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Título Original: BLOOD BONDS

Blood Bonds Copyright © 2021 J Bree


Blood Bonds Copyright © 2024 J Bree

Diretora Editorial: Elaine Cardoso


Assistente Editorial: Tiago Toy
Tradução: Naiara Chiquetto
Preparação: João Pedroso
Revisão: Tiago Toy
Capa: Emilie Snaith
Diagramação digital: I A N D R A D E
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte dessa obra pode ser reproduzida ou transmitida por
qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou
banco de dados sem permissão escrita do autor.
Violação de direitos autorais é crime estabelecido pela lei 9.610/98 e punido
pelo artigo 184 do Código Penal.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.
Sumário
Título
Sinopse
Epígrafe
Nota do autor
Aviso de conteúdo sensível
Prólogo
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Depois de fugir por três anos, estou de volta a um campo da
Resistência, acorrentada a uma cadeira como se fosse um monstro
permanente.
Todos de quem fugi, todos os vilões do meu passado, estão aqui
para arrancarem mais um pedaço de mim.
Mas, desta vez, não estou sozinha.
Com Vínculos desesperados tentando me encontrar e novas
amizades que nunca imaginei que teria, começo a acreditar que talvez não
me tornarei a arma que querem que eu seja. Talvez eu venha a ser meu
próprio monstro.
Quando lealdades são questionadas e Vínculos são postos à prova,
tudo que achei que sabia vira de ponta-cabeça.
Quem são meus amigos, e quem são meus inimigos?
Será que os laços entre Vínculos são mais fortes que o sangue?

Blood Bonds é um romance sobrenatural com harém reverso e contém


temas que podem ser difíceis para alguns leitores. Este livro termina em
um gancho. É recomendado somente para maiores de 18 anos, devido à
linguagem ofensiva e cenas de sexo.
Depois de fugir por três anos, estou em um campo da Resistência de
novo, acorrentada a uma cadeira no papel de monstro da casa.
Tudo de que eu tinha fugido, todos os vilões do meu passado, estão
aqui para arrancar mais um pedaço de mim.
Acontece que, desta vez, não estou sozinha.
Com meus Vínculos desesperados à minha procura e novos amigos
que nunca imaginei que teria, estou começando a acreditar que talvez eu
não me transforme na arma que querem que eu seja. Talvez eu venha a ser
meu próprio monstro.
Quando lealdades são questionadas e Vínculos são postos à prova,
tudo que eu pensei que soubesse deixa de fazer sentido.
Quem são meus amigos, e quem são meus inimigos?
Será que os laços entre Vínculos são mais fortes que o sangue?
Blood Bonds é um romance sobrenatural com harém reverso, e
contém temas que podem ser difíceis para alguns leitores. Este livro termina
em um gancho para sequência. Recomendado somente para maiores de 18
anos, devido à linguagem ofensiva e cenas de sexo.
Aviso de conteúdo sensível

Este livro contém cenas explícitas de tortura física e psicológica,


sequestro e cárcere em local semelhante a campo de concentração, menções
de abuso sexual (ocorridos fora de cena), violência e morte detalhadas
(incluindo de crianças). Também há cenas de sexo descritivas, incluindo em
grupo.
O hospital é barulhento e frio.
O vínculo no meu peito está tranquilo. Parece até que, por enquanto,
o desejo ardente de sair para me proteger saciou a constante sede de sangue
que ele parece sentir, mas já sei que isso não vai durar muito. O ímpeto, a
vontade, a necessidade irresistível de consumir… nunca desaparecem por
muito tempo.
— Oleander? Oleander Fallows? Nossa, que bonitinha você fica aí
nessa cama tão grande. Com esse cabelão loiro, seus Vínculos vão ficar
muito felizes de saber que você escapou ilesa daquele acidente de carro.
Não consigo olhar para a enfermeira que fala comigo em um tom
afetuoso e gentil. Em vez disso, meus olhos focam nos longos fios que estão
cobrindo meu rosto. Loiro, mas não exatamente. Está prateado agora, mas
ontem era preto. O que quer que tenha acontecido no carro, desbotou a cor
do meu cabelo.
É difícil impedir as lágrimas se acumulando nos meus olhos de
caírem.
A enfermeira estala a língua, se empoleira ao meu lado na cama e dá
tapinhas gentis no dorso de minha mão.
— Está tudo bem. Falei com a enfermeira-chefe e ela disse que seus
Vínculos estão vindo pra cá. Está sendo tudo muito sigiloso, então eles
devem ser importantes. Sei que pelo menos um deles tem idade suficiente
para assumir a responsabilidade por você, foi ele quem fez você ser
transferida para este quarto privativo enorme, então ele deve ser de uma das
famílias da alta sociedade. Não tenha medo; com um Vínculo daqueles,
você vai ficar bem.
Quanto mais ela fala, mais furioso meu vínculo fica.
Na hora eu não entendi, mas a mulher estava tentando me fazer
conversar com ela, tentando descobrir a quem eu pertencia, para poder me
entregar. Meu vínculo já sabia e me forçou a ficar de boca fechada e,
embora eu o odeie na maior parte do tempo, presto atenção nesse tipo de
situação.
— Belinda? O que você está fazendo aqui? Deixa a Oleander em
paz!
Levanto a cabeça e vejo a enfermeira June, de cara feia na porta e
com uma mão apoiada no quadril, pronta para arrastar a outra mulher daqui
a qualquer instante. Quando acordei na emergência, ela foi a primeira
pessoa que vi, e também foi quem me contou que meus pais tinham morrido
no acidente. Eu já sabia, mas o jeito com que me deu a notícia e me tratou
desde então me fez gostar dela e, mais importante, confiar nela.
Seu olhar fica um pouco mais suave quando repousa em mim, e ela
diz:
— Seu almoço já está chegando e o terapeuta vem te ver assim que
você terminar de comer. Ele demorou um pouquinho para chegar, mas é o
melhor da cidade. Seu Vínculo garantiu que fosse.
Os olhos de Belinda disparam para mim de novo, mas quando ela
abre a boca, a enfermeira June entra no quarto e a interrompe:
— Vou lhe dar uma advertência! Agora saia daqui e pare de meter o
nariz onde não é chamada!
Bufando e resmungando, Belinda se levanta da cama, sai do quarto
e, de cara feia, encara June, que mal se dá ao trabalho de olhar em sua
direção.
Desviro a cabeça e finalmente olho para a mulher mais velha. Com
palavras que saem meio arrastadas e entrecortadas, digo:
— Não quero falar dos meus Vínculos.
Ela assente, abre um pouco mais a cortina e o brilho do sol do meio-
dia se espalha pelo quarto.
— É melhor mesmo, pelo menos até eles chegarem. Tem olhos e
ouvidos enxeridos demais neste lugar. Só lembra que tudo vai ficar bem
quando eles chegarem.
Concordo com a cabeça e a observo mexer um pouco mais nas
coisas, torcendo para ela ficar aqui até a comida chegar. Quero conversar e
explicar essa desgraça toda, mas minha língua está presa na boca. Após
conferir minha papelada por um instante, ela sorri para mim e sai sem dizer
mais nada.
Fecho os olhos com força assim que a porta bate, e o terror dispara
pelas minhas veias quando a voz no canto do quarto começa a falar de
novo:
— Achei que elas não iam sair nunca, pequena e letal Alienadora de
Almas. Onde estávamos mesmo? Ah, é claro… eu estava te contando tudo
que você vai fazer para os seus Vínculos se ficar aqui com eles. Toda a dor
e sofrimento, toda a destruição que enfrentarão só de ficarem perto de você.
Você vir comigo é muito mais seguro para todo mundo.
Corpos caem sem cerimônia na terra ao nosso redor, com membros
arrancados e pedaços faltando dos torsos, graças às centenas de criaturas de
pesadelo que vagam pelo campo da Resistência.
Todas as três Equipe Táticas trabalhando conosco hoje estão
entrando em formação, mas cuidando para não se aproximarem enquanto a
carnificina estiver em andamento, pois os abomináveis pesadelos dos
Draven não distinguem amigo de inimigo quando se alimentam num estado
de frenesi como este. Não, tudo o que existe são corpos a consumir e
despedaçar, até que haja sangue e entranhas vazando de suas mandíbulas e
seus olhos brilhem com uma luz sinistra e sobrenatural.
Este campo é mais antigo, mais consolidado e cheio de Favorecidos
que passaram por uma pesada lavagem cerebral que levaremos meses para
organizar e reprogramar. Eu gostaria de ser um homem de honra e dizer que
estamos aqui para salvá-los, que passamos meses observando este campo e
planejando este resgate para levar essas pessoas para casa, para suas
famílias. Na teoria, é verdade mesmo.
Mas, como é um campo mais antigo, também está cheio de
registros, e Gryphon está obcecado na empreitada de ir a fundo nos dados
da Resistência. Não é difícil entender os motivos. Ele sabe de alguma coisa
a respeito de nosso Vínculo que escolheu não compartilhar, mas, quando
encontrar seja lá o que esteja procurando…
Talvez a gente finalmente obtenha algumas respostas.
Um som de estática soa no fone do meu comunicador e, em seguida,
a voz de Gryphon ressoa:
— Os prisioneiros estão nas barracas maiores, ao leste. Equipe
Bravo, avance.
Tiro uma de minhas armas do coldre e estendo a palma da mão para
chamar minhas criaturas de volta, para dentro de mim, agora que já
eliminamos a maior parte dos membros da Resistência daqui. Ainda há
chance de termos deixado alguém passar, por isso a arma, mas o risco de
matar inocentes é alto demais para deixá-los se alimentarem livremente de
agora em diante.
A maioria das criaturas volta a se fundir comigo como se fossem
obedientes, mas outras retornam rosnando e berrando. A maior de todas, a
que me recuso a chamar de August, faz uma pausa para me olhar com seus
olhos vazios e reluzentes.
A criatura me encara como se fosse o cãozinho dócil que Oleander
tanto parece querer que ele seja. Ela me encara como se continuasse irritada
por não estar aqui, ajoelhando-se para lhe encher de amor e carinho.
Como se soubesse que há algo de errado.
— O August ainda está te dando trabalho graças à Oli? — pergunta
Gryphon, que se aproxima pelas minhas costas, mais corajoso e menos
cuidadoso depois de ver a criatura se curvar ao nosso pequeno Vínculo.
— A criatura está, sim. Tem algo de… estranho neste campo. Fique
por perto e de olhos abertos.
A forma como falo da criatura o faz dar um sorrisinho; ele está
gostando de me provocar no lugar da Oleander, coisa que é, ao mesmo
tempo, nova e super a cara dele.
Vai ser um pesadelo lidar com ele daqui para frente, especialmente
se continuar sendo o único de nós com o Vínculo completo.
Preciso forçar minha mente a se pensar em outra coisa, porque,
senão, sou capaz de passar dias ocupado ruminando nesse assunto. Pode
não parecer, mas viver preso em reuniões do conselho talvez ande sendo
uma boa para mim, já que me mantém distraído e atarefado a ponto de eu
não precisar pensar em nosso Vinculosinho misterioso, que talvez tenha
mesmo tido motivo para fugir de nós.
Em uma disputa de vontades e força mental, estendo a mão para a
criatura de novo até que, enfim, depois de uma bufada e um resfolego
silenciosos, um estalo ressoa e ela volta a desaparecer dentro de mim.
Pouco animado por ter que obedecer, meu vínculo ressurge no meu peito, e
respiro fundo quando Gryphon grita mais uma vez para todos se
mobilizarem.
Nox sequer chama suas criaturas de volta, mas elas sempre foram
completamente obedientes ao seu mestre. Quando ele começa a caminhar
entre as tendas e evacuá-las, os outros membros da equipe Alpha seguem
seu exemplo de bom grado. Continuam cautelosos, mas não ficam mais
travados que nem estátuas como ficam perto das minhas criaturas. É algo na
diferença de tamanho, ou na óbvia ferocidade das minhas, que reforça com
destreza a regra geral de ficar o mais longe possível delas sem que ninguém
do nosso Conjunto Vincular tenha que mandar.
Gryphon leva seu vice-líder reserva junto para explorar um
amontoado de barracas menores que, pelas informações anteriores, já
sabemos serem os alojamentos dos membros mais importantes da
Resistência. Esse tal vice, Harrison, é filho de Arthur Rockelle, e um Flama
muito bem-treinado que sempre foi leal. É a escolha óbvia para ajudar
Gryphon enquanto Kieran cuida da segurança pessoal de Oleander.
Acompanho Nox ao setor de tortura.
Ele sempre vai às áreas de interrogatório e processamento primeiro.
Encontra pessoalmente os homens e mulheres que trabalham lá, só para
garantir que morram de um jeito muito exagerado e doloroso por suas mãos,
porque a ideia de uma simples bala entre os olhos dessa laia simplesmente
não lhe parece certa.
Concordo.
Só não me empolgo tanto assim.
Como o esperado, encontramos um Empático e dois Neuros lá
dentro, colados um no outro. Os planos que sussurram em pânico são
inúteis e redundantes, e assisto com um interesse um tanto distante quando
Nox marcha em direção a eles, estende a mão de pele escurecida pelas
manchas pretas de nossa maldição com a palma para fora, e os gritos
preenchem nossos ouvidos.
Pois é, ele sempre brinca com a presa antes de deixar que seus
pesadelos a devorem.
Uma hora depois, subimos na traseira do veículo com a certeza de
que todos os membros da Resistência deste campo agora estão mortos.
Gryphon grita para o motorista nos levar de volta para a estrada e, todos
recobertos de sangue dos joelhos para baixo, retornamos ao ponto de
encontro.
A Equipe Bravo vai ficar e transferir os Favorecidos resgatados para
o que é a nossa versão dos campos de processamento. Só que, ao invés de
examiná-los para descobrir como podem ser úteis para nossa missão
psicótica, vamos dar início ao longo processo de desfazer toda a tortura e
programação que suportaram desde que foram levados.
Alguns deles morrerão lá.
Não me sinto bem com isso, nunca me senti, mas às vezes eles já
estão muito perdidos, e o dano é grande demais para ser reparado.
Solto o ar pela boca e apoio a cabeça no assento, aproveitando o
momento de calmaria sem ter que pensar em reuniões do conselho ou
estratégias políticas. Por mais que eu não quisesse deixar meu Vínculo,
coisa que eu não queria mesmo fazer depois da descoberta de mais
interposição da Resistência, afastar-me de todas as armadilhas de ser North
Draven, o Conselheiro, é algo de que eu precisava muito.
Aquilo tudo me parece uma baboseira, como água passando por uma
peneira enquanto o mundo vai se acabando ao nosso redor de um jeito ou de
outro.
William saberia o que fazer, mais do que eu jamais soube.
Havia cinquenta Favorecidos em cativeiro aqui, e tiramos trinta e
oito deles com vida. Parece uma quantidade terrível de fatalidades, e em
outras situações iríamos ser punidos pela perda de doze Favorecidos, mas
nesse tipo de missão… doze está bem na média.
Nunca conseguimos levar todos vivos. Estamos em desvantagem
numérica e sempre no modo defensivo, o que é nossa maior fraqueza
enquanto comunidade e faz com que muito sangue seja derramado. É fácil
digerir esses números aqui em campo, observando as Equipe Táticas darem
um duro danado para restringir as piores vítimas da lavagem cerebral antes
que se tornem um perigo para si mesmas e para os outros, mas, quando
estou no meu escritório lendo relatórios, esses números sempre abrem um
buraco no fundo do meu ser. Nunca é suficiente. Nada do que fazemos é
suficiente.
Com estes pensamentos desanimadores, quase não percebo.
Começa com os dedos de Gryphon batucando o assento de couro,
um pequeno escape para sua frustração. A calma no rosto de Nox, coisa que
vi poucas vezes e que só acontece quando sua própria sede de sangue foi
saciada, lentamente desaparece até que o vinco entre suas sobrancelhas
esteja fixo no lugar de sempre.
Sangue e dor.
Meu vínculo sussurrou sem parar para mim a manhã toda, contando
todas as coisas mais sombrias e sangrentas que quer fazer com cada
membro da Resistência que encontrarmos hoje. Esse falatório incessante faz
com que seja difícil perceber que a mesma tensão que sinto tomou conta
dos outros dois, mas, assim que vejo a carranca de Gryphon, analiso a mim
mesmo.
Minha pele está retesada de irritação, como se estivesse mais justa
no meu corpo do que estava há dez minutos, e me sinto todo agitado. Sinto
uma tensão que não estava em mim antes. Há algo acontecendo dentro de
nosso Vínculo.
Oleander.
Como é protocolo nessa espécie de missão, não estou com meu
celular, e tento não transparecer estar em pânico ou desesperado quando
murmuro para Gryphon:
— Fale com a Oleander. Me diga onde ela está, agora mesmo.
Com a carranca ainda firme no rosto, seus olhos disparam para os
meus e ele hesita só um pouquinho antes de falar um palavrão e ficar com
as córneas brancas enquanto invoca seu dom para uma injeção extra de
poder.
Não preciso ver mais nada para saber que estou certo, que tem algo
acontecendo neste instante, algo que nem mesmo todas as centenas de
quilômetros entre nós são capazes de me impedir de sentir. Podemos até não
estar Vinculados, mas não importa – ela está no meu sangue e nos
recônditos mais profundos e sombrios da minha alma.
O pânico piora.
Nox nos observa com atenção, sem fingir aquela indiferença
costumeira, já que só estamos nós três aqui, e, quando Gryphon xinga de
novo, ele resmunga:
— Cadê ela? Por acaso estamos prestes a sair correndo atrás do
nosso vinculosinho venenoso mais uma vez?
Gryphon o ignora enquanto pega seu comunicador, o que é de se
admirar, já que até eu fico com desejo de responder esta provocação, e
tenho certeza de que estar Vinculado deve deixar o sentimento um milhão
de vezes mais forte. Quando ele não recebe resposta pelo comunicador,
solta o cinto de segurança, se joga para a frente do veículo e volta com o
celular e uma expressão vagamente enjoada no rosto.
Inspiro fundo e conto até dez para manter o controle, forçando meu
vínculo a não atacar.
— Kieran não atende — diz Gryphon enquanto a carranca se
intensifica, e minha vontade é alcançá-lo no banco traseiro e arrancar a
resposta na marra, outro sinal de que aconteceu algum problema desde que
deixamos a mansão.
Meu vínculo está louco para arrancar sangue.
— Ela também não está atendendo. Liga para o Gabe, para o
Bassinger também — Gryphon surta e joga o celular para mim, depois
aperta as têmporas com as palmas das mãos como se estivesse sentindo dor.
Os olhos de Nox encontram os meus, mas ele parece estar prestes a
jogar o motorista para fora do carro e dar meia-volta com o veículo.
— Qual o problema? Por que essa cara de quem vai vomitar?
— Porque estou forçando pra ela me responder e ela não está… lá.
Não está me ignorando, é que tem algo atrapalhando. Tem alguma coisa
errada. Liga pro Gabe agora.
O problema é que deixamos muito mais do que apenas os outros
Vínculos cuidando dela em casa.
Conforme começo a ligar, os olhos de Nox ficam pretos e Gryphon
o observa conversar com… Brutus, como se fosse o único bote salva-vidas
no meio do oceano em que estamos todos nos afogando.
— Ela está viva. Está respirando. Não consigo ver muito mais do
que isso, mas ele está com ela, então ninguém vai chegar perto sem ser
consumido. Respira, Gryph, ela está viva.
Ele não parece melhorar nenhum pouco com a notícia.
— Mas então cadê ela, cacete? Não me manda ficar calmo. Ela
sumiu de novo, porra!
Quando Gabe enfim atende o telefone, escuto Bassinger
esbravejando na linha:
— Então agora você quer ligar? Bom, agora já é tarde!
Os olhos de Gryphon, muito arregalados e vidrados devido ao poder
que usara para se conectar com sua Vinculada, disparam para os meus.
Rosno para o telefone:
— Que porra foi que aconteceu? Não faz nem doze horas que a
gente saiu…
Gryphon me interrompe com um grunhido:
— Que merda, Bassinger! Onde é que ela está? Vou voltar aí e
arrancar sua espinha pela garganta se você tiver alguma coisa a ver com
essa história!
Bassinger bufa, um som meio selvagem, e retruca:
— Foi o cuzão inútil do seu braço-direito que levou ela, e eles não
voltaram! Se ela estiver machucada, eu mato todos vocês. Vou estripar
aquele filho da puta do Black também.
Acordo presa a uma cadeira, com cheiro de fumaça, suor e desespero
atingindo minhas narinas, e meu estômago embrulha quando aperto bem os
olhos. Ouço os ruídos e burburinhos de duas mulheres, indícios de que
estão limpando alguma coisa na tenda, e ainda não quero que saibam que
acordei.
É difícil não deixar o nojo transparecer no meu rosto.
O fedor daqui é familiar, uma mistura nojenta bem específica que
torci para nunca mais sentir, e preciso engolir a ânsia de vômito que sobe
pela minha garganta. Separaram Kieran e eu sem pensarem duas vezes, mas
não antes de eu ser obrigada a assistir três guardas o encherem de porrada.
Ninguém encostou um dedo em mim, mas eu já sabia que não
mexeriam comigo.
Quando Kieran já estava sangrando em cerca de dez lugares
diferentes e um ruído em seu peito indicava alguns ferimentos internos
graves, dois capangas subalternos o arrastaram sem cerimônia até uma das
tendas de retenção.
Fui escoltada até a tenda de prioridades, lugar em que já passei
algum tempo.
— Porra, por que é que estamos servindo uma vagabunda
cordeirinha qualquer? Que humilhação, ela devia é estar comendo lavagem
nas celas com o resto.
Há um resmungo baixo, e então outra mulher responde em uma voz
baixa, mais rouca e envelhecida:
— Ela é VIP. O dom dela garante que ganhe comida de verdade, um
banho quando precisa, e os homens não têm permissão de se divertir nem
um pouquinho com ela. Não se preocupe, o Davies vai dar uma bela de uma
lição nela, igual acontece com todos os outros.
Que nojo.
Primeiro porque eu não quero nem ouvir o nome desse homem, e
segundo porque escutar essas mulheres falando com tanta casualidade sobre
os horrores cometidos aqui, como se nem dessem a mínima para o que
acontece nos cantos deste lugar depois do anoitecer, faz meu sangue
congelar. Pelo visto não preciso me sentir culpada por matá-las quando a
hora chegar. Será que isso faz de mim alguém tão ruim quanto essa gente?
Espero que não, mas tudo bem se fizer.
— Como assim VIP? Ela é Neuro? Davies não costuma ficar com
esses por muito tempo.
Claro que não, afinal, são concorrentes dele. Certo, na verdade não
são, porque, tirando Gryphon, nunca ouvi falar de outro Neuro que consiga
fazer o que ele faz. E, por mais forte que meu Vinculado seja, ele não é
páreo para aquele homem.
Também não sou.
É apavorante.
Sei quanto poder há circulando por minhas veias; é tanto que meu
corpo ainda não consegue usar sem precisar de uma sonequinha de três dias
para se recuperar, e mesmo assim esse sujeito conseguiria acabar comigo
sem pensar duas vezes. Nossos dons podem estar a anos-luz de distância
quando se trata da habilidade, mas há muitos paralelos entre as destruições
que somos capazes de causar.
Com relutância e um tanto de admiração, a mulher com a voz rouca
murmura:
— Essa garota aqui, essa vagabunda de cabelo branco que não
parece nada demais, é a Arma Infinita. Eles vão usá-la para dar fim à guerra
e finalmente permitir que a gente, o povo Favorecido, assuma o controle
deste país como merecemos. Chega de sermos bonzinhos com Não-
Favorecidos. Chega de vivermos acorrentados a leis que não deveriam ser
aplicadas a nós porque estamos acima delas. Chega de cordeiros no
controle, vivendo em suas mansões enquanto o resto de nós luta para
sobreviver.
Puta merda.
Eu tinha até me esquecido de como eles são delirantes, falando
como se fossem amar viver naquele Faroeste Distópico pelo qual almejam,
quando na verdade… provavelmente vão todos morrer pela causa. Aquele
homem não hesitaria em sacrificar todo mundo para conseguir o que quer.
Poder absoluto.
Há mais sons de movimento, e então escuto uma das mulheres se
afastar e abrir a barraca. O cheiro de frango quente e molho alcança meu
nariz. Minha barriga ronca e sou atingida por uma ânsia de vômito, a
mesma que sempre sinto quando acordo de uma dessas sonecas depois de
usar meu dom.
Pisco algumas vezes para me acostumar à luz forte e dou uma
olhada nas duas mulheres. Não reconheço nenhuma, mas registro seus
rostos mesmo assim, guardando o máximo de informação que posso para o
caso de precisar depois.
Fazer isso já salvou minha vida várias vezes.
A mulher mais velha está segurando um prato de comida e, com
boca toda enrugada, diz:
— Não vou soltar seus braços para comer, mas se tentar me impedir
de te alimentar, tenho ordens de forçar a comida goela abaixo custe o que
custar.
Dou de ombros e abro a boca. Por mais obediente que eu pareça
estar sendo, o olhar que ela me dirige deixa claro que não acredita nadinha.
O que é hilário, porque estou faminta demais para morder essa vaca ou
tentar fazer alguma coisa com ela.
A outra mulher, que parece ser só alguns anos mais velha que eu,
nos observa com os punhos cerrados aos lados do corpo, como se estivesse
pronta para pular e quebrar minha mandíbula no instante em que eu provar
ser a “cordeira” indisciplinada que elas acham que sou.
Ah, coitadas.
Esvazio o prato sem uma palavra ou reclamação, mastigando o
delicioso frango com molho enquanto mantenho o rosto inexpressivo. Não
quero que saibam o quanto estou gostando da comida, o quanto gostaria de
poder repetir. Quando o prato fica limpo, a mulher segura uma garrafa de
água em meus lábios e me deixa beber tudo. Parece o próprio elixir da vida
em minha língua seca e lábios rachados.
Então as duas se retiram sem falar nada.
Passo um instante olhando ao redor, mas não há nada; com exceção
de mim e da cadeira à qual estou acorrentada, a tenda está completamente
vazia. Parece um pouquinho familiar demais. É bem capaz desses babacas
terem a trazido a mesmíssima cadeira na qual passei dois anos empoleirada
só para me deixar ainda mais maluca.
Isso seria bem a cara daquele nojento do Silas Davies.
Como se meus pensamentos o tivessem conjurado, as abas da tenda
se afastam e o homem, o pesadelo em pessoa, entra no mesmo espaço que
eu.
Depois de tanto tempo me obrigando a não pensar nele, a nem
sequer reconhecer sua existência no mundo, é bem anticlimático vê-lo
parado ali, vestindo um traje montado com tanto esmero. Tenho certeza de
que ele reflete muito a respeito do que vai vestir, de qual cor usará no dia,
porque sempre torci para não vê-lo nos dias em que está de branco.
Ele gosta dos padrões formados por respingos de sangue e sempre
parecia muito orgulhoso quando deixava as tendas de tortura, coberto pelo
fruto de seu trabalho. Acho que isso também ajuda a manter os outros
membros da Resistência na linha, porque com aquele sorriso psicótico no
rosto, parece muito o tipo de torturador maluco com quem é melhor não se
meter.
— Pequena Alienadora de Almas… mas agora não é mais tão
pequena, né? Você cresceu muito desde que fugiu de mim.
Sua voz é baixa e melodiosa. Mantenho meus olhos em suas botas
por enquanto, concentrando-me para que meu coração volte ao normal e
pare de acelerar… ou, melhor dizendo, de tentar estourar meu peito.
Tomara que Gryphon não consiga sentir isso.
É muito perigoso sequer pensar nele e nos meus Vínculos agora,
embora eu consiga senti-lo nas extremidades da minha mente, tentando
entrar em contato comigo. Claro que eu sabia que ele tentaria, afinal, o jeito
mais rápido e fácil de me encontrar é simplesmente perguntar onde estou,
mas respondê-lo agora, com Silas aqui perto? De jeito nenhum.
Também é difícil obstruir Gryphon sem que fique óbvio o que estou
fazendo.
Que presepada gigante.
— Vai mesmo voltar a me dar um gelo, Arma? Achei que talvez
estivesse madura demais para isso.
Abafo o calafrio que gela minha espinha e travo os ombros para não
mostrar como até o som da voz dele me assusta. Odeio esse homem, claro,
mas também tenho plena consciência do quanto ele é aterrorizante.
Preciso manter a cabeça em ordem.
Diante do meu silêncio persistente, Davies avança mais ao centro da
tenda, com passos leves e medidos. Ele é mestre em prolongar o terror,
característica que não sei ao certo se é um talento natural ou uma vasta
experiência que adquiriu destruindo pessoas. Não consigo evitar a tensão
quando ele some atrás de mim, mas então volta ao meu campo de visão com
outra cadeira, tira o paletó com cuidado, pendura-o no encosto e se senta.
Ele se acomoda de um jeito cuidadoso e comedido que me deixa
agoniada. Um cavalheiro, como sempre, mas isso não passa de uma
fachada, um ardil que usa para encobrir a criatura sádica que é na realidade.
Sei que sou um monstro e me odeio por isso, mas este homem ama
ser assim com cada fibra de seu ser… e é por isso que ele me deixa cagada
de medo.
Por fim, encaro-o nos olhos.
Ele me dá um sorriso presunçoso, aproveitando o momento, pois
sabe o quanto odeio olhar para seu rosto. Acontece que, na verdade, olhar
para os profundos abismos que são os olhos dele faz com que seja mais
fácil manter uma expressão impassível. Não há nada de normal ou de
humano ali, nada além do insensível e sádico homem que ele é.
Davies passa um minuto inteiro sem dizer nada, e então se reclina na
cadeira e cruza os braços. Deve ter uma câmera aqui dentro, pois o
movimento faz com que mais gente entre na barraca.
Dois homens fortemente armados, para ser exata, arrastando Kieran
entre eles, todo ensanguentado e com uma das pernas formando um ângulo
que não faz sentido.
Puta que pariu.
Os homens o jogam aos meus pés, de modo que ele fique entre
Davies e eu, e depois se retiram. Inspiro discretamente, muito devagar, e
espero.
Davies suspira e estala a língua para mim.
— Olha, vou ser sincero. Isso aqui me deixa magoado, viu?
Mantenho meu olhar fixo no dele, porque não posso olhar para
Kieran. Ninguém sobrevive nestes campos se demonstrar fraqueza, e tudo
que eles sabem sobre nós até agora é que chegamos juntos.
E já é informação de mais.
Davies prossegue:
— Você nunca conversou com nenhum dos Favorecidos aqui, nem
com os leais e nem com os cordeiros, e ainda assim voltou direto para nós
com um Transportadorzinho fracote desses? Sério, fico mal de verdade.
Mas sou especialista em ignorar esse sujeito. Acho que eu teria
delirado nos dois anos que passei nos campos se não tivesse aprendido a
não dar ouvidos aos seus monólogos adocicados e venenosos. Espero que
Kieran esteja fazendo o mesmo ali no chão, senão vai morrer devagarinho
mil vezes e ficar doido.
— Acho que teremos de fazer algo quanto a ele… algo extremo. A
punição tem que ser adequada ao crime. Como é que um Favorecido de
baixo nível ousa fazer amizade com nossa Pequena Alienadora de Almas,
sendo que ela cuspia na nossa cara sem parar? Que tal o cavalete?
Ai, porra.
Por reflexo à menção da máquina de tortura preferida de Silas, meus
olhos disparam sem querer para o corpo ensanguentado e ferido de Kieran
no chão. Era de se pensar que, com todo o poder que corre em suas veias,
ele torturasse as pessoas com seu dom, mas não… ele prefere máquinas que
deveriam ter ficado na Idade Média – sabe, na época em que foram
inventadas.
Ninguém sobrevive ao cavalete. Nenhuma pessoa sobreviveu nos
dois anos em que passei aqui, e se eu não fizer nada, o braço-direito de
Kieran vai morrer só porque pedi para ele me trazer aqui.
Minha voz falha:
— Você não pode.
Finalmente abaixo os olhos para Kieran, que está me olhando feio,
uma ordem silenciosa para eu fechar o bico e deixá-lo aguentar a dor e o
sofrimento por nós dois. Deve saber que está prestes a morrer, e esse típico
machão de merda quer bater as botas com dignidade.
Eu não sou assim. Ele já deveria saber disso nessa altura.
Silas se vira e me dá um sorriso. Seu lindo rosto está contorcido,
como se fosse uma máscara horripilante.
— E por que não, Pequena Alienadora? Me dê um bom motivo para
mudar os planos que tenho para o Transportador.
Ele acha mesmo que vai sair por cima, que vai usar a morte de
Kieran para acabar comigo… bom, toma essa carta na manga, cuzão.
— Ele é meu Vínculo.
Saber distinguir uma situação de vida ou morte e se comportar
quando preciso é a melhor qualidade do meu vínculo, então quando olho de
novo para Kieran e vejo o terror nos olhos dele, os meus não mudam de cor
em retaliação. É uma vitória.
Como é que vou fazer com que Kieran colabore?
— Você não deu um pio enquanto ele tomava uma surra. Espera
mesmo que eu acredite que é Vinculada a ele? — A voz de Davies está
repleta de desdém, mas, quando volto a olhar seu rosto, vejo que está tenso,
com o corpo praticamente vibrando, como se fosse um coelho e eu estivesse
segurando uma cenoura bem na frente do seu rosto.
Quanto tempo foi que essa gente passou me torturando pelos nomes
dos meus Vínculos?
Quantas promessas me fez, quantas coisas malignas, gloriosas e
carinhosas ofereceu se eu dissesse quem meus Vínculos eram?
É outra peça do quebra-cabeça que não faz sentindo nenhum para
mim, em especial agora que sei que alguém na Resistência tem se metido
com os laboratórios e Grupos Vinculados, mas está claro que eles ainda não
sabem quem são meus Vínculos.
Por que será que aquela vagabunda pérfida da Giovanna não
contou? E como pode o pai do Atlas estar aqui, sendo obviamente um
membro da Resistência, mas não ter contado?
É confuso para caralho.
Davies estala os dedos na frente do meu rosto, e eu afasto os olhos
da cara irritada de Kieran para murmurar:
— Foi você mesmo que me disse que é preciso ter muito sangue frio
para arrancar as almas das pessoas e as assistir morrendo. Além do mais,
ainda não somos Vinculados e você não o estava matando. Meu vínculo
ficou contente de ver ele sendo testado um pouquinho. O cavalete já é
demais. Se acabar com ele, você acaba comigo, e isso eu não vou aceitar.
Vejo quando o contentamento febril toma conta de seu corpo. Eu,
sua adorada arma, mais uma vez em suas garras e que, dessa vez, trouxe
outra ótima munição junto. Um Vínculo.
Ele se levanta e dá meia-volta em direção à entrada da tenda; seus
movimentos, que costumam ser fluidos, estão mais desajeitados de
empolgação, e aproveito o momento para fazer algo incrivelmente
arriscado. Arriscado, mas necessário, porque Kieran está com cara de que a
qualquer segundo vai me dar um sermão por ter mentido a respeito dele
desse jeito só para salvar a porcaria da sua vida.
Meus olhos ficam pretos, e eu faço uma breve oração para que
Davies esteja mesmo tão ocupado com a toda a alegria de ter a mim e a um
dos meus Vínculos a ponto de não perceber a merda que estou fazendo.
PRECISO QUE DIGA A KIERAN PARA COLABORAR.

A resposta de Gryphon é imediata e desesperada: CADÊ VOCÊ?


Olho bem para Davies quando ele volta a ficar de frente para nós e
paro de respirar por um instante, mas ele está ocupado demais encarando
Kieran, como se fosse encontrar meu nome gravado na pele dele se olhasse
com intensidade suficiente. Aproveito a chance para continuar a conversa
por mais um instante:
SITUAÇÃO DE VIDA OU MORTE AQUI, VINCULADO. PRECISO QUE INVADA O
CÉREBRO DO KIERAN AGORA MESMO E MANDE ELE ENTRAR NA ONDA, SENÃO VOCÊ VAI
PERDER SEU BRAÇO-DIREITO. VAI. ENTRO EM CONTATO DE NOVO ASSIM QUE FOR
SEGURO. JURO PELO NOSSO VÍNCULO.

Há uma breve pausa, então Gryphon volta a falar, fazendo meus


ouvidos zumbirem com a fúria que está sentindo de mim e da situação em
que nos metemos.
COMO VOCÊ SABE QUE EU CONSIGO ALCANÇÁ-LO? COMO SABE QUE MEU DOM
CRESCEU TANTO ASSIM?

Sinto vontade de relaxar na cadeira e nas correntes de tanto alívio,


mas ficaria óbvio demais, então escolho só enviar uma última mensagem
antes de obstruir o acesso por completo outra vez.
UM PALPITE CERTEIRO. VOU CUIDAR DELE, E DA KYRIE TAMBÉM. TE AVISO ASSIM
QUE FOR SEGURO VIREM BUSCAR A GENTE. PROMETO QUE VOU VOLTAR PARA VOCÊS.
FALA PARA O NORTH QUE EU NÃO FUGI.

Não sei por que é tão importante para mim acrescentar esse final,
mas acrescento, pensando que nem uma idiota que, se Silas perder a cabeça
e me matar, pelo menos North talvez… acredite que eu não era o pior
Vínculo do mundo.
Nossa, que deprimente pensar assim.
Vejo o exato instante em que Gryphon consegue falar com Kieran.
Ele ajeita a postura como o vice-líder sempre muito obediente que é. Fica
bem melhor assim do que com aquela marra de membro de Equipe Tática
irritado e ensanguentado que quer me assassinar, isso é fato.
Davies finalmente decide fazer alguma coisa e caminha até Kieran,
segura-o pelos braços e o coloca de pé. A perna machucada não consegue
suportar nada do peso e fica frouxa de lado. Ele geme um pouquinho, com
certeza cego de dor. Queria muito poder curá-lo, ou pelo menos tirar sua
dor, mas, não importa o que eu diga para Davies, ele não é meu Vínculo de
verdade, então não posso ajudá-lo.
Davies ou não percebe a perna, ou não se importa, e começa um de
seus monólogos adocicados.
— Um Transportador. É tanta mediocridade que eu chego a ficar
meio decepcionado. Esperava que uma belezinha como você fosse ter um
parceiro magnífico, mas estou preso a uma Curandeira, então suponho que
faça sentido que nossos grupos não sejam todos formados por poderes que
só se vê uma vez na vida. Mesmo assim, não vou mentir: eu esperava mais.
Meu vínculo volta para a dianteira da minha mente, insatisfeito com
o modo como Davies fala sobre nossos Vínculos, por mais que esteja
falando do cara errado. Ele não dá um chilique nem se comporta como um
mimadinho como tem feito há semanas na mansão dos Draven e, dessa vez,
sinto-me mais segura com ele tomando as rédeas por um instante. Meu
vínculo sempre fez todo o necessário para me manter viva, inteira e sã.
Impassível agora no papel do bom soldado e seguindo ordens de
Gryphon, Kieran olha para Davies sem deixar nada transparecer no rosto.
Sinto um orgulho bizarro dele por não estar se acovardando na frente deste
homem terrível… mas é bem provável que seja porque não conhece a
extensão de sua maldade.
Não como eu, pelo menos.
Davies o empurra e o faz ficar prostrado diante de mim mais uma
vez. Embora faça uma careta, Kieran não emite nenhum barulho que
entregue a óbvia dor que dispara por todo seu corpo. Olho para ele, agora
que meu vínculo está no comando, com a segurança de que não tem
problema se Davies vir a frieza e a distância em meus olhos vazios, porque
ele nunca viu desejo neles antes… nunca me viu olhando para meus
Vínculos, exigindo coisas deles.
Meus Vínculos.
Nossa, já estou com saudade. O que eu não daria para estar sentada
naquela aula idiota de Introdução aos Favorecidos com o Nox me olhando
feio, para estar à mesa de jantar ouvindo as exigências de North ou sendo
completamente ignorada por Gryphon. Eu aceitaria toda aquela baboseira
agora mesmo só para estar com eles de novo.
Caí mesmo como um patinho.
Davies me olha fixamente, observa meu vínculo analisar Kieran e
decide que não é só uma atuação. Seu sorriso de vitória me deixa enjoada.
— Pequena Alienadora… você vai completar o Vínculo com ele e
depois repetiremos todos os testes em você. Meu Deus, como eu senti
saudade dos seus gritos.
E então, ele me deixa acorrentada na cadeira, com olhos vazios,
escuros e gélidos, Kieran caído no chão aos meus pés, e sai da tenda.
Kieran está com algemas elétricas, do tipo que dispara volts de eletricidade
pelo corpo e mata o prisioneiro que se mexer, então não me surpreende que
Davies o tenha deixado aqui comigo. Também sei que há uma câmera nos
filmando. Embora tenha quase certeza de que não há microfone, não quero
ficar discutindo o que de fato está acontecendo.
Quando ele ergue os olhos para mim, irritado, faço shhhh e disparo
meu poder para pressentir quem está por perto e se alguém vai ouvir o
sermão indignado que tenho certeza de que está prestes a eclodir dele.
Davies está nas tendas principais com alguns de seus homens mais
poderosos e leais, mas nenhum deles consegue ouvir bosta nenhuma desta
distância, então estou segura. Tem muita gente nova aqui, mas não consigo
sentir nenhum Neuro ou dons Telecinéticos, por isso decido que vale o
risco. Recolho meu dom, olho nos olhos de Kieran e faço um gesto,
indicando que ele pode falar.
Eu nem devia ter me dado o trabalho.
— Não vou transar com você.
Bufo para ele e retruco, lembrando no último segundo de manter
minha voz e cabeça baixas apesar da indignação:
— Esse nunca foi o plano, Black! Para de pensar com a cabeça de
baixo.
Ele bufa como se eu é que estivesse sendo irracional, depois faz uma
careta ao mexer a perna e se ajeita de leve para aliviar um pouco da dor que
claramente está sentindo. Tomara que não esteja quebrada. Não sei direito
quanto tempo vou levar para dar o fora deste lugar e, por algum motivo
desconhecido, Franklin continua aqui; a ideia de ter que carregar Kieran nas
costas é demais para mim.
— Qual é o seu grande plano, então? Você ouviu o que o Silas
Davies falou. Ele vai querer que a gente “complete o Vínculo”.
Reviro os olhos com mais petulância que de costume por estar presa
nesta cadeira e minha bunda ficou dormente, mas também para esconder o
pavor que sinto só de ouvir esse nome.
— Eu sei muito bem como os próximos dias vão ser, então sossega.
É só ter paciência que vou tirar a gente daqui.
Ele me olha por um instante, depois xinga baixinho e meneia a
cabeça.
— Entra em contato com o Shore. Fala onde estamos e que
precisamos ser retirados daqui. Até parece que você tem chance de fazer
isso.
O som de seu nome faz meu vínculo transbordar pelo corpo; meus
olhos ficam pretos e perco todo o controle quando ele assume o comando,
então agacho e, num grunhido, digo para Kieran:
— Aguentei coisa demais pra você vir agora e ficar pronunciando
esse nome. Nunca fale de nenhum deles.
Ele hesita por um segundo, depois engole em seco.
Engole em seco mesmo, como se eu fosse apavorante, o que meu
vínculo ama, mas ele me devolve o comando e eu me jogo de volta na
cadeira, inspirando fundo pela boca.
— Você é maluca para caralho, sabia?
Dou de ombros e deixo uma risada baixa e ligeiramente trêmula sair.
— Não era você que morria de vontade de me ver acabar com a vida
de todo mundo? Fala sério! Não desista de mim por uma coisinha de nada
dessas. Meu vínculo mal falou contigo!
Kieran balança a cabeça e desvia o olhar.
— Pra mim já foi mais do que suficiente. Vou me esforçar para
nunca mais falar com ele.
Dou uma risadinha para caçoar dele, o que é idiotice, mas também
sinto um alívio esquisito por estarmos presos aqui juntos… por ter alguém
comigo dessa vez e não estar completamente sozinha. Além disso, já que
tinha que ser com alguém, até que fico feliz por ser Kieran.
Eu já teria enlouquecido se fosse Sage de novo. Ficaria preocupada
com ela se machucando ou sendo abusada e não conseguiria me concentrar
em meus planos. Se fosse um dos meus Vínculos de verdade? Meu Deus,
chega a ser impossível de conceber a carnificina que meu próprio vínculo
causaria por eles estarem em perigo. Um Tecnocinético não ajudaria em
nada, e aquela língua grande do Sawyer só o deixaria ainda mais
encrencado.
Felix também seria útil, só que eu também ficaria preocupada
demais com a possibilidade do Vinculado da minha bestie acabar morrendo
e não conseguiria me concentrar, então Kieran Black é a melhor opção.
Se ao menos Kyrie não estivesse nesta desgraça de campo com a
gente.
Um momento de silêncio transcorre entre nós enquanto tento achar
um jeito de fazer Kyrie vir parar nessa merda de tenda, até que Kieran volta
a falar, com uma voz que mal passa de um sussurro:
— Você está protegendo-os.
Para mim isso é óbvio, mas acho que ele deduziu o mesmo que os
outros: que eu odiava meus Vínculos e que tinha preferido fugir do que
ficar com eles.
Abaixo a cabeça de novo para quem estiver de olho na câmera não
ler meus lábios.
— Sempre. Tudo que eu fiz foi para proteger meus Vínculos. Cada
atitude, cada palavra que engoli, cada minuto que passei fugindo. Se você
não está morrendo de medo daquele homem, é porque não te repassaram
informações que prestam… ou não prestou atenção nelas. Ele é o Diabo em
pessoa.
Ele não responde por um instante. Sua respiração está estável e lenta
quando murmura de volta:
— Ele te torturou. A AI… eu li o que fizeram com você. Eles te
torturaram. Você nunca entregou os nomes dos seus Vínculos. Não cedeu.
Engulo em seco. Estou louca para mudar de assunto.
— Cedi sim. Deixei meu vínculo aguentar a dor por mim. Deixei
que ele se tornasse o monstro no meu lugar.

Depois disso, eu me recuso a conversar sobre qualquer outra coisa


com Kieran, já que honestidade demais me deixa completamente surtada e
me transforma numa pilha de nervos. Passo o tempo falando baixinho com
meu vínculo para ver se há algo que a gente possa fazer a respeito da dor
que Kieran está sentindo, mas, por mais que eu consiga curar os homens
que pertencem a mim, não sou Curandeira e meu vínculo não pode fazer
nada.
Será que eu consigo outra pessoa para curá-lo para mim?
Ouço um alvoroço e outros barulhos do lado de fora, e em seguida
as abas da tenda se abrem de novo e a mulher de meia idade de mais cedo
entra, desta vez com dois pratos transbordando com a mesma comida. Não
me surpreende que estejam me dando mais uma porção. Todo mundo sabe
que preciso de calorias extras depois de usar meu dom. Quanto a Kieran,
acredito que tenha recebido a lavagem que servem aos tais cordeiros. O
prato fumegante de frango assado coberto de molho com todos os
acompanhamentos é um colírio para os olhos.
Ou para uma barriga roncando.
Ela vem até nós dois, mas ignora Kieran. Olhando nos meus olhos
com um semblante autoritário, diz:
— Mandaram que eu soltasse suas mãos para você poder comer. Se
tentar qualquer coisa, vou te apagar até o ano que vem.
Anotado.
Então não disseram a ela que seu dom não vai funcionar comigo,
devido ao meu vínculo ser o segundo monstro mais poderoso nesse campo?
Coitada. Mesmo assim eu colaboro, em grande parte porque sei que aquele
homem fica irritado quando obedeço.
Ele nunca entendeu o motivo de eu não sair matando de cara todos
que mandava interagirem comigo, e tenho certeza de que os escolhe a dedo,
seleciona os subordinados mais chatos, sórdidos ou arrogantes que tem à
disposição.
Após me deixar com as mãos presas na frente do meu corpo e capaz
de comer sozinha, a mulher me entrega um prato. Depois, finalmente se vira
para Kieran, empurra um prato como se ele não passasse de uma pedra no
sapato e vai embora.
— Que merda é essa? Estão envenenando a gente?
Nego com a cabeça e enfio uma garfada na boca.
— Bem-vindo à experiência VIP dos campos, Black. Como é meu
Vínculo, você vai receber três pratos de comida por dia. Não vai ser
espancado ou agredido nos chuveiros e qualquer um que tentar te
incapacitar vai ter que se entender com o chefão em pessoa. O preço é a
bagatela de sessões diárias de tortura e ser obrigado a aguentar
interrogatórios que vão te fazer considerar suicídio só para acabarem logo.
Ele me olha e, depois que me vê engolir metade da comida, por fim
pega o próprio garfo e começa a devorar o frango.
— Não tem gosto de nada — resmunga, e eu dou uma bufada.
— Aqui é a Resistência, o que esperava? Quem poderia imaginar
que você seria tão mimado?
Ele meneia a cabeça e continua comendo, com muito mais etiqueta
do que eu. O campo ao nosso redor faz muito barulho; estão se preparando
para algo importante, alguma missão para dividir famílias Favorecidas e
grupos Vinculados que está para iniciar.
Como eu odeio essa gente.
Comemos em silêncio por mais alguns minutos até que Kieran
começa a usar o último pedaço de pão para limpar o molho do prato. É aí
que enfim pergunto o que, por medo da resposta, precisei reunir coragem
para indagar:
— Você viu a Kyrie?
Ele coloca o prato vazio ao lado no chão e faz mais uma careta
quando estica a perna machucada. Solto um palavrão baixinho, mas ele só
dá de ombros. Tenho certeza de que a dor é insuportável… Será que ele
passou por algum treinamento tático para aprender a ignorar tanta dor
assim, ou será que é uma característica natural dele?
Eu aprendi depois de muitas, muitas sessões de tortura.
Kieran grunhe, e depois fala baixinho:
— Ela está na cela com as outras mulheres. Ainda não classificaram
nem testaram ninguém. Davies esteve concentrado demais em ter você de
volta. Dá para ver que ele está nas nuvens.
Assinto e olho pela tenda de novo, como se uma chave ou uma arma
fosse aparecer do nada para que eu me solte dessas frustrantes correntes. Os
garfos são de plástico; a tecnologia das algemas iria derretê-los se a gente
tentasse.
Talvez Sawyer fosse, sim, útil neste momento.
Tento ignorar o jeito como Kieran está me encarando, mas seus
olhos invadem minha pele até que ele finalmente diz, em voz baixa:
— Você está tranquila demais. Eles te torturaram por dois anos
quando você era criança neste lugar. Devia estar mais… preocupada. Qual é
seu plano? Por que está tão calma?
Enfio o resto das batatas na boca para ficar mais um minuto sem ter
que falar e vou mastigando devagar. Como responder sem entregar muita
coisa? Além do mais, será que isso ainda é uma opção?
Não sobraram muitos segredos… com exceção de um, e não há
tortura suficiente no mundo que o arranque de mim.
— Não estou calma…. estou convicta. Boa parte do que está
acontecendo aqui está sendo igual da vez passada, então sei como vai ser.
Sei o que tem que acontecer para a gente sair. Só temos que ter paciência e,
provavelmente, aguentar um pouquinho de dor. Sinto muito por essa parte,
mas não dá para evitar. Seu vínculo te ajuda com essas coisas? Não sei bem
como os vínculos dos outros funcionam.
Ele se vira para manter os olhos fixos na abertura da barraca, como
se estivesse de guarda, mas já sei bem que vamos ouvir a mulher se
aproximando. É inconfundível.
— Meu vínculo não me protege assim. O meu é mais… plácido,
comparado ao seu. Eu estou no controle, não ele.
Entrego meu prato para ele colocá-lo no chão, porque minhas
restrições não permitem que eu mesma faça isso.
— Eu adoraria acreditar que estou no controle, mas tenho quase
certeza de que meu vínculo só finge para me agradar. Acho que me deixa
cuidar das coisas, mas assim que surge um perigo, ele assume. É útil até
alguma vagabunda invejosa começar a jogar perfume por aí.
Eu não devia tocar no assunto, não aqui, mas não estou dando
detalhes suficientes para informar nada à Resistência.
Fica óbvio que Gryphon não passou todos os detalhes ao seu braço-
direito, mas ele sabe o suficiente para me oferecer um sorrisinho
condescendente e dar de ombros.
— Podia ser pior, Fallows. Podia ter sido seu arqui-inimigo, ou o
irmão dele.
Dou uma bufada e murmuro:
— Difícil saber qual é qual nessa frase, mas… pois é, acho que você
tem razão. Poderia ser bem pior.
O sorriso desaparece aos poucos de sua boca. Ele dá uma olhada
ligeira para a câmera e depois se vira um pouco mais em minha direção,
ocultando a boca para murmurar:
— Você precisa alertá-los… precisa falar quem vimos aqui. Tem
que contar antes que seja tarde que há um braço da resistência em potencial
aqui.
Atlas.
É dele que está falando, já que tínhamos visto o pai de Atlas aqui. A
semelhança era tão chocante que não restou dúvidas de que os dois eram da
mesma família, e foi aí que Davies se virou para ele e o chamou de
“Bassinger”, confirmando de vez.
Ainda não sei o que pensar.
Não sei por que não contei para Gryphon quando conversamos.
Espero muito não ter estragado tudo por não ter contado, mas é
que… eu simplesmente não consegui. É difícil acreditar que Atlas me
trairia dessa forma.
Meus pensamentos em turbilhão são interrompidos pela mulher, que
volta para recolher nossos pratos. Ela resmunga baixinho sobre o
desperdício de bons recursos com cordeiros como nós, e eu reviro os olhos
para ela. Todo mundo aqui é igual. Quanto mais eu conseguir cultivar a
personalidade de pirralha mimada na frente deles, mais vão me subestimar.
Foi assim que escapei da última vez.
Espero até que ela fique de costas para nós, raspando a sujeira dos
pratos em uma lixeira, antes de estender meu dom para achar Kyrie. Preciso
dar um jeito de encontrá-la o mais rápido possível e, quando a localizo nos
chuveiros, tento não me encolher de nojo.
É o pior lugar desta merda de campo.
Com um timbre reclamão e exigente, digo:
— Preciso de um banho.
Kieran faz uma careta e ergue os olhos para mim, mas a mulher nem
lhe dá bola. Tenho certeza de que ele só parece um Vínculo superprotetor,
então deve ser bom que aja assim.
— As outras estão lá agora, você vai ter que esperar.
O tom dos meus olhos muda para preto e vejo a cor se esvair do
rosto dela quando lhe dou um sorrisinho. Deixo meu vínculo assumir o
controle e rosnar para ela:
— Eu não vou esperar.
Ela abre e fecha a boca, sem dizer nada por alguns instantes, até que
meus olhos retornam ao tom azulado normal e ela se recompõe o bastante
para grunhir:
— Preciso chamar mais gente. Não consigo levar vocês dois lá
sozinha.
Dou de ombros e resmungo com desdém.
— Não preciso ficar de mãos dadas com meu Vínculo no chuveiro.
Deixe ele aqui. Estou fedendo e preciso tirar essa imundície de mim antes
que eu vomite com a minha própria catinga.
É exagero; mal estou fedendo, só com um cheirinho de suor por ter
passado dias dormindo sentada em uma barraca quente para me recuperar
do uso do meu dom.
A mulher dá uma olhada rápida para Kieran, incerta a respeito da
nossa dinâmica, já que claramente não estamos nos comportando como os
Vinculados que ela conhece. Claro, essa mulher deve ser totalmente
submissa ao seu próprio Vínculo, uma mulherzinha Vinculada muito
obediente, e, por um mísero segundo, penso em sentir pena dela.
— E você vai deixá-la se afastar sem mais nem menos?
Kieran range os dentes para nós duas, então retruca:
— Não me preocupo com a segurança do meu Vínculo. É isso que
deveria te deixar pensativa.
Ela não nos questiona de novo.
Os chuveiros ficam numa tenda menor e mais escura, do outro lado
do acampamento. Tenho certeza de que há motivos nefastos e repulsivos
para não serem iluminadas adequadamente como o resto do campo, mas já
sei que as mulheres estão sozinhas lá dentro.
Por enquanto.
— Desocupem a última baia! Temos uma VIP aqui. — O tom dela
está cheio de sarcasmo, o que me faz revirar os olhos.
As mulheres olham para nós e se afastam do chuveiro, e eu me viro
para que ela afrouxe minhas correntes. Ainda não dá para fazer muita coisa
com minhas mãos, mas, teoricamente, vou conseguir me despir da cintura
para baixo e me limpar. Minha camiseta não vai sair, mas não vou discutir
esses detalhes com a mulher.
A única coisa que me importa é que, por um insano golpe de sorte,
Kyrie esteja no chuveiro ao lado.
Entro no espaço apertado e fecho a cortina com força, como se eu
fosse mesmo tomar banho. A mulher da Resistência fica tão perto que
consigo ver os dedos dos seus pés passando por baixo da cortina. Sinto
vontade de dar um soco nela pelo tecido, só para pegá-la desprevenida e dar
um leve troco nessa vaca, mas tenho certeza de que ela vai receber o que
merece muito em breve.
Tenha paciência, Oli.
Vou precisar repetir essas palavras para mim mesma várias vezes até
isso acabar.
Não me dou o trabalho de tirar a roupa ou de abrir o chuveiro. Nem
vou me incomodar com esse tipo de farsa. Em vez disso, ando até a
extremidade do boxe, agacho-me e agito a mão por baixo da pequena
divisória até Kyrie notar e fazer o mesmo. Enfio o máximo que consigo do
meu braço para ela ver minhas roupas e, com sorte, perceber que sou eu. O
vão entre o chão e a parede é alto o suficiente para eu ver que ela continua
de roupa de baixo e está dando só uma limpada superficial, assim como eu
mesma fiz durante aqueles dois anos de merda. Esperta.
Ninguém quer ser pega cem por cento nua aqui… por ninguém. As
mulheres são tão ruins quanto os homens e emboscam as outras nos
chuveiros para se sentirem poderosas. É idiota, e elas não deviam gastar
energia brigando entre si dessa forma, mas gastam. O desespero e o medo
causados por este lugar despertam o que há de pior em todos. Nem posso
julgar. Se eu estivesse no lugar delas, seria igual.
Meu vínculo me salvou disso também. Agora, vou usar as
informações e recursos de que disponho para manter Kyrie segura também.
Tiro Brutus do meu ombro; seu corpo está mais para uma névoa do
que para algo sólido. Ele não tenta brincar ou me dar uma fungada; está
muito diferente do cãozinho brincalhão que costuma ser.
Será que Nox está me vendo pelos olhos de Brutus?
Ele com certeza não viu nada que pudesse indicar um caminho até
aqui, porque não tenho a menor dúvida de que Nox seria o primeiro da fila
a me arrastar de volta, nem que fosse só para ter seu saco de pancadas
verbal de novo.
Percebo que estou agachada no chuveiro, olhando sem dizer nada
para uma criatura de pesadelo enquanto Kyrie deve estar achando que estou
tendo algum tipo de surto.
E, caramba, talvez eu esteja mesmo.
Puxo-o para perto dos meus lábios e sussurro:
— Cuide dela. Não é pra deixar ninguém tocar nela ou machucá-la.
Não deixe rastros.
Quando volto a abaixar a mão e o mando na direção de Kyrie, vejo
que ela se sobressalta e hesita; então, sua mão aparece devagar e aceita o
montinho de névoas, mas Brutus vai até ela sem questionar. Tenho de
acreditar que, se Nox estiver de olho, vai ficar feliz de saber que estou
tentando manter a irmã do Gryphon viva e a salvo enquanto estivermos
presos aqui.
Espero um instante, e então deixo nossos dedos se entrelaçarem por
um momento. Este carinho é a única tranquilidade que posso lhe oferecer
neste instante, já que em seguida eu me retraio, levanto e esfrego as mãos
nas pernas para tirar a espuma de sabonete e sujeira do chão enlameado.
Quando abro a cortina de supetão, vejo a mulher ali me esperando,
com a orelha perto do tecido como se estivesse tentando descobrir o que eu
estava fazendo com o chuveiro fechado.
Boa sorte aí, vagabunda.
— Estou pronta para voltar — resmungo, e ela fecha a cara.
— Você nem lavou nada. Para que foi que eu te trouxe aqui?
Dou de ombros e me delicio com a bufada de frustação que recebo
em resposta, tanto que nem me importo quando ela aperta minhas amarras
de forma brusca e me empurra para me fazer andar de novo.
Kieran está seguro por causa da minha mentira.
Kyrie está segura com Brutus.
Eu estou tão segura quanto sempre estive, graças ao vínculo que vai
ficando mais furioso e selvagem no meu peito a cada hora que passa.
Vamos sobreviver até eu conseguir nos tirar daqui.
A cada dia fica mais difícil esconder o desprezo e manter cara de paisagem
ao lidar com Favorecidos que sabemos que são membros da Resistência.
Daniella Jordan não é exceção.
Nunca confiei naquela advogada asquerosa e, embora North sempre
tenha dito que não havia motivos para eu dificultar tanto as coisas, é bom
saber que eu estava certo. Ela não gosta que eu esteja presente nas reuniões
deles, ainda mais quando fico de pé atrás da cadeira de North no escritório
da mansão, como se eu estivesse preparado para levar um tiro por ele –
embora North seja o homem mais perigoso de toda a nossa comunidade. Ela
não gosta da vantagem que isso me dá, ou de que eu fique a encarando de
cima.
Bom, eu nunca olhei para ela com tanta intensidade quanto agora,
porque essa vaca desgraçada sabe onde minha Vinculada está. Sei que sabe.
North sabe disso também e, por mais que ela esteja ali sentada reproduzindo
aquele papo furado do Conselho, ela sabe que nós sabemos. Acontece que
estamos seguindo o roteiro, fingindo que não existe um problema gigante
aqui e agora entre nós. Que agonia.
Duvido que a irmã dela tenha agido sozinha quando atrapalhou os
Grupos Vinculares. Duvido que Daniella tenha conquistado a afeição de
North com boas intenções. E quanta informação confidencial será que ela
não conseguiu diretamente dele nos últimos cinco anos?
Vou avisar que serei eu a matá-la, não importa o quanto Nox queira.
Existe um motivo para ele não estar aqui agora. Nox não sabe ficar
impassível neste tipo de situação.
Daniella franze o cenho e assume a expressão de uma advogada
preocupada com a Vínculo do chefe. Acontece que, por algum motivo, o
jeito cuidadoso demais com que ela se manifesta quando está perto de mim
sempre me deixou com uma pulga atrás da orelha. Agora sabemos o
porquê.
Preciso de toda a minha força para não saltar por cima da mesa e
esganar essa mulher até a morte, ou pelo menos até alguma informação útil
vazar daquela língua afiada.
A julgar pela forma como sorri para mim, ela sabe disso também.
— Vou preparar esses documentos para você, North. As equipes
Alpha e Bravo vão encontrá-la. Encontraram da última vez. Tenho certeza
de que já conseguiram alguma pista. É só questão de tempo — diz ela
enquanto recolhe a papelada à frente e guarda na maleta.
North se levanta e ajeita o paletó com a mão, como se estivesse com
a aparência profissional no momento, o que é só mais uma parte da atuação.
Depois, ele a encaminha para Rafe, que vai acompanhá-la até a saída da
mansão.
Depois que ela sai e a porta se fecha, conto até cinco e murmuro:
— Não sei como você aguenta essa mulher. Por mim, já a teria
matado muito antes da gente descobrir a verdade.
North dá de ombros e sacode a mão que está envolvida por um fino
aro preto de névoa, um dos muitos sinais sutis de que ele está quase
perdendo o controle.
— Fazer parte do Conselho só significa uma coisa: lidar com gente
de quem não gosto. Ou eu aguento ou abro mão desse cargo, o que não
posso fazer enquanto procuramos a Oleander. Agora preciso manter a
posição para podemos encontrá-la cada vez que ela desaparecer.
É a primeira vez que ele menciona o assunto sem socar alguma
coisa, então acho que estamos evoluindo.
Ele volta para trás da escrivaninha e destranca a gaveta com sua
própria papelada, documentos a respeito de Oli e seu codinome. O
codinome que Atlas Bassinger convenientemente sabia sem que ela o
tivesse informado.
North confere o relógio.
— É hora do jantar. Nós dois já pulamos o café da manhã e o
almoço. Considerando o que vamos fazer hoje à noite, vamos precisar da
energia.
Não discuto, embora eu não esteja mais com vontade de lidar com
metade das pessoas que vêm à mesa.
Os irmãos Benson e Felix Davenport se mudaram para a mansão
Draven. Enquanto parte de mim sente muito orgulho por cuidar dos
melhores amigos da minha Vinculada em sua ausência, outra parte os
ressente por estarem aqui e ela não. Oli ter sido tirada de mim mais uma vez
e nós estarmos empacados aqui, de mãos atadas, porque eles não estão em
nenhum dos campos conhecidos, é como jogar sal na ferida.
Quando Atlas me entregou o chip GPS dela, eu quis matá-lo com
minhas próprias mãos. Vontade essa que só piorou quando Gabe nos contou
o quanto Atlas na verdade já sabia sobre ela… mas então Gabe chegou na
parte da traição de Noakes.
North também não reagiu bem àquilo.
Ele não tem reagido bem a nada nessa história e, quanto mais
informações obtemos sobre o período que Oli passou com a Resistência,
mais perto de perder o controle vejo que ele está chegando. Faz muito
tempo desde a última vez que o vi tão no limite assim. A última coisa que o
engatilhou… bom, ninguém pôde culpá-lo por ter perdido o controle pelo
que aconteceu com seu irmão.
Eu com certeza não culpei.
A cada dia que passa sem ela, vamos todos perdendo a cabeça.
Achei que tivesse sido ruim da primeira vez, mas na época só perdemos a
ideia de um Vínculo. As esperanças e sonhos que tínhamos com ela, mas
não a garota em si.
Perder a Oleander Fallows de carne e osso é como ir morrendo aos
pouquinhos.
Ouvir a voz dela na minha cabeça quase me fez cair de joelhos no
meio da reunião com a Equipe Tática Delta, que havíamos deixado na
cidade com a porra de uma única missão: manter Oli em segurança. Ela não
ter me contado nada de útil é, ao mesmo tempo, irritante e bem o que eu
esperava. Foi preciso fazer North se lembrar de que ela sobreviveu naqueles
campos por dois anos quando era uma adolescente de quatorze. Precisamos
parar de idiotice e… confiar nela. Por alguns dias, enquanto usamos cada
merda de recurso que temos à disposição para trazê-la de volta para casa.
Não que a gente tenha muita escolha. Assim que fiz o que ela pediu
e falei diretamente com Kieran, Oli me bloqueou de novo. Fiquei frustrado
até North salientar o óbvio:
— Muitos Favorecidos conseguem interceptar esse tipo de
comunicação. Ela está se protegendo. Está protegendo vocês dois.
Foi a única coisa sensata que o ouvi dizer desde que essa desgraça
toda começou, e já serviu para me deixar com um pouquinho de esperança
de que os dois talvez consigam se resolver quando a trouxermos de volta.
Quando.
Não tem nada de “se “ aqui.
Ao chegarmos na sala de jantar, Nox já está lá. Continua com o
nariz enterrado num livro tão velho quanto a própria família Draven, do
mesmo jeito desde que descobriu qual é o dom de Oli. Eu sabia que seria
assim, que ele pesquisaria e avaliaria cada partezinha do poder dela até
conhecer a fundo isso com que estamos lidando.
Boa sorte nessa empreitada, porque nunca ouvi falar de uma
Alienadora de Almas como ela antes.
Sentamos nos lugares de sempre e começamos a encher nossos
pratos. Na mesa há peixe e lagosta, como se minha Vinculada estivesse aqui
para aproveitar. Como o trouxa que eu sou, pego comida só para sentir
alguma conexão com ela. Ninguém comenta.
As portas se abrem mais uma vez e Gabe, que parece ter sido
arrastado pela lama, junta-se a nós. Está cheio de olheiras e com o peito e
pescoço sujos de sangue, que aparece pelos buracos da camiseta. Ele voltou
a frequentar os clubes de luta de metamorfos para aproveitar o tempo livre e
extravasar as frustrações, mas dá para ver que está ficando desleixado com
as vitórias.
Não meço minhas palavras:
— Que cara de acabado.
Ele dá de ombros, senta no lugar de sempre e franze as sobrancelhas
ao olhar para a cadeira desocupada de Oli. Quando esfrega o rosto com a
mão, vejo que os nós dos dedos também estão ensanguentados e sujos.
— Tô pouco me fodendo.
Não há muito o que se descobrir no clube de luta, mas, se é algo que
vai mantê-lo fora de encrenca e ajudar a aliviar um pouco de agressividade,
por mim tudo bem. Não tem muito que ele possa fazer até descobrimos uma
localização.
É então que iremos todos atrás do nosso Vínculo e mataremos todos
os responsáveis por mantê-la longe de nós.
As portas que levam à cozinha se abrem e os outros chegam para o
jantar. Sawyer entra com um notebook nas mãos e os olhos acesos e
completamente brancos enquanto vasculha os dados confidenciais e
extremamente acima de seu nível de autorização, dos quais North o
encarregou. Sage e Felix o acompanham; ambos parecem um trapo de tão
exaustos. Pelo visto não tem ninguém dormindo direito nesta casa. De certa
forma, saber que estamos todos meio atordoados sem minha Vinculada
Alienadora de Almas me deixa um pouco mais tranquilo.
Felix dá uma olhada em Gabe e estende o braço para curá-lo, mas
Gabe o interrompe com um simples:
— Não.
Com a mão ainda pairando no ar entre os dois, Felix responde com
um olhar irritado.
— Machucar os dedos e ficar todo arranhado para se punir é
besteira, Ardern.
Com o olhar fixo no prato, Gabe meneia a cabeça.
— A Oli não gosta que outras pessoas além dela curem a gente. Não
é nada letal, então deixa para lá.
O rosto de Felix fica abatido e ele olha com pesar para Sage,
claramente arrependido de ter qualquer coisa, mas ela respira fundo e diz:
— A Oli sempre deixa o Felix cuidar dela. Ela não acharia ruim ele
te curar, Gabe. Nós dois sabemos disso.
Ele só dá de ombros e volta a se curvar sobre o prato sem falar mais
nada. A mesa fica em silêncio de novo. Apenas os sons dos talheres
raspando nos pratos e os cliques das teclas no notebook podem ser ouvidos.
É idiota, e eu sei que não devia, mas tento alcançar Oli mais uma vez, não
para conversar, mas só para sentir se ela está bem. Sei que está viva. Todos
saberíamos se ela morresse, mas muita desgraça pode acontecer com uma
garota, mesmo sem matá-la.
Tento não pensar muito nisso, porque senão meu vínculo começa a
se comportar mal.
Sage pigarreia, toma coragem e fala para North:
— Alguém pode tirar o Atlas da cela de uma vez? A gente já sabe
que ele não é da Resistência.
Nox bufa e leva o copo de uísque aos lábios.
— Sabemos mesmo? Porque ele é um Bassinger. Fazer parte
daquela merda é bem a cara dele.
Parece que estou vendo Sage se transformar em uma versão mais
durona diante dos meus olhos. Tenho o cuidado de registrar cada segundo
disso na memória para compartilhar com Oli depois. Logo, logo vou contar
tudo para ela.
— Passei meses vendo o quanto ele a venera. Se fosse pra achar que
tinha alguém no Vínculo tentando machucá-la, meu palpite seria você,
Draven.
Vixe.
Troco um olhar com North, pois achei que ele defenderia Nox sem
nem pensar duas vezes, mas ele só volta a abaixar os olhos para as
transcrições que encontramos dos experimentos feitos na AI.
Os registros das sessões de tortura que a Resistência fez na minha
Vinculada.
Sem a menor ideia das aberrações que seu irmão está lendo, Nox
responde Sage com um sorrisinho e diz:
— E é assim que a Resistência continua vencendo: fingindo
rostinhos gentis e amorosos para conquistar mulheres bobas.
Gabe bate os talheres na mesa, e Sawyer empurra o computador
para longe, grunhindo. Está evidente que uma briga vai acontecer. Nox só
dá outro sorrisinho, e seus olhos ficam pretos enquanto se prepara para dar
um jeito em todos com suas criaturas, mas, em vez disso, fica rígido por um
instante, e depois dispara contra North:
— Ela deu a criatura para a Kyrie. Não é dela. Ela não pode
simplesmente dar para outra pessoa.
Os olhos de North se voltam para ele, mas então Nox xinga baixinho
e murmura:
— Ela o entregou… para proteger a Kyrie no campo, porque ela
sabe o que acontece com as mulheres lá.
Há um instante de silêncio, e então Sage surta com Nox e gesticula
na direção dele com um movimento brusco:
— Nossa, mas como ela é uma mulher terrível e “boba”, né?
Fugindo por aí para salvar os outros! Uma mulher que, mesmo presa na
porra de um campo, continua pensando nos outros. Então, beleza, pode falar
que somos idiotas por acreditar no Atlas. A sua palavra não vale nada para
mim. Nada, Draven! Você não passa de um homenzinho amargurado e
perverso que precisa ir atrás da porra de um psicólogo e parar de encher a
cara.
North continua sem interferir.
Independentemente do que esteja acontecendo entre os irmãos,
nunca os vi agindo assim. Nunca. North protegeu, cuidou, mimou e
amparou o irmão durante toda a adolescência de Nox. Nunca o deixou
enfrentar suas próprias batalhas sozinho desse jeito sem se intrometer com
seu dom.
Gabe ignora Nox, opta por se virar para North e esbraveja:
— Você vai falar com ele ou a gente vai só… deixar ele apodrecer lá
até recuperarmos a Oli? Temos algum plano ou vamos só torcer para o cara
desaparecer?
Nox me encara da outra ponta da mesa, mas não quero falar muito
desse assunto na frente dos outros. Sawyer passa os olhos por todos nós,
reclina-se na cadeira esperando uma resposta e, de forma protetiva, chega
mais perto da irmã.
North escolhe as palavras com cuidado, mas não recua:
— Ele provou que tem informações que somente alguém ligado à
Resistência teria. Atlas mentiu para nós ou, no mínimo, omitiu a verdade.
Gabe dá de ombros, daquele jeito bem juvenil de sempre:
— A Oli também fez isso. E não tem ninguém sugerindo prender ela
numa cela quando voltar pra casa.
North semicerra os olhos para ele.
— Não tem ninguém falando da Oleander agora, e ela foi levada
pela Resistência. É uma vítima, não uma possível traidora.
Sage olha fixamente para ele, então solta um suspiro e se mete na
conversa:
— A Oli vai ficar pistola e vocês sabem. Não posso convencer
vocês a soltá-lo, mas estou avisando: ela vai encarnar um Vínculo
apavorante e vir para cima de vocês quando descobrir…
North a interrompe:
— Atlas está em isolamento. No próprio quarto, recebendo três
refeições completas por dia, com acesso a todas as comodidades de sempre,
salvo celular e internet. Não está sofrendo nem um pouco. Eu te garanto
que, quando a Oli estiver em casa, eu mesmo conto pra ela. Levei as
opiniões e sentimentos dela em consideração, não tenha dúvidas.
Depois de salvá-la de um prédio em chamas e encobrir sua
responsabilidade, North claramente ganhou alguns pontinhos com Sage,
que, embora lhe encare com discrição, assente e volta a comer.
É o pior jantar desde que Nox parou de trazer mulheres aqui para
provocar nosso Vínculo. Esvazio meu prato engolindo tudo o mais rápido
que posso. Assim que acabo, Nox junta os arquivos e abandona a comida
ainda pela metade sem pensar duas vezes.
Saímos pela cozinha e seguimos pelos corredores de serviço, que
atravessam a casa para uso dos funcionários. Quando faço menção de ir
atrás de North, Nox me detém e, com os olhos escuros na penumbra, puxa
meu braço. Falo para North ir na frente, então me viro para Nox.
Ele não está bêbado, mas definitivamente anda bebendo um
pouquinho a mais. Logo vamos ter que cortar o acesso dele a álcool.
— O North me contou do seu dom, das coisas novas que você
consegue fazer agora que completou o Vínculo com ela.
Ela.
Nox profere o pronome como se o mero nome dela fosse um veneno
em sua língua. Como sei os motivos que o fazem ser assim, é algo que
nunca me incomodou antes, mas, agora, parece injetar um ácido no meu
sangue que vai queimando por onde passa.
Concordo com a cabeça, porque não dá para confiar na minha voz, e
ele toma a deixa para continuar.
— Nunca pratique isso em mim. Estou falando como seu amigo
mais antigo. Se você olhar dentro da minha cabeça por um segundo que
seja, eu te mato.
Não preciso do meu dom para saber que é verdade, e também não
precisava que ele me alertasse.
Sei quais horrores se escondem ali dentro.
Dou de ombros e murmuro:
— Não vou. Já conversei sobre isso com o North, e vou praticar
entrando na cabeça dele. Você não será envolvido.
Há apenas um elevador que leva ao subsolo da casa, e há um bom
motivo para tal.
Ninguém quer que as visitas deem de cara sem querer com o que
fazemos aqui embaixo, ou com os prisioneiros que trouxemos da sede do
conselho, e de jeito nenhum queremos que algum membro do conselho de
passagem por aqui veja Noakes todo ensanguentado e acorrentado ao chão,
e tente soltar aquele traidorzinho desprezível de merda.
Hoje ele está em um estado particularmente ruim. Deve ser normal
para um sujeito que passou três dias aqui embaixo sem comida ou água.
Quando ouve o elevador e os sons dos nossos passos no concreto, ele puxa
as correntes.
— Não sei de mais nada! — diz com um timbre baixo, trêmulo e
frágil.
North zomba dele:
— Não viemos aqui te interrogar. Já passamos dessa fase agora.
A pouca cor que resta no rosto de Noakes desbota. O prisioneiro se
ergue com dificuldade sobre os joelhos. Com uma voz que mal passa de um
resmungo, ele logo continua:
— Eu tinha só uma missão: encontrar seu Vínculo e colocar o chip
nela. Só isso! Eles iam matar meus filhos! O que é que eu podia fazer?
North nem se dá o trabalho de olhar para mim. Já atuamos em
milhares de interrogatórios como esse. Ele conhece os movimentos que faço
quando ouço mentiras. Eu redistribuo o peso nos meus pés, exatamente
como estou fazendo agora, porque consigo sentir o gosto de balela no ar.
North suspira e ajeita a gravata; ele é a personificação de calma e
controle.
— Sério, você já devia saber que mentir para o Gryphon não é uma
boa. Você fez parte do comitê que o selecionou para as Equipes Táticas. Foi
você que o recomendou para a posição de liderança. Esqueceu disso
enquanto nos traía?
Noakes franze o nariz e choraminga:
— Ele se enganou, estou falando a verdade. Eles só me pediram pra
colocar o rastreador nela. Não segui mais nenhuma ordem dele!
Agacho para encará-lo nos olhos:
— Mas você sabia do explosivo, não sabia? Sabia que estava
colocando a vida da minha Vinculada em perigo.
Ele choraminga e balbucia:
— Pensei que isso fosse mentira deles! Não achei que seriam loucos
de fazer uma coisa dessas com uma menina qualquer. Eles não são esses
monstros, não!
North zomba e estende a mão, cuja palma vai aos poucos ficando
preta.
— Não, mas nós somos. Não é verdade, velho amigo? Você adorou
ajudar a cultivar os boatos sobre o Vínculo de Monstros.
O aperto no peito que sinto quando North usa seu dom é bem
parecido com a sensação causada pelo de Oli. Um sorrisinho se espalha
pelo meu rosto. Depois de interrogarmos os prisioneiros, North costuma se
livrar deles com seu toque mortal. Rápido, eficiente e alvo – que também
são suas qualidades essenciais. Oli ter desaparecido de novo acabou com o
autocontrole dele, coisa que eu, particularmente, acho ótimo.
Acho ótimo ela ter se enfiado tão fundo no coração dele quanto se
aninhou dentro do meu.
Noakes titubeia, tosse em resposta, e então murmura:
— Eu não fiz isso! — … mentira. — A comunidade estava
preocupada com os poderes de vocês, de todos vocês! Eu não podia fazer
nada para impedir a disseminação de desinformação. — … mentira. —
Vocês não podem pôr a culpa toda em mim sem evidências confiáveis! Eu
não mereço morrer desse jeito! — … a maior mentira até agora.
Dou uma bufada e olho em seus olhos pela última vez na mesma
hora em que August, já salivando e rosnando, surge da mão de North, e
digo:
— Monstro é quem enfia um explosivo na cabeça de uma moça de
dezenove anos só para salvar o próprio coro. Monstro é quem invade o
quarto de hospital de uma menina de quatorze anos, logo depois da família
toda dela morrer em um acidente, e ameaça mantê-la em cativeiro. Acha
que nós é que andamos sendo os monstros? Você ainda não viu nada do que
somos capazes… mas agora vai ver.
Quando os gritos dele finalmente cessam, saímos do porão
acompanhados pelo barulho de seus ossos sendo mastigados.
Acordo com o pescoço travado e a bunda dolorida por causa da cadeira. É
frustrante que meu corpo já tenha se esquecido de como é dormir sentada
assim, já que também dormi muitas vezes no meu carro enquanto fugia,
mas parece que os meses que passei na mansão Draven me deixaram mal-
acostumada.
Dou um grunhido, ajeito-me até onde as amarras permitem e
balanço um pouco as pernas para tentar fazer a dormência passar, mas não
adianta.
— Porra, como é que você consegue dormir desse jeito? E como até
hoje ninguém te matou por roncar tanto? — Kieran comenta do chão, onde
ainda está jogado aos meus pés, com as mãos repousando de um jeito
esquisito no peito.
Bocejo e dou de ombros.
— Não costumo roncar, estas são circunstâncias extremas. E se
aprende a fazer muita coisa aqui neste lugar. Faz tempo que você acordou?
Ele revira os olhos.
— Tempo suficiente para saber que amanheceu há pelo menos duas
horas e que perdemos o café da manhã. Tinha cheiro de bacon. Pensei em te
acordar só para aproveitar.
Dou um sorriso zombeteiro para ele, alongo os ombros e olho
diretamente para a câmera, para verem que acordei. Ser VIP tem suas
vantagens, e não vou desperdiçar a chance de dormir até mais tarde.
Gryphon nunca me deixa aproveitar essas coisas e, com sorte, vou passar
menos tempo com aquele homem hoje por causa disso.
Duvido, mas sonhar não custa nada, né?
— Para de cara feia. Eles vão trazer alguma coisa pra gente.
Ele se senta sem usar as mãos, como se estivesse fazendo um
abdominal dificílimo, e sinto um aperto de saudades de Gabe e Gryphon.
Eu salivava quando faziam isso durante o TT e nossos treinos. Eles ficavam
sem camisa nessas horas… mas agora não é hora de pensar nisso, porque
senão meu vínculo vai começar a choramingar querendo os dois de volta.
— Se eles trouxerem lavagem, vou lembrar disso e me vingar de
você quando voltarmos para casa. Escreve o que estou dizendo. Me conta,
por que é que eles deixam você dormir tanto e te alimentam tão bem? É só
porque você é uma Alienadora? Tenho a impressão de que isso seria motivo
para te torturarem e deixarem passar fome.
Mexo os dedos dentro do sapato, tentando não pensar no quanto
minhas meias devem estar fedendo, e começo a sentir minha bunda de
novo.
— Eles me querem inteira, ilesa e no auge das minhas capacidades.
Sou torturada pra caramba aqui, sim, só não do mesmo jeito. Tenho certeza
de que você vai ter a chance de ver, então tipo… se prepara. Vai ser uma
bosta.
Ele me encara e fala devagar, como se eu fosse burra:
— Uma bosta… essa é a melhor palavra em que consegue pensar
para descrever tortura de verdade? É algum mecanismo para enfrentar a
realidade ou algo do tipo?
— Sou profissional em compartimentalizar meus sentimentos e,
bom, na hora você vai ver. O Davies não vai fazer a gente esperar muito.
Ele nunca conseguiu manter as mãos longe de mim.
A chegada do café da manhã me salva de ter que explicar muito
mais do que isso. As duas mulheres que vi quando cheguei ao acordar
daquela primeira vez trazem os pratos, só que, desta vez, a mais jovem está
um tanto contida. Ela não fala com nenhum de nós. Quando se inclina para
entregar o prato de Kieran, vejo arranhões e hematomas se formando em
sua bochecha.
Depois que ela afrouxa minhas correntes e entrega meu prato, aceno
com a cabeça em sua direção e pergunto:
— Andou brigando nos campos? Ou será que foi alguém que te deu
uns tapas por ficar bancando a sabichona? Você bem que devia aprender a
fechar o bico.
Ela contorce os lábios para mim, mas a outra mulher intervém:
— Não responda, Zarah. Não é para falarmos com essazinha aí. Ela
só está tentando arrancar alguma informação. Vamos deixá-los comer nossa
comida, que estamos sendo tão gentis de dividir.
Zombo dela e a feição de Zarah faz parecer que ela quer me xingar
de novo, mas a mulher mais velha estala os dedos e as duas se retiram.
Kieran, que não disse nada, mas assistiu tudo com interesse, arranca
um pedaço do pão, mergulha-o nas gemas dos ovos e murmura de boca
cheia:
— Aconteceu alguma coisa ontem à noite. Foi bem antes do
amanhecer, devia ser pouco depois da meia-noite. Muitos berros, uma
gritaria. Fiquei surpreso por você não ter acordado. Pela quantidade de
passos que ouvi, devem ter chamado reforços. Não ouvi o Davies
especificamente, mas o Franklin estava lá pra impedir que qualquer dom se
juntasse à confusão.
Assinto e começo a me dedicar ao meu prato de ovos, mergulhando
o bacon na gema. Como não me deram talheres, preciso improvisar.
Kieran grunhe e diz:
— Tem muita briga aqui? Você já se envolveu em alguma? Achei
que não tivesse experiência quando começou o TT.
Dou uma bufada. Óbvio que Kieran quer conversar ao invés de
encher o bucho em silêncio.
— Costuma rolar uns espancamentos e emboscadas nos chuveiros,
todo tipo de desgraça que você nem vai querer ouvir, mas brigas em que
membros da Resistência se machucam eu só vi uma vez, e o cara que bateu
foi colocado no cavalete… em público. Eles são especialistas em te fazer
assistir gente morrendo de formas terríveis por aqui.
Ele assente devagar enquanto raspa o resto dos ovos com o último
pedaço de pão, e diz:
— Vamos te pôr na terapia quando voltarmos. Vou garantir que
todos saibam o quanto você anda precisando.
Só por cima do meu cadáver.
Não sei por que sou tão contrária a essa ideia. Provavelmente seria
melhor conversar com um profissional sobre meus problemas, mas o
vínculo no meu peito rejeita essa possibilidade.
— E você? Vai conversar com alguém sobre ter tomado uma surra
dos cuzões da Resistência? — resmungo.
Para minha surpresa, ele faz que sim.
— Todos os agentes da Equipe Tática da ativa têm sessões
obrigatórias de terapia. Todos que servem precisam se submeter a reuniões
em que passam relatórios aos superiores e, depois, a um mínimo de sessões
mensais com o psicólogo que for indicado.
Sério mesmo?
Tanto North quanto Nox trabalham em Equipes quando há
necessidade. Os dois também fazem isso? Por que será que imaginar Nox
sentado lá, falando de seus sentimentos, de repente me deixa com a
inapropriada vontade de cair na risada? Porque, tipo, se algum dos meus
vínculos precisa de terapia, é esse.
E eu rio de verdade quando a imagem de North deitado em um divã,
contando de seu dia, surge no meu cérebro. Como é que seria isso? O maior
controlador que conheço… simplesmente desabafando com algum cara de
terno.
Será que o psicólogo dele é homem?
Ai, meu Deus. North com certeza já comeu a psicóloga que o
atende. Lógico que comeria. Ele treparia com ela só para não ter que falar
merda nenhuma.
— No que é que você tá pensando, porra? Se controla! — Kieran
esbraveja e me arranca da vertigem rumo à loucura.
Meus olhos não mudaram de cor, mas, quando o encaro, vejo que
está com os pelos do braço arrepiados e que os brancos de seus olhos estão
brilhando enquanto ele surta.
Solto um suspiro, desacelero meu coração agitado o máximo
possível e murmuro:
— Foi mal. Merda, desculpa. É que… estou começando a perder o
controle, assim longe de… aqui. Merda, vou parar.
Ele me observa com um cuidado que chega a quase ser gentil, como
se estivesse manuseando uma bomba com um gatilho delicado, e é neste
exato momento que as mulheres decidem vir buscar os pratos. Elas não
dizem nada enquanto os levam embora, mas voltam um minuto depois,
carregando um balde de água com sabão e duas pilhas de roupas limpas.
Ah, droga.
Hora do banho.
Zarah coloca o balde no meio da tenda e esbraveja:
— Os chuveiros vão ficar interditados por uns dias, mas já que
vocês são nossos convidados de honra, terão acesso a água e roupas limpas.
Tirem a roupa e andem logo. Vocês dois têm compromissos.
Mais uma peça para o nosso quebra-cabeças: a briga ocorreu nos
chuveiros. Não sabemos que lugar é este, mas sabemos que o calor daqui é
forte o bastante para que fique com uma catinga digna de um pesadelo caso
não arrumem os chuveiros nos próximos dias.
— Lave ele primeiro, eu posso esperar — digo, acenando com a
cabeça para Kieran, que está aos meus pés.
Preciso conseguir uma cadeira para ele.
Ou um Curandeiro.
— Por que não se limpam juntos? Vocês são Vínculos, não são?
Reviro os olhos e aponto para nós dois.
— Você quer mesmo que o meu vínculo dê uma boa olhada no que
ele tem a oferecer e fique com vontade de completar o Vínculo? Ai, sabe de
uma coisa? Pode ser! É bem provável que eu acabe ficando tão forte que
nem o Franklin vai ser capaz de me impedir de arrancar sua alma pelo nariz.
Vai, Vínculo. Tira a calça pra mim.
Kieran dá um sorrisinho malicioso e assume uma postura
extremamente convencida ao ficar de joelhos e levar a mão ao zíper da
calça. Fico bem impressionada por ele entrar na minha onda sem questionar.
A mulher mais velha vem para a minha frente, fica o mais perto que
chegou de encostar em mim em todo esse tempo e sacode as mãos.
— Não! Não, vira de costas. Quero cada um olhando para um lado.
Zarah, traga outro balde para a Alienadora.
Graças a Deus funcionou.
Quer dizer, não tenho medo de ver o Kieran pelado, mas não sei
como explicaria algo assim para Gryphon; já lidei o bastante com aquele
ciúme para saber que ele não encararia a situação muito bem, mesmo que se
trate de seu braço-direito e que seja por um motivo muito bom.
Estou me importando tanto com isso que chego a ficar surpresa – e
sou eu que me importo, não meu vínculo. Não quero chatear Gryphon ou
nenhum dos outros porque vi outro homem nu. Jesus, esse lance de Vínculo
é impressionante; seis meses atrás, eu teria ido a uma boate de gogoboys só
para provocá-los, e agora só de imaginar tenho um siricutico.
É bom que os caras se sintam assim também, senão vou castrar
todos eles.
Depois que minhas correntes são afrouxadas mais um pouco,
levanto e deixo Zarah cortar a camiseta para tirá-la do meu corpo, mas a
calça eu mesma tiro. Eu me recuso a deixar essa gente tirar minha calcinha,
e uso a esponja para me limpar ao redor do tecido.
Consigo ouvir Kieran se lavando atrás de mim, mas não há outros
barulhos vindo de fora que me preocupem, então me concentro em esfregar.
— Se ela já esteve aqui antes, cadê as cicatrizes? Você disse que ela
tinha as mesmas — diz Zarah, e a mulher mais velha grunhe baixinho.
Não posso deixar de zoar com a cara dela, e, além do mais, essa
burra estar tão desconfiada de mim funciona a meu favor, então deixo meus
olhos ficarem pretos e digo:
— Você faz perguntas de mais. Não me admira que tenham te dado
um sacode. Que pena que não fizeram um serviço decente.
A mais velha coloca o balde lentamente no chão, depois mexe no
cinto até tirar um comunicador dali, aperta um botão e fala:
— Os olhos dela ficaram pretos de novo. Como devemos proceder?
Devagar, abro um sorriso, mostrando meus dentes de um jeito muito
predatório, e Kieran vira o rosto, não o bastante para me ver, mas só para
entender melhor o que está acontecendo às suas costas.
Um barulho de estática chega pelo comunicador, depois ouvimos a
voz de Davies em alto e bom som:
— Mande os dois se vestirem e os traga até aqui. Se o vínculo dela
quer brincar, estou pronto.

