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“Enfim, nossos dois sistemas não são tão diferentes assim. No princípio, pelo menos.” — “Afirmação curiosa, para um
comunista.” — “Nem tanto, se pensar bem. No fundo, que diferença há entre um nacional-socialismo e o socialismo num
único país?” — “Nesse caso, por que travamos luta tão mortífera?” — “Foram vocês que quiseram, não nós. Estávamos
dispostos a conciliações. Mas é como antigamente com os cristãos e judeus: em vez de se unirem ao Povo de Deus, com o
qual têm tudo em comum, para formar uma frente comum contra os pagãos, os cristãos preferiram, provavelmente por
inveja, paganizar-se e se insurgir, para infelicidade deles, contra as testemunhas da verdade. Foi uma tremenda confusão.” —
“Imagino que, na sua comparação, o termo ‘judeus’ se refira a vocês.” — “Naturalmente. Afinal de contas, vocês nos tiraram
tudo, ainda que apenas superficialmente. E não falo apenas dos símbolos, como a bandeira vermelha e o 1o de maio. Falo
dos conceitos mais caros à Weltanschauung de vocês.” — “Pode explicar melhor?” Começou a contar nos dedos à maneira
russa, dobrando-os um a um e partindo do mínimo: “Onde o comunismo visa uma sociedade sem classes, vocês pregam a
Volksgemeinschaft, o que no fundo é rigorosamente a mesma coisa, limitada às suas fronteiras. Onde Marx via o proletário
como portador da verdade, vocês decidiram que a suposta raça alemã é uma raça proletária, encarnação do Bem e da
moralidade; por conseguinte, substituíram a luta de classes pela guerra proletária alemã contra os Estados capitalistas. Em
economia também, suas idéias não passam de distorções dos nossos valores. Conheço bem sua economia política, pois antes
da guerra traduzi para o Partido artigos de suas publicações especializadas. Onde Marx estabeleceu uma teoria do valor
fundada no trabalho, seu Hitler declara: Nosso marco alemão, que não é lastreado pelo ouro, vale mais que o ouro. Essa
frase um pouco obscura foi comentada pelo braço-direito de Goebbels, Dietrich, que explicava que o nacional-socialismo
havia compreendido que o melhor lastro para uma divisa é a confiança nas forças produtivas da Nação e na direção do
Estado. O resultado disso é que o dinheiro, para vocês, tornou-se um fetiche que representa o poder de produção do seu
país, logo uma aberração total. As relações de vocês com seus grandes capitalistas são grosseiramente hipócritas, sobretudo
depois das reformas do ministro Speer: os responsáveis continuam a pregar a livre-iniciativa, mas as indústrias são todas
submetidas a um plano, e seus lucros, limitados a 6%, com o Estado apropriando-se do resto, além da produção.”
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As classes são um dado histórico; pertenceram a um determinado momento e irão desaparecer da mesma forma, fundindo-
se harmoniosamente com a Volksgemeinschaft em vez de esvaziá-la. Ao passo que a raça é um dado biológico, natural e,
portanto, incontornável.” Ele levantou a mão: “Veja bem, não vou insistir nesse aspecto, pois é uma questão de fé e portanto
as demonstrações lógicas, a razão, de nada servem. Mas há de concordar comigo pelo menos num ponto: ainda que a análise
das categorias em jogo seja diferente, nossas ideologias têm o seguinte de fundamental em comum: ambas são
essencialmente deterministas; determinismo racial, para vocês, determinismo econômico para nós, mas de toda forma
determinismo. Ambos acreditamos que o homem não escolhe livremente seu destino, mas que este lhe é imposto pela
natureza ou a história. E ambos concluímos que existem inimigos objetivos, que determinadas categorias de seres humanos
podem e devem ser legitimamente eliminadas não pelo que fizeram ou até mesmo pensaram, mas pelo que são. Nisto,
diferimos apenas pela definição das categorias: para vocês, os judeus, os ciganos, os poloneses e inclusive, ouvi dizer, os
doentes mentais; para nós, os kulaks, os burgueses, os dissidentes do Partido. No fundo, é a mesma coisa; ambos recusamos
o homo economicus dos capitalistas, o homem egoísta, individualista, enganado em sua ilusão de liberdade, em prol de um
homo faber: Not a self-made man but a made man, poderíamos dizer em inglês, ou seja, um homem a ser feito, pois o
homem comunista ainda está para ser construído e educado, assim como o seu nacional-socialista perfeito. E esse homem a
ser feito justifica a liquidação impiedosa de tudo que é ineducável, o que portanto justifica o NKVD e a Gestapo, jardineiros
do corpo social, que arrancam as ervas daninhas e obrigam as saudáveis a seguir seus tutores.”
