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Carlos Biasotti

O Erro. O Erro Judiciário.


O Erro na Literatura (Lapsos e Enganos)

2021
São Paulo, Brasil
O Autor

Carlos Biasotti foi advogado criminalista, presidente da


Acrimesp (Associação dos Advogados Criminalistas do Estado
de São Paulo) e membro efetivo de diversas entidades (OAB,
AASP, IASP, ADESG, UBE, IBCCrim, Sociedade Brasileira de
Criminologia, Associação Americana de Juristas, Academia
Brasileira de Direito Criminal, Academia Brasileira de Arte,
Cultura e História, etc.).

Premiado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo, no


concurso O Melhor Arrazoado Forense, realizado em 1982, é autor
de Lições Práticas de Processo Penal, O Crime da Pedra, Tributo aos
Advogados Criminalistas, Advocacia Criminal (Teoria e Prática), além
de numerosos artigos jurídicos publicados em jornais e revistas.

Juiz do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo


(nomeado pelo critério do quinto constitucional, classe dos
advogados), desde 30.8.1996, foi promovido, por merecimento, em
14.4.2004, ao cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça.

Condecorações e títulos honorícos: Colar do Mérito


Judiciário (instituído e conferido pelo Poder Judiciário do Estado
de São Paulo); medalha cívica da Ordem dos Nobres Cavaleiros de
São Paulo; medalha cultural “ Brasil 500 anos”; medalha “ Prof. Dr.
Antonio Chaves”, etc.
O Erro. O Erro Judiciário.
O Erro na Literatura (Lapsos e Enganos)
Carlos Biasotti

O Erro. O Erro Judiciário.


O Erro na Literatura (Lapsos e Enganos)

2021
São Paulo, Brasil
O Erro. O Erro Judiciário.
O Erro na Literatura (Lapsos e Enganos)

I. Que os homens geralmente nos enganamos e


caímos em faltas, e estas muita vez graves, é verdade
que passa por axioma. Adverte-nos, com efeito, a
conhecida parêmia: “Errare humanum est”!

“O cair o homem vai de ser homem, e todos somos


homens”, sentenciou o clássico Manuel Bernardes
(Nova Floresta, 1711, t. IV, p. 477).

Mas o homem por que erra?

A esta embaraçosa pergunta deu elegante


resposta o profundo Antônio Vieira: “Os erros e as
ignorâncias, é certo que são muito mais que as ciências,
porque para saber e acertar não há mais que um
caminho, e para errar infinitos”.(1)

Assim, dado que o erro seja partilha comum


dos mortais, console-nos ao menos a esperança de
podermos repetir com aquele insigne pregador:

(1) Sermões, 1959, t. VIII, p. 209; Lello & Irmão, Editores.


8

“(…) protesto que será o erro das palavras e do


entendimento, mas nunca do coração”.(2)

À derradeira, nisto de erros, sirva-nos de regra


de moral prática o seguinte lance oratório de
Cícero, da mais alta filosofia: “Todos estamos sujeitos
a errar, mas só o estulto se obstina no erro”.(3)

II. Erro – que é a “a não-conformidade do


entendimento com a realidade; juízo falso acerca de
alguma coisa”(4) – só não comete quem cruza os
braços. Que mérito, porém, terá aquele que nunca
errou porque jamais tentou acertar?!

Em suma: ainda que puséssemos timbre em


evitá-lo, todos lá um dia (e talvez muitas vezes ao dia)
haveremos de conjugar o verbo errar. Sim, porque,
segundo aquele varão de raro espírito que foi Mário
Barreto, “o bom peca sete vezes no dia”(5).

(2) Cartas, 1971, t. I, p. 157; Imprensa Nacional; Lisboa.


(3) “Cujusvis hominis est errare, nullius nisi insipientis in errore
perseverare” (Philip., XII, 2,5).
(4) C.J. de Castro Nery, Filosofia, 1932, p. 83; Companhia Editora
Nacional; São Paulo.
(5) Através do Dicionário e da Gramática, 1927, p. 185; Livraria
Quaresma; Rio de Janeiro.
9

Onde o erro sobretudo faz sentir seus funestos


efeitos é no vasto campo do Direito Penal: são aí
bem visíveis as marcas da falibilidade humana!