Seis guardas fortemente armados me escoltam pelo campo,


enquanto Kieran, ainda sem conseguir apoiar nada de peso na perna, é
arrastado por dois outros. Terei que ser criativa e dar um jeito de arrumar
um Curandeiro que cure essa lesão ou que, pelo menos, faça com que a
perna volte a funcionar.
No momento, ele é praticamente um peso morto, e pesos mortos
acabam virando mortos de verdade neste buraco dos infernos. Foi um
trabalhão mantê-lo vivo para esse babaca vir morrer agora por causa de uma
droga de perna quebrada.
O campo é maior do que o último em que fiquei com Sage e Gabe,
mas, pelo que vejo, é menor do que aquele em que passei mais tempo
durante minha estadia de dois anos com Davies. Quando passamos pela ala
dos chuveiros, conto oito guardas espalhados pelo perímetro. Dois estão
usando seus dons para analisar a grama e a lona como se um letreiro
anunciando o que aconteceu ali à noite fosse aparecer do nada.
Faço uma boa ideia do que aconteceu, mas meio que ainda estou
torcendo para estar enganada.
Há uma área toda de barracas menores, onde os guardas e
trabalhadores braçais ficam alojados. É ali que eles mantêm Davies
separado dos cordeiros. É uma bela estratégia garantir que nenhum fugitivo
seja capaz de pegá-lo desprevenido durante uma fuga noturna, mas fico
surpresa por estarem mantendo eu e Kieran tão longe.
Antigamente eu dormia na tenda ao lado dele.
Era literalmente meu pior pesadelo, e levei um ano inteiro em fuga
para parar de acordar em pânico e encharcada de suor. A sorte foi que eu já
tinha superado esse trauma quando comecei a dividir a cama com meus
Vínculos. Teria sido impossível esconder algo assim do dom de Gryphon.
Com aquele jeitinho enxerido de Neuro que ele tem, com toda certeza teria
esbarrado “sem querer” nesses sentimentos.
Nossa, que saudade.
Saudade do quanto North me protege e é carinhoso, do amor e da
aceitação completos que Atlas sente por mim, e da lealdade de Gabe, que é
carinhoso, selvagem e confiante.
Sinto saudade até do desprezo de Nox e de sua cama digna de
sonhos, onde somos cuidados por uma centena de pesadelos, e a saudade
que sinto de Brutus é tanta que parece até que há um buraco no meu
coração.
— Para a infame AI, sua cara é um tanto patética — diz o rapaz
segurando meu braço.
Dou de ombros. Já que não tenho opção senão lidar com esses
cuzões, posso muito bem me divertir um pouco.
— Mas não importa que cara eu tenho, importa? De um jeito ou de
outro, você vai ser o primeiro a morrer quando eu tomar conta deste campo.
Em segundo vai ser a sabichona da Zarah. O merdinha que tiver quebrado a
perna do meu Vínculo será o próximo. Ele precisa dessa perna para
aguentar meu ritmo.
O cara dá uma bufada, mas o guarda mais velho e maior ao seu lado
dá um tapa na parte de trás da cabeça dele e responde:
— Você é burro demais para um Neuro, Cam. Ela já matava mais
gente que uma bomba atômica aos quatorze anos. Cala a boca antes que
você morra por causa dela no instante em que o Franklin tiver que sair.
Cam bufa mais um pouco, estufa o peito e passa a andar com mais
arrogância, querendo bancar o machão, mas fica calado. Ninguém tenta
falar mais nada, e todos seguram suas armas com firmeza enquanto
atravessamos o campo agitado. Há muita gente andando com pressa, mas
todas abrem caminho para nós, sempre com uma expressão de preocupação
ou de medo descarado.
Esse é o motivo pelo qual sei que de fato sou um monstro, não
importa o que meus Vínculos digam.
Quando chegamos à tenda de Davies, paramos do lado de fora, e o
guarda mais velho entra primeiro, provavelmente para anunciar nossa
chegada e receber as ordens de onde nos colocar. Dou mais uma olhada em
Kieran para conferir como ele está se saindo com toda a movimentação.
A resposta é: nadinha bem.
Sua pele, normalmente bronzeada, está com uma aparência
macilenta. Há uma fina camada de suor em sua testa e, por mais que a boca
esteja em uma linha firme e controlada, sua cara é de quem está prestes a
desmaiar.
Viro de frente para o jovem guarda linguarudo e digo num timbre
baixo:
— Se ele morrer por causa dessa perna quebrada, vou despertar cada
um dos seus pesadelos mais sombrios até que seu cérebro se desfaça dentro
do crânio. Vou usar cada truquezinho que aprendi nas torturas com o Davies
para prolongar a sua morte até você bater as botas agonizando.
Ele engole em seco.
Estou começando a ficar viciada nesse tipo de reação.
Ouço a tenda se abrir de novo e então a voz dele dizer:
— Quem teria imaginado que para trazer sua escuridão à tona eu só
precisava da presença de um dos seus Vínculos? Você me encanta, pequena
Alienadora.
Não reaja, Oli. Não lhe dê a satisfação de saber o quanto você odeia
receber a aprovação dele.
O jovem guarda volta a si e me empurra para frente, agindo como se
há pouco não estivesse se cagando de medo do que eu disse, e me guia até o
escritório de Davies. Deveríamos é dar graças por ser este aqui, e não a
tenda de tortura, mas agora não é o momento de contar isso a Kieran.
Esta é tranquilamente cinco vezes maior do que a tenda em que
estamos sendo mantidos, e há luzes que pendem do teto alto, deixando o
espaço bem-iluminado e acolhedor. É tudo uma farsa, uma estratégia
meticulosa de Davies para fazer os outros pensarem que é um homem bom
e decente, não o sádico de merda que ele é.
Há uma escrivaninha de madeira num canto do recinto, ao lado de
uma mesa operatória com amarras e estribos. Dou uma espiada em Kieran e
o vejo fazendo cara feia para ela. Quando seus olhos encontram os meus, há
uma pergunta ali que não posso responder neste momento. Ele deve estar
imaginando tudo o acontece naquela mesa, e tenho certeza de que pelo
menos metade dessas suposições está correta.
Davies volta à sua escrivaninha de ferramentas e aponta de forma
dramática para a mesa.
— Ajudem nossa convidada a se acomodar e deixem o Vínculo
destroçado dela na área de restrição, de onde ele vai poder observar todo o
meu trabalho árduo.
Vou sozinha, sem dar aos guardas a satisfação de me arrastar, e,
embora seja difícil com as correntes, subo na mesa. São extra cuidadosos ao
me prenderem ali, deixando as novas correias firmes antes de removerem as
antigas. Sinto vontade de gritar porque é óbvio que não vou fazer nada.
Não há dúvidas de que Davies é mais forte do que eu. Porra, eu não
sou idiota.
— Não, você não é. Todos vão lhe subestimar, pequena Alienadora.
Vão olhar para você e sempre ver só uma garotinha bonita. O único motivo
pelo qual eles parecem tão preocupados é porque eu senti sua falta, sabia?
Quando fugiu de mim… as coisas que fiz com os homens e mulheres que
permitiram sua fuga… bom, meio que viraram uma espécie de lenda por
aqui. Eles não entendem seu poder, do que você é capaz… Você realmente
vai ser minha arma assim que reunirmos todos seus Vínculos. São quantos
mesmo?
Nada.
Não penso em nada e rezo para Kieran ser esperto a ponto de não
pensar em nada também. A gente pode até estar ferrado aqui, mas sou capaz
de (não, Oli, não o deixe entrar, porra) não entregar nada.
Não há nada.
Davies estala a língua com reprovação e ergue o tampo da
escrivaninha, revelando o que guarda ali. Não consigo ver do ângulo em
que estou deitada, mas nem preciso. Já sei o que há ali, e se houver algo
novo… bom, não adianta ficar me preocupando antes da hora.
— Adquiri algumas ferramentas novas. Mal posso esperar para lhe
mostrar, mas não precisamos ter pressa. Seu Vínculo pode até estar
pensando que vai tirar você daqui, mas ambos sabemos que não vão
conseguir. Já tenho meus planos. O Franklin vai ficar aqui com vocês de
agora em diante. Já contou pro seu Transportador que o Franklin também é
mais forte do que você? Por enquanto. Tenho certeza de que você vai ficar
mais forte que ele depois que encontrarmos todos os seus Vínculos. Tenho
tantos planos… mas chega de conversa. Que tal começarmos a parte
divertida?
Ele estala os dedos e os guardas finalmente se retiram, deixando
Kieran acorrentado à área de restrição do outro lado da tenda, de onde pode
assistir tudo o que Davies está prestes a fazer comigo.
Porra, espero que ele tenha estômago forte, porque a coisa vai ficar
bruta.
A obsessão de Davies por seu conjunto de facas é perturbadora. Preciso me
lembrar que ele com certeza está sentindo prazer em se demorar com os
carinhos que faz nas lâminas sobre a mesa. Os sons causados por seus
dedos deslizando sobre os cabos são como os sinos mais maléficos e
macabros do mundo, prenunciando toda a dor que ele está prestes a me
causar.
— Precisamos falar de uma coisa antes de começar, algo que você
deu a uma das mulheres no chuveiro ontem. As câmeras mostram que vocês
interagiram, mas não o que entregou a ela. Diga o que é, e vou me abster de
matar a garota.
Não penso em nada.
Escuridão.
Um nada pintado de nanquim em um campo vazio e desolado de
esquecimento.
Nada deixa Davies mais furioso do que minha habilidade de
esvaziar todo meu cérebro. Ele não fazia ideia de que um dos meus pais,
Vincenzo, era um Neuro. Ele ficava em casa e era com quem eu passava
mais tempo, e, mesmo quando eu era uma pequena, fazia essa
brincadeirinha comigo de ver de quantas formas diferentes conseguíamos
esvaziar nossas mentes e deixá-las completamente vazias. Mesmo bem
novinha eu já era questionada e testada até conseguir me tornar uma calma
página em branco.
Com frequência me pergunto se ele sabia que um dia eu enfrentaria
este homem, se os sonhos que minha mãe tinha com berços repletos de
flores de oleandro também mostraram um homem insano obcecado por
invadir minha mente e destruir a minha vida, e se foi por isso que Vincenzo
foi escolhido como o principal encarregado de me criar.
Faz mais sentido do que eu gostaria de admitir.
Davies escolhe uma faca, a comprida para trinchar, que é mais
afiada que o bisturi de um cirurgião, e avança em minha direção.
— Esses joguinhos já estão ficando cansativos demais, pequena
Alienadora. Precisamos mesmo ser assim sempre? A mulher é tão forte que
tínhamos planos de ficar com ela, mas não é só isso. O irmão dela é um
comandante da Equipe Tática na ativa, um pé no meu saco.
O irmão dela não é nada.
O irmão dela não é absolutamente nada.
Nada.
Sou uma página vazia com zero pensamentos a respeito dele.
— Você o conheceu durante o tempo que passou longe? Seria ele o
motivo pelo qual deu algo à garota? Olha, é que ela não vai escapar. Se está
torcendo para que o Shore venha atrás de você, garanto que ele pode até ser
forte e ter alguns truques na manga, mas não é páreo para mim.
Preciso mudar de assunto, e rápido.
— Não dei nada. Ela me deu um emprego e eu fui ver se ela estava
bem. Cheguei aqui de avental e com meus tênis que uso para trabalhar.
Óbvio que não estou mentindo.
Ele sorri para mim e gesticula com a faca.
— Então por que é que uma simples mulher dotada do dom de
Neuro conseguiu fazer três homens feitos desaparecerem do nada? Dois
deles eram metamorfos com pelo menos o dobro do tamanho dela, e quando
a abordaram no chuveiro para se divertirem um pouquinho… sumiram.
Essa situação faz com que seja mais fácil não pensar em nada. Eu já
tinha deduzido o que acontecera nas baias do chuveiro, e estou feliz da vida
por ter conseguido falar com Kyrie a tempo.
Dou de ombros e viro a cabeça para olhar os painéis de tecido do
teto.
— Estou um pouco confusa com a razão desta conversa. Todo
aquele caos está fora do meu leque de habilidades e você sabe disso.
Ele sorri, varre o recinto com os olhos, e então se curva sobre mim.
Depois, num surto, grunhe na minha cara:
— E nós dois sabemos que uma cordeira Neuro não conseguiria
devorar homens adultos vivos sem deixar nada além de um pouquinho de
matéria genética para trás! Então, o que você fez, Alienadora? Sabe muito
bem que é melhor não me irritar.
E também sabia muito bem que era melhor não acabar aqui de novo,
e mesmo assim vim sem hesitação procurar aquela mulher, então de jeito
nenhum vou entregá-la só para me poupar de um pouco de dor.
— Não sei de nada. Ainda sou a mesma garotinha idiota que você
manteve aqui da última vez. Sério, nem deveria se incomodar tanto com
essa história. É perda de tempo.
O primeiro toque da faca em minha pele não chega a rompê-la, mas
serve como um alerta de que Davies não está gostando do meu tom de voz.
Ele esbraveja:
— Vi você entregar algo a ela no chuveiro. A câmera não pegou o
que era, mas você vai me contar. Não importa o que fez enquanto ficou
longe daqui, não importa no que se tornou, você nunca vai ser mais forte do
que eu. Se não me contar o que entregou, vou trazer aquela mulher aqui e
fazer com ela tudo que já fiz com você, pequena Alienadora. Você vai
retribuir a bondade dela com dor e uma morte lenta.
Nada.
Tenho que me agarrar ao nada porque é muito mais difícil continuar
apática quando há outras pessoas que quero proteger neste buraco infernal
do caramba, mas se ele trouxer Kyrie, vou precisar de um novo plano.
Tem sempre um jeito de contornar a situação.
Ele estala a língua como se estivesse decepcionado comigo e afasta
a faca da minha pele. Prolongar a expectativa é sua forma de tortura
preferida, e eu o desprezo por isso. Preferia que ele só me esfaqueasse logo.
Davies volta até suas ferramentas, coloca a faca trinchante na mesa
e, enquanto volta a mexer nos cabos, diz:
— Pequena e fria Alienadora, eu já devia ter imaginado que você
não se importaria com uma inútil qualquer como aquela mulher. Mas, e
quanto ao seu Vínculo, hein? Posso curá-lo. Deixe que ele saia para brincar,
responda minhas perguntas, e eu cuido dele. Seu Vínculo está começando a
ficar meio esverdeado ali. Linda e Zarah disseram que a ferida em cima da
fratura também parece estar infeccionada. Infecções se espalham bem
rápido na corrente sanguínea, sabia?
Posso voltar a ignorá-lo, pois não há chances de Davies deixar
Kieran morrer agora. Ele passou tempo demais tentando encontrar meus
Vínculos. Jamais permitiria que um morresse sem fazer alguns
experimentos antes. Este é o motivo pelo qual menti, para começo de
conversa.
Davies dá um suspiro dramático, como se eu fosse uma criança
malcriada com quem ele está sendo obrigado a lidar. Então, ajeita a postura
de novo, finalmente escolhe uma nova faca na escrivaninha de madeira e
passa um dedo carinhoso na lateral do objeto.
Meu coração passa a bater um pouco mais rápido. O pânico está se
espalhando aos poucos pela minha espinha, e tenho que começar a me
concentrar em minha respiração para me impedir de hiperventilar.
Seja uma página vazia, Oli. Seja o nada.
Ele volta a se curvar sobre mim e murmura bem na minha cara:
— Já sei que você não vai ceder com facilidade, Alienadora. Só
estou me certificando de que seu Vínculo fique ciente disso também. Que
tal vermos quanto tempo levo para fazer com que ele ceda?
No instante em que a faca toca minha pele, começo a dissociar. Meu
vínculo se arrasta até a frente do meu cérebro, sempre de olho no que está
acontecendo e esperando pelo momento certo para intervir. É fácil ignorar
cortes simples, mas quando Davies dá início aos mais criativos, minha
perna começa a tremer involuntariamente e uma poça de suor se forma na
minha lombar. Quase consigo continuar ignorando – quase – até que ele
corta minha calça e começa a trilhar a pele sensível das minhas coxas.
Meu controle falha por um segundo e Gryphon imediatamente se
espalha pelo meu corpo; seu vínculo me alcança, rompe a última das
minhas fortalezas de uma só vez, e sua voz retumba na minha cabeça:
O QUE ESTÁ ACONTECENDO?!

Vejo os olhos de Davies se arregalarem e remonto minhas barreiras


de volta com força enquanto me xingo de mil coisas diferentes por ter
escorregado e permitido que meu Vinculado entrasse. Em uma fração de
segundo, destruí tudo que passei cinco anos protegendo com a desgraça da
minha vida.
Dedos frios como gelo, respingados com gotinhas do meu sangue,
serpenteiam pela minha bochecha, deixando um rastro vermelho quando
Davies se inclina, encosta os lábios na curva da minha orelha e sussurra:
— E quem era esse, minha preciosa Alienadora de Almas?

Dois anos.
Fui prisioneira em um desses campos por dois anos inteiros, e nem
uma vez sequer pensei nos nomes deles. Eu sabia quais eram, e, minha
nossa, como sabia. Eu tinha memorizado aqueles nomes no momento em
que acordei no quarto de hospital, com a enfermeira June parada ao lado da
cama com olhos marejados e uma pasta enfiada debaixo do braço. Lembro
de pensar em como era assustador que North fosse quase dez anos mais
velho do que eu. Os cinco anos que me separavam de Gryphon e Nox
também pareciam muito. Queria tanto conhecer Gabe e Atlas, pois eram
apenas alguns meses mais velhos, e queria que fossemos amigos até termos
idade suficiente para consumar o Vínculo.
Passei algumas horas naquele hospital planejando, esperando e
torcendo para eles se apressarem e me levarem para bem longe do horror do
que tinha acontecido com minha família.
Depois, nunca mais pensei neles.
Nunca me permiti.
E com quatro palavras, proferidas em desespero por meio da
conexão do nosso Vínculo, Gryphon se apresentou à maior ameaça que
nosso Grupo de Vínculos jamais poderia encontrar.
Por instinto, não penso em nada. Deixo o pânico me guiar mesmo
enquanto me obrigo a não pensar nos detalhes, nos motivos exatos pelos
quais estou tão apavorada. Confiro várias vezes se a fortaleza que construí
entre eu e meu Vinculado está intacta, depois confiro meu vínculo porque
talvez eu precise deixá-lo assumir e distrair Davies do que ele ouviu.
Meu vínculo está pronto e ansioso para ser libertado.
Vou aguentar a dor pelo máximo de tempo possível, depois vou
deixá-lo assumir e acabar com esta sessão de tortura. Se ainda assim Davies
me obrigar a matar inocentes… bom, já sou um monstro mesmo, e se isso
mantiver meus Vínculos e as pessoas que amamos a salvo, eu aceito,
mesmo odiando pra caralho.
Eu me odeio, mas esse é meu limite.
— Muito bem. Sem problemas, continue sendo essa teimosinha de
merda, então. Tenho ferramentas mais do que suficientes para arrancar a
verdade de você à base de sangue. Se vou precisar te deixar sangrando para
descobrir quem é ele, acho que vamos precisar de uma lâmina maior e com
um fio mais cego. O que acha de ser picotada com uma faquinha de
manteiga, pequena Alienadora? Vai me dar trabalho, mas, ah, que
satisfação.
Respira fundo.
Respira fundo, segura… inspira pelo nariz, conta até dois, solta pela
boca.
Eu consigo sobreviver.
Chego a me convencer disso, pelo menos até ele começar a golpear
a minha coxa, e então um grito entrecortado e rouco sai rasgando minha
garganta. Gryphon está socando a barreira, fazendo minha cabeça latejar, e
preciso vomitar.
Também é nessa hora que a cena se torna insuportável para Kieran e
ele grita com Davies, o que me assusta, porque, em meio a tanta dor, eu
tinha praticamente me esquecido de que ele estava aqui.
— Tira as mãos dela e eu conto onde ele está.
Embora a faca enterrada na minha coxa tenha parado de se mover,
Davies não a tira por completo. O músculo se contrai em volta da lâmina
como se meu corpo estivesse tentando expulsá-la, mas ele segura o cabo
com firmeza.
Enfim, pisco e abro os olhos, no entanto, o foco de Davies está em
Kieran. Quando olho para onde ele foi acorrentado, noto que o coitado
continua parecendo alguém com o pé cova, mas é com um brilho de
determinação nos olhos que diz:
— É o outro Vínculo que você vai querer, o que está na cabeça dela.
É mais forte que eu. Se eles consumarem o Vínculo, ela vai receber o
reforço de poder que você deseja. Ele é um Neuro, como você… e bem
parecido contigo, na verdade. Desde que se conheceram, vive na cabeça
dela. Se tem alguém capaz de te ajudar a controlar o vínculo dela, é ele.
Porra, para de cortar ela que eu digo onde ele está.
Quero gritar para ele calar a merda da boca, mas não consigo falar
com o nó que sinto na garganta causado por toda a dor e pelo instante em
que acho que vejo o triunfo nos olhos de Davies. Ele sabe que Kieran está
prestes a lhe dar outra peça do quebra-cabeças, outro brinquedo para ajudá-
lo a me transformar na arma que tanto deseja. Depois de anos sem
conseguir nada de mim, não tem a menor chance de ele sequer questionar a
oferta de Kieran.
Ele vai simplesmente aceitar, encontrar meu Vínculo e arrastá-lo até
aqui para passar tudo isso junto comigo.
Davies decide dar a cartada final e força a faca mais fundo, fatiando
o músculo. É aí que meu vínculo enfim entra em ação. Ele assume o
controle, poupa minha mente da agonia, e então não sinto mais nada.
Absorve tudo por mim, agindo como a melhor esponja do universo.
Contudo, meus olhos não mudam de cor. Meu vínculo não é bobo de
fazer isso aqui.
Kieran não faz ideia de que minha dor acabou e solta:
— Massachusetts. Ele está no Massachusetts. Me dá uma caneta.
Vou escrever o endereço, mas pare de machucá-la.
Um jorro horrível de sangue sai da minha perna quando Davies
finalmente tira a faca. Um vinco se forma entre as sobrancelhas de Kieran
ao ver isso, mas Davies pega um tecido e amarra um de seus torniquetes
para estancar o sangramento. Como um especialista em controlar fluxos
sanguíneos, costuma usar este conhecimento para me manter consciente o
máximo possível durante as sessões.
Ele limpa as mãos em uma toalha, vai até o outro lado da tenda,
onde Kieran está preso, e o encara de cima, como se fosse capaz de decifrar
se está ouvindo uma mentira.
Só que Davies não tem essa habilidade.
Kieran cumpre muito bem seu papel e não mostra nenhum sinal de
blefe ao olhar nos olhos de Davies, ditar um endereço e até passar as
coordenadas de um lugar que nunca ouvi falar.
Devagar, Davies abre um sorrisinho, certo de que saiu vitorioso, e
volta à escrivaninha.
— Se estiver mentindo a respeito desse Vínculo e de onde encontrá-
lo, vou voltar e torturar de verdade a Alienadora. Isso foi só um
aquecimento, mas se me tirar daqui à toa e eu não voltar com aquele Neuro,
amputo a perna dela. Não vai ter nenhuma anestesia, e ela não precisa das
duas pernas para ser minha arma. Da última vez esse era meu plano, a
próxima coisa que eu faria para ela começar a falar. Estou empolgado para
tentar.
Quero desmaiar só de ouvir isso, mas então ele volta à mesa e enfia
uma agulha no meu pescoço, injetando alguma coisa com efeito imediato, e
meu cérebro fica desorientado.
— Só uma garantia a mais para te manter aqui, pequena Alienadora.
Já volto com seu outro Vínculo. Seja boazinha e me espere.
Ele sai, e eu fico perdida pra caralho. Não consigo distinguir cima e
baixo, sinto que a mesa está rodopiando no espaço sideral e minha pele
começa a pinicar como se milhares de formigas em chamas tivessem sido
injetadas nas minhas veias.
Perco completamente a calma.
Ouço um estalo e um grito abafado, como se alguém tivesse tentado
morder um pano para evitar fazer barulho e visto que não deu certo. Depois,
ruídos de vômito. Meu estômago não gosta nadinha do som e protesta na
mesma hora, e eu viro a cabeça para vomitar. As amarras estão justas
demais e não consigo me mexer muito, mas tenho certeza de que há gorfo
escorrendo pelo meu queixo, só não consigo sentir nada além das sensações
que a droga está me causando.
Acho que estou chorando.
E eu nem quero chorar – os pequenos fragmentos sãos do meu
cérebro não estão sentindo esse tipo de emoção –, mas o fôlego está se
desvencilhando do meu peito e começo a sentir gosto de sal.
Há um grunhido e o barulho de um saco pesado sendo arrastado pela
terra. Então, de algum jeito, o rosto de Kieran aparece na frente do meu.
Não faço ideia de como diabos ele chegou aqui (deve ser uma alucinação) e
acho que choro mais ainda, de soluçar.
Ele está tentando falar comigo, mas as palavras estão distorcidas,
porque embora eu veja seus lábios se movendo, o que sai não faz sentido.
— Mata… só ele… peça ajuda… Oli, por favor… mata… sei que
consegue…
Franzo o cenho para ele e, por fim, consigo puxar o ar arfando. No
entanto, qualquer que seja a merda que Davies injetou em mim, volta a
revirar meu estômago e a bile sobe pela minha garganta.
Há um instante de escuridão, de um nada em que quero me aninhar
e ficar ali para sempre, mas então o rosto de Kieran aparece mais uma vez,
com vômito na camisa e na calça. Acho que é meu, mas ele não está bravo
ou enojado.
Está desesperado.
— Mata ele, Oli… mata o Franklin…
Não entendo o que ele está dizendo.
Ainda assim, meu vínculo entende.
Então, só o que existe é morte e dor, sangue e destruição. A droga
pode ter acabado comigo, mas meu vínculo sempre foi muito mais forte do
que qualquer pessoa é capaz de compreender, e ninguém me ameaça sem
ter que se entender com a deusa sombria que vive dentro de mim.
Três noites.
Faz apenas três noites que ela está ausente desta vez, e ainda assim o
caos que deixou para trás é inacreditável. O mau humor e o comportamento
obsessivo de Gryphon fazem sentido, já que o idiota foi burro o suficiente
para se Vincular totalmente a ela. Já o resto deles?
Patéticos.
Todos sabíamos que ela fugiria assim que tivesse oportunidade.
Gabe e Bassinger, incapazes de formular um único pensamento, não
raciocinaram que seria melhor deixar o rastreador de GPS dentro dela.
Além disso, temos também a seguinte questão: acho que o vínculo
de North está prestes a assumir o controle e dizimar o país inteiro para
recuperá-la. Depois de décadas brincando de conselheiro educado,
cultivando o homem pacato e cheio de morais que é, ele está prestes a
estragar tudo por ela.
Vínculos desgraçados.
É claro que não há um único sinal dela ou das dezenas de outros
Favorecidos que foram levados. Assim que voltamos de nossa missão
interrompida, encontramos Gabe transformado no maior lobo que já o vi
assumir, rosnando e brigando com Atlas, como se quisesse rasgar a garganta
dele.
Depois que os separamos, levou uma hora inteira para que Gabe se
acalmasse o suficiente para mudar de forma, e então nos contou que Atlas
sabia bastante a respeito do tempo que Fallows passou com a Resistência.
E do nome que deram a ela.
Nunca gostei dele e deixei minhas opiniões sobre a situação bastante
claras, porque já perdemos um Draven para uma agente disfarçada este ano.
Mantê-lo por perto só por causa de um Vínculo que, para começo de
conversa, nunca quis nenhum de nós, é estupidez.
North não me dá ouvidos.
Ele não me escuta mais, o que é só mais um ponto contra ela.
Mas, mesmo depois de Bassinger ser preso, passamos três dias
inteiros de mãos atadas, tentando, sem sorte, descobrir onde estão sendo
mantidos. Todos os campos e residências que monitoramos seguem as
atividades de sempre e não há nenhuma informação nova. Zero. Eles sabem
que estamos ouvindo, então assim que apanharam Fallows, as linhas caíram
em um silêncio sepulcral.
Voltamos a analisar todas as informações antigas em busca de
alguma pista ou qualquer indício que possamos ter deixado passar a respeito
da localização. Gryphon é melhor em estratégia do que com papelada e
passa a maior parte do tempo mantendo suas Equipes em alerta para o
momento em que encontrarmos alguma coisa, por isso resta a mim e North
a tarefa de passar um pente fino em tudo.
Só duas coisas chamam nossa atenção e nenhuma oferece algo
substancial o bastante para possamos avançar.
A primeira é na região mais elevada e fria do Alasca, onde uma
tentativa de resgate seria um completo pesadelo no que diz respeito à
logística.
Ou, talvez, no meio do deserto do Saara, o que também requereria
muita comunicação com as autoridades e comunidade Favorecida de lá para
ir buscá-los. Portanto, de qualquer modo, precisamos ter certeza antes de
continuarmos.
Não é o que acontece.
Durante o jantar do terceiro dia sem ela, enquanto todos discutimos
acaloradamente o próximo passo, já que Gabe está furioso por não estarmos
perambulando por um deserto ou pela tundra congelada até darmos de cara
com ela, Gryph se joga para longe da mesa gritando, e sua cadeira bate com
força no chão.
O sangue some de seu rosto quando ele sente. O espectro da dor de
Fallows, como se fosse sua própria. Meu vínculo começa a se contorcer no
peito, daquele jeito terrível que tem feito perto dela, mas seja lá o que
estiver acontecendo no campo da Resistência, Gryph sente com mais
intensidade graças à conexão entre eles.
Ele solta um urro e cai de joelhos quando as pernas falham. Não
ouço um som desses sair dele desde a última vez em que foi baleado em
serviço. North quase perde o controle do próprio vínculo e dispara até ele,
rosnando. Gabe se empurra para longe da mesa, mas suas mãos estão
tremendo e seu rosto está pálido, doentio.
Alguém está ferindo o Vínculo deles.
Sei disso porque também consigo sentir o eco, essa dor que não é
minha, e as palmas das minhas mãos imediatamente começam a suar. Meu
vínculo quer ajudar, salvá-la, sentir a dor em seu lugar e despedaçar quem
está ousando tocá-la.
Ela não é minha. Eu não devia me sentir assim por causa dela.
Não devia me sentir assim por causa de ninguém. Não sou tão
ingênuo para cair nesses truquezinhos, e de jeito nenhum vou me colocar
numa situação como aquela de novo.
Nunca mais.
— O que foi? O que está acontecendo com ela? — North esbraveja
enquanto seu celular começa a tocar sobre a mesa.
Ignoramos, mas assim que para de tocar, o de Gabe começa, e ele
grunhe olhando para o aparelho.
— É o Bassinger. Ele deve estar sentindo também.
Gryphon inspira pela boca, arfando.
— Ela está sendo torturada. Entrei na cabeça dela, mas ela me
empurrou pra fora de novo. Tem alguém retalhando ela.
MATE TODOS. ESSES BÁRBAROS IMUNDOS, TOCANDO NO QUE É NOSSO.
Balanço a cabeça como se o movimento fosse afastar o som do meu
vínculo. Minhas criaturas não gostam de dividir, nem mesmo com os
outros, e não importa o quanto eu diga a elas que não a terei, elas tampouco
querem que mais alguém encoste nela.
Gabe se levanta de supetão e vocifera:
— Onde é que ela está, caralho? Vamos para o deserto. Mande uma
equipe para a neve. Não dá mais pra gente continuar sentado à toa…
Ele é interrompido pelo crac barulhento da chegada de um
Transportador, e então Kieran Black se prostra gemendo diante de Gryph,
parecendo que foi espancado pela Resistência inteira. A julgar pelas
expressões nos rostos de North e de Gryphon, é melhor que tenha sido.
Porque Fallows não está com ele.
— Me arruma um Curandeiro. Agora — diz ele, rangendo os dentes.
Gryphon se ajoelha, segura-o pelo colete e o puxa em direção ao seu rosto.
North já está no celular mandando Felix Davenport descer aqui. Seu
segundo aparelho está na mão também, e ele começa a mandar as Equipes
Táticas se prepararem para sair.
— Black, cadê a minha Vinculada, cacete?
Kieran fica verde e contrai a mandíbula com a dor causada pela
forma com que Gryphon o segura, mas diz, engasgado:
— Me arruma um Curandeiro que eu volto para buscá-la.
Entro em contato com Azrael, a sombra que fica com ela e que ela
está se dedicando a domesticar, para descobrir o que diabos está
acontecendo lá. Ainda não há sinal de risco ou de problemas. Mando Azrael
ficar de alerta e ele choraminga um pouco por estar longe de Fallows num
momento de perigo – ele tem um fraco gigantesco pela garota.
— Você a abandonou?!
O grunhido de Gryphon deixa claro que é bem possível que ele mate
Black por isso, mas qualquer um que tenha olhos consegue ver o que está
acontecendo. Contudo, Black está bem o suficiente para esclarecer a
situação.
Ele retruca com uma voz rouca e cheia de dor:
— Estou com duas fraturas na perna e uma puta sepse em
andamento. Não tive força suficiente para trazer ela comigo. No segundo
que o Curandeiro terminar, posso te levar lá, mas me arranja um agora,
porque ela está sozinha.
Felix entra correndo pela porta, acompanhado pelos dois Benson, e
vai direto até Black, sem esperar pela ordem de curá-lo. O estado de Kieran
o faz xingar baixinho, mas seu dom é forte o suficiente para resolver. Ele é
o melhor da turma e um prodígio entre seus colegas, mas é tão humilde que
não daria para perceber nada disto só de olhá-lo. É um dos pouquíssimos
Curandeiros que estou disposto a permitir que me tratem.
Gryphon se afasta para deixar Kieran receber o tratamento, volta até
a mesa e pega as armas que tinha soltado do corpo para comer. Gabe vai até
os Benson e os atualiza em voz baixa do que aconteceu, e North está
praticamente vibrando com o celular na orelha, berrando ordens para
mobilizar as Equipes Alpha e Bravo. Sinto seu alívio por ver que ambas já
estavam de sobreaviso, já que andávamos esperando por este momento.
— Pode falar enquanto ele cura você. Diga que desgraça é essa que
está acontecendo com ela — grunhe Gryphon, conferindo pela última vez
que todas suas armas estão firmes no lugar. Black cerra os dentes enquanto
o osso de sua perna é refeito.
— É o Silas Davies. É isso o que está acontecendo com ela, e
também foi o Silas Davies que aconteceu da última vez. Ele é obcecado
para um caralho com ela. Ele estava… dando uma de açougueiro quando te
ouviu na mente dela. Tive que pensar rápido para evitar que a Fallows fosse
assassinada só por tentar manter todos vocês longe dele.
O filho da puta do Silas Davies.
Nada mais do que o lendário supervilão da Resistência, o bicho-
papão cujas façanhas são contadas aos sussurros nos recônditos mais
obscuros do mundo Favorecido.
North olha para mim e eu sei que é game over para ele. Essa era a
última peça do quebra-cabeças para entender o mistério que é seu Vínculo.
Neste momento, ele se dá conta de tudo o que precisava saber sobre ela.
Caiu feio, como um patinho, e agora pertence a ela, quer admita a si mesmo
ou não.
O Curandeiro afasta a mão do peito de Black e enrola o tecido da
calça para olhar direito o tornozelo mutilado. Está com uma aparência de
que não resta qualquer estrutura óssea ali, como se alguém o tivesse
atingido com uma marreta até sobrar apenas pó. Felix faz uma careta ao
apoiar uma mão de cada lado para dar início à reconstrução dali também.
A imagem me faz lembrar do trauma e sou obrigado a engolir o
vômito. Preciso me distrair, lembrar de que isso é muito diferente do que o
que aconteceu comigo. Tenho que me esforçar para garantir que minha voz
soe entediada:
— O que houve com você?
North e Gryph sabem exatamente o que estou fazendo, mas todos os
outros disparam olhares furiosos na minha direção, como se eu me
importasse com a opinião deles.
Parecendo um pouco menos doente, mas com o rosto ainda
encharcado de suor, Black me dá uma olhada breve e retruca:
— O fêmur foi quebrado logo que chegamos. A sepse é porque não
trataram a perna. Fraturei meu próprio tornozelo faz mais ou menos uma
hora para me soltar das correntes e fazer a Oli matar o John Franklin, o
Escudo mais forte da Resistência, para que eu conseguisse voltar aqui. A
propósito, ela matou, e o vínculo finalmente assumiu o controle. Eu a tirei
da mesa de tortura antes de vir. Conferi os sangramentos dela e me
certifiquei de que todos os torniquetes estivessem firmes. Ela vai ficar bem,
contanto que o Davies não volte antes de a tirarmos de lá. Sem querer ser
cuzão, Davenport, mas você precisa agilizar.
O Curandeiro lhe dá um olhar chateado e diz:
— Você estava com sepse, seus rins estavam parando de funcionar e
faltavam só umas doze horas para você sofrer falência múltipla de órgãos.
Desculpa se estou levando um minutinho para impedir sua morte iminente.
Com um barulhinho de engasgo no fundo da garganta, Sage ergue a
mão para cobrir a boca e abafar quaisquer outros sons horrorizados que
possa fazer.
North xinga e fala:
— Só nos diga onde a Oleander está. Você pode ficar aqui
recebendo tratamento, não precisa voltar lá. A gente tem Transportadores o
suficiente para ir atrás dela e assumir o controle da situação em segurança.
Black grunhe, solta um gemido baixo quando o som de seus ossos
quebrados se recompondo ecoa pelo cômodo, e diz, ofegante:
— Não dá… não sei exatamente onde fica… cheguei lá seguindo os
insurgentes. Posso mapear, mas não… não sei as coordenadas ou a
localização.
Xingo baixinho – óbvio que não seria tão fácil assim. Retruco:
— E quanto tempo falta até o Davies voltar ao campo? Estamos
ficando sem tempo enquanto você é remendado.
Black grunhe de novo quando o barulho de ossos sendo triturados
ressoa mais uma vez e rosna para mim:
— Eu mandei ele até Hail Mary para ganhar tempo. Não sou a porra
de um idiota.
Cacete.
Acho que vai servir.
Observo quando metade das pessoas no cômodo respira fundo,
porque Black tem razão – ele definitivamente não é nenhum idiota se
mandou Davies para lá. Hail Mary é nosso abrigo secreto no Massachusetts,
um labirinto repleto de armadilhas, arames farpados e câmeras de
segurança. Conheço o local muito bem, já que meu tio William me enviou
para lá com North durante minha adolescência, quando tivemos um
problema de segurança. Mesmo com todas as minhas criaturas de pesadelo,
eu não conseguia achar a saída.
Os olhos de North encontram os meus do outro lado da sala de
jantar quando ele tira o paletó, o que releva quantas armas diferentes podem
ser escondidas sob um terno Tom Ford, e diz:
— Se vai com a gente, precisa vestir o uniforme tático completo.
Você também, Gabe. Partimos no segundo em que Felix terminar e Kieran
puder se transportar.

Assim que nossos pés tocam o solo do acampamento, fica claro que
as coisas mudaram drasticamente desde que Black escapou. Puxo a
pescoceira para cobrir meu rosto, deixando minhas criaturas saírem, e vejo
através de Azrael, mas Kyrie continua nas celas. A diferença é que agora os
guardas da tenda estão todos mortos em uma pilha no chão, e as outras
mulheres estão tremendo e soluçando com o trauma do que acontece ao
redor.
Diferente da Kyrie.
Uma reação típica dos Shore a este tipo de coisa. Ela está agachada,
esperando só uma abertura para dar o fora de lá e matar qualquer membro
da Resistência que encontrar pela frente.
Inclino-me na direção de Gryph e murmuro:
— Diga a Kyrie que estamos aqui e indo até ela. As prisioneiras
parecem meio abaladas.
Ele se vira para me olhar e bufa, gesticulando com a mão,
impaciente.
— Acabamos de entrar em um massacre e nosso Vínculo está por aí,
ferido em algum canto daqui… Você não vai nem tentar encontrar ela
primeiro?
Olho para os cadáveres, para as dezenas de corpos caídos onde quer
que tenham morrido, e então volto a encará-lo.
— Não sou bobo. Isso é tudo obra desse nosso Vinculozinho
venenoso. Ela está muito bem, obrigado. Tem outros Favorecidos aqui que
não conseguem matar pessoas só com força de vontade.
North passa apressado por nós dois enquanto suas próprias criaturas
vão saindo com força total e esbraveja:
— Encontrem nosso Vínculo primeiro, depois buscamos os
prisioneiros e quaisquer sobreviventes.
Gabe vai atrás deles e, mesmo que seja o único de nós que já viu os
poderes assassinos dela de perto, parece um tanto abalado, o que não o
impede de seguir, implacável, em busca de seu Vínculo. Gryph grita ordens
para sua equipe antes de acompanhar os dois, completando a tríade de tolos
apaixonadinhos ao resgate de uma garota que não precisa ser salva.
Se ela será levada daqui antes que Silas Davies retorne? Com
certeza.
Se será salva dos bandidinhos da Resistência com quem ele a deixou
antes de sair? Não. Qualquer um que tenha olhos e dois neurônios
funcionais dentro do crânio consegue ver que ela tem tudo sob controle. A
única parte de mim doida para se reencontrar com ela, no momento está de
guarda na tenda das prisioneiras, então é para lá que eu vou, para confirmar
que não aconteceu nada com Azrael ou Kyrie antes de sair correndo atrás de
qualquer Vínculo que seja.
Rahab, Procel e Mephis me seguem de perto enquanto percorremos
as tendas, assumindo suas formas de Doberman ferozes conforme
avançamos. As outras criaturas estão espalhadas em diversos formatos e
tamanhos, aguardando o retorno de Davies para devorarem aquele
desgraçado. Contudo, não há motivo para nos preocuparmos de verdade
com os membros da Resistência que ficaram aqui.
Já estão todos mortos.
Ela é boa, isso eu reconheço, ainda mais por conseguir matar tanta
gente sem se esgotar. É mais poderosa do que qualquer um de nós
imaginava. Com exceção dos dados de espionagem que North e eu
estivemos vasculhando, o pouco que li foi totalmente focado no pouco que
sabemos a respeito de Alienadores de Almas, e nada do que estudei chega
perto deste nível de destruição.
Os olhos de vácuo fazem muito mais sentido agora.
MINHA.
Xingo e puxo a pescoceira mais para cima, de modo a ocultar meu
rosto para que ninguém da Equipe Alpha se apavore vendo a fúria em meu
rosto quando é apenas meu vínculo e as criaturas que fazem parte da
equação. Vínculos são perigosos, não vou me deixar desprotegido dessa
forma. Ainda que cada uma das minhas criaturas fique tão obcecada por ela
quanto Azrael está, nem assim a terei.
Nem mesmo para saborear aquele poder.
Kyrie se levanta num pulo assim que vê minha silhueta, e eu a
percebo esmorecer um pouco quando percebe que sou eu e não o irmão
dela. Não me ofendo. Eles cresceram unidos, e a perda dos pais só fez com
que se apoiassem ainda mais um no outro.
Exausta, ela volta a se encostar nas grades e resmunga:
— Graças a Deus. Por favor, diz que vocês já tiraram a Oli daqui.
Por que é que todo mundo só consegue pensar nisso, sendo que ela é
forte o suficiente para cuidar de si mesma neste lugar?
— Os outros foram atrás dela. Pensei que você estaria mais
preocupada em sair desta celinha em que se meteu.
Ela bufa e levanta a mão para afastar os cabelos cor de mel do
ombro, revelando onde Azrael está escondido em sua menor forma.
— A Oli o deixou comigo, e olha que tenho certeza de que teria sido
útil pra ela. Ele me salvou de um estupro coletivo por uma gangue de
escórias da Resistência no chuveiro, então me desculpe se me preocupo
com a menina.
Puta que pariu.
Eu me aproximo da cela e gesticulo para Rahab abrir a porta. Ele é
minha criatura mais brutal e quebra o cadeado para liberar Kyrie com
apenas um puxão. Assim que ela sai, Azrael pula de seu ombro e pousa
perto de mim em sua forma de Doberman adulto. Os outros ladram para ele,
seu próprio jeito de se cumprimentarem, mas ele fareja meus pés,
aparentemente sentindo o cheiro de tudo que aconteceu desde que nos
separamos.
Ou seja, o cheiro de uma porrada de frustração e de informações da
espionagem.
Kyrie estremece de leve, como se estivesse deixando um milhão de
calafrios saírem, e reclama:
— Não se ofenda, mas fico feliz de não estar mais com ele. Prefiro
um revólver e uma faca a um pesadelo.
Bufo para ela, e logo em seguida tiro uma Glock do coldre no meu
ombro e lhe entrego. Kyrie foi agente de Equipe Tática durante cinco anos,
e só saiu para tomar conta da cafeteria da mãe quando ficou claro que
Gloria estava determinada a fazê-los fecharem as portas, portanto, está mais
do que preparada para me dar cobertura enquanto tiramos os outros daqui.
Observo as outras mulheres, que continuam amontoadas, olhando
para mim como se eu fosse um monstro. Kyrie dá uma olhada para trás,
fecha a cara, e repreende:
— Este é o Nox Draven. Ele veio nos resgatar, então é bom todas o
tratarem com respeito, caso contrário vou deduzir que são simpatizantes da
Resistência e meter bala.
Olho para ela, que só dá de ombros.
— O Gryph me ensinou a lidar com essa baboseira de “monstro” há
muito tempo. O negócio é cortar o mal pela raiz e seguir em frente. Não
temos tempo nem energia para tratar ninguém a pão de ló agora.
Ela se afasta, apalpa o corpo de um dos guardas em busca das
chaves e começa a soltar as mulheres, agora envergonhadas e em silêncio.
Ainda teremos que libertar a tenda dos homens e, depois, lidar com a
desgraça que vai ser transportar todo mundo daqui. Não faço ideia de
quanto tempo se passou desde que Davies foi até Hail Mary, mas o nosso
deve estar acabando.
Precisamos nos mexer.
Azrael me encara com um olhar meigo, um que não deveria estar
demostrando tão abertamente na frente de estranhos, e choraminga como
um filhotinho. Ela o está estragando. Quanto mais tempo passam juntos,
mais ele deseja o tratamento gentil e amoroso que ela oferece. Todas
aquelas coçadinhas na barriga e carinhos… em breve ele será inútil em uma
luta.
Ele choraminga de novo e eu reviro os olhos.
— Tá bom, pode ir atrás dela. Vê se não come ninguém no caminho.
Fazer a limpa no campo é fácil demais.
Fácil demais e insuficiente para me satisfazer. Queria que fosse mais
desafiador ou tivesse mais gente para torturar, mas, tirando Franklin, há
apenas mulheres que ficaram falando besteira sobre mim e os poucos
guardas.
Embora eu sinta uma coisinha ao engatilhar seus pesadelos, um leve
prazer, não basta, e fico ávida para simplesmente arrancar suas almas do
corpo e acabar logo com isso. Que insatisfatório.
A mocinha que costuma estar no controle está em algum lugar no
fundo da minha consciência, mas a melhor forma de fazer o que é
necessário é deixá-la completamente de fora dessa. Ela é delicada demais
para esse tanto de destruição.
Já eu me deleito.
Sinto quando eles vêm me encontrar, sinto as orlas dos meus
sentidos projetados formigarem quando eles aparecem no campo, mas estou
concentrada demais nos três imbecis da Resistência na minha frente para ir
atrás daqueles meus Vínculos.
Já sei que virão até mim. Até quando as insignificantes rixas
humanas dessa gente entravam no caminho, eles continuavam vindo até
mim e à moça dentro de quem vivo.
Zarah, Linda e o guarda linguarudo, Cam, estão presos pelos pulsos
aos paus da tenda, com os pés balançando um pouquinho acima do solo.
Sou obrigada a reconhecer que as estruturas que eles montam são
resistentes mesmo. Foi uma merda pendurar os três ali, mas valeu cada
instante do esforço.
Linda e Zarah já estão mortas, suas mentes cederam rápido demais,
o que, sinceramente, era previsível vindo do tipo de gente que acredita na
propaganda ideológica da Resistência. Assim que elas se tornaram cascas
balbuciantes em que não havia mais nada além de um coração ainda a bater
no peito, terminei o serviço. Não há nada de satisfatório em ficar assistindo
um corpo desfalecer lentamente.
Cam, no entanto, cheio de espírito esportivo, continua aguentando
firme.
Ele se sacode enquanto engasga pouco a pouco com o sangue
vazando das suas órbitas oculares. É grotesco. Tenho que me lembrar de
esconder isso da mocinha, de enfiar essa memória lá no fundo dos recessos
de sua mente para que ela nunca sinta aquela pontada inútil de culpa por
causa disso. Ela vai sentir culpa, as coisas que faço para proteger a ambas
sempre a fazem sentir, mas eu não sinto. Eles se atreveram a botar as mãos
em nós, e por isso morreram.
Ouço a tenda farfalhar às minhas costas, mas não me viro para olhar,
porque não quero perder nem um segundo da morte de Cam. Consigo sentir
algo entrando no espaço fechado conosco, mas não é um Favorecido, sequer
é humano, e finalmente forço meus olhos a se desviarem de minha presa
para ver o que está aqui, interrompendo meu trabalho.
O ofídio é tão escuro quanto a mais sombria das noites sem estrela,
embora suas escamas cintilem mesmo assim. É sobrenatural, é perigoso e é
meu. Admiro-o, hipnotizada por sua beleza, com meus pés enraizados na
grama. Um deus sombrio por direito próprio.
Ele se ergue até que seus olhos (perfeições em vácuo) fiquem na
altura dos meus. Por um momento nós nos encaramos; é um instante de
aceitação, pois fomos feitos um para o outro e feitos um do outro antes de
sermos divididos e colocados neste planeta, apenas para procurarmos um
pelo outro por toda eternidade.
E então ele dá o bote.
Não em mim, é óbvio. Ele nunca feriria a mim ou à moça. Não, ele
dá o bote e arranca Cam de onde está pendurado. Sangue esguicha pelas
paredes da tenda, e acho bela a visão de estar assistindo a criatura do
Sombrio devorar aqueles que ousaram colocar as mãos em mim.
A abertura da tenda farfalha mais uma vez com a chegada deles.
Três fragmentos da minha alma, sendo que apenas um me concedeu o que
eu quero e os outros dois continuam ainda tão resistentes quanto à moça.
Uma onda de irritação percorre minha espinha, mas dou um passo à frente
para acariciar o corpo brilhoso da serpente, deleitando-me com o brilho
monstruoso de suas escamas contra a degradação manchada de sangue das
minhas mãos.
Meus Vínculos e suas habilidades são magníficos.
— Que diabos ela está fazendo? — sussurra o Metamorfo, e o
Sombrio o silencia antes de se aproximar de mim com passos leves.
Não me viro para olhá-los. Em vez disso, observo enquanto os
restos finais de Cam são consumidos em uma confusão de sangue e carne.
A forma como simplesmente desaparece é reconfortante, porque ele merece
ser inteiramente erradicado deste plano terrestre.
O ofídio volta a me encarar; seus olhos examinam cada centímetro
de mim, mas ficam retidos em minha perna, onde os danos que Davies
causou à moça encharcam o tecido da calça. Não me preocupa, não é nada
que atrapalhe a destruição que este lugar precisa sofrer e que eu, finalmente,
posso levar a cabo.
Esperei tempo demais dentro da moça por este momento. Nenhuma
lesão me impediria de reivindicar o que me é devido.
Quando o ofídio desliza por mim, esfregando-se na lateral do meu
corpo e voltando até seu mestre, levanto-me e enfim viro de frente para
meus Vínculos. Todos me encaram com expressões distintas. Surpresa,
terror, desprezo, preocupação, nojo. Sei que a maioria é dirigida aos homens
e mulheres que matei, mas, mesmo assim, fico um tanto encantada com a
reverência. Não importa que seja uma admiração horrorizada; eles me
olham como se soubessem que sou uma deusa.
Por fim, o Sombrio fala:
— Oleander, você está sangrando.
Olho para baixo e vejo que o torniquete, de fato, saiu do lugar, mas a
dor é insignificante. Talvez a perda de sangue possa me afetar, mas ainda
não chegamos nesse ponto.
Meu Vinculado impede que o Metamorfo venha na minha direção
com a palma da mão em seu peito. Uma luz branca se acende em seus
olhos, e ele diz:
— Vinculada, deixe-me consertar.
Consertar não é bem o que eu quero. Quero todos eles nus, quero
seus corpos se contorcendo junto ao meu, quero meu sangue cobrindo todos
nós e os marcando. Quero parar de jogar esses joguinhos infantis e
medrosos.
Ele ergue um pouco o queixo e sua respiração se intensifica. Seu
peito se expande em reação ao meu desejo, e é exatamente isso que quero.
O Sombrio avança, entra na frente dos outros dois sem hesitar e me
oferece a mão. Seus olhos permanecem de um azul profundo; ele está
mantendo seu próprio vínculo sob controle.
Quero romper esse controle.
Quero abri-lo e extrair meu Vínculo de dentro de seu invólucro
cuidadoso, libertar o poder que pertence a mim e me deleitar em nosso
Vínculo compartilhado.
Ele me decifra bem demais e fala devagar, medindo cada palavra
que deixa sair:
— Deixe-nos levá-la para casa, e daremos o que você quiser. O que
quer que precise, qualquer que seja seu capricho, será tudo seu, mas você
vai morrer se não controlarmos o sangramento logo.
Amaldiçoo o invólucro de carne inútil dentro do qual estou presa, e
por fim aceito sua mão. Deixo que ele me conduza até a escrivaninha e me
coloque sobre ela com delicadeza para avaliar os danos e ajeitar o
torniquete.
O Metamorfo se aproxima de novo e, só um pouco hesitante, segura
minha outra mão, entrelaçando nossos dedos como se estivesse tentando…
me consolar. Não vou ser eu a lhe informar que não preciso de consolo.
Preciso completar meus Vínculos e destruir tudo.
Meu Vinculado estala a língua para mim e murmura:
— E eu aposto que é bem por isso que a Oli não quer. Talvez você
devesse conter um pouco os planos de extermínio, quem sabe assim você
consiga o que deseja.
Olho feio para ele, que só dá de ombros. Que irritante. O Metamorfo
o olha um pouco confuso, mas volto meu foco ao Sombrio. Seus dedos,
firmes e certeiros, avaliam o terrível estado da minha perna, ocultando a
imagem da vista dos outros dois com seu corpo. Quando percebe que estou
observando, diz baixinho:
— Precisamos te levar a um Curandeiro. Os cortes estão perto da
artéria e você andou demais com a perna assim. Deixe um de nós carregá-la
a um Transportador, assim podemos te levar a alguém.
Inclino a cabeça de lado e suspiro.
— O Vinculado da garota-Incêndio. Mais ninguém.
O Sombrio assente e ergue a mão para acariciar meu rosto.
— Vamos levá-la ao Kieran e ele vai te transportar até o Felix. Neste
momento, só confiamos no nosso círculo íntimo. Vou carregar você agora.
Eu o quero, mas preciso de forças agora e ela flui com mais
facilidade entre meu Vinculado e eu, graças à nossa ligação, então digo:
— Não. Quero ele.
O Sombrio assente sem hesitar e se afasta; meu Vinculado se
aproxima e me ergue nos braços. Ele toma cuidado com o ferimento,
aninhando minha coxa de forma protetiva com um braço à lateral do seu
corpo, e aconchega meu peito ao seu.
Há tecido demais entre nós para a transferência de poder de que
preciso, mas, antes que eu possa exigir que ele tire a roupa e me dê o que
preciso, já estamos saindo da tenda.
No instante em que chegamos em espaço aberto, há olhos demais
sobre nós.
Tanto os sobreviventes quanto a cavalaria nos encaram enquanto nos
movemos pelo acampamento. O porquê é óbvio, já que estamos tendo que
passar por dúzias de corpos para voltar ao Transportador, mas tudo isso é
irrelevante para mim. Não me importo com o que eles acham do que fiz
aqui, porém a julgar pelas expressões nos rostos dos meus Vínculos, eles se
importam.
Sinto que eu deveria ressaltar que sou uma deusa misericordiosa e
só mato aqueles que torturam, mutilam e assassinam em proveito próprio,
de forma nefasta. Os serezinhos vivendo tranquilamente não significam
nada para mim.
— Puta que pariu, fiquem felizes por não conseguirem ouvir o que
está passando na cabeça dela agora. Um monte de coisa relacionada ao
nosso Vínculo e o medo que ela tem disto aqui está fazendo sentido agora
— diz meu Vinculado, e resisto à vontade de enfiar a mão no seu peito e
arrancar o coração.
— Você não faria isso. Nós dois sabemos que precisa de mim.
Mesmo assim. Seria divertido.
Quando chegamos ao fim das tendas e à pequena clareira,
encontramos o Transportador esperando por nós com o outro Sombrio, o
que está danificado.
Ele não reage à nossa chegada, quase nem olha na minha direção,
mas o Transportador fica todo embasbacado de alívio.
— Oli! Graças a Deus! Achei que… Meu Deus, Gryph, o que houve
com ela?
— A Oli precisa sair daqui, e agora não é uma hora boa pra
conversar com ela.
— A Oli não está exatamente presente no momento, e o vínculo dela
está tentando planejar como dominar o mundo, então talvez seja melhor
esperar um pouquinho — diz o Metamorfo com um sorriso presunçoso,
todo convencido e seguro de si agora que sabe o que está acontecendo.
Viro o rosto contra o peito do meu Vinculado para olhar nos olhos
do Transportador, reconhecendo que foram suas palavras que me puxaram
para fora da moça e possibilitaram esta destruição. Ele retribui o olhar com
tanto alívio que parece até que ficou mesmo aqui com o coração na mão,
esperando os outros me encontrarem.
Decido mantê-lo vivo. A garota-Incêndio, o Vinculado dela, e esse
aí. Talvez o Tecno linguarudo também, mas só talvez. Eu os deixaria para
morrer por último, logo antes dos meus Vínculos e eu, se chegasse a esse
ponto.
— Vou me certificar de contar isso para a Sage, Vinculada.
Eu lhe dou um olhar furioso que não adianta de nada para remover o
sorrisinho petulante de seus lábios.
— Sai da minha cabeça, seu Vinculado xereta, ou talvez eu repense
meus planos de arrancar seu coração.
Ele ri baixinho.
— Tenho que admitir que é engraçado ver esse seu lado. Não dá
para evitar. Além disso, você saiu correndo direto para os braços do perigo
de novo, sem nenhum dos seus Vínculos. Está me devendo umas risadas.
Não tenho tempo de dizer exatamente como não foi bem assim, que
não devo nada a nenhum deles e que todos deveriam estar me idolatrando
por sequer existir, porque o Transportador se aproxima de nós e, oferecendo
sua mão firme e ensanguentada, diz:
— Vamos dar o fora dessa zona antes que mais alguém acabe
esfaqueado.

