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Hercules Florence
Hercules Florence
Erivam M. Oliveira∗
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O pioneiro da fotografia no Brasil 3
gem nítida, porém em negativo, claros e es- apresentar os trabalhos por ele batiza-
curos invertidos. dos de heliografias. O evento não se re-
Em 1802, Sir Humphrey Davy publicou alizou por ter Niépce deixado claro, de
no Journal of the Royal Institution uma des- antemão, que não pretendia revelar seu
crição do êxito de Thomas Wedgwood, na segredo.”
impressão de silhuetas de folhas e vegetais
sobre couro. Mas Wedgwood não conseguiu Na viagem a Kew, perto de Londres, onde
fixar as imagens, isto é, eliminar o nitrato residia Claude, Joseph Niépce levou várias
de prata que não havia sido transformado em heliografias e as mostrou a Francis Bauer,
prata metálica, pois apesar de bem lavadas e pintor botânico a quem acabara de ser apre-
envernizadas, elas se escureciam totalmente sentado. Bauer reconheceu a importância do
quando expostas à luz. invento e o aconselhou a informar ao Rei
Em 1816, relatam alguns historiadores Jorge IV e a Royal Society sobre seu traba-
que Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) lho.
recobriu um papel com sais de prata e expôs, Com relação a esse episódio envolvendo
durante oito horas, uma dessas matrizes na Niépce e a Royal Society, os historiadores
câmera obscura, obtendo uma fraca imagem, da fotografia relatam fatos, senão contradi-
parcialmente fixada com ácido nítrico. Exis- tórios, pelo menos paradoxais:
tem, porém, dúvidas de que Niépce tivesse
realmente se utilizado do nitrato ou cloreto “Niépce teria deixado na Inglaterra, com
de prata, uma vez que, de acordo com Mário Francis Bauer, vários trabalhos seus, in-
Guidi8 , não foram localizados documentos cluindo a Vista da Janela e, pasme-se, um
que comprovem essa afirmação: manuscrito com o relato de todo o seu
procedimento de trabalho! É no mínimo
“A falta de maiores e mais precisas in- curioso que Niépce tenha perdido a opor-
formações sobre os trabalhos e pesqui- tunidade de oficializar suas descobertas
sas de Joseph Nicéphore Niépce se deve perante uma das mais reputadas socie-
a uma característica, até certo ponto pa- dades científicas da época, por não que-
ranóica, de sua personalidade. Vivia sus- rer revelar os segredos de seu trabalho e,
peitando que todos quisessem lhe roubar alguns dias depois, tivesse deixado esses
o segredo de sua técnica de trabalho. Isto mesmos segredos nas mãos de um quase
ficará claramente evidenciado na sua desconhecido!"9 .
tardia sociedade com Daguerre. Também
em 1828, quando vai à Inglaterra visi- Francis Bauer, no verso da heliografia da
tar o irmão Claude, fracassa uma pos- Vista da Janela, escreveu: “esta é a pri-
sível apresentação perante a Royal So- meira experiência, bem sucedida, do senhor
ciety. Neste encontro, intermediado por Niépce para fixar permanentemente a ima-
um certo Francis Bauer, Niépce deveria gem da natureza, 1827”. A melhor defini-
ção para a dúvida em torno da autenticação,
8
GUIDI. M. De Altamira a Palo Alto. Dissertação
9
de livre docência, ECA/USP, São Paulo, 1991. p.22. GUIDI, M. De Altamira a Palo Alto. Dissertação
de livre docência, ECA/USP, São Paulo, 1991. p. 23.
