não apresenta nenhum dos costumeiros luxos
extravagantes. Tenho certeza de que, se ficarmos aqui por tempo suficiente,
ele vai dar um jeito de instalar um pouco de mármore no espaço.
— Nox? Preciso procurar minha Vinculada e ver se ela está bem?
Eu lhe dirijo um olhar irritado.
— Dormir em um sofá para que a sua Vinculada tenha tudo que
precisa não é muito restaurativo. Mas se está tão desesperado para ir atrás
dela, eu é que não vou impedir. Vá ser patético em outro canto.
Ele me encara com olhos pretos por uma fração de segundo, uma
breve falha em seu controle, e lhe dou um sorrisinho. Jamais vou deixar de
me divertir em vê-lo desmoronar por uma garotinha feita de veneno.
Quanto mais alto, maior o tombo. É mesmo patético.
— Pare de descontar seu mau humor em mim. Se quer tirar o dia
para ficar de cara enfiada nos seus livros, é só dizer. Ninguém está te
obrigando a estar aqui.
Ah, mas é aí que ele se engana. Tive que abrir todas as três janelas
do meu quarto em uma tentativa de arejá-lo e dissipar o cheiro delicioso
dela de lá. Meu vínculo se recusou a me deixar trocar os lençóis. Para ser
sincero, ele deu um chilique, então fui obrigado a me livrar do resto o
melhor possível.
Terei que beber hoje à noite. Só vou conseguir dormir lá se estiver
de porre, e, pela primeira vez, meu vínculo concorda comigo.
— O abastecimento de água foi danificado.
Meus olhos se erguem imediatamente da xícara de café para
encontrarem a carranca de North. Ele assente e prossegue:
— Só dois pontos da rede não são cobertos pela vigilância; tem que
ter acontecido ali. O sistema de filtragem detectou as bactérias indesejadas
e desligou automaticamente. Sawyer acordou com o alarme e me ligou às
sete. Ele já examinou todas as gravações, mas parece que temos um
infiltrado vivendo aqui.
Xingo baixinho. Sempre soubemos que não só era possível, mas
bem provável que trouxéssemos um simpatizante conosco.
— Algum palpite de quem foi?
North dá a volta na mesa e desliza um tablet para mim com uma
lista de nomes na tela.
— Essas são as pessoas que não estavam na cama na hora. Sawyer
tem rastreado devagar os movimentos delas, mas é trabalho demais para
uma pessoa só, mesmo um Tecnocinético. Temos muita sorte de tê-lo.
Precisamos recrutar mais um.
Falar é fácil. Tecnos são raros, só não mais do que Arrebatadores e
Mensageiros de Morte; de alguma forma conseguimos dar início a esta
pequena comunidade com um conjunto bastante especial de dons. Um
Metamorfo que pode assumir qualquer forma e um Neuro absurdamente
forte, com a habilidade de farejar mentiras, também são de enorme ajuda.
Por mim, o Menino Indestrutível pode muito bem desaparecer.
North se senta na cadeira e abre o notebook, fazendo cara feia para a
tela ao ser bombardeado pelas besteiras ali. Não tenho dúvidas de que está
sendo importunado pelo resto dos membros do Conselho e outras famílias
de Nível Superior que querem que ele resolva seus problemas, embora se
recusem a viver aqui com famílias de Nível Inferior.
Escória, é isso o que são.
Decoro a lista de nomes e digo:
— Vou dar uma olhada. Posso colocar as criaturas nos pontos cegos
até instalarmos câmeras para fazer a cobertura.
North assente e digita sem olhar para mim.
— Também temos que buscar suprimentos, e comprar água
engarrafada para nos mantermos até a limpeza.
Assinto, bebericando meu café de novo.
A porta se abre e Gryph entra com movimentos ríspidos, parecendo
frustrado. Pensei que uma manhã nos tatames com a garota daria um jeito
nele, mas parece que não.
Ele me olha só uma vez e diz:
— A Oli curou você.
Não é uma pergunta; tomo cuidado com a resposta:
— Ela estava dormindo na hora, mas sim, curou.