Estava achando que ia voltar para a mansão Draven, mas, em vez


disso, ressurgimos com um crac em um grande armazém cheio de homens
vestidos em trajes Táticos e Curandeiros em jalecos brancos para serem
facilmente distinguidos. Alguns prisioneiros resgatados já estão sendo
atendidos por Curandeiros e, quando notam nossa chegada, um grupo deles
vem correndo até a gente.
Não gosto disso.
Embora eu saiba que não são da Resistência, não gosto que venham
para cima de mim, ainda mais com quatro dos meus Vínculos parados aqui
comigo. Assim que fico tensa, meu Vinculado dá meia-volta, coloca as
costas entre nós e os Curandeiros e se apressa a dizer:
— Para trás! Vocês estão prestes a ser fritos!
— Ou devorados — diz o outro Sombrio com a voz arrastada, com
três de suas criaturas exibindo os dentes para os homens que se aproximam.
Embora as criaturas me pareçam perfeitas, vejo por cima do ombro do meu
Vinculado que os três Curandeiros engolem em seco.
Patético.
O Sombrio entra na minha frente.
— Precisamos do Felix Davenport. Trouxemos ele com a gente
especificamente para cuidar do nosso Vínculo.
Um dos homens balbucia indignado e retruca:
— Ele é um aluno de terceiro ano! O Vínculo de um conselheiro
deveria ser tratado por…
— Ela será tratada pelo Davenport e mais ninguém. Não é você
quem decide, Payne.
Um Curandeiro chamado Payne? Tipo pain, que significa dor em
inglês? Tenho a impressão de que a mocinha iria adorar. Sinto uma
zonzeira, volto a apoiar a testa no peito do meu Vinculado e respiro devagar
para fazer tudo parar de girar. Os braços dele me apertam, e então ele surta:
— Sai da porra da minha frente antes que eu invada seu cérebro e
encontre informações suficientes para te enterrar.
Ouço mais um burburinho, mas então o Curandeiro grita:
— Cheguei! Estava só instalando a Kyrie no soro. Cadê a Oli… puta
que pariu. Coloca ela na padiola. Tem sangue suficiente aí para matar
alguém, e essa posição só está piorando.
Meu Vinculado caminha até uma das padiolas, mas em vez de me
colocar nela, ele se senta e ajeita minhas pernas ao seu redor, dando acesso
ao Curandeiro. Uma de suas enormes mãos desliza por baixo da minha
camiseta e espalma por cima da minha coluna, firmando-me contra seu
peito, e vou ficando mais quente à medida em que seu dom se espalha pelo
meu corpo.
A dor que sei que está lá, mas que não consigo sentir de fato,
desaparece.
Suspiro e viro o rosto para o Curandeiro, que me observa com
cautela. Os braços do meu Vinculado se contraem à minha volta em um
gesto protetivo; sua palma está quase queimando minha pele. Ele tem uma
grande sensibilidade a tudo neste lugar, aos olhos e aos comentários, e tudo
isso está fazendo seu sangue ferver.
Eu me pergunto que coisas fora do alcance dos nossos ouvidos ele
está ouvindo.
— Cuidado, Davenport. Não estou de bom humor pra tolerar
desrespeito depois de tudo que já passamos hoje — esbraveja ele, e o
Curandeiro ergue as mãos, como se estivesse prevendo um soco no queixo.
— Não é desrespeito. Já a curei várias vezes, sei exatamente o que
ela sabe fazer e quanto poder tem. Só estou tomando cuidado porque pode
ser que ela esteja com dificuldade para se controlar. Nós dois sabemos que
isso tem sido um problema.
Isso o faz parar por um instante, só para me encarar, mas ele não vai
conseguir ver nada em meus olhos vazios. Sinto meu poder desacelerando;
a ameaça foi resolvida e nenhum dos Favorecidos aqui nos preocupa.
Qualquer um dos meus Vínculos poderia despedaçar essa gente como papel
molhado.
O Sombrio me olha de cima, então se agacha até ficar da minha
altura e diz com a voz firme:
— Devolva a Oleander para podermos curar você.
Fecho a cara.
— Negativo. Não vou devolvê-la enquanto ainda houver dor. Eu
impeço que ela sinta.
Os braços se contraem de novo, e então o Curandeiro agacha do
lado do Sombrio:
— Se prometer que vai se controlar enquanto faço o que preciso,
tudo bem. Vou acreditar na sua palavra, porque o Gryphon vai ter que parar
de bloquear a dor no procedimento.
Sem hesitar, meu Vinculado responde por mim:
— Não. Ela não vai sentir dor para você curá-la.
O Curandeiro nega com a cabeça.
— Lamento, mas não consigo localizar todos os danos se não ela
não estiver sentindo. Posso acabar deixando passar algo que seja letal mais
para a frente. Não estou disposto a correr o risco. Outros Curandeiros
estariam; eu não. Tem muita coisa em jogo aqui e não vou perder a Oli
porque você não quer que ela sinta dor. Eu entendo, mas não tem nada que
eu possa fazer a respeito. Sinto muito.
Inclino-me para frente para garantir que ele esteja prestando toda
atenção em mim, o que talvez não fosse necessário já que acho que todo
mundo neste armazém está prestando toda atenção em mim neste momento,
e digo:
— Não vou te fazer mal, contanto que você não faça mal a mim ou
aos meus. Nem agora, nem nunca. A dor não é nada, só a garota a sente e
ela está dormindo. Faça o que precisa.
Ele assente, acreditando na minha promessa, então arrasta uma
cadeira para perto da padiola e começa a trabalhar. Explica onde vai colocar
as mãos, o motivo de estar me tocando, e pede meu consentimento sempre
que muda de posição; é super profissional. Um pouco da tensão deixa o
ambiente conforme meu corpo lentamente se remenda de volta sob a
orientação do seu dom.
Enquanto se move de novo e encosta a palma de uma mão na lateral
do meu pescoço para verificar se as drogas me causaram qualquer lesão
cerebral ou sequela, o Curandeiro comenta com meu Vinculado:
— Não sei por que você está tão tenso. Ela está aguentando melhor
que qualquer um que já curei. Relaxa um pouco, Shore. Ela ainda precisa
respirar.
— Eu vi sua cara quando você apareceu na mansão naquele dia que
a Benson ateou fogo num prédio por sua causa, então não finja que está
acima do comportamento dos Vinculados — retruca meu Vinculado.
Após mais alguns minutos de trabalho, o Curandeiro afasta a mão de
mim, ajeita-se na cadeira, olha por cima de ombro para a audiência de
Curandeiros e Agentes ainda reunida ao nosso redor e remove o jaleco.
— Gabe, dá uma mãozinha. Vou cobri-la e fechar os olhos, então
não quebre meu braço, mas ela precisa de pele com pele para finalizar o
tratamento. Tira a camiseta dela. Gryphon, tira a sua também. Só preciso da
cintura pra cima.
O Sombrio também chega mais perto, tira a própria jaqueta e afasta
o Curandeiro de lado para ocupar seu lugar. Em seguida, meus três
Vínculos me ajeitam até que eu fique seminua, sentada no colo do meu
Vinculado, com nossos torsos nus colados um no outro. Há uma jaqueta
jogada sobre minhas costas, e a força do meu Vinculado percorre com
facilidade para dentro de mim pela nossa ligação. Sinto meu corpo
inspirando seu cheiro, recebendo tudo que preciso de sua vitalidade
enquanto ele faz o mesmo comigo. Compartilhamos nossos recursos até que
eu tenha tudo de que já precisei dele.
Enfim, consigo respirar profunda e plenamente.
— Puta merda, é para ser assim mesmo? — murmura o Metamorfo,
e o Curandeiro responde com um olhar de soslaio e um singelo dar de
ombros.
Deixo meus olhos pestanejarem e fecharem enquanto me banho no
poder; o corpo da mocinha está começando a desligar depois do uso de seu
dom. Isso sempre acontece já que não está acostumado a canalizar tanto e
ela nunca me deixa sair.
As palavras baixas do Curandeiro penetram minha mente devagar:
— Não costuma ser tão impressionante, mas sim, eles estão
compartilhando poder. Está mais… brilhante porque ela é muito poderosa.
Eu me deixo levar pela inconsciência; meu controle sobre a garota
continua forte porque não quero que ela acorde enquanto a cura está em
andamento, e perco a noção das horas. Só volto a ficar ciente das coisas
ocorrendo no meu entorno quando meu Vinculado fala de novo, um som
alto no meu ouvido pressionado em seu peitoral.
— Tira a camisa. Ela está se recarregando com os cheiros de novo e
precisa de mais. O Bassinger também tem que ficar pronto em casa. Ela vai
precisar de todos nós.
A padiola afunda quando mais alguém se senta, e então sou
deslocada para os braços do Metamorfo, pressionada com firmeza em seu
peito nu. O cheiro dele é aconchegante e desperta arrepios na minha pele
quando enterro o nariz na curva de seu pescoço.
Fecho os olhos bem apertados, sabendo que, quando voltarem a se
abrir, não serei mais eu no controle e a mocinha estará de volta, lidando
com as consequências das ações que tomei para nos salvar.
Contudo, estamos vivas, praticamente ilesas, e ela não vai se
lembrar da pior parte. Isso tem que bastar.
Acordo cercada pelo delicioso perfume do meu Vínculo, com o nariz
enterrado em pele quente e braços me segurando com força. Estou nua da
cintura para cima, e North também nas partes em que estamos colados um
no outro. Jogaram alguma coisa sobre meus ombros para me cobrir, e
minhas pernas o envolvem na cintura.
Quando suspiro, completamente satisfeita com a posição em que me
encontro porque meu cérebro não está processando todos os “puta que
pariu” acontecendo neste momento, seus braços me apertam com mais força
e ele vira um pouco o rosto para murmurar no meu ouvido:
— Mais dez minutos, Vínculo. Aí vou te levar pra cama.
Minha pele fica toda arrepiada e eu estremeço. Meus mamilos
enrijecem até parecerem pedrinhas pressionadas no peito dele, e sua mão
desce e aperta minha coxa, puxando-me mais perto. Meu vínculo ronrona
no peito, zunindo de prazer por ele estar tão desesperado para me ter perto
de si, porque esse é o único jeito de explicar a pegada de sua mão.
Há vozes ao nosso redor, algumas não reconheço, mas deixo meu
rosto aninhado em seu pescoço e ignoro todas. Tenho certeza de que, se
estivéssemos em perigo, ele já teria compartilhado essa informação comigo,
e duvido que North me deixaria continuar seminua nesse caso.
Quanto mais ficamos sentados aqui juntos, mais meu cérebro
começa a funcionar e absorver as informações. Este homem não confia em
mim; estar sentada aqui em seu colo vai me custar caro assim que eu
levantar, e terá que ser logo porque a natureza está chamando.
Também há muita gente falando e se perguntando se a Resistência
vai ou não retaliar nas próximas setenta e duas horas, o que faz uma gota
fria de suor escorrer pelas minhas costas.
E se eu tiver trazido a Resistência aqui, até meus Vínculos e amigos,
e estivermos todos prestes a ser massacrados?
Meu medo repentino deve ficar óbvio, porque a conversa cessa em
volta de mim, e então ouço movimento. Viro a cabeça assim que Gryphon
se aproxima de nós, agacha até me encarar no rosto, e me examina com
seus olhos aguçados.
— Qual o problema? Do que você precisa? Pode ser qualquer coisa,
Vinculada.
Não consigo dizer em voz alta. Não consigo admitir o que está me
corroendo por dentro neste instante, então opto por ser covarde, fecho bem
os olhos e envio as palavras para ele:
NÃO QUERO DEIXÁ-LO, MAS PRECISO IR AO BANHEIRO. NÃO QUERO PERDER ESTE
MOMENTO.

Há um instante de silêncio, e então ouço o barulho de movimento e


os braços firmes abraçando meu corpo se soltam com gentileza. Preciso
engolir o choramingo que me sobe pela garganta, e mantenho os olhos
fechados até as mãos de Gryphon me afastarem do calor e da segurança aos
quais estou me agarrando.
O ar do ambiente é frio em minha pele exposta, e ele agilmente
veste um suéter com o cheiro de Nox pela minha cabeça. Encho os pulmões
com o aroma e finalmente abro os olhos, bem a tempo de ver a cara furiosa
de North quando Gryphon passa as mangas do suéter pelos meus braços.
Seu corpo age como um escudo contra o resto das pessoas, de modo que
ninguém consiga me ver. Estou engolindo as lágrimas, preparando-me para
a próxima rodada de rejeição que terei que enfrentar do meu Vínculo.
NÃO PENSE ASSIM. ELE ESTÁ PUTO PORQUE HANNITY E ROCKELLE ESTÃO
INSISTINDO EM FAZER ESTA REUNIÃO AGORA E ELE NÃO PODE CUIDAR DE VOCÊ COMO
GOSTARIA. NINGUÉM ESTÁ TE REJEITANDO, VINCULADA. NEM AGORA, NEM NUNCA.

Nem reclamo com Gryphon por estar lendo minha mente. Não posso
me permitir acreditar no que ele está dizendo. Não posso me dar ao luxo de
me expor a esse tipo de dor, mas é então que olhos de North encontram os
meus e eu os vejo se encherem de carinho.
Carinho.
Ele se debruça para frente e eu paro de respirar. Sinto que está
prestes a me beijar, bem aqui, pela primeira vez, na frente de sabe lá quem,
e minhas bochechas ruborizam, mas em vez disso, ele murmura baixinho
para mim:
— Vá com o Gryphon. Vou encerrar isto aqui assim que puder.
Suas mãos seguram meus quadris quando me levanto, equilibrando-
me até eu ter certeza de que minhas pernas vão me aguentar, e, assim que
dou o primeiro passo e faço uma careta, Gryphon passa um braço pela
minha cintura. Permito-me uma última breve olhada no rosto de North antes
de o deixarmos. Se eu achava que tinha sentido desespero em suas mãos me
segurando antes, aquilo nem se compara ao obscuro sentimento de posse
que vejo em seus olhos agora.
Ele está me encarando como se eu fosse sua presa.
Logo desvio o olhar e deixo Gryphon me conduzir devagar para fora
dali. Mantenho os olhos no chão para ninguém ver o momento de choque
que estou vivenciando. Quando a dor em minha coxa recém-curada me faz
resmungar, Gryphon murmura:
— Só não estou te carregando de uma vez porque o Felix falou que
você precisava esticar os músculos. Ele me mandou não aliviar sua dor para
poder te examinar de novo e ser mais específico no tratamento, mas se
estiver ruim demais, eu te carrego. Dane-se o que ele diz.
Nego com a cabeça e cerro os dentes.
— Ele é o Curandeiro, é melhor a gente obedecer. De qualquer
forma, não está tão ruim, parece mais uma lesão antiga ou algo assim. Mas,
por favor, diz que tem um banheiro por perto, porque vai ser bem
constrangedor se eu tiver que esperar até chegar no meu quarto.
Minhas tentativas idiotas de fazer piada só o fazem menear a
cabeça; ele me conduz a um banheiro a só duas portas de distância, onde
passo um tempão convencendo Gryphon a me deixar fazer xixi sozinha. Ele
tenta me persuadir a deixá-lo ficar de costas, mas caramba, de jeito nenhum
vai sair alguma coisa assim. Sem chance. Ele é doido de sequer sugerir uma
coisa dessas.
Brutus aparece de trás da minha orelha e pula nos azulejos aos meus
pés. Lágrimas enchem meus olhos porque estou cansada, emotiva e aliviada
pra caralho por tê-lo de volta. Sério mesmo, as poucas horas que passamos
afastados pareceram uma eternidade, e percebo que Nox tem uma baita
carta na manga contra mim agora.
Se tirar meu bebê de mim, vai ser meu fim.
Assim que escuta a descarga, Gryphon se apressa para dentro do
banheiro e me esquadrinha com seus olhos, procurando por qualquer lesão
que eu possa ter sofrido sentada na droga do vaso, e eu bufo.
— Para de ser ridículo. Estou curada e perfeitamente segura aqui.
Brutus está comigo e, não sei se você já sabe, mas meu poder é literalmente
arrancar as almas das pessoas matando elas no mesmo instante. Acho que
aguento uns minutinhos no banheiro sem que você precise ter um surto.
Seus olhos se estreitam para mim, mas me viro de costas para lavar
as mãos. Brutus se enrosca nos meus calcanhares e me apoia, como se
soubesse que a dor na minha coxa agora se tornou uma queimação que faz
meu joelho tremer um pouco.
— Pelo menos agora sei que é você mesma que acordou. Essa
pachorra é inconfundível.
Eu me viro para pegar a toalha e lhe dou um sorrisão.
— Mas você sentiu falta, né? Odeia admitir, mas sentiu falta do meu
atrevimento.
Ele avança, segura meu pulso e me arrasta para seus braços,
ignorando o rosnado de irritação de Brutus.
— Admito cada parte do que estou sentindo. Te perdi de novo, mas
dessa vez foi pior porque eu não tinha mais só a mera ideia de um Vínculo.
Agora você é você. Você é minha, e nos deixou mais uma vez.
Retruco:
— Fui buscar sua…
— Eu sei. Foi buscar minha irmã por mim, e eu posso te amar por
isso e estar furioso pra cacete contigo ao mesmo tempo. Nunca mais vou te
deixar aqui. Nunca mais vou confiar em ninguém, nem no nosso próprio
Grupo Vincular, para cuidar de você.
Vou apenas ignorar o uso dessa palavra com A. Tenho certeza de
que foi só um escorregão, então me limito a assentir.
— Gostei desse plano. A sensação de te deixar foi… não vamos
mais fazer isso. Não tem motivo para não podermos ficar juntos aqui daqui
para frente, certo?
Ele semicerra os olhos como se não acreditasse no que estou
dizendo, o que é ridículo, porque ele pode detectar minhas mentiras e eu
nunca fui tão honesta assim com ele em todos os meses desde que nos
conhecemos. Porém, depois de um minuto, ele supera seja lá o que o está
incomodando, volta a me recolher em seus braços e saímos do banheiro, de
volta ao… sei lá qual é a droga do nome da sala que deixamos há pouco.
Inferno, talvez?
Purgatório, ou talvez até seja Limbo, porque estou presa lá sem
saber que porra é essa que está acontecendo com o North e aquela ternura
com a qual ele me olhou.
Ternura.
Eu não teria acreditado se não tivesse visto aqueles olhos de
pertinho, se não tivesse o encarado como se ele fosse o sol em pessoa. A
esperança de que agora ele talvez acredite em mim cresce no meu interior
como erva daninha, impossível de arrancar, embora possa me sufocar até a
morte caso não seja verdade.
Preciso me impedir de pensar nisso.
É constrangedor, mas assim que pisamos no corredor, damos de cara
com ninguém menos que Kieran e Kyrie, a irmã do meu Vinculado.
Kyrie dá um sorriso malicioso ao nos ver cambaleando juntinhos, ou
talvez seja porque acabamos de sair juntos de um banheiro, coisa que dá,
sim, um pouco de vergonha.
Quando Gryphon só fica olhando para os dois, com um sorriso se
espalhando devagar pelo rosto ao ver sua irmã completamente sã e salva,
ela bufa e dispara:
— Solta sua Vinculada para eu te abraçar. E também é assustador te
ver sorrindo desse jeito, controla isso aí um pouco.
Gryphon me ajuda a usar a parede como apoio e então a puxa para
um abraço, fechando bem os olhos e soltando um leve suspiro aliviado.
— Que tal você nunca mais se deixar ser levada de novo, assim
minha bendita Vinculada não precisa sair correndo atrás de você? Que pé
no meu saco, Ky.
Ela faz um ruído e o empurra.
— Eu não pedi, mas foi bem útil ter a Oli por perto. Você tinha que
ouvir o jeito que falam dela, parece até que a menina é uma mensageira da
morte ou algo assim. Achei bem bizarro… até eu ver as pessoas caindo
mortas por todos os lados. Aí fez um pouco mais de sentido.
Gryphon faz um barulho baixo de desdém e responde, irritado:
— Eles mereciam uma morte muito mais lenta depois de tudo que
fizeram, mas pelo menos, para variar, não houve sobreviventes.
Kieran faz um som igualmente irritado, intrometendo-se no pequeno
bate-boca, e diz:
— É, só que o cuzão responsável por tudo escapou. Ele continua
solto por aí e continua obcecado pela Vinculadinha assassina, Shore.
Então os três se viram para olhar para mim, que já ia me arrastando
devagar pelo corredor, para longe da conversa, e faço uma careta.
— Olha, eu não ia conseguir matar aquele homem, então era questão
de deixar ele vivo ou morrer tentando, e sei que pelo menos eu estou feliz
com o resultado.
Kyrie se aproxima e é de forma um tanto vacilante e cautelosa que
me abraça, mas fica claro que está mais com medo de me causar dor do que
de tocar em uma Arrebatadora de Almas.
— Obrigada. Essa ferinha aí embaixo me salvou ao invés de te
impedir de ser entalhada, e nunca vou conseguir te retribuir.
Não faço nem ideia de como agir com a gratidão de alguém.
Que constrangedor.
Então, opto por fazer graça da situação como uma profissional:
— Eu sabia que eu estava a salvo naquele campo de certas coisas
das quais você não estaria, não foi uma escolha difícil. Além disso, quem
nunca foi fatiada e virou picadinho nas horas vagas, né?
Ninguém nem sorri para minha péssima tentativa de piada; parece
que minhas gracinhas não estão funcionando hoje. Olho para Gryphon e
digo:
— Sem querer ser uma mala sem alça, mas preciso me sentar.
Ele imediatamente me ergue nos braços e, quando tento protestar,
retruca:
— Você já andou o bastante. Se o Davenport achar ruim, eu me
resolvo com ele.
Kyrie começa a rir às nossas costas, mas Gryphon ignora e caminha
de volta para a sala, que agora percebo que é o escritório de North.
Escorrego para o chão, pois não quero ser inapropriada na frente de gente
que não conheço, embora Gryphon resmungue alguns protestos a respeito.
North ainda está sentado no mesmo lugar, com a camisa abotoada
apenas pela metade e uma expressão ameaçadora no rosto, encarando dois
homens mais velhos de quem me lembro vagamente daquela desgraça de
jantar a que comparecemos uma vida inteira atrás.
Assim que entramos no cômodo, um deles me dá uma olhada breve
e diz:
— Bom, ela está aqui agora…
North o interrompe com palavras encharcadas de amargura:
— Se tentar abordar meu Vínculo agora, Hannity, não me
responsabilizarei pelos meus atos.
Congelo, mas Gryphon entra na minha frente e me segura perto de si
com um braço atrás do corpo, claramente me ocultando da vista de qualquer
um nesta sala que possa querer alguma coisa de mim.
Hannity pigarreia e escolhe a palavras com muito cuidado:
— Só estou tentando dizer que apenas uma pessoa sabe exatamente
o que aconteceu. Se pudéssemos ouvir direto do seu Vínculo…
— Não. Não vai ouvir nada dela, tampouco irão os demais membros
do Conselho. Vocês só estão sentados aqui agora porque o Gryphon os
aprovou. Se esse status mudar, se ele encontrar qualquer indício de traição
em algum de vocês, serão tratados de acordo.
— E como planeja fazer isso, North? Você é forte, mas não é um
deus.
Eu devia deixar pra lá, mas meu vínculo não fica nada satisfeito com
esses homens o questionando dessa forma. Os braços de Gryphon me
seguram apertado quando ele sente meu vínculo assumir e meus olhos se
transformarem. Eu me inclino só o suficiente para que Hannity e Rockelle
consigam me ver, e digo:
— Eu que vou. Ele nem vai ter a chance de mandar August e suas
criaturas para cima de vocês, porque eu vou matar vocês e amontoar os seus
cadáveres no chão antes.
Observo os dois homens, dois sujeitos adultos, que são Favorecidos
de Nível Superior, engolirem em seco ao verem meus olhos vazios. O
êxtase nos olhos de North só me deixa ainda mais inebriada por ele.
A sensação é boa pra caramba. O vínculo no meu peito fica
orgulhoso.

No momento em que Hannity e Rockelle finalmente desistem de


interrogar North e nos deixam sozinhos, ele pega o celular e exige que Felix
venha dar mais uma olhada em mim. Quero reclamar, mas as pontadas de
dor na minha perna já estão me fazendo suar e não tem como esconder isso
de nenhum dos meus Vínculos. Gryphon me conduz a uma cadeira
enquanto esperamos pelo meu amigo Curandeiro em quem confio.
Felix chega em um minutinho, parecendo estressado e
completamente esgotado, mas começa a me curar na mesma hora. Quando
nossos olhos se encontram, vejo um alívio muito óbvio nele que faz eu me
encolher.
— Conheceu meu vínculo, né?
Ele dá uma risada zombeteira enquanto pressiona a palma da mão
no meu tornozelo exposto, e seu dom flui para dentro de mim.
— E como. Jamais teria imaginado que algo tão apavorante vivia
dentro de você.
Reviro os olhos para ele na mesma hora em que a porta volta a se
abrir e o escritório fica lotado com meus Vínculos, nossos amigos e
algumas outras pessoas que não conheço.
— Eu bem que tentei avisar, mas ninguém acreditou em mim. Meu
vínculo é uma vagabunda impertinente nos melhores dias.
Gabe vem direto até mim, segura meu rosto e, ignorando as
reclamações de Felix, beija-me com delicadeza.
— Cacete, que bom que você acordou.
Passo a língua pelo meu lábio inferior, distraída e à procura do gosto
dele.
— Na verdade nem cheguei a… dormir o tanto que preciso. Dou
uma ou duas horas talvez para eu apagar por alguns dias. Dormi durante os
três primeiros dias no campo também, foi o que me ajudou a aguentar o
tédio.
Gabe assente, então sai do caminho para Felix terminar quaisquer
reparos necessários em minha coxa. Sawyer está com um braço por cima
dos ombros de Sage, e dá para perceber que está se esforçando para segurá-
la afastada de mim. Mesmo assim, sorrio para ela, ciente de que vou correr
para seu abraço assim que puder.
Ela parece ridiculamente exausta.
Kieran debocha, senta na cadeira ao lado da minha para esperar sua
vez de ser cuidado por Felix e retruca:
— Você nem viu a maior parte do tempo passar. Dormiu que nem a
porra de um bebê, mesmo acorrentada a uma cadeira.
— Ainda reclamando disso? Pelo menos você podia deitar, e eu te
arranjei comida decente. Um “obrigada” não faria mal, sabe.
Ele me encara por um segundo, e então diz num tom rabugento:
— Aquele frango estava uma merda.
Caio na risada.
— O frango deles é sempre uma merda, mas as lavagens são piores,
então, mais uma vez, de nada.
Felix enfim tira a mão de mim e, quando se aproxima de Kieran, há
uma oscilação em seu dom que não estava lá antes. Fica claro que ele está
chegando ao fim de sua fonte de energia por hoje.
Sage também percebe isso, claro, já que são Vinculados. Ela o
observa com o cenho franzido, e assisto quando seu vínculo irrompe dela e
atinge Felix em uma onda. Ele grunhe e oscila onde está agachado, mas as
linhas de tensão somem de seu rosto quase que no mesmo instante.
— Merda, desculpa! Ainda estou aprendendo a fazer isso! —
balbucia Sage, e Felix se aproxima para tranquilizá-la, mas minha atenção
foi para outro lugar.
Para onde o Kieran está olhando fixo para Sage, com algo nos olhos
que parece… deslumbramento.
Que porra é essa?!
Ele percebe que meu olhar assassino está mirando na lateral de sua
cabeça. Quando seus olhos se dirigem a mim, os meus descem até sua
perna, onde a calça do uniforme continua rasgada. Onde devia haver aquele
longo corte, que só fora fechado em partes numa cura apressada antes de
irem me buscar, agora não há nada além de pele recém-cicatrizada.
Fico com a porra do queixo caído, mas então Kieran me olha com
ferocidade e meu cérebro volta a pegar no tranco. É claro que não cabe a
mim ter a merda de um surto por causa disso em uma sala cheia de gente
em quem com toda certeza não confiamos, porque há membros das Equipes
Táticas aqui esperando as ordens de North, e alguns outros caras de terno.
A assistente de North, que eu não tinha percebido que chegara, está
olhando obsessivamente para ele de um canto, e o tempo que passei longe
não diminuiu em nada minha vontade de arrancar os olhos da cara dela.
Acabei de ser tirada do colo de North enquanto ainda precisava dele
só para fazer xixi e ser curada, mas aguentar essa vagabunda o secando é
inadmissível para mim.
— Pen, pode ir pra casa que já temos tudo sob controle — diz
Gryphon enquanto me ergue da cadeira e se planta na minha frente, com os
braços cruzados e um tom de voz bastante firme.
Ele está sendo bem menos simpático com ela, uma mudança que é
mais do que bem-vinda, e sua lealdade acalma um pouco o vínculo em meu
peito.
Gabe se aproxima e assume posição ao meu lado como se estivesse
preparado para dar tudo muito errado, mas gosto de tê-lo perto de novo.
O barulho que Pen emite faz parecer que ela está irritada com
Gryphon, mas então North a interrompe num tom que não admite
discussão:
— Vá pra casa, e também não volte amanhã. Vou agendar uma hora
para nos encontrarmos na sede do conselho. A mansão será reduzida ao
mínimo de visitas, e você não está na lista aprovada pela segurança.
Ah.
Ah, agora eu gostei.
Tento esconder a expressão de presunção que essas palavras trazem
ao meu rosto, mas Gabe bufa e balança a cabeça, então é óbvio que não
estou conseguindo. Bom, e quem se importa? Já que ela se sentiu muito à
vontade para entrar no quarto dele enquanto eu estava na cama. Com a
própria chave. E mexer nas roupas dele.
Nas cuecas dele.
— Inspira fundo. De novo, Vinculada — murmura Gryphon, com o
rosto ligeiramente virado em minha direção, mas o corpo ainda se
interpondo entre a sala e eu. Não sei bem se está fazendo isso para proteger
a mim ou aos outros.
Eu devia fazer a coisa certa e dar o fora daqui.
Apalpo o ar até encontrar a mão de Gabe e dou um passo para o
lado, até ficar aninhada em seu corpo. Ele me recebe sem questionar ou
hesitar, vira em minha direção e me envolve de forma protetiva com o braço
desocupado.
Quando me ergo na pontinha dos pés, ele se abaixa para me
encontrar no meio do caminho e vira a cabeça de modo que eu possa
sussurrar em seu ouvido:
— Me leva para outro lugar, por favor. Algum canto neste andar em
que a gente possa ficar sozinho, mas continuar perto. É… é demais pra
mim…
Pelo jeito com que me olha com uma vaga expressão em pânico, ele
parece estar esperando que eu caia no choro, e murmura em um tom
apaziguador:
— Beleza, eu levo. Vamos, Vínculo. Sei aonde ir.
Ele me conduz por um corredor que nunca vi antes (este lugar é
ridículo de tão grande) e então nos abaixamos para entrar em uma pequena
alcova aberta em uma das paredes. Há uma grande planta em um vaso na
entrada, que cobre em partes a namoradeira embutida na parede, e uma
estantezinha com livros velhos.
Os Draven realmente amam livros.
Gabe me puxa na direção da namoradeira, que, na verdade, é do
tamanho de uma cama de casal e está coberta por almofadas, e, quando se
senta nela, dou mais uma olhada pelo espaço. É aberto demais, mais do que
eu queria, e meu vínculo começa a ficar irritadinho no meu peito mais uma
vez.
Faço um barulho de desagrado com a garganta, mas Gabe me dá um
sorriso preguiçoso que parece um tanto forçado, e diz:
— Não temos muitas opões aqui, Vínculo. Estou fazendo o melhor
que posso.
Quando meus olhos voltam a ficar pretos, seu sorriso oscila e ele
engole em seco, mas me aproximo para arrancar sua camiseta e empurrá-lo
deitado no sofá. Quero me despir e colar meu corpo no dele. Caramba, o
que eu quero mesmo é foder encostada nessa parede até meu corpo todo
ficar com o cheiro dele e com sua porra escorrendo pelas minhas pernas de
um jeito que deixe bem claro o quanto sou dele. No entanto, meus sentidos
continuam captando que ainda há muita gente a mais na casa e que essa
pequena alcova para a qual ele me trouxe tem uma entrada gigante.
Não quero ninguém olhando para o que é meu.
Então, em vez disso, aconchego-me em seu peito, encosto o ouvido
nas batidas constantes de seu coração e me aninho em seu calor. Ele se
mexe devagar, envolve meu corpo com os braços e me abraça, como se
estivesse com medo de desencadear alguma resposta animalesca de mim
que o leve a perder um membro. Meu vínculo gosta de receber esse tipo de
respeito dele.
O fato de ele ter tanta certeza do quanto eu realmente sou perigosa
é, de alguma forma, reconfortante.
Dou um suspiro, irritada pela quantidade de roupas que ainda há
entre nós, e me afasto para tirar o suéter. Gabe engole com dificuldade e
fica com as bochechas muito coradas ao me ver nua da cintura para cima,
mas não tenta me impedir. Quando grudo meu corpo no dele de novo, pega
o suéter e coloca sobre minhas costas. Mais um ponto a seu favor. Meu
vínculo gosta que ele me deseje tanto quanto eu o desejo.
— Pode voltar ao normal? Se eu prometer não me afastar nem vestir
nenhum de nós? O Gryph vai me matar se te vir assim de novo — resmunga
Gabe, e obrigo meu vínculo a voltar aos fundos da minha mente mais uma
vez.
Ele inspira fundo quando sente meu vínculo relaxar, e esfrega
minhas costas num carinho demorado que quase me faz derreter em cima
dele. O tempo que passei sentada no campo da Resistência deixou cada
centímetro do meu corpo tenso e dolorido.
— Eca, devo estar fedendo. Como está aguentando ficar grudado em
mim? — murmuro, e ele dá de ombros.
— Talvez fosse ruim se eu mudasse de forma, mas por enquanto a
necessidade de ficar aqui com você está mais forte que o seu fedor. Além
disso, deixar seu vínculo contente é mais importante do que uma sujeirinha
e um suorzinho de nada.
Meu grunhido o faz rir baixinho, mas, quando tento me afastar, ele
só me segura mais apertado e volta a fazer carinho nas minhas costas até eu
ficar desmilinguida bem ali em cima dele. Posso até estar desesperada para
tomar um banho e por um sono decente em uma cama confortável, mas este
momentinho entre nós parece magia pura, e percebo o exato instante em
que meu vínculo começa a se alimentar da energia dele.
— Você está brilhando de novo. Merda, acho que eu também.
Minhas pálpebras parecem pesar um milhão de quilos quando
murmuro, com a voz arrastada de fatiga:
— Foi mal. Acho que estou roubando sua energia.
A resposta dele chega ao meu cérebro como um sonho, um sussurro,
mas cheia de significado mesmo assim.
— Pode pegar. Pegue o que quiser, só não me deixe de novo.
Não sei quanto tempo se passou, mas acordo assustada com dois
Vínculos muito ríspidos falando ao mesmo tempo com a gente:
— Que merda é essa?
— Vocês estão em uma área comum da casa. Cadê a porra da blusa
dela?
O peito de Gabe se move sob mim como se ele estivesse
gesticulando com o braço, mas meus olhos continuam pregados. Estou
exausta, cansada demais para lidar com qualquer um, e está tão quentinho e
confortável aqui.
Gabe sussurra:
— O vínculo dela apareceu de novo. Fiz o que tinha de ser feito,
assim como todos concordamos, para evitar que ela instaurasse um
completo reinado de terror sobre todos nesta casa que não sejam Vínculos.
Será que ela ainda está se recuperando, ou… será que é outra fase de ninho?
Ou algo parecido? Ela precisa de pele e cheiro, e o vínculo dela não quer
discussão.
Fazem silêncio por um momento, e Gryphon diz:
— Fez bem. Todos os outros já foram embora, só ficou uma equipe
reduzida de funcionários da casa, então podemos levá-la lá para cima sem
esbarrar em ninguém.
Ouço movimento de novo, e Gabe fala:
— Se você vai carregá-la, precisa tirar a camisa. Ela não está
interessada em roupas no momento.
Garoto esperto. Eu quero pele mesmo.
Como é surtado e piranhudo esse vínculo. Bufo de leve e Gabe fica
tenso, com medo da destruição total, então sua mão volta a acariciar minhas
costas. Ele é muito bom nesse lance de acalmar os nervos e de dar carinho.
Para ser sincera, sinto até vontade de ronronar.
— Eu a levo, Gabe. Vá na frente e se certifique que ninguém esteja
usando este corredor ou o elevador.
— Ela vai dormir no seu quarto? A Oli deixou bem claro que não ia
fazer isso.
Os braços de North envolvem meu corpo com firmeza quando ele
me ergue, e Gabe rola, se levanta e imediatamente pega o suéter para me
cobrir. Encaixo o rosto no pescoço de North e inspiro seu cheiro,
absorvendo tudo que posso dele também.
Só preciso de Atlas de volta, e aí quem sabe eu volte a ficar
completa.
— Se precisar, eu mato minha assistente, mas ninguém mais vai
entrar de supetão em nenhum cômodo desta casa daqui pra frente. Estamos
em lockdown por segurança, e se a Oleander quiser dormir em outro lugar,
pode ir quando acordar. Até lá, ela fica comigo.
Ah, eu gosto disso também. Gosto muito.
Abro os olhos quando ouço o barulho do chuveiro, e os braços de
North ficam tensos em volta do meu corpo quando ele se reajusta para
colocar uma mão sob a corrente de água, conferindo a temperatura.
Continuo com o suéter de Nox, mas minha calça foi removida, e meu rosto
está encostado em seu pescoço, de modo que estou envolta pelo seu cheiro
mais uma vez.
Pigarreio e tento não soar como uma criança envergonhada ao dizer:
— Estou acordada. Pode me colocar no chão agora.
Sem responder, ele entra de vez no box do banheiro e se senta no
banco de mármore embutido ao longo de uma das paredes, ainda me
segurando junto ao peito. Eu devia mesmo tirar o rosto da curva de seu
ombro e enfrentá-lo de uma vez, mas estamos juntos no chuveiro e tudo isso
acontecendo está me deixando um pouquinho desnorteada.
Principalmente porque, porra, eu não faço a menor ideia do que é
que está acontecendo.
Pigarreio de novo e ele, por fim, fala:
— Precisa beber alguma coisa? Quando foi que comeu pela última
vez? Seu vínculo não quis aceitar nada que oferecemos enquanto estava no
controle.
Puta merda.
Por quanto tempo meu vínculo ficou no controle, e que porra foi que
ele fez para deixar North todo carinhoso comigo a ponto de me dar banho?
— Hoje de manhã, ou… por quanto tempo eu dormi? Talvez tenha
sido ontem.
Ele assente e começa a puxar o suéter para tirá-lo do meu corpo.
— Hoje de manhã. Você só dormiu por uma hora. Achei que talvez
nem fosse acordar durante o banho.
Assim que ele passa o suéter pela minha cabeça, eu me toco de que
não estou usando nada por baixo da bendita peça. Acomodo-me mais ou
menos em seu colo para me soltar de seus braços e surtar um pouquinho.
Cubro os peitos com os braços e lhe dirijo um olhar muito indignado.
O rosto dele nem se altera e seu tom é gentil, mas também objetivo,
quando diz:
— Não há um único Vínculo seu que não tenha te visto nua da
cintura para cima, Oleander. Todos te abraçamos enquanto você era curada.
Dou um grunhido e escondo o rosto com as mãos, louca para
desmaiar de novo e esquecer desta conversa.
— Por acaso fiz mais alguma coisa que vai me matar de vergonha?
Meu vínculo tentou abusar de algum de vocês de novo, ou desta vez serei
poupada daquele horror específico?
— O que quer que você precise, é nosso dever e honra providenciar.
Não tenho palavras nem para tentar responder e, sendo bem sincera,
isso não me esclareceu nada.
— O que diabos aconteceu enquanto eu estava ausente? O que está
causando tudo isto? Até outro dia você não confiava em mim, e agora está
aí, cheio de palavras gentis e me oferecendo qualquer coisa que eu quiser…
estou confusa pra caralho. Qual de nós dois sofreu a lesão cerebral para eu
me preocupar direito?
North fica calmo demais diante desse gorfo verbal sem pé nem
cabeça. Tão calmo que nem expressa qualquer reação, exceto ajeitar as
mãos na minha cintura para me manter equilibrada. Quando me pega firme,
ele abre a boca e todos os meus segredos saem dali:
— Você foi sequestrada no hospital. Foi mantida em um campo da
Resistência por dois anos enquanto te torturavam por informações sobre seu
dom e seus Vínculos. Você não disse nada a eles. Escapou quando Silas
Davies se afastou e seu vínculo assumiu o controle para te tirar lá. Então
passou três anos fugindo para despistá-los de nós. Dormiu em centros de
reabilitação, quartos alugados e nas ruas quando mal passava de uma
criança porque não queria que eles tivessem acesso a nós… ou ao seu dom.
Foi isso que mudou.
Minha boca se abre e logo em seguida fecha de uma vez, porque aí
tem mais informações do que eu esperava. É bem mais do que conseguiria
só sabendo meu codinome na Resistência, mas suponho que tenha sido um
bom ponto de partida para descobrir o resto.
Minhas bochechas coram de novo, e desta vez ele me deixa sair de
seu colo, embora suas mãos continuem na minha cintura, segurando-me de
pé.
— Do jeito que você fala, parece tão heroico, mas eu basicamente
vivia apavorada, tentando fugir.
Ele me observa com o mesmo olhar taciturno que tem me dirigido
durante toda esta conversa.
— Você tinha dezesseis anos quando fugiu, é lógico que estava
apavorada. Como conseguiu aguentar tudo que fizeram com você sem
revelar nada é inconcebível para mim, mas isso foi bem mais do que o
“alguma coisa” que eu pedi antes disso acontecer.
Engulo com dificuldade, tentando não ficar envergonhada do meu
estado de quase nudez, e murmuro:
— Mas eu não te contei nada. Foi o Atlas que contou, e você
descobriu o resto a partir daí.
Ele dá de ombros, e então, sem dizer nada, seus dedos engancham
no elástico da minha calcinha e a deslizam pelas minhas pernas. A bobona
fica só parada ali, deixando que aconteça. Estou meio embasbacada com
essa pachorra de achar que tudo bem me despir e que eu vou só… aceitar de
boa.
Suponho que essa seja a atitude mais típica de North que vi desde
que voltei, e é por isso que meu cérebro continua meio perdido.
Ele se levanta e gesticula para o banco de mármore.
— Sente-se. O Davenport teve que tratar sua perna em etapas, e
ainda vai precisar de mais uma sessão antes de ficar totalmente curada.
Mais uma vez, só acato porque essa enxurrada de informações fez
pifar a partezinha petulante do meu cérebro que acordou junto comigo, e
agora estou no modo automático enquanto tudo se reconfigura ali dentro.
Então, com um foco meio catártico, fico vendo ele tirar o traje tático
e o jogar ao chão, ao lado do box. Ele não hesita ou faz pausas até se firmar
parado ali, nu na minha frente.
Obrigo meus olhos a continuarem firmes acima de sua cintura, uma
façanha da qual vou me orgulhar até estar morta e enterrada, considerando
que estou sentada e meus olhos, óbvio, ficam bem na altura do pinto dele.
Minha voz sumiu, por isso não consigo falar. Ou ele não está
percebendo que estou surtando diante de seu peitoral magnífico, ou está
escolhendo me deixar na pocinha em que virei (já que estou toda
derretidinha) ao me dar as costas e experimentar a temperatura da água de
novo. Então, North entra debaixo do chuveiro e se esfrega rapidamente.
Sangue e sujeira que eu não tinha notado antes turvam a água, e o
perfume forte e masculino de seu sabonete se espalha pelo ar até que ele
fique praticamente brilhando de tão limpo.
Aí ele se volta para mim e estende a mão.
Aceito, respiro fundo e deixo ele me levantar e me puxar para baixo
do delicioso jato de água quente. Como ele não faz nenhum comentário ou
som enquanto se põe a trabalhar, consigo deixá-lo me lavar sem ficar
constrangida demais.
North usa todos os seus próprios produtos, primeiro o sabonete e
depois massageia seu xampu em meu cabelo com dedos que, sério, devem
ser mágicos. Fico toda arrepiada e preciso engolir o mais genuíno gemido
de prazer.
Quando North pega o chuveirinho de mão para enxaguar o xampu,
volto a ficar com vergonha, embora agora seja mais pelo fato de meus
mamilos estarem rígidos e expondo exatamente o quanto estou gostando de
ser cuidada por ele neste momento. Tento tirar o chuveiro de sua mão.
— Minha perna vai aguentar. Eu dou conta do resto.
Ele é pelo menos trinta centímetros mais alto que eu e tira o negócio
do meu alcance com facilidade.
— Não, fique paradinha. Só fecha os olhos e aproveita.
Puta que pariu. Seus dedos deslizam sem dificuldade pelo meu
cabelo, massageando o couro cabeludo de novo enquanto enxagua o xampu,
e eu cedo. Continuo cansada, o que vou usar de desculpa mais tarde,
quando eu tiver que pagar o inevitável preço por tudo isso.
Mas será mesmo?
Com certeza, né? De jeito nenhum ouvir aquela historinha triste
sobre o que fizeram comigo seria suficiente para North sofrer uma mudança
tão drástica de comportamento… não é?
Quando meu cabelo fica limpo, North ensaboa meu corpo mais uma
vez, algo que tenho certeza de que não preciso, mas faço o que ele manda e
fico de olhos fechados o tempo todo. Quando desliga o chuveiro e abre a
porta para pegar uma toalha, fico onde fui deixada, com meus braços
envolvendo minha cintura, submersa no cheiro dele.
Sinto-me segura e amada pela primeira vez desde que meus pais
morreram.
Preciso respirar fundo e devagar várias vezes para não me debulhar
em lágrimas. Com certeza daria para fingir que é de exaustão ou alguma
reação de vínculo, mas acho que North já viu mais do que suficiente de
mim por hoje. Se ainda não o assustei, sei que chorar por causa da porra de
um banho assustaria.
Embora muito silenciosos, seus pés ainda fazem certo barulho nos
ladrilhos molhados, então, quando uma enorme e luxuosa toalha envolve
toda minha pequena forma em sua singela magnificência, não me
sobressalto e continuo de olhos fechados por mais um instante.
Aí os lábios dele roçam meu ombro exposto e permito que uma
única lágrima escape e escorra pela minha bochecha.
Não importa o que venha a acontecer entre nós: vou me lembrar
desta pequena gentileza com que ele me presenteou pelo resto da minha
vida. Este instante ficará guardado como o momento em que admito para
mim mesma o quanto desejo North Draven, o quanto anseio por sua
natureza dominante e assertiva, o quanto preciso dele, por mais que tome
decisões por mim sem perguntar o que eu quero.
Que, mesmo quando eu estava determinada a odiá-lo, ele encontrou
o caminho do meu coração, e não quero arrancá-lo de lá.
— Vire-se e apoie o peso na perna boa. Vou tirar você daqui.
Faço o que ele pede e permito que me erga contra seu peito. Há
outra toalha enrolada ao redor de sua cintura, mas, sem o penteado de
costume, vejo os cachos escuros iguais aos do irmão caindo sobre sua testa.
Os olhos dele sempre foram impressionantes, com aquele azul profundo em
contraste à pele bronzeada, mas tem algo no jeito com que está me olhando
esta noite que me deixa sem ar. É um perigo.
Estou mesmo prestes a me apaixonar por um Draven? E ainda por
cima por causa de um banho?
North me senta na bancada do banheiro e me seca com cuidado e em
silêncio. Suas mãos, reverentes e gentis, passeiam por toda a pele macia à
mostra. Observo enquanto ele cataloga cada um dos meus ferimentos, cada
hematoma e marca que Felix ainda não removeu, pois estava dedicado ao
devastador ferimento na coxa. Se eu não estivesse tão segura a respeito de
North agora, iria supor que a sede de sangue em seus olhos é dirigida a
mim.
Não é.
É um plano que ele está armando para ir atrás de qualquer
Favorecido que tenha ousado encostar em mim e continue respirando.
Ainda restam muitos da primeira vez que estive no Campo, mas só Davies
escapou desta vez.
Não quero mais pensar naquele homem. Então, obrigo meus olhos a
acompanharem as gotículas de água cascateando por seu peito, a minúscula
covinha em sua bochecha que nunca cheguei perto o bastante para notar, e
os músculos fortes da garganta, tensos enquanto ele me seca com tanto
cuidado. Ele é lindo pra cacete, sempre foi, mas é só agora que estou me
permitindo reparar.
O problema de olhar para todos esses detalhes é que isso desperta
meu vínculo e, minha nossa, como eu gostaria que ele me deitasse e me
comesse até minhas pernas pararem de funcionar. O cansaço que senti há
poucos instantes no chuveiro se esvai, e minha boceta lateja entre as pernas.
Tenho que engolir o gemido que sobe pela minha garganta; a sensação é de
que meu corpo está pegando fogo.
As narinas de North se alargam, ele derruba a toalha, apoia as mãos
em ambos os lados das minhas coxas e cuida para não me tocar quando se
debruça sobre mim, mas ainda assim ocupa cada centímetro do meu espaço
pessoal.
— Você não consegue impedir o Vínculo, né?
Meu cérebro leva um segundo para processar o que está ouvindo,
para captar o desejo e o sexo que vão se espalhando pelo ar ao nosso redor e
me dominando por completo e, quando enfim entendo, preciso fazer força
para engolir em seco de novo.
Ele não menciona que sabe que não é minha primeira vez, porque
tocar no assunto das atitudes de seu irmão provavelmente não seria uma boa
agora. Passo a língua pelos lábios e fico maravilhada quando seus olhos se
prendem no movimento e as pupilas dilatam e consomem suas írises,
ficando muito parecidos com os olhos de vácuo que temos em comum.
É inebriante ter esse poder sobre ele e, quando arqueio um pouco a
coluna, alongando-me no balcão, ele cerra os dentes e se segura no lugar.
Eu poderia ficar viciada nesta sensação.
— Consigo. Dói… mas consigo.
Quando nos encaramos, ele me prende com um olhar ardente que
captura minha atenção e não permite que eu me afaste.
— Me explica essa dor. É onde? E dói muito mesmo?
Puta. Merda.
— Depois. Dói quando eu gozo e impeço meu vínculo de sair
para… te reivindicar como meu Vinculado. Sinto que estou pegando fogo
de dentro para fora. Dura alguns minutos. É ruim, mas dá pra aguentar.
Um vinco se forma entre suas sobrancelhas e North se afasta de
mim; inclina-se para trás e me deixa com a impressão que está prestes a sair
e deixar eu me vestir sozinha. Xingo a mim mesma em silêncio, mas, então,
uma de suas mãos se ergue e seu dedo desliza sobre meu lábio inferior,
apertando a curva carnuda. Cativado, ele observa o movimento.
O que diz em seguida me pega de surpresa:
— Então se eu controlar seu orgasmo pelas próximas horas, você vai
conseguir aproveitar e só sentir dor no fim? Não é o ideal, mas eu topo.
Controlar orgasmos? Jesus Cristo. Será que eu quero? A sensação de
suas mãos ásperas em meu corpo, de seus lábios na minha pele macia, das
horas de prazer que nunca chegam ao ápice?
Espera aí… parece maravilhoso. Um pouquinho frustrante, mas se
esta não é a definição perfeita do nosso relacionamento até agora, mais nada
é. Quero muito dizer sim e passar a noite me perdendo nele, mas ainda há
uma questão.
Algo que me impede.
Minhas pernas não conseguem evitar e se abrem quando ele chega
perto. Suas pálpebras se fecham um pouco, e então ele está praticamente
ardendo em chamas por mim.
— Você quer? Para de pensar e responde.
— Claro que quero…
— Então tanto faz o Vínculo. Não vou mais esperar pra sentir seu
gosto. Se você está assim nervosa por causa da troca de poderes, é só trocar.
Não vou esperar.
Abro a boca para discutir, porque não é tão simples assim, mas
North me puxa pelas coxas até eu ficar pendurada entre meus cotovelos e os
ombros dele. Seus movimentos indicam que está prestes a me chupar, mas
ainda há uma última coisa idiota se passando pela minha cabeça e me
impedindo de aproveitar a ocasião.
— Espera! Só um minuto. Preciso de uma coisa antes, só uma.
Ele faz uma carranca e para no mesmo segundo, mas sem se mover
de onde está me segurando.
— O que quer que seja, tem certeza de que não pode esperar? Não
sou orgulhoso demais para implorar, Vínculo.
Que interessante.
Tento soar confiante:
— Seu vínculo é como o meu, né? Ele é… mais do que os outros.
Não só uma força dentro de você. É um ente vivo, certo?
A carranca aumenta em seu rosto e ele me dá o menor aceno
possível, um gesto minúsculo, e eu continuo como se estivesse tudo muito
bem, como se eu não estivesse quase surtando pelo que vou pedir:
— Me deixa falar com ele. Quero perguntar uma coisa, e aí a gente
pode… tipo, acho que eu quero completar o Vínculo depois. Direito.
Podemos guardar o controle de orgasmos para outra hora.
Acho que é a menção de um Vínculo completo que o faz concordar,
porque ele já está assentindo antes mesmo que eu termine de falar. Não é
um suborno, não exatamente, porque acho que vou completar esse Vínculo
hoje mesmo que ele recuse, mas preciso pelo menos tentar.
Com gentileza e tomando cuidado com minha coxa, ele me põe de
volta sobre a bancada, então dá um passo para trás, como se aumentar a
distância entre nós fosse impedir seu vínculo de me ferir ou de tentar se
aproximar.
Como se um único passo fosse o que bastasse para me manter a
salvo.
— Se ele tentar se vincular com você, me mate. Ou peça para o
Gryphon me nocautear. Ainda está conseguindo falar com ele, não é?
Faço uma careta.
— Acho que vou dar prioridade para te nocautear. Não há
necessidade de te matar por causa de um pouquinho de sexo, North.
Minha provocação o faz erguer uma sobrancelha, soltar o ar pela
boca e murmurar que essa é uma péssima ideia, mas, depois de um instante,
seus olhos se transformam em vácuos.
Todas as emoções e humanidade somem de seu rosto até não sobrar
nada além do vínculo ali.
Por mais que isso aconteça comigo vez ou outra, ainda acho
estranho de ver, mas é sexy, em especial o jeito como ele imediatamente se
concentra em mim e percorre cada centímetro de minha pele nua como se
estivesse me marcando como sua.
Estou adorando.
O vínculo dá um passo à frente; ergo uma mão para impedi-lo e fico
surpresa pelo movimento ser suficiente para que desacelere. Porra, quem
me dera o meu vínculo ser tão obediente.
— Um segundo! Preciso te pedir uma coisa, bem rapidinho.
Prometo.
Pareço uma imbecil, mas ele não nota, ou não se importa, e só
continua me encarando como se eu fosse fascinante pra caramba.
— As criaturas… elas vêm de você, não vêm?
Ele assente e ergue a mão com a palma para cima, prestes a invocá-
las, e, embora eu fosse adorar ver meu bebê August de novo, sei que isso
faria North ter um aneurisma, então me aproximo e cubro a palma de sua
mão com a minha.
O vínculo fica imóvel e inspira fundo antes de erguer minha mão e
dar mais uma boa e velhada cheirada na minha pele pós-banho. Será que,
assim como North, ele considera o xampu e o sabonete seus próprios
perfumes? Ou será que vai dar um chilique porque estou com o cheiro de
outro?
Continuo falando, na esperança de distraí-lo:
— Elas vão me machucar? North teme que sim, de perder o controle
delas perto de mim. Preciso saber se essa possibilidade existe mesmo. Se
não existir, quero ficar com o August… hum… o cachorrinho. O que parece
um Doberman. Sabe qual é, né? Claro que sabe.
Ele inspira meu cheiro profundamente de novo, e começo a pensar
que talvez esteja ficando chapado de mim ou algo assim, porque não está
fazendo menção de me soltar, mas então ele fala.
Sua voz é meio que apavorante.
Parece ser de outro mundo. Não há outra forma de descrevê-la. A
impressão é de estou conversando com algo que não pertence a este lugar.
Nem a este cômodo comigo, nem a este planeta, a esta linha do tempo, a
nada. Ele não pertence a este plano e, ainda assim, sinto um anseio no peito
que me diz que ele foi feito para ficar comigo. Não importa onde.
— Minha. Você é minha. Ninguém nunca mais vai machucá-la.
Nem eu, nem os outros, nem ninguém. As sombras não podem lhe fazer
mal, pois pertencem a você, assim como eu. Todos nós pertencemos.
Meu coração entra em um galope selvagem.
Olho dentro daqueles lindos abismos, tão escuros e belos quanto um
céu sem estrelas, e digo baixinho:
— Ele está me ouvindo? Está nos escutando? Às vezes consigo
ouvir. Não sempre.
O vínculo de North inclina a cabeça, parecendo pensativo.
— Quais segredos você quer que fiquem só entre nós?
Sorrio, porque este vínculo fala igualzinho ao meu, o que faz que
seja mais fácil conversar com ele.
— Nenhum. Só acho que North vai ficar chateado comigo por eu
perguntar o motivo dele ficar tão preocupado com você perto de mim. Se
você é tão disposto assim a me proteger, então… por que ele sente tanto
medo?
O vínculo se inclina adiante e, delicadamente, encosta o nariz no
meu, como se até neste momento estivesse com medo de me machucar.
— Por causa da mentira. Ele acredita na mentira porque a verdade é
dolorosa demais. Até mesmo agora, que ela começou a desmoronar, ele não
consegue desapegar.
Mentira?
Não sei se ele percebe que fiquei confusa ou simplesmente decide
seguir adiante, mas as palavras continuam saindo:
— Vínculos não podem machucar uns aos outros. Não podem matar
uns aos outros, seja por intenção ou acidente. Mas, se ele acreditar na
verdade, então tudo a que se agarrou durante todo esse tempo será
insignificante.
Franzo o cenho, mas então o vínculo volta a avançar e cola os lábios
nos meus. Estou beijando North pela primeira vez, só que não é ele quem
está me beijando. O vínculo está me empurrando para trás, para cima da
bancada, e escorregando a língua para dentro da minha boca, dominando-
me e deixando sua marca até na minha alma.
Começo a entrar em pânico, mas só porque não sei o que North vai
achar disto, porém ele se afasta de mim sem insistir mais.
Ele segura meu queixo e fala comigo uma última vez:
— Chega de fugir.

Assim que North volta ao controle, ele me segura, ergue-me


desesperado nos braços e vai depressa para o quarto como se pudesse deixar
seu vínculo e tudo que dissemos para trás. Por um segundo, acho que vai
me expulsar daqui por ter conversado com a entidade e descoberto um
segredo de família.
Um que ainda estou tentando compreender.
Mas, quando ele me deita na cama, seu corpo cobre o meu
imediatamente e, desta vez, quando seus lábios tocam os meus, sei que tudo
está vindo dele e não do controle de seu vínculo.
Eles beijam diferente.
É esquisito reparar nisso? Provável que sim. Enquanto o do vínculo
era uma posse sombria, o de North é uma força que me consome. Ele me
quer, disso não há dúvidas, mas quer tudo. É quase impossível não me
deixar levar, não me perder nele antes de sequer começarmos direito.
— O que ele disse? O que ele fez?
Pisco para North, e um sorriso lento se espalha no meu rosto.
— Ele está comprometido comigo. Não vai me machucar. E eu
acredito, North. Sei que nenhum de vocês vai me fazer mal.
Ele me observa com os olhos travados nos meus, e há um anseio ali
dentro que vejo com muita clareza, uma necessidade de que eu confie nele e
acredite no que é capaz.
Eu já sei disso.
North tira a toalha do meu corpo devagar, como se ainda estivesse
me dando tempo para mudar de ideia e interromper tudo. Não vou. Mesmo
com o surto iminente motivado pelo aumento na intensidade do meu poder,
sei que é disto que preciso agora.
As consequências que fiquem para depois.
Quando ele volta a me beijar e joga a toalha para fora da cama como
se tivesse medo dela saltar para cima do meu corpo e me cobrir mais uma
vez, eu esqueço de tudo, menos de seus lábios nos meus. Esqueço do
Vínculo e dos seres que vivem dentro de nós, que agora mesmo estão
tentando se encontrar. Esqueço que somos qualquer coisa além de humanos
que querem um ao outro.
Então o dom de North se junta à festa e estilhaça todas as chances
de fingirmos que somos qualquer coisa diferente de Vínculos Favorecidos.
As luzes do quarto estão acesas e a porta aberta revela que no
banheiro também, mas, quando o dom dispara para fora dele, tudo o que
resta ao nosso redor é escuridão. Fico achando que vou ser cercada de suas
criaturas, que vou encontrar August olhando e pedindo carinho, mas, em
vez disso, há apenas trevas.
É uma surpresa, mas das boas. Estou super de acordo com completar
o Vínculo nas sombras dele.
Seus olhos continuam azuis e o nível de controle que ele demonstra
mesmo numa situação assim é completamente insano para mim, mas parece
que esta é a pequena porção de seu dom que está disposto a dividir agora, e
eu aceito.
O puxão no meu tornozelo me surpreende.
Olho para as mãos de North primeiro, para ver se ele não está
pregando uma peça em mim, mas aí sinto a coisa deslizar pela minha
panturrilha, circular minha coxa e afastar ainda mais minhas pernas.
Antes que eu tenha a chance de ter uma síncope, mais sombras
surgem para me segurar, uma em cada membro, e me abrem para agraciar a
vista de North. Ele observa tudo, compenetrado, cercado por um ar de
macho convencido.
Tudo isso é coisa dele.
As mãos de névoa poderiam muito bem ser algemas, de tão firmes
que me prendem. Cordas vivas que se movem ao capricho de North. Eu
deveria ter imaginado que ele me surpreenderia na cama.
Quando se move para lamber e chupar meu peito, uma de suas mãos
vai para o meio de minhas pernas. Quero mexer os braços e afagar seu
cabelo, mas as gavinhas de névoa apertam meus pulsos e me puxam até
minhas costas arquearem para fora da cama. Os lábios de North se fecham
no meu mamilo e seus dentes mordiscam o bico sensível do meu seio.
É demais para mim.
Chega a ser absurdo ele ter pensado que eu iria aguentar sem
completar o Vínculo com um orgasmo, porque seus dedos mal relam no
meu clitóris e eu estremeço até a alma.
Então ele mexe a bendita mão.
— Ainda não. Vamos gozar juntos, Vínculo. Seja paciente.
A criança malcriada dentro de mim, a que estive me esforçando
tanto para esconder dele, quer chutar e xingar.
— Já fui paciente demais. Que idiotice você ter achado que eu ia
sobreviver a você controlando meus orgasmos. Me come ou me faz gozar
de outro jeito. Não ligo, mas vai logo.
Ele bufa, zombeteiro, e então ignora minhas exigências.
Simplesmente volta a explorar meu corpo muito devagar e todo metódico,
até catalogar cada centímetro naquele cérebro insuportável.
Talvez eu recorra a homicídio, por mais que seu vínculo tenha dito
que não dá.
A pior parte é que consigo sentir o pau dele, duro e quente
encostado na minha coxa, como uma prévia do que está por vir, mas ele
continua supersatisfeito em ir com calma.
Tento libertar meus pulsos, mas as sombras seguram mais firme,
deslizam e se enrolam nos meus antebraços também, limitando ainda mais
meus movimentos, punindo-me por tentar apressá-lo.
Acho que vou morrer se ele não for logo.
Finalmente, após passar a língua uma última vez pelo meu mamilo,
North se afasta do meu corpo e senta sobre os calcanhares entre minhas
pernas. Tento não pensar no quanto a imagem é obscena, no quanto, graças
às sombras, estou bem aberta para que ele me admire. Como se motivado
pelos meus pensamentos, outro fio de névoa aparece da escuridão e desliza
pelos lábios escorregadios da minha boceta. Fico um pouco tensa, meio
aterrorizada e meio torcendo para ela se enfiar dentro de mim. A adrenalina
que o momento providencia é como uma dose de heroína direto no cérebro,
e meu corpo todo vibra com o desejo acumulado.
Consigo sentir meus fluidos escorrendo na cama entre nós.
Suas narinas dilatam quando North segura o próprio pau,
masturbando-se sem pressa enquanto assiste sua sombra brincar comigo.
Sinto meu clitóris pulsar todas as vezes que a névoa rela nele, provocando-
me cruelmente; apenas um sopro de fricção, sem chegar perto de me dar o
que quero.
Choramingo, um som patético que vem do fundo da minha garganta,
e North enfim se aproxima, acrescentando seu pau a essa tortura. Há um aro
fino e preto sobre suas írises, que sei pertencer ao vínculo, assistindo-me
enquanto seu hospedeiro lentamente esfrega o pau no meu clitóris,
provocando-me com a pele quente que estou desesperada para sentir.
Descubro que também não sou orgulhosa demais para implorar.
Que coisa gloriosa de se compartilhar.
— Se você não me comer logo, meu vínculo vai sair. Já está quase.
Ele dá um sorrisinho presunçoso e sarra para a frente, ainda
provocando minhas partes mais sensíveis.
— Acho que nossos vínculos querem se encontrar, mas não vou
deixá-los viverem isso antes da gente. Você merece transar com cada um de
nós como si mesma antes do seu vínculo ter a vez dela.
Abaixo a mão, seguro aquele pau grosso e quente, e aperto um
pouco antes de erguer meu quadril. As sombras dele envolvem meus pulsos,
mas não me afastam; são apenas um lembrete de que só o estou tocando
porque ele está permitindo. Meu corpo fica todo arrepiado só de imaginá-
los me puxando de novo, afastando meus membros, deixando-me exposta
nesta cama e recomeçando aquela tortura do início.
Ele tem um jeito mandão e, nesse cenário, eu até que gosto disso.
— Então pare de dizer o que eu mereço e me dê de uma vez. Estou
quase te deixando aqui e indo atrás de alguém que me faça gozar.
A provocação o faz erguer as sobrancelhas, mas quando dou um
sorriso, adorando tudo isso, a sombra segurando meu pulso afasta minha
mão de seu corpo. Antes que eu tenha a chance de fazer bico, ele força o
quadril para frente e mete com força dentro de mim, sem delicadeza para
que eu vá me acostumando.
Acontece que eu nunca quis delicadeza.
Quero desespero, quero ir fundo. Quero saber que eles têm me
desejado tanto quanto eu ando precisando deles. Quero saber que o ilustre
conselheiro North Draven andou sonhando com a sensação da minha boceta
e que estar dentro dela agora é tudo que ele já quis na vida.
Quero ser o centro da porra do universo dele, a única coisa com a
qual se importa.
Ele parece ainda maior dentro de mim, tão grosso que quase dói
ficar esticada ao seu redor, mas só a ponto de me deixar ciente de que vou
senti-lo entre minhas pernas durante dias. Parece a coisa certa. Exatamente
como deveria ser entre nós dois.
Se ao menos eu pudesse fazê-lo sentir o mesmo.
As longas gavinhas de névoa envolvendo meu corpo me movem até
que eu envolva sua cintura com as pernas, fique os braços dele apoiados por
cima de mim e os meus bem abertos. Os olhos de North não param de se
mexer entre o prazer no meu rosto, meus lábios inchados, meus olhos
pesados e o jeito delicioso com que meus peitos balançam a cada metida.
Uma das sombras se arrasta pelo meu clitóris ao mover meu quadril,
ajeitando-me para que North me penetre ainda mais fundo, até parecer que
ele vai sair pela minha garganta. Porra, como é que sobrevivi sem isso?
Como consegui passar tanto tempo dormindo de conchinha com este
homem sem tê-lo dentro de mim?
Como pude ter medo disso?
Seus movimentos são constantes e profundos, seus quadris avançam
com segurança, e, a cada minuto, sinto meu corpo se elevando mais e mais.
Sequer tento controlar os choramingos de prazer, os sons de quase-dor que
estou sentindo com tanta estimulação.
Preciso de mais.
Forço meu pulso contra a sombra, com força suficiente para North
franzir a testa ao libertar minha mão. Antes que ele tenha a chance de fazer
alguma loucura, tipo parar, seguro sua nuca e arrasto seus lábios até os
meus, virando o quadril para encontrar suas estocadas enquanto levo as
pernas mais para cima em sua cintura.
Ele geme na minha boca, fecha bem os olhos e seus movimentos
ficam mais descontrolados e brutais. Enfio as unhas em sua pele, e as
sombras apertam tanto minhas coxas que sei que vou acordar marcada com
hematomas.
Quando o quadril dele colide com o meu uma última vez, colando-
nos um no outro enquanto finalmente explodimos, sou inundada de alívio e
euforia. Seus olhos mudam de cor, mas o êxtase em seu rosto diz que ele
continua no controle.
Meu próprio vínculo avança para tocar no dele, mas não com aquela
mesma reivindicação brutal que fez com Gryphon. A sensação é mais de
duas metades de uma alma se fundindo novamente.
Como se meu vínculo sempre soubesse de sua existência e tivesse
esperado para se sentir pleno mais uma vez. Como se as sombras dele
tivessem se tornado selvagens à minha espera e, agora que nos
reencontramos, talvez a tempestade no coração de North vá se acalmar.
Espero que ele possa, enfim, sentir alguma paz.
Ele se curva, cola a testa na minha e então ouço sua voz na cabeça:
ESPEREI A VIDA TODA POR VOCÊ, VINCULADINHA.

