INTRODUÇÃO Nesse panorama, Ferreira (2015) salienta a dificuldade da família em
O transplante de órgãos no Brasil é regulado pela reconhecer e aceitar o diagnóstico da morte encefálica do paciente, sobretudo Lei n° 9.434/97, que determina a autorização familiar como critério crucial pelo fato de o paciente, assistido por aparelhos, ainda apresentar batimentos para a realização da doação. A Bioética, por outro lado, privilegia a cardíacos, movimentos cardiovasculares e temperatura corporal dentro do vontade que o indivíduo expressou em vida como critério fundamental da esperado. Diante desse cenário, a família permanece com a esperança de doação e transplante. Este trabalho tem o objetivo de analisar o conflito melhora do paciente, quando, na verdade, a morte encefálica é um quadro entre a regulamentação nacional a respeito dos transplantes e o princípio irreversível e permanente (COELHO, BONELLA, 2019). Assim, a angústia do luto, bioético da autonomia. Desse modo, sem pretensão de esgotar o tema, a questões morais, religiosas e sociais, além da falta de informação, colaboram proposta deste trabalho é compreender o conceito de transplante de para que a família do paciente falecido recuse a proposta de doação de órgãos, órgãos, analisar os dados nacionais a respeito do procedimento, discutir mesmo que o de cujus tenha expressado em vida o desejo de ser doador. o conflito entre a autonomia do paciente doador e a vontade da família e, Além do que foi exposto até aqui, o princípio da autonomia não se aplica apenas por fim, entender o papel da bioética diante deste conflito. sobre o paciente que quer ser doador, como também sobre aquele que expressou em vida o não desejo de doar ou aquele a quem não foi oportunizada METODOLOGIA a manifestação do desejo de ser ou não doar. Destarte, não se admite a doação O intuito deste trabalho é analisar o conflito presumida no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo de pessoas não existente entre a norma que rege e regula os transplantes no Brasil e o identificadas, como ilustra Luis Kliemann: princípio da autonomia estudado pela Bioética. Para tanto, utilizou-se a “Desta forma, é impensável realizar-se um transplante “ético” de um corpo não metodologia de revisão bibliográfica, na qual as elucidações de autores identificado, por não se saber qual era a vontade do indivíduo em vida. Deve-se foram combinadas e interpretadas sob uma perspectiva bioética. salientar que este respeito à vontade individual é um dos pontos cardeais da bioética, e é um corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, princípio RESULTADOS E DISCUSSÃO (ou DISCUSSÃO) este que, quer a pessoa esteja viva, quer esteja morta, deve ser respeitado.” Doação e transplante de órgãos no Brasil (KLIEMANN, Luís Tiago Fernandes; CATIARI, Claudimir. TRANSPLANTE DE Em primeiro lugar, é importante delinear no que consiste a doação e o ÓRGÃOS POST MORTEM: ENTRE A BIOÉTICA E O BIODIREITO. PRESENÇA, p. 03). transplante de órgãos. De acordo com KLIEMANN (2006), este procedimento se traduz na retirada, manifestamente autorizada, de O papel da bioética no debate a respeito da doação de órgãos órgãos e tecidos de um corpo humano para a inserção em outro corpo A bioética, por sua vez, debruça-se sobre a questão da autonomia do indivíduo humano, a fim de tratar doença ou patologia. O autor esclarece ainda falecido na disposição de seu corpo, a fim de garantir a integridade e dignidade que a doação e transplante podem ocorrer em vida ou post mortem. da pessoa humana viva ou não. Sendo assim, a bioética se mostra ainda mais A respeito da primeira modalidade, o art. 9° da Lei n° 9.434/97 assegura importante, visto que será responsável por balizar a vontade da família, a o direito da pessoa juridicamente capaz de dispor de seus órgãos e dignidade do paciente falecido e a conduta da equipe médica diante do aceite tecidos, de forma gratuita, a fim de doar para cônjuges ou parentes até 4° ou da recusa. Em outros termos, a bioética é fundamental na doação e grau que tenham o transplante de órgãos o meio terapêutico adequado transplante de órgãos por garantir que o procedimento seja ético do início ao ao tratamento de enfermidades. A segunda modalidade, por sua vez, fim. dependerá do diagnóstico de morte encefálica e autorização escrita dos familiares, nos termos do art. 3° e 4° da mesma lei. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse ínterim, a morte encefálica, de acordo com a Resolução CFM Diante do exposto, a atual Lei dos Transplantes do Brasil impossibilita 2.173/2017, caracteriza-se pela interrupção total e irreversível da que o princípio da autonomia seja interpretado de forma absoluta, uma atividade encefálica do paciente. Gustavo Coelho e Alcino Bonella (2019) vez que a autorização da família do paciente falecido é o critério cerne da ainda esclarecem que a morte encefálica: doação e transplante de órgãos, independente da vontade que o “É estabelecida pela perda definitiva e irreversível das funções do encéfalo por indivíduo tenha expressado em vida. Em consideração a isso, a Bioética causa conhecida, comprovada e capaz de provocar o quadro clínico. O diagnóstico se mostra fundamental nesse conflito, pois compreende o sujeito doador de ME é de certeza absoluta. A determinação da ME deverá ser realizada de como indivíduo de direitos e considera seus atos de vontade expressos forma padronizada, com especificidade de 100% (nenhum falso diagnóstico de em vida. Portanto, diante do empecilho legal, a bioética deve ser vertebral ME). Qualquer dúvida na determinação de ME impossibilita esse diagnóstico.” durante todo o processo de doação e transplante, a fim de garantir a (COELHO, 2019, p. 424) dignidade e integridade dos indivíduos envolvidos, sejam eles vivos ou Nas linhas de Coelho e Bonella (2019), há um baixo número de doares e falecidos. transplante realizado, devido a forte resistência familiar no momento de assentir pela doação de órgãos em pacientes diagnosticados com morte REFERÊNCIAS encefálica. ALMEIDA, Kely Cristina de et al. Doação de órgãos e bioética: O conflito entre a autonomia do doador cadáver e o construindo uma interface. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 56, p. consentimento da família 18-23, 2003. BRASIL. LEI Nº 9.434, DE 4 DE FEVEREIRO DE 1997. A autonomia do indivíduo é um dos princípios basilares da bioética Dispões sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano (ALMEIDA, 2003), este princípio diz respeito à capacidade do ser para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Brasília, humano de se autodeterminar e auto-regular. Em outras palavras, é a DF. Diário Oficial da União, 1997. COELHO, Gustavo Henrique de garantia que toda pessoa tem de que suas faculdades do querer sejam Freitas; BONELLA, Alcino Eduardo. Doação de órgãos e tecidos respeitadas (GOGLIANO, 2000). Apesar de o ordenamento jurídico humanos: a transplantação na Espanha e no Brasil. Revista Bioética, v. brasileiro reconhecer o princípio da autonomia da vontade como um 27, p. 419-429, 2019. FERREIRA, Isabelle Ramalho, et al. Doação e direito da personalidade, a lei que regula o transplante de órgãos dispõe transplante de órgãos na concepção bioética: uma revisão integrativa. em sentido contrário, uma vez que no transplante de órgãos post mortem Revista da Universidade Vale do Rio Verde, 2015, 13.1: 190-203. a vontade da família prevalece sobre a vontade que o indivíduo GOLDIM, J. R. Aspectos Éticos dos Transplantes de Órgãos. UFRGS, expressou em vida, como ilustra o art. 4° da Lei n° 9.434/97: 1997. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/transprt.htm>. Acesso Art. 4o A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para em: 24 maio. 2023.GOGLIANO, Daisy. Autonomia, bioética e direitos da transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge personalidade. Revista de direito sanitário, v. 1, n. 1, p. 107-127, 2000. ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o KLIEMANN, Luís Tiago Fernandes; CATIARI, Claudimir. TRANSPLANTE segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas DE ÓRGÃOS POST MORTEM: ENTRE A BIOÉTICA E O BIODIREITO. presentes à verificação da morte. (BRASIL, 1997).
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