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feita por Bauer, é do pesquisador e escritor consistiam em expor, na câmera escura, pla-
italiano, Ando Giliardi: “A escrita garante a cas de cobre, recobertas com prata polida
chapa, mas quem garante a escrita?”10 . e sensibilizadas sobre o vapor de iodo, for-
Os únicos trabalhos documentados de mando uma capa de iodeto de prata sensível
Niépce,obtidos por meio da câmara obscura, à luz.
são a Vista da Janela, que mostra os telha- Conta-se que, em uma noite de 1835, Da-
dos da vila vistos de sua casa de campo de guerre guardou uma placa subexposta dentro
Le Gras, na vila de Saint Loup de Varenne, de um armário, onde havia um termômetro
perto de Chálon-sur-Saóne, sua cidade na- que se quebrou. Ao amanhecer, abrindo o
tal. A heliografia Vista da Janela, espelhada armário, ele constatou que a placa havia ad-
com uma imagem latente, somente é visível quirido uma imagem de densidade bastante
com angulação e luz. A obra encontra-se na satisfatória, tornando visível a imagem das
Gernshein Collection da Universidade do Te- placas subexpostas, em todas as áreas atingi-
xas, sendo impossível pensar em sua utiliza- das pela luz. O mercúrio criara um amál-
ção como matriz para cópias. Uma reprodu- gama de grande brilho, formando as áreas
ção foi realizada pela Kodak Research Labo- claras da imagem. Após a revelação, agora
ratory, na década de 50. O outro trabalho é a controlada, Daguerre submetia a placa com
Mesa Posta, cujo original desapareceu mis- a imagem a um banho fixador, para dissol-
teriosamente pouco tempo depois da exposi- ver os halogênios de prata não revelados, for-
ção, ocorrida em 1890 e dele só se conhece mando as áreas escuras da imagem. Inicial-
uma reprodução, feita a partir de um origi- mente foi usado o sal de cozinha (cloreto de
nal sobre vidro, apresentada, naquele ano, à sódio) como elemento fixador, sendo subs-
Sociéte Française de Photographie. tituído, posteriormente, por tiossulfato e hi-
Vários historiadores questionam não só possulfito de sódio. Substituição feita a par-
a data -1826/27, em que Niépce teria con- tir da descoberta de John Herschel, o que ga-
cluído suas experiências de gravação e fixa- rantia maior durabilidade à imagem.
ção da imagem, mas também se teria real- Daguerre garantiu assim a reputação de in-
mente usado sais de prata. ventor da imagem fixa – o daguerreotype.
Por intermédio dos irmãos Chevalier, fa- Foi ajudado mais tarde pelo amigo Jean
mosos óticos de Paris, Niépce entrou em François Dominique Aragô, nas negociações
contato com outro pesquisador, que também para a transferência dos direitos autorais da
buscava obter imagens impressionadas qui- invenção ao Estado francês, por uma pensão
micamente: Louis Jacques Mandé Daguerre vitalícia. No entanto, Hippolyte Bayard tam-
(1787-1851). bém reivindicava ser reconhecido como um
Daguerre, ao perceber as grandes limita- dos pioneiros da nova arte. Trata-se de uma
ções do betume da Judéia, método utilizado reivindicação legítima que provocou, tem-
por Niépce, prosseguiu sozinho nas pesqui- pos depois, o primeiro protesto fotográfico
sas com a prata alógena. Suas experiências da história, pois Bayard simulou suicídio,
10
por não ter sido reconhecido como um dos
GILIARDI, Ando. Storia Sociale della Fotogra-
fia. Feltrinelle, Milano. 1981.- 2a edição – p.24. pioneiros da nova arte que aflorava para o
mundo.
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pesquisas e inventos, entre os quais está a cri- Ele escrevia ou desenhava no vidro para
ação do Papel Inimitável, cuja importância poder imprimir na prancha, utilizando-se da
maior era evitar falsificações em quaisquer luz do Sol, do cloreto de prata ou ouro,
títulos de valor. como se fossem tinta de impressão, che-
gando naturalmente a um processo que se
“O súbdito francez Hercule Florence, aproxima muito ao da fotografia, principal-
que era um scientista notável. Deve- mente quando fez uso da câmera obscura. A
lhe a sciencia as descobertas que fez da matriz era colocada sobre um papel sensibi-
polygraphia, aperfeiçoada depois sob a lizado por cloreto de prata ou ouro, o qual
denominação de pulvographia, do pa- era prensado à luz do Sol, obtendo-se como
pel inimitável, cuja importância maior resultado uma imagem.