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“Mas se acha que nossos dois sistemas são idênticos, por que luta contra nós?” — “Nunca disse que eram idênticos! E é
suficientemente inteligente para ter compreendido isso. Procurei mostrar-lhe que os modos de funcionamento das nossas
ideologias se assemelham. O conteúdo, naturalmente, difere: classe e raça. Para mim, o seu nacional-socialismo é uma
heresia do marxismo.” — “Em que medida, na sua opinião, a ideologia bolchevique é superior à do nacional-socialismo?” —
“Na medida em que ela quer o bem de toda a humanidade, enquanto a sua é egoísta, quer o bem apenas dos alemães. Não
sendo alemão, é impossível eu aderir, ainda que quisesse.” — “Sim, mas se tivesse nascido burguês, como eu, seria
impossível tornar-se um bolchevique: o senhor permaneceria, fossem quais fossem suas convicções íntimas, um inimigo
objetivo.” — “É verdade, mas isso é resultado da educação. Um filho de burguês ou um neto de burguês, educado desde o
nascimento num país socialista, seria um autêntico e bom comunista, acima de qualquer suspeita. Quando a sociedade sem
classes for uma realidade, todas as classes irão dissolver-se no comunismo. Na teoria, isso pode ser compreendido no mundo
inteiro, o que não é o caso do nacional-socialismo.” — “Na teoria, talvez. Mas não podem provar isso, e na realidade vocês
cometem crimes atrozes em nome dessa utopia.” — “Não vou responder que os crimes de vocês são piores. Direi
simplesmente que, se não podemos provar a razão das nossas esperanças a alguém que se nega a acreditar na verdade do
marxismo, podemos e vamos provar concretamente a vacuidade das suas. Seu racismo biológico postula que as raças são
desiguais entre si, que algumas são mais fortes e mais saudáveis que outras, e que a mais forte e a mais saudável é a raça
alemã. Mas quando Berlim ficar parecida com esta cidade aqui” — apontou o braço para o teto — “e quando nossos bravos
soldados acamparem na sua Unter den Linden, então vocês serão obrigados, se quiserem salvar sua fé racista, a reconhecer
que a raça eslava é mais forte que a raça alemã.”
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Os galpões, compridos estábulos de campanha da Wehrmacht, modificados pelos arquitetos SS, eram encardidos,
malcheirosos, apinhados; os detentos, a maior parte em andrajos, amontoavam-se em grupos de três ou quatro nos
estrados, em vários níveis. Discuti problemas sanitários e higiênicos com o médico-chefe: foi ele, sempre com o
Untersturmführer na cola, que me mostrou o galpão Banho e Desinfecção, onde se procedia, de um lado, ao banho dos
recém-chegados e, de outro, à morte por gás dos inaptos ao trabalho. “Até a primavera”, esclareceu o Untersturmführer,
“isso aqui era apenas para tirar a poeira. Mas, depois que o Einsatz transferiu para cá uma parte de sua carga, ficamos com
gente demais.” O campo não sabia mais que fazer com tantos cadáveres e encomendara um crematório, equipado com cinco
fornos monomufla concebidos pela Kori, uma empresa especializada de Berlim. “Eles disputam o mercado com a Topf und
Söhne, de Erfurt”, acrescentou. “Em Auschwitz, eles só trabalham com a Topf, mas julgamos as condições da Kori mais
competitivas.” A morte por gás, curiosamente, não se efetuava por monóxido de carbono como nos furgões que utilizávamos
na Rússia ou, de acordo com o que eu lera, nas instalações fixas do Einsatz Reinhard; ali usavam hidrocianeto, sob a forma de
pastilhas que, em contato com o ar, expeliam o gás. “É muito mais eficaz que monóxido de carbono”, me garantiu o
médicochefe. “É rápido, os pacientes sofrem menos, é infalível.” — “De onde vem o produto?” — “É na realidade um
desinfetante industrial, utilizado para fumigações, contra pulgas e outros vermes. Parece que foi Auschwitz que teve a idéia
de testá-lo para o tratamento especial.” Inspecionei a cozinha e os depósitos de abastecimento; apesar das garantias dos SS-
Führer e mesmo dos funcionários detentos que distribuíam a sopa, as rações pareciam-me insuficientes, impressão que aliás
me foi confirmada pelas indiretas do médico-chefe. Voltei vários dias sucessivos para estudar os dossiês do Arbeitseinsatz;
cada Häftling tinha sua ficha individual, classificada pelo que se chamava de Arbeitstatistik, e era destacado, se não estivesse
doente, para um Kommando de trabalho. Alguns, no interior do campo, para a manutenção, outros, no exterior; os
Kommandos mais importantes ficavam no local de trabalho, como o da DAW, Empresas de Armamento Alemãs, em Lipowa.