Gryph assente, ouvindo a verdade no que escolhi contar, e é só
quando ele se vira em direção à cafeteira que North me olha feio. Ele não
precisa ser um Neuro para ouvir a parte que não estou dizendo. Contudo,
por ele tudo bem deixar Gryph de fora disso; sempre é um irmão tão leal.
Já eu estou pouco me fodendo.
— O vínculo dela falou comigo. Disse que podia me curar se eu
quisesse. Só isso, irmão. Foi o que aconteceu. Sua Vinculada não vai se
lembrar, e não tentei tocar em nenhuma das duas.
North nem olha para ele, mas quando Gryph não interrompe para
afirmar que é mentira, ele faz que sim e volta a fazer sei lá o que no
computador.
— Quem buscará os suprimentos? Se houver um infiltrado, não
podemos ir todos.
North dá de ombros.
— Você e Gabe podem ficar. Você continua procurando o infiltrado,
e Gabe continua nas construções. Ele é melhor nisso do que o resto de nós,
e é uma boa ajuda para você.
Gryph concorda, pega a lista da minha mão e a analisa.
— Metade desses nomes são de famílias inferiores que treinam
comigo de manhã. Posso dar algumas ideias para o Sawyer de onde
procurar o álibi deles.
North assente, hesita e expira devagar.
— Mostre para o Atlas. Primeiro a lista, depois aponte as pessoas.
Vê se ele lembra de alguma coisa.
— Não. De jeito nenhum. Não vou entregar a pouca informação que
temos a alguém que sabemos que faz parte da Resistência.
Gryph e North se entreolham, mas meneio a cabeça para os dois.
Não ligo para o que dizem, ou que seja parte do Grupo de Vínculos. Ele
continua sendo a merda de um Bassinger.
Ele foi o primeiro indício do veneno que a garota tem.
— Vou cuidar disso eu mesmo, então deixe-o de fora dessa.
Encontrarei o simpatizante até o final da semana.
Por mais que construir casas com Gabe seja mesmo divertido e gratificante,
sair para buscar suprimentos com três dos meus Vínculos é exatamente o
que preciso neste momento.
Passei a noite no quarto de Nox e, embora tenha dormido oito horas
completas, acordei me sentindo um cadáver em decomposição atropelado
por um caminhão. Coloco a culpa disso na atmosfera desconfortável e vou
treinar com Gryphon quando ele vem me buscar.
Uma hora mais tarde, North chega, ainda sem ter vestido o terno, e
nos conta sobre o problema de contaminação na água. É um pouco
preocupante, porque já tomei banho e bebi café feito com aquela água, mas
pelo que Sawyer sabe, a contaminação ocorreu entre as seis e sete da
manhã, então não preciso me preocupar.
Mesmo assim, North e Gryphon me arrastam para ser examinada
por Felix, só por garantia. Menciono que Gryphon também bebeu o café,
mas os dois estão cagando para isso. Felix – que estava dormindo quando
demos as caras na casa que divide com seu Grupo de Vínculos, Sawyer e
Gray – cobre minha mão com a sua própria, gentil, mas bem cansada, por
meio segundo antes de declarar que estou bem, depois volta para a cama,
ainda sem nada além de uma cueca samba-canção vestida de qualquer jeito.
Sage enfia a cabeça para fora do quarto, mas quando digo que estou
bem, cambaleia de volta para cama sem dizer nada, ainda sonolenta e
incapaz de formular frases coerentes.
Dou uma bronca em North e Gryphon usando nossa conexão mental
enquanto saímos, e nenhum deles parece se importar.
— Foi alguém que conhece nossa rotina matinal. Sabem que você
acorda cedo — diz North, tirando o suéter e o enfiando pela minha cabeça.
Ainda está calor, mesmo nas roupas de treino que consistem em
regata e short, mas Gryphon o ajuda a ajeitar a peça até que eu esteja
coberta até os joelhos.
Não entendo por que ele está tentando me cobrir – até ver a legião
de trabalhadores vindo da direção oposta, todos acenando ou baixando o
queixo de forma respeitosa para North, que tenho certeza de que está
empolgadíssimo por estar só de calça de moletom.