Em verdade, o capítulo do “erro judiciário” foi


dos que mais enlutaram a História e ofenderam o
sentimento comum da Humanidade.

Além do “processo de Jesus” – “o maior erro


judiciário da História”(6) –, no rol dos casos judiciais
que retratam a precariedade dos juízos humanos
figuram, por força, os de Sócrates, Galileu,
Alfredo Dreyfus, Mota Coqueiro(7), dos Irmãos
Naves, do “Padeirinho de Veneza”(8), etc.

(6) Pedro Paulo Filho, Grandes Advogados, Grandes Julgamentos, 3a.


ed., pp. 599-603; Millennium Editora. Trata-se de obra, porventura a
mais bela e completa que entre nós ainda se escreveu a respeito dos “casos
do Júri”!
(7) Consta que, tendo chegado à notícia do Imperador Pedro II que
Mota Coqueiro, morto por enforcamento, havia sido vítima de “erro
judiciário”, no mesmo ponto mandou quebrar a pena com que lhe
denegara pedido de clemência e “nunca mais quis assinar nenhuma
condenação” (Raimundo Menezes, Crimes e Criminosos Célebres, 2a. ed.,
p. 123).
(8) “O Caso do Padeirinho de Veneza” refere-o, em livro valioso assim
pela substância como pela forma, o eminente Des. João Martins de
Oliveira, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
10

Tais erros, a Humanidade (muito a seu pesar!)


nunca poderá reparar. E daqui vem a aterradora
desconfiança de que possa alguém tornar a cometê-
-los, posto que involuntariamente!

Mílton Campos, jurista exímio, discorreu


gravemente do assunto:
“Errar é humano, e seria crueldade exigir do juiz
que acertasse sempre. O erro é um pressuposto da
organização judiciária que, por isso mesmo, instituiu sobre
a instância do julgamento a instância da revisão” (apud
João Martins de Oliveira, Revisão Criminal, 1a. ed.,
p. 45; Sugestões Literárias S.A.).

“Em 1507, pela madrugada, foi assassinado um homem em Veneza e seu


cadáver estava na rua. Passando pelo local, o moço Pedro Faciol, modesto
padeiro, viu o corpo e ficou a admirar o punhal manchado de sangue. A
arma era rica. Apoderou-se dela e ia retirar-se, quando soldados que se
aproximavam e o viram inclinado junto ao cadáver o perseguiram e
prenderam, encontrando o instrumento do crime em seu poder. À vista do
flagrante, foi submetido a tormento, confessou o assassinato e foi enforcado
a 22 de março de 1507. Descobriu-se, depois, o verdadeiro autor do crime.
Diz-se que, por causa deste erro, a administração local mandou escrever,
em tinta vermelha, na parede da sala dos julgamentos, a frase:
Ricordatevi del povero fornaio (Recordai-vos do pobre padeiro), e
estas palavras eram repetidas, em voz alta, por um funcionário, antes dos
pronunciamentos dos julgadores” (Revisão Criminal, 1a. ed., p. 45;
Sugestões Literárias S.A.; São Paulo). Ainda: Giuseppe Fumagalli,
Chi l’ha detto?, 1995, p. 170; Editore Ulrico Hoepli; Milano.
11

Donde a inferência lógica imediata de que


também o juiz pode cair em erro. E, remetendo o
disco mais alto, o próprio “Supremo Tribunal Federal
não está imune às críticas. Como dizia Nélson Hungria,
ele tem apenas o privilégio de errar por último” (Heleno
Cláudio Fragoso, Advocacia da Liberdade, 1984,
p. 199).(9)

A dar-se o caso, todavia, que o juiz, por não


desmentir sua condição humana, perpetre algum
erro ou equívoco, então lhe não esqueça aquilo do
incomparável Rui:

(9) Esta mesma ideia já havia enunciado Rui, da tribuna do Senado


Federal, em 29.12.1914:
“Em todas as organizações políticas ou judiciais há sempre uma autoridade
extrema para errar em último lugar.
Alguém, Senhores, nas cousas deste mundo, se há de admitir o direito de
errar por último.
Acaso V. Exas. poderiam convir nessa infalibilidade que agora se arroga
de poder qualquer desses ramos da administração pública, o Legislativo ou o
Executivo, dizer quando erra e quando acerta o Supremo Tribunal Federal?
O Supremo Tribunal Federal, Senhores, não sendo infalível, pode errar,
mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de
dizer alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade”
(Obras Completas, vol. XLI, t. III, p. 259).
12

“(…) a toga do magistrado não se deslustra,


retratando-se dos seus despachos e sentenças, antes se
relustra, desdizendo-se do sentenciado ou resolvido, quando
se lhe antolha claro o engano, em que laborava, ou
a injustiça, que cometeu” (Obras Completas, vol. XLV,
t. IV, p. 205).

Ainda:
“Melhor será que a sentença não erre. Mas, se cair
em erro, o pior é que se não corrija” (Oração aos Moços,
1a. ed., p. 46).

III. Do mesmo passo que os sacerdotes de Têmis


(ou Juízes, ordinariamente falando), não estão
imunes os literatos a equívocos e lapsos; pois,
consoante a doutrina de Horácio, às vezes “até
o bom Homero toscaneja”: “quandoque bonus dormitat
Homerus” (Arte Poética, v. 359).

O “lapsus calami” (o lapso da pena) tem


frustrado autores do mais distinto merecimento, os
que escreveram com pena de ouro. Eis pequena
amostra de suas inadvertências:
13

a) O genial dramaturgo inglês William


Shakespeare(10) – o que “mais criou depois de Deus”,
na frase feliz de um escritor – também recolheu seu
tributo à condição humana:

“É comum fazer-se carga em Shakespeare, em cuja


conta se debita, como erro, como anacronismo, o ter dito,
em Júlio César (ato II), que o relógio batia horas, num
tempo em que, afirmam críticos, ainda não havia
relógios” (Pedro A. Pinto, in Revista Filológica, 1955,
nº 2, p. 15).

De feito, na referida tragédia, “um relógio bate


horas”: “três pancadas” (cf. William Shakespeare,
Júlio César, ato II, cena I, p. 47; trad. Carlos
Alberto Nunes; Edições Melhoramentos).

Ora, “os relógios chamados horários e de repetição


são os que dão ou repetem as horas, as meias horas e os
quartos. A fabricação dos relógios remonta ao fim do
século XV” (cf. Lello Universal, 1a. ed., vol. IV; v.
relógio).

(10) Hamlet é sua obra-prima e Otelo, “uma das poucas criações humanas
— quatro ou cinco — que merecem o qualificativo de perfeitas” (cf. Obras
Completas de Shakespeare, vols. XIII e XIV; trad. Carlos Alberto
Nunes; Edições Melhoramentos; São Paulo).
14

O relógio de repetição não podia, portanto, ser


contemporâneo do grande Júlio César, morto nos
idos de março do ano 44 a.C.!

b) O próprio Rui Barbosa, com ser “o primeiro


talento verbal da raça”(11), não pôde libertar-se das
insídias do erro, consequência da que denominou
“eterna falibilidade humana, cujos estigmas ninguém
evita neste mundo” (Réplica, nº 10).

Assim é que, em sua monumental Réplica,


exarou: “Minha divisa na vida pública tem sido aquilo
do evangelista: Per infamiam et bonam famam (nº 24).

É o conhecido texto de São Paulo, que, no


entanto, não foi “evangelista” (“stricto sensu”), mas
“apóstolo”(12).