No papel, o sistema parecia sólido; mas a diminuição dos efetivos permanecia considerável; e as críticas de Horn me
ajudavam a ver que a maioria dos detentos empregados, mal alimentados, sujos e regularmente espancados, era incapaz de
um trabalho consistente e produtivo.
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“Entre nós, dizemos T-4. É como chamamos isso.” — “E o que fazia para os lados de Kharkov?” — “O senhor sabe, eu estava em
Sonnestein, um dos centros para doentes, lá...” Fiz um sinal com a cabeça para assinalar que sabia do que ele estava falando e ele
continuou. “No verão de 41, fecharam. E uma parte de nós, éramos considerados especialistas, eles quiseram manter e nos
mandaram para a Rússia. Éramos uma delegação inteira, era o próprio Oberdienstleiter Brack que comandava, havia os médicos do
hospital e tudo mais, e pronto, realizávamos ações especiais. Com caminhões de gás. Todos nós tínhamos um adendo especial na
nossa caderneta de soldo, um papel vermelho assinado pelo OKW, que proibia que fôssemos enviados para muito perto do front:
tinham medo que caíssemos nas mãos dos russos.” — “Não entendo muito bem. As medidas especiais, nessa região, todas as
medidas de SP, eram responsabilidade do meu Kommando. Diz que tinham caminhões de gás, mas como podiam ser encarregados
das mesmas tarefas que a gente sem que ninguém soubesse?” Sua fisionomia assumiu um aspecto mal-humorado, quase cínico:
“Não éramos encarregados das mesmas tarefas. Lá não tocávamos nem em judeus nem em bolcheviques.” — “E então?” Hesitou e
bebeu mais, em goles demorados, depois enxugou, com as costas dos dedos, a espuma dos lábios. “A gente cuidava dos feridos.” —
“Dos feridos russos?” — “Não está entendendo. Dos nossos feridos. Os que estavam estropiados demais para terem uma vida útil
eram mandados para nós.” Compreendi e ele sorriu ao perceber: produzira seu efeito. Virei para o bar e pedi outra rodada. “O
senhor falava dos feridos alemães”, eu disse delicadamente. — “Como estou lhe dizendo. Uma verdadeira sacanagem. Sujeitos como
o senhor e eu, que haviam dado tudo pela Heimat, e crac! Era assim que lhes agradeciam. Posso dizer que fiquei contente quando
me mandaram para cá. Tampouco é muito alegre, mas pelo menos não é aquilo.” Nossos copos chegavam. Falou-me de sua
juventude: tinha cursado uma escola técnica, queria ser fazendeiro, mas, com a crise, ingressou na Polícia: “Meus filhos tinham
fome, era o único jeito de colocar um prato na mesa todos os dias.” No fim de 1939, fora destacado em Sonnestein para o Einsatz
Euthanasie. Não sabia como fora escolhido. “Por um lado, não era muito agradável. Mas, por outro, aquilo me poupava do front,
depois o salário era correto, minha mulher estava contente. Então não disse nada.” — “E Sobibor?” Era lá, como ele me contara, que
trabalhava atualmente. Balançou os ombros: “Sobibor? É igual a tudo, a gente se acostuma.” Fez um gesto estranho, que me
impressionou profundamente: com a ponta da bota, esfregou o assoalho, como se esmagasse alguma coisa. “Homenzinhos e
femeazinhas, é tudo igual. É como pisar numa barata.”