Gryphon meneia a cabeça e segura minha mão quando tropeço no
cascalho solto.
— Foi um teste. A Resistência não quer realmente a Oli morta: o
que querem é saber o nível de segurança deste lugar e quais salvaguardas
temos. Vão ficar de olho em como reagimos às coisas e como nos
articulamos quando nos atacam, mesmo em escalas menores como esta.
Bufo para os dois.
— Bom, eles descobriram que vocês dois entram em pânico e me
arrumam um Curandeiro, então, se me querem viva, vão ficar
supersatisfeitos.
Gryphon dá de ombros, recusando-se a soltar minha mão ao me
conduzir a caminho da nossa casa, e diz:
— É a única vez em que não me importo de fazer exatamente o que
aqueles cuzões querem. Segurança acima do ego, sempre.
Assinto e espero North abrir a porta. Ao entrar na casa, tropeço e
tento não ficar frustrada por Gabe deixar os sapatos na frente da porta.
North não oferece a mesma gentileza; xinga em voz baixa, então sai
marchando para acordar o coitadinho do meu Vínculo e dar uma bronca
nele.
Viver com tão pouco espaço é mais difícil do que qualquer um de
nós imaginou, e aqui temos machos alfa demais em um lugar só.
— Para de se preocupar com isso. Não é seu problema para resolver.
Além disso, eles têm uma amizade de anos sobre a qual você não tem
nenhuma responsabilidade — murmura Gryphon, conduzindo-me para a
ilha da cozinha e me ajudando a sentar na banqueta.
Faço que sim e me abraço, inspirando fundo o cheiro de North no
suéter para me acalmar antes de apoiar o queixo na mão e assistir Gryphon
se mover pela cozinha. Ele continua com a roupa de treino e posso me
deliciar com a visão dos músculos de seus braços e ombros contraídos na
regata cavada. Nem reparo que está pegando frigideiras e ingredientes para
preparar ovos mexidos e bacon. Só percebo que fez café da manhã para nós
quando coloca o prato na minha frente.
Encaro a comida por um segundo, depois o encaro. Ele está
balançando a cabeça para mim.
— Não sou o chef, mas sei fazer ovos. Trabalhei no café com a
Kyrie por alguns anos na época da faculdade. É para estar comestível, pelo
menos.
Coro de leve e pego os talheres que ele também colocou na bancada
para mim.
— Certeza que está uma delícia. Só fiquei chocada de ter comida em
casa. Achei que ainda não tivéssemos chegado na fase de racionamento.
Ele dá de ombros e começa a comer do próprio prato.
— Não chegamos. Fiz umas compras quando fui à sede do conselho.
De vez em quando, lidar com os cuzões da Resistência que trazemos pra cá
tem suas vantagens.
Assinto e como junto com ele, impressionada que ele não apenas fez
a comida com a consistência perfeita, mas bem-temperada. Nossa, são ovos
excelentes.
— Achei que nem tínhamos prisioneiros, que meu vínculo tinha
exterminado o campo todo.
De boca cheia, ele concorda e espera engolir tudo para responder:
— Exterminou. Esses são os que a gente apreendeu e transportou
para cá antes de você entrar na briga. Pegamos um punhado, vários
Favorecidos de alta hierarquia. Foi bem útil.
Concordo.
North entra na cozinha, com o cabelo ainda despenteado em pontos
que não se incomodou demais em arrumar após acordar. O terno, porém, o
deixa bem mais parecido consigo mesmo. Ele assente para Gryphon, então
se abaixa para me dar um beijo, estalando os dedos para August, que
aparece obediente do meu lado. Houve uma mudança drástica no
relacionamento entre eles desde que falei com o vínculo de North. Notei
que, mesmo quando August volta à sua companhia, North quase sempre o
deixa de fora, vigiando qualquer que seja o espaço em que está.
A cada vez que vejo isso eu me apaixono um pouquinho mais por
ele.
— Fique com um dos seus Vínculos o tempo todo hoje, até a
situação estar sob controle.