(11) Sílvio Romero, História da Literatura Brasileira, 1949, t. V,


p. 448.
(12) 2a. Epístola aos Coríntios, cap. VI., v. 8: “por infâmia, e por boa fama”.
Ao apontar lapsos nos escritos de Rui, nem por sombras nos
moveu o intuito de profanar a memória do “Maior dos Brasileiros”, cuja
morte os jornais da época noticiaram com pregão extraordinário:
“Apagou-se o Sol!” (cf. Gazeta de Notícias, de 2 de março de 1923; fig. 1
do Anexo).
Quisemos apenas significar que até o Sol tem manchas, como
afirmam os astrônomos!
15

c) A pena da “Águia de Haia” deu curso também


a este lapso:
“De tudo quanto no mundo tenho visto, o resumo se
abrange nestas cinco palavras:

Não há justiça onde não haja Deus” (Oração aos


Moços, 1a. ed., p. 46).

O que ensejou a Adriano da Gama Kury a


seguinte nota:

“Cinco palavras: Não há justiça onde não haja Deus.


A propósito deste curioso engano, Rui havia escrito,
realmente, cinco palavras: Não há justiça sem Deus. Ao
substituir a frase, esqueceu-lhe recontar as palavras,
já agora em número de sete” (Oração aos Moços, 1956,
p. 75; Casa de Rui Barbosa).

d) Em seu livro “Uma Vida” refere Plínio


Doyle dois exemplos de enganos, que vêm aqui a
lanço:

1. “Flor de Sangue”, de Valentim Magalhães.


16

“Esse romance foi publicado em 1897, pela


Laemmert & Cia., trazendo um dado que parece
incabível num romance: uma errata. Mas lá está, à
página 385: À página 285, 4a. linha, em vez de estourar
os miolos, leia-se cortar o pescoço” (p. 65);

2. “(…) ouvi, não sei de quem, quando se falava de


A Condessa Hermínia, peça teatral do general Dantas
Barreto, que a mesma terminava com a frase: Quando a
Condessa acordou, estava morta” (Plínio Doyle, Uma
Vida, 1999, p. 76; Casa da Palavra).

Ainda:

3. “Ele passeava pelo jardim, com as mãos às costas,


lendo tranquilamente o jornal” (Ponson du Terrail;
apud Folco Masucci, O Livro que Diverte, 1953,
p. 261; Edições Leia; São Paulo).

4. De Camilo Castelo Branco, no romance A


Filha do Doutor Negro (3a. ed., p. 262, da Parceria
Antônio Maria Pereira): “Antônio da Silveira, o justo, o
honrado, o cristão, chegou aos 70 anos com a alma no
pleno fulgor de suas faculdades, e o corpo sadio e vigoroso,
17

excetuando o braço que ele pendurou entre os troféus da


liberdade em Portugal. Morreu em 1860 na casa onde
nascera, porque seu sobrinho, remordido pela consciência
da feia ação, um dia se ajoelhou aos pés do velho coronel,
suplicando-lhe que entrasse no seio da sua família. O
ancião ergueu nos braços o sobrinho…” (Agrippino
Grieco, Pérolas, 1937, p. 16; Cia. Brasil Editora
S.A.).

5. “O Sr. Ferreira da Rosa, no Por Amor de


Portugal, alude a um trecho apologético que Castilho
(Antônio Feliciano de Castilho) compôs à vista do
túmulo de D. Afonso Henriques.

Esse à vista, em se tratando de um escritor cego,


é bem um murro no olho de todos os cidadãos de bom-
-senso…” (Idem, ibidem, p. 49).

6. “Nas Ideias de Jeca Tatu, o Sr. Monteiro


Lobato vê a caveira de Spencer estremecer na cova, coisa
difícil, uma vez que o cadáver do grande filósofo britânico
foi incinerado…” (Idem, ibidem, p. 51).
18

IV. O deslize de linguagem (“lapsus linguae”) ocorre


com frequência entre os oradores.

A. Almeida Jr., professor emérito da Faculdade


de Direito das Arcadas, relata o seguinte episódio:
“Há muitos anos, um de nós assistiu, no interior
do Estado de São Paulo, ao enterro de um chefe
político. Homem voluntarioso, violento, temido tanto pelos
companheiros como pelos adversários, pareceu que sua
morte, ainda que sentida, produziu alívio. Caso nítido de
ambivalência! À beira do túmulo, um dos oradores, ao
lamentar o fato, referiu-se a este faustoso acontecimento.
Era indubitável que ele tinha querido dizer (como
depois declarou) infausto” (Lições de Medicina Legal,
20a. ed., p. 491; Companhia Editora Nacional).