Minha boceta se contrai em volta do pau dele, porque não existe


nada tão excitante quanto uma confissão encharcada de sexo que vai direto
na consciência.
TAMBÉM ESPEREI POR VOCÊ. ESPEREI POR TODOS VOCÊS.

Sei que existe uma boa chance de Gryphon também estar ouvindo.
Ainda não descobri como bloquear meus pensamentos mais íntimos sem
obstruir completamente o acesso, e acho que ele teria um faniquito se eu
inventasse de fazer isso agora, mas ele nos dá privacidade por enquanto.
Não há nenhuma debandada de Vínculos batendo à porta, ninguém
tentando interromper este momento, o que me faz pensar que talvez todos
estivessem esperando isso acontecer. Ou para aplacar meu vínculo, ou
porque quando North revelou meus motivos, ficou bastante óbvio que ele
faria o que fosse preciso para se atar a mim quando eu voltasse para casa.
Agora só precisarei lidar com qualquer aumento de poder que eu
acabe recebendo e tentar não fritar nenhum pobre coitado que não mereça.
North se vira para deitar no lençol ao meu lado, sem ligar que nós
dois estejamos um pouquinho nojentos.
— Não vai acontecer. Pare de pensar assim. Se tem uma coisa da
qual tenho certeza, Oleander, é que você não vai fazer mal a ninguém. Você
não é um monstro.
Não sei bem se concordo. É prova do quanto as coisas mudaram
entre nós que eu responda sem titubear:
— Eu mal consigo lidar com o poder que já tenho. Se ficar mais
forte… não acho que vou conseguir controlar.
Ele passa a mão pela minha testa e afasta os fios prateados do meu
rosto.
— Vamos ver o que acontece quando você acordar de novo e, o que
quer que aconteça, enfrentaremos juntos. De qualquer jeito, você não vai
sair de casa por enquanto, não até termos certeza de que é seguro de novo.
Podemos manter apenas o mínimo de contato possível com gente de fora do
nosso Vínculo. A gente consegue, Oleander.
Ele parece tão certo do que está dizendo, parece confiar tanto em
mim… e eu quero acreditar. Quero, mas ainda não sei como. Acho que
tenho que ir dando passinhos de formiga.
O que os outros vão achar de estarmos Vinculados? Em especial se
eu disser que não me sinto à vontade para completar o Vínculo com mais
ninguém… pelo menos por enquanto.
Mais uma vez, encontro-me em uma confusão criada por mim
mesma.
Eu devia desmaiar de uma vez e perder os próximos três dias como
sei que vai acontecer, mas estou pilhada depois do que aconteceu. Viro de
lado para olhar para North e sorrio quando seus olhos acompanham cada
movimento que faço, mesmo na segurança sombria do quarto.
— Acho que preciso de outro banho depois dessa.
Ele coloca uma das mãos atrás da cabeça; seu peito fica se
contraindo de um jeito delicioso que parece uma sedução feita sob medida
para mim.
— Tudo o que você quiser, Vinculada. Melhor aproveitar enquanto
posso ficar à sua disposição.
Não quero pensar no mundo real, em toda morte e terror com que
teremos de lidar quando sairmos daqui, então mantenho a conversa
descontraída:
— Você quer mesmo me carregar no colo de novo? Porque minhas
pernas pararam de funcionar, e nem é por causa das lesões.
Ele dá um sorrisinho convencido e me ergue sem dizer mais nada.
Ficar olhando para as mesmas quatro paredes vários dias seguidos é o
suficiente para me deixar louco, ainda mais num cômodo tão sem graça e
mal decorado quanto o quarto de visitas em que os Draven me enfiaram
quando cheguei aqui. Tem azuis demais, em vários tons feios pra cacete, e a
cama é desconfortável pra porra. Se eu conseguir consertar as coisas com
Oli, vou comprar um colchão novo.
Não quero pensar no que acontecerá se não conseguir.
Não tem nada para fazer aqui além de olhar para as paredes, tarefas
de matérias que já estou repetindo, ou bater punheta pensando no Vínculo
perfeito que consegui estragar, embora tenha tentado evitar de todas as
formas possíveis.
Pode até ser errado, mas opto pela punheta.
Tem duas formas de ver a situação: ou sou tarado por fazer isso
pensando numa garota que, muito provavelmente, está achando que eu a traí
do jeito mais filho da puta possível, ou sou um Vínculo devoto que não
consegue mais ficar de pau duro de outro jeito. Ambas são verdadeiras. Já
cansei de tentar encontrar um sentido nessa história.
Eu a sinto assim que ela surge na minha cabeça.
Como é possível viver uma experiência extracorpórea que nem está
acontecendo? Sei lá, mas em um minuto estou sozinho com o pinto na mão,
e no seguinte consigo sentir o choque e a confusão de Oli, que não entende
onde diabos ela foi parar e o que está vendo. É como se eu a tivesse atraído
para cá com nada mais nada menos do que a força do meu desejo.
Não que eu precisasse dessa ajudinha, mas o fulgor de tesão que
sinto emanar dela faz muitíssimo bem para o meu ego.
COMO É QUE EU VIM PARAR AQUI?

Sorrio, torcendo para ela conseguir sentir o meu sorriso, embora não
possa vê-lo.
ACHO QUE VOCÊ GANHOU UM PODERZINHO EXTRA, DOÇURA. NÃO SEI COMO
ISSO ACONTECEU, MAS QUE BOM QUE ESTÁ AQUI.

Sinto o anseio pulsar no meu peito, sinal de que ela anda com tanta
saudade de mim quanto eu dela, e isso me deixa furioso.
SE VOCÊ PRECISA DE MIM, EU DERRUBO ESSA PORTA E VOU TE ENCONTRAR.
ESTOU ME COMPORTANDO PORQUE NÃO QUERIA TE ARRASTAR PARA UMA CONFUSÃO, MAS
SE PRECISA DE MIM, GATA, VOU TE ENCONTRAR AGORA.

Ela se ilumina dentro do meu peito, envaidecendo-se com o quanto


é necessária para mim, e me manda:
ESTÁ TUDO BEM. PASSO A MAIOR PARTE DO TEMPO DORMINDO. VOU TE
ENCONTRAR QUANDO CONSEGUIR FICAR ACORDADA… QUER DIZER, SE CONSEGUIR SAIR
DA SUA CABEÇA.

O sorriso fica mais presunçoso.


BOM, JÁ QUE ESTÁ AQUI, ACHO MELHOR EU TERMINAR O QUE COMECEI,
DOÇURA.

Ela finge ficar indignada, o que me faz gargalhar como um doido,


mas então ela move minha mão, masturbando meu pau por mim, e estou
pouco me fodendo para a parte mecânica da coisa. Não me importa que a
mão seja minha; quase gozo só de saber que ela está participando.
NÃO SE ATREVA A ME ENVERGONHAR FAZENDO EU GOZAR RÁPIDO DEMAIS,
DOÇURA.
Caralho, a risadinha com que ela responde é perfeita, e minha
vontade é de guardá-la na memória para sempre.
NÃO GOSTO QUE ME FAÇAM ESPERAR, VÍNCULO. SE QUER ME MOSTRAR COMO
PODE SER GOSTOSO COM VOCÊ, ANDA LOGO.
Quem teria imaginado que uma punheta pudesse ser tão erótica, mas
as emoções e partículas de desejo que recebo dela só jogam mais lenha na
fogueira enquanto meu punho desliza para cima e para baixo no meu pau.
Consigo sentir que ela está me testando, vendo o que estou fazendo e a
forma com que me movimento como se estivesse tomando notas para outro
momento. Porra, tomara que esteja. Preciso que ela venha me encontrar e
assuma o controle. Porra, esta pode até ser a melhor experiência da minha
vida, mas eu preferiria um milhão de vezes se fosse de verdade.
Eu me controlo apenas por tempo suficiente para ela não duvidar
das minhas capacidades, nada além disso. A presença dela me observa
quando jorro tudo por cima da minha mão, grunhindo e tentando conter um
rosnado que faria Gabe socar a parede.
Essa porra foi o melhor orgasmo da minha vida, um gostinho do que
terei se conseguir ficar com minha Vínculo um dia.
Assim que o tesão se dissipa, sinto a hesitação e o constrangimento
surgirem. Ela está aqui, dentro da cabeça do possível traidor, sem que
ninguém mais na casa saiba.
Eu me apresso a tranquilizá-la.
VOCÊ PODE VER QUALQUER COISA AQUI. O QUER QUE PRECISE PARA ACREDITAR
EM MIM, PODE OLHAR.

Ela hesita, e sinto meu coração se partir um pouco. Não julgo. Não a
julgo por porra nenhuma, mas, cacete, estou tão ávido para que Oli acredite
em mim que a hipótese de ela não querer perscrutar as minhas memórias
acaba comigo.
Esforçando-me para esconder o desespero na voz, tento de novo:
NÃO QUERO ESCONDER NADA DA MINHA VIDA DE VOCÊ. TEM MUITA COISA FEIA,
MUITA DESGRAÇA, E MUITOS MOTIVOS PARA VERGONHA, MAS EU NUNCA ESCONDERIA
NADA DE VOCÊ, NEM MESMO SE ACHASSE QUE MUDARIA A OPINIÃO QUE TEM DE MIM.
PREFIRO TE VER ODIANDO ESSAS PARTES DE MIM, MAS SEM DUVIDAR DO QUE EU DIGO,
DO QUE CONTINUAR VIVENDO COM ESSA BARREIRA ENTRE A GENTE. NÃO TE TER E SABER
QUE VOCÊ NÃO CONFIA EM MIM É INCONCEBÍVEL PARA MIM, VÍNCULO. INCONCEBÍVEL.

Ela fica ainda mais quieta no meu peito, e eu a deixo em paz. Por
mais que queira, não posso obrigá-la, porque se a decisão não for toda dela,
qual o sentido?
Pego a toalha no chão ao lado da cama e me limpo. Levanto e vou
até o banheiro, evitando os espelhos porque não estou a fim de olhar o rosto
do meu pai neste instante. É só por sua causa que acabei metido nessa
confusão, e o fato de que eu poderia passar por um gêmeo só um pouquinho
mais novo dele está me dando nos nervos.
Oli continua em silêncio durante todo o banho; sua mente me faz
companhia apenas enquanto me lavo. Depois de me secar e vestir em uma
cueca boxer limpa, coloco um filme, algo bem nada a ver que já assisti mil
vezes, e volto a deitar na cama.
Quando me acomodo, fica claro que Oli quer dizer alguma coisa,
mas ela continua quieta durante o filme todo. Não quero adormecer e perder
sua companhia, mas há algo tão reconfortante em sua presença que, aos
poucos, a fadiga de inúmeras noites mal dormidas vai me dominando.
Logo antes de eu apagar, ela finalmente fala:
NÃO QUERO OLHAR. QUERO QUE VOCÊ MESMO ME CONTE. QUERO OUVIR DE
VOCÊ.
A cama está quentinha demais para querer levantar, mas sei de imediato que
voltei para meu próprio corpo. Não quero abrir os olhos e existir hoje;
embora cada osso meu doa, sinto um peso estranhamente ameno nas costas.
Levo um segundo para perceber que Brutus veio deitar comigo.
O que significa que North tanto já acordou, como não está aqui,
porque ontem à noite ele foi irredutível em sua regra de “nada de cãezinhos
na cama”, por mais que eu tenha insistido.
Mesmo que meus sentidos estejam dormentes graças ao sono
profundo, sei que alguns dos meus Vínculos estão aqui comigo. Não sei
dizer quais, o que é frustrante, mas já vale de alguma coisa.
Escuto um barulho ao lado, e então Gryphon murmura no meu
ouvido:
— Para de cara feia, Vinculada. Assim eu fico querendo matar
alguma coisa por você.
Abro só um olho em sua direção.
— Que horas são? Você tem comida aí?
Ele dá um sorrisinho e seus olhos brilham como se me achasse
extremamente engraçadinha. Ouço mais movimentos do outro lado do
quarto, e North começa a solicitar comida da cozinha. Minha barriga ronca
só de ouvir a lista de coisas que ele pede.
Porra, quero ovos mexidos e waffles, bacon extra e algumas
panquecas de batata. E café, uma garrafa cheia, com muito creme e açúcar.
Começo a me levantar e percebo que fui dormir nua depois de North
ter me comido no chuveiro. Semicerro os olhos pelo quarto e, muito embora
eu nem ligue de ficar pelada na frente dos meus dois Vinculados ao mesmo
tempo, Gabe está sentado em uma das poltronas luxuosas com o celular em
mãos, e Nox está discutindo com North a respeito de plantas de prédios
sobre uma escrivaninha que apareceu do nada enquanto eu dormia.
Agarro o edredom igual a uma donzela escandalizada, só para
perceber que, mais uma vez, estou usando um pijama de seda com riscas de
giz. North Draven é um cuzão sorrateiro que se sente à vontade para tomar
umas liberdades bem esquisitas quando estou inconsciente.
Gryphon começa a rir que nem um babaca, e eu jogo meu
travesseiro na cara dele enquanto saio marchando até o banheiro para fazer
xixi. Ninguém reclama de eu estar andando, mas todos me observam com
atenção, até mesmo Nox, embora com a cara de nojo de sempre.
Quando lavo mãos e o rosto, dou uma boa olhada no espelho e
confiro as cores e a aparência geral da minha pele e cabelo. O prata está
ainda mais claro; juro que a ausência de cor está piorando. Com muita
delicadeza, vejo como meu vínculo vai, só para saber como estamos indo, e,
droga, embora esteja todo sentimental pela falta de Gabe e Nox, não parece
ter ganhado nenhum truque bizarro novo ou picos de poder.
Não é nada, mas por enquanto já fico agradecida.
Vasculho as gavetas até encontrar uma cheia de tralhas bem
específicas para mulheres. Fico orgulhosa de mim mesma quando continuo
calma e mando um breve:
DE QUEM SÃO ESSAS COISAS?
A resposta toda engraçadinha vem na mesma hora:
SUAS. SE QUISER ALGO QUE NÃO TENHA AÍ, É SÓ DIZER.
Caramba, não vou ficar toda derretida pelo mínimo de gentileza.
É SUFICIENTE. OBRIGADA.
Penteio o cabelo para não continuar com cara de quem quase morreu
de tanto dar para o North e seus tentáculos de névoas, e faço um rabo de
cavalo no alto da cabeça. Já fico ofegante depois de tão pouco movimento
e, quando volto para o quarto, ando em linha reta até a cama. Gryphon me
ajuda, ajeitando a coberta sobre o meu corpo e enxotando o filhotinho até
eu ficar bem acomodada. Surpreendo-me por Brutus permitir, mas, no
instante em que Gryphon se afasta, ele volta para cima de mim.
Gryphon me entrega um copo d’água e reclama:
— Vou mandar ele embora agora mesmo se estiver pesado demais.
O Davenport vem mais tarde olhar sua perna e terminar o tratamento. Nada
de se machucar tudo de novo só porque você quer mimar a criatura.
Dou de ombros e olho para Gabe, do outro lado do quarto. Ele está
usando um suéter que quero roubar e, quando ergue o rosto e vê que estou
encarando, sorri para mim.
Gryphon balança a mão na frente do meu rosto bem no momento em
que uma batida na porta nos interrompe, e eu retruco:
— Ele é feito de sombras e névoa, não pesa nada. O Brutus só está
preocupado comigo, assim como você. Deixa ele em paz.
Ele me olha feio enquanto North abre a porta, e então sua atenção
muda de foco.
A comida tem um cheiro incrível, mas me sinto mal pela funcionária
que traz os pratos. Cada um dos meus Vínculos aqui se vira para observar
todos os seus movimentos. Após dispor tudo sobre a mesa para North, ela
se vira em direção à porta, mas é interrompida por Gryphon.
Abro a boca, pronta para defender a coitada, quando ele diz:
— Alguém além de você e do chef mexeram em qualquer parte
desta comida?
Ela responde de cara:
— Não, senhor.
— Você fez alguma coisa com esta comida, acrescentou ou despejou
qualquer coisa nela?
— Não, senhor. Ninguém mexeu ou adulterou qualquer nada.
Caramba, meu Deus. Agora vai ser assim? Vamos ficar
questionando tudo, até dentro desta droga de mansão?
Quando a mulher sai e a porta se fecha, Gryphon responde meus
pensamentos bem particulares:
— Isso mesmo. É exatamente assim que fazemos as coisas agora.
Ninguém entra ou sai sem falar comigo antes. Ninguém além dos seus
Vínculos e de amigos específicos tem permissão de ficar com você.
Ninguém além do chef pode mexer na sua comida.
Não tenho nada a dizer, além de:
— Sai da minha cabeça.
— Para de pensar tão alto.
Retruco:
— Bom, se eu soubesse como é que estou fazendo isso, eu pararia.
Compra uns protetores de ouvido, sei lá!
Não me dou a trabalho de tentar levantar e pegar o que quero comer.
North chega lá antes e escolhe por mim. Ele está olhando feio para tudo,
como se não tivesse tanta certeza de que o interrogatório de Gryphon foi
suficiente. É doidice, mas o gesto faz meu coração palpitar todo esquisito
mesmo assim.
Eu me forço a sentar com as costas apoiadas nos travesseiros e,
depois que North me entrega o prato, ele serve uma caneca de café. Tem
duas ali, então uma deve ser para mim, né? Ele não me negaria isso depois
de eu ter tomado aquele copão gigante de água todinho.
Graças aos céus, North me entrega a porra do café e depois volta até
onde Nox continua olhando feio para os papeis. Eles recomeçam a mesma
discussão de antes sobre brechas de segurança e de como garantir a
sobrevivência dos ocupantes. Não faz muito sentido para mim, porque fico
com a impressão que estão falando de um abrigo antibomba e isso não
parece o tipo de coisa que é nossa prioridade agora.
Gryphon arrasta uma poltrona para se sentar perto de mim com seu
próprio prato, e volto a fazer as perguntas mais importantes:
— Por que vamos ficar aqui se temos tanta certeza de que vão atacar
de novo? Não podemos… evacuar? Nossa, e como seria isso?
North assente e troca um olhar com Nox.
— Estamos examinando a possibilidade, mas não podemos
simplesmente abandonar as famílias mais humildes aqui. Além disso,
realocar uma quantidade dessas de Favorecidos de uma vez só envolve
muito trabalho, embora não fosse a primeira vez. Podemos fazer de novo se
as coisas continuarem piorando.
Isso já aconteceu antes? Eu não sabia, mas tem muito que não sei a
respeito dessa comunidade, então só assinto e dou mais uma mordidinha na
minha torrada, evitando a carranca de Gryphon, já que é óbvio que ele está
bem rabugento hoje. E esse mau-humor não tem nada a ver comigo, porque
eu dormi por… espera aí.
— Quanto tempo eu dormi dessa vez?
North responde sem erguer os olhos da papelada:
— Quatorze horas. Não estávamos esperando você acordar ainda.
Parece que está conseguindo lidar melhor com o uso do poder.
Hum.
Seria ótimo não precisar usar meu dom de novo tão cedo, mas acho
que é bom saber que os cochilos de três dias talvez sejam coisa do passado.
No instante em que seu prato está limpo, Gryphon pega o meu, coloca mais
frutas e se inclina para me dar um beijo forte na boca.
ESTAREI NA ACADEMIA TREINANDO COM ALGUNS CARAS DA EQUIPE. CHAMA SE
PRECISAR DE MIM.

Não sei porque ele está falando só comigo, mas assinto e o deixo me
dar um último selinho antes de sair pela porta em silêncio. Não sei qual o
problema dele; tomara que desconte em algum dos caras lá embaixo.
Belisco as frutas e depois coloco o prato vazio na mesa de cabeceira
antes de voltar ao aconchego dos travesseiros para aproveitar o resto do
meu café cercada pelos meus Vínculos. Gabe termina de comer, recolhe as
louças, coloca tudo de volta na bandeja e deixa no corredor para alguém
recolher.
North verifica o celular e se aproxima de mim, beijando meus lábios
com firmeza na frente de todo mundo. Assim… Gryphon também me
beijou, mas ainda acho bizarro pra cacete quando se trata de North.
— Estaremos lá embaixo. Fique aqui ou no seu quarto. Se quiser
alguma coisa, me chame. Não saia perambulando por aí.
Ele faz cara de quem não está para brincadeira quando ergo uma
sobrancelha, e eu reviro os olhos.
— Tá bom, mas você não pode me deixar presa aqui para sempre.
Depois que minha saúde estiver perfeita de novo, vou ficar entediada e virar
um pesadelo.
Nox bufa, dirigindo-se à porta.
— Isso você já é, Venenosa.
North semicerra os olhos para as costas dele, e eu seguro seu queixo
para virar seu rosto de volta para o meu.
— Não se meta. Posso lutar minhas próprias batalhas contra ele.
Seu olhar deixa bem claro que ele jamais ficaria de fora disso, e
então ele se levanta e vai atrás de Nox. Tenho certeza de que a descida deles
no elevador será adorável, mas que seja.
Tenho Gabe todinho para mim.
Ele me dá um sorrisinho e resmunga:
— Graças a Deus, por um segundo achei que acabaria no meio de
uma guerra entre os Draven. Eu preferiria ir para academia levar uma surra
do Gryph.
Dou risadinha.
— Vem cá, deita comigo. Já que vou ficar presa aqui, que pelo
menos isso me renda uma conchinha.
Gabe me observa por um instante, então sobe na cama com cuidado,
mexendo-se como quem espera que eu me desfaça em pedaços embaixo
dele ou algo assim, e quando eu olho feio e o puxo para cima de mim, ele
resmunga. Com minhas pernas abertas de cada lado do seu corpo e sua
cabeça aninhada gentilmente na minha barriga, ele mal está apoiado em
mim. O pouco peso é mais reconfortante do que… sufocante.
Inspiro fundo e devagar e me sinto plena mais uma vez.
— Chega de fugir — diz Gabe, em um tom que quase soa
emburrado, e eu entrelaço os dedos em seu cabelo.
— Foi sem querer querendo. Eu sabia para onde a Kyrie estava indo
e não podia deixá-la à mercê daquilo. Eu sobrevivi. Estou bem e o Kieran
vai se recuperar. Me sinto culpada por ter arrastado ele junto, mas vamos
todos ficar bem porque eu fui lá.
Gabe bufa, espalma a mão na lateral da minha coxa e faz um
carinho gentil por cima do edredom, como se imaginasse todas as lesões
que desapareceram graças aos cuidados de Felix. Ainda sinto uma dor leve
ali, nada comparada à dor desnorteante à que sucumbi quando deixei meu
vínculo assumir e executar aquela vingança sangrenta nos campos.
Os dedos de Gabe acariciam o edredom com gentileza.
— Black vai desejar não ter levantado naquela manhã depois que o
Gryphon e o North acabarem com ele. Os dois estão planejando umas
punições bem criativas.
Ai, meu santinho.

Gabe adormece sobre mim e passamos a maior parte da tarde


cochilando com Brutus no meio, depois que ele aos pouquinhos foi
empurrando Gabe para longe até tomar seu lugar. Durmo e acordo várias
vezes, vendo as sombras se moverem pelo quarto enquanto deixamos o dia
passar à toa. Em algum momento no fim da tarde, caio em um sono bem
mais profundo, e quando acordo vejo que Gabe não está mais aqui.
North está sentado à escrivaninha, lendo mais daquela papelada
interminável, com um copo de uísque à sua frente.
— Tem um sanduíche na mesa de cabeceira. Se estiver com fome de
comida mesmo, peço para o chef preparar.
Eu me espreguiço e faço força para sentar, empurrando-me para
cima até me afogar de novo no mar de travesseiros. Nunca vi um homem
que gostasse de dormir com centenas de travesseiros que nem uma princesa,
mas não existe ninguém igual a North neste mundo.
— Pode ser o sanduíche. Estou me sentindo péssima. Cochilar
parece que só piora.
Ele me olha de cenho franzido.
— Precisa do Felix agora? Ele veio te ver mais cedo, mas te deixou
quieta quando viu que estava dormindo. Disse que dormir era mais
importante.
Nego com a cabeça e pego o prato.
— Não, é que estou me sentindo uma preguiçosa, deitada sem fazer
nada enquanto todos estão ocupados… fazendo coisas para nos manter em
segurança. Eu sou um fardo, que ódio.
Ele bufa para mim, toma o resto do uísque no copo e mexe em mais
alguns papeis.
— Sabe qual a média de sobreviventes que resgatamos dos campos?
Meneio a cabeça enquanto dou outra mordida no sanduíche. É de
queijo e presunto, com a quantidade perfeita de maionese, tão bom que me
dá vontade de casar com o chef.
North ignora o orgasmo que o sanduíche está causando em mim e
prossegue:
— Se conseguimos entrar nos campos nas primeiras vinte e quatro
horas, é 22%. Depois de quarenta e oito horas, esse número cai para 15.
Depois de quatro dias, como foi nesse caso em que você foi atrás deles, 3%.
Sabe quantos sobreviventes você trouxe pra casa? Porque sim, foi tudo
você, a gente só chegou pra dar carona de volta.
A porta se abre e Gryphon entra, sem se incomodar de bater. Está
com roupas de treino, o traje que cobre tudo que ele costuma usar quando
pratica com sua equipe e não o shortinho minúsculo que reserva para mim.
Ele nem titubeia ouvindo o monólogo de North; vem direto me dar uma
olhada e se senta ao meu lado.
— Trinta e três pessoas foram levadas. Trinta e três voltaram para
casa. Só uma estava ferida e dizem os relatórios que, graças à criatura do
Nox protegendo Kyrie e resultando nos chuveiros interditados, uma única
mulher foi abusada durante esse período. Isso nunca aconteceu antes,
Oleander. Você é o completo oposto de um fardo.
Gryphon se vira para me olhar sério, e eu enfio o resto do sanduíche
na boca para evitar falar disso. Há muitas coisas que preciso dizer, e ficar
debatendo contra minha inutilidade não é uma delas.
Ele se vira e troca um olhar com North que me parece encrenca.
Finalmente me dou conta de que não sei lidar com relacionamentos.
Mal sei agir como Vínculo Central, e estar aqui com meus dois Vinculados,
dois machos muitíssimo alfas juntos, está sendo demais para o coitado do
meu cérebro. Foi tranquilo de manhã, com Nox e Gabe aqui, porque os dois
serviram de anteparo, impedindo esse lance todo de acontecer.
Agora estou à mercê dos dois, e já sei que ambos estão mais do que
satisfeitos de se unirem contra mim.
Contudo, tenho que no mínimo tentar, porque se eu fechar os olhos e
pensar com força o suficiente, ainda consigo ouvir os barulhos de Kieran
quebrando o próprio tornozelo para salvar minha vida e as vidas dos meus
Vínculos.
Engulo em seco, pigarreio e pleiteio pela vida de Black.
— Por favor… não culpem Kieran por tudo que aconteceu. Eu que
fui burra de achar que o Franklin não estaria lá e que a gente entraria e
sairia rapidinho. Não devia ter sido tão ingênua.
Gryphon semicerra os olhos e me encara de um jeito que não estou
acostumada a ver. Dou uma leve engasgada, em especial porque parece que
estou prestes a receber o mesmo tratamento que seu braço-direito vai
ganhar. Eu meio que estava torcendo para o ferimento na coxa me tirar dos
treinos na madrugada por pelo menos uma semana. Duas seria melhor. Pelo
visto ele continua de mau humor, o que não me parece muito bom.
Para North eu nem olho.
Aposto que, nessa merda de história, ele é menos sensato do que
Gryphon, então quanto mais tempo eu puder deixá-lo de fora dessa, melhor.
Gryphon retruca:
— Errado. O North nunca foi sensato a seu respeito. Agora que
vocês estão Vinculados, ele provavelmente vai voltar a ser o bom
conselheiro.
Fico corada, mas indignada, e solto o verbo:
— Sai da minha cabeça! Se você não parar com isso, vou começar a
te evitar!
Ele se debruça para frente na poltrona e, num tom baixo e
ameaçador, diz:
— Tenta. Porra, estou quase colocando um chip em você de novo só
para garantir que não despareça mais.
Faço um ruído agudo muito vergonhoso de indignação e retruco:
— Eu fui atrás da sua irmã. Não fugi. Fui atrás de alguém que você
ama porque não conseguia nem pensar em te ver perdendo ela. Não vem
ficar agindo como se eu fosse um fardo quando tudo o que eu fiz foi por
você. Não me importo com aquele homem ou com o que ele fez…
Ele rosna para me interromper:
— Você nem consegue dizer o nome dele! Agora dá para ver. Estou
vendo os sinais do trauma na sua mente…
— Então sai. Da. Porra. Da. Minha. Cabeça. Não quero você aqui
dentro. Eu mereço um pouco de privacidade!
Ele me dá um sorrisinho torto, mas antes que possa abrir a boca e
me magoar um pouco mais, um corpo sólido se interpõe no espacinho
apertado entre a cama e a poltrona, e North esbraveja:
— Ela ainda está se recuperando. Vá embora antes que diga algo de
que vai se arrepender. Sai daqui. Vai.
Gryphon se retira sem dizer mais nada, fechando a porta com um
pouco mais de força do que necessário, e o barulho me faz revirar os olhos.
North não se mexe, só fica parado ali, de costas para mim e com as pernas
encostadas na cama, como se estivesse esperando Gryphon voltar pisando
fundo para um segundo round.
Eu me sinto uma baita cuzona.
— Desculpa por ter pensado que você não seria razoável.
Ele descarta isso com um resmungo.
— Eu mereço. Falei ao seu vínculo que vou recuperar sua confiança,
e agora estou dizendo a você também. Não sou iludido; sei que
completarmos o Vínculo não foi uma cura mágica para nossos problemas e
que vai levar um tempo para você confiar em mim. O Gryphon está… se
sentindo culpado. Por isso está exagerando e vai se arrepender mais tarde.
Eu estava tentando evitar que ele cavasse a própria cova.
Franzo o cenho e volto a me recostar na cama, ainda sentindo a
exaustão acumulada no meu corpo, embora eu mal tenha passado tempo
acordada. Talvez, ao contrário do que torci para que fosse verdade, ainda
não superei a fase de dormir eternamente.
— E que motivo ele tem para se sentir culpado? Nossa, ele tem
complexo de herói, não tem? Típico.
North enrola as mangas da camisa com cuidado nos braços, então
começa a abrir os botões de cima, exibindo a pele bronzeada e macia. Ele é
um sem-vergonha, e graças a Deus que Gryphon não está mais aqui para
ouvir os pensamentos depravados na minha mente, porque já estou prestes a
abrir as pernas para ele na cama mais uma vez.
— Gryphon se sente culpado porque foi a primeira vez que se
deparou com a escolha entre sua família e sua Vinculada. Se tivesse que
escolher entre salvar uma de vocês… ele nunca teve que pensar nisso antes
e, como a maioria dos homens nesse tipo de posição, sempre presumiu que
conseguiria impedir que essa decisão sequer fosse necessária. Você ter ido
atrás da Kyrie o deixou ciente de que ele prefere te ter em segurança aqui.
Não estava tão terrível até ela contar que o Brutus a salvou no chuveiro. Se
você não estivesse lá, ela teria sido estuprada.
Isso corta um pouco do barato dos meus pensamentos depravados.
— Mas que idiotice. Por que se preocupar com o que poderia ter
acontecido e com cenários imaginários quando só uma coisa aconteceu de
verdade? Estamos bem. A Kyrie está sã e salva, e eu só… preciso descansar
mais um pouquinho, mas estou bem.
Ele gesticula para minha perna e ergue uma sobrancelha.
— Você foi gravemente ferida. Chegou muito mais perto da morte
do que qualquer um de nós jamais quis imaginar.
Reviro os olhos. Homens. Vínculos. Homens Vinculados entrando
em parafuso. A lista continua. Sinceramente, nunca mais vou viver
tranquila, e isso não tem nada a ver com a Resistência me perseguindo e
tudo a ver com os cinco homens de sangue quente fadados a ficarem presos
a mim pelo resto de nossas vidas.
North dá a volta na cama para enfiar a papelada em uma pasta e
apagar a luz daquele lado do cômodo.
— Precisa de mais alguma coisa? Está com fome? Sede? Se quiser
outro banho, posso ser persuadido.
Não consigo lidar com o North Draven sendo cuidadoso e atencioso.
Com o North sendo dominante e mandão, claro. O North sendo cuzão? Não
é meu preferido, mas já sei como tratá-lo.
Este aqui?
Nananinanão.
Claro que eu toparia outro banho com ele e uma terceira rodada
brincando com suas sombras, mas a névoa ainda não se dissipou da minha
cabeça.
— Acho que preciso descansar mais, mas já estou entediada de ficar
deitada sem fazer nada. Bem que poderia ter uma TV aqui para eu me
distrair assistindo alguma bobeira, né?
Ele dá uma olhada para a cama, onde estou esparramada de forma
bastante dramática, então se aproxima e aperta um botão embaixo do tampo
de mármore da mesinha de cabeceira superluxuosa.
A extremidade da cama se abre e a porra de uma TV se ergue
devagar, do nada.
— Quanta ostentação. Sério mesmo, isso é ridículo! Por que não
colocar na parede como nos outros quartos?
Ele dá de ombros e começa a tirar o terno de forma muito
meticulosa, o que me distrai com sucesso da minha indignação.
— Estragaria o ambiente. Além disso, é engraçado te ver surtando
com as pequenas coisas.
Adormeço assistindo ao documentário mais chato do mundo porque North
se recusa a ver reality shows ruins comigo. Na verdade, só sugeri para testar
até onde eu conseguiria me aproveitar de tanta gentileza. Ele retaliou me
fazendo assistir um idoso falando sem parar sobre desmatamento. Foi
brutal.
Acordo horas depois em uma escuridão total, e a princípio acho que
saltei para a mente de outro Vínculo meu sem querer. Levo um minuto para
perceber que não estou sonhando, que há outro corpo quente colado nas
minhas costas, passeando as mãos por toda a minha silhueta e esfregando o
pau duro na minha bunda.
É estranho que eu já saiba de cara qual dos Vinculados é? Porque
este definitivamente é Gryphon. Os movimentos dele são tão parecidos com
os de North quanto o dia é da noite. Meu cérebro demora um pouco mais do
que é de costume para processar o que está acontecendo, e então, em vez de
lembrá-lo de que estamos na cama de outra pessoa e de que é claro que ele
não pode me provocar assim aqui, arqueio as costas contra seu corpo e
desfruto do grunhido que ele solta quando esfrego a bunda em seu pau.
Seus dedos deslizam para dentro da frente do short do pijama de
seda em que North me vestiu e mergulham de uma vez na minha boceta,
sem nem parar direito para verificar se estou molhada ou não.
Só para constar: estou encharcada.
Parece que meu vínculo acha que estar perto do meu Vinculado já é
afrodisíaco o suficiente. Ando percebendo que fico permanentemente
pronta para qualquer um dos dois, coisa que parece que vai ser um
problema para mim. Não posso passar a vida babando por homens.
Porra, preciso recuperar um pouco de autonomia.
— Nem pense nisso — murmura ele e, antes que eu possa retrucar e
dizer o quanto é impossível, ele me beija de novo até meu vínculo
preencher minha cabeça com cânticos de ISSO, ISSO, ISSO como a
vagabundinha carente que é.
Se Gryphon quer me masturbar na frente de North como algum tipo
de pedido de desculpas, acho que tudo bem. Os dois já me viram gozar
mesmo, e ouviram os sons que faço. Está escuro o suficiente para nenhum
deles conseguir ver o estado em que estou.
Permito que ele diga tudo que precisa me dizer idolatrando meu
corpo.
Provavelmente não é uma boa ideia e algo que eu não deveria deixar
acontecer no futuro, porque, afinal, sou uma só contra cinco machos alfa
muito teimosos. Eles vão me fazer de gato e sapato se eu deixar, mas, esta
noite, ainda estou me recuperando do poder extra e só quero sentir alguma
coisa.
Só quero sentir o quanto meu Vinculado precisa de mim.
Deixo Gryphon me beijar até esquecer quem somos e quem mais
está aqui. Esqueço até do meu próprio nome, e deixo nossos vínculos virem
à superfície e se reencontrarem mais uma vez.
Em algum lugar lá nos confins da minha mente, eu me dou conta de
algo com que terei que lidar depois: que a sensação agora é diferente de
quando meu vínculo estava com o de North.
Contudo, no instante em que penso em qualquer coisa que possa me
afastar deste momento, Gryphon muda um pouco as coisas, altera o ritmo, a
posição ou até onde suas mãos percorrem meu corpo. Quando ele me vira e
desce beijando pela minha coluna, sou obrigada a voltar para o presente e
encarar o fato de que há, de fato, uma terceira pessoa nesta cama.
Eu não devia gostar tanto assim de sentir North vendo tudo o que
Gryphon está fazendo no meu corpo, mas, quando nossos olhares se
encontram, o fogo que vislumbro ali arranca um gemido dos meus lábios.
Ele está gostando do show; não há nem uma gota de ciúmes nele, só um
ardor crescente. Uma necessidade de vir para cima de mim também.
Gryphon nos move, só o suficiente para conseguir ver a expressão
no meu rosto, e há um brilho em seus olhos quando sorri.
— Quer que ele assista? Quer que ele veja você gozando no meu
pau? Encharcando minhas coxas e gritando meu nome, linda? Achei que eu
estava ultrapassando seus limites, mas você precisa disso… não precisa,
Vinculada?
Chego a rolar os olhos para trás. Seus lábios envolvem minha orelha
e a mordem com dentes afiados. Se é assim que vou morrer, vou feliz.
— Não seja tão dramática, Vinculada. Até parece que vamos
permitir que você nos deixe de novo. Um de nós vai estar sempre contigo
de agora em diante.
Porra.
Eu preciso muito aprender a mantê-lo fora da minha mente, mas isso
deixa de parecer prioridade quando sinto seus dedos deslizarem pela frente
do meu short de novo.
A escuridão do quarto intensifica, aprofunda e se torna um ente
vivo. Eu viro o rosto para ver as mudanças em North enquanto seu vínculo
se espalha pelo quarto. Já estou viciada nisso, viciada em como me sinto
quando sua lascívia e desejo visivelmente turvam o espaço.
Usando a distração para mudar de posição de novo, Gryphon arrasta
o short de seda pelas minhas pernas e paira acima de mim. Ele se inclina
para morder a pele macia da minha barriga onde a camiseta se enrolou, até
eu começar a me contorcer sob seu peso.
Quero mais. E que sorte a minha, porque eles também querem.
Ninguém faz uma pausa para pensar em camisinhas ou controle de
natalidade, algo que preciso muito resolver sozinha, porque senão, caramba,
logo vamos ter um problema novinho com que lidar. Quando Gryphon
ergue minhas pernas para me deixar bem na posição que ele quer, dou um
sorriso para ele. Esta é a minha parte preferida, quando toda a extensão e a
pressão de seu pau enorme me preenchem. A sensação é de que estou na
porra do paraíso.
Nós dois gememos quando ele se força para dentro.
Uma das gavinhas escuras segura minha coxa e abre bem minhas
pernas, para que North possa ver melhor, para que veja cada estocada de
Gryphon para dentro da minha boceta molhada. Seus olhos ficam pretos.
Os quadris de Gryphon perdem um pouco do ritmo, mas quando os
olhos de North encontram os meus, não fico com medo de seu vínculo vir
brincar. Não depois daquela declaração que me fez. Eu o quero tanto quanto
quero o homem dentro de quem ele vive. O vínculo não parece estar bravo
ou com ciúme, só faminto, esperando sua vez de me ter.
MAIS, MAIS, MAIS.
Ele ergue os dedos e os força entre meus lábios, acariciando minha
língua. Nunca chupei ninguém antes, mas agora parece ser uma hora
excelente para começar.
— Boa garota. Gostosa pra caralho com essa bocetinha Vinculada
linda.
É aí que eu perco as estribeiras e estremeço com o orgasmo causado
pela sua boca sem vergonha, por seus lábios que roçam em minha orelha
enquanto ele sussurra pura sacanagem para mim.
Assim eu vou morrer.
Se os cinco fizerem isso comigo? Não vou sobreviver.
Choramingo quando Gryphon muda a posição, colocando-me de
quatro entre os dois, e solto um gemido quando ele volta a se enfiar em
mim.
O vínculo de North afasta o cabelo do meu rosto. Seus dedos agem
com gentileza só até agarrarem um punhado do meu cabelo e puxarem
minha cabeça para trás para que eu encare seu rosto. Olhar para os vácuos
sombrios de seus olhos é viciante. É tão fácil de se perder nessas
profundezas… Minha boceta aperta o pau de Gryphon por instinto.
Quero gozar de novo. Quero sentir o gosto dele deslizando pela
minha garganta, quero engolir até a última gota da sua porra e…
— Se você não foder a garganta dela agora mesmo, ela vai gozar só
de imaginar, então vai logo, cacete, antes que perca a oportunidade.
O vínculo de North sorri para mim. Há algo sombrio e perigoso em
seus olhos ainda escuros, naqueles vazios monstruosos. Ele segura o pau e o
coloca entre meus lábios. Acho que fazer isso pela primeira vez com meu
Vinculado que gosta de estar no controle é uma boa, porque ele conduz
todos meus movimentos. Quando finalmente se solta e começa a sarrar,
deslizando mais para o fundo do calor úmido de minha boca, sua mão
aberta segura minha mandíbula possessivamente. Até seu vínculo me
domina de um jeito que me faz gemer em volta do seu pau.
As mãos de Gryphon apertam meus quadris e ele me segura no lugar
para meter com força, e tudo o que preciso fazer é me concentrar em não
estragar nossa noite mordendo o que não devo. Minha mandíbula dói um
pouco, já que preciso ficar com a boca muito aberta para dar conta do pau
de North, mas os sons que ele faz me dão vontade de continuar, de ser
melhor só para satisfazê-lo.
Quero que ele deseje isso tanto quanto eu.
E acho que deseja. É o que seu comportamento indica, já que faz o
que quer comigo sem pensar duas vezes. Ele se força cada vez mais para
dentro, vai testando meus limites e então acabando com eles, até eu precisar
me concentrar na respiração, já que estou o engolindo profundamente, do
jeitinho que eu queria. Achei que fosse demorar mais para adquirir essa
habilidade, mas o vínculo de North sabe bem como me conduzir a dar o que
ele quer.
Seus dedos apertam minha mandíbula em um aviso pouco antes da
última metida e, rosnando, goza na minha garganta, de modo que não tenha
opção a não ser engolir tudo. Quando minha garganta se contrai, seu pau vai
ainda mais fundo e meu nariz colide delicadamente no púbis dele. Não
achei que fosse possível abocanhá-lo por inteiro, mas consegui.
Assim que o vínculo se afasta, o braço de Gryphon transpassa meu
peito e me puxa para cima, deixando-me ajoelhada em sua frente, com o
pau ainda enterrado dentro de mim. Ele morde meu ombro e goza, ainda
metendo enquanto gozo uma última vez com ele. Quase dói de tão sensível
que minha boceta está, e choramingo quando ele desliza para fora.
Gryphon pega a camiseta que deixou ao lado da cama para me
limpar, seca a porra das minhas pernas e então, com gentileza, coloca-me
deitada entre os dois. O vínculo de North nos observa com atenção, ainda
nu e semiereto, e lhe dou um sorriso gentil. Não sei se aguentaria mais uma,
mas definitivamente não tenho nenhuma objeção a chupá-lo de novo, se é
isso que ele quer.
Ele ignora o jeito cauteloso com que Gryphon o olha, curva-se sobre
mim e passa os dedos com cuidado sobre meu rosto antes de me dar um
beijo profundo e seguro, como se estivesse tentando sentir o próprio gosto.
É sexy pra caralho, e minhas mãos vagueiam entre seus cabelos enquanto
retribuo o beijo com tanto ardor quanto consigo, agora que estou mortinha
depois dos dois terem me comido.
Sinto o momento em que o vínculo se esvai e deixa North para trás,
mas ele não solta meus lábios até ter sua própria vez comigo. Dou um
suspiro quando ele enfim se afasta e se espreguiça ao meu lado, passando
um braço por baixo da cabeça.
Dividimos um momento catártico de silêncio. Estou feliz da vida,
mas aí North estraga tudo com sua boca grande e mandona:
— Levanta e vá ao banheiro.
Solto uma bufada e me viro para Gryphon, dando as costas para
North no sentido mais literal da expressão.
— Para de se preocupar com o lençol, já tá estragado. Só quero
dormir, me deixa em paz.
Ele escorrega a mão por baixo do meu braço e, sem dar ouvidos às
minhas exigências, faz com que eu me sente com tanta facilidade que
pareço feita de vento.
— Você vai se arrepender quando tiver uma infecção urinária. Vai
mijar logo, pode ficar largada na cama o quanto quiser depois.
Bufo e jogo um travesseiro na cabeça dele, sentindo meu rosto corar.
— Nunca mais diga a palavra “mijar” na minha frente, Draven,
senão vou encontrar outro lugar para dormir.
Gryphon ri ao se agachar para vestir a cueca.
— Fique feliz por ele não estar insistindo em ir junto e assistir.
Imediatamente me arrependo de transar com os dois, tanto juntos
quanto separados.
Depois que faço xixi e lavo as mãos, tentando não fazer careta do
quanto minha vagina está maltratada após gozar tantas vezes e aguentar o
pau de Gryphon até essa merda ficar em carne viva, faço uma pequena
pausa para respirar antes de voltar ao quarto escuro. Sinto vontade de deixar
a luz do banheiro acesa para não esbarrar em cada móvel a caminho da
cama, mas então North ergue a mão e August aparece, trotando em minha
direção em forma de Doberman adulto.
Dou um gritinho vergonhoso ao cair de joelhos e dar todo o amor
que ele merece.
— Cama não é lugar de cachorro, nem mesmo dos que são feitos de
sombras — resmunga Gryphon, e eu rio de deboche.
Respondo com minha voz de mamãe de cachorro:
— E por causa disso o August vai dormir do seu lado e você pode
ficar de conchinha com ele em vez de ficar comigo. Você adora conchinhas,
né, meu bem? Adora, sim. Vamos tirar seu irmão do esconderijo, ele
também merece um aconchego.
Quando tiro Brutus do meu cabelo, ele não rosna ou briga por
atenção com August. Ambos agora estão seguros do meu amor, pois sabem
que o darei aos dois de forma igual.
Apago a luz do banheiro e deixo os cãezinhos me conduzirem até a
cama em segurança, dando cabeçadas em mim quando chego perto demais
da quina dos móveis e das botas de Gryphon. Nem North, nem Gryphon
reclamam de eu estar com as criaturas entrelaçadas em minhas pernas, e
August até repousa a cabeça na coxa de North no gesto mais carinhoso que
já vi entre eles.
Não entendo muito bem essa implicância de North com suas
criaturas, mas talvez eu possa resolver.
Caio no sono com o calor de Gryphon às minhas costas enquanto a
mão de North descansa sob minha bochecha e seu polegar acaricia meu
rosto em movimentos ritmados que me jogam em um sono tranquilo e
profundo.
Depois do ménage dos meus sonhos, enfim acordo me sentindo
normal de novo.
Tanto que passo uns bons vinte minutos admirando o rosto
adormecido de North e tentando entender como diabos ele foi de “mal me
tolerando” a “superdedicado no lance de ser Vinculado”. Quer dizer, em
meio à vertigem da recuperação, essa nem é a coisa mais esquisita que
aconteceu nos últimos dias, mas olhar para seus cílios longos e pretos
descansando sobre as salientes maçãs do rosto me faz esquecer do resto por
enquanto. Nunca me permiti olhar de verdade para North por tanto tempo e
tão de perto assim, então a imagem me distrai por três segundos inteiros
antes do resto das situações da categoria “que porra é essa” se infiltrarem na
minha cabeça.
Tipo aquela confusão toda de acordar na cabeça de Atlas. Preciso
mesmo descobrir que merda foi aquela, mas sem contar para ninguém
porque todo mundo vai ter um surto…
— Como assim você acordou na cabeça do Bassinger?
Merda.
Um vinco aparece entre as sobrancelhas de North no momento em
que ele acorda, e dou uma cotovelada nas costelas de Gryphon, tanto por ter
feito isso como por estar futricando na minha cabeça de novo.
Ele grunhe, segura meu cotovelo e me vira um pouco para que eu o
enfrente direito.
— Não tô futricando, você que está praticamente gritando seus
pensamentos no meu ouvido. Isso me acordou. Não é de propósito.
Reviro os olhos e respondo baixinho, na esperança de que North
volte a dormir:
— Bom, então me ensina como parar de gritar mentalmente para
você. Tenho direito a um pouco de privacidade, né?
Ele reage erguendo uma sobrancelha.
— Eu até diria que sim, mas acabei de descobrir que você de
alguma forma conseguiu fazer uma projeção astral e que não ia me contar,
então talvez eu deixe as coisas assim até você aprender a confiar um
pouquinho em mim.
— Por acaso eu ouvi “projeção astral”? Preciso de café — diz North
em uma voz sonolenta e rouca que mexe comigo.
Não é justo! Ele não devia ser capaz de despertar essas sensações
em mim sem nem tentar. Observo-o se levantar da cama em um único
movimento fluido e entrar no banheiro; a cuequinha boxer que ele está
usando não ajuda a acalmar meus hormônios descontrolados.
Deve ser um lance de Vinculados, né? Não vou viver assim com
tanto tesão para sempre… né?!
Dou uma olhada de soslaio para Gryphon e enfio um travesseiro em
sua cara petulante quando vejo que está me dando um sorrisinho
convencido.
— Cala a boca. Cala a boca e conta como eu te tiro da minha
cabeça. Meu cérebro anda uma merda esses dias e… bom, se eu tivesse ido
parar na cabeça do Gabe ou do Nox, eu provavelmente teria contado, mas
vocês todos inventaram de achar que o Atlas é um espião, então achei que
talvez a gente devesse resolver isso antes.
Gryphon dá uma olhada breve para a porta do banheiro e diz
baixinho:
— Se tiver qualquer controle que seja dessa habilidade, jamais tente
fazer isso com o Nox. Se nunca mais quiser dar ouvidos a uma palavra do
que digo, ouça apenas isto: fique fora da cabeça do Nox Draven.
Mesmo com o tom baixo e gentil que está usando, um calafrio me
atravessa enquanto concordo com a cabeça e engulo em seco.
— Pra começar, eu não fiz nada para parar na cabeça do Atlas. Só
fui dormir e acordei olhando para a parede do quarto dele me sentindo tão
entediada que chegava a dar faniquito. Levei um minuto inteiro para
perceber onde estava e… e só conversei com ele por uns minutos. Foi só.
Gryphon assente devagar e North ressurge do banheiro, ainda
parecendo cansado, com uma carranca por estar consciente. É estranho vê-
lo assim, porque antes de eu ir para aquele campo, mesmo nas vezes em que
dormiu na minha cama, eu sempre levantava e ia à academia antes que ele
acordasse. Não sei nem que horas ele costuma acordar.
Com exceção daquela vez que Penelope apareceu e…
Gryphon arranca esse pensamento descontrolado pela raiz e me
interrompe:
— Não, não vamos pensar nela agora, e você com toda certeza não
vai escapar desta conversa pensando em coisas que deixem seu vínculo
furioso e levem vocês duas a um ataque de nervos.
North desloca um painel na parede e uma cafeteira aparece, no
melhor estilo Síndrome de Ricaço, e eu abro e fecho as mãos em sua
direção para deixar bem claro que quero um pouco. Duvido muito que tenha
algum sabor ou creme decentes, mas aceito até café preto nessa altura.
É assim que tenho certeza de que a névoa se dissipou do meu poder.
— Provavelmente não ajudou vocês terem Vinculado no meio da
recuperação. Isso deve ter retardado um pouco as coisas. Quais poderes
novos você tem? Já está sentindo alguma coisa?
Eu me esforço para sentar, com cuidado para não incomodar
August, que está deitado de barriga para cima, com as patas no ar, fungando
enquanto dorme. Brutus está aconchegado contra ele e, embora esteja
acordado, não está se mexendo, nem incomodando o irmão. É fofinho;
apalpo embaixo do travesseiro até encontrar meu celular e poder fotografar
os dois.
A foto sai preta.
Tipo, completamente preta, como se eu estivesse cobrindo a lente
com o dedo. Franzo o cenho, tento de novo e a imagem continua saindo
sem nada. Que merda é essa?
— Oli, isto aqui é importante.
Bufo para Gryphon e aceito a xícara de café que North me entrega,
mexendo um pouco no celular.
— Nada novo. Nada além de acordar na cabeça do Atlas. Tipo,
totalmente na cabeça dele. Dava para ouvir todos os pensamentos e, se
quisesse, poderia ter olhado qualquer memória. Antes que pergunte, não
olhei nada. É uma invasão de privacidade nojenta e eu não fiz isso, mesmo
ele tendo dito para eu fazer. Acredito que ele está do nosso lado. Posso não
conhecer a história toda ainda, mas vou ouvir da boca dele, e não vasculhar
sua mente como uma psicopata.
North troca um olhar com Gryphon, depois dá um longo gole no
café e recua para o banheiro, ainda com a xícara na mão. Chego a suspirar
quando o chuveiro é ligado. Que delícia… água quente e um cafezinho.
North está vivendo meu sonho agora.
— Você poderia viver seu sonho também, sabe. Provavelmente
estaria realizando vários dele ao mesmo tempo — murmura Gryphon, e
jogo outro travesseiro em sua cara.
Então, pego meu café e faço exatamente o que ele sugeriu.
Quanto mais tempo moro na mansão dos Draven, mais estranho estacionar
a moto na frente da casa dos meus pais se torna.
Este não é mais meu lar.
Sinto-me culpado de sequer pensar nisso, porque meus pais fizeram
de tudo para que eu tivesse a melhor infância possível. Basta olhar metade
dos garotos que frequentam minhas aulas na universidade para saber que
sou sortudo. Metade deles foi criada por pais tão traumatizados pelo que
aconteceu nos motins que se tornaram superprotetores a ponto de serem
sufocantes.
Gray mal consegue respirar sem permissão do pai; mesmo com
vinte anos de idade, ainda vive sob as regras dele.
Meus pais eram cuidadosos, mas queriam que eu vivesse uma
infância normal. Eles me levavam a jogos de futebol e me deixavam sair
com meus amigos. Depois que me transformei pela primeira vez,
afrouxaram as regras ainda mais, porque sabiam que eu podia me defender
melhor do que a maioria.
Eles foram pais ótimos… até não serem mais.
Lar, para mim, vai ser sempre onde quer que Oli esteja.
Mando uma mensagem para North avisando que cheguei sem
problemas e tento não me sentir uma criança por isso. Preciso me lembrar
de que todo mundo está lhe dando satisfação no momento. North está
ficando na mansão, e todos estão respondendo a ele para que se saiba nosso
paradeiro, mas, mesmo assim, ainda fico um tanto incomodado.
Preciso me lembrar de que é por Oli, porque é isso que faz tudo
valer a pena. Ela é o motivo pelo qual estamos todos ficando por perto,
conectados e vigilantes, porque não somente há gente lá fora que poderia
machucá-la, mas há gente especificamente visando fazer isso, o que já piora
tudo.
Perdê-la não é uma opção.
Por isso, vou andar na linha sem questionar, mandar as mensagens e
informar meu paradeiro e todas as outras merdas de segurança, porque se
isso a mantém a salvo, então vale cada porra de segundo.
O jardim na frente da casa está perfeitamente bem-cuidado; o
jardineiro continua exemplar em seu trabalho, como sempre. Não há nada
aqui fora que indique que algo deu errado lá dentro nos últimos quatro anos.
Não há sinais do surto que estou prestes a enfrentar, torcendo para sair sem
sentir que estou prestes surtar também.
Remexo nas chaves até conseguir destrancar a porta, limpo os pés
no capacho e olho em volta como se houvesse alguma chance de algo ter
mudado, como se talvez tivesse um pouco de vida neste lugar de novo.
Nada. É claro.
Suspiro e chamo:
— Mãe? Está em casa?
Que pergunta idiota. Ela não sai mais de casa. A empregada, Nina,
passa mais tempo mantendo minha mãe alimentada e viva do que de fato
limpando. A única coisa que precisa de limpeza é o pó, de qualquer forma,
já que minha mãe não sai mais da cama.
Não estou sendo dramático. Ela literalmente não sai mais da porra
da cama.
Pego a pilha de correspondência no cestinho, onde Nina a deixa para
mim. É difícil admitir para mim mesmo que este é o motivo real para eu ter
vindo aqui hoje. Se eu não resolver essas coisas, ninguém resolve.
Há um punhado fresco de flores na frente do retrato de família no
saguão de entrada, o altar que Nina mantém para que minha mãe não perca
a cabeça, na rara possibilidade de ela descer aqui. É uma foto bonita de nós
três tirada algumas semanas antes do desaparecimento de Oli, e estamos
genuinamente felizes nela. Porra.
Desvio o olhar e subo as escadas dois degraus por vez, evitando as
tábuas que rangem só por costume, já que não existe motivo para ser
sorrateiro. Já fiz muito isso quando era um adolescente idiota, chegando de
festas e reuniões do futebol que iam até tarde. Antes de toda essa merda.
Bato com delicadeza na porta do quarto dos meus pais e abro um
pouco, já que não há chance de pegar minha mãe em uma situação
constrangedora. Ela teria que estar viva para isso acontecer.
— Mãe? Como está se sentindo hoje?
As cortinas estão fechadas e uma lâmpada fraca é a única
iluminação do quarto. Suponho que Nina tenha acendido essa manhã em
uma tentativa de fazê-la levantar, mas nem a bandeja de comida ao seu lado
foi tocada direito.
— Mãe? É o Gabriel. Vim pra casa ver como você está.
O volume na cama suspira, e tento não deixar isso me abalar. Esse
barulhinho faz minha pele se contorcer de vergonha, como se eu fosse um
fardo por visitá-la. Como se ela só quisesse ser deixada para definhar até
não sobrar nada e eu estivesse a obrigando a continuar aqui.
Será que estou?
Provavelmente.
— Gabe, a mamãe está cansada. Vou descer para brincar com você
depois de um cochilo.
Sinto um embrulho infernal no estômago. Ela faz isso às vezes,
perde a noção de onde e quando está. Como se sua mente estivesse
regredindo para quando sua vida tinha algum valor e não era este inferno
interminável sem nenhum dos seus Vinculados.
Eu me esforço para manter um tom de voz equilibrado, mas porra, é
difícil.
— Não preciso que brinque comigo, mãe. Só preciso saber que você
comeu alguma coisa hoje. A Nina me ligou e disse que você voltou a
recusar comida.
Ela bufa e gesticula com a mão, mas está tão frágil que quase não
faz barulho contra o edredom.
— Ela está se intrometendo de novo! Preciso dispensá-la e encontrar
alguém que me deixe em paz.
Eu não deveria, realmente não deveria, cacete, mas minha paciência
está menor do que nunca. Eu devia estar lidando com problemas reais, não
com este luto infinito do qual ela se recusa a sair.
— Para morrer, mãe? Precisa encontrar alguém que te deixe
definhar até você morrer de verdade? Porque não falta muito, não. Você não
pode demitir a Nina. Eu tenho sua curatela, lembra? Eu a contratei. Eu pago
o salário dela. Eu tomo conta de tudo aqui, porque você não consegue!
Dou uma mordida no lábio para me impedir de continuar até que as
palavras fiquem presas na língua. Sinto o momento em que ela se fecha de
novo, em que minha raiva a manda de volta ao espaço vazio de sua mente
tomada pelo luto.
Quando ela não responde, tampouco se mexe, saio do quarto. Está
viva, é tudo que eu precisava mesmo ver, e desço todos os degraus da
escada antes que o pensamento me atinja. Em grande parte, porque o retrato
do meu pai está pendurado ali, encarando como se soubesse exatamente no
que estou pensando.
A culpa vai acabar me consumindo vivo.
Porque, se meu pai estivesse aqui e minha mãe tivesse morrido, ele
estaria vivendo um luto tão intenso quanto o dela, mas pelo menos cuidaria
de si mesmo.
Às vezes, eu queria que fosse ela a ter morrido.
Quando chego à mansão, vou direto ao quarto de Oli encontrar meu
Vínculo. Preciso me distrair e voltar à realidade, onde todos somos pessoas
funcionais e cuidamos dos nossos problemas ao invés de nos refugiarmos
dentro das nossas próprias mentes.
Inspiro fundo antes de bater na porta.
Ela me chama na mesma hora e, quando tento virar a maçaneta, está
destrancada. Isso é novidade. Parece importante também, porque ela sempre
foi muito cautelosa a respeito de mantê-la trancada o tempo inteiro. O que
quer que tenha acontecido com o North antes de completarem o Vínculo,
com certeza está fazendo com que Oli confie um pouco mais em todos nós.
Não tenho certeza de que todos nós merecemos essa confiança.
Quando entro, encontro dever de casa espalhado pelo chão e Oli,
usando o menor shortinho que já vi na vida, esparramada em frente a tudo.
Está sozinha, exceto pelas duas criaturas, e considerando a carranca em seu
rosto, sei exatamente o que está estudando.
Não entendo porque ela se esforça tanto com essa baboseira de
Introdução aos Favorecidos quando North a aprovaria de qualquer forma só
por ser sua Vinculada e Nox nunca a aprovaria por esse mesmo motivo
deturpado.
Os dois estão perdidinhos por ela, mas prefiro o jeitinho de North ao
de Nox. Não preciso conhecer os motivos exatos para saber que, o que quer
que tenha acontecido no lar dos Draven, perturbou-o de um jeito muito
específico.
Ela me olha com um sorriso singelo, que transparece em seus olhos,
e tento não tropeçar só de vê-lo. É linda demais, feita todinha para mim, e
quanto mais se abre, mais perfeição encontro.
Ela apoia o queixo em uma das mãos e inclina a cabeça de lado para
me examinar.
— Como sua mãe estava? Pegou tudo que precisava?
Assinto, jogo a mochila no chão, tiro os sapatos com os pés e vou
sentar perto dela. Com certeza não quero falar sobre minha mãe ou sobre a
visita, então me concentro nas coisas boas, tipo no quanto ela está
deslumbrante hoje.
Passo a mão na curva de sua bunda e ela geme baixinho de
felicidade. Esperar pelo Vínculo pode enlouquecer um pouco a gente, mas
tem algo nessa expectativa que estou curtindo pra caralho.
Saber que ela está tão desesperada por mim quanto eu por ela é tudo
de que já precisei.
Ela se levanta com um grunhido, e quando se aconchega na lateral
do meu corpo, passo um braço pelos seus ombros, puxo-a para perto, e ela
geme feliz. Enfio o nariz nas madeixas prateadas macias de seu cabelo, e
algo que estava retesado dentro do meu peito na casa dos meus pais se
tranquiliza. Algo que eu teria levado semanas para conseguir sozinho, e ela
faz sem nem tentar.
Eu já amo essa garota.
Oli fala baixinho comigo, de olho nas sombras:
— O August está de bico. Contei para ele que vou dormir com o
Gryphon hoje e que ele não permite criaturas na cama.
Dou uma risada leve e me inclino em sua direção.
— Você sempre pode vir para o meu quarto. Posso não amá-los
como você, mas são sempre bem-vindos.
Olhar para o sorriso que ela me dá é como olhar direto para o sol,
brilhante e reluzente, e August se vira para me cheirar, conferindo se estou
sendo sincero. Ainda é um pouco assustador estar tão perto assim da
criatura mais cruel e perversa de North, mas até que estou me adaptando
bem.
Então o sorriso oscila um pouco e ela suspira.
— Se eu não precisasse tanto recarregar as energias com ele,
aceitaria a oferta. Estou… com dificuldades, e sem os cãezinhos fica mais
difícil.
Fecho a cara e me inclino contra ela, juntando nossas testas do jeito
que ela gosta. Por algum motivo, ficar com nossos narizes colados um no
outro a faz sorrir como uma criança, então faço isso sempre que posso.
— Qual o problema, Vínculo? O que posso fazer?
Ela suspira de novo e resmunga:
— Vocês ficam tentando ajudar, mas é que… muita coisa aconteceu
e estou tentando entender tudo, como superar esse próximo estágio sem
surtar completamente por vocês estarem todos em perigo. Suportei os
campos porque era o que mantinha vocês em segurança. Agora… agora não
estão mais. E é difícil não me sentir responsável porque se eu tivesse ficado
longe…
— Não. Não, esta vida de saber que estamos todos em perigo é um
milhão de vezes melhor do que a vida sem você.
Os lábios dela tremem.
— Me sinto egoísta por achar a mesma coisa.
Nego com a cabeça, tão grudados que nossos narizes quase
esbarram, e murmuro de volta:
— Nunca. Precisamos de você tanto quanto você da gente. Nós
todos precisamos de você, Vínculo.
Ela engole em seco e faz que sim com a cabeça, com um ar de
recatada que dura meio segundo antes que seu atrevimento entre em ação e
ela revire os olhos para mim:
— Culpo o Gryphon por isso. Eu não dava a mínima antes dele
começar a fazer eu me sentir culpada, e agora não consigo mais sair dessa.
Puxo-a para meu peito e quase me vanglorio quando ela sobe
sozinha no meu colo, enrosca-se em mim e apoia a cabeça sobre meu
coração. Ela fica tão pequenina ali, quase não pesa nada, mas, quando
enterro o nariz em seu cabelo, encho os pulmões com o cheiro dela e isso
acalma o vínculo dentro de mim.
Farei o que for preciso para que ele continue exatamente onde está.
Infernizo Gabe até ele pegar seu próprio material e fazer as tarefas comigo.
Ele tentou argumentar que não vamos voltar para Draven tão cedo, mas
preciso me distrair de tudo que está acontecendo ao nosso redor e não quero
que Nox me pegue relaxando, então continuar estudando não tem lado
negativo.
Gabe estala as costas ao se levantar para buscar a mochila que
deixou no chão perto da porta, chutando seus sapatos daquele jeito muito de
garoto. Quando volta até onde estou com os braços carregados de livros, ele
se agacha para me dar um beijo. Brutus bufa para ele, mas August se move
para sentar entre nós, empurrando Gabe para longe de mim, e depois vira de
costas e o ignora completamente.
É fofinho.
Gabe me olha sério e eu dou uma risadinha, enterrando o rosto no
pescoço de August e inspirando fundo. Tem sido uma semana muito longa,
confusa e transformativa.
— Tem certeza que está bem agora? Não precisa de nada? —
murmura Gabe, e eu nego com a cabeça, tirando o nariz de August e
pigarreando.
— Só de você e dos bebês… e, bom, também preciso encontrar a
Sage e ver como ela está. Além disso, preciso falar com o Atlas, mas não
faço ideia de como North vai reagir quando eu disser que quero fazer isso
sozinha.
Ele dá um sorrisinho e meneia a cabeça.
— Quer dizer mais sozinha do que quando se projetou na cabeça do
cara? Não sei se é possível, Vínculo.
Ah, então a notícia já se espalhou. Minhas bochechas ficam
vermelhas em meu esforço de não pensar naquele momento de novo.
— Quero ficar cara a cara com ele e ouvir o que tem a dizer. Não
quero entrar na cabeça dele na hora.
Ele assente e se senta comigo no chão.
— Você é uma pessoa melhor que eu. Eu teria olhado cada porra de
segundo da vida dele para me certificar de que não é um espião.
Ele dá de ombros e olha feio para August.
— Alguma chance de você fazer ele ir um pouquinho pra lá para eu
poder voltar a reconfortar meu Vínculo? Mal consegui te ver desde que
voltou, e agora esses guardas rabugentos não largam do seu pé.
Dou um último beijo em August, estalo os dedos para ele mudar de
lado e o observo resfolegar, incomodado com a mudança. Ele gosta de se
colocar entre mim e quem mais estiver no cômodo, inclusive North. Prefere
ser uma parede na minha frente. É uma gracinha e eu o amo por isso.
Assim que August sai do caminho, Gabe passa um braço pelos meus
ombros e me puxa contra si. Enfio o rosto no seu ombro e inspiro bem
fundo seu cheiro – limpo e masculino. Senti saudade. Senti saudade de
Atlas também; meu peito dói tanto com a distância que North colocou entre
nós que parece ter uma ferida.
— Vai ficar tudo bem. Quando você estiver recuperada, vamos
achar algo pra você fazer. O Gryph já está trabalhando com alguns agentes
em… algo grande. As coisas não vão continuar assim por muito tempo.
Pigarreio.
— Você tem visto o Atlas? Está tudo bem com ele?
Gabe assente encostado na minha bochecha.
— Ele está bem. Deixou claro que vai fazer tudo que for preciso
para provar que não está aqui para te ferir. Eu acredito nele. Tenho quase
certeza de que o Gryph acredita também, já que é um detector de mentiras,
mas os Draven precisam de mais. Sempre precisam, mas ele… deu uma
coisa para o North que recuperou um pouco da confiança, então já, já vocês
estarão juntos de novo.
— Que coisa?
— Uma lista. Uma lista de todos que o Atlas já conheceu na
Resistência e tudo que sabe de seus dons. Tem muitos nomes lá. Ele provou
que é autêntica dizendo para o North como eles te tiraram do hospital para
início de conversa. O cara invisível? Acabou que ele é um batedor da
Resistência, e agora que o North sabe o que procurar, encontraram o sujeito
em várias reuniões e pontos de espionagem. Pode ser que o Atlas tenha
pendido a balança a nosso favor.
Assinto e esfrego a mão no peito.
— Entendo que ele esteja ajudando e fico feliz, mas…
Embora eu pare de falar, Gabe sente.
— Mas Atlas está traindo a própria família e você se sente péssima
por ele? Devia conversar com ele sobre isso. Eu conversei e… entendi os
motivos. Ele queria te contar desde que chegou aqui, mas ficou com medo
de você odiá-lo no segundo que abrisse a boca.
Dou uma risada chorosa para Gabe.
— Me surpreende você não odiar! Vocês brigam o tempo todo desde
que ele chegou aqui.
Gabe dá de ombros e diz:
— Eu sabia que ele era bom demais para ser verdade. Nenhum
homem, Vínculo ou não, aceita ser abandonado como se não fosse nada.
Não confiava nadinha nele. Quando percebi que ele sabia, que sabia seu
codinome nos registros da Resistência e qual era o seu dom, meti porrada
nele. Não que tenha adiantado, já que o cara é indestrutível, mas ajudou a
descontar minha raiva. Aí depois ouvi Gryph o interrogar, confirmar que
estava sendo honesto… ele faz parte deste Grupo de Vínculos. Pertence a
você tanto quanto eu. Seria muita sacanagem da minha parte causar
problemas só por causa dos meus sentimentos pessoais. Não vou fazer isso
com você.
Quero me derramar em lágrimas.
Não mereço Gabe, nem nenhum deles. Não mereço esse tanto de
consideração e cuidado. Ele só me aperta mais contra seu corpo e enfia o
rosto no meu ombro.
— Você está com o cheiro do North.
Eca.
Fico com o rosto corado, porque é a primeira vez que alguém
menciona isso.
— É o resultado de usar a cama e o chuveiro dele.
Gabe sorri para mim e murmura no meu ouvido com uma voz
provocativa:
— De completar o Vínculo também. Já se arrependeu, ou o North
foi tão bom assim em te convencer que está totalmente envolvido?
Não parece que ele está forçando a barra nem nada, só curioso e
tentando amenizar o clima, então fico feliz em responder:
— Ele apresentou alguns argumentos muito convincentes. Meu
vínculo também estava muitíssimo a favor, assim como o dele. Estou…
menos preocupada com os riscos de ficar aqui. Só os aumentos de poder
que continuam sendo problema.
Ele assente e beija minha bochecha de novo, nenhum pouco
preocupado com nada disso. Eu até me sentiria insegura, só que suas mãos
estão passando por todo meu corpo, levando-me para mais perto, como se
estivesse tentando se enfiar por baixo da minha pele. É impossível achar
que ele não me quer. Acho que está tão certo de que vamos resolver tudo
que está disposto a esperar.
O celular vibra no seu bolso e ele me ajeita um pouco para pegar o
aparelho, revira os olhos para a tela e xinga baixinho. Sinto um frio na
barriga, mas ele resmunga:
— É só o Sawyer me enchendo o saco pra ajudar com a mudança do
Gray. Falei que eu vinha te ver antes e ele está me enchendo o saco.
Olho surpresa para Gabe, que assente.
— Aham, o North está trazendo a turma toda para morar aqui com a
gente. Todos em quem confiamos estão vindo para não sermos alvos
separados. É bom termos mais poder sob o mesmo teto no momento, e os
pais do Gray estão a favor.
O alívio se espalha pelo meu corpo.
— Eles vieram também?
Gabe nega com a cabeça, e franze levemente o cenho.
— Levaram a Briony para a Suíça. Iam levar o Gray também, mas
North interferiu. Tem um esconderijo lá que só três pessoas sabem onde
fica. Vão partir na calada da noite, então estarão seguros. Só que o Sawyer
perdeu a cabeça e, quando chegaram os resultados dos novos exames de
sangue, o pai do Gray finalmente concordou que ele ficasse.
Meu queixo cai.
— Eles são Vínculos?!
Meu gritinho empolgado faz Gabe sorrir e negar com a cabeça.
— Não, mas estão no mesmo Grupo. Ainda não encontraram o
Central, mas ainda estão refazendo os testes em todas as amostras antigas.
O Sawyer ficou motivadíssimo para ajudar com isso.
Dou risada.
— Imagino que sim. Nada te coloca para trabalhar como sentir na
própria pele. Nossa, queria poder fazer alguma coisa pra ajudar, mas não,
estou presa aqui que nem uma princesa na torre. Que estupidez.
O celular de Gabe vibra de novo em sua mão e lhe dou um beijo.
— Vai lá ajudar. Vou procurar a Sage, e amanhã durmo na sua cama.
Quando tudo isso acabar, seremos mestres em paciência.
Sage aparece na minha porta, com Felix a reboque, três minutos
depois que mando uma mensagem para ela.
Não entendo como ela consegue se localizar neste lugar com tanta
facilidade, mas parece que essa dificuldade é só minha.
Ela me examina com um olhar abatido e se joga em mim,
abraçando-me apertado enquanto balbucia:
— Nunca mais faça uma merda dessas, Oli. Nem sair correndo, nem
dar uma de exterminadora, nem voltar para casa e passar dias enfurnada
onde eu não podia vir ver por mim mesma se você estava viva. Achei que ia
ter que botar fogo na casa para o North ceder. Ele não queria deixar.
Dou uma risadinha, estranhamente chorosa com o tom oscilante de
sua voz, e, quando nos afastamos, Felix se aproxima para me dar um abraço
de lado muito contido. Não sei se o medo é chatear sua Vinculada ou os
meus Vínculos superprotetivos espalhados pela casa, mas respeito.
Arrasto os dois para o meu quarto. Sage dá uma volta cuidadosa ao
redor dos filhotinhos e se senta comigo no chão, enquanto Felix se senta na
cadeira nunca utilizada da pequena escrivaninha, coberta pelos livros que já
terminei de usar nos meus estudos de hoje, assim como pelas coisas de
Gabe. A pequena pilha de livros de Atlas tem o efeito de um farol sobre
mim, ressaltando o quanto preciso encontrar meu Vínculo e ver como ele
está.
Pigarreio, volto a olhar para Sage, e digo:
— E aí? Me atualiza do que aconteceu desde o fim do mundo como
conhecíamos. O que tem rolado?
Sage me olha séria.
— Ai, nada de mais. Só que não resta dúvidas de que sou um
Vínculo Central. Kieran é um dos meus Vínculos, e os novos exames tão
confiáveis e secretos que meu pai anda fazendo indicam que eu tenho
quatro. Então, sabe como é. Um dia normal por aqui.
Quatro.
Puta merda.
De repente, descobrir mais sobre os Vínculos dela é tudo que me
importa. Meus próprios problemas simplesmente evaporam do cérebro.
— Então, Kieran, Felix, Riley e… algum outro cara? Você o
conhece?
Ela solta o ar pela boca e se reclina na cama, jogando a cabeça para
trás de forma dramática, coisa que eu super entendo, e diz:
— Conheço, sim. Ele se formou na Draven ano passado e se mudou
para trabalhar em outro estado. É de uma das famílias inferiores, mas
ganhou uma bolsa na Draven porque seu dom é muito forte. O Gryphon
tentou convencê-lo a entrar para a Equipe Tática, mas ele queria algo que
pagasse mais.
Compreensível. Quem vem do nada escolhe a melhor a opção.
— Então… você vai entrar em contato agora ou mais tarde?
Ela resmunga e se apoia nos cotovelos para me olhar.
— Meu pai e North estão debatendo, como se eu fosse uma criança
que não pode tomar as próprias decisões nesses assuntos. Também estão
monitorando a situação do Riley e da Giovanna de longe, até ser seguro
tirá-lo de lá, embora eu esteja morrendo só de pensar no que está
acontecendo com ele agora, mas minha opinião no tema está bem no fim da
lista de prioridades.
Pela minha visão periférica, vejo Felix fazer uma careta e morder o
lábio, segurando-se para não se intrometer, e aponto um dedo para ele.
— Nem pense em falar alguma coisa racional agora, Davenport.
Estamos aqui para odiar os homens controladores das nossas vidas, não
ouvir seus muito sólidos e razoáveis argumentos para serem assim.
Ele sorri e balança a cabeça enquanto Sage dá outro gemido.
— Sei que é um lance de risco de segurança e não tem nada a ver
com a forma como eles me enxergam, mas por que tem que ser assim toda
vez? Por que não dá para alguma coisa, qualquer coisa, ser fácil ou normal
para mim?
Faço uma pilha com meus deveres de casa para abrir mais espaço
para nos espalharmos no chão, e August aproveita a oportunidade para se
enfiar mais entre Sage e eu. Dou uma coçadinha nele e o cãozinho deita de
barriga, aconchegando o rosto entre minhas pernas enquanto vigia o quarto
com atenção.
Brutus está deitado de costas, dormindo profundamente aos meus
pés, com zero preocupações.
Sage folheia os papeis e continua:
— Era de se pensar que uma experiência de quase morte fosse nos
livrar dos trabalhos da faculdade, não era? Mas duvido que seu Vínculo
permitiria. Pelo menos pra ele a gente vai ter que entregar alguma merda.
Sinto uma pontada no peito ao pensar em Nox, um anseio que vai
atrapalhar meus planos de dormir com Gabe amanhã à noite. Sei que North
disse que todos eles “cuidaram de mim” depois da jornada de extermínio do
meu vínculo, mas não duvido que Nox não faça parte dessa lista.
Ou que tenha feito só o mínimo.
Felix me examina mais uma vez, e ergo uma sobrancelha até ele
dizer:
— Não pude deixar de notar que você tem duas criaturas agora.
Sage lhe dá olhada breve e dá de ombros.
— Esse aí é o August, uma das criaturas do North. Nos conhecemos
quando a Oli veio me resgatar do incidente do Grande Incêndio. Achou
mesmo que ele não fosse acrescentar seu próprio espiãozinho depois da Oli
ser capturada e ferida? Me surpreende que seja um só.
August ergue a cabeça ao ouvir seu nome e faço carinho para ele
voltar a relaxar. Brutus acorda e, no mesmo instante, pede por um
pouquinho de chamego também, que ele ganha, como o bebezinho precioso
que é.
— Talvez eu peça a cobra também. Meu vínculo gostou muito dela.
Sage se atrapalha um pouco com o celular em mãos e engole em
seco enquanto assente para mim. Fica óbvio que tem fobia, mas não tenta
me desanimar porque ela é a melhor.
Felix, porém, argumenta:
— Você não pode ficar reclamando de estar presa aqui e, ao mesmo
tempo, dizer que quer a droga de uma cobra te seguindo. Pelo amor de
Deus, Oli, aí já é demais. Até para você.
O agudo em sua voz me faz rir.
— Com medo de uma cobrinha de nada? Isso muda tudo que pensei
que sabia sobre você, Felix. Sério mesmo. Ela é fofinha e arrancou os
braços de uns caras por mim. Se essa não é a coisa mais querida que já vi na
vida, não sei o que é.
A memória domina minha mente sem aviso e, embora minhas mãos
tremam um pouco com a violência daquele momento, não sinto culpa por
toda a morte e sofrimento. Foram eles que decidiram sequestrar pessoas
inocentes. Ao invés disso, acabaram presos com um monstro e a culpa é
toda dos próprios imbecis. Bem que tentei avisar.
ONDE VOCÊ ESTÁ? O QUE ESTÁ TE CHATEANDO?
O QUE HOUVE?
Gryphon e North falam ao mesmo tempo na minha cabeça, e tento
não revirar os olhos para ambos criando caso. Ainda é estranho ter os dois
aqui dentro desse jeito, ainda mais com North sendo tão… carinhoso.
OLEANDER, SE NÃO RESPONDER, VOU ABANDONAR ESTA REUNIÃO E SUBIR AÍ
ATRÁS DE VOCÊ.