Concordo porque já estava planejando fazer isso, e o deixo me
beijar de novo, segurando minha nuca de um jeito possessivo. Ele se ergue,
troca um último olhar com Gryphon e vai embora, saindo para lidar com a
mais nova crise.
Volto ao meu prato de ovos deliciosos e à conversa com Gryphon.
Quero saber o que a Resistência anda fazendo.
— Já tirou algo de útil das pessoas que trouxeram? O Atlas
reconheceu alguém?
Ainda de pé no meio da cozinha como se não encontrasse tempo
nem para sentar, ele assente e recolhe o restinho dos ovos com o garfo.
Graças à interrupção de North durante nosso treino, estamos uma hora
adiantados, embora ele se comporte como se já estivesse com um pé na
porta.
Antes de responder às perguntas, ele inclina a cabeça de lado e seus
olhos brilham, expandindo seu dom para conferir onde Atlas está. Quando
vê que ele está dormindo, diz em voz baixa:
— A irmã do Bassinger está em frangalhos. Passei dois dias
vasculhando as memórias dela, mas foi como olhar um daqueles espelhos
de exposição. O mundo através dos olhos dela é distorcido, deformado. Ser
criada à base de propaganda da Resistência e depois ter quatro Vínculos que
pensam do mesmo jeito? Ela é… um caco. Além disso, também foi abusada
pela maioria dos seus Vinculados, física e mentalmente. Isso não é raro
entre as famílias da Comunidade Favorecida da Costa Leste, mas o fato de
que seus pais sabiam e não fizeram nada para ajudar é nojento.
Meu coração se parte um pouco mais pelo Atlas, pelas coisas que,
embora não quisesse ter que me contar, estava disposto a isso, se eu
acreditasse nele. Parece meio errado falar sobre isso com Gryphon, mas ele
também é meu Vinculado e sei que isso afeta a ele também. Tudo o que ele
precisa ver e vivenciar em seu trabalho como líder da Equipe Tática é uma
carga pesada para carregar.
Não é justamente o meu trabalho ajudar a aliviá-la?
— Eu não pediria isso de você, Vinculada. Nunca colocaria muito
dessa desgraça nos seus ombros; seus próprios fardos já são pesados o
bastante. Estou indo ao escritório do North para decidirmos o que fazer com
o problema da água. E você continue com seu dia, como de costume. Só
fique sempre perto do Bassinger e do Gabe, tudo bem?
Faço que sim e pego o prato dele, empurrando-o com o quadril para
fora do caminho enquanto os coloco na máquina de lavar louça junto com
os outros pratos. Ele me dá um beijo estalado e vai se vestir para o dia. Já
eu fico apreciando a visão de sua bunda naqueles shorts durante todo o
caminho.
Ele responde:
SE PUDESSE, A ESSA ALTURA NORTH DRAVEN JÁ TERIA TRANCADO VOCÊ NUMA
TORRE, COMPLETAMENTE INACESSÍVEL PARA QUALQUER UM DE FORA DO NOSSO GRUPO
DE VÍNCULOS, E MESMO LÁ, ELE SÓ DEIXARIA O RESTO DE NÓS TER ACESSO A VOCÊ
PORQUE, CASO CONTRÁRIO, VOCÊ SOFRERIA. ELE É UM BABACA CIUMENTO E
POSSESSIVO, E EU NÃO. QUERO QUE TODOS VEJAM O QUE É MEU E SAIBAM QUE NUNCA
TERÃO NADA TÃO PERFEITO QUANTO MINHA VINCULADA. SOU UM CUZÃO CONVENCIDO,
MAS AINDA ASSIM, UM CUZÃO.
Caramba.
É uma ótima explicação e, por mais que eu queira, não consigo
continuar brava com ele. Não consigo porque eu sabia que ele estava todo
cheio de si – e orgulhoso – de estar comigo. Sabia o quanto estava amando
ter sido o primeiro a completar o Vínculo comigo, apesar das
circunstâncias, e sempre me fez sentir que isso seria possível
Talvez eu pudesse ficar com todos eles e não me tornar uma
máquina mortífera sem consciência.