era evitar falsificações em quaesquer tí- Na página quarenta e dois, do manuscrito,
tulos de valor, firmados naquelle papel Florence faz referências às suas experiências
muito propriamente denominado inimitá- com a impressão através da luz solar, pro-
vel...”19 cesso que originou a Photographie:“Dei a
essa arte o nome de Photographie, porque
Florence preparou uma chapa de vidro nela a luz desempenha o principal papel.”20
como matriz, escurecida com a fumaça de Personagem importante para o aperfeiço-
um lampião, e aplicou uma camada de goma- amento da fotografia foi o boticário Joaquim
arábica. Após o endurecimento da cola, com Corrêa de Mello, que trabalhava na farmácia
uma agulha, desenhava ou escrevia nessa de Francisco Álvares Machado e Vasconcel-
superfície, retirando a cola endurecida do los, sogro de Florence, e o auxiliava em suas
fundo do vidro. experiências.
Hércules Florence fez anotações sobre
seus inventos e descobertas nos documentos “Nestas pesquisas, com elle collabo-
manuscritos entre 1830 e 1862, em francês, rava Intelligentemente o grande botânico
num volume de 423 páginas, intitulado de e chimico paulista Joaquim Corrêa de
“L’Ami Des Arts Livré à Lui Même ou Re- Mello [...] (p.149)21 .
cherches Et Découvertes Sur Différents Su-
jets Nouveaux”. Em um conjunto de três Florence também reconhece a importância
cadernos pequenos de informações, intitula- de Corrêa de Mello, quando registra, na pá-
dos “Correspondance”, copiou diversas car- gina 103 do caderno Correspondance, a ori-
tas por ele expedidas, em que há referências gem da composição do nome fotografia:“Em
aos inventos. 1832, assaltou-me a idéia de imprimir pela
Com a Poligrafia, tornou-se possível im- 20
FLORENCE, H. L’Ami Des Arts Livré à Lui
primir numa mistura de litografia e gravura Même ou Recherches Et Découvertes Sur Différents
em diversas cores. Foi então que Florence Sujets Nouveaux. Manuscrito, Vila de São Carlos
teve a idéia de utilizar a câmera obscura. (Campinas) – Província de São Paulo, 1830 a 1862.
p.42.
19
CAMPOS, J. Maniçoba Araritaguaba Porto Fe- 21
DUARTE, Raphael. Campinas de Outr’ora
liz. Ottoni Editora, Itu-SP, 2000. 3a edição. (Coisas de meu tempo, por Agricio). São Paulo, Ty-
pographia Andrade & Mello, 1905 (FFLCH-HIS).
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ação da luz sobre o nitrato de prata. O Sr. Hércules Florence afirmou que o cloreto
Correia de Mello (muito notável botânico de ouro produzia melhor efeito no pergami-
brasileiro) e eu demos ao processo o nome nho Holanda, para carta, e em todos os pa-
fotografia.”22 péis de qualidade superior. Como o cloreto
Florence havia manifestado ao botânico escurece em contato com a luz do dia, con-
Joaquim Corrêa de Mello o desejo de encon- vém molhar o papel à noite, ou em câmara
trar uma forma alternativa de impressão por escura. O processo de Florence consistia em
meio da luz do Sol, que não precisasse das emulsionar uma das faces do papel com um
pesadas máquinas de tipografia, e um meio pincel, estender as folhas, para que secas-
simples em que as pessoas pudessem impri- sem durante a noite. Uma vez que os sais
mir. Corrêa de Mello informou a Florence de prata e o ouro são sensíveis à luz, após a
que as substâncias que poderiam atender às secagem eram guardados em pastas bem fe-
suas necessidades seriam os sais de prata, chadas, protegidas.
pois esses sais escureciam em função da luz. Na página quarenta e oito, do manuscrito
Hércules Florence descreveu suas experi- “L’Ami Des Arts Livre a Lui Meme ou Re-
ências com sais de ouro, na página 46, como cherches Et Decouvertes Sur Differents Su-
uma substância sensível à luz. Certamente jets Nouveaux”, Florence fez anotações so-
foi o primeiro na história da fotografia a uti- bre suas pesquisas com urina, sais de prata e
lizar esse método. ouro.