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Por conseguinte, se querem julgar as ações alemãs durante essa guerra como criminosas, é toda a Alemanha que deve
prestar contas, e não apenas os Döll. Se Döll viu-se em Sobibor e seu vizinho, não, isso é um acaso, e Döll não é mais
responsável por Sobibor que seu vizinho mais afortunado; ao mesmo tempo, seu vizinho é tão responsável por Sobibor
quanto ele, pois ambos servem com integridade e dedicação o mesmo país, o país que criou Sobibor. Quando é mandado
para o front, um soldado não protesta; não apenas está arriscando a vida, como obrigam-no a matar, ainda que não queira;
ele abdica de sua vontade; se permanece no posto, é um homem virtuoso; se foge, é um desertor, um traidor. O homem
destacado para um campo de concentração, como o designado para um Einsatzkommando ou um batalhão da Polícia, em
geral não raciocina de outra forma: ele sabe intimamente que sua vontade não tem peso algum e que só o acaso faz dele um
assassino e não um herói ou um morto. Ou então tudo isso deve ser considerado de um ponto de vista moral não mais
judaico-cristão (ou laico e democrático, o que dá exatamente no mesmo), mas grego: os gregos abriam espaço para o acaso
nos negócios dos homens (um acaso, convém dizer, freqüentemente disfarçado de intervenção dos deuses), mas não
consideravam de forma alguma que esse acaso diminuísse sua responsabilidade. O crime refere-se ao ato, não à vontade.
Édipo, quando mata o pai, não sabe que está cometendo um parricídio; matar na estrada um estrangeiro que insultou
alguém, pela consciência e lei gregas, é uma ação legítima, não há nenhuma infração nesse caso; mas esse alguém era
Laertes, e a ignorância não muda nada no crime: isto, Édipo reconhece, e, quando finalmente sabe a verdade, ele próprio
escolhe sua punição e a auto-inflige. O elo entre vontade e crime é uma noção cristã que persiste no direito moderno; a lei
penal, por exemplo, considera crime o homicídio involuntário ou por negligência, mas mais brando que o homicídio
premeditado; a mesma coisa no caso dos conceitos jurídicos que atenuam a responsabilidade em caso de loucura; e o século
XIX terminou de escorar a noção de crime na de anormalidade.
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Para os gregos, pouco importa se Héracles mata os filhos num acesso de loucura, ou se Édipo mata o pai acidentalmente: isso
não muda nada, é um crime, eles são culpados; podemos lastimá-los, mas não absolvê-los — e isso não obstante sua punição
fosse atribuição dos deuses, e não dos homens. Nessa óptica, o princípio dos processos do pós-guerra, que julgavam os
homens por suas ações concretas, sem levar em conta o acaso, era justo; mas agiram com muita inabilidade; julgados por
estrangeiros cujos valores negavam (ao mesmo tempo que lhes reconheciam os direitos de vencedor), os alemães podiam
sentir-se aliviados de seu fardo, e portanto inocentes: como aquele que não era julgado considerava quem o era como uma
vítima do azar, absolvia-o e, simultaneamente, absolvia-se a si próprio; e quem mofava numa cadeia inglesa, ou num gulag
russo, fazia a mesma coisa. Mas podia ser diferente? Como, para um homem comum, uma coisa pode ser correta hoje e um
crime amanhã? Os homens precisam ser guiados, não é culpa deles. São questões complexas, e não há respostas simples.
Quem sabe onde está a Lei? Todos devem procurá-la, mas isso é difícil, e é normal curvar-se ao consenso. Nem todos podem
ser legisladores. Foi provavelmente meu encontro com um juiz que me fez refletir sobre tudo isso.
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“Até o último minuto fazemos eles acreditarem que estão indo para retirar as pulgas. Em geral, tudo corre com bastante
tranqüilidade.” Começou a explicar os procedimentos: “Perto daqui temos outros dois crematórios, mas bem maiores: as
câmaras de gás são subterrâneas e recebem até duas mil pessoas. Aqui as câmaras são menores e há duas delas por Krema: é
muito mais prático para os pequenos comboios.” — “Qual é a capacidade máxima?” — “Em termos de asfixia por gás,
praticamente ilimitada; a restrição maior é a capacidade dos fornos. Foram concebidos especialmente para nós pela firma
Topf. Têm oficialmente capacidade para 768 corpos por instalação por um período de vinte e quatro horas. Mas podemos
expandi-la até mil ou mil e quinhentos, se for preciso.” Uma ambulância com uma cruz vermelha estampada estacionou ao
lado do carro de Höss; um médico SS, um guarda-pó sobre o uniforme, veio nos cumprimentar. “Apresento-lhe o
Hauptsturmführer Dr. Mengele”, disse Höss. “Juntou-se a nós há dois meses. É o médico-chefe do campo cigano.” Apertei sua
mão. “É o senhor que está na supervisão hoje?”, perguntou Höss. Mengele balançou a cabeça. Höss voltou-se para mim:
“Quer ver?” — “Não vale a pena”, eu disse. “Já conheço.” — “Mas é muito mais eficaz que o método de Wirth.” — “Eu sei. Já
me explicaram isso no KL Lublin. Eles adotaram seu método.” Como Höss parecia se zangar, perguntei, para ser educado:
“Leva quanto tempo ao todo?” Mengele respondeu com sua voz melodiosa e suave: “O Sonderkommando abre as portas
daqui a meia hora. Mas damos um tempo para que o gás se espalhe. Em princípio, a morte intervém em menos de dez
minutos. Quinze, se estiver úmido.”