AINDA ESTÁ BRAVA?
POSSO CORTAR A GARGANTA DO BLACK AGORA MESMO E
DEIXÁ-LO SANGRAR ATÉ MORRER.
Sou fuzilada por seus olhos, poços ardentes sob a fachada calma que
exibe para todos os outros. Amo essas profundezas e o fluxo de depravação
que sai de sua boca quando ele está no clima.
SE VOCÊS JÁ TERMINARAM, PODEMOS VOLTAR AO QUE VIEMOS FAZER AQUI?
O tom prepotente de North me sobressalta e eu abaixo a cabeça,
subindo no banco traseiro da caminhonete sem dizer mais nada.
— Estão te azucrinando de novo? Imaginei que fossem te deixar em
paz por umas horas enquanto trabalhamos — resmunga Atlas ao se sentar
ao meu lado, afivelando o cinto de segurança antes de me ajudar com o
meu.
— Gryphon estava só pedindo desculpas. Ele não é muito bom
nisso, mas deu para o gasto — brinco, ignorando o jeito com que Rockelle
cai na risada ao subir na parte traseira. Com uma arma nas mãos, ele se
prende ao chão e se prepara como se fosse sair atirando pela traseira da
caminhonete. Dou uma olhada para North.
— Por que é que parece que vamos entrar em uma zona de guerra?
É um passeio para buscar água — provoco, mexendo a bunda para me
acomodar.
Quando North sobe e ocupa todo o espaço restante no banco
traseiro, parece que estou sendo esmagada mais uma vez entre ele e Atlas.
O esquisito é isso ser mais reconfortante do que incômodo.
Vínculos são bem esquisitos com esse tipo de coisa.
Ele não se dá o trabalho de afivelar o cinto, apenas segura a barra de
ferro acima da porta enquanto Kieran nos conduz para a estrada. Gryphon
está no banco da frente, com os olhos ainda brancos, monitorando tudo ao
redor.
North precisa quase gritar para que eu o ouça por cima do ronco do
motor, mesmo com as janelas de vidro blindado fechadas:
— Temos excursões por mantimentos e chegada de residentes quase
todo dia, e pelo menos sessenta por cento delas é atacada ou pilhada de
alguma forma. Já que esta saída foi forçada pela Resistência, aposto que
não será um passeio tranquilo. Existe um motivo para virmos juntos. Água
é importante demais para não buscarmos, mas, com nossos dons, podemos
minimizar as consequências.
Interessante.
— Alguma chance de vocês me deixarem participar das entregas e
recebimentos de suprimentos? Posso ser útil, mais do que aprendendo a
construir casas.
Todos os meus Vínculos falam ao mesmo tempo em uníssono:
— Não.
— De jeito nenhum.
— Eu nem queria que você viesse hoje. Esses dois que insistiram.
Olho para Atlas, surpresa com sua resposta, mas ele só dá de
ombros.
— Prefiro mil vezes quando você fica no Santuário. Não vou mentir
e dizer que estou gostando disto, mas não ia deixar que te trouxessem se eu
não viesse junto.
— Eu… — balbucio. — Meu vínculo é mais do que capaz de se
virar se algo der errado!
— É, e mesmo assim você passou dois anos sendo torturada pelo
Silas Davies. Não duvido de você, mas também não duvido que ele seja um
Neuro Vinculado com a habilidade de desligar seu cérebro e o seu vínculo.
Cruzo os braços.
— Ele é poderoso, mas seu alcance é uma porcaria. O dom do
Gryphon é melhor.
Atlas assente e dá de ombros de novo.
— E ainda assim o Silas continua sendo nossa maior ameaça.
Talvez, e só talvez mesmo¸ os pesadelos dos Draven dariam conta dele. Se o
alcance do North ou do Nox for tão bom quanto parece, talvez a gente
consiga usar um dos dois para acabar com ele.
Já sei que o alcance dos dois é fenomenal. Brutus foi ao campo
comigo e, embora Nox não soubesse onde estávamos, conseguiu ver tudo
pelos olhos de sua criatura. Foi o que Gryphon me contou, e também que
todos ficaram preocupados quando o emprestei para Kyrie.