Ah, isso é bem mais a cara de North.


TIVE UM FLASHBACK DO QUE MEU VÍNCULO FEZ NO CAMPO, NÃO É NADA
DEMAIS. GENTE, SERÁ QUE DÁ PARA PARAR DE SE PREOCUPAREM TANTO COMIGO, EM
ESPECIAL QUANDO ESTOU SEGURA DENTRO DA MANSÃO?

Tomo cuidado com meu tom de voz, tentando controlar minha


megera interior para não começar uma briga, mas preciso impor alguns
limites, e rápido, senão os dois vão começar a deitar e rolar sobre mim.
MEU TIO FOI ASSASSINADO NA CAMA. NÃO CONFIO SUA SEGURANÇA A MAIS
NINGUÉM. VENHA AQUI EMBAIXO PARA EU VER QUE ESTÁ BEM.

Ridículo.
Certo, ele tem razão quanto à morte de William, mas estou ocupada
estudando. Então, concentro-me com tanta força que meu cérebro quase
explode, mas consigo enviar uma imagem do Brutus deitado sobre minhas
pernas e de mim apoiada em August, que está sentado de guarda enquanto
finjo estudar.
ESTOU A SALVO COM ESSES DOIS. ALÉM DISSO, A SAGE É CONHECIDA POR
QUEIMAR PRÉDIOS DE BILHÕES DE ANOS INTEIROS QUANDO É PROVOCADA, ENTÃO, SE
ROLAR UMA BRIGA, APOSTO QUE ELA GANHA.

Gryphon, que está ouvindo tudo por motivos de “que se dane a


privacidade”, acrescenta:
NÓS DOIS SABEMOS QUE ELA NÃO TERIA A CHANCE, PORQUE SEU VÍNCULO IRIA
LIDAR COM O PERIGO SOZINHO. NORTH SÓ ESTÁ TENTANDO SE LIVRAR DA REUNIÃO DELE.
VOLTE A ESTUDAR, VINCULADA.
— Por acaso você está flertando com seu Vinculado? O carpete não
merece esse seu sorriso, ele não é interessante, nem engraçado — resmunga
Sage, e lanço um olhar enfadonho para ela.
— Eles estão dando uma de mãe coruja pra cima de mim. Sério,
lembra quando a gente achava que Vínculos já eram um saco? Vinculados
são infinitamente piores.
Felix me olha feio.
— Porque queremos que nossas Vinculadas fiquem seguras,
protegidas e felizes o tempo todo? Sim, terríveis. Os piores. Que monstros.
Sage joga um lápis nele.
— Não diga essa palavra com “M”. O Brutus vai acabar contigo.
— Quem é que está flertando agora? Eca, não façam isso no meu
quarto — digo em um tom exagerado, e Sage revira os olhos, sorrindo.
Felix joga o lápis em mim e diz:
— Todos nós vamos ter que aguentar o jantar com você e seus
Vínculos, então não tente fingir que é diferente aqui, Fallows. Imagino que
alguém vai tentar te comer em cima das batatas assim que tiver a
oportunidade.
Ponho uma mão no peito fingindo estar horrorizada, e Sage ri da
minha cara. É idiotice, besteira, e bem o que eu estava precisando depois de
todas as últimas esquisitices da minha vida.
Sage me dá um olhar malicioso e murmura:
— Devíamos apostar qual deles vai ser. Meu palpite é no North,
nunca o vi desse jeito antes. É meio… bizarro.
Felix abre a boca, provavelmente para dar o próprio palpite e me
matar de vergonha, mas sou salva pelo seu celular vibrando. Tem tanta
coisa acontecendo hoje.
Ele mal olha para o aparelho, encara Sage, e depois me diz:
— Meus pais vão ligar por vídeo em cinco minutos. Temos que ir.
Eles andam mais pilhados do que o normal desde que me recusei a ir para
casa, e North não os deixa virem aqui. Não que eu o julgue.
Nem tento perguntar o porquê; está bem claro para mim que se trata
da Gracie. Depois que a gracinha dela com o perfume provocou meu
vínculo a tomar o controle e completar o Vínculo com Gryphon, os dois
tomaram atitudes ágeis para se livrarem da garota. Eu me sinto só um
pouquinho mal por isso, só porque é a irmã do Felix, mas ela também é a
culpada por eu ter perdido a virgindade de um jeito animalesco e brutal.
Ela que se foda com essas artimanhazinhas.
Olho para ele, que dá de ombros e recolhe o restante de suas coisas.
— Não acho ruim. Ela é adulta e fez as próprias escolhas, então que
viva com elas. Meus pais idem. Contanto que a Sage esteja bem e nós
estejamos juntos, fico feliz em qualquer lugar.
Assim que Sage e Felix saem, decido agir como uma garota grandinha e,
enfim, ir ver Atlas. Não posso resolver a dor que sinto no peito por Nox,
mas com certeza posso fazer algo quanto à confusão que estou sentindo por
conta do meu Vínculo confinado.
Tomo a atitude covarde e falo com North diretamente pelas nossas
mentes, para não ter que enfrentá-lo cara a cara:
O ATLAS ESTÁ NO QUARTO DELE? QUERO VÊ-LO. SEM UM GUARDA NEM NADA
DO TIPO, QUERO VER MEU VÍNCULO.

Sou recepcionada por um silêncio pesaroso que deixa claro que ele
está odiando essa ideia, mas quer ter um bom motivo para não me deixar
ver meu próprio Vínculo. Fico em silêncio por um minuto, mas quando o
sinto hesitar, insisto um pouco mais:
EU NÃO… ESTOU ME SENTINDO BEM E PRECISO DELE.
É a verdade, mas mesmo assim parece manipulação dizer isso, já
que North imediatamente cede, concordando em passar por cima de seus
próprios medos e preocupações pelo meu próprio bem, para que eu me sinta
melhor.
LEVE AS CRIATURAS COM VOCÊ. VOU DIZER AO NOX PARA NÃO SE INTROMETER,
CONTANTO QUE VOCÊ NÃO PEÇA AJUDA. SAIBA QUE SÓ ESTOU CONCORDANDO PORQUE
GRYPHON TEM CERTEZA A RESPEITO DELE, POR MAIS QUE A GENTE NÃO TENHA. SE ELE
TIVESSE DADO QUALQUER SINAL DE QUE É ARDILOSO ATÉ AGORA, EU NÃO ACEITARIA,
VINCULADA.
As palavras soam controladoras, mas agora eu o entendo melhor. É
uma tentativa de me tranquilizar e informar o quanto sou importante para
ele; North só não é muito bom em dizer essas palavras.
SE EU SENTIR QUE TEM ALGO DE ERRADO, TE AVISO. O GRYPHON TAMBÉM ESTÁ
POR PERTO? MEU VÍNCULO NÃO SE OPÕE TOTALMENTE A MATAR NOSSOS VÍNCULOS SE
EU ESTIVER EM PERIGO, ENTÃO NÃO SE PREOCUPE COM ISSO, respondo, tentando
usar meu próprio tipo de apaziguação, embora ele não goste muito.
Visto uma calça e um dos suéteres de Nox para controlar a saudade
mais um tempinho. Quando posso, costumo evitar as coisas dele perto de
Atlas, mas estou tensa demais hoje.
Suspiro e falo com Gryphon a caminho do quarto de Atlas enquanto
os cãezinhos vão andando junto comigo e sendo bonzinhos um com o outro:
ACHO QUE PRECISO DORMIR NO QUARTO DO ATLAS HOJE E NÃO NO SEU.
PODE… SER? TAMBÉM PRECISO DORMIR COM O NOX DE NOVO, AMANHÃ SE POSSÍVEL.
SERÁ QUE DÁ OU ELE VAI ACHAR RUIM?
Quando saio do elevador e tento virar no lugar errado, August dá
uma cabeçada na minha coxa para me direcionar no caminho correto; um
guia perfeito para percorrer essa casa ridícula.
EU RESOLVO ISSO. NÃO SE PREOCUPE COM ELE, VINCULADA. SE CONCENTRE
SÓ NO ATLAS POR ENQUANTO. QUERO SABER O QUE ELE VAI TE DIZER, ENTÃO VEM ME
VER DEPOIS.

Quando chego à porta de Atlas, preciso de um segundo para me


recompor. Que idiotice. Eu estava na droga da cabeça dele ontem mesmo,
mas parece que tem algo se interpondo entre nós agora. Algo que o
transformou de meu Vínculo mais íntimo em quem podia confiar sem
questionar em alguém com segredos e um passado questionável.
Isso também o torna mais palpável para mim.
Gabe não estava errado, sempre houve algo em Atlas que me
deixava de orelha em pé. Ele estava tão envolvido comigo que chegava a
ser desconcertante. Simplesmente não fazia sentido, mas agora que existe
um motivo para tudo, sinto que faz, sim. Continua sendo um problema, mas
me sinto melhor com a ideia de superarmos isso juntos.
Assim que eu conseguir bater nesta porta.
Ergo a mão e, no mesmo instante, a porta se abre e Atlas diz de
forma arrastada:
— Precisa de mais um minuto, Vínculo, ou quer entrar?
Reviro os olhos e me aproximo, fazendo os cãezinhos se
espremerem em volta dele para entrarem enquanto dou um abraço de
esmagar os ossos no meu Vínculo. Bom, meus ossos parecem que estão
sendo esmagados, mas estou certa de que o ser superforte e indestrutível
está respirando normalmente.
Escondo o rosto no seu peito e ele dá um passo para trás, arrastando-
me para dentro e fechando a porta com um chute. Os dois filhotes estão
farejando o espaço, embora August permaneça pertíssimo de mim o tempo
todo. Sei que North prometeu não espionar, mas a criatura do meu
Vinculado é tão ranzinza e superprotetora quanto ele, e me recuso a admitir
o quanto acho isso adorável.
— Senti saudade pra caralho de você. Eu achava que dormir longe
por quatro noites seguidas era ruim, mas cacete, Doçura. Não vou aguentar
ficar tanto tempo sem você de novo.
Assinto com o rosto em seu peito e esfrego o nariz no tecido macio
de sua camiseta. O cheiro dele é limpo, caloroso e meu. É a combinação
perfeita, e, quando nos leva em direção à cama para que sentemos juntos,
não resisto.
Ao enfim nos soltarmos, olho ao redor e fico corada, o que é
idiotice, mas é que da última vez que vi esta cama, eu estava dentro da
cabeça dele, masturbando aquele pau glorioso até ele gozar na mão.
— Quer repetir, Vinculozinha? — pergunta Atlas, e eu abaixo o
rosto.
— Não me atenta. Não… não tem sido fácil. Tudo isso. É muita
coisa para pensar e superar. Também ainda não quero ficar mais forte, está
tudo meio confuso agora.
Sua expressão fica tensa ao se lembrar exatamente o que vim fazer
aqui, e assinto com um suspiro.
— Estou aqui para ouvir tudo. Ouvir o que você tem para falar sobre
seus parentes e… como decidiu não ser parte da Resistência com eles.
Ele engole em seco e assente enquanto pigarreia de nervoso.
— Passei meses planejando como ia fazer isso e agora que a hora
chegou, sinto que vou estragar tudo. Por favor, só… me escuta. Não é tudo
uma maravilha ou algo cem por cento virtuoso. Sou um lixo de pessoa em
várias partes da história, mas vim ficar com você. É isso que importa, né?
Eu me recuso a assentir, em especial porque não posso concordar até
ouvir os detalhes.
— Fui criado em meio à ideologia da Resistência. Minha família
ocupa uma posição bem alta na hierarquia. Meu pai, inclusive, é amigo
íntimo do Silas Davies.
Assinto.
— Eu sei. Vi ele lá quando cheguei no campo com o Kieran.
Ele faz uma careta e concorda.
— Ele sempre ia inspecionar vários campos diferentes e analisar os
Favorecidos que tinham sido levados. Ele soube que estavam procurando
você anos antes do Silas te pegar. Havia rumores sobre seu dom, mas seus
pais se mudavam muito para te manter escondida. Eram inteligentes, mas
estavam em desvantagem em relação ao arsenal do Silas.
Nada disso é novidade.
Silas já me contou tudo isso, que sou responsável de todas as formas
possíveis pela morte dos meus pais. Que nos mudávamos constantemente
porque eu não conseguia parar de usar meus dons ou de exibir meus olhos
de vácuo nas piores horas possíveis. Sei disso, mas mesmo assim dói que
Atlas saiba também.
Engulo em seco e aceno para ele continuar, para contar logo essa
história, como se estivesse arrancando um band-aid da minha alma.
— Quando nos ligaram para avisar que eu estava no mesmo Grupo
Vincular dos Draven, tivemos uma reunião com a família toda. Meu pai
estava desconfiado pra caralho, e todos os Vínculos da Aurelia tinham
alguma opinião pra dar, mas minha mãe só encheu a cara. Nunca a vi beber
daquele jeito, mas ela virou uma taça de vinho depois da outra como se
fosse água.
Ele faz uma pausa para respirar, ajeita-se na cama e coça a nuca,
aparentemente desconfortável antes de continuar:
— Esta é a parte que tenho vergonha de te contar, e a parte que não
contei para os outros porque não é da conta deles. Então… logo depois,
descobri que você tinha desaparecido. Meu pai fez um escândalo, mas na
verdade ficou feliz porque eu não iria ter que vir pra cá e ficar com Draven.
Eu… concordava com os outros, achava que você não nos queria, e me
comportei como um babaca de merda. Vivia saindo com meus amigos,
bebendo, fazendo farra e… dormi com muita gente. Achei que estava me
vingando de você por ter me abandonado antes de sequer me conhecer. Fui
um otário burro e egoísta.
Bom, eu sabia que nenhum dos meus Vínculos tinha esperado por
mim. Era bem óbvio que até os dois de idade mais próxima à minha haviam
escolhido vagabundear por aí antes de terem me conhecido, mas, sério, não
quero ouvir a respeito disso, e saber que ele foi ainda mais longe em
retaliação por algo que eu não fiz… pois é, este não é meu momento
preferido dos que compartilhamos.
Ele me olha com atenção e, quando não digo nada, continua, com a
voz um pouco mais firme agora que essa parte já acabou:
— Isso durou uns dois anos. Até uns seis meses antes do North e do
Gryphon te encontrarem fugindo, na verdade. Meus pais estavam fora da
cidade em um evento da Resistência. Sim, as Famílias de Nível Superior da
Resistência organizam bailes de gala e outros eventos para arrecadar fundos
para a causa. A costa leste é um mundo completamente diferente. Na
verdade, é… muito diferente do que é aqui, mas enfim, eles estavam fora da
cidade e minha mãe mudou a senha da adega. Precisa de um código de
acesso para abrir, e ela fez isso pra eu não ficar bebendo enquanto estavam
fora, então comecei a bisbilhotar os arquivos dela com a ajuda de um amigo
meu que sabia um pouco sobre códigos e informática… e encontrei uns
vídeos no computador. Fiz meu amigo sair antes que ele visse qualquer
coisa, mas fiquei sentado ali por dois dias enquanto meus pais estavam fora
e assisti às gravações do Silas Davies torturando você. Assisti meu Vínculo
de quatorze anos de idade sendo picotado como se não passasse de um
pedaço de carne na frente de um açougueiro.
Meu coração fica descompassado.
Nunca soube que havia vídeos. Eu sabia que tinha câmeras lá, então
claro que existia a chance de existirem registros, mas porra, nem cheguei a
pensar muito nessa possibilidade.
Engulo em seco com dificuldade e ele segura minha mão, com
cuidado, de modo que eu possa me soltar dele se quiser. Mas não quero.
Quero que ele me segure, porque… graças ao meu vínculo, eu nem me
lembro de metade do que fizeram comigo. Só de pensar que ele viu tudo…
não.
O QUE FOI? OLEANDER, ESTOU INDO AÍ.
Pisco para afastar as lágrimas inúteis em meus olhos e respondo
North imediatamente:
NÃO VENHA. SÓ ESTAMOS CONVERSANDO, E ELE ME CONTOU SOBRE OS VÍDEOS.
IMAGINO QUE ELE JÁ TENHA TE CONTADO, NÉ?
A resposta demora um pouco mais para chegar, mas vem num tom
estranhamente urgente para ele:
EU OS ASSISTI. FAÇA UMA PAUSA E VENHA ME VER. DEIXE ISSO PRA DEPOIS.
Não posso. Preciso saber de tudo para recuperar meu Vínculo e
entender exatamente o que mais ele sabe a meu respeito que eu não sei.
Porra, e agora North também viu os vídeos?
— Você tem as gravações? Todos os outros já viram? — Minha voz
é pouco mais do que um ruído, e seco com pressa algumas das lágrimas que
escorrem dos meus olhos.
Ele parece ficar devastado quando puxo minha mão da dele, mas
nega com a cabeça.
— Não, só North e Gryphon. Não deixei eles guardarem as
gravações porque não queria que o Nox visse. Sei que você ainda está pelo
menos em cima do muro com ele, e não ia deixar que ele… te visse daquele
jeito. Os outros dois precisavam ver para entender por que nunca vou ficar
do lado da minha família. Nunca, Oli. Eu jamais ficaria do lado de gente
que fez aquilo com você.
Mesmo sem ter a habilidade de Gryphon de detectar, eu consigo
acreditar; dá para sentir o quanto ele está desesperado para que eu acredite
na forma como está abrindo o coração para mim. Atlas está sendo cauteloso
e mantendo seu vínculo longe do meu obviamente para que eu não ache que
está usando isso contra mim, mas ainda assim consigo lê-lo como se fosse
um livro.
Ele está sendo sincero em cada palavra.
Além disso, também me contou que ficava com outras pessoas
quando tenho certeza de que preferia não ter entrado nesse assunto, tudo
porque está sendo completamente transparente.
Então, assinto de novo e murmuro:
— O que aconteceu depois?
Ele inspira fundo e inclina a cabeça para encarar o teto.
— Confrontei minha mãe. Ela não queria me contar nada, mas
quando falei que ia atrás dos Draven para ajudar a procurar por você, ela
cedeu e admitiu que sabia que tinham te levado. Ela tinha mentido a seu
respeito para eu não tentar te achar, e me “proibiu” de te encontrar por
causa dos objetivos de Silas com você. O problema no plano dela é que
naquela altura eu já tinha dezenove anos e acesso ao meu fundo fiduciário.
Não tinha nada que ela pudesse fazer para me impedir, não sem contar o
que eu estava fazendo para o meu pai e para os outros. Então fiz planos de
como ia te encontrar e fugir com você, e quando digo que planejei tudo,
quero dizer tudo mesmo, Doçura. Desde transferir os fundos para uma conta
estrangeira para o meu pai não conseguir rastrear o dinheiro, até mapear a
localização exata de todos os campos da Resistência para ficarmos bem
longe deles.
Fico boquiaberta, mas ele só me dá um sorriso triste.
— Arrumar um passaporte para você sem Silas ficar sabendo foi
difícil, mas consegui. Ia tentar te convencer a ir para Singapura comigo.
Eles tomam medidas drásticas contra a Resistência lá, muita segurança e
vigilância. Embora eu não adore a ideia de ser monitorado o tempo todo,
topo qualquer coisa para te manter fora daqueles malditos campos.
Meus olhos ficam marejados de novo, mas desta vez é porque meu
coração está martelando meu peito; parece até que ele fez juras de amor
eterno por mim. Bom, meio que fez. Fugir comigo? Ir para outro país só
para nos manter em segurança, o que, por sua vez, teria mantido os outros
Vínculos em segurança também?
Por mais que eu precise de todos eles, até que gostaria que as coisas
tivessem acontecido assim.
— Só que aí o Shore e a Equipe Tática dele te encontraram. Não
faço a menor ideia de como, já que o Silas não conseguiu, mas te
encontraram. Meus planos foram todos pelo ralo. Tive que reajustar tudo
para ficar aqui contigo e torcer para você querer fugir comigo. O chip de
GPS estava atrapalhando, e a quantidade absurda de segurança que North
colocou sobre você dificultou pra caralho, mas eu teria dado um jeito… só
que aí você começou a entrar na fase dos cheiros e do ninho. Completou o
Vínculo com o Shore, por culpa daquela vagabunda da Davenport. Eu sabia
que não poderíamos fugir sem levar todo mundo, que seria impossível.
Então agora estou passando para os Draven o máximo de informações
possível para te proteger. Meu pai e Silas ainda não perceberam que eu sou
o informante, por isso, por enquanto, está sendo útil.
Olho desconfiada para ele, pois essa é a parte da história que nunca
fez sentido para mim.
Como não sabiam que eu era o Vínculo dele? Eles tinham todas as
peças e informações, e ainda assim… simplesmente não sabiam? É essa
parte que faz a história parecer… uma história, e não a verdade.
Atlas assente devagar sem que eu diga uma palavra e, sem hesitar,
responde à pergunta que não fiz:
— Minha mãe. Foi por causa dela. Ela sabia que tanto Silas quanto
meu pai me sacrificariam pelos seus objetivos sem pensar duas vezes.
Minha mãe pode ser parte da Resistência, mas é minha mãe em primeiro
lugar. Ela te odeia, odeia os Draven, odeia essa situação num todo, mas seu
amor por mim é maior que o ódio. Então, naquele dia que você escapou,
sabe o motivo pelo qual Silas saiu do campo? Minha mãe. O motivo pelo
qual você esteve um passo à frente deles o tempo todo? Minha mãe. Cada
vez que algo acontecia a seu favor, quando não devia? Minha mãe estava
por trás. Ela manipulou gravações de câmeras de segurança, orquestrou
brechas por onde você podia escapar e usou o próprio dom para eliminar
membros inferiores da Resistência e ficar de olho em você. Aí, quando você
foi capturada pelos Draven, ela fez com que as coordenadas do seu GPS
também fossem enviadas para ela, para que fosse mais fácil ficar de olho
em você. Antes que pergunte, eu não sabia disso até o Sawyer mencionar.
Eu sabia que tinha que ser ela e liguei para questioná-la. Ela não desiste
nunca.
Com um suspiro, assinto e desvio o olhar para refletir.
Bom, isso de fato liga bem todas as pontas soltas da minha história.
Bem até demais, talvez? Só o tempo dirá, mas, parando para pensar, eu
realmente escapei por um triz diversas vezes e tive vários momentos de
sorte no tempo que passei fugindo. Puta merda. Um anjo da guarda
relutante que me odeia. Que sorte desgraçada a minha.
Resmungo baixinho enquanto reflito, e ele se levanta da cama,
alonga as costas e caminha até o closet, depois volta com duas garrafas de
água para nós. Olho curiosa para Atlas quando pego a garrafa gelada e ele
sorri.
— Decidi que, se é pra ficar preso aqui, vou deixar o quarto mais
confortável. Comprei um frigobar e mais uns trecos para não ter mais que
ficar ligando para a cozinha e lidando com a arrogância do chef.
Bebo um pouco da água, e coloco a garrafa na mesa de cabeceira
antes de finalmente ultrapassar a distância entre nós. Estou certa de que
temos mais sobre o que conversar, de que outras desgraças atrapalharão
nosso futuro, mas, por enquanto, estou satisfeita. Por enquanto, só quero a
droga do meu Vínculo.
Debruço-me para encostar o rosto no peito dele de novo e sinto seu
alívio instantâneo quando me abraça. Minha agonia se acalma um pouco. É
estranho como meu vínculo tem jeitos diferentes para reclamar de ficar
distante de cada um deles. Com Gryphon e North mudou, agora que somos
Vinculados, mas minha necessidade por Nox é uma coceira lenta, Gabe é
um aperto no meu peito, e Atlas é uma energia que não me deixa,
incentivando-me a procurá-lo e envolver seu corpo com o meu.
Ele segura minhas mãos como se também conseguisse ler meus
pensamentos e passa os polegares sobre meus pulsos, onde meu sangue
vibra com energia em excesso.
— Você completou o Vínculo com o North.
Assim como Gabe, ele não diz em tom de acusação. Está só
esclarecendo as coisas, e eu assinto.
— Completei. Dessa vez foi escolha minha e… não me arrependo.
Ele assente em resposta.
— Não quero que se arrependa. Eu mataria qualquer um que te
forçasse. Mas fez diferença no seu poder? Teve algum aumento ou apareceu
algo novo?
Inclino minha cabeça de lado e reflito. Andei pensando nisso, é
claro, mas a única resposta que consegui elaborar me parece falsa, um mero
pensamento positivo.
— Eu me sinto mais forte. Não mais poderosa, nem nada. Só mais
segura de mim e das minhas habilidades.
Ele faz que sim e aperta minhas mãos.
— Não estou dizendo isso só porque quero ficar com você. Eu
quero, sim, nada nunca vai mudar isso, mas depois que você e o Gryphon
completaram o Vínculo, fiquei prestando atenção, esperando por alguma
mudança significativa que nunca aconteceu. Oli, já parou para pensar que
talvez seu vínculo não cresça em poder porque já está na capacidade
máxima?
Franzo o cenho e ele recua para a cama, levando-me junto até eu
ficar sentada em seu colo com as pernas aos lados das suas. Meu vínculo
ronrona no peito por estar tão perto dele de novo. A distância entre nós foi a
parte mais difícil de todas as mudanças pelas quais passamos. Ele solta
minhas mãos para espalmar as suas em meus quadris e me instalar um
pouco melhor sobre seu volume. Seu pau está duro embaixo de mim; é a
reação por me ter tão perto, mas ele continua falando como se nada
estivesse acontecendo.
— Você é a Alienadora de Almas mais forte de que se tem registro
na história. Eu sei porque passei muito tempo pesquisando. E se o Vínculo
completo só deixar o seu vínculo mais estável e seguro? Você foi torturada.
Era tão nova quando Silas colocou as mãos em você que seu vínculo
assumiu para te proteger. Acho que aquilo mudou a ordem das coisas.
Aquilo e… a cor dos seus olhos. Isso não é uma característica específica de
Alienadores de Almas. Os Draven são a única outra família que encontrei
que tem vínculos com olhos pretos. Estamos deixando algo passar aí. Minha
esperança é de que agora que estamos todos do mesmo lado, talvez a gente
consiga descobrir o que é. Juntos.
Ele me beija devagar, com delicadeza e sem forçar mais nada.
— Pense nisso, Doçura. Só pense nisso, e podemos conversar
melhor depois. Não vou insistir, mas, se conseguir pensar em qualquer coisa
que indique que estou enganado, quero saber. É tudo que me importa agora:
te ajudar a se acostumar e a ficar segura com seu vínculo e seu dom. Não
precisa mais viver fugindo, com medo. Não vou deixar, Doçura. Não
suporto a ideia de que você passou tanto tempo lidando com isso sozinha.
Assinto e me inclino para apoiar o rosto no ombro dele. Agora que
tive um pouquinho de cada um deles, algo se acalma dentro de mim. Nox é
o único com quem não passei tempo nenhum, mas a conexão constante que
temos através de Brutus permite que eu passe mais tempo sem ser atingida
pela necessidade quando se trata dele.
— Vai ficar tudo bem.
Bufo.
— Por que é que todo mundo fica me dizendo isso?
Ele ri de mim e faz carinho nas minhas costas.
— Porque você vai se preocupar com cada partezinha desse
processo. Você se importa com todos nós, sente saudade de liberdade, e
tudo parece terrível. É claro que vamos ficar tentando te tranquilizar, porque
as coisas vão, sim, melhorar.
Relaxo e desfruto da segurança de seus braços por mais um tempo,
enquanto as batidas dos nossos corações entram em sincronia, porque
fomos feitos um para o outro. Talvez… talvez um dia eu consiga completar
o Vínculo com ele. Talvez ele esteja certo e possamos viver assim para
sempre, com essa segurança, proteção e amor.
Em determinado momento, ele me deita direito na cama e me ajuda
a tirar o suéter que estou vestindo e a legging, já que prefiro dormir de
calcinha ou de short. Depois, dá a volta até o outro lado do colchão,
despindo-se no caminho. O pau dele definitivamente não recebeu o
comunicado de que não vamos completar o vínculo voje, pois continua
duro, mas depois de ter passado uma manhã em sua cabeça enquanto ele se
masturbava, isso não me parece mais grande coisa.
Tenho mais experiência em lidar com homens e seus desejos agora.
Adquiri tanta prática em tão pouco tempo que ainda estou zonza.
Aconchego-me em seus braços e o deixo ajeitar nossa posição à
vontade, até ficar satisfeito com o jeito como estamos deitados. August
continua no chão ao lado da cama, observando atentamente até ficar claro
que Atlas adormeceu, e só então deita para dormir ali. Sei que é para
tranquilizar North, mas mesmo assim acho reconfortante tê-lo aqui com a
gente enquanto me permito cair no sono.
Sei lá quanto tempo depois, acordo com o barulho da porta; August
nem se mexe onde está enrolado no chão, do meu lado da cama. É claro que
não, porque é North que está entrando para ver como estamos. Quando ergo
a cabeça, ele chega perto e me dá um beijo suave, um cafuné e então arrasta
uma poltrona para se sentar.
— Vai cuidar da gente enquanto dormimos? — balbucio.
Ele solta as abotoaduras e enrola as mangas da camisa.
— De você. Vou cuidar de você.
Acordo sentindo meu vínculo bem mais contente no peito pela
proximidade de Atlas. Tento convencer North a deixá-lo passar o dia fora
do quarto para assistirmos alguma coisa na televisão gigante da casa. Como
ele não aceita, deitamos na cama e assistimos a TV de tamanho normal. O
espetáculo é menor, mas Atlas liga para a cozinha e pede um banquete,
dizendo que estou aqui para ninguém achar ruim, e comemos tacos de peixe
e quesadillas de frango na cama como dois bárbaros.
É um tanto quanto mágico.
Gabe vem me buscar um tempo depois do almoço e Atlas faz um
espetáculo na porta, beijando-me até eu perder o rumo. Gabe nem pisca
assistindo isso, só espera até eu me soltar, com o rosto vermelho e um tanto
ofegante, então joga um braço sobre meus ombros e me conduz pelo
corredor em direção ao meu próprio quarto.
Escrevo para Sage e combinamos de nos ver no jantar, depois vou
para o chuveiro para tentar me recompor um pouquinho.
Sinto que estou presa em um loop temporal.
Parece que os dias estão se arrastando e eu só fico… deitada na
porra de uma cama com algum dos meus Vínculos, sendo uma completa
inútil enquanto gente como Davies está por aí ferindo, torturando e
assassinando pessoas inocentes.
Eu sou um monstro.
Tento não falar de um jeito estridente e meio psicótico quando saio
do banheiro e digo a Gabe:
— Vou ficar doida nesta casa se não me deixarem sair daqui logo.
Tô tentando não ser um pé no saco, mas sério, Gabe, não consigo ficar aqui
assim para sempre.
Deixo de fora a parte em que eu, de fato, já estou um pouco doida.
Ele assente e segura minha mão, entrelaçando nossos dedos
enquanto me puxa em direção à porta.
— Temos um plano. O North está trabalhando praticamente sem
parar para isso, mas vou deixar ele te contar. É obra dele, não vou roubar as
atenções. Você só tem que se concentrar em melhorar…
Interrompo:
— Já estou melhor! Totalmente curada e pronta para usar meu dom
e meu vínculo apavorante em quem for preciso. Vamos sair hoje à noite.
Caçar alguma coisa.
Ele ergue as sobrancelhas e fica piscando para mim.
— Caçar… alguma coisa? Achei que não quisesse usar seu dom.
Você muda demais de ideia para eu conseguir acompanhar, Vínculo.
Bufo e endireito os ombros; estou me sentindo tão louca que uma
pilha de nervos toma conta de mim.
— Não quero sair matando ninguém, mas… acho que a sensação de
ter tirado tanta gente daquele campo foi boa. Eu só meio que tentei esquecer
depois que fugi, mas estar lá de novo, vendo o que acontece com as
pessoas… não posso fazer vista grossa para aquilo. Preciso levantar minha
bunda mole e ajudar.
Ele me aperta contra seu peito e abaixa a mão para dar um apertão
na dita bunda.
— Não me parece mole. Parece perfeita, e talvez devesse sossegar
seu facho só um pouco. Você ainda não passou por nenhum treinamento
Tático de verdade, só aquelas poucas aulas que fez, e a maioria foi sem
dons. O Gryph vai tirar seu cavalinho da chuva no segundo em que tentar
tocar no assunto. Nem pense em fugir. O North colocou segurança extra em
você, e não existe a menor chance do Black te levar a qualquer lugar de
novo. Vão matar ele se tentar, e não estou exagerando. O North deixou
claro que vai enfrentar as criaturas de sombras se tentar te transportar sem
um deles mais uma vez.
Eita.
Isso me parece um pouquinho radical, e dou um grunhido dramático
até Gabe sorrir de novo e dizer:
— Vamos jantar. Vai te distrair dessa vontade de caçar e erradicar a
Resistência.
Ele não está errado.
O jantar é bem mais barulhento com tanta gente sentada ao redor da
mesa. Sawyer e Gray tentam bajular as criaturas dando pedacinhos de filé
para elas, e fico chocada quando dá certo. Brutus está sentado aos pés deles,
esperando o próximo pedaço com olhões arregalados. August continua do
meu lado, mas aceita feliz os pedaços que Sawyer lhe joga.
— Eles não têm papilas gustativas ou estômagos. Isso é desperdício
de comida — resmunga North enquanto corta seu próprio filé do jeitinho de
um aristocrata.
Reviro os olhos e retruco:
— Tem uma TV encantada que aparece do nada no seu quarto.
Podemos servir filés para os bebês sem nos preocuparmos com a conta da
comida.
Gabe engasga de leve ao conter uma gargalhada, e Gryphon sorri
para mim do outro lado da mesa. August deita a cabeça na minha coxa e
lambe meus dedos, deliciando-se com os resquícios de lagosta, embora não
tenha valor nutricional nenhum para ele.
Espero até todos parecerem felizes o bastante com a comida antes de
dizer com cautela:
— E aí, quais são nossos planos a longo prazo? Estou prestes a
começar a derrubar paredes se ficar enfurnada aqui muito mais tempo.
Gryphon ergue uma sobrancelha.
— O treinamento recomeça amanhã às cinco. Ainda precisa que eu
vá te buscar ou já consegue encontrar a academia sozinha?
Ai, isso com certeza não era o que eu pretendia.
Gabe dá uma gargalhada retumbante ao ver meu rosto horrorizado, e
me esforço para pensar em um bom motivo para escapar.
SE ESTÁ BEM O SUFICIENTE PARA FODER COMIGO E COM NORTH AO MESMO
TEMPO, TAMBÉM JÁ PODE TREINAR, diz Gryphon. Embora eu queira assassinar o
cuzão pelo comentário, fico grata por não ter dito em público.
Ele merece um biscoitinho minúsculo por isso.
NADA QUE EXIJA DEMAIS DAS PERNAS DELA. PEGUE LEVE.
Minhas bochechas queimam, porque é claro que North também está
radiante de zanzar livremente pela minha cabeça enquanto tento comer
minha maldita lagosta.
— Por que é que você está vermelha igual sopa de tomate agora,
Vínculo? — Gabe pergunta baixinho, eu me sobressalto e volto à realidade,
olhando pela mesa como uma ladra pega no flagra.
— Gryphon não tem etiqueta nenhuma, e é só isso que vou contar.
Ele vai me arrastar para o treino. Você vem também, né? Para me salvar do
sadismo dele.
A mão de Gabe, que está gentilmente sobre minha coxa embaixo da
mesa, faz um carinho reverente na pele cicatrizada. Eles continuam criando
caso com a perna. Não faz sentido North querer que eu pegue leve. Já estou
completamente recuperada, tanto que nem tenho cicatrizes, mas também
não vou reclamar. Não quero fazer agachamentos e burpees.
Mas correr é pegar leve o suficiente, não é?
Claro.
Kieran me olha por cima da mesa e balança a cabeça devagar.
— Ela precisa se consultar com algum terapeuta da Equipe Tática.
Deviam deixar o treinamento para depois disso.
Aponto um garfo em sua direção.
— Cala a boca, seu fofoqueiro. Estou bem. Já me recuperei e não
preciso falar a respeito de nada.
Esse peste arqueia uma sobrancelha para mim e diz:
— Aquele homem soube exatamente onde te atingir para trazer seu
vínculo à tona. Você sabia o que ia acontecer antes mesmo dele abrir a caixa
de ferramentas. Nada disso acontece sem muitas sessões antes. Se seus
Vínculos dão a mínima para você, vão te botar na terapia.
North me encara e sinto os olhos de todos na minha pele, mas falo
direto com ele, pois já sei que vai ser ele a me obrigar:
— É meu vínculo que lida com essa merda. Se me mandar para a
terapia, é ele que vai ter que falar. Você quer mesmo fazer isso com alguma
pobre coitada?
Merda.
Não pense que é uma mulher, não começa a surtar pensando nessas
de novo, Oli.
QUE COISAS?
Reviro os olhos para Gryphon.
SERÁ QUE ALGUM DIA VOCÊ VAI SAIR DA MINHA CABEÇA? E PARA QUE EU
PERGUNTO? CLARO QUE NÃO VAI. COISAS TIPO QUANTAS PESSOAS VOCÊS TODOS JÁ
COMERAM.

Ele ergue uma sobrancelha.


POR QUE PENSA QUE TERAPIA DESENCADEARIA ISSO EM VOCÊ? E POR QUE NÃO
SE SENTE ASSIM QUANTO AO RESTO DE NÓS TAMBÉM?

Vínculos idiotas.
Viro para o outro lado, de volta para Kieran.
— Não preciso de terapia. Preciso de uma soneca e que todos
deixem meu vínculo em paz para ele não surtar e sair comendo almas de
novo. Só isso. Então deixa pra lá.
Sage me olha nos olhos do outro lado mesa e, com cara de culpada,
morde o lábio inferior.
— Não faz isso comigo, Sage. Não me jogue aos lobos desse jeito.
A gente tem que ficar uma do lado da outra aqui!
Ela torce o nariz, sorri e diz:
— Eu adoro meu psicólogo. Que tal você se consultar ele?
North se intromete antes que eu possa me queixar da traição da
minha bestie:
— Quem é? Vou agendar para ele vir até aqui, depois de passar por
todas as medidas de segurança.
Sage abre a boca, mas falo por cima dela, reclamando com North:
— Definitivamente não preciso de mais um homem sondando minha
cabeça. Já estou de saco cheio dessa merda!
Minha revolta faz com que todas as outras conversas à mesa cessem,
e uma das empregadas, que estava trazendo mais pratos, corre de volta para
a cozinha, preocupada com as consequências que sofrerei por ter sido tão
grossa.
Eu não fui.
Um pouco só. Tá legal, tenho certeza de que North ainda tem muitas
punições que está disposto a aplicar se eu não seguir seus planos de bom
grado, mas vou impor este limite. Não quero falar com ninguém. Não quero
abrir meu coração para algum estranho. Ainda não estou pronta para esse
tipo de coisa.
Mal quero falar sobre isso com meus Vínculos, que foram feitos
para me amar e aceitar independentemente de qualquer coisa.
Sawyer se inclina para perto da irmã e sussurra alto em deboche:
— Será que estamos prestes a ver os dois transarem em cima das
batatas? Porque eu não vi isso no cardápio, mas topo assistir da primeira
fila.
O olhar que North lhe direciona me dá vontade de morrer por ele.
Enfio uma garfada de legumes na boca para ficar ocupada demais para me
envolver naquilo, como se pudesse ignorar a presepada que esta conversa
virou até esse papo sumir. Gray só grunhe e cobre os olhos com as mãos,
como se estivesse se preparando para o caos que Sawyer acabou atraindo
para ele também.
Sawyer pede licença e se retira da mesa logo em seguida,
aparentemente frouxo demais para aguentar a ira de North. Gray vai junto e,
pouco depois, Sage me dá um sorriso pedindo desculpas e também sai com
seus Vínculos. Eu tinha esperanças de conversar de verdade com ela, mas a
tensão está palpável no cômodo e não a julgo por querer se mandar
rapidinho.
Ficamos em silêncio por um minuto, então Nox abre sua boca
grande.
Eu devia ter imaginado que seriam assim, porque as coisas têm
andado muito tranquilas por aqui. É claro que ele quer estragar a paz de
todo mundo.
— Então o Bassinger não conseguiu te convencer a completar o
Vínculo com ele também? Ou só está interessada no Vínculo com os mais
poderosos do grupo? Você é bem mais calculista do que eu esperava,
Venenosa.
Reviro os olhos e faço que não com a cabeça para North, quando, da
outra ponta da mesa ele lança um olhar mortífero para o irmão. Não preciso
que ele lute esta batalha por mim. Se eu deixá-lo começar, isso nunca vai
parar.
Em vez disso, suspiro e me viro para enfrentar Nox. Para variar, ele
não está bebendo, mas está com um foco que não exibe há semanas, como
se qualquer que seja a coisa que o tirara dos eixos tenha passado e agora ele
voltou a ser o comedido professor universitário.
Revido mesmo assim.
— Não vou ficar quieta e deixar você falar besteira sobre mim ou
tentar fazer eu me sentir mal por completar o Vínculo com o North. Nem
agora, nem nunca, Draven, então desista logo. E não que seja da conta de
ninguém o que eu decido fazer com o meu próprio corpo, mas vou pensar
no que o meu vínculo precisa agora. Se ficar mais forte, tomaremos as
decisões a partir disso. Mas, como eu disse, não é nem da sua conta, nem de
mais ninguém. Não te devo bosta nenhuma só por ser um dos meus
Vínculos, Nox.
A mão de Gabe desliza sobre minha coxa e me aperta com gentileza,
em um gesto silencioso de apoio, que é óbvio que Nox percebe e esbraveja
com nós dois:
— E esse favoritismo? Parece que ficar se arrastando atrás dela
como um cachorrinho carente não está te ajudando em nada, Gabe. Você
devia mesmo mudar de tática se a deseja tanto assim.
Gabe vira uma estátua ao meu lado e eu semicerro meus olhos na
direção de Nox. Na maior parte do tempo, não ligo para seus ataques contra
mim, mas estou descobrindo que nada me irrita mais rápido do que quando
ele ataca um dos meus outros Vínculos.
Em especial o Vínculo que aceitou a mim e aos meus motivos para
ir extremamente devagar no relacionamento.
— A única pessoa aqui que precisa mudar alguma coisa é você. Não
sei que merda aconteceu entre nós que te deixa tão perturbado comigo, mas
não te devo bosta nenhuma. O Gabe também não.
— Então você está simplesmente mentindo e manipulado todos os
seus Vínculos para conseguir o que quer? Tentei alertar meu irmão de que é
isso que acontece…
Interrompo antes que eu tenha de ouvir mais alguma parte da sua
versão corrompida das coisas:
— Ah, é? E se eu completar o Vínculo com todos vocês e de repente
meu poder ficar ainda mais forte? E se eu espirrar e matar a cidade toda?
Vai tomar no cu, Nox. Vai tomar no cu você e essa sua vidinha
inacreditavelmente privilegiada. Pelo menos suas sombras se controlam
quando você manda. Você para no momento em que quiser. Eu não tenho
essa opção.
Ele contorce os lábios para mim, mas é óbvio que North já cansou
de ouvir um agredindo ao outro e diz em um tom gélido:
— Sai daqui, Nox. Não está se ajudando em nada neste momento.
Ele encara North por um minuto, então pega um dos guardanapos de
linho, limpa as mãos, empurra o prato para longe e arrasta a cadeira para
trás sem dizer mais nada.
Estendo a mão para o cheesecake de chocolate à minha frente. Já
terminei com a comida de verdade e chegou a hora de me entupir de açúcar.
Coloco toda minha petulância na voz, só para feri-lo mais um pouquinho,
ao comentar:
— Que garoto bonzinho, fazendo direitinho o que foi mandado.
A reação é imediata e extrema.
Uma emoção em que não consigo acreditar perpassa o rosto de Nox
logo antes de seu vínculo entrar em ação, tomar o controle e transformar
seus olhos em vácuo. As sombras começam a sair de seu corpo em uma
corrente demorada e ameaçadora.
PARE.
A voz de North ecoa na minha cabeça, mas não sei que diabos fiz
para engatilhar o vínculo de Nox. As sombras pretas envolvem seus pulsos,
e a criatura que sai de seu peito para me encarar está com a boca
arreganhada, exibindo os dentes brilhantes ao rosnar em minha direção sem
fazer som.
O QUE FOI QUE EU FIZ?
North age no mesmo instante, com firmeza e em um tom objetivo
que ajuda a apaziguar um pouco do pânico no meu coração:
NADA. É QUE ISSO É UM PROBLEMA PARA ELE E VOCÊ PRECISA DEIXAR PRA LÁ.
ELE NÃO CONSEGUE CONTROLAR COMO REAGE A… ESSE TIPO DE COISA.
Tento olhar em seus olhos por cima da mesa, mas seu foco está todo
em Nox; seus olhos próprios olhos estão ficando pretos também.
— Porra — murmura Gabe. Ele apoia um braço à minha frente na
mesa, preparando-se para me proteger. Eu gostaria de pensar que é só
besteira de Vínculo superprotetor, mas Gryphon está se deslocando devagar
do outro lado, claramente tentando não provocar nenhum dos irmãos ao
mesmo tempo que vem na minha direção.
O QUE FOI QUE EU FIZ?
Sinto um nariz frio e molhado no meu tornozelo e abaixo os olhos
para Brutus. Ele está arrasado, transbordando tristeza, mas ainda assim
verificando se estou bem, enquanto seu Favorecido está tendo uma versão
muito máscula de um piripaque à mesa de jantar.
Graças a Deus, Sage e os outros não estão mais aqui.
Gryphon responde:
VOCÊ NÃO FEZ DE PROPÓSITO, MAS NÃO FALE DESSE JEITO COM O NOX, OLI.
SEI QUE NÃO É JUSTO, PORQUE ELE JÁ TINHA PASSADO DOS LIMITES, MAS VOCÊ ATIVOU
UM GATILHO DENTRO DELE E NOX NÃO CONSEGUE SE IMPEDIR DE TER ESTE TIPO DE
REAÇÃO.

Eu nem lembro direito do que falei.


Quando Gryphon finalmente chega perto, continua com movimentos
lentos ao me erguer da cadeira e me puxar contra seu corpo, mudando de
posição até estar me escondendo por completo. O problema é que minha
cabeça continua repassando aquilo que o vínculo de North me contou no
banheiro. Não quero que ele se coloque entre mim e as sombras, nem
quando estão rosnando.
No entanto, quando tento contorná-lo, os braços de Gryphon se
apertam em volta de mim e Gabe começa a me puxar em direção à porta
também. Não quero deixar nenhum dos irmãos, não quando a culpa disto
estar acontecendo é minha. Não vou ficar me julgando demais, mas porra,
eu tenho que ajudar, não tenho?
SÓ VAI PIORAR AS COISAS. VOCÊ É O VÍNCULO DELE. É O SUFICIENTE PARA
ACABAR COM QUALQUER FRAGMENTO DE CONTROLE QUE ELE AINDA TENHA.

