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BRASIL
Ana Virginia Pinheiro, CRB-7/2761*
*
Bibliotecária da Fundação Biblioteca Nacional e Professora da Escola de Biblioteconomia da UNIRIO. Mestre
em Administração Pública. E-mail anapaz@rio.matrix.com.br ou anapaz@bn.br
Para compreender a história do livro raro no Brasil há que lançar
mão de um meio indireto de comunicação, porque tão difícil quanto
explicar porque os livros impressos no século XV não tinham página de
rosto e iniciavam com um "Aqui começa...", é quase impossível sintetizar
uma história de tantas faces e meandros. Daí, a opção, não pela lógica
da identidade, mas, pela lógica da analogia, elegendo arbitrariamente
um símbolo-tipológico que permitirá entrever um sentido, que se
pretende unívoco, da história proposta – o labirinto, sem identificar
totalmente essa história, porque compreendê-la através de uma
semelhança é vê-la por uma impressão pessoal, sempre particular, que
dilui as diferenças e constrói um sistema artificial, invisível (cf. Alleau,
1976, p. 90-92).
As simbólicas do labirinto e do invisível adequam-se,
perfeitamente, à realidade do livro raro no Brasil. A realidade aqui
referida é aquela que reflete as condições de existência efetiva de livros
considerados raros, preciosos, únicos, em um Brasil onde, sob os
aspectos político e administrativo, biblioteca e o que é "socialmente
imprescindível" (Ortega y Gasset, apud HORTA, 1998) ocupam lados
opostos da mesma escala de valores.
A história do livro raro no Brasil é um labirinto, como o Lope-
rohunit, o palácio do faraó egípcio Amenemés III, com suas 12 grandes
salas e 3.000 câmaras idênticas, 1.500 das quais eram subterrâneas e
serviam como sepulturas de nobres e sagrados (Lello, v. 2, p. 4). O livro
raro, no Brasil, distribui-se em salas e sub-salas, algumas tão
profundamente “subterrâneas”, como cofres tumulares de preciosidades,
de tal modo que parece impossível a apropriação de seu conteúdo.
A multidão de livros raros a espera de um leitor leva à imagem do
Labirinto cretense, de Cnossos (Ariadne’s, 2000), o palácio-prisão do
monstro Minotauro, com corredores intercomunicantes e às escuras. O
herói Teseu serviu-se de um fio fornecido por Ariadne que, esticado no
chão do Labirinto, como uma trilha, assinalou o caminho da volta, após
matar o monstro com corpo de homem e cabeça de touro, que se
alimentava de carne humana; para iluminar seus passos, Teseu
recebeu de Dioniso uma coroa luminosa (Spalding, 1965, p. 28, 149,
246-248). O leitor do livro raro, no entanto, não dispõe do fio de Ariadne
– os catálogos que lhe garantiriam acesso às coleções especiais, são
incompletos, parciais ou inexistentes, e a “iluminação” de seus passos
na biblioteca depende, quase que exclusivamente, da erudição do
curador, que nem sempre tem o domínio de seu conteúdo.
A biblioteca de livros raros é um engenho que desafia a argúcia do
leitor potencial, que vaga sem rumo, porque não dispõe de indicadores
de coleções, de guias de instituições de guarda. Desse modo, a
biblioteca de livros raros configura-se como entidade invisível. Invisível,
aqui, não é aquilo que, pela sua pequenez, natureza ou distância a que
se acha, escapa ao sentido da vista; mas, sim, o que se esconde aos
olhos de quem não dispõe dos instrumentos necessários para “ver" –
muitas vezes, sabe-se que o livro raro está ou só poderia estar em
determinada biblioteca, mas, entre saber da sua presença e poder
alcançá-lo há um considerável "tatear no escuro"
O labirinto e o invisível constituem, pois, associados, o impasse –
a expressão do sentimento do pesquisador, prostrado ante a perspectiva
de acervos de pesquisa, com pouca ou nenhuma informação sobre
eles.
Se chegar ao livro raro, à edição procurada, ao exemplar único
conhecido, é uma tarefa que requer a obstinação de um arqueólogo e a
paciência de um copista beneditino, em um labirinto de múltiplas
direções e poucas possibilidades de escolha – certas, erradas e
duvidosas – tocar o livro raro é um privilégio de implicações que ainda
estão por ser descobertas.
A literatura específica assinala que "a missão essencial do labirinto
era defender o centro, quer dizer, o acesso iniciático à sacralidade, à
imortalidade e à realidade absoluta" (Diel, 1952, apud Cirlot, 1984, p.
330). Como labirinto, a biblioteca de livros raros pretende constituir-se
como sistema de defesa "de alguma coisa preciosa ou sagrada" (cf.