Continua sendo a melhor decisão que tomei naquele campo de
merda.
Dou uma olhada breve para North, mas ele continua de cara feia
para a estrada como quem espera confusão. Inspiro de leve e invoco meu
vínculo, que responde:
ME DEIXE SAIR.
Reviro os olhos por dentro.
SÓ PRECISO SABER SE HÁ ALGUM PERIGO. NÃO PRECISO QUE DÊ UMA DE
SUPERDEUSA DA MORTE NESTA MISSÃO.
Será que é estranho eu ter ciúmes do meu próprio vínculo sendo tão
possessivo com meus Vínculos? Deve ser. Talvez eu precise mesmo de
terapia.
Meus olhos esvaziam. Enrijecendo, O Inabalável tensiona a mão em
minha coxa, mas não se move. Ele não está com medo, só pronto para agir
se for preciso.
O Sombrio não reage, apenas vira o rosto e fala comigo.
— Algum perigo? Ela está a salvo?
Ainda tão devoto à mocinha.
Gosto disso.
— Ainda não. Ela vai ficar bem, custe o que custar.
Ele assente e gesticula para meu Vinculado. Meu primeiro
Vinculado, aquele que eu finalmente pude experimentar. Aquele que liberou
mais do meu poder, do potencial que vive dentro da moça, até que eu
pudesse acessar mais e mantê-la a salvo e viva.
Quero mais.
— Chega de pensar assim. Não vai conseguir mantê-la viva desse
jeito — ele diz em uma voz tensa, e eu lhe dou um sorriso cheio de dentes
afiados.
— Você é chato. Me dê meu Vínculo em seu lugar.
A garota discorda de mim. Ela tenta recuperar um pouco do controle
enquanto o motorista xinga em voz baixa, afunda o pé e faz o veículo
acelerar. Olho para fora e não vejo nada. Nada além de quilômetros de
fazendas e gado ao nosso redor. Este lugar para o qual fomos trazidos é
remoto o suficiente para mal existir em um mapa.
— Falta muito pra chegar? — pergunta o Inabalável.
— Tempo demais com ela desse jeito aí atrás — retruca o motorista.
— Pode devolver a Oli agora?
O Sombrio interrompe:
— Não. Se o vínculo assumiu, então ela está levando isso a sério. Só
nos leve até lá e não se preocupe com ela. De qualquer modo, você está na
lista de proteção dela. O Rockelle é o único que precisa se preocupar.
Por um momento, um silêncio toma a cabine. Somente o ronco do
motor pode ser ouvido e então, na traseira, o Favorecido diz:
— E como eu entro nessa lista de proteção? Tem algum processo
seletivo, ou preciso apenas quebrar minha própria perna? Não sou contra
nem nada, só não é bem minha primeira opção.
Viro-me para encará-lo e dou um sorrisinho frente ao pavor sincero
que se espalha pelo seu rosto antes de ele retomar o controle e segurar a
arma com mais força.
Quando volto a olhar para frente, ele murmura:
— Porra. É bem pior quando essa coisa olha pra gente.
O Inabalável se vira e retruca:
— Para de chamar meu Vínculo de essa coisa. É Oli, e ela está
tentando manter essa sua carcaça inútil viva, então cala a boca.
Embora eu não sinta necessidade de demonstrar meu carinho ou
provar minha ligação a qualquer um dos meus Vínculos, pouso a mão sobre
a dele em minha perna como reconhecimento. Nunca duvidei de sua
lealdade a mim e ao nosso Vínculo. Não é sua culpa ter nascido em um
covil de víboras. Ele veio assim que o chamei, para apoiar a garota e
oferecer consolo quando ela precisava.
O Inabalável se inclina e beija minha bochecha, murmurando:
— Você está brilhando. É uma graça, mas está fazendo o Black suar
frio, então talvez queira dar um jeito nisso.
Nego com a cabeça.
— Ele que supere. Sou perfeita do jeito que sou.