Os dois me forçam a sair da sala de jantar, mas insisto em ficar no


corredor, ouvindo a voz baixa e firme de North tentando acalmar seu irmão
de seja lá que porra eu tenha causado.
Quando Gryphon tenta mais uma vez me fazer andar, firmo os pés.
— Vou ficar aqui até eles se resolverem lá dentro. Vou dormir na
cama do Nox hoje à noite mesmo, preciso esperar pelos dois.
Gryphon me olha feio, mas concorda, abaixando seu corpo
musculoso até estar sentado no chão comigo, e Gabe se dobra em um
montinho do meu outro lado. Não estou cansada, mas à medida que os
minutos se transformam em uma hora, deixo minha cabeça cair no ombro
de Gryphon e fecho os olhos.
Acordo com os múrmuros baixos de North:
— Ele está bem. Desceu até a academia. Talvez seja bom você ir
ficar de olho nele.
Pisco para tentar afastar o sono dos meus olhos, mas North
consegue me ajudar a chegar no elevador sem que eu precise me esforçar
muito. Com uma mão carinhosa, ele me conduz por todo o caminho, abre a
porta do quarto de Nox para mim e segura minha mão conforme subimos a
escada. Ele se instala no sofá enquanto eu me deito na cama.
— Vou ficar até você dormir, Vinculada. Descansa, o Gryphon vem
te buscar de manhã.
Não deveria ser tão fácil, mas meu vínculo confia cegamente nele,
por isso caio no sono em poucos minutos. Quando acordo algumas horas
depois, Nox está no sofá ao invés de North, e suas criaturas estão todas me
cercando, com exceção daquela que rosnou para mim por cima da mesa,
com cara de quem rasgaria minha garganta em um instante. Essa não: está
deitada atravessada sobre o peito de Nox, em uma forma de névoa com
aparência selvagem que ainda assim tem mais dentes do que qualquer outra
coisa. Tenho a sensação de que está ali para garantir que eu não chegue
perto de seu mestre.
Eu devia deixar os dois sozinhos.
Já estou ciente disso. Sei que eles têm seu próprio Vínculo para
resolverem entre si, mas quando saio do quarto de Nox e vou para o meu,
há uma névoa opaca de pavor turvando meu cérebro. No momento em que
deito na cama e fecho as pálpebras, só consigo ver a assombração nos olhos
do meu irmão logo antes de se transformarem nos vácuos.
Não vou conseguir dormir desse jeito.
Então, em vez de sequer tentar, levanto e visto um dos moletons que
minha Vinculada deixou no meu quarto com o cheiro dela; ela tem razão
sobre os cheiros acalmarem os vínculos. Caminho até o quarto de Nox. A
porta está destrancada, sempre está, e não me dou ao trabalho de bater. Suas
criaturas vão avisá-lo de que estou subindo e, como previsto, quando chego
no alto da escada, ele está me olhando do sofá.
Oleander está adormecida na cama, sozinha, e parece segura o
bastante.
— Você não confia mesmo em mim, não é?
Olho brevemente para Nox e dou um passo largo por cima da pilha
de sombras perto do patamar para me juntar a ele no sofá. A maior de suas
sombras – a mais cruel de todas, agora que Oleander domou Brutus – ergue
a cabeça do peito de Nox e rosna em minha direção. Ela sempre foi
cautelosa, mas o que aconteceu à mesa de jantar reabriu feridas antigas.
— Vim aqui apoiar os dois. Vim porque, embora você talvez não
queira, quero te ajudar, não importa o que precisar. Já te disse isso e estava
sendo sincero.
Ele bufa e passa os dedos pelo cabelo, puxando os fios como se
estivesse tentando arrancá-los da cabeça. Seu desempenho em manter a
fachada costuma ser melhor, agindo como o professor equilibrado que está
encarnando, e tento encarar como um sinal de progresso ele estar se
permitindo ser vulnerável tão próximo do nosso Vínculo.
Mesmo dormindo, Oli está perto o suficiente para que ele possa
tocá-la, o que por si só já é um gatilho.
— Você veio aqui cuidar dela, não minta. Eu sabia, quando o Gryph
a trouxe de volta, que você ia ficar todo caído por ela. Uma coisinha dessas
que precisa da sua ajuda em tudo? Ela foi feita para te desmontar, Baba.
Faz anos que ele não me chama assim, e meu peito fica apertado de
ouvir. Baba Yaga, o bicho-papão, a velha lenda de proteção que contei
quando ele era uma criança e à qual se agarrou durante anos.
Nox não está errado sobre Oleander, mas está sobre si mesmo. Dei a
minha palavra de que o apoiaria, protegeria e cuidaria se ele não pudesse
fazer isso por si mesmo. Jurei que faria tudo ao meu alcance para…
consertá-lo.
Agora sei que não é possível, mas nunca vou abandoná-lo.
— Ela foi feita para você também. Você ainda não está pronto, e
tudo bem, mas talvez deva parar de odiá-la por coisas que ela não fez.
Talvez deva pensar em encontrar um ponto de equilíbrio com ela.
Ele me olha feio.
— E como é que eu vou fazer isso com ela na porra da minha cama
toda semana? Não consigo esquecer dela nem por cinco minutos com esses
lençóis fedendo ao meu Vínculo.
Inspiro fundo, respirando o perfume dela no moletom, e os olhos
dele disparam para o tecido, já que ele consegue me ler como um livro
aberto. Sempre conseguiu. Somos dois lados da mesma moeda, sempre
fomos.
Interrompo-o antes que ele comece um novo discurso sobre o
quanto sou fraco por ela. Não é novidade nenhuma e não sinto vergonha
disso. Ela é a minha Vinculada e já provou que é mais do que digna. Sou eu
que preciso me provar aqui, não ela.
— Deixa pra lá. Se ela dormir aqui não está ajudando, podemos
fazer algumas mudanças. Sempre há outra solução. Optei por esta porque
achei que seria a menos… invasiva pra você. Se tiver outras ideias, pode me
contar.
Nox bufa e dá uma coçadinha atrás da orelha da criatura em seu
peito. Ele não costuma ser tão carinhoso com elas perto de mim. Sempre
soube que ele tem uma ligação melhor e mais forte com suas criaturas, mas
nunca cheguei a ver esse afeto em ação.
Mais um pouco da influência de Oleander.
Meu próprio vínculo pinica sob minha pele; August quer sair e fazer
companhia a ela, mas, com todo o arsenal de Nox ao redor, este não é o
lugar certo agora. Brutus pode até tolerá-lo, mas os outros, não.
Reconhecem uma sombra selvagem quando a veem e, embora esteja um
pouquinho mais domesticado, não confio completamente em August. Ainda
o mantenho em rédea curta, em especial quando Oleander não está
acordada.
Não importa o que meu vínculo lhe disse, não posso arriscar. Não
com ela.
— Vai dormir, irmão. Você está um caco e devia descansar um
pouco agora que já viu que sua Vinculadinha venenosa está viva e bem.
Reviro os olhos para os insultos contra ela, pequenas farpas que não
têm efeito nenhum em mim, mas se enterram na pele dela, exatamente como
ele deseja.
Esfrego o rosto e tento engolir o bocejo que ameaça se manifestar.
— Nunca mais vou dormir bem. Não com o tanto de ameaças que
estamos enfrentando. O Santuário não vai ficar pronto a tempo.
Porque ambos sabemos que a maior de minhas preocupações é tirar
todos nós do caminho da Resistência, para impedi-los de simplesmente
surgirem na nossa comunidade e nos levarem um por vez. Embora eu esteja
trabalhando em uma solução há anos, agora é a hora de se mexer.
Ele me dá uma olhada, passando a mão pelas costas da criatura.
— Você vai conseguir. O problema vai ser convencer as pessoas a
irem.
Talvez eu seja o monstro que todos acham que sou, porque, no fim
das contas, não me preocupo se vamos ou não conseguir levar as famílias
de Nível Superior para lá. É com os vulneráveis e pobres que eu me
preocupo, aqueles que não conseguem sair do caminho da Resistência por
conta própria.
Eu me preocupo com meu irmão e com o restante do nosso Grupo
de Vínculos.
E, mais do que qualquer outra coisa, eu me preocupo em ter certeza
de que o maldito Silas Davies nunca mais ponha a porra de seus olhos
sádicos em minha Vinculada de novo.
Eu, não tão aos poucos, mas com toda certeza, fico doida presa na mansão
Draven.
Quer dizer, eu sabia que ia acontecer, mas a cada dia que me sinto
melhor e menos sonolenta, a agonia de sair e fazer coisas piora. Gryphon
tenta aliviá-la acabando com a minha raça na academia, mas isso só me
irrita mais. As tentativas de North estão mais ligadas a conseguir mais
informações sobre os cinco anos que passei sozinha e ouvir meus relatos de
primeira mão, porque ele quer saber tudo no caso de termos deixado passar
alguma informação essencial.
O que só faz eu me sentir mais inútil e me deixa mais incomodada
com a ideia de trazer o inimigo até meus Vínculos.
Gabe é o melhor em me distrair, mas só porque se oferece de
acompanhante para Atlas e eu passarmos tempo juntos, e nós três ficamos
horas tentando descobrir como diabos saímos deste lugar. O Atlas é bom
nesse jogo, em grande parte porque tem tanta experiência em escapar de
pessoas com boas conexões, e algumas de suas sugestões deixam eu e Gabe
embasbacados.
Nox desaparece de novo.
Não me surpreende, mas fico com um pouco de inveja de ele ter
permissão de ir e vir como bem entender. Tenho a habilidade de,
literalmente, arrancar as almas das pessoas, e ainda assim tenho certeza de
que sou a pessoa mais protegida na droga do planeta todo.
Uma semana incrivelmente demorada e tediosa depois de eu voltar
para casa, a Resistência enfim executa sua próxima ação contra nós.
Descubro durante nosso treino na academia, um pouco antes do
amanhecer, enquanto estou suando na esteira. Gabe e Felix erguem peso,
enquanto Gryphon treina combate corporal com Sawyer, Felix e Sage. Bom,
a Sage está mais tentando fugir do combate, mas toda vez que ela se
aproxima sorrateiramente de mim, Gryphon lhe dirige um olhar que a
aterroriza até convencê-la a participar de seu sádico circuito da maldade.
Contudo, ela está se tornando impressionante em derrubar homens
com o dobro do seu tamanho, então não vou reclamar de como ele a trata.
North chega com Kieran vestido em traje tático completo e outros
três agentes da Equipe Tática na mesma hora que o celular de Gryphon
começa a tocar. Aperto o botão de parar a esteira e desço, pegando uma
toalha para secar o rosto enquanto me aproximo do grupo. Sage olha na
minha direção e vem parar do meu lado, de olho em Kieran. Ainda está
sendo esquisitíssimo ficar perto dos dois enquanto eles se entendem, mas
também gosto muito mais dele depois do tempo que passamos juntos no
campo. Sou super a favor dos dois resolverem esse lance juntos.
Sou mais a favor dele do que jamais serei de Riley, mesmo sabendo
que ele foi manipulado. Não consigo simplesmente perdoar e esquecer; para
mim não dá.
— Houve um ataque na Draven e no município vizinho — diz
North.
Em voz baixa, Gryphon xinga ao marchar até o vestiário para
colocar o uniforme.
Sawyer troca um olhar com North e sai sem dizer nada, o que me
parece estranho, mas estou preocupada demais com o que vai acontecer em
seguida para esclarecer isso agora.
— Ainda está em andamento ou é uma missão de limpeza? Deixa eu
pegar uma camiseta. Vou junto.
North entra na minha frente, olhando sério para mim, bem quando
Gryphon sai do vestiário, completamente vestido em tempo recorde,
ajustando as alças do coldre só pelo tato. Os dois estão me encarando de um
jeito mordaz, como se eu estivesse sendo uma criança malcriada, e não
estou. Estou sendo mais do que sensata.
— É uma limpeza, e só agentes treinados e da ativa da Equipe
Tática vão, o que significa que Gryphon é o único do nosso Grupo Vincular
a ir. Também não queremos nos deslocar em grandes grupos no momento, a
não ser que haja um bom motivo para isso, então você vai ficar aqui comigo
e com todos os outros.
Gabe tira a toalha das minhas mãos e usa o lado seco para limpar o
próprio rosto, esbarrando o braço no meu em uma demonstração silenciosa
de solidariedade, o que só me deixa mais irritadiça.
Além disso, meu vínculo está com fome agora, aumentando minha
raiva em um milhão de vezes.
— Eu sou mais útil lá fora do que dentro desta casa ridícula!
North nega com a cabeça e Gryphon dá as costas, vai até Kieran, e
os dois desaparecem com um estalo.
Sinto vontade de gritar.
— Vamos todos ficar aqui por enquanto, Oleander, mas pode vir
para o meu escritório acompanhar a chegada dos informes até decidirmos
qual será o plano de ação.
Compartilho um olhar com Sage e ambas assentimos antes de
acompanhá-lo sem dizer mais nada. Todos decidem vir junto e, quando
chegamos lá, Sawyer já está instalado na escrivaninha de North com um
notebook, digitando a toda velocidade. North pega uma das cadeiras
sobressalentes e me senta nela com uma das mãos no meu ombro, dando
uma apertadinha enquanto pega o celular e começa a mandar mensagens
para alguém.
— O que está acontecendo? O que você está fazendo? — murmuro,
enxerida e rabugenta por ter sido deixada nesta merda de casa, mas ele não
acha ruim.
— Chamando o Bassinger para assistir com a gente. Ele tem sido
ótimo em passar informações, e talvez alguma coisa ali chame a atenção
dele. Vou usar todos os recursos à nossa disposição para te manter em
segurança.
Minhas bochechas coram e Sage se empoleira na cadeira,
oferecendo uma mão em solidariedade. Aceito e dou um apertão carinhoso
em seus dedos. North encontra outra cadeira para si próprio e a arrasta até
meu outro lado. Parado atrás de Sawyer, Gray o assiste trabalhar, enquanto
Gabe e Felix trazem cadeiras da sala de jantar e sentam juntos perto da
parede, conversando em voz baixa sobre o que tudo isso significa para nós.
Tento não pensar muito a respeito.
Atlas chega depois de alguns minutos, ignorando todo mundo e
andando em linha reta até mim. As cadeiras do escritório não são grandes o
suficiente para dividirmos uma, mas quando levanto para abraçá-lo, ele nos
ajeita até eu ficar sentada em seu colo.
North lhe dirige um olhar muito descontente. Atlas apenas dá de
ombros e resmunga:
— Você manteve a Oli longe de mim o máximo que conseguiu sem
fazer mal a ela, então aguente um pouco.
Sage morde o lábio para segurar o sorriso, e Sawyer pigarreia:
— Pronto, vou transmitir pela tela grande. Shore, Black e Rockelle
estão usando câmeras nos uniformes, e podemos ver o que eles estão vendo.
Todos também estão com os rádios comunicadores, então se precisarem que
voltem em alguma coisa, é só dizer.
Atlas assente e North guarda o celular para assistir quando a enorme
tela plana na parede é ligada, e podemos acompanhar as filmagens de três
câmeras por ela.
A área não foi apenas invadida…
É um massacre.
Todos ficamos em silêncio quando os três agentes caminham pelo
local e vemos a carnificina. Há corpos por todo lado, tanto de favorecidos
de nível superior como inferior, cadáveres jogados pelas ruas para todos
verem. Kieran passa por uma repórter Não-Favorecida que está tentando
transpor o isolamento e falando um monte de besteiras sobre a situação, o
que não é nenhuma surpresa, mas os agentes não a deixam passar.
Depois de alguns minutos assistindo, North diz a Atlas:
— Está vendo alguma coisa?
Sinto Atlas dar de ombros.
— Tudo o que posso fazer é tentar adivinhar… tirando as marcas de
queimadura. Aquele ali com toda certeza é do Peter, um dos Vinculados da
minha irmã. Esse padrão é a marca irrefutável do dom dele. Espera! Aquilo,
ali. Sawyer, dá pra voltar um pouco? Três segundos. Isso, pausa aí. Aquele
ferimento é bem específico. Meu pai com certeza participou disso. Cacete.
Certo, isso ajuda. Tem uma equipe de gente sem a qual ele não trabalha,
então isso diminui bastante a lista de lugares para onde vão levar as
pessoas. Meu pai só trabalha com três campos. Oli fechou um deles, e tenho
um palpite de qual dos outros dois ele vai escolher.
Debruço-me nele.
— Sua mãe já contou para eles? Que você está neste Grupo de
Vínculos?
Ele me olha rápido e dá de ombros.
— Na última vez que tive notícias dela, antes de entregar meu
celular, não tinha contado. As coisas podem ter mudado. O North é que
saberia se caso ela tentasse entrar em contato comigo.
Nós dois olhamos para North, que nega com a cabeça.
— Não recebemos nada dela. Se formos todos fazer a limpeza no
campo, tem que estar preparado para a hipótese de todos eles saberem.
— A gente não pode só… deixar o Atlas aqui? Eles não vão mudar
de estratégia se formos agora?
North faz que não.
— Já estamos prestes a mudar tudo; essa invasão só acelerou o
processo em algumas semanas. Contanto que o Bassinger esteja certo de
que nos deu toda a informação de que precisamos, vamos assumir o risco.
Atlas concorda com a cabeça.
— Contei o que eu tinha considerado importante e tudo mais que
você pediu. Se me lembrar de mais alguma coisa ou algo surgir, já disse que
vou te passar as informações. O que quer que deixe a Oli segura, é seu.
Meu coração dispara, como se eu estivesse tendo algum ataque por
ouvir essas palavras. Ele é tão leal a mim; já era antes de me conhecer, e me
sinto tão indigna.
North me olha e meneia a cabeça.
— Você suportou dois anos de tortura sem entregar nenhum de nós
em momento algum. Ninguém merece mais a nossa lealdade do que você,
Vinculada.
O sangue deixa meu rosto e eu dou um gemido baixinho.
— Não diga que também consegue ler minha mente agora. Não
aguento mais.
Ele manda uma última mensagem pelo celular antes de guardá-lo no
bolso e afrouxa a gravata enquanto se prepara para vestir o uniforme tático.
— Não. Só estou ficando mais habilidoso em ler suas expressões
faciais. Você realmente não se enxerga da forma que nós a enxergamos,
nem um pouco. Vamos ter que mudar isso.
Sem saber como responder, volto a olhar para a tela e assistir ao
banho de sangue. Quando Gryphon se vira para uma área com gramado,
todo o ar se esvai dos meus pulmões.
Um lençol branco cobre parte da carnificina, mas as pernas que se
enfileiram por debaixo do tecido são claramente pequenas, de alguém no
ensino fundamental ou mais novo ainda. A Resistência os matou com a
mesma facilidade com que assassinou os homens e mulheres adultos que
escolheram ficar para trás.
— Vou vomitar — diz Sage, e Felix levanta de um pulo para pegar a
lixeira e segurar embaixo do nariz dela.
Ela tem alguns espasmos e, embora meu estômago também revire e
se contraia, engulo a bile subindo pela garganta.
Eu já sabia que este tipo de retaliação estava a caminho, todos
sabíamos, mas ver é diferente. Saber que… de alguma forma, sou
responsável por isso, é um horror.
As crianças.
Claro que ele foi atrás das crianças. Este é um aviso pessoal de
Davies para mim.
— Como? Como assim um aviso?
Não percebi que tinha falado em voz alta.
Ergo os olhos e descubro que, não apenas todos estão me olhando,
mas Nox também entrou na sala enquanto eu estava hipnotizada pelo terror
na tela.
Tento não descontar neles só porque estou constrangida.
— Mais perto do fim… do tempo que passei com ele, Davies
percebeu que a melhor forma de me atingir era pelas crianças. Eu não
conseguia suportar o que ele fazia com elas. Meu Vínculo assumia sem
precisar sentir toda a dor de costume porque eu deixava, só para não… ter
que assistir.
O nojo no rosto de Nox faz eu querer me deitar em posição fetal e
morrer, e entendo bem. Eu me escondi da dor e do pavor do que estava
acontecendo e não ajudei as crianças em nada…
North retruca:
— Para. Você não fez nada.
— Sim, eu sei. Não joga na cara, por favor.
Ele segura meu braço e me puxa para que eu olhe seu rosto, quase
me tirando do colo de Atlas.
— Presta atenção, Vinculada. Você também era uma criança. Tinha
quatorze anos quando ele te pegou e dezesseis quando escapou. Ninguém
aqui acha que você é responsável de forma nenhuma pelo que aquele
homem fez. Ninguém.
Meus olhos disparam para Nox porque, bom, é ele quem me julga
com a mesma severidade com a qual eu julgo a mim mesma. Se alguém
aqui vai dizer a verdade nua e crua sobre a minha responsabilidade, é ele.
Ele nem se incomoda de retribuir meu olhar.
— Bom, o Black detectou o rastro do Transportador, certo? Vamos
lá matar esses sádicos e acabar logo com essa história. Todos eles precisam
morrer berrando e acho que podemos dar um jeito nisso — diz Nox, dando
as costas para nós e saindo do escritório.
North se levanta e me ajuda a ficar de pé com a palma da mão
quente na minha espinha, murmurando baixinho:
— Eu preferia que você ficasse aqui, mas se quiser vir e fazer sua
parte, precisamos ir agora.
Olho no rosto dele, mas ele já sabe qual é minha resposta.
Vou deixar meu vínculo matar tantos daquele pessoal quanto
conseguirmos encontrar.
A voz de Gryphon surge sem aviso na minha mente:
ESSA É A MINHA GAROTA.

Quero continuar com a roupa que estou, mas meus Vinculados não
querem nem saber. North me empurra, coage e repreende até enfiar um traje
tático completo em mim, sobre o qual eu reclamo em alto e bom som
porque tenho certeza de que estou parecendo um bebê usando as roupas do
papai.
Também não ajuda que, quando saio do vestiário e entro no saguão
onde todos estão esperando, Gabe morra de rir da minha cara, risada essa
que devagar se transforma numa gargalhada alta de ficar sem ar.
Olho furiosa para North, mas ele me ignora. Gryphon, que voltou
com Kieran para sermos transportados juntos, dá um pescotapa em Gabe e
retruca:
— Cala a boca, imbecil, antes que ela comece a reclamar de novo.
— Como assim de novo? Ela nunca parou — resmunga North, e
descubro as vantagens das botas com solado grosso quando piso no pé dele
e o Vinculado carrancudo faz uma careta de verdade.
Vou considerar uma vitória.
Atlas aparece em um uniforme tático modificado, em geral porque
tem menos painéis protetivos, e meu coração bate um pouquinho mais
rápido por um segundo até eu me dar conta de que ele é indestrutível e não
precisa de nada disso.
— Se você levar um tiro, a bala só, tipo, bate e volta, ou você se
cura mais rápido? O quanto vou ter que me preocupar com você?
Ele sorri e pendura um braço sobre meus ombros.
— Ela bate e volta, o que é o motivo para eu ter permissão de ir
junto hoje. Sou seu escudo humano do dia, sua sombra poderosa te
seguindo a cada passo.
Fico só olhando para ele por um momento, tentando imaginar as
balas simplesmente sendo rebatidas de sua pele, e dou um sorriso,
segurando sua mão e puxando seu corpo para perto do meu.
— Perfeito. Se prepare para conhecer meu vínculo. Tente não me
julgar demais quando ela começar a torturar todos nas redondezas.
Ele me dá um sorrisinho e abaixa a cabeça para murmurar:
— Já te falei que sei tudo sobre o seu vínculo. Nada que aconteça
pode me afugentar. Você e eu, nada pode se interpor entre nós.
Se não houvesse um milhão de agentes da Equipe Tática zanzando
ao nosso redor neste espaço apertado, eu o beijaria, mas não parece certo
começar a dar uns amassos perto dessa gente, então dou um passo curto
para trás e respiro fundo.
Gabe olha de um para o outro, então se aproxima para me flanquear
do outro lado, fazendo-me sentir minúscula entre os dois. Gryphon termina
de bolar planos com Kieran, ladrando ordens para cada uma das equipes, e
North está tendo uma discussão silenciosa com Nox em um canto. Ambos
parecem estar se coçando para ir logo e, é claro, há um aro de névoa preta
em volta do pulso de North, um dos poucos sinais de que ele está perto de
perder o controle do seu dom. Ele se sente tão responsável pelo ataque
quanto eu, mas de outra perspectiva.
Ele é o conselheiro que foi derrotado a cada etapa, tentando tirar o
máximo de pessoas que consegue vivas dessa situação, mas as outras
famílias de Nível Superior querem se esconder no próprio dinheiro e não
fazer nada. Querem desperdiçar seus dons e poderes de Vinculados porque
acham que este tipo de trabalho não é do seu nível, não importa o que North
diga.
Ainda assim, ele sente que não está fazendo o suficiente.
SE CONCENTRA NO TRABALHO, VINCULADA, SENÃO VOU TE DEIXAR AQUI.
Volto minha atenção a Gryphon e ergo uma sobrancelha em sua
direção.
ESTOU CONCENTRADA. NADA DEIXA MEU VÍNCULO MAIS FURIOSO DO QUE A
ESCÓRIA DA RESISTENCIA MAGOANDO MEUS VINCULADOS E VÍNCULOS. ELA É MUITO
SENTIMENTAL QUANTO AO QUE É NOSSO.

Isso faz os cantos de sua boca se erguerem um pouco, e então ele


volta a gritar mais ordens, repetindo os tempos em que vamos saltar com os
Transportadores, fazendo todos em volta se prepararem. Nós vamos com o
Kieran, claro, e saltaremos na terceira onda. Nunca tinham me ensinado
todos esses termos antes, e aprender na prática até que é divertido. Quando
os dois Draven se aproximam do nosso grupo para irmos todos juntos, sinto
uma descarga de adrenalina no sangue.
Olha só para mim, toda empolgada para ser um monstro do bem.
NADA DESSA CONVERSA DE MONSTRO TAMBÉM, diz Gryphon.
Respondo em voz alta:
— Estou canalizando o monstro para o bem. Estou pouco me
fodendo para o que as pessoas pensam do que meu vínculo pode fazer.
Kieran olha para mim, depois para o resto do grupo, e então
murmura:
— É assim que se fala! Quanto mais deles você matar, menos vão
sobrar para ficarem matando criancinhas inocentes por aí. Mate todos eles,
Fallows.
Talvez mate mesmo.
O dom dele nos lança no espaço e voltamos a existir nas imediações
de um campo. O sol já está se pondo nesta parte do mundo e a visibilidade
está uma merda.
Gryphon para do meu lado e fala baixinho para Atlas e eu:
— Fiquem onde eu possa ver vocês o tempo todo. O Black vai levar
vocês para casa no segundo em que qualquer um dos dois sair um
pouquinho da linha.
Concordo com a cabeça, tentando parecer tão obediente e solene
quanto consigo, enquanto Atlas só dá um aceno breve.
Harrison bufa e comenta:
— Todos nós vimos o que ela fez com o último campo, Shore. Ela é
a melhor defesa que temos. Vocês deviam mesmo dar um tempo para a
garota.
Gryphon o olha de um jeito que tenho certeza que faz até as bolas
do cara encolherem. North vem até o meu lado, coloca o capacete sobre seu
cabelo perfeito, e retruca:
— Mantenha seus olhos e suas opiniões longe da minha Vinculada
antes que eu solte um pesadelo em você, Rockelle.
Ele fica um pouco pálido e surta mais ainda quando August sai num
rompante de North e imediatamente dá a volta para se sentar aos meus pés,
abrindo a mandíbula para que sua língua possa ficar pendurada para fora
enquanto me implora por carinho em silêncio.
Abaixo-me para dar o que ele quer, ao mesmo tempo em que tiro
Brutus de trás da minha orelha. Faço carinho nos dois e murmuro sobre
toda a carnificina e terror que vamos causar juntos aqui esta noite.
Há um momento de silêncio sepulcral ao meu redor, e então
Rockelle diz:
— Isso é apavorante…
Kieran o interrompe.
— Eu te disse! Já falei para ficar longe dela, mas você tem que ser
idiota e meter o nariz onde não deve. O Shore vai arrancar seu baço pela
garganta com as próprias mãos se você sequer olhar para ela de novo, então
fica fora do caminho dela. Na verdade, todos vocês deviam tratar a Fallows
como se ela também fosse uma criatura de sombras, porque se o vínculo
dela decidir participar da festa, vai ser igual a uma sombra selvagem e
sanguinária, porque vai matar vocês, fácil assim. Fiquem. Longe. Dela.
Os agentes balbuciam de acordo e, obedientes, espalham-se,
entrando na formação que treinaram com meu Vinculado. Observo-os e
então me endireito, estalando os dedos para os cãezinhos me
acompanharem. Eles obedecem como os bons garotos que são.
— Me conta se reconhecer alguém — digo baixinho para Atlas, que
olha para baixo, um pouco inseguro. Ele acha que estou duvidando dele, e
no mesmo instante me sinto culpada.
Eu me apresso em tranquilizá-lo:
— Só estou falando no caso de ter alguém que valha a pena manter
vivo para ser interrogado pelo North e pelo Gryphon. A maior parte dessa
gente vale mais morta, mas… se tiver alguém que possa conhecer bem os
planos, o Gryphon devia falar com ela.
Ele assente, tira o capacete e o joga no chão.
— Não consigo enxergar tão bem com esse troço. Vamos reduzir
esse buraco dos infernos a cinzas. De preferência com meu pai dentro.
Nunca estive neste campo, o que ao mesmo tempo é uma benção e meio
irritante. Uma benção porque não há lembranças escondidas por aqui,
prontas para saltarem em cima de mim e me paralisarem; irritante porque
quantas dessas coisas ridículas a Resistência tem? Quantos Favorecidos
inocentes eles já sequestraram, fizeram passar por lavagem cerebral,
torturaram e assassinaram?
Quantas garotinhas já foram feridas e abusadas aqui?
— Não pense nisso. Não quero que seu vínculo fique engatilhado
ainda. Vamos tentar ser sorrateiros. Por ora, não precisamos de um
massacre completo — diz Gryphon, e eu concordo devagar, olhando em seu
rosto.
Ele tem razão, mas é difícil dispersar esses sentimentos. O ar está
carregado com os fantasmas dividindo o espaço com a gente, e essa
sensação ameaçadora deixa meu vínculo em alerta máximo.
Ou o campo não tem gente para selecionar os Favorecidos, ou ainda
estão tão ocupados com os recém-chegados que ninguém dispara o alarme
da nossa chegada. Gryphon usa principalmente sinais gestuais para mover
sua equipe pela pouca cobertura dos arbustos pantanosos por aqui, e eu só
sigo as instruções que ele me dá pela nossa conexão de Vinculados:
SÓ DEIXE AS EQUIPES FAZEREM O QUE FORAM TREINADAS PARA FAZER. ESTAMOS
AQUI PARA DAR APOIO, NÃO FAZER O TRABALHO BRAÇAL.

Olho para North e faço que sim, apertando-me um pouco mais


contra a lateral de Atlas para deixar claro a todos que estou seguindo as
regras. Não porque virei uma covarde nem nada, só não quero que se
machuquem com a distração caso eu saia correndo sem motivo.
Confio em Gryphon e sua equipe, confio em Kieran porque ele já
provou que é de confiança, e confio no resto porque qualquer um treinado e
avaliado por Gryphon é bom o bastante para mim.
Ele é bem durão, e ninguém conseguiria escapar de sua vigilância
atenta.
Faz-se alguns minutos de calmaria em que apenas os sons do campo
podem ser ouvidos conforme avançamos em sincronia pelo mato, e então há
uma explosão do outro lado e uma das tendas acende em uma bola gigante
de chamas.
Meu vínculo toma a dianteira na mesma hora; o pânico que sinto
pelo incêndio inesperado faz com que seu efeito protetivo entre em ação.
Ainda estou presente o suficiente para saber o que está acontecendo e para
discutir com meu vínculo se precisar, mas é ele quem está no controle. As
sombras assumem uma guarda atenta, prontas para me protegerem de
qualquer coisa que possa vir atrás de mim.
O Inabalável logo percebe, mas continua por perto, acenando para
mim de forma respeitosa. Ele sabe a meu respeito há muito tempo e
aprendeu todas as formas de cortejar um vínculo como eu. Quando sorrio
para ele, mostro todos os dentes.
— Devíamos matar todos agora. Soldado da Resistência só é bom
morto.
Há movimento ao nosso redor à medida que os agentes entram no
campo; tiros e gritos ressoam pelo ar, e O Inabalável ignora tudo. Ele
inclina a cabeça, como se concordasse, mas diz:
— Em geral, sim, mas informação é a chave no momento. Alguém
aqui pode saber onde Davies está, ou o que planejam fazer em seguida, e
queremos ver o homem que se atreveu a tocar em você morto.
O velho sistema de recompensas e punições, que funciona porque é
verdade.
Quero aquele homem morto. Quero ter meus Vínculos todos
completos e despedaçá-lo devagar. Quero dá-lo de comer pedacinho por
pedacinho para as sombras aos meus pés.
Uma voz soa no meu ouvido através de uma pequena máquina:
— Bassinger, para de botar pilha nela e mantenham distância do
resto até termos isolado a área.
Não gosto de ouvi-los no meu ouvido desse jeito. Quando ergo o
braço para tirar o dispositivo, O Inabalável me impede segurando minha
mão, e me vira com gentileza para onde temos cobertura, onde podemos
observar os agentes trabalharem.
Eles são eficientes.
Em desvantagem de dez para um, eliminam os fugitivos e todos os
Transportadores que conseguem. Assisto-os trabalhando enquanto O
Inabalável pega sua própria arma, checa a trava e a segura contra a lateral
do corpo. Ele me oferece uma, mas recuso com a cabeça. Sou uma deusa;
armas não são nada para mim.
PRECISAMOS TER UMA CONVERSA SOBRE ESSA HISTÓRIA DE “DEUSA” MUITO EM
BREVE, VINCULADA.

Ignoro meu Vinculado e o observo guiar seu pessoal pelo campo


para afugentarem mais soldados inimigos. Há retardatários por toda parte;
alguns chegam ao mato e então são eliminados pelos agentes. Acho que não
estamos esperando mais muitos problemas, mas quando O Inabalável xinga
com veemência, viro o rosto e vejo uma mulher loira o encarando,
absolutamente chocada.
Quando o rosto dela enfim se transforma em um rosnado, a mocinha
dentro de mim sussurra que aquela é sua irmã.
Ela dá um passo na direção dele e eu entro em sua frente, erguendo
o braço, só para ele encostar o corpo nas minhas costas e murmurar:
— Não a mate, Vínculo. Podemos levá-la e lidar com ela do jeito
que o North quiser, mas…
A irmã dele dá meia-volta e sai correndo. As balas atingem seu
corpo e ricocheteiam, pois seu dom é o mesmo do irmão.
A mocinha tenta assumir o controle de novo e me forçar à
submissão, mas mantenho o comando.
— Concordo. As sombras vão cuidar disso para nós.
O Inabalável me examina, mas estalo os dedos até o filhote de
sombras vir para o meu lado.
— Preciso dela viva e que você a deixe o mais ilesa possível sem se
ferir. Pegue-a para mim.
A sombra me dá uma piscadela, e sei que o Sombrio está vendo
através de seus olhos; é por isso que ele está hesitando.
A mocinha dentro de mim fala diretamente com ele, antes que eu
mesma possa resolver isso:
O ATLAS NÃO FEZ NENHUMA TENTATIVA DE OCULTÁ-LA OU NOS CONVENCER A
DEIXÁ-LA IR EMBORA.
SÓ PEDIU PARA A LEVARMOS EM VEZ DE MATÁ-LA, POR ENQUANTO.
ACHO QUE PODEMOS FAZER ISSO POR ELE, NÃO?
Há uma pausa e então a sombra dispara, correndo mais rápido do
que meus olhos podem acompanhar, perseguindo a garota inimiga. O
Inabalável inspira fundo e observa, mas não faz menção de interferir. Mais
uma vez, sinto uma necessidade profunda de destruir a família dele, de
caçar todos e me banquetear em suas almas até não passarem de cinzas e pó
sob nossos pés.
O Sombrio fala direto conosco mais uma vez:
VOU MANDAR O AUGUST LEVÁ-LA AO KIERAN PARA UM SALTO IMEDIATO. NÃO
QUERO ELA CONVERSANDO COM ATLAS E TENTANDO MANIPULÁ-LO. VAMOS MANTER AS
COISAS MAIS DISCRETAS O POSSÍVEL POR ENQUANTO, VINCULADA.

Olho para a carnificina ao nosso redor e digo:


— O Sombrio vai tirá-la daqui agora e levá-la para que seja detida.
Ela está viva e vai continuar assim.
O Inabalável dá um aceno breve com a cabeça.
— Não quero vê-la. Não quero ver nenhum deles. Vamos acabar
logo com isso e dar o fora deste fim de mundo.
Há outra explosão e ele me envolve com o braço de novo, pronto
para proteger meu corpo com o seu para resguardar a mocinha do calor e
destruição. Um Flama está controlando o fogo lá, garantindo que só queime
o inimigo e o campo sem que atinja nenhum dos nossos. Meu Metamorfo
está devastando o campo em sua forma de lobo, mordendo e despedaçando
homens com nada além de suas poderosas presas. Vê-lo assim, tão
magnífico, enche-me de orgulho.
Quero participar, mas também quero assistir enquanto avançam,
quero saber do que meus Vínculos são capazes e ter certeza de que são
dignos do Grupo Vincular do qual fazem parte. É bom ver que são.
Então eu sinto.
Um dos meus Vínculos está ferido.
Meus olhos se transformam e acabou a brincadeira; é o fim da
missão, desses homens e dessas mulheres. Meu vínculo simplesmente faz
uma limpa no campo inteiro, eliminando cada um enquanto expando meu
poder para descobrir qual deles se machucou e onde ele está. Arrancar
almas é mais fácil do que respirar, e o barulho uniforme do baque de todos
caindo ao mesmo tempo é satisfatório.
As Equipes Táticas estão gritando e o caos se instaura à nossa volta,
mas ignoro enquanto, determinada, vasculho a desordem.
Gabe, a mocinha sussurra, e parece que meu coração entra em
descompasso. Quer dizer, racionalmente, eu sei que só pode ser o
Metamorfo ou o Sombrio danificado. Se tivesse sido um dos meus
Vinculados, eu saberia com exatidão quem e como fora ferido, e O
Inabalável é blindado.
ONDE ELE ESTÁ? O QUE ACONTECEU?, pergunto aos meus dois
Vinculados, mas ninguém sabe. Ele está sozinho em algum lugar.
Minha rede finalmente o encontra em uma das maiores tendas de
contenção, e disparo correndo naquela direção. Há mais corpos por aqui; a
maioria eu que matei, mas alguns têm buracos de tiros e ferimentos visíveis
causados por dons. Há um Flama fazendo um belo estrago e eu admiro seu
trabalho em silêncio, indo de encontro ao meu Vínculo.
Gosto de saber que essas pessoas sentiram dor antes de suas mortes
inevitáveis.
A garota não gosta que eu pense assim, não gosta do que isso faz
com sua moralidade, mas essa petulância pertence a mim. Qual a utilidade
de moralidade para a Deusa da Morte? Nenhuma. Esse tipo de coisa não é
nada para mim ou para os meus.
Quando me abaixo para entrar na tenda, há fileiras de celas com
prisioneiros de aparência abatida e apavorada e uma grande pilha de
homens mortos na frente do Metamorfo. Ele foi baleado. Há dois
ferimentos no braço onde o projétil entrou e saiu; parece doloroso, mas não
representa risco de vida. Ainda assim, fico furiosa de vê-lo sangrando e me
aproximo marchando com uma carranca no rosto.
Ele fica alarmado ao me ver; as sobrancelhas disparam para cima e
ele estende o braço bom, como se pudesse me parar.
— Eu tinha duas opções. Escolhi a que faria todos nós
sobrevivermos. Vai sarar tranquilamente, Vínculo. Calma…
Reviro os olhos para ele enquanto meu dom irrompe de mim,
interrompendo-o.
— Não. Nada de se machucar mais. Por ninguém, entendeu? Não
vou tolerar.
Ele me encara, olhando nas profundezas dos meus olhos, então
assente devagar, pressionando o fone do comunicador com os dedos na
extremidade do braço recém-curado, murmurando:
— Oli está no modo vínculo total, estão sabendo?
Ouço a pergunta no meu próprio fone e depois o Sombrio danificado
diz com a voz arrastada:
— Os corpos mortos empilhados por toda parte deram a entender
isso, sim.
Meu Vinculado Sombrio diz:
— Só fique perto dela e não deixe ela se aproximar dos Favorecidos
sequestrados. Não sei bem que percepção ela terá deles e não quero que
mate alguém que possa vir a ser útil.
O Metamorfo me observa e, quando inclino a cabeça em sua
direção, murmura:
— Não é tão fácil. Ela está ouvindo esta conversa.
O Sombrio danificado diz:
— Dá um jeito.
Então, O Inabalável:
— Estou indo até vocês. Vou ajudar a tirar ela daí.
O Metamorfo dá de cara com um dos corpos e murmura:
— Quantos desses você eliminou? Nossa!
O Inabalável fecha a cara e avança como se fosse golpear o
Metamorfo, então me dá uma olhada e muda de ideia.
— Não fala assim. O vínculo dela pode estar no controle, mas a Oli
continua ali dentro e não precisa ouvir seus comentários de merda.
Ignoro os dois, mas a mocinha tem muitos sentimentos a respeito
desta conversa. Sentimentos não significam nada para mim.
Chegamos à clareira e descobrimos que os homens e mulheres de
preto, vestindo coletes à prova de balas e carregando armas, estão
espalhados fazendo o balanço dos estragos.
A maior parte é obra minha.
O Metamorfo e O Inabalável me conduzem até um grupo e
começam a conversar com alguns agentes; todos me observam de canto de
olho, como se achassem que serão os próximos que irei eliminar.
Que divertido seria, mas fica para outra hora.
Quando meu vínculo enfim me deixa com esse último pensamento
encantador antes de voltar para os mais profundos confins de minha mente,
sacudo os membros até me sentir eu mesma de novo. Minhas pernas doem
um pouco e vou precisar me alongar mais tarde, mas, fora isso, estou bem.
Saímos bem dessa experiência.
— Se vai deitar aí e tirar um cochilo, avisa. Chamo o Shore para te
carregar no colo de novo — provoca Kieran.
Faço uma cara feia para ele e reviro os olhos.
— Obrigada pela preocupação, mas estou bem. Olha só pra nós,
conseguimos limpar um campo todo sem tomar uma surra antes! Não se vê
um único osso quebrado. Que orgulho de você, Black!
Os caras perto começam a tirar sarro em voz baixa, mas calam a
boca rapidinho quando ele se vira e lança um olhar mortífero para todos.
Eles podem até não o reverenciar tanto quanto a meu Vinculado, mas é
óbvio que o respeitam.
Dá para ver o porquê.
Atlas chega um pouco mais perto de mim enquanto esperamos os
outros. Daqui, consigo ver todos os meus Vínculos, com exceção de North.
Não estou preocupada, porque saberia se tivesse algo de errado com ele,
mas ainda fico um pouco incomodada.
ONDE VOCÊ ESTÁ?
Ele responde rápido:
NAS TENDAS DE CONTENÇÃO. VOCÊ VOLTOU, OU É SÓ UM BREVE INSTANTE DE
LUCIDEZ?

Endireito os ombros e olho em volta. As tendas de contenção ficam


perto, e digo a Atlas aonde vou. Ele se vira para me vigiar, mas fica onde
está, pois confia em mim.
Eu me enfio no espaço e descubro que, embora as celas tenham sido
abertas, a maior parte das curas e avaliações está ocorrendo dentro delas.
Alguns dos Favorecidos, os que estão presos aqui há mais tempo, estão tão
frágeis que vão precisar ser carregados, e alguns parecem doentes demais
para serem deslocados. Vê-los deixa meu coração apertado. Ando até onde
North está acompanhando tudo com uma expressão que deixa claro quanto
nojo e desprezo ele sente pelos responsáveis.
Pigarreio e falo baixo:
— Voltei. De verdade, no caso. Desculpa ter saído do roteiro.
Ele assente.
— Foi melhor assim. Eles tinham bem mais vantagem do que
esperávamos. Sempre têm, não importa quanta força extra a gente coloque.
Essa parece ser uma das muitas vantagens da Resistência. Em
consequência de seus métodos inescrupulosos, podem simplesmente
sequestrar e fazer lavagem cerebral em todo um novo grupo de soldados
que estão dispostos a sacrificar para chegar até nós.
O silêncio recai sobre nós enquanto assistimos uma das mulheres da
cela ter um colapso e começar a gritar com os agentes que se aproximam.
Ela está horrorizada, enfiando as unhas na própria pele, tentando arrancar
de si algo que não podemos ver. Quando alteram os planos e uma agente
mulher vai abordá-la, ela desaba e começa a chorar de soluçar.
Sinto vontade de chorar junto.
Preciso tentar duas vezes para que minha voz saia:
— O que vai acontecer com eles?
North faz uma careta.
— Você não quer ouvir a resposta para essa pergunta, Oleander. Os
que podem ser levados para casa, sim. Tenta focar nisso. É o que eu faço.
Olhando para essas pessoas… não dá para saber se alguma delas
poderá mesmo ir para casa.
— Quem é o responsável? Quem abate os que não podem ser
salvos?
Ele semicerra os olhos para mim.
— Não. Não peça isso e não pense assim. Seu dom não vai ser
usado com esse fim.
— Já sou um monstro, North. O que são mais algumas almas
quando tirei milhares? Aham, é isso mesmo. Está na casa dos milhares,
graças ao tempo que passei em um destes campos. Que diferença faz?
Ele arranca o capacete e abaixa o protetor facial, de modo que posso
ver com clareza a fúria fulminante em todo seu rosto, mas fala em voz
baixa, para que ninguém mais ali dentro ouça:
— Faz diferença porque sua voz está trêmula, Oleander. Não está
ouvindo? Faz diferença porque você está agonizando de culpa.
Meneio a cabeça, mas ele ergue uma mão, segura meu queixo e
cessa o movimento, inclinando-se para perto e rosnando:
— Faz diferença porque você é minha, e eu jamais permitiria que
você fizesse isso. Matar para se proteger? Tudo bem. Matar para eliminar
todos os inimigos que te machucaram? Ótimo, vá em frente. Estas pessoas?
Nunca. Você não, jamais.
Quero gritar com ele, discutir. Por que não deveria ser eu? Por que
eu deveria viver protegida de toda essa feiura só porque eles são meus
Vínculos? Porém, ele segura meu braço e me arrasta para fora da tenda, em
direção à clareira onde todos os outros nos esperam para voltarmos para
casa.

Kieran espera por um segundo e, quando meus olhos continuam da


cor normal, oferece o braço para que todos seguremos.
Quando ressurgimos com um estalido, meu estômago se rebela e eu
cubro a boca com a mão. Gryphon empurra Atlas para fora do caminho,
com só um pouquinho mais de força do que seria necessário, e coloca a mão
no meu pescoço. Seu calor me penetra à medida que ele manipula meu
sistema nervoso e me impede de vomitar por todo lado.
O suor e os tremores param no mesmo instante, e quase declaro meu
amor eterno a ele em voz alta na frente de seus amigos e subordinados.
COMO SE EU DESSE A MÍNIMA DELES OUVIREM, VINCULADA.
Fico corada e abaixo a cabeça para afastar sua mão da minha pele.
Escuto sua risadinha, e ele me puxa para seu peito num abraço rápido antes
de sair gritando ordens para as pessoas outra vez.
Atlas estende a mão para dar uma apertadinha na minha, depois
acompanha North para fora da sala. Presumo que esteja voltando para a
solitária, já que não questiona.
Odeio isso, mas não vou repreender North na frente de toda essa
gente.
Inspiro fundo e permito que meus ombros relaxem um pouco.
Verifico meu vínculo e meu corpo, e não sinto a chegada da iminente
soneca de três dias. Estou exausta, mas é apenas o mesmo cansaço que sinto
depois de Gryphon acabar comigo na academia; uma boa noite de sono
deve ser o suficiente. Quando abro os olhos, finalmente reparo no ambiente
e franzo bem o cenho.
— Onde estamos? Não é a mansão. O North disse para levar a gente
pra casa.
Kieran me dá um sorriso de canto e estende os braços.
— Nossa casa agora é aqui, Fallows. A invasão nos forçou a vir
antes do planejado, mas o Santuário é nosso lar agora.
Dou uma olhada para Gabe, que joga o braço por cima dos meus
ombros e me conduz a enormes portas. Abrindo-as, ele me leva para fora,
para dar uma olhada no… Santuário.
Porra, é uma cidade inteira.
Certo, está mais para um pequeno município ou um vilarejo, na
verdade, mas há dezenas de casas e prédios, e gente por todo lado. O sol
está começando a se pôr, por isso acho que voltamos aos Estados Unidos.
Estamos em uma clareira com montanhas de todos os lados, e uma leve
oscilação do ar ao redor indica que temos Escudos fazendo hora extra para
manter este lugar fora do mapa.
Fico admirando tudo, maravilhada.
— Que lugar é este?
Gabe beija minha têmpora e murmura:
— William e Nolan Draven começaram a construí-lo há quarenta
anos. Quando North teve idade o suficiente para assumir a cadeira no
Conselho, começou a ajudar também. Tem sido a missão da família Draven
há uma vida toda. Só ia ficar pronto daqui a pouco mais de uma década,
mas quando North descobriu sobre você, adiantou todos os prazos. Ele
investiu centenas de milhões de dólares neste lugar desde que assumiu a
construção. Tem recrutado os melhores e mais fortes Favorecidos, todos
aprovados pelo Gryphon, então sabemos que vai estar segura aqui. Só que
North se recusava a abandonar as comunidades de favorecidos que não
tinham condições de fugir sozinhas, então é por isso que é tão… grande. Ele
trouxe todo mundo que quis vir e foi aprovado pela avaliação. A
Resistência nunca vai nos encontrar aqui. North garantiu isso.
Deslumbrada, encaro todas as pessoas ao redor, todas as crianças.
Todos parecem um pouco atordoados, mas estão levando seus itens pessoais
para dentro das casas e sorrindo uns para os outros, bastante felizes.
— Como você transporta tanta gente assim de uma vez sem deixar
rastros?
Sinto um Vínculo se aproximar por trás de nós, então Atlas diz:
— Com Transportadores. Com uma porrada de Transportadores.
Essa é a coisa mais impressionante que eu já vi.
Viro-me para encará-lo.
— Achei que você ia voltar para sua cela superconfortável e
humana.
Ele sorri, mas não é aquele sorriso cálido e convidativo de costume;
está evidente que este dia o deixou exausto.
— Fui com o North ver as celas de verdade, ter certeza de que são
suficientes para conter minha irmã. Estou livre de novo. O North acredita
que minha vontade de ficar com você é muito mais forte do que qualquer
dedicação que eu já tenha oferecido para os negócios da família.
As últimas palavras são cuspidas como se fossem veneno em sua
língua, e eu me afasto completamente de Gabe para me aproximar dele. É
difícil vê-lo assim e pensar em tudo que está passando enquanto enfrenta o
fato de que sua família não é apenas o inimigo dos outros, mas os inimigos
dele mesmo.
Tirando sua mãe, eles nos matariam em um piscar de olhos só para
continuar propagando sua ideologia.
E vai saber o que ela vai fará agora que perdeu todo o contato com o
filho.
Atlas aninha o rosto no meu pescoço, inspira meu cheiro de forma
um tanto trêmula, e eu tento ser forte por ele. Tento ser tudo que ele foi por
mim quando cheguei aqui e não sabia em quem podia confiar. Sei que estou
longe de conseguir, mas tento.
Depois de anos vindo ao Santuário para testar as medidas de segurança,
ajudar a construir casas, organizar as instalações de trabalho, abastecer os
estoques e montar um arsenal grande o bastante para nos defender de um
ataque militar de, literalmente, qualquer um dos maiores exércitos do
mundo, é bom finalmente estar aqui sabendo que é nosso lar.
E, agora que Oli está também, parece ser mesmo.
Como a casa que North mandou construir para nosso Grupo de
Vínculos ainda não ficou pronta, estamos em uma das menores que foram
reservadas às famílias dos outros membros do Conselho, apesar de só três
delas terem escolhido se juntar a nós. São apenas quatro quartos, então
Gabe e Bassinger se oferecem para dividir. Oli não tem um só seu e diz que
está tudo bem, mas sei que já está ficando frustrada de não ter um espaço
privado logo no primeiro dia.
Contudo, ela não diz nada a respeito, e eu fico de boca fechada; não
conto aos outros o que está se passando em sua cabeça. Ela já não tem
privacidade nenhuma; não há necessidade de piorar tudo transmitindo seus
pensamentos.
Após dois dias tranquilos, mas movimentados, acordo com uma
Vinculada nua nos meus braços, ainda adormecida, sonhando com nada
além de aconchego e conforto. Ela estava relutante de transar nesta casa, já
que todos dividimos paredes, e só consegui persuadi-la chupando a boceta
dela até meu rosto ficar ensopado com seu gozo. Ela arranhou meus ombros
e mordeu a mão até sangrar para continuar em silêncio.
Não tenho coragem de lhe contar que todos seus Vínculos a
sentiram na noite passada. Um orgasmo dela tão de perto? Deixou todos se
revirando, e Gabe passou uma hora tomando uma chuveirada fria depois
que Oli, enfim, caiu no sono.
Todos exceto Nox, que saiu de casa no segundo em que tirei a
calcinha dela e tomou um porre no escritório de North, onde suponho que
ainda esteja dormindo.
— Por que essa cara de convencido? — murmura Oli, com a voz
ainda rouca de sono, e imediatamente quero mais uma rodada.
Meu pinto já está duro de ficar se esfregando na bundinha arrebitada
dela.
— Não dá para evitar ficar convencido depois de fazer minha
Vinculada gozar oito vezes com a língua. Estou pensando em repetir.
Oli cora de um jeito tão lindo, mas seus olhos descem até minha
boca e ela sorri:
— Você não tem uma reunião agora de manhã? Falou para o North
que sairia daqui às sete. Faltam só quinze minutos. Acho que você não
consegue me fazer gozar tão rápido e ainda sair na hora.
Seguro o queixo dela, viro seu rosto para encontrar seus lábios com
os meus e a beijo profundamente, deslizando minha outra mão até sua
boceta e a encontrando tão molhada quanto na noite passada.
— Está presumindo que vou tomar banho antes, mas vou é passar a
porra do dia todo com o seu cheiro, Vinculada. Vou sentar naquela merda de
reunião com o cheiro da sua boceta espalhado no meu rosto, e é isso que vai
me dar forças para aguentar até a noite.
Ela fica corada de novo e move os quadris para se encostar na minha
mão conforme sua respiração vai ficando agitada. Ela é tão sensível, sempre
tão pronta para tirar o prazer que quiser de mim e, porra… que perfeição.
Ela foi feita para mim.
Só com os dedos eu a faço tremer e gozar em menos de um minuto,
sussurrando em seu ouvido indecências sobre todas as coisas que farei com
ela da próxima vez, até deixá-la se contorcendo.
Quando Oli finalmente volta do clímax, seguro seu queixo de novo,
forço sua boca a abrir e enfio os dedos, até ela limpá-los com lambidas.
Depois que os retiro, beijo-a em busca do gosto que fica ainda mais
delicioso em sua língua.
Estou na porta com dois minutos de sobra, com o cadarço das botas
amarrado e meu pau ainda duro que nem uma pedra desgraçada só de ver
Oli esparramada no meu lençol. O cabelo dela está bagunçado, e ainda há
círculos escuros em volta de seus olhos que não deveriam mais estar ali.
Antes de sair, abaixo-me para lhe dar um último beijo e murmuro:
— Volta a dormir. Não tem nada para fazer antes do almoço, então
descanse mais.
Oli concorda e fecha os olhos, mas sua mente já está agitada
pensando no que fazer hoje, e duvido que ela de fato vá conseguir dormir.
Envio uma mensagem para Gabe deixá-la em paz até ela sair do quarto, e
ele responde mandando eu me foder.
Fico ainda mais convencido; não posso evitar.
North me encontra na porta da frente e me dá uma olhada de corpo
todo, com as narinas dilatadas. Ele não diz nada até sairmos da casa,
caminhando lado a lado na direção de seu escritório, que fica no prédio
vizinho.
— Você está com o cheiro dela.
Olho bem em seus olhos e dou um sorrisinho presunçoso.
— Que bom.
Ele fica irritado, e sei que não tem nada a ver com higiene, decoro
ou inveja da noite que passei com nossa pequena Vinculada. Ele não quer é
que ninguém sinta os cheiros mais íntimos dela porque é um possessivo
filho da puta. Sempre foi e, embora não tenha problemas em dividi-la com o
resto dos Vínculos, a ideia de mais alguém sentir seu cheiro em mim é…
Inadmissível.
Mas eu já sabia disso. Ele está achando que vou deixar alguém
chegar perto o bastante para me cheirar. Já sei qual é meu cronograma de
hoje, e se colocar uma carranca feia o bastante na cara, todos ficarão bem
longe de mim. Vou poder marinar no cheiro dela o dia todo, e talvez isso me
ajude a segurar firme até ela voltar à minha cama para encharcar meus
lençóis e gozar para mim como uma boa garota.
Quando chegamos ao escritório e um dos funcionários se aproxima,
North entra na minha frente como um para-choque. Faço chacota dele,
adorando assisti-lo tendo esse chilique mesquinho. Penso no fato de que Oli
perde esse lado dele na maior parte do tempo, e considero lhe mandar uma
imagem da cena, só que, quando confiro, vejo que ela voltou mesmo a
dormir. Não vou acordá-la para isso.
Vou guardar para mais tarde.
Quando o funcionário por fim se afasta, North esbraveja:
— Que bom que está se divertindo.
Dou de ombros.
— Este lugar anda pacato demais. Preciso me divertir com alguma
coisa.
— Bom, então vá construir algo com o Gabe. Instale uns carpetes.
Os azulejos no banheiro da Oleander precisam ser arrancados, isso vai te
manter ocupado.
Os azulejos. North está sendo um xarope por causa das cores dos
azulejos. Ainda vai enlouquecer todo mundo. Passo meu cartão de acesso,
depois que ele já terminou de usar o dele para permitir nossa entrada no
elevador que leva ao seu escritório. A segurança daqui é a melhor que o
dinheiro pode comprar. Além do escritório de North, temos um quarto do
pânico no porão, que também serve de abrigo antibombas, com paredes de
concreto de um metro e oitenta de espessura em todos os lados. O cômodo
pode resistir à detonação de Unser.
Sabemos disso porque já testamos.
North espera até estarmos dentro do elevador com as portas
fechadas antes de dar início ao relatório de sempre, começando pelo Grupo
Vincular:
— Bassinger está vindo pra cá. Saiu para correr de manhã e já se
voluntariou para ajudar Gabe com a construção do setor três. É óbvio que é
porque a Oleander também estará lá, mas é um bom sinal.
Concordo com a cabeça, e então abordo o assunto de que menos
gosto:
— Nox ainda está aqui? Precisa que eu interfira ou a gente vai só…
continuar deixando ele surtar?
Os olhos de North disparam para mim. Sou seu principal – e único –
aliado quando se trata de seu irmão e todos os problemas dele. Nossa
amizade começou no dia em que North trouxe Nox para casa e, por isso, sei
praticamente tudo que há para saber sobre os dois. Cada detalhe
desgraçado.
E, enquanto não machucar minha Vinculada, continuarei ajudando a
administrar a situação.
— Ele voltou a só beber e treinar. A erradicação daquele campo fez
bem para ele. Vamos ter que mandá-lo em mais algumas missões com você
para mantê-lo nos eixos. Estou achando positivo ele ter saído de casa ontem
à noite. Está aprendendo a detectar os próprios gatilhos e se afastar antes
que se torne um problema. Só… deixa isso comigo por enquanto.
— Se ele a atacar de novo…
Ele me interrompe, provavelmente porque também não quer pensar
nisso:
— Não vai. Já conversei com ele.
Balanço a cabeça devagar quando as portas do elevador se abrem e
encontramos Nox desmaiado no pequeno sofá no canto da sala de North.
Uma de suas sombras repousa sobre seu peito, e outras duas estão deitadas
no chão à frente. Não se mexem quando passamos em direção à
escrivaninha, mas nos observam com muita atenção. Estão só no aguardo
do momento em que nos atrevamos a chegar perto de seu mestre
adormecido.
Do momento em que qualquer um se atrever.
— Chegamos a trazer um psicólogo? Encontrou o cara com que a
Sage estava se consultando?
North se encolhe e liga o computador, conectando ao seu notebook e
configurando todas as quatro telas sobre a mesa.
— Encontrei, e ele já saiu do país. A família decidiu passar um bom
tempo em Singapura, não que eu possa julgar.
A campainha do elevador soa e Bassinger entra com o rosto ainda
corado da corrida e as mãos enfiadas nos bolsos. Ele chega mais perto e se
joga na cadeira ao lado da minha.
North nos ignora por um instante enquanto lê seus e-mails, fechando
a cara e xingando baixinho em um tom furioso, e aproveito para dar uma
boa olhada em Bassinger. Sua perna quica embaixo da mesa, um sinal da
ansiedade que está tendo dificuldade para esconder.
Adoto um tom de voz só um pouco amigável, já que ele nem sempre
aceita bem esse tipo de coisa, e pergunto:
— Como você está? Parece que a corrida não ajudou.
Ele me encara por um segundo, depois responde:
— Ainda é difícil para mim ter esse tipo de conversa com vocês.
Não estou acostumado a… esse tipo de dinâmica, de um Grupo de
Vínculos. Às vezes, fico meio atrapalhado com isso.
North assente de trás da escrivaninha, mas não acrescenta nada,
então eu tento:
— É assim que mantemos a Oli em segurança, conversando sobre
tudo e sendo honestos, mesmo quando não gostamos. Se alguma coisa
acontecer com ela porque estamos sendo uns otários uns com os outros, a
culpa vai ser toda nossa.
Ele contrai um pouco a mandíbula, mas assente.
— É que ainda estou… surpreso que o meu pai tenha se envolvido
com o assassinato de crianças, mas provavelmente é ingenuidade minha.
Isso está acabando comigo, mas estou lidando com a situação. Não vai ser
um problema.
Verdade.
Uma verdade consistente, e esse tipo de honestidade sempre terá
todo meu respeito.
North ergue um pouco as sobrancelhas ao ouvir a confissão e
assente de novo, pensando um pouco antes de murmurar:
— É difícil ver alguém ultrapassar limites que, pra nós, parecem
inimagináveis, ainda mais alguém que achamos conhecer tão bem. Não seja
tão severo consigo mesmo.
Parece um progresso.
Tem que ser, certo?

Uma hora depois, Bassinger e eu entramos juntos no elevador,


prontos para sermos transportados até a sede do conselho para concluirmos
os trabalhos referentes à invasão e desmantelamento do campo que
eliminamos. Já recebemos um grande fluxo de informações graças às
telecomunicações após últimos acontecimentos, e Bassinger tem sido
fundamental na tarefa de recuperá-las. Ainda existe a chance de ele ser um
espião infiltrado, alguém enviado para sacrificar a própria família com o
objetivo de ter acesso à Oli e eliminar todos nós, mas estou começando a
acreditar mesmo no garoto.
Há algo na profunda devoção que ele tem por ela, em detrimento de
todas as outras coisas de sua vida, que é muito convincente para todos;
menos para Nox, mas ele também não é lá conhecido por ser razoável em
qualquer assunto relacionado a Vínculos.
Bassinger fica em silêncio por um momento enquanto as portas se
fecham. Quando o elevador entra em movimento, ele pigarreia e diz com
uma voz firme:
— Não quero ver minha irmã. Sei que você provavelmente vai
tentar me convencer, e entendo, faz sentido me colocar lá para fazer ela
falar e pensar coisas, mas… este é meu limite. Se não for pela segurança da
Oli, não farei isso.
Olho para ele e dou de ombros.
— Pode ser que acabe sendo necessário. Vou falar com ela e ver o
que consigo arrancar, mas se eu precisar de ajuda…
Ele me interrompe:
— Se você precisar, eu vou. Sempre farei o que a Oli precisar, mas
só se for necessário.
É uma decisão que sou capaz de respeitar.
Na verdade, sou capaz de respeitar muito do que Bassinger já disse.
Se não fosse pelo seu sobrenome, seus pais e pela criação que recebeu, ele
com toda certeza estaria indo cada vez mais para o topo da lista de pessoas
em quem confio.
Mas, pelo menos por enquanto, não posso fazer isso, não com tanta
coisa em jogo.
Assinto no momento em que as portas se abrem, revelando Black e
Rockelle esperando por nós, ambos em uniformes táticos. Sair do Santuário
exige que haja pelo menos três agentes completamente treinados com cada
grupo, e estes dois são os que eu mais confio, mesmo que sejam os cuzões
mais bocudos da minha equipe inteira.
— Então não vamos levar a profeta da morte desta vez?
Já sei o que Rockelle está querendo, mas não vou permitir.
— O North está resolvendo o máximo possível de baboseiras do
conselho à distância ultimamente, então vai ficar aqui mesmo. Ou você está
falando do Nox? Ele tá dormindo de ressaca.
Ele sorri para mim e dá de ombros daquele jeito tranquilo e
simpático de sempre.
— Claro, era dos dois Mensageiros da Morte que falei. Já me
avisaram.
Bassinger o encara.
— Está óbvio que o aviso não teve efeito.
Black e eu olhamos um para o outro. Bassinger nunca vai fazer
amigos tratando todos com esse jeito brusco e implacável que ele assume
quando não está com Oli, mas também estou começando a perceber que ele
está pouco se fodendo. Não quer amigos. O estranho companheirismo que
acabou formando com Gabe parece ser a única concessão que está disposto
a fazer… além da trégua que acabou de declarar com North.
Qualquer um fora do nosso Grupo de Vínculos está sujeito a ser
alvo de sua língua afiada.
Gesticulo para que ele chegue mais perto dos outros dois para
podermos acabar logo com essa tarefa. O sorriso que Rockelle dá para ele
tem uma pontada de quem está se coçando para arrumar briga. Um é tão
ruim quanto o outro, e vou precisar me lembrar de mantê-los afastados no
futuro.
Quando chegamos perto o bastante para nos tocarmos, Black inclina
a cabeça para mim de um jeito curioso, depois faz que não e segura meu
ombro com um pouco mais de força do que de hábito para me transportar.
— Perfume novo?
Semicerro os olhos para ele.
— Nem um pio. Sei coisa suficiente sobre você para te enterrar.
O cuzão só dá um sorrisinho e finge fechar a boca com um zíper, o
que é uma mentira do cacete porque ele pensa tudo que ia dizer, o que é tão
eficaz quanto.
Ele sabe há anos como me mandar informações, e é útil no nosso
trabalho, então o encontro pensando na minha direção:
EU TE CHAMARIA DE PERVERTIDO, MAS… SUPONHO QUE SEJA O ESPERADO
AGORA QUE VOCÊ ESTÁ VINCULADO.
Respondo em voz alta:
— Você não tem que me chamar de nada já que sou seu superior, e
principalmente quando o Conselheiro Draven estiver ouvindo.
Ele é amigo de North há quase tanto tempo quanto eu, e não preciso
dizer mais nada para entender com clareza o que quero dizer. Ele bufa e
balança a cabeça de novo.
— Um é tão ciumento quanto o outro, e nenhum dos dois percebeu
ainda. Engraçado pra cacete.
Bassinger não está gostando nada desta conversa, e o sorrisinho que
abre para Black é completamente venenoso:
— E como vai o seu Grupo Vincular?
Black enfrenta Nox de frente há mais de uma década; a pachorra de
Bassinger não é nada para ele.
— Bom, não tem nenhuma cobra da Resistência no meu, então com
certeza está melhor do que certos outros.
Bassinger só ergue uma sobrancelha e retruca:
— Tem certeza?
Ninguém aqui quer pensar na confusão entre Giovanna e Riley que
ainda estamos tentando resolver para Sage, ou no que isso vai nos custar.
Black fecha a cara e nos transporta sem dizer mais nada; o estalo é
alto o suficiente para zumbir meus tímpanos e embaralhar meu cérebro por
um instante quando nossos pés voltam a pisar em chão firme. Ele nos
trouxe ao estacionamento subterrâneo do prédio, bem na frente do elevador
que leva ao porão. Não há mais ninguém por perto, nada que indique que
algo preocupante esteja ocorrendo aqui, e minha intuição fica incomodada.
Sempre fica quando as coisas acontecem sem transtornos.
Não confio nada nisso.
Seguindo o protocolo, ninguém fala ou se mexe até eu expandir meu
dom para verificar se há outros Favorecidos por perto. Não há ninguém no
estacionamento, nem nos três primeiros andares do prédio. A invasão
garantiu isso, e quando forço meus dons até o limite, só encontro os
prisioneiros e outros Favorecidos que estamos mantendo nas celas.
— Tudo limpo. Vamos acabar logo com isso.
Black assente e assume a dianteira, deixando Rockelle na
retaguarda, para nos dar cobertura. Bassinger observa a movimentação com
olhos atentos, mas fica de boca fechada, obedecendo as regras e diretrizes
que recebeu para vir hoje.
Nox meteu o pau na decisão de o trazermos, ainda convencido de
que é um espião, mas North e eu concordamos. Tirando sacrificar inocentes,
faremos o que for preciso para conseguir alguma vantagem sobre a
Resistência.
Qualquer coisa para livrar Oli do desgraçado do Silas Davies.
Quando chegamos aos níveis mais baixos e as portas do elevador se
abrem, Black e eu observamos Bassinger sair e dar uma boa olhada nas
celas. Sinto um leve déjá vu, como se eu tivesse voltado algumas semanas
no tempo para quando Oli veio aqui pela primeira vez e Carlin Meadows a
viu.
Alienadora.
Porra, não acreditei quando a ouvi cuspir essa palavra na minha
Vinculada. Não até Oli ter um surto imediato e sair correndo como se o
diabo em pessoa estivesse atrás dela. Cada poro de seu corpo ficou
apavorado.
Por causa de mim.
Com medo de eu ouvir, de rejeitá-la, de contar aos outros e de todos
se voltarem contra ela. Senti que minha cabeça ia rachar com todos os
gritos radiando da minha Vinculada, e cada instinto protetivo que tenho foi
ativado. Eu a queria sã e salva nos meus braços, a um milhão de
quilômetros de distância deste lugar, e foi difícil acompanhar o
interrogatório inteiro sem tirá-la daqui.
Bassinger anda devagar pelo corredor, alheio às memórias de Oli
que me sobrepujam. Os Favorecidos dentro das celas são todos homens e
mulheres magros, com aparência abatida e olhos sem vida. Todos estão
sendo alimentados e bem tratados, mas a maioria tenta se matar fazendo
greve de fome.
Geralmente acabo tendo que usar meu dom para forçá-los a comer.
Volto a me concentrar.
— Reconhece alguém?
Bassinger verifica cada um devagar, de forma lenta e metódica. Está
levando isso a sério, e lhe darei o devido reconhecimento.
Ele aponta para duas celas.
— Ele. E aquela mulher. Conheço os dois de algum lugar, mas só.
Eu teria que examinar as imagens para identificar direito. Bom, além dos
dois, eu conheço a Carlin, mas você já sabe disso. Devia matar essa garota
pelo que ela fez com a Oli.
Ela merece mesmo, merece muito mais do que o que fizemos até
agora, mas por enquanto sua prisão ainda está em processamento.
Um dia, irá enfrentar os pesadelos de North, e eu vou adorar assistir
ela ser consumida até não restar nada.
Quando finalmente levanto da cama do Gryphon perto do meio-dia, arrasto-
me para o chuveiro e tento fazer parecer que dormi bem e que não gozei pra
caramba de tanto ser chupada ontem à noite. Eu meio que tinha a impressão
de que os caras só faziam sexo oral nas garotas para ganharem um em troca,
mas Gryphon jogou minha teoria no lixo.
Fico da cor de uma beterraba quando o imagino andando por aí
agora mesmo com o meu cheiro e, convenhamos, se achando por causa
disso. Minha pele está quente e literalmente brilhando enquanto penteio o
cabelo que, agora mais branco do que prateado, parece ainda mais
desbotado.
Preciso fazer algo quanto a isso antes que eu fique completamente
surtada e meus Vinculados enlouqueçam com a confusão dentro da minha
cabeça.
Brutus senta perto da porta comigo, mas August não está aqui.
Gryphon se recusa a deixá-los dormir na cama e, embora Brutus aceite
dormir no chão para ficar perto – reclamando um pouco antes –, August em
geral volta para North quando não pode passar a noite em cima de mim.
Estou com saudade dele e preciso resgatá-lo de North mais tarde.
Quando saio do quarto de Gryphon, sinto um dos meus Vínculos na
sala de estar e encontro Gabe sentado ali com a TV desligada e o celular na
mão, navegando à toa. Ele me olha, sorri assim que entro e me oferece a
mão para me puxar contra seu corpo.
— North mandou entregarem café da manhã e almoço, se estiver
com fome. Os outros estão trabalhando. Se quiser vir junto, vou ajudar nas
casas do quinto setor.
Assinto e lhe dou um beijo rápido, depois vou até a pequena cozinha
fuçar na geladeira até encontrar o sanduíche graúdo de filé embalado para
mim. O chef e os funcionários da cozinha estão todos trabalhando no
enorme refeitório comunitário até o abastecimento de comida começar a
funcionar e as pessoas poderem voltar a comer em suas próprias casas. É
uma das coisas em que North está empenhando dias e noites inteiros. Ainda
nem consigo acreditar que ele está nesse projeto há dez anos, e que seu tio
tocou por décadas antes, só para manter todos nós em segurança.
Isso me faz sentir orgulho de ser a Vinculada dele, e também um
pouquinho de culpa por não ser um Vínculo perfeito. Sou trabalhosa, difícil
e emotiva demais para o bom conselheiro, mas posso tentar ajudar e, no
mínimo, não ser um fardo.
Graças a Deus Gryphon está trabalhando esta manhã e não
passeando pelos meus pensamentos, porque ele reclamaria sem parar deles.
Pego o sanduíche e dou uma mordida no caminho de volta para o
sofá, agradecendo todas as minhas estrelas da sorte por esse chef que com
certeza foi abençoado pessoalmente pelos deuses, porque o lanche é digno
de um orgasmo. Gabe dá um sorrisinho ao ver minha cara, abre espaço para
eu me sentar com ele, e então arrasta a mesa de centro para perto, de modo
que eu possa colocar o prato ali.
Pigarreio e tento parecer civilizada enquanto ataco minha comida,
falando de boca cheia:
— Como estão indo as casas por lá? Perto de acabar? Sei que temos
problemas de habitação.
Ele dá de ombros e guarda o celular.
— Não está tão ruim. A maioria das famílias está dividindo a casa
com outra, mas todos têm quartos suficientes. Aqui temos que nos virar e
garantir a segurança de todos, então a maioria das famílias de Nível Inferior
só está grata por estar aqui. Os de Nível Superior estão enchendo o saco do
North, mas ele deixou Nox encarregado das reclamações, então todo mundo
calou a boca por enquanto. O temperamento dele é bem útil em certas
situações.
Gargalho de roncar pelo nariz ao imaginar Nox lidando com aqueles
imbecis mimados.
— E tenho certeza de que ele está amando esse trabalho. Dizer para
as pessoas o quanto elas são patéticas e inúteis é meio que o superpoder
dele.
Gabe faz uma careta e aceita a metade do sanduíche que ofereço.
Tem tanto recheio que não vou aguentar mais que metade – e que recheio
maravilhoso.
— Ele anda preocupado com o North, aí se ofereceu para ajudar do
melhor jeito que consegue. Assim como todos nós. Atlas e Gryphon estão
resolvendo as coisas da Resistência, eu estou ajudando com as obras, e você
está…
Interrompo:
— Dormindo até tarde e sendo alimentada por gente que tem mais o
que fazer. Acho que vou pirar, Gabe. Não posso ficar sentada sem fazer
nada só porque meus Vínculos preferem que eu fique protegida o tempo
todo. Não posso ser uma inútil.
Ele me olha feio.
— Você eliminou outro campo e aí veio para cá se recuperar. Agora
nós vamos construir alguma coisa. Isso é ajudar, Vínculo. Se quiser fazer
algo diferente, é só me contar que a gente fala com o North.
O problema é que não há mais nada que eu possa fazer, já que
abandonei o ensino médio e só trabalhei de garçonete. Acho que eu poderia
trabalhar na cozinha; ajudar a alimentar as pessoas é um trabalho
importante. Só que, nesse caso, North faria mudanças na segurança para
que um agente de Equipe Tática me acompanhasse, e não quero que
ninguém seja tirado de outras tarefas para ficar de babá.
Então vou construir coisas com Gabe mesmo.
Lavo meu prato e pego uma Coca-Cola na geladeira para levar para
o canteiro de obras. Eu adoraria tomar café, mas acho que já gastei tempo
demais da manhã de Gabe –o refrigerante vai ter que bastar. Gabe calça um
par de botinas de trabalho e pega outro novinho em folha para mim,
sorrindo quando balbucio um “obrigada”. Sempre sou pega desprevenida
quando meus Vínculos me compram coisas, mesmo que sejam necessidades
básicas. Demoro um pouquinho para amarrar os cadarços da forma correta,
e ficam iguais a sapatos de palhaço, enormes. Mesmo assim, prefiro ter a
proteção, já que nada se compara à dor de um dedo do pé quebrado.
Já estou de calça jeans e com uma das camisetas de flanela que
Gabe usa para trabalhar por cima de uma regata, igualzinha a uma Barbie
Construtora. É engraçado, e quando Gabe vê meu modelito completo, ri da
minha cara quando poso para uma foto.
Ao sairmos a pé da casa, ele segura minha mão, entrelaça os dedos
nos meus e coloca uns óculos de sol aviador que o deixam descoladíssimo.
Ridiculamente gostoso também. Caramba, é quase insuportável de olhar.
Como é que eu posso me sentir desse jeito por mais de um homem?
Porque é o que acontece, e também não me sinto culpada. O que sinto é que
talvez a gente precise voltar para casa para uma rapidinha.
Porra.
Certo, uma distração. Preciso de uma agora mesmo.
— Vou pintar o cabelo de novo. Acho que de rosa-choque. Ou talvez
fazer umas mechas verde-limão. Qual você prefere?
Gabe faz uma cara feia para mim.
— Achei que você e North estavam bem. Quem está querendo
provocar com essas escolhas?
Reviro os olhos e faço sons de beijinhos para Brutus vir atrás de
mim, dando cabeçadas na parte de trás das minhas coxas com aquele gesto
reconfortante que gosta de fazer. Ele é sempre mais carinhoso de manhã;
parece até que eu dormir e ficar incapaz de lhe dar amor torna as noites
insuportáveis.
— Ninguém. Odeio o prateado, e agora essa droga está quase
branca. Preto não pega, já tentei. O roxo desbotou rápido, mas pelo menos
durou uns dias. Só quero… passar uns dias sem olhar para esse branco. Ou
talvez eu raspe de uma vez.
Ele parece extremamente assustado e começa a procurar o celular no
bolso, em uma atitude óbvia de quem vai chamar reforços. É quase cômico
e, com muito esforço, consigo manter o rosto sério enquanto o vejo sofrer
para escolher as palavras:
— Não acho que precise disso… quer dizer, você pode fazer o que
quiser, é lógico, o cabelo é seu, mas… rosa está bom.
Ele me dá um sorriso trêmulo e digita no celular sem nem olhar para
a tela. Começo a contagem regressiva na minha mente, porque ele é tão
discreto quanto um coice. Sério mesmo, se não fosse tão engraçado, eu
acabaria com a raça dele.
NÃO SE ATREVA A RASPAR A CABEÇA. NÃO ME IMPORTO COM QUAL É A COR DO
SEU CABELO, MAS NÃO RASPE.

Dou risada do tom severo de North e balanço a cabeça para Gabe,


que nem sequer tenta parecer inocente.
— Sua sorte é ser gostoso, Ardern, porque você também é um dedo-
duro de merda.
Ele dá os ombros.
— Faço uso dos recursos que tenho, e você não pode negar que
North é a melhor pessoa para te convencer a fazer qualquer coisa. Se ser
um cuzão é o superpoder do Nox, então o do irmão dele é esse.
É verdade.
Quando Gryphon intervém, é para sugerir uma tática diferente e
eficiente, uma que não vou contar para Gabe porque não quero que ele use
Gryphon contra mim com mais frequência.
MESMO QUE CORTE SÓ AS PONTAS, ONDE VOU SEGURAR QUANDO TE COMER
POR TRÁS? VOCÊ FICARIA GATA COM O ROSA, FICOU SEXY COM O ROXO TAMBÉM. SÓ
NÃO MEXA NO COMPRIMENTO.