O cloreto de ouro é um material fotossen- Leitor ávido, Florence teve acesso a uma
sível, não tão sensível quanto o sal de prata, publicação de Berzelius sobre uma experi-
mas possibilita um maior controle sobre o ência desenvolvida em 1777, pelo químico
processo de impressão em papéis sensibili- Karl Wilhelm Scheele (cit. p. 3), em que o
zados com cloretos de ouro, apesar do alto amoníaco reduzia os sais de prata não atingi-
custo. dos pela luz. A partir desse momento, ele e
Corrêa de Mello começam a fazer experiên-
[...] “Esse sal deverá servir de tinta cias com a urina, pois eles não dispunham de
para a impressão das provas. É externa- amoníaco na Vila de São Carlos.
mente caro, mas suas propriedades são
tais, que me sinto obrigado a preferi-lo [...] exposta ao sol, uma estante simplifi-
ao nitrato ou cloreto de prata, que é qua- cada, sujeita à inclinação tal que os raios
tro ou seis vezes mais barato. Se não se solares fiquem perpendiculares à super-
tratasse de pôr cloreto de ouro nos tra- fície que se pinta de preto. Nela se aloja
ços, a despesa não seria excessiva, mas a prancha de vidro, com o desenho vi-
é indispensável molhar toda a superfície rado para dentro; coloca-se entre a pran-
do papel sobre o qual se imprime.23 [... :] cha e a estante uma folha de papel sobre
22
o qual há uma camada de cloreto, que
FLORENCE, H. Correspondance.. Manuscrito,
Vila de São Carlos (Campinas) – Província de São
aí se deixa cerca de um quarto de hora.
Paulo, 1830 a 1862. p.103. Sujets Nouveaux. Manuscrito, Vila de São Carlos
23
FLORENCE, H. L’Ami Des Arts Livré à Lui (Campinas) – Província de São Paulo, 1830 a 1862.
Même ou Recherches Et Découvertes Sur Différents p.46.
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Sabe-se que o cloreto de ouro escurece França, em 1838, um ano antes do anúncio
quando exposto aos raios solares. Ora, oficial da descoberta de Daguerre:
estes atravessam o desenho e só escure-
cem o papel sobre que incidem e, dessa [...] “Não passarei em silêncio, um in-
forma, fica impresso o desenho. cidente que começou em 1833. Veio-
Retirada a prova, o desenho mal apa- me à idéia um dia, era 15 de agosto
rece. Levando-o para a escuridão põe-se (1832), que se poderiam fixar as imagens
em bacia em que se junta água e urina. na câmara escura. Realizando a pri-
O desenho torna-se imediatamente preto meira experiência, verifiquei que raios
pela ação da urina; aí se deixa bastante solares passaram diretamente, do tudo
tempo e, ao ser retirado, é posto a secar mal ajustado ao instrumento, e sensi-
na sombra.24 [...] bilizaram o papel embebido de nitrato
de prata. Patenteou-se-me, então, que
Há descrições de outras pesquisas em que
se poderiam imprimir escrita e desenhos
o amoníaco, ou o hidróxido de amônia, fun-
gravados (a jour sur) em vidro coberto de
cionou perfeitamente como agente fixador
negro e goma. Imprimi um anúncio com
para obtenção da imagem por meio da câ-
uma fama a fazer às vezes de cabeçalho,
mera obscura, embora a solução forte clare-
que espalhei pela cidade e que me fez
asse demais os desenhos.
vender muitas mercadorias, porque fazer
Florence tinha plena consciência de que
propaganda desse tipo era novidade para
suas pesquisas poderiam levá-lo ao reconhe-
Campinas. Dei ao processo o nome de
cimento como inventor. Começou a temer o
“Fotografia”. Entre outros desenhos e
sucesso e a fama que a divulgação de suas
autógrafos fotografados, imprimi ao sol
pesquisas poderiam acarretar. Deixou regis-
o retrato de um índio Bororó, que enviei
trado na página três, do caderno “Correspon-
ao Sr. Felix Taunay, que me respondeu
dance”, trecho de carta dirigida a Charles
com a notícia de o ter colocado no ál-
Auguste Taunay. Nela lamenta o rumo que
bum do príncipe de Joinville, por ocasião
a história tomou.