Há quem jure de pés juntos que Fernando


Costa, prócer político e ministro da agricultura
sob o governo de Getúlio Vargas, em discurso
inaugural da Feira de Bovinos, Equinos e Muares, que
tradicionalmente se realizava no Parque da Água
Branca, na Capital paulista, ergueu a voz em
inflamado exórdio:

– “A uma exposição de animais como esta eu não


poderia faltar”!
19

Não é mister dizer que o frêmito da gargalhada


do público ressoou por todos os cantos (os estábulos
e as cavalariças inclusive).

Outro caso de “lapsus linguae” foi Paulo


Bomfim, O Príncipe dos Poetas Brasileiros, quem nos
contou.

Era por 1983. Em visita oficial à Comarca


de Jacareí para a instalação de Vara Criminal, o
Presidente do Tribunal de Justiça – Desembargador
Francisco Thomaz de Carvalho Filho (a quem
o Poeta acompanhava na condição de Chefe do
Cerimonial) – foi recepcionado, conforme o estilo,
pelas autoridades locais e representantes de entidades
de classe. Houve discursos de pompa e circunstância.

O presidente da Subseção da Ordem dos


Advogados do Brasil, após desenrolar o pendão da
eloquência, passou à peroração e rematou com o
seguinte rasgo de efeito:

“Senhor Presidente, o povo da generosa cidade de


Jacareí recebe V. Exa. de pernas abertas!”. (Quisera
dizer, é claro, braços abertos).

Um tiro de canhão, no silêncio da noite, não


teria causado no ânimo dos presentes maior abalo e
confusão!
20

V. O erro tipográfico (“lapsus typographicus”) não


pode ser excluído da resenha geral dos enganos e
senões que, as mais das vezes, metem em angústia e
desespero aos que assentaram praça na república das
letras(13).

Exemplos em barda poderíamos arrolar de


gralhas tipográficas ou erros de impressão. Damos
aqui os mais frisantes e notáveis:

(13) Camilo Castelo Branco, em prefácio à 2a. edição de “Agulha em


Palheiro”, fulminou anátema contra os que haviam entendido na
impressão de seu livro:
“A primeira edição deste romance saiu de uma tipografia do Rio de
Janeiro. Parece que houve propósito de desdourar os prelos brasileiros! Poderá
parecer também que se intentou desdourar o autor; mas semelhante suspeita não
vingaria, atendendo a que não é coisa verossímil alguém escrever assim”.
Também o nosso Rui não teve mão em si que, a propósito de erros
tipográficos, não discreteasse por este feitio:
“(…) nem sempre será fácil discernir com segurança onde termina a ação
do escritor, onde começa a culpa do tipógrafo” (Réplica, nº 357).
Ainda:
“Quem quer que haja experimentado o rever provas, saberá com que
facilidade escapam essas diferenças de letra aos olhos mais adestrados, sobretudo
aos do próprio autor, que, lendo no seu pensamento, cuida amiúde ter visto no
impresso o que apenas lhe estava na ideia. A imagem mental, em sua forma
correta, oculta e substitui aos olhos do escritor a incorreta reprodução no trabalho
da oficina” (ibidem, nº 123).
21

1. Imensa terá sido a mágoa de Machado de


Assis – “verdadeiro modelo da boa linguagem, assim na
correção como no gosto”, ao aviso dos doutos(14)–, ao
deitar os olhos no volume de suas “Poesias Completas”
(1901; H. Garnier, Livreiro-Editor), sobretudo
naquele passo da “Advertência” que lhe escreveu:

“Não deixo esse prefácio, porque a afeição do meu


defunto amigo a tal extremo lhe cegara o juízo que não
viria a ponto reproduzir aqui aquela saudação inicial”.