Bom.
Parece razoável.
Assistir Gabe ajudando nas obras é um jeito ótimo de passar a tarde,
e dá para ver por que é neste trabalho que ele é mais útil. Gabe é forte,
superinteligente e sabe exatamente o que os pedreiros precisam quando
começam a armar uma nova estrutura. Há outras seis casas nesta rua em
diferentes etapas de construção, e eu ajudo na que está na fase de
acabamento, carregando suprimentos e segurando as enormes chapas de
drywall para os caras trabalhando.
No começo, todos me olham como se eu só tivesse vindo atrapalhar,
mas, depois de poucas horas de trabalho duro e esforçado, já estão me
incluindo nas histórias e fazendo piada. É difícil, mas consigo esvaziar meu
cérebro o suficiente para ajudar de verdade. Na hora em que Gabe vem me
procurar, estou no alto de uma escada, usando um pregador pneumático e
dando gritinhos de alegria por ter conseguido fixar uma parte do teto no
lugar certo sem abrir buracos nos meus dedos e mãos.
Ele sorri para mim como se eu fosse o próprio Sol o deixando
quentinho por dentro.
Olho para ele do mesmo jeito, e ficamos parecendo dois idiotas
babões apaixonados. Sei disso porque Elliot, o contramestre, faz questão de
me informar com bastante deboche em sua voz rouca de homem mais
velho.
— Não sei se percebeu, mas ela é minha Vínculo. Alguma coisa
estaria errada pra caralho se eu não fosse um merdinha babão por ela. Além
disso, olha só pra ela, toda empoeirada e com esse sorrisão na cara.
Ninguém pode me julgar — reclama Gabe.
Com um aceno, Eliott nos dispensa, exigindo que apareçamos na
hora amanhã de manhã.
— Não prometo nada. Sou uma princesa, preciso do meu sono da
beleza — responde Gabe, passando o braço pelos meus ombros.
Ele está tão sujo e suado quanto eu, por isso não fico com vergonha
do quanto devo estar fedendo.
Caminhamos juntos pelas ruas quase vazias. Neste lado da cidade há
praticamente só sujeira e cascalho, já que as casas ainda não estão prontas
para serem habitadas. Em algum momento, haverá carros e outros veículos
por aqui, mas ainda não chegamos nesse estágio. A logística necessária para
criar uma cidade inteira e sua comunidade me dá enxaqueca. Não consigo
pensar demais nisso sem querer vomitar de pena do North.
Como vai funcionar o dinheiro aqui?
Distribuição de trabalho, educação? E o que vamos fazer quanto aos
conflitos de vizinhança? Tenho quase certeza de que ainda estamos nos
Estados Unidos, mas será que o governo sabe da existência deste lugar?
Teremos impostos a pagar?
É demais para mim agora.
Concentro-me em assuntos mais leves, nas perguntas que posso
fazer para receber respostas simples.
— Como aprendeu a construir casas? Ou é um talento natural?
Ele bufa.
— Acho que não existe talento natural para erguer paredes, mas meu
pai era sócio na firma de construção da família. Meu bisavô a fundou, e era
tipo uma tradição todos os membros da família trabalharem lá nas férias de
verão. Meu pai assumiu a parte da administração, e um dos meus tios ainda
trabalha nas obras. Ele está finalizando um serviço em Nevada e depois
vem pra cá com a família. O que restou dela, pelo menos.
Faço uma careta. Essa parece ser a realidade comum de todos aqui
no Santuário. A perda da família, a perda dos vínculos, a perda das pessoas
mais importantes das nossas vidas.
Ele hesita por um instante, então pergunta:
— O que sua família fazia? Antes do acidente?
Isso me abala por um segundo, mas é claro que ele perguntaria sobre
minha família, é claro que se interessaria em saber. Somos Vínculos e não
lhe contei praticamente nada da minha vida antes de a Resistência me levar.
Contei muito, muito pouco.
— A gente vivia se mudando. Eu não entendia por que, mas agora…
agora tenho certeza de que o Davies sabia a meu respeito. Acho que meus
pais estavam fugindo para me manter longe dele. Meu pai, o biológico,
trabalhava em alguma coisa no mercado de ações. Andrew era engenheiro,
tinha um negócio remoto prestando consultorias e vivia no computador.
Vincenzo tinha sido chef de cozinha antes, mas parou para ficar em casa
comigo e com a mamãe. Ele foi um Neuro e passou um tempão me
treinando para controlar minhas emoções e meu vínculo. A mamãe… na
verdade, não sei no que ela trabalhava. Nunca perguntei.
Minha voz falha um pouco, e o braço de Gabe me aperta mais,
envolvendo-me de perto em seu calor.
— Você era criança. Não teve tempo de crescer e perguntar todas as
coisas que queria saber. Não tem motivo para se sentir culpada, Vínculo.
Faço que sim, mas a culpa continua aqui mesmo assim. Sempre
estará comigo.
Chegamos em casa e corro para usar o banheiro no quarto de North.
Os outros ainda não voltaram, e quando Gabe se oferece para buscar janta
para nós, recuso com a cabeça.
— Quero encontrar o North. Hoje é a noite do Nox e eu preciso…
ter certeza de que está tudo bem. Sempre faço isso.
Gabe faz uma carranca, mas assente, e me acompanha ao escritório
de North sem pestanejar. Ele vai comigo até o elevador, então me dá um
beijo intenso de despedida. Faz apenas dois dias que dormi em sua cama,
mas, como não estamos Vinculados, parece uma eternidade.
Não sei se essa falta que sinto deles um dia vai passar. Estou fadada
a me sentir incompleta para sempre.
Passo meu cartão no leitor para ter acesso ao andar de North, e
quando as portas voltam a se abrir diretamente no escritório dele, eu o
encontro em uma ligação com o cenho franzido, folheando papeis de um
jeito frustrado. Ele ergue os olhos para mim e sua testa relaxa um pouco.
August sai de trás dele e vem saltitando feliz em minha direção.
Eu me agacho para fazer um cafuné e paparicá-lo aos sussurros para
não interromper a ligação, mas o tom de North fica cada vez mais ríspido, e
está claro que ele quer acabar logo com isso para falar comigo.
Embora eu me sinta mal por atrapalhar, não é o suficiente para ir
embora. Quase não o vi desde que chegamos aqui; já estou sentindo falta
daqueles dias intermináveis que passamos confinados à cama dele, no furor
de completarmos nosso Vínculo.
— Conselheiro Rockelle, acabei por hoje. Podemos continuar
amanhã. Não vou trabalhar até tarde de novo. Até eu tenho limites.
Quando me sento do outro lado da mesa, August apoia a cabeça no
meu colo e se senta aos meus pés; um montinho de névoa sem peso que,
mesmo assim, é reconfortante. North lança um olhar breve para mim e
outro para a distância entre nós, então arrasta um pouco a cadeira para trás e
gesticula para eu me sentar em seu colo, como se achasse que vou subir
nele mesmo estando no telefone, fazendo coisas importantes de conselheiro.
Bom…
É exatamente o que eu faço.
Quando minha bunda se instala no colo de North, a carranca some
de uma vez; com a mão em minha coxa, ele me gruda em seu corpo. Quase
faço um barulhinho vergonhoso de alegria por estar com ele de novo.
Não sei dizer se o Conselheiro Rockelle gostaria de ouvir.
Inclino-me para enterrar o nariz no pescoço de North, que desliga na
cara do outro conselheiro, joga o telefone na mesa e relaxa na cadeira,
abraçando-me tão apertado que quase não consigo respirar.
— Vou sair do conselho. Não aguento mais bancar o dócil e ficar
longe de você.
Rio com a boca no pescoço dele, mais um suspiro do que um riso, e
lhe beijo a orelha antes de murmurar:
— Nós dois sabemos que você ficaria entediado rapidinho… ou que
eu acabaria fugindo. Não aguentaria ser o único alvo desse seu jeito
mandão.
Ele bufa, e então grunhe.
— O conselho devia servir para o bem da comunidade, não para
ficar discutindo qual nome dar às coisas ou quantas lagostas cada família
deve ter direito por semana.
Afasto-me um pouco dele e faço uma careta.
— É sério? Era por isso que o conselheiro estava enchendo o seu
saco? Diga para ele vir construir casas comigo, o Gabe e o Elliot. Vamos
dar tanto trabalho que ele não vai ter tempo de se preocupar com idiotices.
Aliás, me dá um pregador pneumático? Tem espaço para isso no
orçamento?
Ele ergue uma sobrancelha para mim, depois esfrega os olhos.
— Mas é claro que já te deixaram brincar com uma arma de alta
potência. Eu estava mesmo precisando me preocupar com mais um
pesadelo.
Como ele parece estar genuinamente a ponto de começar a gritar
com as pessoas, faço uma tentativa de distraí-lo e salvar Elliot:
— Então quer dizer que você está trabalhando até tarde em lagostas
e nomes? Devo te deixar sozinho com mais frequência? Dormir em outra
cama para não te distrair?
Ele nem tira a mão dos olhos para resmungar:
— Não importa para onde se esgueire nas minhas noites, vou buscar
você de qualquer jeito. Se quiser que eu te foda no lençol do Atlas enquanto
ele vê o que está perdendo, vá em frente, Vinculada.
Minhas bochechas ruborizam, e ele sabe que conseguiu me deixar
envergonhada; é mais difícil me acostumar com seu flerte casual e
pervertido do que com o de Gryphon. Não sei por quê, mas quando ele diz
“foda”, meus joelhos fraquejam.
Ele dilata as narinas e me olha de cima, com um aro preto
circundando suas írises, o que mostra o quanto está se esforçando para
manter o controle.
— Ou prefere que eu te foda aqui? Você está com cheiro de sexo.
Inspiro fundo, mas sinto apenas o perfume caríssimo dele, cujas
notas almiscaradas se tornaram um afrodisíaco agora que conheço o gosto
do seu pau. Deslizo a língua pelo meu lábio inferior antes de dizer:
— Só vou dizer que é bom você não conseguir ler minha mente
igual ao Gryphon. Estaria ouvindo muitas coisas constrangedoras sobre
mim agora.
Seus olhos descem até meus lábios, e ele murmura:
— Se esta noite fosse de qualquer um dos outros, eu te deitaria nesta
mesa e te comeria até você não conseguir andar.
Engulo em seco e assinto. Ambos sabemos que não é boa ideia fazer
isso nas noites de Nox. Não que eu saiba a razão exata, mas sei o suficiente
dos limites cuidadosos entre os irmãos para entender que North não irá
violá-los. Não sei se é pela minha segurança, ou pela de Nox, mas vou agir
de acordo.
É ridículo o quanto estou ficando boa nisso.
O quarto está silencioso quando entro com máxima discrição, tentando não
sujar tudo de sangue. As sessões noturnas de treino que substituíram minhas
sessões noturnas de bebedeira não estão sendo mais fáceis para meu corpo,
e continua escorrendo sangue do meu nariz, onde o Black teve sorte de
conseguir acertar um golpe.
Os nós dos meus dedos estão ensanguentados e em carne viva da
surra que ele tomou em troca.
Ele está voltando para casa, onde tem acesso ao melhor Curandeiro
da nossa geração, portanto não sinto um pingo de culpa. Azrael ergue a
cabeça na cama, e é nítido seu alívio pela minha presença. A criatura de
North está aqui também e, quando fecho a cara para ela e gesticulo para a
porta, noto a frustração do meu irmão. Não preciso da merda de uma babá.
Se ele quer que eu deixe a garota dormir aqui, vai ter que confiar que ela
sairá viva de manhã.
A criatura sai, com Rahab, minha criatura mais feroz, mordendo
suas pernas. Tenho que intervir para garantir que não acordem a garota com
essas desavenças infantis.
Ando devagar pelo cômodo, meus olhos se transformando para eu
enxergar com clareza. Nada está fora do lugar. Nunca fica quando ela entra
aqui. Ela vai direto para a cama e dorme no meu travesseiro, envolta pelos
meus cheiros como se fossem a única coisa capaz de manter seu coração
batendo.
É estranhamente respeitoso, e mais do que já ofereci em
contrapartida.
Se eu não conhecesse meu irmão melhor do que ele conhece a si
mesmo, suspeitaria que ele teria contado a ela. Uma pequena parte, só um
mero detalhezinho do caco que ele chama de irmão, mas ele não faria isso.
North nunca contou nem para William, seu parente consanguíneo
mais próximo depois que nosso pai foi executado. Não, fui eu que soltei a
verdade para ele durante um dos meus episódios. Eu sentiria mais desprezo
por mim mesmo por causa daquele momento, mas eu só tinha nove anos e
despejei terapia suficiente em minha alma desde então para deixar essa fase
da minha vida para trás.
Agora só tento esquecer de tudo me embebedando ou lutando até a
dor substituir as lembranças.
Após tirar o uniforme tático que vesti para treinar, uma camiseta e
calça cargo, encontro uma toalha gasta para limpar o sangue do corpo.
Enquanto relaxo os músculos e respiro fundo algumas vezes, minhas
criaturas saem lentamente de mim. Mephis para aos meus pés e fica perto,
mesmo quando todas as outras se espalham pelo quarto. Não devia me
surpreender por várias delas assumirem a forma de filhotinhos e outras
criaturas meigas.
Todas querem ser amadas pela garota.
É repugnante.
Meu estômago revira de ver todas lutando para ficar perto dela na
cama – e fazem isso de forma brutal o suficiente para que ela suspire e role
dormindo, o que faz seu cabelo se soltar do elástico e se espalhar sobre os
meus travesseiros de um jeito tentador.
Desvio o olhar e começo a vestir uma calça de moletom, então
começo a procurar na pequena seleção que trouxe na mudança até encontrar
uma das camisetas macias. São as únicas com que gosto de dormir e, claro,
também as que a garota mais gosta de roubar.
Faço carinho na cabeça de Mephis, afagando suas orelhas e
apreciando a forma como ele se encanta ao receber minha atenção. Tanto
Mephis quanto Rahab me esperam decidir onde vou dormir antes de se
posicionarem, sempre do meu lado. Por mais que também queiram a garota,
nunca me trocariam por ela.
Eu devia dormir no sofá, a uma distância segura dela. O móvel é
confortável o bastante. Devia, mas a cama está tentadora demais, e não seria
a primeira vez que eu dormiria ali com ela.
Apenas em raras ocasiões, e todas quando tenho certeza que está
ferrada no sono.
É mais fácil agora que já conversei com a vínculo dela. Agora que
sei exatamente o que ela quer de mim e contei o que ela não poderia ter,
chegamos a um acordo e, como imaginei, quando me deito em meio aos
lençóis, os olhos da garota estão bem abertos.
No entanto, é a vínculo que está me encarando.
Encaro de volta, pouco disposto a conversar, e ela não se aproxima.
Já sabe que não deve.
Quando Mephis sobe na cama e se deita entre nós, a vínculo
finalmente fala:
— Precisa de dor para dormir? Não estou gostando.
Ergo a mão, aperto o nariz com um dedo e desfruto da dor pulsante.
— Não preciso. Já acalmou minha mente. Estou bem agora.
O dom dela me preenche no mesmo instante e a dor desaparece de
uma vez só. Gryph e Black vão questionar amanhã onde foram parar os
machucados e, como a garota não vai se recordar de nada, vai ser mais
difícil evitá-los, então vou ter que arrumar algum trabalho para fazer longe
dos dois nos próximos dias.
Evitá-los se tornou uma grande habilidade minha, algo que
aperfeiçoei com entusiasmo.
Quando viro de costas e tento encontrar uma posição confortável,
agora que não preciso mais evitar pontos doloridos, a vínculo volta a falar:
— Eles estão vindo. Não vão nos deixar em paz.
Assinto olhando para o teto.
— É claro. Seriam burros de deixar alguém como você nas mãos do
inimigo.
Ela passa um momento em silêncio, depois diz:
— E você? Quando descobrirem, o que acha que farão para botar as
mãos em um deus sombrio como você?
Deus sombrio.
Ela é obcecada por essa forma de pensar, mas passei muito tempo
tentando evitar o outro ser com quem divido a pele. North pode estar
preocupado com as criaturas, mas eu sempre soube que é a voz, a outra
alma, a verdadeira coisa a se temer.
Sei que nossos vínculos não são iguais aos outros.
— Me deixe conversar com ele. Estou com saudade.
Olho a vínculo de soslaio, mas ela não se moveu, não violou
nenhum dos meus limites cuidadosamente estabelecidos.
Ela nunca faz isso.
Sou eu quem violo as coisas, não a vínculo presa dentro da garota
que parece ter sido tirada das minhas mais profundas e sombrias fantasias e
deixada sobre meus travesseiros.
Não confio em nenhuma das duas.
— Se vocês dois completarem o Vínculo enquanto ela dorme, os
outros vão me matar, sabe disso. Nunca vão acreditar que não fui eu.
A vínculo abre um sorriso lento, e consegue parecer mais velha do
que o rosto de dezenove anos que veste.
— Vou me comportar direitinho. Deixe-me passar um tempinho com
ele. Durma e nos deixe sozinhos.
Eu não devia, mas meu próprio vínculo desperta dos confins mais
escuros da minha mente e avisa que quer conversar.
NADA DE TREPAR. O NORTH MATARIA NÓS DOIS.
Meu vínculo fica irritadiço com a ordem, mas responde:
NÃO VAMOS. QUERO PASSAR UMA NOITE COM MINHA VÍNCULO.
É insensato, mas abro mão do controle e os deixo se reunirem. Tento
ficar presente por tempo suficiente para, pelo menos, saber o que estão
fazendo, mas meu vínculo me bloqueia para terem privacidade.
Acordo horas depois, logo antes do amanhecer, com a garota deitada
sobre o meu peito e o nariz colado no meu pescoço, e meu coração dispara
no segundo em que desperto e a sinto ali.
O único motivo pelo qual não a jogo do outro lado do quarto para
tirá-la de cima de cima de mim é porque não quero ter que explicar para
nenhum dos outros por que eu estava na cama.
Consigo colocá-la de volta no lugar e ajeitar os lençóis do meu lado
antes de disparar para o banheiro e abrir o chuveiro para abafar o som do
meu vômito. Após essa parte acabar, entro sob o jato quente da água, ainda
vestido. Não vou suportar olhar para mim mesmo agora, nem para as
cicatrizes, nem para a reação física de acordar com ela sobre mim que as
náuseas não conseguiram conter.
Rahab senta-se embaixo do chuveiro, a água atravessando seu corpo
como se fosse um fantasma, e Mephis fica de guarda na porta. De vez em
quando, ele enfia a cabeça pela sólida porta de madeira para ver o que está
acontecendo no quarto.
Gryph vem buscar a garota enquanto estou ensaboando o cabelo. Ele
faz uma cara feia para a porta do banheiro e para Mephis quando a garota
menciona que precisa usar o vaso, mas a leva para usar o do seu próprio
quarto antes de irem treinar. Eu devia me sentir mal. Devia ter algum nível
de empatia pela maneira como meu cérebro fodido estraga tudo, mas não
consigo.
Estou ocupado demais tentando limpá-la da minha pele antes de
perder completamente a porra do juízo.
— O que aconteceu com você? Não era para a Oleander dormir
contigo ontem à noite? Você está um caco.
Vou até a cafeteira sem parar para conversar com ele, escolho a
maior xícara da coleção e a encho até a borda com o líquido escuro. Está
óbvio para mim que os vínculos passaram a noite toda conversando, então,
embora minha mente tenha “dormido”, meu corpo ficou acordado.
O novo escritório de North é igualzinho ao antigo quanto à
disposição, mas não apresenta nenhum dos costumeiros luxos
extravagantes. Tenho certeza de que, se ficarmos aqui por tempo suficiente,
ele vai dar um jeito de instalar um pouco de mármore no espaço.
— Nox? Preciso procurar minha Vinculada e ver se ela está bem?
Eu lhe dirijo um olhar irritado.
— Dormir em um sofá para que a sua Vinculada tenha tudo que
precisa não é muito restaurativo. Mas se está tão desesperado para ir atrás
dela, eu é que não vou impedir. Vá ser patético em outro canto.
Ele me encara com olhos pretos por uma fração de segundo, uma
breve falha em seu controle, e lhe dou um sorrisinho. Jamais vou deixar de
me divertir em vê-lo desmoronar por uma garotinha feita de veneno.
Quanto mais alto, maior o tombo. É mesmo patético.
— Pare de descontar seu mau humor em mim. Se quer tirar o dia
para ficar de cara enfiada nos seus livros, é só dizer. Ninguém está te
obrigando a estar aqui.
Ah, mas é aí que ele se engana. Tive que abrir todas as três janelas
do meu quarto em uma tentativa de arejá-lo e dissipar o cheiro delicioso
dela de lá. Meu vínculo se recusou a me deixar trocar os lençóis. Para ser
sincero, ele deu um chilique, então fui obrigado a me livrar do resto o
melhor possível.
Terei que beber hoje à noite. Só vou conseguir dormir lá se estiver
de porre, e, pela primeira vez, meu vínculo concorda comigo.
— O abastecimento de água foi danificado.
Meus olhos se erguem imediatamente da xícara de café para
encontrarem a carranca de North. Ele assente e prossegue:
— Só dois pontos da rede não são cobertos pela vigilância; tem que
ter acontecido ali. O sistema de filtragem detectou as bactérias indesejadas
e desligou automaticamente. Sawyer acordou com o alarme e me ligou às
sete. Ele já examinou todas as gravações, mas parece que temos um
infiltrado vivendo aqui.
Xingo baixinho. Sempre soubemos que não só era possível, mas
bem provável que trouxéssemos um simpatizante conosco.
— Algum palpite de quem foi?
North dá a volta na mesa e desliza um tablet para mim com uma
lista de nomes na tela.
— Essas são as pessoas que não estavam na cama na hora. Sawyer
tem rastreado devagar os movimentos delas, mas é trabalho demais para
uma pessoa só, mesmo um Tecnocinético. Temos muita sorte de tê-lo.
Precisamos recrutar mais um.
Falar é fácil. Tecnos são raros, só não mais do que Arrebatadores e
Mensageiros de Morte; de alguma forma conseguimos dar início a esta
pequena comunidade com um conjunto bastante especial de dons. Um
Metamorfo que pode assumir qualquer forma e um Neuro absurdamente
forte, com a habilidade de farejar mentiras, também são de enorme ajuda.
Por mim, o Menino Indestrutível pode muito bem desaparecer.
North se senta na cadeira e abre o notebook, fazendo cara feia para a
tela ao ser bombardeado pelas besteiras ali. Não tenho dúvidas de que está
sendo importunado pelo resto dos membros do Conselho e outras famílias
de Nível Superior que querem que ele resolva seus problemas, embora se
recusem a viver aqui com famílias de Nível Inferior.
Escória, é isso o que são.
Decoro a lista de nomes e digo:
— Vou dar uma olhada. Posso colocar as criaturas nos pontos cegos
até instalarmos câmeras para fazer a cobertura.
North assente e digita sem olhar para mim.
— Também temos que buscar suprimentos, e comprar água
engarrafada para nos mantermos até a limpeza.
Assinto, bebericando meu café de novo.
A porta se abre e Gryph entra com movimentos ríspidos, parecendo
frustrado. Pensei que uma manhã nos tatames com a garota daria um jeito
nele, mas parece que não.
Ele me olha só uma vez e diz:
— A Oli curou você.
Não é uma pergunta; tomo cuidado com a resposta:
— Ela estava dormindo na hora, mas sim, curou.
Gryph assente, ouvindo a verdade no que escolhi contar, e é só
quando ele se vira em direção à cafeteira que North me olha feio. Ele não
precisa ser um Neuro para ouvir a parte que não estou dizendo. Contudo,
por ele tudo bem deixar Gryph de fora disso; sempre é um irmão tão leal.
Já eu estou pouco me fodendo.
— O vínculo dela falou comigo. Disse que podia me curar se eu
quisesse. Só isso, irmão. Foi o que aconteceu. Sua Vinculada não vai se
lembrar, e não tentei tocar em nenhuma das duas.
North nem olha para ele, mas quando Gryph não interrompe para
afirmar que é mentira, ele faz que sim e volta a fazer sei lá o que no
computador.
— Quem buscará os suprimentos? Se houver um infiltrado, não
podemos ir todos.
North dá de ombros.
— Você e Gabe podem ficar. Você continua procurando o infiltrado,
e Gabe continua nas construções. Ele é melhor nisso do que o resto de nós,
e é uma boa ajuda para você.
Gryph concorda, pega a lista da minha mão e a analisa.
— Metade desses nomes são de famílias inferiores que treinam
comigo de manhã. Posso dar algumas ideias para o Sawyer de onde
procurar o álibi deles.
North assente, hesita e expira devagar.
— Mostre para o Atlas. Primeiro a lista, depois aponte as pessoas.
Vê se ele lembra de alguma coisa.
— Não. De jeito nenhum. Não vou entregar a pouca informação que
temos a alguém que sabemos que faz parte da Resistência.
Gryph e North se entreolham, mas meneio a cabeça para os dois.
Não ligo para o que dizem, ou que seja parte do Grupo de Vínculos. Ele
continua sendo a merda de um Bassinger.
Ele foi o primeiro indício do veneno que a garota tem.
— Vou cuidar disso eu mesmo, então deixe-o de fora dessa.
Encontrarei o simpatizante até o final da semana.
Por mais que construir casas com Gabe seja mesmo divertido e gratificante,
sair para buscar suprimentos com três dos meus Vínculos é exatamente o
que preciso neste momento.
Passei a noite no quarto de Nox e, embora tenha dormido oito horas
completas, acordei me sentindo um cadáver em decomposição atropelado
por um caminhão. Coloco a culpa disso na atmosfera desconfortável e vou
treinar com Gryphon quando ele vem me buscar.
Uma hora mais tarde, North chega, ainda sem ter vestido o terno, e
nos conta sobre o problema de contaminação na água. É um pouco
preocupante, porque já tomei banho e bebi café feito com aquela água, mas
pelo que Sawyer sabe, a contaminação ocorreu entre as seis e sete da
manhã, então não preciso me preocupar.
Mesmo assim, North e Gryphon me arrastam para ser examinada
por Felix, só por garantia. Menciono que Gryphon também bebeu o café,
mas os dois estão cagando para isso. Felix – que estava dormindo quando
demos as caras na casa que divide com seu Grupo de Vínculos, Sawyer e
Gray – cobre minha mão com a sua própria, gentil, mas bem cansada, por
meio segundo antes de declarar que estou bem, depois volta para a cama,
ainda sem nada além de uma cueca samba-canção vestida de qualquer jeito.
Sage enfia a cabeça para fora do quarto, mas quando digo que estou
bem, cambaleia de volta para cama sem dizer nada, ainda sonolenta e
incapaz de formular frases coerentes.
Dou uma bronca em North e Gryphon usando nossa conexão mental
enquanto saímos, e nenhum deles parece se importar.
— Foi alguém que conhece nossa rotina matinal. Sabem que você
acorda cedo — diz North, tirando o suéter e o enfiando pela minha cabeça.
Ainda está calor, mesmo nas roupas de treino que consistem em
regata e short, mas Gryphon o ajuda a ajeitar a peça até que eu esteja
coberta até os joelhos.
Não entendo por que ele está tentando me cobrir – até ver a legião
de trabalhadores vindo da direção oposta, todos acenando ou baixando o
queixo de forma respeitosa para North, que tenho certeza de que está
empolgadíssimo por estar só de calça de moletom.
Gryphon meneia a cabeça e segura minha mão quando tropeço no
cascalho solto.
— Foi um teste. A Resistência não quer realmente a Oli morta: o
que querem é saber o nível de segurança deste lugar e quais salvaguardas
temos. Vão ficar de olho em como reagimos às coisas e como nos
articulamos quando nos atacam, mesmo em escalas menores como esta.
Bufo para os dois.
— Bom, eles descobriram que vocês dois entram em pânico e me
arrumam um Curandeiro, então, se me querem viva, vão ficar
supersatisfeitos.
Gryphon dá de ombros, recusando-se a soltar minha mão ao me
conduzir a caminho da nossa casa, e diz:
— É a única vez em que não me importo de fazer exatamente o que
aqueles cuzões querem. Segurança acima do ego, sempre.
Assinto e espero North abrir a porta. Ao entrar na casa, tropeço e
tento não ficar frustrada por Gabe deixar os sapatos na frente da porta.
North não oferece a mesma gentileza; xinga em voz baixa, então sai
marchando para acordar o coitadinho do meu Vínculo e dar uma bronca
nele.
Viver com tão pouco espaço é mais difícil do que qualquer um de
nós imaginou, e aqui temos machos alfa demais em um lugar só.
— Para de se preocupar com isso. Não é seu problema para resolver.
Além disso, eles têm uma amizade de anos sobre a qual você não tem
nenhuma responsabilidade — murmura Gryphon, conduzindo-me para a
ilha da cozinha e me ajudando a sentar na banqueta.
Faço que sim e me abraço, inspirando fundo o cheiro de North no
suéter para me acalmar antes de apoiar o queixo na mão e assistir Gryphon
se mover pela cozinha. Ele continua com a roupa de treino e posso me
deliciar com a visão dos músculos de seus braços e ombros contraídos na
regata cavada. Nem reparo que está pegando frigideiras e ingredientes para
preparar ovos mexidos e bacon. Só percebo que fez café da manhã para nós
quando coloca o prato na minha frente.
Encaro a comida por um segundo, depois o encaro. Ele está
balançando a cabeça para mim.
— Não sou o chef, mas sei fazer ovos. Trabalhei no café com a
Kyrie por alguns anos na época da faculdade. É para estar comestível, pelo
menos.
Coro de leve e pego os talheres que ele também colocou na bancada
para mim.
— Certeza que está uma delícia. Só fiquei chocada de ter comida em
casa. Achei que ainda não tivéssemos chegado na fase de racionamento.
Ele dá de ombros e começa a comer do próprio prato.
— Não chegamos. Fiz umas compras quando fui à sede do conselho.
De vez em quando, lidar com os cuzões da Resistência que trazemos pra cá
tem suas vantagens.
Assinto e como junto com ele, impressionada que ele não apenas fez
a comida com a consistência perfeita, mas bem-temperada. Nossa, são ovos
excelentes.
— Achei que nem tínhamos prisioneiros, que meu vínculo tinha
exterminado o campo todo.
De boca cheia, ele concorda e espera engolir tudo para responder:
— Exterminou. Esses são os que a gente apreendeu e transportou
para cá antes de você entrar na briga. Pegamos um punhado, vários
Favorecidos de alta hierarquia. Foi bem útil.
Concordo.
North entra na cozinha, com o cabelo ainda despenteado em pontos
que não se incomodou demais em arrumar após acordar. O terno, porém, o
deixa bem mais parecido consigo mesmo. Ele assente para Gryphon, então
se abaixa para me dar um beijo, estalando os dedos para August, que
aparece obediente do meu lado. Houve uma mudança drástica no
relacionamento entre eles desde que falei com o vínculo de North. Notei
que, mesmo quando August volta à sua companhia, North quase sempre o
deixa de fora, vigiando qualquer que seja o espaço em que está.
A cada vez que vejo isso eu me apaixono um pouquinho mais por
ele.
— Fique com um dos seus Vínculos o tempo todo hoje, até a
situação estar sob controle.
Concordo porque já estava planejando fazer isso, e o deixo me
beijar de novo, segurando minha nuca de um jeito possessivo. Ele se ergue,
troca um último olhar com Gryphon e vai embora, saindo para lidar com a
mais nova crise.
Volto ao meu prato de ovos deliciosos e à conversa com Gryphon.
Quero saber o que a Resistência anda fazendo.
— Já tirou algo de útil das pessoas que trouxeram? O Atlas
reconheceu alguém?
Ainda de pé no meio da cozinha como se não encontrasse tempo
nem para sentar, ele assente e recolhe o restinho dos ovos com o garfo.
Graças à interrupção de North durante nosso treino, estamos uma hora
adiantados, embora ele se comporte como se já estivesse com um pé na
porta.
Antes de responder às perguntas, ele inclina a cabeça de lado e seus
olhos brilham, expandindo seu dom para conferir onde Atlas está. Quando
vê que ele está dormindo, diz em voz baixa:
— A irmã do Bassinger está em frangalhos. Passei dois dias
vasculhando as memórias dela, mas foi como olhar um daqueles espelhos
de exposição. O mundo através dos olhos dela é distorcido, deformado. Ser
criada à base de propaganda da Resistência e depois ter quatro Vínculos que
pensam do mesmo jeito? Ela é… um caco. Além disso, também foi abusada
pela maioria dos seus Vinculados, física e mentalmente. Isso não é raro
entre as famílias da Comunidade Favorecida da Costa Leste, mas o fato de
que seus pais sabiam e não fizeram nada para ajudar é nojento.
Meu coração se parte um pouco mais pelo Atlas, pelas coisas que,
embora não quisesse ter que me contar, estava disposto a isso, se eu
acreditasse nele. Parece meio errado falar sobre isso com Gryphon, mas ele
também é meu Vinculado e sei que isso afeta a ele também. Tudo o que ele
precisa ver e vivenciar em seu trabalho como líder da Equipe Tática é uma
carga pesada para carregar.
Não é justamente o meu trabalho ajudar a aliviá-la?
— Eu não pediria isso de você, Vinculada. Nunca colocaria muito
dessa desgraça nos seus ombros; seus próprios fardos já são pesados o
bastante. Estou indo ao escritório do North para decidirmos o que fazer com
o problema da água. E você continue com seu dia, como de costume. Só
fique sempre perto do Bassinger e do Gabe, tudo bem?
Faço que sim e pego o prato dele, empurrando-o com o quadril para
fora do caminho enquanto os coloco na máquina de lavar louça junto com
os outros pratos. Ele me dá um beijo estalado e vai se vestir para o dia. Já
eu fico apreciando a visão de sua bunda naqueles shorts durante todo o
caminho.

Quase me esqueço e entro no chuveiro quando Gryphon sai, mas,


em vez disso, mando uma mensagem para a Sage e peço desculpas por ter
sido tão rude ao acordar de manhã cedo. Ela me responde de imediato,
ligando para mim para dizer que não tem problema nenhum com isso,
porque ela é a melhor, e passamos uma hora inteira ao telefone. A maior
parte, fofocando sobre os Vínculos, coisa que é irritantemente divertida.
Quando chegamos aos assuntos interessantes, minhas noticiazinhas
quebram o cérebro da pobre Sage, e é a coisa mais engraçada do mundo.
— Os dois ao mesmo tempo?! Oleander Fallows, mas que…
escândalo! E eles ficaram… de boa?
Dou uma bufada e apoio o celular no ombro.
— Bom, não fui eu que sugeri! Eu fui mais… convencida de que era
uma boa ideia. Olha, depois que os Vinculados começam a ficar criativos,
você vai acabar metida numas loucuras que ninguém te avisou. Acho que
precisamos ter outras amigas em Grupos Vinculados, só para, sabe, ter
quem nos avise dessas coisas, porque não dá pra perguntar pros seus pais…
Ela faz um som de vômito e me interrompe com um grito agudo:
— Cala essa boca agora mesmo! Não quero imaginar meus pais
numa orgia. Porra, vou vomitar. Pra que falar uma coisa dessas? Eles só
fizeram isso duas vezes, uma por mim e outra para o Sawyer. E só! Que
nojo.
Ouço Sawyer sendo dramático ao fundo, xingando Sage por sequer
ousar falar de uma coisa tão nojenta, e dou risada dos dois. Eles são irmãos
tão típicos, em uma dinâmica familiar tão normal agora que sua família não
está mais sendo desagradável por coisas fora de seu controle, e é bom viver
isso indiretamente por meio dos dois por um minuto.
Sage pigarreia.
— Tá, agora que tenho que deixar meu cérebro de molho em água
sanitária, qual o plano para o incidente de hoje? Você vai ajudar a resolver?
Eu me jogo na cama de Gryphon e enterro o nariz em seu
travesseiro por um instante só para dar uma última farejada nele antes de
seguir com meu dia.
— Ainda não tive notícias. Estão numa reunião sobre isso neste
exato momento, mas só me disseram para passar o dia com Gabe e Atlas.
Sage resmunga.
— O Kieran me disse o mesmo. Quer que eu fique o tempo em casa
com alguém.
Eu faria uma piada sobre Vínculos possessivos e exageradamente
protetivos, mas, após uma batida na porta, a cabeça de Atlas aparece.
— O Shore ligou. Estamos saindo do Santuário em uma excursão.
Você vem junto… se quiser.
Pode apostar que eu quero.
— Tenho que ir, Sage. Te ligo quando chegar em casa.
Saio saltitando da cama e me jogo nos braços de Atlas. Ele está com
cara de cansado desde que voltamos do campo com sua irmã em custódia,
mas sorri.
— Acho que seu vínculo não será necessário hoje. Espero que esses
pulinhos não sejam por pensar que ela vai… comer.
Respondo à provocação bufando; sei que não está falando sério, e
dou de ombros.
— Vai saber, talvez um dos agentes táticos me estresse e acabe
virando almoço.
Ele ri enquanto vamos até a porta, calçamos nossos sapatos e
pegamos as jaquetas.
— Sei para quem vai meu voto. O Rockelle é um imbecil de merda
e bem que merece ter a alma devorada.
Dou um sorriso malicioso e sacudo os ombros. Sei que o cara é um
dos melhores amigos de Gryphon e um dos agentes em que mais confia,
então, mesmo com aquela boca grande e piadinhas desrespeitosas, ele está
seguro por enquanto.
Já não há muita gente de confiança. Não posso eliminar os poucos
que temos.
Chegamos ao escritório de North, onde vários grupos de agentes
táticos aguardam do lado de fora, vestidos e completamente armados. De
jeito nenhum vão me deixar ir com o jeans e o suéter que estou vestindo.
Suponho que o único jeito de me acostumar ao uniforme é usando o
bendito.
É que me sinto uma fraude nele, como uma civil fingindo ser uma
super-heroína.
Kieran nos vê chegando e esbraveja com os retardatários para
saírem do nosso caminho até conseguirmos entrar no prédio. Há apenas
alguns no saguão, todos agentes de alto escalão, e tenho a impressão de que
esperam meu Vinculado para podermos ir.
Paramos ao alcançar Kieran, satisfeitos de esperar com ele por
enquanto. Está com uma aparência boa, cerca de um milhão de vezes
melhor do que quando fomos resgatados daquele campo, e preciso me
esforçar para não abrir um sorrisinho sacana.
Não posso deixar de comentar e brincar com ele; sinto que somos
praticamente da mesma família agora que ele assistiu o homem mais
medonho do mundo me picotando.
— A vida de Vinculado está te fazendo bem?
Ele ergue uma sobrancelha para mim e responde com o rosto sério:
— Tanto quanto a colônia nova do Gryphon está fazendo por ele.
Demoro um segundo para entender, e aí fico com uma leve vontade
de morrer. Não, fico com muita vontade de morrer.
Dou um grunhido e escondo o rosto nas mãos, como se desse para
desaparecer se ninguém mais fizer contato visual comigo.
— Vou matar este homem assim que encontrar um buraco para me
enfiar e morrer.
Kieran dá de ombros e vê o olhar homicida que Atlas lhe dá por se
atrever a mencionar algo que me deixe envergonhada, embora não faça
ideia de por que estou agonizando. Graças a Deus. Kieran saber já é ruim
demais.
Que raio de Vinculado.
Quando o elevador apita e se abre mostrando North e Gryphon, dou
as costas para o cuzão, cruzo os braços, assumo uma carranca vergonhosa
de birra e cago para ele. August vem trotando e senta aos meus pés,
olhando-me com seus olhinhos perfeitos de vácuo como quem sabe que
estou prestes a esfaquear alguém.
— Você está lascado — resmunga Kieran. Gryphon fecha a cara
para ele e vem na minha direção como se pudesse consertar a situação, mas
já estou envergonhada o bastante e não quero estender esse assunto. Foi
bem sexy na hora, mas ficar parada aqui pensando naquilo? Não, valeu.
Alguém me mate.
— Alguma coisa sobre perfume — resmunga Atlas, segurando
minha mão e me afastando dos dois. — Vem, Doçura. Vamos nos trocar e
dar o fora daqui.
Damos as costas bem na hora em que North grunhe para Gryphon
de um jeito nada Draven. Ah, não. Dou uma olhada para trás só para
garantir que o vínculo dele não irrompeu no meio do saguão, mas só vejo
meus dois Vinculados se peitando por minha causa.
Atlas me arrasta até um dos vestiários, junta-se a mim na área
feminina depois de pegar seu próprio traje e passa a chave para que
ninguém entre enquanto nos trocamos. Continuo irritada demais para dar a
mínima por estarmos trocando de roupas juntos, e quando tiro o suéter e a
camiseta ele nem titubeia, só começa a se despir também.
Meu cheiro, espalhado no rosto de Gryphon enquanto ele fazia suas
tarefas do dia.
Volto para a realidade piscando algumas vezes e acabo dando de
cara com o peito nu de Atlas e, cara, que vista. Não sei se é seu dom que o
deixa mais definido ou se ele tem uma rotina brutal de treinos que eu
desconheça, mas ele é bem definido. Tipo, definido no nível bodybuilder
profissional, e o V delicioso que atrai meus olhos para o cós de seu jeans
parece extremamente convidativo.
Pigarreio, sobretudo para tentar encontrar minha voz, mas isso
chama sua atenção. Atlas confunde meu nervosismo com estresse por conta
de Gryphon e meneia a cabeça.
— Sei o bastante para desconfiar do que é, Doçura. Não tente
explicar. Já estou com vontade de arrancar o braço do Gryphon e enfiar no
cu dele por ter tudo o que eu quero. Não preciso de mais detalhes.
Fico corada de novo e abaixo a cabeça, assentindo.
— Não acho… não estou me sentindo nenhum pouco mais forte.
Você estava certo, eu acho.
As sobrancelhas dele disparam para cima e eu mordo o lábio,
desabotoo os jeans e o vejo engolir em seco, abaixando os olhos para
acompanhar a trajetória da peça descendo pelas minhas pernas. Estou
usando uma calcinha preta simples, nada chamativo, mas pela forma como
ele reage ao me ver, poderia muito bem ser uma lingerie rendada e sem
virilha. Suas pernas tremem um pouco e ele avança um passo, inspirando
fundo e gemendo baixinho, como se estivesse sofrendo.
Eu podia transar com ele aqui e agora, completar nosso Vínculo e
torná-lo meu. Merda, sou eu mesma que estou pensando isso?! Ou será a
piranha do meu vínculo? Não, sou eu que estou praticamente pingando por
ele numa hora tão inconveniente.
Seus olhos brilham, ficam brancos por um instante, e logo retornam
ao verde claro quando ele se controla.
— Não me provoca, Doçura. Não com uma porra de horda inteira de
agentes táticos lá fora podendo escutar, porque vou fazer coisa bem pior do
que o Shore. Cacete, é tentador imaginar todos eles nos ouvindo completar
nosso Vínculo.
Minha voz mal passa de um sussurro quando respondo:
— Desculpa, não estou pensando direito. É que eu… acho que o
North iria arrombar a porta e te matar, de qualquer forma.
Ele assente e volta a se afastar, com movimentos erráticos, como se
estivesse tendo dificuldade de deixar este momento acalorado passar.
Também estou, independente de onde estamos ou de quantas pessoas estão
esperando enquanto nos preparamos.
Eu me atrapalho ao escanear meu cartão para passar pela segurança
e ter acesso ao armário destinado a mim, pego meu uniforme e começo a
vesti-lo. As calças estão um pouco mais largas agora que voltei a treinar e
estou passando menos tempo comendo frutos do mar com deliciosos
molhos cremosos jogada na cama de North.
Vestida e pronta, dirijo-me à porta, mas Atlas me impede, segurando
meu braço com gentileza e me puxando de encontro ao seu corpo. Não
imponho resistência e me ergo na ponta dos pés para retribuir o beijo
quando ele se abaixa para encontrar meus lábios.
Seu beijo é um juramento do que está por vir entre nós, a marca de
uma promessa que mal posso esperar para cumprirmos.
Quando saímos do vestiário juntos, meus olhos encontram os de
North do outro lado do recinto. Ele me dá um aceno breve antes de falar
com todos os comandantes presentes, oferecendo um resumo do que
faremos hoje:
— Nossa prioridade é buscar água, e recebemos algumas outras
requisições que dissemos que iríamos analisar. A maior parte são itens de
conforto pessoal, mas também precisamos suprir algumas receitas de
remédio. O Felix anda ocupado com diagnósticos e curas básicas que um
medicamento simples poderia resolver.
Ele continua explicando o protocolo e eu vou concordando com a
cabeça; são todas instruções padrão que seguimos da última vez. Não estou
surpresa de estarmos indo atrás de coisas que possam ajudar o Felix. Todas
as vezes que vi o Curandeiro, com exceção de quando o acordamos hoje de
manhã, ele estava atarefado e com cara de cansado. Sage também anda bem
preocupada com o volume de trabalho dele, mas os outros Curandeiros se
recusaram a trabalhar sem remuneração, embora estejam morando e
comendo de graça, então tudo acaba nas costas de Felix.
Tenho certeza que North vai acabar matando alguém para servir de
exemplo aos outros. Bom, na verdade ele não faria isso, mas eu com certeza
faria. Nada se compara a homens ricos sendo uns arrogantes por coisas sem
importância durante uma verdadeira crise.
Típica baboseira de Nível Superior.
Somos transportados para uma área de embarque repleta de veículos táticos.
Estou espremida entre Atlas e North, com Gryphon, Kieran e Rockelle
fechando o pequeno círculo que formamos. Os olhos de Gryphon brilham
enquanto ele escaneia a área e, só para garantir, expando o meu próprio
dom. North me observa com um vinco entre as sobrancelhas. Não de um
jeito ruim, só parece que eu o peguei de surpresa.
Gryphon fala em tom baixo:
— Não estou detectando ninguém. Oli?
Faço que não.
— O mais próximo está há um quilômetro, em um carro indo na
direção oposta, então acho que estamos seguros. Não senti nada “errado”
também. Nada que não devesse estar aqui.
Kieran me olha, curioso.
— Como isso funciona? Você só percebe se alguma coisa é… o quê,
ruim?
Eu me desvencilho dos meus Vínculos e dou uma volta para olhar
os arredores com meus olhos, não apenas com meu dom. Endireito os
ombros e dou uma examinada no armazém, enquanto as outras equipes
começam a chegar.
— Na verdade não sei como funciona, só que meu vínculo sabe
quando algo quer me ferir.
Atlas alonga os braços, como se ser transportado tivesse afetado
seus músculos e os deixado doloridos.
— É assim que sabe quem eliminar quando está Arrebatando. Só
pega as almas das pessoas que querem te fazer mal.
Rockelle concorda com a cabeça e sorri.
— Então estamos a salvo contanto que não te desejemos mal?
Anotado. Melhor o Shore abaixar a bola antes que alguma coisa aconteça.
Reviro os olhos e acompanho Atlas até um dos veículos. Iremos
todos juntos no terceiro carro do comboio. Fico com pena de quem ficar na
dianteira, a posição mais perigosa, porque se há alguém contaminando
nosso abastecimento de água, existe uma boa chance desta excursão ser
bem o que a Resistência quer. Eles podem estar em qualquer lugar, a
qualquer hora, e eu preciso ficar esperta.
Gryphon, que já aprendeu que o melhor jeito de me abordar é sem
que ninguém saiba, fala comigo pela nossa conexão mental:
NÃO VOU ABAIXAR BOLA NENHUMA. O BLACK ESTAVA SENDO UM IMBECIL, MAS
NÃO SINTO VERGONHA DA MINHA VINCULADA OU DO QUE FAZEMOS JUNTOS, E VOCÊ
TAMBÉM NÃO DEVIA SENTIR.

Eu me agacho para conferir embaixo da carroceria da caminhonete


para onde North aponta, forçando meu dom só para ter plena certeza de que
não há nada ali.
ENTÃO POR QUE O NORTH FICOU TÃO PUTO? SE É SÓ UM MOMENTO DE
ORGULHO, NÃO TEM PORQUE TER VERGONHA MESMO.

Ele responde:
SE PUDESSE, A ESSA ALTURA NORTH DRAVEN JÁ TERIA TRANCADO VOCÊ NUMA
TORRE, COMPLETAMENTE INACESSÍVEL PARA QUALQUER UM DE FORA DO NOSSO GRUPO
DE VÍNCULOS, E MESMO LÁ, ELE SÓ DEIXARIA O RESTO DE NÓS TER ACESSO A VOCÊ
PORQUE, CASO CONTRÁRIO, VOCÊ SOFRERIA. ELE É UM BABACA CIUMENTO E
POSSESSIVO, E EU NÃO. QUERO QUE TODOS VEJAM O QUE É MEU E SAIBAM QUE NUNCA
TERÃO NADA TÃO PERFEITO QUANTO MINHA VINCULADA. SOU UM CUZÃO CONVENCIDO,
MAS AINDA ASSIM, UM CUZÃO.

Caramba.
É uma ótima explicação e, por mais que eu queira, não consigo
continuar brava com ele. Não consigo porque eu sabia que ele estava todo
cheio de si – e orgulhoso – de estar comigo. Sabia o quanto estava amando
ter sido o primeiro a completar o Vínculo comigo, apesar das
circunstâncias, e sempre me fez sentir que isso seria possível
Talvez eu pudesse ficar com todos eles e não me tornar uma
máquina mortífera sem consciência.
AINDA ESTÁ BRAVA?
POSSO CORTAR A GARGANTA DO BLACK AGORA MESMO E
DEIXÁ-LO SANGRAR ATÉ MORRER.

Eu me empertigo e lhe dou um olhar bastante insolente.


NÃO PODE COISA NENHUMA! ELE NÃO É MAIS APENAS SEU AMIGO E COLEGA: É
O VÍNCULO DA SAGE. MAS TUDO BEM, SUA ALMA PODE ESCAPAR DA PRÓXIMA RODADA
DE MATANÇA. VOU TE DEIXAR VIVER PARA ME RECOMPENSAR MAIS TARDE.

Sou fuzilada por seus olhos, poços ardentes sob a fachada calma que
exibe para todos os outros. Amo essas profundezas e o fluxo de depravação
que sai de sua boca quando ele está no clima.
SE VOCÊS JÁ TERMINARAM, PODEMOS VOLTAR AO QUE VIEMOS FAZER AQUI?
O tom prepotente de North me sobressalta e eu abaixo a cabeça,
subindo no banco traseiro da caminhonete sem dizer mais nada.
— Estão te azucrinando de novo? Imaginei que fossem te deixar em
paz por umas horas enquanto trabalhamos — resmunga Atlas ao se sentar
ao meu lado, afivelando o cinto de segurança antes de me ajudar com o
meu.
— Gryphon estava só pedindo desculpas. Ele não é muito bom
nisso, mas deu para o gasto — brinco, ignorando o jeito com que Rockelle
cai na risada ao subir na parte traseira. Com uma arma nas mãos, ele se
prende ao chão e se prepara como se fosse sair atirando pela traseira da
caminhonete. Dou uma olhada para North.
— Por que é que parece que vamos entrar em uma zona de guerra?
É um passeio para buscar água — provoco, mexendo a bunda para me
acomodar.
Quando North sobe e ocupa todo o espaço restante no banco
traseiro, parece que estou sendo esmagada mais uma vez entre ele e Atlas.
O esquisito é isso ser mais reconfortante do que incômodo.
Vínculos são bem esquisitos com esse tipo de coisa.
Ele não se dá o trabalho de afivelar o cinto, apenas segura a barra de
ferro acima da porta enquanto Kieran nos conduz para a estrada. Gryphon
está no banco da frente, com os olhos ainda brancos, monitorando tudo ao
redor.
North precisa quase gritar para que eu o ouça por cima do ronco do
motor, mesmo com as janelas de vidro blindado fechadas:
— Temos excursões por mantimentos e chegada de residentes quase
todo dia, e pelo menos sessenta por cento delas é atacada ou pilhada de
alguma forma. Já que esta saída foi forçada pela Resistência, aposto que
não será um passeio tranquilo. Existe um motivo para virmos juntos. Água
é importante demais para não buscarmos, mas, com nossos dons, podemos
minimizar as consequências.
Interessante.
— Alguma chance de vocês me deixarem participar das entregas e
recebimentos de suprimentos? Posso ser útil, mais do que aprendendo a
construir casas.
Todos os meus Vínculos falam ao mesmo tempo em uníssono:
— Não.
— De jeito nenhum.
— Eu nem queria que você viesse hoje. Esses dois que insistiram.
Olho para Atlas, surpresa com sua resposta, mas ele só dá de
ombros.
— Prefiro mil vezes quando você fica no Santuário. Não vou mentir
e dizer que estou gostando disto, mas não ia deixar que te trouxessem se eu
não viesse junto.
— Eu… — balbucio. — Meu vínculo é mais do que capaz de se
virar se algo der errado!
— É, e mesmo assim você passou dois anos sendo torturada pelo
Silas Davies. Não duvido de você, mas também não duvido que ele seja um
Neuro Vinculado com a habilidade de desligar seu cérebro e o seu vínculo.
Cruzo os braços.
— Ele é poderoso, mas seu alcance é uma porcaria. O dom do
Gryphon é melhor.
Atlas assente e dá de ombros de novo.
— E ainda assim o Silas continua sendo nossa maior ameaça.
Talvez, e só talvez mesmo¸ os pesadelos dos Draven dariam conta dele. Se o
alcance do North ou do Nox for tão bom quanto parece, talvez a gente
consiga usar um dos dois para acabar com ele.
Já sei que o alcance dos dois é fenomenal. Brutus foi ao campo
comigo e, embora Nox não soubesse onde estávamos, conseguiu ver tudo
pelos olhos de sua criatura. Foi o que Gryphon me contou, e também que
todos ficaram preocupados quando o emprestei para Kyrie.
Continua sendo a melhor decisão que tomei naquele campo de
merda.
Dou uma olhada breve para North, mas ele continua de cara feia
para a estrada como quem espera confusão. Inspiro de leve e invoco meu
vínculo, que responde:
ME DEIXE SAIR.
Reviro os olhos por dentro.
SÓ PRECISO SABER SE HÁ ALGUM PERIGO. NÃO PRECISO QUE DÊ UMA DE
SUPERDEUSA DA MORTE NESTA MISSÃO.

Posso sentir a onda de frustração, então ela fala de novo:


ME DEIXE SAIR E MANTEREI TODOS A SALVO. TODOS, ATÉ MESMO OS QUE NÃO
SÃO MEUS.

Será que é estranho eu ter ciúmes do meu próprio vínculo sendo tão
possessivo com meus Vínculos? Deve ser. Talvez eu precise mesmo de
terapia.
Meus olhos esvaziam. Enrijecendo, O Inabalável tensiona a mão em
minha coxa, mas não se move. Ele não está com medo, só pronto para agir
se for preciso.
O Sombrio não reage, apenas vira o rosto e fala comigo.
— Algum perigo? Ela está a salvo?
Ainda tão devoto à mocinha.
Gosto disso.
— Ainda não. Ela vai ficar bem, custe o que custar.
Ele assente e gesticula para meu Vinculado. Meu primeiro
Vinculado, aquele que eu finalmente pude experimentar. Aquele que liberou
mais do meu poder, do potencial que vive dentro da moça, até que eu
pudesse acessar mais e mantê-la a salvo e viva.
Quero mais.
— Chega de pensar assim. Não vai conseguir mantê-la viva desse
jeito — ele diz em uma voz tensa, e eu lhe dou um sorriso cheio de dentes
afiados.
— Você é chato. Me dê meu Vínculo em seu lugar.
A garota discorda de mim. Ela tenta recuperar um pouco do controle
enquanto o motorista xinga em voz baixa, afunda o pé e faz o veículo
acelerar. Olho para fora e não vejo nada. Nada além de quilômetros de
fazendas e gado ao nosso redor. Este lugar para o qual fomos trazidos é
remoto o suficiente para mal existir em um mapa.
— Falta muito pra chegar? — pergunta o Inabalável.
— Tempo demais com ela desse jeito aí atrás — retruca o motorista.
— Pode devolver a Oli agora?
O Sombrio interrompe:
— Não. Se o vínculo assumiu, então ela está levando isso a sério. Só
nos leve até lá e não se preocupe com ela. De qualquer modo, você está na
lista de proteção dela. O Rockelle é o único que precisa se preocupar.
Por um momento, um silêncio toma a cabine. Somente o ronco do
motor pode ser ouvido e então, na traseira, o Favorecido diz:
— E como eu entro nessa lista de proteção? Tem algum processo
seletivo, ou preciso apenas quebrar minha própria perna? Não sou contra
nem nada, só não é bem minha primeira opção.
Viro-me para encará-lo e dou um sorrisinho frente ao pavor sincero
que se espalha pelo seu rosto antes de ele retomar o controle e segurar a
arma com mais força.
Quando volto a olhar para frente, ele murmura:
— Porra. É bem pior quando essa coisa olha pra gente.
O Inabalável se vira e retruca:
— Para de chamar meu Vínculo de essa coisa. É Oli, e ela está
tentando manter essa sua carcaça inútil viva, então cala a boca.
Embora eu não sinta necessidade de demonstrar meu carinho ou
provar minha ligação a qualquer um dos meus Vínculos, pouso a mão sobre
a dele em minha perna como reconhecimento. Nunca duvidei de sua
lealdade a mim e ao nosso Vínculo. Não é sua culpa ter nascido em um
covil de víboras. Ele veio assim que o chamei, para apoiar a garota e
oferecer consolo quando ela precisava.
O Inabalável se inclina e beija minha bochecha, murmurando:
— Você está brilhando. É uma graça, mas está fazendo o Black suar
frio, então talvez queira dar um jeito nisso.
Nego com a cabeça.
— Ele que supere. Sou perfeita do jeito que sou.