Chevalier & Gheerbrant, 1998, p. 530-531) contra o "mau" usuário,
contra o usuário "desconhecido", contra circunstâncias de perigo mal
definidas. Há, nesse contexto, uma certeza fundamental que deve ser
considerada: os livros morrem – como matéria orgânica, têm tempo de
vida útil e em nossas bibliotecas seladas, chaveadas, os livros morrem
nas prateleiras, em caixotes, em depósitos, em cofres... enrugam,
ressecam, esmaecem, viram fragmentos pela ação do bicho, da
umidade, do tempo, da falta de uso.
Como um lugar sagrado, um cofre de tesouros, a biblioteca de
livros raros é o lugar onde o livro está "preso"; onde, se é permitido vê-
lo, não é permitido tocá-lo. No entanto, é o toque que permite a visão
antecipadora. Ver o livro raro "com os olhos" não viabiliza o sentido
completo de seu significado. Ver o livro raro "pelo toque" leva à
experimentação, quase esotérica, do infinito, de imensas possibilidades
que dependem do instinto do leitor para transformar-se em inteligência.
Aliás, o livro raro não é só para ler – é para ser analisado, como
monumento e como documento, em matéria e espírito; isto é, em
continente e conteúdo, em suporte e informação. Cada livro representa
todo o mundo. E cada biblioteca é um "livro único", que precisa ser, por
sua vez, desestruturada, para revelar as condições de sua formação (cf.
Le Goff, 1998, p. 54).
De modo genérico, o labirinto é o "mundo do mal" (Peyronie, 1997,
p. 558). Se assim for interpretado, então, a biblioteca de livros raros
como síntese do labirinto seria o inferno. Talvez, por isso,
inconscientemente, o livro raro só seja permitido ao "iniciado", aquele
capaz de "interpretar o conhecimento do labirinto" (Eliade, 1954, apud
Cirlot, 1984, p. 330), dando testemunho da graça divina, pela
experiência criadora. Mas, quem é esse leitor? Quem é esse usuário?
Como as relações de leitura na história do livro raro ainda estão por
escrever e normatizar, esse usuário, com raríssimas exceções, é um
usuário potencial, um indivíduo que está por vir-a-ser leitor, porque é,
apenas, aquele que consulta itens da coleção – e há enorme distância
entre ler e consultar. A bem da verdade, a leitura em um espaço que é
equivalente ao caos requer singela obsessão e crédito no acaso.
A obsessão e o acaso, como rotina na vida do leitor ou usuário de
livros raros, favorecem à serendipidade – um fenômeno que ocorre
quando a mente e os olhos alcançaram um nível determinado de
evolução que permite "ver". O leitor, o usuário de livros raros e
preciosos é aquele que, necessariamente, deve estar preparado para
"ver", mesmo sem o fio redentor, porque “o acaso favorece apenas a
mente preparada” (Pasteur, apud Consolaro, 2000).
O termo serendípite ou serendipidade foi proposto pelo escritor
Horace Walpole, em uma carta de 1754, ao amigo Sir Horace Mann, em
que narrava seu fascínio pelo conto de fadas "Os três príncipes de
Serendip"*, onde os personagens descobriam, acidentalmente, o que
não estavam procurando (Lacaz-Ruiz, 2000) – serendipidade é a
descoberta pelo acaso; é, em bom português, "atirar no que viu e acertar
*
"Três príncipes foram chamados pelo pai no leito de morte. O rei queria deixar todo seu vasto reinado para os
filhos e também dizer que havia um grande tesouro muito próximo da superfície. Logo após a morte do pai, os
três filhos mobilizaram todos os homens do reinado para cavar e revolver a terra. Após vários anos de trabalho,
nenhum tesouro foi encontrado, mas a terra foi tão revolvida, que as colheitas foram as maiores de toda a
história do reino" (Lacaz-Ruiz, 2000).
no que não viu" e, ainda assim, fazer uma instigante descoberta. Vale
ratificar que as pessoas serendipitosas têm a percepção apurada o
bastante para "ver", de modo que o achado ganhe corpo de descoberta.
No entanto, "antes de conhecer o caminho, é preciso saber o que
procurar; a noção de fim precede a escolha dos meios a utilizar para
alcançá-los corretamente" (Fedeli, 2000), mesmo que esses meios
estejam sugeridos, apenas, na própria existência da biblioteca. Nesse
contexto, aplica-se à biblioteca de livros raros, também, a expressão
"pentimento", cunhada por Lilian Hellman: a biblioteca seria como uma
obra de arte pintada sobre uma tela antiga, que por sua vez está pintada
sobre outra tela e assim sucessivamente. Descobrir a primeira pintura
ou interpretar todas as pinturas que se sobrepõem, pressupõe
serendipidade, fruto da singela obsessão e do crédito no acaso. Assim,
o leitor-usuário de livros raros deve ter dois talentos: serendipidade e
capacidade para "ler" o pentimento. Acima de tudo, deve ter a paixão da
busca, como no poema de Drummond de Andrade,
CARVALHO, Katia et. al. Travessia das letras. Rio de Janeiro : Casa
da Palavra, 1999. 145 p. (Coleção Bibliófilos).