A causa do dissabor e justa indignação do


circunspecto Machado explicou-a Plínio Doyle no
livro “Minha Vida”:

“Aquele cegara ali em cima teve uma letra trocada


pelo tipógrafo: o e por a. Não preciso dizer mais nada,
senão pensar no enorme aborrecimento que deve ter tido
Machado ao ver com seus olhos o erro.
Na biblioteca da Casa de Rui Barbosa há um
exemplar com o erro, outro emendado à mão (corre que foi
o próprio Machado que toda tarde fazia as emendas de
vários exemplares) e um terceiro, correto” (p. 67).

(14) Rui, Réplica, nº 74.


22

2. Outro aleijão tipográfico depara-nos a 6a. ed.


do Código de Processo Penal (1959; Saraiva).

Com efeito, reza o teor do art. 536:

“Recebidos os autos da autoridade policial, ou


prosseguindo no processo, se tiver sido por ele iniciado, o
juiz, depois de ouvido, dentro do prazo improrrogável de
24 anos, o órgão do Ministério Público, procederá ao
interrogatório do réu”. Errata: “24 horas”.

3. Nisto de falhas ou quiproquós tipográficos,


faz ao intento a crônica do esmerado escritor
maranhense Humberto de Campos, “in verbis”:

“Conta-se que, por ocasião de sua vinda ao Rio de


Janeiro em 1887, escreveu Ramalho Ortigão, para a
Gazeta de Notícias, um artigo de colaboração destinado a
uma edição festiva. No dia aprazado, o matutino de
Ferreira de Araújo aparecia com o escrito do seu eminente
colaborador português. Intitulava-se, aquele, O Pássaro e
as Penas. Quem, todavia, o lesse, não encontraria nem as
penas, nem o pássaro. No dia seguinte, porém, vinha a
corrigenda. Por um engano de revisão – dizia esta –,
saiu deturpado o título do artigo que publicamos ontem,
da autoria do ilustre escritor Ramalho Ortigão. Onde
23

se lê O Pássaro e as Penas, leia-se: O Pássaro e o


Presunto.

No referido artigo não se tratava, entretanto, ainda,


de tal coisa. O título verdadeiro era, apenas, O Passado
e o Presente, que o tipógrafo encarregado de compor os
títulos não compreendera bem, na caligrafia complicada
de Ramalho Ortigão” (Reminiscências…, 1962, pp.
89-90; Livro do Mês S.A.).

4. De erros de imprensa (“gralhas”) também o


erudito escritor Eduardo Frieiro colheu exemplos
em barda. Eis alguns:

I. “Na secção necrológica de um austero órgão


carioca, leram-se um dia estas palavras escandalosas
a propósito de um venerando figurão do Império: O
honrado Senador X passou os últimos anos de sua
existência entre duas mulatas.

Um inocente paragrama trocara as muletas em


mulatas” (Os Livros, nossos Amigos, 2010, p. 139;
Edições do Senado Federal; Brasília).

II. “Um jornal de Lisboa, no tempo da Rainha


Dona Amélia, fazendo uma edição especial muito
esmerada em homenagem à Soberana, anunciou um
24

prêmio a quem descobrisse um erro de revisão. Para quê?


Logo na primeira coluna da primeira página do tal jornal
lia-se em tipos fortes: Sua Majestade a Bainha… etc.,
etc. O responsável foi punido e no dia seguinte saía
a retificação: Por um lamentável erro de revisão –
dizia –, demos ontem a notícia de que Sua
Majestade a Tainha… etc., etc.” (Idem, ibidem, p.
140).

III. “Enfim, a explicação do Capeta é tão boa como


qualquer outra. E só por artes do Capeta se pode explicar
que se haja inutilizado uma edição da Bíblia que continha
este erro imperdoável: Cristo com cinco mil pães deu
de comer a cinco pessoas”. Outra Bíblia, impressa em
Hale, em 1710, encerrava este monstruoso mandamento:
Cometerás adultério” (Idem, ibidem, p. 141).

5. Sesquipedal lapso tipográfico foi o que, a


dar-se crédito à tradição oral, cometeu desastrado
revisor.(15)

Passara ano inteiro a rever uma obra e, ao cabo,


escreveu-lhe no cólofon, em letras capitulares:

(15) Revisor, indivíduo cuja profissão é um erro, disse alguém.