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“Que é isso?”, perguntou finalmente. “Parece um zoológico.” — “Quase, meu caro Reichsführer”, cacarejou Frank, polegares
enfiados nos bolsos da túnica. “É, para falar como os vienenses, um Menschengarten, um jardim antropológico que quero
criar aqui, em Cracóvia.” Fez um gesto largo por cima da maquete. “Lembra-se, meu caro Reichsführer, na nossa mocidade,
antes da guerra, daquelas Völkerschauen de Hagenbeck? Com famílias de samoanos, lapões, sudaneses? Teve uma em
Munique, meu pai me levou; o senhor deve ter visto também. Tinha também em Hamburgo, Frankfurt, na Basiléia, era um
grande sucesso.” O Reichsführer coçava o queixo: “Sim, sim, estou me lembrando. Eram exposições ambulantes, não é?” —
“É. Mas esta será permanente, como um zoológico. E não será um entretenimento popular, meu caro Reichsführer, mas um
instrumento pedagógico e científico. Reuniremos espécies de todos os povos extintos ou em vias de extinção na Europa para,
dessa forma, delas preservar um fóssil vivo. Os estudantes alemães virão de ônibus instruir-se aqui! Veja, veja.” Apontou uma
das casas: estava aberta pela metade, em corte; no interior, viam-se bonequinhos sentados em torno de uma mesa com um
castiçal de sete braços. “Por exemplo, escolhi o judeu da Galícia como o mais representativo dos Ostjuden. A casa é típica de
seu habitat imundo; naturalmente, será preciso desinfetar regularmente e submeter os espécimes a controle médico para
não contaminar os visitantes. Para esses judeus, quero que sejam devotos, devotíssimos, e vamos lhes dar um Talmude e os
visitantes poderão vê-los murmurando suas preces ou observar a mulher preparando alimentos kosher. Aqui, são
camponeses poloneses da Mazúria; ali, kolkhozianos bolchevizados; lá, rutênios, e, acolá, ucranianos, veja, com as camisas
bordadas. Esse grande edifício, aqui, abrigará um instituto de pesquisas antropológicas; eu próprio dotarei uma cátedra;
cientistas poderão vir estudar aqui, in loco, esses povos outrora tão numerosos. Será uma oportunidade única para eles.” —
“Fascinante”, murmurou o Reichsführer.
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“E os visitantes comuns?” — “Poderão passear livremente em torno dos cercados, apreciar os espécimes trabalhando no
jardim, batendo os tapetes, estendendo a roupa. Além disso, haverá visitas guiadas e comentadas às casas, o que lhes
permitirá observar o habitat e os costumes.” — “E como manteria a instituição com o passar do tempo? Pois seus espécimes
vão envelhecer, alguns morrerão.” — “É justamente nesse ponto, meu caro Reichsführer, que vou precisar do seu apoio. Para
cada povo, precisaríamos efetivamente de algumas dezenas de espécimes. Eles se casarão entre si e se reproduzirão. Uma
única família por vez será exposta; os outros servirão para substituí-los em caso de doença e para procriar e ensinar às
crianças os costumes, as preces e o resto. Minha idéia era que eles ficassem guardados nas proximidades de um campo, sob
vigilância SS.”