de sua primeira viagem ao Rio de Ja-
Como são revelações importantes para o
neiro. Certo ano em que estive nessa ci-
entendimento das pesquisas e da história
dade, se não me engano, em 1836, falei-
da fotografia, transcreverei um longo trecho
lhe a respeito de tais experiências, mas,
dessa carta, que relata suas invenções e os
quando em 1839 ocorreu a invenção de
contatos para a divulgação de seus estudos.
Daguerre, monologuei: - Se eu tivesse
Temos, além disso, citações ao retrato do ín-
permanecido na Europa, teriam reconhe-
dio Bororó, que teria sido colocado na baga-
cido meu descobrimento. Não mais pen-
gem do Príncipe de Joinville, filho do rei da
semos nisso. Não necessito dizer-lhe que
24
FLORENCE, H. L’Ami Des Arts Livré à Lui o objeto desta carta e falar-lhe de meus
Même ou Recherches Et Découvertes Sur Différents descobrimentos artísticos. Preciso, po-
Sujets Nouveaux. Manuscrito, Vila de São Carlos
rém, pedir-lhe que tenha a paciência de
(Campinas) – Província de São Paulo, 1830 a 1862.
p.48. ler-lhe o conteúdo.
No meio do pequeníssimo número de pes-
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soas capazes de conhecer a Poligrafia, o guma disso. Campinas era o único ponto
Sr. é a primeira a quem dela falei em do mundo em que se imprimiam todas as
1831, sucedendo que a acolheu otima- cores simultaneamente, porquanto o des-
mente. Tanto quanto o Sr. tomou parte cobrimento de Lipmann, em Berlim, que
ativa no desenvolvimento dela. E dela assombrou a Europa, só foi anunciado
o Sr. falou ao Sr Eduardo Pontois, En- em 1848, mas a sombra devia cercar as
carregado de Negócios da França, o qual minhas invenções “25
testemunhou muito interesse por meu in-
vento tendo-lhe eu remetido, por sua so- Insistentemente Hércules Florence regis-
licitação, nesse mesmo ano de 1831, um trou, em seus manuscritos, seu lamento e pe-
memorial em que revelava o inteiro se- sar por não ver seus inventos reconhecidos
gredo da Poligrafia, acompanhado de pelo mundo. Embora tenha pesquisado e tra-
duas provas: uma, de um escrito auto- balhado em vários inventos, ele jamais con-
grafo; outra, de um índio Apiacá. O Sr. seguiu sequer reconhecimento por um único,
Pontois escreveu-me que ia encaminhar mesmo sendo genro do influente Álvares
tais peças ao Ministério do Interior, em Machado, um dos principais políticos bra-
Paris, mas jamais recebi algo que me ci- sileiros e ter travado conhecimento com ou-
entificasse de que elas tiveram esse des- tros personagens importantes do período: Dr.
tino. Carlos Engler26 , o botânico Joaquim Corrêa
Contra minha expectativa, dificuldades de Mello, o Barão de Langsdorff, cônsul da
locais, porque eu trabalhava na provín- Rússia no Brasil; Pierre Plancher, fundador
cia de São Paulo, interromperam o aper- do Jornal do Commércio do Rio de Janeiro e
feiçoamento dessa nova arte. Mal grado o próprio Imperador D. Pedro II. Lamentava
houvesse eu já concretizado os princí- estar vivendo longe da Europa, onde, tinha
pios da escrita e desenhos no papel celu- certeza, veria seus esforços reconhecidos.