25

“Este livro não contém erata”.

6. Dos erros tipográficos, em suma, é vasta a


messe, que veteranos jornalistas ainda conservam na
memória, com carinho e saudade. A um desses(16)
ouvimos dizer que, retornando ao País a Seleção
Brasileira de Futebol, certo órgão da imprensa,
arrebatado de justa ufania, publicou a seguinte
manchete: O marechal da vitória Paulo Machado
de Carvalho merece a gratidão da pátria!

Deu-se, no entanto, que, por terribilíssimo


lapso, deixara o linotipista cair uma letra do
patronímico do marechal da vitória, o que formou
um palavrão de rachar um carvalho de alto a baixo!

Outro tanto em referência a um “incêndio na


fábrica de colchões”, que teria irrompido, vai por meio
século, no bairro paulistano do Brás.

Ao revisor do jornal esquecera-lhe examinar a


última prova. Consequência: mofina síncope fizera
desaparecer letra intermediária da palavra colchões,

(16) Dr. Mário de Oliveira, advogado e jornalista (diretor-presidente


do periódico Edição Policial).
26

o que só perceberam os leitores, estupefactos!


Já ardera Troia!

7. Outra gralha tipográfica, de certo peso e


vulto, noticiaram ultimamente os jornais. Vai abaixo
reproduzida:
“O Tribunal de Justiça do Paraná condenou uma
editora de Londrina (do norte do Estado) a pagar uma
indenização de R$ 4.800 por danos morais e materiais a
uma lanchonete da mesma cidade.

A editora, que é responsável por publicações em listas


telefônicas, escreveu errado um anúncio da loja de sucos.

Por erros de grafia cometidos durante o processo


de composição do anúncio, a expressão sucos exóticos e
grelhados virou sucos eróticos e gralhados. O erro
saiu na edição de 2008/2009” (Agora, 16.5.2012).

8. Essa ingrata experiência viveu também


Gilberto Amado (1887-1969), jornalista, político e
diplomata sergipano. Ele próprio o narra: “Quando
comecei a escrever no O País e no Comércio de São
Paulo, ao iniciar a minha carreira, há cinquenta anos,
lembro-me que, expondo um assunto, terminava dizendo:
27

São fatos como este que demonstram a vitalidade de uma


raça. Saiu… vitalidade de uma onça” (Depois da Política,
1960, pp. 196-197; Livraria José Olympio Editora).

9. Outra cinca desmarcada ou, antes, providência


“ultima ratio”, vem descrita em “O Pitoresco na
Advocacia”, livro do Dr. Fernandino Caldeira de
Andrada (p. 26). Ei-la:
“Contam que, numa comarca do interior, na sala dos
advogados, um profissional, às pressas – quase fim do
expediente forense –, redigia uma petição. O papel não
valia nada. Era daqueles destinados à cópia. Pelas tantas,
o advogado errou. Utilizou borracha. Rasgou o papel.
Continuou a datilografar. Depois de pedir deferimento,
datar e assinar o requerimento, nele apôs a seguinte
observação: No buraco, leia-se Vossa Excelência”.

VI. Anda na boca do povo que é o espírito do mal


quem enfatua e amesquinha a inteligência do
homem, para que cometa semelhantes iniquidades e
despautérios. Tem até nome: Titívilo (“Titivillus”, na
voz latina). Eis sua efígie(17):

(17) Cf. Carlos M. Horcades et alii, Almanaque Tipográfico Brasileiro,


2008, p. 66; Ateliê Editorial.
28

“Titivillus” (Titívilo) — Diabinho inventado


“por monges copistas medievais” para justificar
seus erros de escrita (“lapsus calami”).