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Eu estava desesperado, era mais difícil fazer aquele homem ouvir a voz da razão do que a Eichmann. Insistiu em me mostrar
as instalações de destruição e explicar tudo: passara os Sonderkommandos de 220 para 860 homens, mas haviam
superestimado a capacidade dos Kremas; não era tanto o procedimento do gás que criava problemas, os fornos é que
estavam sobrecarregados, e, para remediar isso, ele mandara cavar fossos de incineração, pressionando os
Sonderkommandos para executarem o negócio, fazia uma média de seis mil unidades por dia, o que significava que às vezes
alguns tinham que esperar o dia seguinte se estivessem particularmente assoberbados. Era terrível, a fumaça e as labaredas
dos fossos, alimentadas com petróleo e com a gordura dos corpos, deviam ser vistas a quilômetros de distância, perguntei se
não achava aquilo constrangedor: “Ah, as autoridades do Kreiss ficam preocupadas, mas não é problema meu.” A se crer
nisso, nada do que deveria sê-lo o era. Atarantado, pedi para visitar os galpões. O novo setor, planejado como campo de
trânsito para os judeus húngaros, continuava inacabado; milhares de mulheres, já esquálidas e magras não obstante recém-
chegadas, amontoavam-se naqueles estábulos compridos e nauseabundos; muitas não arranjavam lugar e dormiam do lado
de fora, na lama; quando não tínhamos uniformes listrados suficientes para vesti-las, não as deixávamos com as próprias
roupas, mas as fantasiávamos com trapos confiscados no “Canadá”; e eu via mulheres inteiramente nuas, ou vestindo
unicamente uma camisa ultrapassada por duas pernas amarelas e flácidas, às vezes sujas de excrementos. Não surpreende
que o Jägerstab se queixasse! Höss eximia-se vagamente da culpa pelos outros campos, que, segundo ele, recusavam os
contingentes por falta de lugar. Durante todo o dia eu percorria o campo, setor por setor, galpão por galpão; os homens não
estavam em melhor estado que as mulheres. Chequei os registros: ninguém, claro, pensara em respeitar a regra elementar
de todo entreposto, primeiro a entrar, primeiro a sair; enquanto alguns recém-chegados não passavam sequer vinte e quatro
horas no campo antes de serem reenviados, outros mofavam ali por três semanas, definhavam e depois freqüentemente
morriam, o que aumentava ainda mais as perdas.
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Essas considerações pareciam não abalar a boa vontade que o Reichsführer me manifestava. Durante uma de suas
passagens-relâmpago por Berlim, fez-me subir a bordo do seu trem e, após uma cerimônia em que recebi uma nova
condecoração em companhia de uma dezena de outros oficiais, a maioria da Waffen-SS, convidou-me para ir até o seu
gabinete privado para comentar o meu memorial, cujas idéias, segundo ele, eram saudáveis, mas exigiam aprofundamento.
“Por exemplo, a Igreja católica. Se criarmos um imposto sobre o celibato, eles certamente vão exigir uma isenção para o
clero. E se a concedermos, será uma nova vitória para eles, uma nova demonstração de sua força. Logo, penso que uma
precondição para toda evolução positiva, depois da guerra, será equacionar a Kirchenfrage, a questão das duas Igrejas. De
maneira radical, se necessário: esses Pfaf en, esses monjezinhos, são quase piores que judeus. Não acha? Nesse ponto estou
inteiramente de acordo com o Führer: a religião cristã é uma religião judaica, fundada por um rabino judeu, Saul, como
veículo para levar o judaísmo a outro nível, o mais perigoso ao lado do bolchevismo. Eliminar os judeus e preservar os
cristãos seria parar no meio do caminho.” Eu escutava aquilo gravemente, tomando notas. Somente no fim da entrevista o
Reichsführer tocou no meu caso: “Eles não produziram nenhuma prova, creio...” — “Não, meu Reichsführer. Não há
nenhuma.” — “Excelente. Logo vi que isso era uma tolice. Enfim, é melhor eles se convencerem eles mesmos, não acha?”
Acompanhou-me até a porta e apertou minha mão depois que o saudei: “Estou muito satisfeito com seu trabalho,
Obersturmbannführer. O senhor é um oficial com um grande futuro.”
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“Herr Sturmbannführer, essa ordem não é excessivamente rigorosa? Se um Häftling tentar escapar, é normal fuzilá-lo. Mas e
se estiver simplesmente fraco demais para andar?” — “Todos os Häftlinge que estão de partida foram classificados como
aptos ao trabalho e devem poder fazer 50 quilômetros sem problemas”, retorquiu Bär. “Os doentes e inaptos permanecerão
nos campos. Se há doentes nas colunas, devem ser eliminados. Estas ordens são para ser cumpridas.”
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