lar, da prancha abastecida de tinta para Hércules Florence construiu, de maneira
toda a tiragem, e da impressão simultâ- muito rudimentar, uma câmera obscura, uti-
nea de todas as cores, de 1831 a 1848, lizando a paleta de pintor e a lente de um mo-
durante um período de 17 anos, (a lito- nóculo, e conseguiu uma imagem precária da
grafia inventada em Monique foi conhe- vista da janela de sua casa num papel sensi-
cida em Paris somente 17 anos depois), bilizado com sais de prata, depois de quatro
tive que contentar-me de imprimir para horas de exposição. Essa imagem acabou se
Campinas e cercanias, porque, do ponto perdendo, deteriorando-se como tantas ou-
de vista da nitidez, a Poligrafia não teria tras que ele descreveu:
podido suportar paralelo com a litogra- [...] “Fabriquei muito imperfeitamente
fia, no Rio de Janeiro e na Europa. uma câmara escura, utilizando uma cai-
Durante esse período, procedi a impres-
25
sões policromáticas para o Teatro de Itu, FLORENCE, H. Correspondance. Manuscrito,
Vila de São Carlos (Campinas) – Província de São
para um farmacêutico em São Paulo, Paulo, 1830 a 1862. p.03.
para minha fábrica de chapéus, etc.. 26
Karl von Engler, médico austríaco, ficou conhe-
O público, porém, não entendia coisa al- cido no Brasil como Dr. Carlos Engler.
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O pioneiro da fotografia no Brasil 11
xinha, que cobri com minha paleta em negativo e positivo. Com Florence não foi
cujo orifício introduzi uma lente que per- diferente:
tencera a um óculo. Coloquei o espe-
lho e, a conveniente altura, dentro pus [...] “Tomei um pedaço de caixilho,
um pedaço de papel embebido de fraca escureci-o à fumaça de uma candeia e
dissolução de nitrato de prata. Depositei nele escrevi, com um buril muito fino,
esse aparelho numa cadeira, em sala na- esta palavras: “Empresta-me teus raios,
turalmente escura. O objeto que se repre- ó divino Sol”. Ajeitei, em baixo, um frag-
sentava na câmara escura era uma das mento de papel, preparado como já tive
janelas, com a vidraça fechada: viam- o ensejo de dizer, e o expus ao Sol. Den-
se os caixilhos,o teto duma casa fron- tro de um minuto, as palavras aí se fize-
teira e parte do céu. Aí deixei isso du- ram visibilíssima e com o maior primor
rante quatro horas; em seguida, fui ve- possível. Lavei imediatamente, e durante
rificar e (palavra ilegível por dilacera- muito tempo o papel, para evitar que seu
ção da página nesse ponto), retirado o fundo também escurecesse. Deixei-o ao
papel, nele encontrei a janela fixamente Sol, por uma hora, e o fundo do papel
representada, mas, o que devia mostrar- adquiriu leve cor. Contudo, o que nele
se escuro, estava claro, e o que devia ser estava escrito continuou sempre inteligí-
claro, apresentava-se escuro. Não im- vel, conservando-se assim o papel, por
porta, porém; achar-se-á logo remédio vários dias, até que simples curiosidade
para isso..”27 [...] de saber qual seria a ação do calor numa
débil porção de nitrato de prata, me in-
Hércules passou pelo mesmo problema duzisse a queimá-lo.”28 [...]
outras vezes e, em pouco tempo, teve a idéia
Florence mencionou também uma foto-
de colocar a imagem, obtida em negativo, em
grafia que teria feito da cadeia pública de
contato com outro papel sensibilizado e vol-
Campinas. Havia ali uma sentinela que, na
tar a expor, sob a ação da luz, obtendo uma
fotografia, teria saído negro, quando ele era
imagem na posição correta, ou seja, imagem
branco. Na realidade, Hércules Florence ha-
em positivo. E foi essa mesma idéia que, o
via feito uma imagem em negativo da vista
inglês, Willian Fox-Talbot, teve.
da cadeia pública de Campinas.