Já que o erro é contingência humana, defenda-


-nos Deus das ciladas de Titívilo, agora e sempre.
Amém!
29

Anexo

(fig. 1)
Trabalhos Jurídicos e Literários de
Carlos Biasotti

1. A Sustentação Oral nos Tribunais: Teoria e Prática;


2. Adauto Suannes: Brasão da Magistratura Paulista;
3. Advocacia: Grandezas e Misérias;
4. Antecedentes Criminais (Doutrina e Jurisprudência);
5. Apartes e Respostas Originais;
6. Apelação em Liberdade (Doutrina e Jurisprudência);
7. Apropriação Indébita (Doutrina e Jurisprudência);
8. Arma de Fogo (Doutrina e Jurisprudência);
9. Cartas do Juiz Eliézer Rosa (1a. Parte);
10. Citação do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
11. Crime Continuado (Doutrina e Jurisprudência);
12. Crimes contra a Honra (Doutrina e Jurisprudência);
13. Crimes de Trânsito (Doutrina e Jurisprudência);
14. Da Confissão do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
15. Da Presunção de Inocência (Doutrina e Jurisprudência);
16. Da Prisão (Doutrina e Jurisprudência);
17. Da Prova (Doutrina e Jurisprudência);
18. Da Vírgula (Doutrina, Casos Notáveis, Curiosidades, etc.);
19. Denúncia (Doutrina e Jurisprudência);
20. Direito Ambiental (Doutrina e Jurisprudência);
21. Direito de Autor (Doutrina e Jurisprudência);
22. Direito de Defesa (Doutrina e Jurisprudência);
23. Do Roubo (Doutrina e Jurisprudência);
24. Estelionato (Doutrina e Jurisprudência);
25. Furto (Doutrina e Jurisprudência);
26. “Habeas Corpus” (Doutrina e Jurisprudência);
27. Legítima Defesa (Doutrina e Jurisprudência);
28. Liberdade Provisória (Doutrina e Jurisprudência);
29. Mandado de Segurança (Doutrina e Jurisprudência);
30. O Cão na Literatura;
31. O Crime da Pedra (Defesa Criminal em Verso);
32. O Crime de Extorsão e a Tentativa (Doutrina e Jurisprudência);
33. O Erro. O Erro Judiciário. O Erro na Literatura (Lapsos e
Enganos);
34. O Silêncio do Réu. Interpretação (Doutrina e Jurisprudência);
35. Os 80 Anos do Príncipe dos Poetas Brasileiros;
36. Princípio da Insignificância (Doutrina e Jurisprudência);
37. “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”;
38. Tópicos de Gramática (Verbos abundantes no particípio;
pronúncias e construções viciosas; fraseologia latina, etc.);
39. Tóxicos (Doutrina e Jurisprudência);
40. Tribunal do Júri (Doutrina e Jurisprudência);
41. Absolvição do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
42. Tributo aos Advogados Criminalistas (Coletânea de Escritos
Jurídicos); Millennium Editora Ltda.;
43. Advocacia Criminal (Teoria e Prática); Millennium Editora Ltda.;
44. Cartas do Juiz Eliézer Rosa (2a. Parte);
45. Contravenções Penais (Doutrina e Jurisprudência);
46. Crimes contra os Costumes (Doutrina e Jurisprudência);
47. Revisão Criminal (Doutrina e Jurisprudência);
48. Nélson Hungria (Súmula da Vida e da Obra);
49. Ação Penal (Doutrina e Jurisprudência);
50. Crimes de Falsidade (Doutrina e Jurisprudência);
51. Álibi (Doutrina e Jurisprudência);
52. Da Sentença (Doutrina e Jurisprudência);
53. Fraseologia Latina;
54. Da Pena (Doutrina e Jurisprudência);
55. Ilícito Civil e Ilícito Penal (Doutrina e Jurisprudência);
56. Regime Prisional (Doutrina e Jurisprudência);
57. Alimentos (Doutrina e Jurisprudência);
58. Legítima Defesa (Doutrina e Jurisprudência);
59. Estado de Necessidade (Doutrina e Jurisprudência);
60. Receptação (Doutrina e Jurisprudência);
61. Inquérito Policial. Indiciamento (Doutrina e Jurisprudência).
http://www.scribd.com/Biasotti
O Erro. O Erro Judiciário. O Erro na Literatura | Carlos Biasotti

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