O estacionamento do mercado fica no meio do nada. Há pastos


abarrotados de vacas nos cercando de todos os lados, e de repente uma
enorme superloja aparece.
Quando estacionamos, Gryphon sai primeiro, fazendo uma
varredura inicial. Leva mais tempo desta vez, em grande parte porque está
analisando a multidão de pessoas comprando no local. Vasculhar tantos
cérebros do jeito que ele faz leva mais tempo do que em um armazém vazio
ou na estrada.
Quando me olha nos olhos e acena com a cabeça para eu me juntar a
ele, o Sombrio sai do veículo e abre minha porta, formando um escudo com
seu corpo enquanto faço meu trabalho. Não tem ninguém da Resistência,
nenhum perigo, o que por si só parece um sinal de alerta.
Onde estarão se espreitando à nossa espera?
Por que não aparecem para brincar comigo?
Meu Vinculado olha para mim e, quando faço um sinal de que está
tudo certo, começa a gritar ordens para os Favorecidos que nos cercam.
Eles entram em movimento no instante em que recebem instruções, mas
quando chega minha vez, meneio a cabeça.
— A Oli vai…
— Não.
Meus Vinculados se viram para mim, mas meus olhos continuam
fixos na lateral do prédio, onde há um caminho para a área de carga e
descarga nos fundos. Um grande caminhão está sendo descarregado ali, e
embora não haja nada lá, sinto que é um aviso. Não estou gostando disso.
Não estou gostando nada.
— Tudo bem. Oleander, Draven e Bassinger vão ficar aqui e ajudar
a patrulhar o perímetro enquanto buscamos os mantimentos. Ninguém
atrapalha ou se aproxima da minha Vinculada, sobretudo quando ela estiver
trabalhando. Confiem em mim, vocês não querem despertar o interesse do
vínculo dela.
Há um burburinho de concordância e então todos se afastam. Não
dou a mínima para eles ou para o que viemos fazer.
Quero aquele caminhão.
Não há necessidade de dizer isso em voz alta ou discutir um plano,
só marcho em direção a ele, com a certeza de que os meus me
acompanharão. É claro que sim. O que mais fariam quando estou presente?
Assim, eles me acompanham e caminhamos juntos até a área de
descarga nos fundos da enorme construção, onde o caminhão chamou
minha atenção. Não consigo me concentrar em mais nada, o que é tudo que
precisa ser dito, porque sou uma deusa.
Nunca estou errada.
O comunicador no meu ouvido faz um barulho, e depois a voz do
meu Vinculado surge com clareza:
— Não saiam do lado dela. Qualquer emboscada que estejam
tramando, ela está sentindo. Não a deixem sozinha.
O Sombrio responde:
— A gente já tinha sacado. Ninguém vai sair de perto dela. Pegue as
coisas e saia daí. Concentre-se na missão.
Paro no meio do asfalto, a cerca de três metros do caminhão. Meus
Vinculados tentam me deslocar, mas é aqui. Não há nenhum outro lugar em
que preciso estar neste instante e, se algum veículo se aproximar, resolver é
tarefa deles.
Não sairei daqui.
Ficamos parados ali e, quando qualquer um dos meus Vínculos tenta
falar comigo, ignoro, esperando o momento certo. Sei que está chegando.
Sei com tanta certeza quanto sei que preciso proteger a moça. Não serei
desviada deste lugar até que aconteça. O que quer que seja, o que quer que
esteja vindo nos encontrar, é aqui que vou lidar com isso.
Perco a noção do tempo que passa.
Sei que há movimento ao meu redor, muitos agentes táticos se
aproximando de nós e sendo redirecionados em rotas específicas enquanto
patrulham a área. Sinto a tensão deles, a forma como minha estranheza e
alteridade deixam todos abalados. Embora sejam bem treinados e não
reajam, consigo sentir.
Consigo captar o gosto no ar.
A voz do meu Vinculado chega pelo comunicador de novo:
— Já carregamos e estamos prontos pra partir. Vou enviar os outros
dois grupos. O nosso pode ficar até a Oli acabar.
O motorista fala mais uma vez:
— Estou carregado e pronto para ir, é só dar a ordem.
O Sombrio responde:
— Ela cismou no caminhão. Não vamos sair até ela estar pronta.
Confiamos no vínculo acima de tudo.
Quase me encanto ao ouvir isso, quase, mas então ouço um estalo
um metro e meio à nossa frente e três homens aparecem do nada. Não
reconheço nenhum deles, mas sei quem são e o que vieram buscar.
Eu.
A moça e o ser dentro dela.
Meus Vínculos também, se conseguirem.
— Pequena Alienadora, está provando ser uma baita pedra no
sapato, hein? — diz o homem mais velho no meio. Sua pele marcada por
cicatrizes se estica um pouco demais pelo sorriso cheio de dentes.
Com um aceno da minha mão, as almas dos outros dois são
arrebatadas sem esforço algum; seus corpos caem com baques surdos
idênticos.
O Sombrio se aproxima mais um pouquinho de mim enquanto as
sombras vão caindo de seu corpo como uma névoa escura em um lago na
mais clara das noites. Ele parece a morte ancestral, e meu peito se enche de
orgulho ao vê-lo assim, tão magnífico.
O Inabalável tem dificuldade para se conter, lutando para não se
jogar sobre mim devido ao forte desejo de proteger seu Bond mais amado.
Quero alcançá-lo, oferecer consolo e lembrar a ele que tudo isso não
significa nada para mim.
Só quero saber o que mais o Transportador tem para dizer. Qual
outro motivo teriam para mandar três homens? Claro, o que ainda está
respirando é forte. Forte até demais, bastante para eu não desperdiçar uma
alma boa assim simplesmente a arrancando.
Não.
Ele é uma iguaria, algo digno de ser arrebatado e consumido
devagar, um delicioso pedaço de cada vez.
— Ora, ora, não é forte o bastante para mim? Deve ter imaginado
que mandaríamos alguém acima do Franklin atrás de você. Ele era o mais
fraco que tínhamos. Você vai se arrepender de ter fugido. Ah, as coisas que
o Silas vai…
— Chega — interrompo e estendo a mão, chamando a alma para
dentro de mim.
Não preciso fazer isso quando lacero as almas, quando estou apenas
matando pessoas. Não; permito que apenas desapareçam e se tornem o nada
que merecem ser.
Este aqui, contudo, parece uma delícia.
— Que porra é essa? — murmura O Inabalável, mas o Sombrio não
responde. Está ocupado me assistindo arrebatar a alma do corpo e
armazená-la dentro de mim para mais tarde.
Quando o cadáver do último homem tomba, meus Vínculos ficam
ali parados por um instante. Depois, quando mais ninguém surge do nada, o
Sombrio se aproxima e vira o corpo de barriga para cima com o pé. Sua
sombra caminha junto dele, farejando o corpo como se para conseguir mais
informações.
— Esse aí é o Giles Andrews. Um dos favoritos do Silas, um
Transportador que nunca foi pego. Ele não precisa encostar nas pessoas
para transportá-las, e seu alcance é… era inigualável — diz O Inabalável, e
o Sombrio assente.
— Passou anos na nossa lista. Foi fundamental nos motins dos anos
setenta. Simplesmente removia metade da Resistência de uma vez quando
as coisas não iam como queriam.
Dou a volta no Inabalável.
— Ele está testando a garota e a mim, para ver quão mais fortes
ficamos. Matar o Franklin provou que estamos Vinculadas e mais
poderosas, mas ele não virá em pessoa até se certificar de que ainda é mais
forte, por isso está mandando os outros, sacrificando pessoas por
informações. E elas estão obedecendo suas ordens como os bons
cordeirinhos de mente lavada que são.
O Sombrio para e me observa; suas sombras ainda avançam.
— Precisamos conversar sobre isso.
A resposta é simples, especialmente quando a voz com quem divido
a mente se manifesta:
— A moça diz que não, então é não. Diz que, por ora, é não, e você
vai concordar.
Ele pisca mais uma vez, então assente devagar, e O Inabalável olha
de um para o outro, chocado com a interação.
Sinto a alma se agitar na minha barriga, esperando que eu dedique
tempo a consumi-la adequadamente, mas não vou arriscar enquanto a moça
está em espaço aberto.
— Nos levem de volta ao lugar seguro agora. Estou com fome.
Eles fazem o que digo sem que outra palavra seja compartilhada
entre nós, escoltando-me ao voltarmos à caminhonete, que já está ligada e
pronta para partir. Meu Vinculado me olha por cima do capô, como quem
tenta desvendar toda a minha mente, mas só preciso que a garota fique
segurança para que eu possa comer.
Ele assente, entra no veículo e então partimos, de volta à estrada a
toda velocidade, deixando os corpos da Resistência para trás como o lixo
sem valor que são. Ninguém diz nada no trajeto de volta, nem meus
Vínculos, nem os outros dois, nem mesmo o tagarela.
Continuo focada no meu prêmio até o motorista estacionar. Saímos
juntos e ele nos Transporta de volta ao lugar seguro. Enfim posso deixar a
mocinha lidar com o resto.
Hora do jantar.
Meu vínculo me deixa num rompante, como um balão esvaziando, e
eu apoio as mãos nos joelhos sentindo ânsia de vômito. Nunca senti nada
igual, o poder de arrebatar a alma do Transportador e… consumi-la revirou
meu estômago.
Sinto mãos fortes afastarem meu cabelo e mantê-lo longe do rosto.
Embora não esteja saindo nada de mim, é fofo da parte de North tentar me
ajudar.
Quando volto a me erguer, ele me puxa para seus braços e desce a
mão do meu cabelo até minha nuca para me segurar perto de si.
— Enjoo da viagem? Ou do vínculo?
— Do vínculo. Acho que estou ingerindo a alma, e essa é a frase
mais horrível da semana. Dá pra… está dentro de mim. Sinto a alma
servindo de lanchinho para o meu vínculo. Que nojo. Sou oficialmente um
mons…
— Não. Nem diga essa palavra perto de mim, Oleander. Você
acabou de eliminar mais uma figura fundamental do arsenal da Resistência,
outro Favorecido que não precisamos mais considerar em nossos
planejamentos graças a você e seu vínculo. Odeio que tenha que passar por
algo assim, mas isso nunca vai fazer de você um monstro.
Quero acreditar, e meu vínculo concorda plenamente, mas sentir os
movimentos nos fundos das minhas entranhas não é tão fácil. Tem uma
alma viva ali dentro.
A essência de alguém, a força vital que fazia dela um ser humano, e
meu vínculo a está saboreando como uma criança faria com uma generosa
fatia de bolo de chocolate.
Não quero mais pensar nisso.
Não quero mais pensar em nada.
North me acompanha de volta para casa e me entrega uma das
garrafas de água que trouxemos, colocando-a na minha mão e esperando até
eu beber tudo. Preciso ameaçá-lo para que me deixe sozinha e volte ao
escritório, principalmente porque não quero que ele fique em cima de mim
caso eu passe mal de verdade.
Quando ele se vai, deito na cama de Gabe e me cubro até a cabeça
com o cobertor, chafurdando no cheiro dele como uma pirralha
apaixonadinha e tentando ignorar a mastigação alegre que acontece nas
minhas entranhas.
De verdade, é bem nojento.
Atlas me encontra ali uma hora depois, resmungando e rolando na
cama como uma idiota. Quando olho para ele, só um pouquinho
envergonhada do meu estado, sorri para mim, apoiado na soleira da porta.
— Como está se sentindo? Estamos prestes a tirar uma sonequinha
épica?
Suspiro e me obrigo a sentar, negando com a cabeça.
— Não, estou tentando não ter um surto por causa desse truquezinho
novo e avançado que meu vínculo inventou. Não dá nem para você fingir
que isso aqui é normal e tranquilo, Atlas. Eu ainda estava consciente aqui
dentro. Vi a cara que você fez.
Ele faz uma careta de leve e então se senta do meu lado, passa um
braço nos meus ombros e deposita um beijo nos meus cabelos.
— Só fiquei chocado. Nunca… ouvi falar disso. Achei que… para
ser sincero, não sei o que achei que ela estava fazendo. O que posso fazer,
Doçura? Como posso melhorar essa situação pra você?
Suspiro e viro o rosto para olhá-lo direito.
— Estou cansada. Não quero enfrentar todo mundo depois que o
North contar o que aconteceu, e eles vão querer conversar a respeito.
Também estou cansada de vivermos que nem sardinha em lata. Estou no
limite e sei que nada disso importa porque estamos mais seguros aqui e
protegendo pessoas vulneráveis, mas estou cansada dessa merda.
Ele faz que sim devagar e afasta o cabelo do meu rosto com
gentileza, olhando tão no fundo dos meus olhos que quase fico tímida com
tamanha intimidade.
— Use sua conexão mental e diz pro North que vamos dar um
passeio com um dos quadriciclos. Fala que está segura e que ficaremos no
campo coberto pelas câmeras o tempo todo. Sei onde estão, podemos ficar
no caminho delas. Acho que todos sabemos que seu vínculo vai cuidar de
você mesmo que alguma coisa aconteça comigo.
Ergo uma sobrancelha, mas, quando ele não fala mais nada, faço o
que disse. North não vê problema e só responde:
ME DIGA QUANDO ESTIVEREM VOLTANDO SÓ PARA EU SABER QUE ESTÁ BEM.
NÃO FAÇA NENHUMA BESTEIRA, VINCULADA.
Atlas me expulsa do quarto, diz que vai organizar uma mochila e me
manda buscar o quadriciclo ATV. Eu o encaro com um olhar curioso, mas ele
me enxota da casa de vez.
Entro na garagem, procurando as chaves de que preciso, e vejo que
Gryphon já está lá com um capacete para mim. Quando reviro os olhos, ele
o coloca na minha cabeça e reclama:
— Até parece que eu ia deixar você sair de fininho sem me dar
tchau. O Bassinger provavelmente vai encontrar uma caverna para se
enfurnar com você por um mês e eu vou ter que ir atrás.
Hmm.
Acho que eu toparia. Deixo ele afivelar a tira antes de responder:
— Não vai ficar bravo por eu fugir?
Ele dá de ombros e ajusta a tira até o capacete ficar
confortavelmente seguro.
— Não. Ouvi tudo que estava se passando na sua cabeça quando
aconteceu. Você precisa de um tempinho para assimilar aquilo e eu vou te
arrumar esse tempo, nem que tenha que usar todos os meus truques para
impedir o North de ir atrás de vocês dois.
Caramba. Agora quero surtar e chorar por tanto carinho.
— Só preciso de uma folga. Amo todos vocês, mas preciso muito
respirar e de, tipo, um dia inteiro lidando com só um de vocês e não com o
bonde todo discutindo sobre racionamento e baboseiras táticas.
Seus olhos ardem quando ele se abaixa e me dá um beijo
arrebatador, em uma demonstração de vigor impressionante que quase me
deixa louca. Não faço ideia do que causou isso, mas, caramba, talvez eu
queira que Gryphon venha junto.
Quando ele finalmente se afasta dos meus lábios, começa a dar
beijinhos no meu ombro e vai subindo pelo meu pescoço até parar logo
abaixo da tira do capacete, onde murmura no meu ouvido:
— Eu também te amo, Vinculada, mas talvez você devesse ter
deixado para dizer isso na minha noite, porque agora estou pensando em te
roubar e deixar o Bassinger se virar sozinho.
Fico corada agora que caiu a ficha do que eu disse, mas retruco:
— Não quero dormir neste alojamento. É o motivo para essa
escapada. Sinto que estou… exposta vinte e quatro horas por dia, e é
insuportável. Estou…é que… preciso de um tempo.
Ele assente e chupa a pele sob minha orelha.
— Vamos dar um jeito. Já estamos fazendo o possível para deixar a
casona pronta o mais rápido possível. Quando estiver Vinculada a todos, vai
se sentir menos… exposta.
Bufo e estouro:
— Bom, essa merda nunca vai acontecer, já que o Nox prefere
cortar o próprio pinto fora do que dormir na mesma cama que eu, imagina
completar o Vínculo. Merda. Esquece que eu disse isso e não se atreva a me
dedurar. Sério mesmo, nada de falar para os Draven.
Ele morde a bochecha por dentro, como se estivesse se segurando
para não falar, mas quando continuo olhando feio por mais um instante,
concorda:
— Seus segredos estão a salvo comigo. Até os que ainda não saíram
da sua cabeça.
Ele dá uma olhada pela porta, conferindo se há alguém nos
espionando, então se curva e sussurra minhas fantasias mais profundas e
sombrias:
— Tipo o quanto você anda sonhando com uma orgia.
Vejo a tensão se esvair do corpo da minha Vínculo à medida que nos
afastamos do Santuário.
Não faço a mínima ideia de onde estamos, apenas que continuamos
nos Estados Unidos. Há uma certa paisagem desértica e arenosa nas
margens da cidade e um aglomerado de cavernas por aqui pelas quais
perambulei por alguns dias, depois que encontramos minha irmã. Tenho
sofrido tanto quanto Oli com a falta de espaço, em especial por não passar
tempo sozinho com ela, já que Ardern dorme a meio metro de distância na
própria cama.
Não que eu esteja forçando algo com ela.
Jamais, sobretudo enquanto continua enfrentando tanta dificuldade
com o vínculo que vive dentro dela, tão diferente do meu. Não sou como os
homens da minha família, e definitivamente não sou um Draven de merda.
No fim das contas, North até que não é tão ruim, mas o irmão dele?
Eu o mataria em um piscar de olhos se Oli pedisse. Andei prestando
atenção nele e conheço seus pontos fracos, e aqueles seus pesadelos? Eles
podem me conter, claro, mas nunca vão me causar qualquer dano.
Eu quebraria o pescoço dele num estalar de dedos.
— Qual o problema? Está respirando como se estivesse tentando
não matar alguém — murmura Oli, num timbre baixo e carinhoso.
Eu me acalmo no instante em que ela abre a boca – sua voz é mais
do que suficiente para me arrancar de qualquer espiral homicida:
— Pode até parecer que estou sendo carinhoso, mas na verdade sou
bem egoísta. Estava precisando disso aqui tanto quanto você.
Ela assente e olha para as montanhas que nos cercam, projetando
sombras pelo vale inteiro com seus cumes.
— Entendo. Os outros cresceram juntos, tiveram uma vida toda para
se acostumar a viver um em cima do outro. Nós dois somos diferentes nesse
aspecto.
Segurando sua mão, trago-a até minha boca e beijo o dorso.
— Vale a pena. Tudo isso. Ter você aqui, em segurança, faz tudo
valer a pena. Por mais que eu deteste admitir, o Draven se superou com este
lugar. Parece até que ele sabia que precisaríamos dele para você, e aí
simplesmente foi lá e fez. Despejou toda aquela fortuna dos Draven para
manter nossa Vínculo segura… é algo que eu consigo defender. E também
não tive que aprender outra língua para te proteger, o que é útil porque eu
quase reprovei em espanhol na escola. Minha pronúncia é uma bosta.
Ela ri de mim, como se eu estivesse brincando, mas é sério.
Passamos pela última das pequenas colinas e chegamos à primeira
grande caverna, na qual acamparemos esta noite e cuja entrada é guardada
por câmeras. É limpa, seca e protegida, tudo que precisamos para dormir
em meio à natureza.
Além de ser totalmente segura o tempo todo.
— Como você encontrou este lugar? Quer apostar quanto tempo
leva para alguém vir encontrar a gente? Porque não tenho certeza de que
vamos conseguir passar a noite toda sem isso acontecer. — Ela ri da própria
piada, o que é fofinho. Seus olhos se iluminam, já animada pelo tempo que
passaremos sozinhos.
Somos dois.
Estaciono o quadriciclo e desligo o motor, relaxando no banco e
deixando o ar fresco da tarde soprar sobre nós.
— Peguei um ATV desses quando trouxemos a Aurelia do campo. Eu
precisava espairecer, e aí encontrei este lugar. Estou planejando te trazer
aqui desde aquele dia, só não imaginei que você fosse precisar tanto.
Ela olha para mim e sorri, tirando o capacete e descendo do veículo
para andar pelas pedras. Mostro as câmeras para mostrar que estamos sendo
vigiados e seguros aqui, e ela acena para Sawyer.
Aposto também que North está assistindo ao vivo do seu escritório,
mas pelo menos teremos total privacidade na caverna.
Pego as sacolas que preparei na traseira e a sigo pela entrada. Há um
pequeno mirante com uma vista perfeita das luzes da cidade e do muro
gigante de concreto, semelhante a uma fortaleza, que North mandou erguer
em cada extremidade do vale, para manter este lugar em segredo de
qualquer um que possa vir a se deparar com ele.
Observo o deslumbre se instalar no rosto de Oli, e é bonito demais
de se ver. Os olhos dela se iluminam e ela meio que anda de costas para não
ter que desviá-los. O sol já começou a desaparecer no crepúsculo, baixo
sobre as árvores, e a rajada brilhante do céu laranja aquece a pele dela com
um fulgor maravilhoso.
Tiro uma foto dela.
Depois, coloco de wallpaper no meu celular, como um perfeito
otário, porque ela parece a porra de uma modelo; é estonteante, e é minha.
Ela me dá uma olhada e pisca como se tivesse esquecido o que
viemos fazer.
— Por acaso trouxe o jantar? Esqueci de comer durante a esquisitice
do meu vínculo, mas agora ela foi dormir e estou morrendo de fome. Eu
devia ter pensado nisso.
Sorrio para ela e vou pegar as sacolas, colocando-as em seguida um
pouco mais dentro da caverna, onde tenho certeza de que estarão fora do
alcance das câmeras. Uso-as como marcação, um jeito de saber se arrumei
nossa cama perto demais da entrada e dei a Sawyer um showzinho gratuito
de minha Vínculo dormindo, ou de pelo menos nós dois dando uns
amassos, o que seria motivo para matar o cara. Ele nunca deveria conhecer
o jeito como as bochechas dela ficam coradas ou o movimento que seu
peito faz quando ela se esforça para respirar porque prefere o gosto dos
meus lábios a oxigênio.
Pego os sanduíches que preparei enquanto empacotava tudo e levo
um para ela. Vejo seu rosto se iluminar outra vez quando o ofereço. Ela é
tão meiga por baixo da insolência que usa com todos. Eu me sinto
convencido por ter a chance de ver com frequência esse lado dela; é a
vantagem de ter sido seu porto seguro enquanto os outros continuavam
sendo uns imbecis.
Ela ri ao ver o a quantidade de recheio nos sanduíches – que é única
forma correta de prepará-los – e abre o seu na mesma hora, comportando-se
como se fosse grande coisa ao dar uma mordida.
— Meu vínculo está no paraíso hoje. Dois dos meus Vínculos
fazendo comida para mim no mesmo dia? Praticamente um sonho.
Ah.
O velho truque do qual North se aproveitou na época em que fingia
odiá-la. Ainda não estou convencido de que quaisquer daqueles sentimentos
dele eram verdadeiros, porque a forma como ele a trata não chegou a mudar
de verdade, só seu jeito de lidar com ela e como é recebido.
Agora que estão Vinculados, ela obedece bem mais facilmente às
ordens dele.
— No que está pensando? Ficou carrancudo de novo — ela fala de
boca cheia.
— Em você. Estou pensando em como melhorar as coisas para você
aqui.
Ela vai até o pequeno peitoril e se senta, pendurando as pernas na
beirada e chutando o ar. Seria uma queda baixa, de menos de um metro,
mas imediatamente planto minha bunda ao seu lado para evitar que isso
aconteça. Provavelmente nem se arranharia, mas não vou arriscar.
Engolindo a comida, ela diz:
— Está tudo bem. As coisas estão ótimas, na verdade. Não estou
mais com medo. Estou… bem. Só me sentindo culpada, mas fico repetindo
pra mim mesma que está todo mundo seguro aqui, graças ao North ter
adiantado a mudança. Acho que ele não teria feito isso se eu não estivesse
em perigo, então aquelas crianças correndo pela escola nova estão a salvo
graças à necessidade dele de me proteger.
Fecho a cara.
— Sente culpa por quê?
Ela geme e enfia o resto da metade do sanduíche na boca, como se
quisesse evitar a pergunta. Aguardo, paciente o bastante para acabar com o
meu enquanto ela mastiga no ritmo de um idoso.
— Não sou burra. Sei que o Davies tem uma lista com os nomes dos
meus Vínculos em algum lugar. O seu? Talvez não, por causa da sua
família, mas dos outros? Um Metamorfo que se transforma em qualquer
animal existente? Um Neuro como o Gryphon, com um alcance melhor que
o dele? Os Draven, que só precisam dizer o próprio nome para despertar o
terror da população? Sim, ele sabe a respeito de todos, mas nunca perseguiu
nenhum deles. Não do jeito que vai agora que sabe que estão no meu Grupo
de Vínculos. Andrew foi só o primeiro teste, o mais fácil. Eles virão com
tudo, e rápido, e fui eu que os trouxe até vocês. Não sou útil de verdade
aqui. Todos os trabalhos em que sou boa, o North se recusa a me deixar
fazer porque é… superprotetor. Sou um fardo com um vínculo que come
almas.
Assinto devagar, dando a última mordida do meu sanduíche e
amassando as embalagens de papel para levarmos de volta à reciclagem.
— Nesse caso, você também está irritada comigo? Porque eu
também fiquei a salvo aqui. Minha mãe não ia conseguir me manter em
segredo para sempre. Estou certo de que agora que a Aurelia sumiu, meu
pai e o Peter já vão ter se tocado de que estou aqui. Teriam me encontrado e
me matado se eu não estivesse. Não sei absolutamente nada sobre
construção. Sou um risco de segurança, então não posso entrar na Equipe
Tática; só posso ir nas missões como seu protetor. Fora meu conhecimento
sobre a Resistência, não tenho nada a oferecer ao Santuário, e até esse
conhecimento está começando a acabar. Não tenho muito mais para contar a
North e Gryphon. Já repassei tudo o que importava.
Ela franze o cenho e bate o ombro no meu.
— Tem um milhão de coisas que dá para você fazer aqui. O melhor
que sei fazer é lavar louça no refeitório, e tudo bem. É um trabalho que
precisa ser feito, mas ao mesmo tempo sinto que estou decepcionando
todos. O Gabe está literalmente construindo casas. Estava colocando
azulejos num banheiro enquanto a gente estava fora. Logo teremos espaço
pra mais gente.
Concordo com a cabeça. Também estou impressionado com o que
ele tem feito. Vou acabar indo ajudar nos próximos dias, mas meu
conhecimento sobre construção é zero. Não sou muito bom em ouvir
instruções de cuzões rabugentos que me acham um idiota, então minhas
expectativas não são grande coisa.
Quando digo isso, Oli ri e me entrega a metade restante do
sanduíche.
— O Elliot é bem legal. Ele me deixou usar um pregador
pneumático, e esse com certeza foi o destaque da minha carreira de pedreira
até agora. Será que existe uma carreira em que posso fazer só isso? Só
pregar coisas?
É brega demais, mas não resisto:
— Sim, prega o seu corpinho no meu. Esse é o único trabalho que
precisa fazer aqui, Doçura.
Ela ri de roncar pelo nariz e revira os olhos, o que faz covinhas
minúsculas em suas bochechas se intensificarem lindamente, e, porra, eu
me sinto um herói por arrancar esse tipo de sorriso dela.
— Está jogando direitinho esse jogo. Se tiver uma cama confortável
na sua mochila, talvez eu fique tentada a dar uns amassos.
Os amassos que se danem. Quero ela pelada e implorando embaixo
de mim. Depois quero ela pelada e implorando em cima de mim. Quero
todas as variações possíveis da minha Vínculo transando comigo agora
mesmo.
Os olhos dela me fulminam, e tenho certeza de que não estou
conseguindo nem de longe esconder o que sinto, mas Oli é minha e é
impossível não a desejar. Cada parte dela foi feita para mim de um jeito que
nunca vivenciei.
Ninguém da minha família se comporta assim.
Meu pai mal tolera a presença da minha mãe. Thomas é igual. Três
dos quatro Vinculados de Aurelia a tratam como fonte de poder e um par de
peitos. É por isso que sempre os odiei tanto, mesmo antes de descobrir
sozinho sobre a Resistência e perceber que minha família é a vilã de todos
os filmes de super-heróis existentes.
Nenhum deles age com a devoção que sinto quando olho para minha
Vínculo.
Seguro sua mão, ajudo-a a descer do peitoril e voltamos para a
caverna. Acomodo-a em uma das menores rochas com uma garrafa de água
e começo a desempacotar os sacos de dormir e travesseiros. Também trouxe
algumas luminárias de energia solar, e coloco duas para iluminarem o
espaço. Faço uma varredura breve do lugar só para garantir que nenhum
animal ou criatura rastejante tenha montado residência desde a última vez
que estive aqui; não sei como Oli reagiria com um amiguinho peludo nos
espiando.
Ela me observa com um sorriso singelo no rosto, olhando para trás
para ver a vista e as câmeras a cada poucos minutos.
— Tem certeza de que não vamos acabar dando um show gratuito
para o Sawyer? Ele é interessado demais pro meu gosto pelos pintos dos
meus Vínculos, e não quero que veja nada.
Sorrio para ela por cima do ombro e faço que sim.
— Tenho certeza. Fiz com que me mostrasse todas as câmeras para
mapear este canto. Ele ainda fala assim da gente? Vou matar esse cara pra
você.
Ela bufa e desce da pedra.
— Não. Faz meses que não, mas ninguém esquece esse tipo de
coisa. E também não podemos matar um dos amigos em quem mais
confiamos só porque ele é voyeur.
Posso, sim.
E mataria, mas deixo para lá.
— Como aprendeu tanto sobre acampar? Achei que os Bassinger
fossem o tipo de podres de rico que frequentam resorts de esqui e os hotéis
flutuantes nas Bahamas.
— Eles são, mas Jericho, o único Vinculado decente da Aurelia,
cresceu na fazenda. Ele vivia me levando para acampar depois que eles
Vincularam, mais como uma desculpa para ficar longe da minha família.
Deve ser o único que de fato está sentindo falta da minha irmã. Não estou
exatamente com pena dela. Ela estava no campo e não há muito o que
poderia fazer por lá, mas só obedecia a tudo que nossos pais mandavam. E
depois, tudo que os Vínculos dela mandavam. Acho que… conhecer você,
saber de tudo que fez, me motivou a julgá-la mais. Você nunca permitiria
que um de nós te convencesse a entrar para a Resistência. Você… preferiria
partir o próprio coração para fazer o que é certo. Sei disso. Todos nós
sabemos.
Ela abaixa a cabeça, tentando não chorar, e eu me agacho para
arrumar os travesseiros e lhe dar um tempinho. Normalmente, eu já estaria
grudado em Oli, abraçando-a apertado e tentando consertar tudo por ela,
mas viemos aqui porque ela está se sentindo sob a porra de um
microscópio, então vou ficar de boa por um dia.
Um dia eu aguento.
— Que quantidade absurda de travesseiros — ela diz, afastando-se
da rocha e vindo até mim.
Concordo com a cabeça.
— Não cabia meu colchão no quadriciclo, eu medi.
Ela dá uma risada debochada e procura pela câmera, então a puxo
mais um pouco para frente para garantir que fique fora de vista. Tento não
criar muita expectativa, mas, quando ela morde o lábio inferior, eu quase a
ergo no colo para procurar uma parede para a gente se encostar e transar.
Calma, Bassinger. Não vai estragar tudo agora.
Só que não preciso continuar com esse papinho interno, porque ela
puxa meu braço até eu me abaixar e encontrar seus lábios, e coloca minhas
mãos em sua bunda para que eu a aperte mais contra meu peito. Ela parece
tão pequena perto de mim, tão frágil. Há anos eu não precisava me
preocupar em perder o controle do meu dom e esmagar alguém, mas
quando sinto seu vínculo vir à tona e me acariciar, chamando pelo meu,
quase surto e perco o juízo.
Ela é perfeita.
Mal interrompo o beijo para falar, e o choramingo que ela deixa
escapar se torna meu mais novo vício:
— Diz que eu posso tirar sua roupa agora, Doçura. Diz que quer isso
tanto quanto eu, porque senão vou ter que sair para dar uma volta.
Ela ri com os lábios nos meus e assente.
— Eu te quero. Quero fazer isso. Quero completar nosso Vínculo e
ficar com você para sempre. Mesmo que seja egoísmo…
Chega dessa besteira. Eu a interrompo com outro beijo, e minhas
mãos se movimentam para puxar sua camiseta pela cabeça. Ela se atrapalha
com as minhas roupas e ficamos ali, ambos atrapalhados. Não somos nada
habilidosos ou elegantes, apenas dois idiotas que precisam mais um do
outro do que de ar.
Já a vi seminua. Eu a tinha segurado nos braços com nossos corpos
colados enquanto ela extraía forças de mim para se recuperar, mas o
importante naquele momento era deixá-la bem de novo. Precisei ameaçar
meu pau para não endurecer pela minha Vínculo desacordada e quase sem
vida.
Porra, vê-la nua com seu consentimento e contar com sua
participação é cerca de um bilhão de vezes melhor, em especial quando ela
sorri e dá um passo para trás para tirar o jeans e a calcinha de uma vez,
chutando-os para longe.
Ela faz uma careta quando a roupa vai parar perto demais da entrada
da caverna, mas aliso as madeixas prateadas de seu cabelo em uma tentativa
de trazer sua atenção de volta para nós, de esquecer as câmeras, a discrição
e a vigilância de Sawyer, porque nada disso importa.
Eu com toda certeza não vou deixar aquele babaca encher o saco
dela por isso.
Deslizo a mão pelo seu peito em reverência, entre os montes de seus
seios, e a vejo se arrepiar, os mamilos enrijecendo como um convite. Na
verdade, tudo nela é convidativo, cada centímetro dela está disposto,
presente e desejando.
Desejando a mim e as coisas que, porra, estou mais do que pronto
para dar.
Termino de tirar as calças e o cinto e coloco as peças mais perto que
as dela, por precaução, só para o caso de algum imbecil de merda aparecer
aqui achando que pode chegar perto da minha Vínculo.
Ela morde o lábio de novo e eu perco o controle; deslizo o polegar
em sua boca e a faço parar. Se alguém vai morder essa carne rosa e
suculenta, serei eu.
Abaixo a mão para apertar a base do meu pau, duro como pedra, e
controlar a porra que está deixando minhas bolas pesadas só de olhar para
ela.
Oli acompanha o movimento com os olhos e sorri.
— Bom, já sei como você gosta.
Sorrio de volta e dou um gemido quando ela afasta minha mão com
a sua e envolve a base com seus dedos. Ela aperta e torce do jeitinho que eu
gosto. A mão dela é menor e mais macia que a minha, e faz todos os
movimentos certos. Ela viu como eu gosto, mas sentir meu Vínculo assim?
Vou ter sorte se não passar vergonha aqui.
— Vira de costas, Doçura — digo, segurando seu pulso e a
colocando onde quero que esteja, apoiada com as mãos espalmadas na
parede de pedra e com as costas formando um arco perfeito.
Ver essas pernas macias e bunda arrebitada arranca um gemido do
meu peito que me faz cair de joelhos por trás dela para finalmente sentir seu
gosto. Ela emite um som de surpresa e começa a se afastar da minha boca,
mas seguro seus quadris com firmeza para mantê-la ali enquanto me
banqueteio até minha língua ficar coberta pelo seu tesão.
Posso até me odiar por ter sido um galinha enquanto ela estava presa
nos campos, mas saber como fazer suas pernas tremerem desse jeito com
certeza é uma vantagem dessa minha fase.
Enquanto a chupo por trás, seus braços falham até o rosto encostar
na superfície gasta da parede. Ela vai empurrando os quadris contra minha
língua, cavalgando meu rosto. Da próxima vez, vou deitar e mandá-la sentar
na minha cara para poder assistir as expressões do seu rosto e brincar com
seus peitos enquanto ela se esfrega na minha língua do jeitinho que quiser.
Quando dou um tapa na bunda dela, ainda a mantendo bem aberta
com a outra mão, Oli geme e balança para trás, implorando por mais com o
corpo. Ela não precisa implorar… vou dar qualquer porra que ela queira.
Começo a esfregar seu clitóris com a língua e suas coxas se
contraem em volta dos meus ombros como se estivessem tentando me trazer
para mais perto. Ela começa a suplicar com palavras que são mais gemidos
do que qualquer coisa coerente.
— Atlas, porra, não dá… preciso gozar com você. Preciso do
Vínculo com você, por favor, porra, favor…
Agora posso ir direto para o inferno, pois sou um homem realizado.
Suas palavras ecoam nos meus ouvidos enquanto me levanto, mantendo as
mãos nos quadris dela antes de levá-la ao saco de dormir com as costas
coladas no meu peito, e me curvo para beijá-la de novo. Ela não se importa
com sua lubrificação espalhada pelos meus lábios e queixo. Na verdade,
acho que está é gostando. Quando tenta se virar de frente, eu a impeço com
a mão em seu peito e coloco nós dois ajoelhados entre os travesseiros e
cobertas.
Eu a seguro ali, com aquela mão em seu peito, enquanto uso a outra
para encaixar meu pau em sua boceta encharcada, entrando com uma
facilidade do caralho por ela já estar tremendo de tanto que precisa
completar o Vínculo. De como precisa chegar ao ápice comigo, gozar no
meu pau e nos atar juntos até o fim dos tempos.
Após um último beijo, empurro-a de quatro e meus quadris aceleram
até eu meter com força, o que faz nossos barulhos molhados ecoarem pela
caverna. Porra, que bom que as câmeras não têm microfone, porque não
fazemos o menor esforço de manter silêncio. Seus gemidos são música para
os meus ouvidos.
Deslizo a mão por suas costas, deliciando-me com o jeito como Oli
se retesa contra a minha palma, e, quando chego em sua cabeça, agarro um
punhado do cabelo e puxo para trás, fazendo-a se arquear na direção dos
meus lábios. Então a beijo, metendo a língua em sua boca do mesmo jeito
que estou metendo o pau na sua boceta.
Os sons que ela faz são os melhores; parece que está surpresa por
aguentar tudo que lhe dou, mas também com medo de que acabe antes dela
gozar.
O vínculo dela está pronto para explodir.
Posso senti-lo crescendo, inchando dentro dela, apressado para sair e
se apoderar de mim no instante em que gozarmos juntos e completarmos
nosso Vínculo. O meu próprio está se forçando contra minha pele, tentando
alcançar o dela, pronto para se entrelaçar para sempre. Quase fico furioso
por tudo acontecer tão rápido, pelo fato de os dois estarem tão desesperados
para se encontrarem que estão nos levando aos nossos limites.
Não quero que acabe.
Os braços de Oli fraquejam um pouco; ela abaixa, apoia-se nos
antebraços e morde o travesseiro quando deixo uma marca rosa na sua
bunda com outro tapa. A pele está quente quando esfrego a mão por cima
de onde bati, mas o ritmo com que ela aperta meu pau com a boceta me diz
tudo que preciso saber: minha Vínculo gosta, sim, de sentir um pouquinho
de dor junto com o prazer.
E é isso que me faz perder o controle. Passo a mão pelo quadril dela
para roçar seu clitóris e fazer com que ela perca as estribeiras também,
disparando o melhor orgasmo da minha vida. Não só porque é com ela, com
minha Doçura, mas porque a euforia do meu vínculo finalmente estar se
juntando à sua outra metade me deixa nas nuvens.
Quase desmaio.
Uma vergonha, mas Oli despenca nos cobertores e meu corpo a
acompanha como se ela fosse o Sol. Ela estremece e sua respiração sai
entrecortada; sua pele brilha de um jeito sobrenatural enquanto meu vínculo
a banha e lhe dá tudo. Porra, ela se contorce bem ali no meu pau e eu quase
gozo de novo.
Eu nem sabia que isso era possível.
Espero até conseguir enxergar de novo e então deslizo para fora,
recolho-a em meus braços e a aninho em meu peito, beijando seus lábios
intensamente, embora ela mal esteja consciente. A névoa se assenta em seus
olhos e, caramba, é incrível. Por mais que eu tenha ficado puto de vê-la
após completar o Vínculo com Gryphon… quando é o meu Vínculo se
instalando nela, é maravilhoso. Quando é meu pescoço que ela está
abraçando tão apertado para que eu nunca a deixe se afastar… Se eu
morresse agora, iria como o Vinculado mais feliz da Terra.
Há um instante logo após nossos vínculos voltarem a relaxar e se
afastarem de nós em que vejo um leve pânico despertando nela, o terror do
que pode acontecer se ficar mais forte, e preciso engolir meus próprios
sentimentos sobre seu vínculo. Tenho que reprimir a frustração por tê-la
assustado tanto com tudo que ele já fez, porque foi tudo para mantê-la viva
e tão a salvo quanto podia.
É a minha família que eu tenho que odiar.
Ela pisca depressa várias vezes, tentando evitar que as lágrimas
caiam, e esfrega as bochechas quando caem mesmo assim:
— Você promete que não vai se arrepender, né? Mesmo se…
mesmo agora que meu vínculo vai ficar mais forte e começar a fazer
alguma coisa nojenta nova?
Eu me abaixo para olhá-la nos olhos e seguro gentilmente sua nuca
com uma mão para garantir que ela preste atenção apenas em mim.
— Oli, preciso que escute bem o que vou dizer, porque nunca levei
nada tão a sério assim na minha vida. Você é minha Vínculo. Se ficar mais
forte e reduzir o mundo inteiro a chamas, vou estar bem do seu lado
assistindo tudo queimar. Não sou o mocinho, Oli. Não sou um dos Draven
ou um dos Shore. Para mim é você e eu, e nada mais importa.
Ela abaixa a cabeça no meu peito e sinto suas lágrimas. Foi um dia
cansativo, mas mesmo assim fico arrasado por ela estar se sentindo assim.
— Não chora, Doçura. Não chora, porque assim eu fico violento, e
essa cidade toda vai virar entulho à nossa volta se eu perder a cabeça.
Meus lábios perseguem o fluxo quente de lágrimas por suas
bochechas e, caramba, eu faria qualquer coisa para levar esse medo e
sofrimento para bem longe dela. Qualquer coisa para impedir que este
mundo lhe cause mais dor do que já causou. Cada vez que fecho meus
olhos, vejo-a deitada naquela mesa com o desgraçado do Silas Davies
pairando sobre ela com uma faca, e não aguento mais.
— Oli, quero você mais do que já quis qualquer outra coisa na
vida… com exceção do quanto te quero em segurança. Quero que fique tão
forte quanto podemos te deixar, mesmo que assim seu vínculo comece a
devorar cada alma com que cruzar. Será que isso faz de mim tão ruim
quanto meu pai e o resto da Resistência? Talvez, mas é um preço que eu
pago feliz da vida. O caminho que vai me levar para o inferno é
pavimentado com todas as coisas que eu faria por você, e essa lista não tem
fim.

Acordo logo antes do nascer do sol para mijar. Odeio deixar o


conforto das cobertas com minha Vinculada, mas quando volto à entrada da
caverna, com o céu da alvorada se iluminando ao nosso redor, vejo Oli ali,
deitada de barriga para baixo em toda sua perfeição.
Há uma coberta sobre sua cintura e bunda, como se ela tivesse
tentado ser recatada enquanto caíamos no sono juntos, mas sem sucesso.
Seu cabelo está espalhado e suas bochechas, um pouco coradas pelo calor
da caverna. Foi uma noite perfeita, e não quero que acabe tão cedo.
Quero me lembrar para sempre deste momento.
Eu tiraria uma foto dela, mas os Draven e Benson me monitoram
tanto que iam acabar vendo, e esta cena não é para eles. É só para mim e
minha linda, gloriosa e perigosa Vinculada, e eu não dividiria com ninguém
mesmo que minha vida dependesse disso.
Pego meu celular no bolso da calça jeans, que deixei esquecida no
chão depois que me despi ontem à noite. Há uma notificação de mensagem
de voz de um número desconhecido piscando, e sinto um frio de pavor na
barriga.
Não tenho qualquer lealdade ao meu pai depois de tudo que aquele
homem fez. Também não tenho pelo outro Vinculado da minha mãe, mas
por ela… minha mãe tentou. Pelos motivos errados, mas ela passou por
tanta lavagem cerebral quanto minha irmã.
Aurelia.
Tampouco quero que seja um dos Vinculados dela na linha. Faz
tanto tempo que lido com meus próprios demônios que é quase impossível
não me sentir um lixo com cada detalhe dessa história.
E um pouco de culpa também, porque sei que estou do lado certo
agora, e sempre vou escolher minha Vinculada. Sempre, aconteça o que
acontecer.
Sobre meu ombro, dou uma olhada breve nela de novo e aproveito a
imagem uma última vez, sem que a presepada que me aguarda no celular
turve a ocasião. Ela suspira dormindo, como se sentisse meus olhos em sua
pele, vira-se de costas e o cobertor cai de seu corpo, deixando-a
completamente exposta para mim.
Cacete, ela é magnífica.
Sei que é natural um Vinculado se sentir assim, mas Oleander
Fallows é a mulher mais linda que já vi. Cada centímetro dela foi criado
para me seduzir, e nunca houve uma realidade em que eu escolheria a
ideologia suicida da minha família no lugar dela.
Volto ao celular e, vestido apenas com uma samba-canção contra o
abafado ar noturno, saio da caverna.
— Filho, você precisa parar e pensar com cuidado no que está
fazendo. Agora eu entendo. Entendo o que te deixou com tanta raiva, mas
precisamos da garota. Você está pensando demais com seu vínculo. Pare um
pouco e olhe a situação como um todo.
Porra de conversa pra boi dormir.
É inacreditável ele ter pensado que conseguiria me convencer a
entregar minha própria Vinculada com esse papo. Será que seria tão fácil
assim fazê-lo sacrificar minha mãe? Sinto os dedos gélidos do pavor se
arrastarem pela minha espinha. Thomas jamais faria isso. Inspiro fundo,
confiante de saber que mesmo que meu pai tenha se afastado tanto assim do
que é certo na vida, pelo menos o outro Vinculado da minha mãe, não.
Ele é leal à Resistência, mas não mais do que ela.
Ouço o sinal de alguém tentando falar comigo enquanto escuto o
recado de meu pai mais uma vez, torcendo para que haja algum indício do
que ele tem planejado, mas deixo que vá para o correio de voz também.
Assim que escuto a gravação mais recente, gostaria de ter atendido
essa merda.
A voz da minha mãe soa firme:
— Me liga. Seu pai está indo atrás de você, e não está pensando
direito. O Peter está junto. Nenhum dos dois está raciocinando direito,
Atlas. Me ligue de volta e… mantenha a garota longe deles. Se a pegarem,
usarão vocês dois.
Peter.
O Vinculado cuzão da minha irmã que vi bater nela uma vez.
Quando o confrontei, ele riu na minha cara e disse que ela era indestrutível
e aguentava uns tapinhas.
Quebrei o crânio dele em quatro lugares.
Foi preciso que três Curandeiros dedicassem horas para impedir que
seu cérebro sofresse sequelas permanentes. Aurelia passou um mês sem
falar comigo. Disse que eu entenderia quando encontrasse meu Vínculo,
mas a mera ideia de qualquer pessoa erguer a mão para Oli me dá repulsa.
Eles não têm como nos encontrar e não há nenhuma chance de
conseguirem passar pelos Escudos, mas clico no número de North mesmo
assim. Minha lealdade continua firme à belezinha deitada logo ali no chão
da caverna comigo.
Ao longe, enquanto o sol se ergue demoradamente sobre a muralha,
vejo os imensos portões se abrirem no exato instante em que Draven atende.
Todas as medidas de segurança do mundo são inúteis quando há um
infiltrado.
— Eles estão aqui, e alguém os deixou entrar.
Acordo com a voz séria de Atlas, mas meu cérebro leva um
tempinho para processar exatamente o que ele está dizendo.
— Oli, acorda e se veste. Os portões estão abertos, o Escudo caiu, e
precisamos nos mexer agora mesmo.
Dou um pulo para fora da cama e ele me entrega minhas roupas, já
de calça jeans, mas com o botão aberto, e a camiseta debaixo do braço
enquanto se recompõe.
Infelizmente, não é só a piada mais sem graça que Atlas já contou
na vida, pois a voz de North aparece exigente na minha cabeça:
FIQUE ONDE ESTÁ, VINCULADA. FIQUE AÍ ATÉ CUIDARMOS DISSO. CONTINUE A
SALVO COM O BASSINGER.

Eu me obrigo a levantar, cambaleando nas cobertas e titubeando


minhas palavras:
— Como? Alguém deve ter deixado eles entrarem. Você ligou…
Ele me interrompe, enfiando a camisa pela cabeça antes de começar
a me ajudar com as minhas roupas:
— Sawyer e eu ligamos para o North ao mesmo tempo. As Equipes
Táticas já estão se mobilizando. Só precisamos nos vestir e ficar prontos pro
caso de termos que sair. Você ouviu o North, vamos ficar aqui.
Demoro um segundo para me tocar de que ele ouviu North falando
comigo, que agora também faz parte da conexão mental que compartilho
com os outros dois, o que é ao mesmo tempo intimidador e um alívio.
Gosto dessas conexões, mas ele é o mais suscetível a brigar com os
outros dois pelas coisas que me dizem através deste meio silencioso de
comunicação.
No momento em que termino de me vestir, acompanho Atlas até a
boca da caverna para olhar a cidade de cima. Se eu tivesse alguma dúvida
do que Atlas disse antes, com certeza não poderia negar o que está
acontecendo bem diante dos meus olhos. Assistimos horrorizados a
Resistência entrar pelos portões abertos, dezenas de caminhões e mais de
uma centena de soldados Favorecidos armados e letais, que vieram matar,
sequestrar e mutilar.
Nosso Escudo nos traiu… ou foi removido por alguém. De qualquer
forma, centenas de Favorecidos inimigos estão aqui e, com os moradores
adormecidos de manhã na suposta segurança de seus novos lares, a cidade
inteira é um alvo fácil.
Há crianças na cidade.
Muitas das famílias de Nível Inferior que vieram conosco são
Grupos Vinculados com crianças ainda abaladas pelos últimos ataques,
nenhuma delas pronta para isso.
— A gente não pode só… ficar esperando sentado. Eu não consigo.
Atlas se vira para mim, mas meus olhos já se transformaram nos
vácuos escuros. Meu vínculo ainda não tomou o controle total, e só vai
tomar se eu sentir dor, mas não vou fugir dessa briga, por mais que meus
Vínculos queiram que eu faça isso.
BOA GAROTA, meu vínculo ronrona para mim, e sinto as reações
intensas de todos os meus três Vinculados.
— Oli, se voltarmos para a cidade você vai ser uma distração para
os seus Vínculos e Vinculados. Precisamos que eles mantenham o foco em
acabar com a Resistência…
— Não. Eles podem assistir enquanto eu faço isso — diz meu
vínculo, e eu sacudo a cabeça para clarear as ideias.
Meus olhos voltam ao normal para que eu fale por mim mesma:
— Desculpa, não vou ficar parada enquanto as pessoas morrem. Se
tem uma coisa que já devia saber a meu respeito, Atlas, é que não sou de
ficar esperando alguém vir me salvar.
Ele não gosta nadinha da minha resposta, mas vai até as sacolas que
trouxe e pega as mesmas armas que recebeu quando fomos buscar
mantimentos. Não tenho interesse nenhum por armas, são inúteis para mim,
então quando ele tenta me entregar uma, faço uma carranca e ergo a mão,
como se fosse possível ver o dom sugador de almas se contorcendo por
baixo da minha pele frente à possibilidade de participar de uma carnificina.
Ele assente sem dizer nada, volta a montar no quadriciclo e espera eu
afivelar o cinto antes de partir.
— Consegue jogar aquela sua rede? Só para termos certeza de que
ainda não começaram a vir atrás da gente? Meu pai ligou hoje de manhã,
tem uma boa chance de que tenha vindo me procurar.
Que merda. Será que agora é a hora de contar que posso até ter
concordado em deixar a irmã dele viva… mas o pai? Vai estar mortinho no
segundo que eu chegar perto o suficiente para usar meu dom, e olha que
ultimamente tem sido meio longe.
Quando digo isso, ele revira os olhos e retruca:
— Bom, isso é óbvio, Vinculada. Fique à vontade com qualquer um
que tiver vindo aqui hoje, até minha mãe, se ela estiver participando para
não estragar seu disfarce.
Com essa merda resolvida, colocamos a mão na massa; ele,
dirigindo como um maníaco, e eu, procurando. North sente no instante em
que conjuro, graças às suas criaturas e sombras, que já estão espalhadas
pela cidade eliminando os soldados da Resistência como os bebezinhos
obedientes que são.
DIGA AO BASSINGER QUE A MORTE DELE VAI SER LENTA E DOLOROSA.
Fecho bem os lábios para a risadinha não sair.
ELE ESTÁ OUVINDO. ALIÁS, ELE SÓ ESTÁ FAZENDO O QUE MEU VÍNCULO PEDIU,
NÃO DÁ PARA CULPÁ-LO. O VÍNCULO É PERSUASIVO.
Ele não acha nem um pouco engraçado. Quando chegamos a cerca
de um quilômetro do perímetro da cidade, gesticulo para Atlas estacionar.
Que bom que passei todos esses meses treinando com Gryphon, porque
consigo correr por oito minutos sem cair morta. Vamos entrar na cidade e
dar um jeito em todos que cruzarem nosso caminho.
FIQUE PERTO DE MIM, OLI. NÓS VAMOS LUTAR, MAS JUNTOS.
Eu me viro de frente para ele e ofereço meu dedo mindinho para
jurar, o que é apenas uma besteira para amenizar a tensão. Pela primeira
vez, fico calma neste tipo de situação. Não sou um fardo, nem a causadora
do sofrimento.
Eu vou salvar as pessoas.
Ele bufa, mas entrelaça o mindinho com o meu mesmo assim,
usando-o para me puxar e me dar um último beijo possessivo. Meu corpo
tem um breve flashback do orgasmo estrondoso da noite passada.
Eu estava contando com pelo menos mais dois agora de manhã, e
essa decepção é motivo suficiente para matar o exército da Resistência
inteiro.
Atlas acompanha meu ritmo, e corremos por três minutos antes de
nos depararmos com o primeiro soldado. A rede do meu dom ainda está
espalhada, mas mesmo que não estivesse, meu vínculo percebe que o cara
de preto com sangue nos dois braços é inimigo.
O sujeito começa a erguer a mão, mas, antes que meu vínculo possa
cuidar dele, um amontoado negro do tamanho de um urso sai de repente de
um arbusto e o devora, abrindo a boca do tamanho de um carro popular e o
engolindo inteiro de uma vez.
Atlas passa um braço pela minha cintura e me esconde atrás de seu
corpo, tirando meus pés do chão, mas estou ocupada demais tentando
controlar uma risada histérica para me preocupar de verdade.
A massa preta se vira para nós, sua forma tremeluzindo e se
dobrando em si mesma até que August aparece parado ali, abanando o rabo
e com um líquido verde misterioso pingando das presas.
— Meu bebê! — sussurro enquanto me abaixo para cumprimentá-
lo. Brutus sai de trás da minha orelha para farejar o irmão, e dou carinho e
coçadinhas nos dois. Atlas examina a área como se achasse que vai
encontrar restos do cara.
Já sei que não há nada a ser encontrado. Pelo menos, não ali.
No entanto, precisamos dar um jeito nos quatro soldados vindo em
nossa direção.
Volto a me levantar e me aproximo de Atlas, falando baixinho:
— Tem mais vindo. Vou lidar com eles de uma vez e com quem
mais vier atrás da gente.
Ele se endireita e se coloca perto de mim, só um pouco na minha
frente, antes de fazer que sim com a cabeça.
— Faça isso. Não deixa sobrar nenhum, mas avisa quando começar
a se esgotar.
Engulo em seco com dificuldade, abalada com essas palavras, mas
não pelos motivos que ele suspeitaria.
Eu não fico esgotada. Meu dom nunca se esgota.
As almas que arrebato só me dão mais força.
Engulo em seco de novo e alcanço os homens com a mente para
matá-los, tirando suas almas sem pensar duas vezes, e, graças a Deus, meu
vínculo nem tenta comê-los. Assim que seus corpos caem no chão, seguro a
mão de Atlas e o faço correr.
Agora estamos perto o bastante para ouvir os gritos e o caos vindo
da cidade.
— Fica do meu lado, Oli, por favor — pede Atlas com a exigência
discreta que estou começando a perceber um pouco mais claramente de
todos eles.
Meus Vínculos já entenderam que faço as coisas do meu jeito, mas
são todos homens alfa que não querem ter que aceitar com facilidade esse
tipo de atitude.
Com tantos dons voando pelo ar, é difícil diferenciar com clareza
quem é da Resistência e quem é da Equipe Tática, em especial porque a
maioria usa roupas comuns, já que a emboscada ocorreu no raiar do dia. Eu
me agacho atrás de um carro tombado para me esquivar de uma bola
gigante de eletricidade que jogam na minha direção, e Atlas vem junto me
dar cobertura, saindo da frente no último segundo e evitando ser queimado
pelo jorro de fogo que um Flama dispara em retaliação. Nós nos separamos,
mas apenas por um metro de distância.
Não é tão ruim.
Quando outro carro passa voando, indo de encontro a um grupo de
Favorecidos aglomerado atrás de uma parede destruída, Atlas salta e pega o
veículo no ar, com a mesma facilidade com que pegaria uma bola de tênis.
É incrível.
ESTOU CUIDANDO DELES. SE CONCENTRA NA SUA REDE. ACABA COM ELES,
DOÇURA. QUANTO MAIS RÁPIDO FIZER ISSO, MAIS SEGUROS TODOS FICAREMOS.
Fecho bem os olhos e tento me concentrar, pedindo para meu
vínculo acordar e me dar uma ajudinha. Mesmo com os barulhos
ensurdecedores da luta, ouço o gatilho de um revólver sendo puxado a
poucos metros de mim.
Quando me viro, sangue quente borrifa no meu rosto no instante em
que a bala atinge a mulher entre os olhos; é morte instantânea. É meio
traumatizante, só um tantinho, mas só porque se eu a matasse, faria menos
sujeira.
Harrison segura meu braço e me arrasta para fora do caminho.
— Se você não for dar uma de demônio da morte para ajudar, é
melhor ir esperar em um lugar seguro. Cadê o Menino Blindado?
Brutus só o olha de baixo, esperando meu comando para matar o
agente por tocar em mim, mas August, entusiasmado, ataca os calcanhares
dele com selvageria. Tento não rir do barulho que Harrison faz. Ele
continua de pé; aparentemente, correr o risco de tomar um tiro na cabeça é
preferível a se agachar perto dos filhotes.
Eu me abaixo, ouvindo os sons.
— Meu Vínculo é a favor de “morte a todos” e estou tentando
garantir que não percamos ninguém por fogo amigo. Onde caralhos estão
meus outros Vínculos?
Eu poderia perguntar pela nossa conexão mental de uma vez, mas
não quero distraí-los e fazer com que acabem se machucando. Além disso,
eu só conseguiria falar com meus Vinculados assim.
Também estou louca para saber se Gabe – e até Nox – está bem e
tem reforços nesta confusão.
Atlas usa o capô de um dos veículos destruídos para escoltar os
Favorecidos até uma das casas, protegendo-os do único jeito que podemos,
enquanto seleciono metodicamente os membros da Resistência nesta parte
da cidade. Sou cuidadosa e, com a ajuda do meu vínculo, estou certa de
minhas escolhas.
O elogio que Harrison murmura ao olhar por cima do caminhão
reforça que escolhi certo.
— Mandou bem, garota. Se ao menos você não fosse Vinculada do
Draven, seria uma puta vantagem pra gente.
Atlas se aproxima e me ajuda a levantar.
— O Draven não decide o que a Oli faz. Se ela quiser mesmo,
vamos comparecer e fazer a faxina. E cadê o Ardern, porra? Vamos atrás
dele agora.
Gosto dessa opção, e deixo que decidam o caminho pela cidade
enquanto estendo minha rede, expandindo devagar e eliminando mais
soldados ao redor.
Sinto Sawyer na sala de vigilância, na parte inferior do prédio onde
fica o escritório de North, e o elevador que leva ao subsolo. Não há dúvidas
de que preciso dar uma olhada naqueles monitores.
Será que eu poderia usá-los para espalhar meu dom pela cidade
toda? Talvez. Com certeza vale a pena tentar.
Encontramos Sawyer em um estado terrível na frente do
computador, de cueca e com um corte ainda sangrando na testa. Ele nem
ergue os olhos quando entramos na sala. Sabia que estávamos chegando, já
que foi quem abriu a porta para nós.
Assim que entramos, fico boquiaberta ao ver as imagens nas telas à
nossa frente.
A cidade foi destroçada.
Ou usaram explosivos, ou a Resistência mandou alguém com um
dom muito destrutivo, porque há prédios inteiros com rombos na lateral e
ruas com crateras gigantes, como se uma bomba tivesse explodido.
— Puta merda — sussurro.
Sawyer nem tira os olhos do teclado para responder:
— O North está cuidando dos primeiros cinco setores. As criaturas
dele controlaram a situação. Nunca vi alguém aguentar tanto, mas parece
que toda vez que o dom dele vai se esgotar, algo acontece e ele se recupera.
Atlas me olha de soslaio, mas levo um dedo aos lábios pedindo
segredo.
Já sabia que isso estava acontecendo; conseguia sentir. Quanto mais
almas arrebato, mais poder tenho para direcionar a ele.
— O Gryphon e sua Equipe estão percorrendo do sexto ao décimo.
O Nox está com eles, mas no modo pesadelo Draven total, torturando todo
mundo no caminho.
Assinto com a cabeça e vou para trás dele.
— E o Gabe? Onde se enfiou?
— Na escola. Saiu rápido de casa, pegou todos que conseguiu e os
levou para lá. Está protegendo pelo menos um terço da população. O North
e os outros têm encontrado gente e mandado até ele, com escolta quando
podem, ou dizendo para correrem. Tivemos algumas fatalidades entre os
civis, mas podia ter sido bem pior. Kieran encontrou a Sage logo no começo
e está protegendo ela em um dos caminhões, e o Felix está confinado nas
instalações médicas.
Inspiro fundo, e ele enfim me olha no rosto.
— Oli, preciso que encontre o Gray. Sei onde todos os outros estão.
Não consigo vê-lo, mas ele estava na cozinha ajudando com as mudanças
na distribuição de água. Por favor, encontra ele…
Encontro, sim. Sawyer esteve aqui o tempo todo mantendo meus
homens em segurança. De jeito nenhum vou deixar minha família para trás
— Vou trazer ele pra cá, Sawyer, não se preocupe! Mantenha meus
Vínculos em segurança que eu trago o seu homem são e salvo. Juro.
Ele me observa por mais um instante, então assente e se volta aos
computadores, colocando o fone do comunicador de novo para ouvir às
conversas dos agentes. Sei que vai fazer o melhor que puder para manter
todos a salvo, mas também sei que vai dar prioridade à nossa família.
Nossa família, porque é o que somos.
Agora tenho que procurar Gray e trazê-lo para cá em segurança. Sei
que ele consegue se virar, mas a Resistência sempre manda seus melhores e
mais importantes lutadores, então ele vai precisar de um pouco de ajuda.
Atlas, que está parado na porta xingando baixinho, diz, desesperado:
— Oli, por favor, fica aqui com o Sawyer e me deixe ir. Este prédio
é um forte e você pode me guiar…
De jeito nenhum.
— Não. Sou a melhor arma que temos. Não vou mais fugir
assustada.
Atlas bufa, apoia a cabeça na parede às suas costas e, cansado,
murmura:
— Você nunca fugiu. Cacete, Doçura, você nunca fugiu.
Atlas pega outra arma no armário ao lado de Sawyer e pendura os
coldres nos ombros. Há um traje tático completo ali dentro, mas é pequeno
demais para ele, e eu me recuso a trocar de roupa agora. Não preciso do
uniforme de super-herói; preciso movimentar os braços livremente. Mesmo
assim, pego um comunicador. Atlas também, e guarda um a mais no bolso.
Em seguida, damos o fora dali.
Mantenho minha rede espalhada e mato todos os soldados da
Resistência no segundo em que me deparo com eles. Parece que a notícia de
que estou aqui e em modo de caça correu rápido, e ouço pelo fone que os
Transportadores estão batendo em retirada às pressas. Não levaram
ninguém com eles ainda, mas continuamos atentos mesmo assim.
Passamos pelas ruas repletas de escombros e cadáveres com relativa
facilidade e encontramos Gray na cozinha, no mesmo lugar em que Sawyer
o viu pela última vez, escondido em uma das câmaras frias com o chef e
meia dúzia de trabalhadores. Atlas entrega o rádio comunicador extra para
ele e nos arrependemos disso logo que Sawyer o xinga descaradamente e
sem pudores por se atrever a estar fora do alcance das câmeras.
Não duvido que North encontre uma brecha no orçamento para
muito em breve comprar mais.
Decidimos que Gray vai ficar mais seguro aqui do que se tentarmos
levá-lo e, agora que tem uma forma de se comunicar com Sawyer e recebeu
uma arma de Atlas, poderá proteger a si e aos que estão com ele.
Além disso, Gray é um Telecinético. Não temos dúvida de que
poderia matar alguém se precisasse.
Assumo o risco e decido chamar meus Vinculados, rezando para não
acabar causando a morte de nenhum dos dois.
ESTAMOS INDO ENCONTRAR O GABE AGORA. ALGUÉM PRECISA DE ALGUMA
COISA?

Gryphon é o primeiro a responder:


VENHA PEGAR A SAGE E A LEVE ATÉ A ESCOLA. ELA ESTÁ DISTRAINDO O
BLACK. ELE É INÚTIL ENQUANTO ELA ESTIVER AQUI.
Sem problemas. Eu com certeza quero Sage fora da linha de fogo.
A CAMINHO.
North demora um pouco mais para responder e sinto a culpa se
formar na minha barriga com o que ele diz:
DEVO ACREDITAR QUE MEU PODER VAI DURAR PARA SEMPRE, OU SÓ ATÉ O
ARREBATAMENTO DE ALMAS TERMINAR? ATÉ ONDE EXATAMENTE VAI O SEU PODER,
VINCULADA?
Atlas me olha de novo e faz que não com a cabeça, mais do que
contente com a ideia de mantermos alguns segredos entre nós, mas já sei
que não dá para vivermos assim.
NÃO EXISTE LIMITE. OU, PELO MENOS, NUNCA ENCONTREI.
Atlas pragueja baixinho outra vez, mas eu avanço, virando em todas
as esquinas certas até o setor seis. Posso até ser péssima em me localizar,
mas meu vínculo é bom e consegue seguir os fios invisíveis que me
conectam aos meus Vinculados com mais facilidade do que respira.
Os sons surdos dos corpos caindo nas ruas recém-asfaltadas é quase
tranquilizador. Eu me torno completamente alheia ao significado disso, e
meu vínculo fica em um silêncio satisfeito enquanto coletamos a energia e a
canalizamos aos nossos Vinculados. A pele de Atlas começa a cintilar com
suavidade ao meu lado, tão compenetrado em me proteger que nem
percebe.
No instante em que chegamos na área em que acontecem as últimas
batalhas, deixo meus olhos se transformarem nos vácuos e permito que meu
vínculo elimine os soldados da Resistência. Dá para ver o alívio em metade
dos agentes Táticos presentes, abatidos e esgotados.
Com exceção, é claro, de Nox, que ergue os olhos do cadáver do
homem que estava interrogando de forma muito criativa e que agora está
segurando, e zomba para mim.
Ótimo.
Ele se levanta com pressa e me alcança antes que Gryphon consiga,
enquanto Atlas me prende em seus braços, como se estivesse tentando me
afastar do Vínculo.
— Por que você veio se arriscar? Quer que a porra do Grupo
Vincular imploda só porque ficou entediada e não quer ficar sentada em
segurança em algum canto por uma hora enquanto cuidamos das coisas? —
Nox esbraveja, abaixando o protetor até a garganta, de modo que eu possa
ver em seu rosto toda a fúria que pulsa tão claramente dentro dele.
— Porque a culpa é minha! Você acha que vou deixar ele levar
outras pessoas só porque escapei? Da última vez, eles mataram crianças.
Nox deixa um som de desdém sair pelo nariz e meus olhos disparam
para encontrar os dele, contornados por um aro preto. É seu vínculo à
espreita logo abaixo da superfície, e o sorrisinho em seu rosto é feroz e
debochado.
— Acha que foi a primeira vez que mataram crianças? Bom,
imagino que eles normalmente só sequestrem mesmo. Metade da
Resistência é formada por crianças roubadas que passam por lavagem
cerebral. O Davies começou a fazer isso há trinta anos. Os Favorecidos que
você matou hoje eram aquelas crianças… só que agora cresceram o
suficiente para você não ter que pensar duas vezes.
Meu estômago se revira tão rápido que acho que vou vomitar nos
sapatos de Atlas. Minha cabeça gira e minha consciência sofre outro golpe.
Gryphon se descontrola e se aproxima para peitar Nox, cruzando a
barreira invisível que costuma ser bem firme entre eles:
— Não fala assim com ela! Se está preocupado com o que está
acontecendo, lide com isso. Ela não é a porra do seu saco de pancadas.
North não vai te salvar dessa vez.
Os braços de Atlas se apertam ao meu redor e percebo que estou
tremendo. Matei todos aqueles homens e mulheres. Matei todos. Sem
pensar, simplesmente arranquei a alma do corpo deles. Vai saber quem
eram.
Pais e filhos, irmãos, todos com família em algum lugar, e eu… não
dei a mínima.
Sou mesmo o monstro que todos me chamam.
Sou a porra do monstro.
Gryphon me segura e apoia a mão no meu rosto.
— Vá encontrar o Gabe. Vamos encerrar aqui e garantir que os
portões fiquem seguros de novo. Temos outro Escudo a caminho. Vá com o
Gabe. Ignore essa merda, Vinculada. É tudo mentira, e não faz diferença.
Eles vieram aqui para nos matar, você não fez nada de errado.
Não consigo ver Oli de onde estou em minha forma animal, mas
Gryphon ter me tranquilizado pela mente dizendo que teve notícias dela,
que está viva e arrebatando almas a torto e a direito, é a única coisa que me
impede de abandonar as pessoas aqui e correr para encontrá-la. O impulso
de fazer isso e conquistá-la é forte, mas tenho um trabalho a cumprir e
preciso confiar no resto do Grupo.
O que é bom, porque muitos Curandeiros e Neuros mais fracos estão
vindo até mim em busca de segurança, e seriam dizimados pelos dons sendo
atirados por aí.
Há um Ímpeto em algum lugar por perto abrindo buracos nas
paredes dos prédios, e estou ficando particularmente chateado com isso
depois de passar uma semana construindo essas merdas.
Preciso voltar à forma humana para chamar a população apavorada
e guiá-los para que fiquem em segurança. Seus olhos piscam para mim
como coelhos surpreendidos pelo farol de um carro; é a reação que um cara
gigante pelado desperta nos outros. Ainda assim, abro as portas da escola
para conduzir os recém-chegados e eles entram rapidamente. Digo para
descerem até o abrigo no porão e se juntarem aos outros que já encontrei e
acomodei lá. A maioria são mulheres com crianças e idiotas de nível
Superior covardes demais para lutar pela nossa cidade e comunidade.
Faremos muitas mudanças depois que terminamos de resolver este
pesadelo.
Tranco a porta e monto uma barricada na frente dela, arrastando
uma placa de concreto dos entulhos para dar uma proteção adicional, e logo
volto a me transformar na pantera, minha maior forma. Depois, salto do
pequeno alpendre para me juntar aos outros Metamorfos, farejando no ar o
próximo ataque.
North e os outros estão fazendo um excelente trabalho em manter a
maior parte da briga longe daqui, mas um grupo de Transportadores está
trazendo uma leva de soldados seguida de outra, e há um número grande
demais deles conseguindo nos alcançar, por isso não posso sair e me juntar
à luta.
Em meu corpo completamente transformado, consigo dilacerar três
homens de uma vez, o que mantem o grupo à distância. Ezra se transformar
em sua forma de tigre e conseguir acabar com um de cada vez também
ajuda. Elliot agacha e espalma as mãos no chão, cobrindo o solo com um
lençol de gelo que surge de seus dedos, e congela os soldados que se
aproximam, tornando-os um alvo fácil para que eu os rasgue ao meio.
Faz mais sujeira que outros tipos de morte, mas tem um quê
satisfatório.
Há um momento de silêncio, uma calmaria nas hordas de
insurgentes que nos cercam, e então me viro na direção dos passos que
escuto se aproximarem com agilidade atrás de mim. Kyrie está com a
bochecha arranhada, o lábio cortado e uma criança que encontrou em algum
lugar debaixo de um dos braços, mas seus olhos continuam atentos quando
olha pela beirada da parede da escola. Ao me ver, ela relaxa, aliviada.
Então, ajuda a criança a subir no alpendre e faz uma careta quando
se ergue.
— Me diz que tem armas aqui. Eu só tinha três no quarto e minha
munição já acabou.
Salto e a conduzo até a pilha de roupas que rasguei ao me
transformar. Ela se agacha para pegar duas armas e alguns pentes que eu
trouxe quando North chamou.
Kyrie prende o cabelo em um rabo de cavalo. Assim, toda
concentrada e sem tempo para brincadeiras, está a cara do irmão.
— Há algumas casas no limite do setor três, bem naquela direção, e
tem gente encurralada lá. Eles têm filhos e estão com medo de se deslocar
sem escolta. Vou agora. Estou com um comunicador e aquele menino, o
Benson, está me direcionando.
Assinto, porque não vou mudar de forma e conversar pelado com
ela. Meu vínculo se revolta no peito só de pensar, e o ciúme explosivo que o
vínculo de Oli já demonstrou sentir por nós define que não é uma opção.
Se o vínculo dela estiver por aí arrebatando almas, eu é que não vou
provocá-lo a machucar a Kyrie.
Há um estrondo quando o Ímpeto destrói outro prédio; um dos
caminhões em que chegaram se ergue no ar e, chamuscado, pousa a alguns
metros num fumaceiro só. Dou um aceno abrupto para Kyrie se mexer e
salto de volta para onde os demais esperam.
A próxima leva da Resistência chega adiante, com armas e mãos
erguidas, e começa a disparar contra nós. As balas, porém, são rebatidas por
uma barreira invisível. Podemos não ter um Escudo forte o suficiente para
proteger o Santuário escondido na escola, mas temos três mães e um pai
fazendo tudo que podem por seus filhos. Além disso, a qualquer porra de
chance que eu tiver, vou escolher protegê-los em vez do burocrata Flama de
Nível Superior se cagando de medo ao lado deles.
Contudo, a barreira não é o suficiente para desviar todas as balas.
Faz mais de uma hora que estamos nessa, então já sei como funciona. Eu
me concentro no grosso dos soldados enquanto os outros dois pegam quem
deixo passar. É uma tarefa sangrenta, mas catártica; descarrego até a última
gota de frustração nesses merdas que vieram atacar os membros mais
indefesos da nossa população.
Depois que elimino os seis homens que atravessaram o escudo, ergo
o rosto e encontro o Ímpeto ali, com a mão estendida, prestes a abrir uma
cratera bem onde estou.
Só que então Oli aparece pela esquina com a mão erguida e olhos de
vácuo. Não tem nada aqui com que minha Vínculo não consiga lidar.
Dezenas de membros da Resistência caem de uma vez, até não restar
ninguém para eu dar cabo. Vejo Ezra e Elliot recuarem, afastando-se dela
com uma cara tão assustada que, mesmo em outra forma, dá para ver que
estão morrendo de medo.
Para mim, ela só está gostosa pra caralho.
— Eca, o que foi isso? Aquele cara ali, qual era o dom dele?
Olho para baixo e volto para meu corpo humano, gostando do
gritinho que ela solta ao me ver. Procuro ao redor, mas só os trabalhadores
do prédio continuam por perto e acho que ela não vai se importar com eles.
— Era um Ímpeto. Uma bomba viva. Foi ele quem provocou esse
dano todo. Mais cedo, ele jogou um caminhão em alguns caras da equipe do
Gryphon, e o North passou esse tempo todo tentando fazê-lo recuar. Um
Escudo estava trabalhando com ele, mas… bom, era o outro cara ali, que
você acabou de eliminar.
Oli olha em volta e, escandalizada com meu pau de fora, diz:
— Se transforma! Tem câmeras em todo canto, não quero ouvir o
Sawyer falando de como a sua bunda é fantástica.
Bassinger ri de deboche, meneia a cabeça e responde:
— Não acho que vai ser da bunda que…
— Nem mencione o pau dele! Estou me esforçando para distrair
meu vínculo, e essa conversa não ajuda, Atlas! — ela retruca, e eu me
transformo com extrema facilidade para esfregar a cabeça em suas pernas.
Mudei de forma para conversar com ela, claro, mas também porque
queria dar um abraço na minha Vínculo por um segundo.
Viva e massacrando os inimigos como merecem. Somos abençoados
pra cacete.
Ela se agacha, envolve meu pescoço com os braços e enterra o rosto
ali.
— Desculpa. Quero falar com você, mas… você é meu e eu não
divido.
Que bom, porque bem na hora em que ela suspira aliviada por estar
de novo comigo, Kyrie aparece com algumas famílias, somando pelo menos
uma dúzia de crianças, e as leva em direção à escola. Brutus vai pulando
para farejar quando passam; duas crianças gritam e se debulham em
lágrimas ao vê-lo, e seus pais as erguem nos braços, amedrontadas.
Kyrie corta o problema pela raiz.
— A ferinha voltou, é? Merda. Tá tudo bem, criançada. O filhotinho
é do bem. Aquela ali é a mamãe dele. Ela não vai deixar ele se comportar
mal. Não vai machucar vocês, só os malvados.
Todos com o comunicador no ouvido congelam por um segundo ao
ouvir alguma coisa que Sawyer diz, mas minha audição felina só consegue
captar os ruídos de alta frequência da tecnologia.
Oli suspira e volta a encostar o rosto em meu pescoço.
— Eliminei os últimos Transportadores. O North acabou de cuidar
dos soldados que restavam no setor dele, e Gryphon conseguiu trancar os
portões.
Atlas assente e dá um passo em direção ao corpo do Ímpeto.
— Trouxeram os novos Escudos. Agora temos três reforços em vez
de um só. Acho que vai ajudar.
A barriga de Oli faz um barulho e eu me afasto um pouco para olhar
seu rosto, pronto para caçar algo para alimentá-la caso esteja precisando
depois de ter usado tanto de seu poder, mas sua expressão é de quem está
enjoada.
— Ignora. Meu vínculo… está comendo a alma do Ímpeto aqui. Ele
era o Favorecido mais forte que veio, mais até que o Andrews. Acho que
passamos em mais um teste de força.
Caramba.
Esperamos em frente à escola com Gabe e os outros Metamorfos até que os
Escudos cubram o santuário inteiro. Sawyer nos libera antes de tirarmos as
famílias da escola e começarmos a levar as pessoas ao centro médico.
Gabe, mais uma vez vestido em uma calça de moletom e um dos
suéteres que Atlas pegou na pressa de chegar aqui, carrega uma criança em
cada ombro, ajudando a mover as pessoas feridas ou com mobilidade
limitada. Nos ombros, Atlas carrega um homem baleado na perna e
remendado de forma muito grosseira por um dos Curandeiros inúteis no
abrigo. Ainda assim, o sujeito dá seu melhor para não gemer a cada
movimento.
Nenhuma das famílias quer encostar em mim.
Por mim, tudo bem, mas meus dois Vínculos levam isso para o
pessoal.
Kyrie debocha dos dois e ri, ajeitando o bebê que está em seu
quadril:
— Os Draven são tratados do mesmo jeito. É só medo. Mesmo
sabendo que você foi parte fundamental da nossa vitória, ainda podem
sentir que tem algo a mais por perto.
Dou de ombros e faço carinho em August, um pouquinho de cafuné
em suas orelhas do jeitinho que ele gosta.
— Eu sei, é instinto de sobrevivência. Eu também ficaria longe de
mim.
Não digo que o motivo para não me importar é porque Nox me deu
uma surra verbal há menos de uma hora que ainda não saiu da minha
cabeça, senão Atlas vai derrubar o cara que está carregando só para dar uma
de kamikaze e defender minha honra.
Não preciso disso.
Coloco um sorriso no rosto e mantenho os cãezinhos perto das
minhas pernas. Não faz sentido assustar mais as pessoas deixando os dois
passeando livremente.
Chegando ao centro médico, localizado na principal área da cidade,
do outro lado da rua do escritório de North, encontramos a maior parte das
Equipes Táticas reunidas ali, e posso escapar para procurar meu Vinculado.
Tenho de encontrar North e vê-lo vivo e bem com meus próprios
olhos.
É fácil detectá-lo, já que é a pessoa mais requisitada da cidade, ao
mesmo tempo em que é aterrorizante a ponto de todos os outros acharem
necessário manter uma bolha de um metro de diâmetro ao redor dele,
enquanto as memórias dos pesadelos que infligiu no inimigo continuam
vívidas. Como não tenho essa gentileza ou tato, uso os cãezinhos para fazer
todos saírem da frente enquanto vou direto até ele.
O alívio que aparece em seu rosto ao ver minha cara empoeirada,
suada e nojenta é exatamente igual ao meu. Nem preciso de um espelho
para saber.
Não sei dizer se ele gosta de demonstrações públicas de afeto, mas
me jogo assim mesmo. Ele me pega sem hesitar, com braços fortes em volta
do meu corpo, abraçando-me o mais apertado que as leis da física
permitem.
— Você não podia ficar em algum lugar seguro só para eu não ter
um infarto?
Dou risada, sem conseguir me mexer com seus braços me segurando
tão forte.
— A Kyrie disse que fui fundamental na vitória. Tenho certeza que
vocês precisavam da minha ajuda. Além disso, ambos sabemos que
mandaram o Ímpeto atrás de mim.
Há um burburinho atrás de nós e sinto a chegada dos meus
Vínculos. Todos, inclusive Nox, por incrível que pareça.
Sou tirada dos braços de North com gentileza, mesmo que ele não
queira me soltar, e Gryphon reclama:
— Pare de monopolizá-la, seu merdinha possessivo. Você tem gente
com quem falar e coisas importantes de conselheiro para fazer.
North olha feio na direção de Foggarty e dos outros dois
Curandeiros que fofocam a poucos metros de distância e o observam como
abutres.
Abraço-o de lado de novo e murmuro:
— Em qual dos dois quer que eu meta medo? Super mato um deles
se você quiser.
Quando ele me olha sério, abro um sorriso inocente, dou de ombros
e provoco:
— Pelo bem geral, posso fazer o que for necessário.
— Mentirosa. Faria nada, mas sua vínculo sim. Talvez devesse
deixar ela solta mais um tempinho, reduzir um pouco essa parte da
população que come e se acha demais.
Gabe dá uma bufada e bate o tênis para tentar soltar um pouco da
terra, mas já está sujo da cabeça aos pés por causa da luta, então não faz
diferença.
— É só expulsar eles de uma vez. Você não deve nada a essa gente,
nem segurança, nem conforto. Se não vão ajudar, livre-se de todos.
North revira os olhos e esfrega o rosto, espalhando mais sangue e
sujeira.
— Não é fácil assim. Nada nunca é fácil assim.
Faço careta, mas assinto; essa é uma parte fundamental de crescer.
Aprender que tudo tem consequências e que algumas são devastadoras
demais para se considerar.
Então, mudo de tática.
— Onde é que o Kieran está escondendo a Sage? Preciso dar uma
voltinha e ver como a família toda está.
Gryphon solta o ar pela boca, ainda irritado com seu braço-direito, e
diz:
— Estão com o Felix.
North olha sério para ele, depois assente como se tivessem chegado
a um acordo.
— Você pode ir direto para lá, e já se examine com o Davenport
também. Gabe e Bassinger idem. Tenho que resolver isso, e o Gryphon
pode conferir os procedimentos de segurança uma última vez, depois nos
reencontramos. Não vá a lugar nenhum sozinha.

ONDE VOCÊ ESTÁ?


Reviro os olhos ao ouvir a voz de North na minha cabeça, já que foi
ele quem me disse para não sair desta sala sem cobertura, então é claro que
estou onde ele mandou.
Esse homem deveria confiar um pouco mais em mim.
OLI, QUEM ESTÁ COM VOCÊ NESTE INSTANTE? NÃO DIGA NADA EM VOZ ALTA E
NÃO REAJA, PRECISA SER DISCRETA.

Eu me esforço para não fazer uma carranca ao ouvir Gryphon.


Ainda não entendo direito como esse negócio de conversa mental funciona,
e o fato de que um falou seguido do outro me dá a certeza de que os dois
estão se ouvindo.
Atlas olha para mim brevemente, e isso confirma que estão todos na
minha cabeça agora, falando comigo, mas também uns com os outros.
Dou uma olhada também breve para o canto em que Kieran está
abraçando Sage, fazendo cafuné e reclamando baixinho de como ela está
coberta de sangue. Ela não parece incomodada com isso, só preocupada em
ficar o mais perto dele que puder, e sinto um apertinho no coração pelos
meus próprios Vinculados.
ESTOU NO CENTRO MÉDICO, EXATAMENTE ONDE NORTH MANDOU.
GABE E
ATLAS ESTÃO COMIGO. KIERAN, SAGE E FELIX, TAMBÉM. ESTOU EM SEGURANÇA.
Há uma pausa e sinto um frio na barriga. A única coisa que me
mantém sentada é o aviso de Gryphon para ser discreta. Se estou sendo
vigiada de alguma forma, como por um hacker no sistema de vigilância,
não posso sair correndo como se estivesse com a bunda pegando fogo.
Mas, e se um dos meus Vínculos estiver ferido?
Será que eu saberia? Claro que saberia, né?
ME CONTA. O QUE QUER QUE SEJA, CONTA AGORA.
Tento soar firme, mas não sei como foi recebido por eles, já que
minha resposta é o silêncio.
Sinto vontade de gritar.
— Qual o problema? Seu coração acabou de disparar — murmura
Felix, tentando não me assustar neste estado de surto em que me encontro.
Engulo em seco com dificuldade e tento pensar em como avisá-lo
que há algo acontecendo sem falar em voz alta, caso haja algum grampo na
sala. É impossível. Não tem como fazer isso sem a habilidade Neuro de
Gryphon. Então, fico sentada e espero, tentando não perder a cabeça.
Em seguida, Gryphon me envia uma imagem perfeita.
Não sei como diabos ele faz isso, quase morri para mandar ao North
a dos cãezinhos de sombras, e mesmo assim Gryphon está me enviando
uma série de imagens que rodam na minha cabeça como um rolo de filme.
As palmas das minhas mãos começam a suar.
Consigo lidar com muito.
Então, já sei que posso sobreviver a muita desgraça.
No entanto, ver Sage cortar a garganta de nosso primeiro escudo,
Dara, e então abrir os portões para a Resistência, talvez não seja uma delas.
Sobre a Autora

J Bree é uma sonhadora, escritora, mãe, agricultora e criadora de gatos.


A ordem das prioridades muda diariamente.
Ela mora em uma pequena fazenda em uma pequena cidade rural na
Austrália, da qual ninguém nunca ouviu falar. Ela passa os dias sonhando
com todos os seus namorados das histórias de livros.

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