Na história da fotografia, outros pesqui-
A intenção de Hércules Florence era en-
sadores encontraram dificuldades enormes
contrar uma forma alternativa de fazer im-
com a questão da inversão de imagens em
pressões por meio de a luz solar; já a dos pes-
27
FLORENCE, H. Correspondance.. Manuscrito, quisadores europeus, era a gravação de ima-
Vila de São Carlos (Campinas) – Província de São gens da natureza por meio da câmera obs-
Paulo, 1830 a 1862. p. 131, verso do caderno no
cura.
1, subordinou ao título “Fixation des images dans la
28
chambre obscure”, na parte final dessa página, bem FLORENCE, H. Correspondance.. Manuscrito,
assim em toda página 132 e no começo do verso desta, Vila de São Carlos (Campinas) – Província de São
com a data do dia 20 (domingo), referindo-se a um ar- Paulo, 1830 a 1862 -“Photographie”, p 132 verso,
tigo escrito em 15 de janeiro de 1833. 133 e 133 verso do caderno no 1.
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12 Erivam Oliveira
Florence faz uma observação na página suavizar-me a sorte e ser útil a socie-
158 de seu manuscrito, sobre as experiências dade. Lá, talvez não me faltassem pes-
da fotografia e fixação da imagem por meio soas que me ouviriam, me adivinhariam
da câmera obscura, sensibilizada com nitrato e me protegeriam. Estou certo de que o
e cloreto de prata e ouro. Em nenhuma des- público, o verdadeiro protetor dos talen-
sas anotações, refere-se às pesquisas realiza- tos, me compensaria de meus sacrifícios.
das, no mesmo período, na Europa, por Ne- Aqui, porém, ninguém vejo a quem possa
céphore Niépce, Louis Jacques Mande Da- comunicar minhas idéias. Os em condi-
guerre e Willian Fox Talbot, ou mesmo relata ções de as entenderem, seriam domina-
qualquer conhecimento de pesquisas anteri- dos por suas próprias idéias, por suas es-
ores com câmera obscura e sais de prata. peculações, pela política, etc.”29 .
Florence denominava-se “um inventor no
exílio” - sentia-se isolado no Brasil. Rela- Existem duas versões quanto ao local em
tou por diversas vezes, em seus manuscritos, que se encontrava Florence, quando desco-
as dificuldades para obter materiais para suas briu que Daguerre obtivera êxito na grava-
pesquisas, a falta de pessoas que pudessem ção da imagem. A primeira versão é do pró-
entender suas idéias. Seus lamentos e angús- prio Hércules Florence, registrada em seus
tias ficam evidentes no texto a seguir: manuscritos: estava no campo, à beira de um
rio, quando um visitante francês lhe deu a
...“Inventei a fotografia; fixei as imagens notícia.
na câmera obscura, inventei a poligrafia, Em longo e comovente texto, registrado
a impressão simultânea de todas as co- no caderno três, Florence narra suas desco-
res, a prancha definitivamente carregada bertas e inventos:
de tinta, os novos sinais estenográficos.
Concebi uma máquina que me parecia “Estávamos em 1839. Encontrava-me no
infalível cujo movimento seria indepen- campo, na morada de um amigo. Sentia-
dente de um agente qualquer e cuja força me alegre, conversando muito com um de
teria alguma importância. Comecei a fa- seus hóspedes, homem afável e instruído.
zer uma coleção de estudos de céus, com Falávamos de diversas coisas, à noite,
novas observações, muitas, aliás, e meus numa viga, sentados ao luar, à margem
descobrimentos estão comigo, sepulta- do rio30 . De repente ele me diz:
dos na sombra, meu talento, minhas vigí- -“Sabe do belo descobrimento que acaba
lias, meus pesares, minhas privações são de fazer-se?”
estéreis para os outros. Não me socor- -“Não” – respondo.
reram as artes peculiares às grandes ci- 29
FLORENCE, H. L’Ami Des Arts Livré à Lui
dades para desenvolver e aperfeiçoar al- Même ou Recherches Et Découvertes Sur Différents
guns de meus descobrimentos, para que Sujets Nouveaux. Manuscrito, Vila de São Carlos
eu me cientificasse da exatidão de al- (Campinas) – Província de São Paulo, 1830 a 1862.
gumas de minhas idéias. Estou certo (fim da p.160 e grande parte da p.160 verso).
30
Rio Burú, na cidade de Indaiatuba, divisa com o
de que, se estivesse em Paris, um único município de Salto.
de meus descobrimentos poderia, talvez
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O pioneiro da fotografia no Brasil 13
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14 Erivam Oliveira
toda natureza e não ter efetivamente mé- Essa descoberta lhe havia custado mui-
rito de sacrificar-se para qualquer coisa tas noites mal dormidas e dias de exaus-
que seja útil aos homens”31 . tivas experiências. Aconselhei-o a di-
vulgar a sua invenção, única no mundo,
A partir desse momento, Florence aban- pois até essa data a maneira de fixar
donou suas pesquisas com câmera obscura e uma imagem era deficiente e inadequada.
sais de prata e escreveu em uma cópia do di- Florence, modesto, deixava o tempo cor-
ploma maçônico, conseguido através do pro- rer, obrigando-me também a guardar seu
cesso da câmera obscura sensibilizada com segredo.”32
nitrato de prata, que outros tiveram mais
sorte. Fez a divulgação de suas pesquisas por Segundo a historiadora, o Dr. Carlos En-
meio do jornal O Pharol Paulistano e Jornal gler descreve o episódio em que Florence
do Commércio do Rio de Janeiro, sem obter toma conhecimento da descoberta de Da-
êxito e o reconhecimento esperado. guerre, quando estava em sua residência
A segunda versão é narrada pela histori- acompanhado de amigos.
adora Chloé Engler de Almeida (bisneta de
Carlos Engler), a qual afirma que Florence “Todas as tardes, como velho costume,
mantinha algumas amizades na cidade de Itu, nós nos sentávamos à porta de minha
e que se reuniam freqüentemente. O amigo casa – o Hércules, eu e mais uma meia
mais próximo era o médico austríaco Karl dúzia de amigos. A prosa era geral;
von Engler, que possuía uma clínica de saúde pouca maledicência. Quase sempre dis-
no sítio Emburu, na cidade de Indaiatuba, corríamos sobre política, pois as idéias
equipada com uma sala de cirurgia e labora- liberais dos brasileiros tomavam vulto.
tório de química, além de uma vasta e atuali- Numa das vezes, o Hércules trouxe con-
zada biblioteca. É conhecido no Brasil como sigo uns compatriotas, e a prosa discor-
Dr. Carlos Engler. reu toda em francês. Esses franceses es-
tavam de passagem por Itu, rumo a Mato
“Hércules Florence é dos meus mais ca- Grosso. O Certain33 , que era nosso com-
ros amigos. A amizade que nos é feita de panheiro de prosa, ainda não havia che-
confiança e compreensão mútuas. Flo- gado.
rence é gênio, mas muito modesto. Ho- De súbito, aparece ele, nervoso, quase a
mem de vasta cultura, está constante- gritar: “Boa tarde! Vocês já souberam
mente à procura de novos conhecimen- 32
ALMEIDA, Chloé Engler. Dos Bosques de Vi-
tos. De uma feita, veio me contar, muito ena às Matas Brasileiras. Mimeografado, São Paulo,
em segredo, que havia descoberto uma 1978. p.147.
33
maneira de fixar a imagem sobre chapa FILHO, Francisco Nardy. A Cidade de Ytu.. Ot-
de aço polido. toni&Cia, São Paulo, 2000. v.I, 2a edição, p.152. Au-
gusto Certain, Estimado e prestante cidadão francez,
31 que residiu por muitos annos em Ytu, onde constituiu
FLORENCE, H. Correspondance.. Manuscrito,
Vila de São Carlos (Campinas) – Província de São família, vindo ahi fallecer rodeado da estima e res-
Paulo, 830 a 1862 - páginas 62, 63 e 64 do caderno peito de todos.
de número 3.
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O pioneiro da fotografia no Brasil 15
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16 Erivam Oliveira
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O pioneiro da fotografia no Brasil 17
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