O STF reconheceu a paternidade socioafetiva mesmo sem registro, afirmou que ela não é inferior à paternidade biológica e abriu caminho para a multiparentalidade no Brasil. A decisão trará muitas consequências para o direito de família e outras áreas, mas também levanta novas perguntas sobre sucessão, alimentos e doação de material genético.
O STF reconheceu a paternidade socioafetiva mesmo sem registro, afirmou que ela não é inferior à paternidade biológica e abriu caminho para a multiparentalidade no Brasil. A decisão trará muitas consequências para o direito de família e outras áreas, mas também levanta novas perguntas sobre sucessão, alimentos e doação de material genético.
O STF reconheceu a paternidade socioafetiva mesmo sem registro, afirmou que ela não é inferior à paternidade biológica e abriu caminho para a multiparentalidade no Brasil. A decisão trará muitas consequências para o direito de família e outras áreas, mas também levanta novas perguntas sobre sucessão, alimentos e doação de material genético.
Nesta ltima quinta-feira (22/9), o Supremo Tribunal Federal, na esteira do julgamento do Recurso Extraordinrio 898.060 e da anlise da Repercusso Geral 622, aprovou tese que assume carter histrico e, pode-se mesmo dizer, revolucionrio. Como se sabe, a corte decidiu, por maioria, que a paternidade socioafetiva, declarada ou no em registro, no impede o reconhecimento do vnculo de filiao concomitante, baseada na origem biolgica, com os efeitos jurdicos prprios.[1] De uma s tacada, o STF (a) reconheceu o instituto da paternidade socioafetiva mesmo falta de registro tema que ainda encontrava resistncia em parte da doutrina de direito de famlia ; (b) afirmou que a paternidade socioafetiva no representa uma paternidade de segunda categoria diante da paternidade biolgica; e (c) abriu as portas do sistema jurdico brasileiro para a chamada multiparentalidade.
O caso concreto julgado pelo STF no mbito do RE 898.060
no o primeiro nessa matria basta lembrar, por exemplo, que cartrios de todo Brasil tem sido chamados a registrar o nome de mais de um pai ou mais de uma me nas certides de nascimento, situao que, por vezes, acaba desaguando no Judicirio[2] , nem o mais simples. O prprio julgamento do recurso e a anlise da tese aprovada, ao final, pelo STF no se mostraram muito coesos, com propostas antagnicas e algumas reviravoltas, a revelar que a viso do tema entre os Ministros no necessariamente unvoca. A concluso alcanada, pela maioria, foi, contudo, corajosa e ousada, na medida em que exprimiu clara ruptura com o dogma antiqussimo segundo o qual cada pessoa tem apenas um pai e uma me. Em um campo to delicado como o da famlia, cercado de pr-conceitos de origem religiosa, social e moral (por vezes, moralista), o STF adotou um posicionamento claro e objetivo, em sentido diametralmente oposto ao modelo da dualidade parental, consolidado na tradio civilista e construdo luz da chamada verdade biolgica.
Por isso mesmo, a manifestao do STF traz numerosas e
profundas consequncias, no apenas para o Direito de Famlia, mas tambm para muitos outros campos jurdicos, como o Direito Previdencirio e o Direito das Sucesses. H ainda, como natural, muitssimas perguntas em aberto. Por exemplo, se uma pessoa pode receber herana de dois pais, preciso recordar que tambm pode ocorrer o contrrio, pois a tese aprovada produz efeitos em ambas as direes: direito do filho em relao aos mltiplos pais ou mes, mas tambm direitos dos mltiplos pais ou mes em relao ao filho. Assim, o que ocorre caso o filho venha a falecer antes dos pais, sem deixar descendentes? A resposta da lei brasileira sempre foi a de que os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra metada aos da linha materna (Cdigo Civil, art. 1.836). Em primeiro grau, isso significava que o pai recebia a metade dos bens, e a me, a outra metade. Agora, indaga-se como ser feita a distribuio nessa hiptese: a me recebe metade e cada pai recebe um quarto da herana? Ou se divide a herana igualmente entre os trs, para que a posio de pai no seja diminuda em relao posio de me (ou vice-versa)? Outra pergunta que se impe, na mesma direo, a seguinte: o que ocorre se os mltiplos pais vierem a necessitar de alimentos? O filho, a rigor, deve ser chamado a prestar alimentos aos seus mltiplos pais, podendo a multiparentalidade vir a se converter em nus elevado quele personagem que costuma ser visto como beneficiado nas decises judiciais que reconhecem a multiparentalidade.[3] H, ainda, o generalizado receio de que a posio adotada pelo STF possa gerar demandas mercenrias, baseadas em puro interesse patrimonial. Argumenta-se que a corte teria abarto as portas do Judicirio para filhos que somente se interessam pelos pais biolgicos no momento de necessidade ou ao se descobrirem como potenciais herdeiros de fortunas. Nesse particular, competir aos juzes e tribunais separar, como sempre, o joio do trigo, empregando os mecanismos disponveis na ordem jurdica brasileira para se evitar o exerccio de uma situao jurdcia subjetiva em descompasso com seu fim axiolgico-normativo. O abuso do direito e a violao boa-f objetiva tm plena aplicao nesse campo, sendo de se lembrar que so instrumentos que atuam no apenas no interesse particular, mas tambm no interesse pblico de evitar a manipulao de remdios que so concedidos pelo ordenamento no de modo puramente estrutural, mas sempre luz de uma finalidade que se destinam a realizar.[4]
Outra dvida importante que tambm ter de ser respondida
se o entendimento do STF produzir algum efeito sobre a adoo, em que pese a convico exposta por alguns Ministros de que o instituto da adoo no sofreria qualquer alterao. Como se sabe, por expressa disposio do artigo 41 do Estatuto da Criana e do Adolescente , a adoo rompe o vnculo do menor com a famlia biolgica, contrariamente ao que ocorre, como decidiu o STF, no caso da paternidade socioafetiva. Haveria a uma incoerncia do sistema jurdico? Deve a disciplina da adoo ser alterada? A indagao relevante especialmente quando se pensa naquelas adoes feitas sem atos jurdicos formais, por meio do simples acolhimento no lar situao que to frequente no Brasil que foi batizada pelos juristas com o nome sintomtico de adoo brasileira. Nesses casos, adoo e paternidade socioafetiva, embora correspondam a institutos jurdicos distintos, confundem-se na realidade dos fatos, de modo que disciplinas jurdicas diversas podem gerar inconsistncias injustificadas no que tange aos efeitos produzidos sobre o dado real. H, ainda, a delicada questo dos doadores de material gentico para a assim chamada inseminao artificial.[5] O tema anda cercado de incertezas. Em 14 de maro deste ano (2016), foi editado o Provimento n. 52 da Corregedoria Geral de Justia que, disciplinando o registro de nascimento de filhos havidos por reproduo assistida, passou a exigir para o registro declarao, com firma reconhecida, do diretor tcnico da clnica, centro ou servio de reproduo humana em que foi realizada a reproduo assistida, indicando a tcnica adotada, o nome do doador ou da doadora, com registro de seus dados clnicos de carter geral e caractersticas fenotpicas, assim como o nome dos seus beneficirios (art. 2o, II). A determinao, que fere o sigilo e anonimato dos doadores de material gentico e desestimula potencialmente a doao, vinha amenizada pelo pargrafo 4odo mesmo dispositivo, segundo o qual o conhecimento da ascendncia biolgica no importar no reconhecimento de vnculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurdicos entre o doador ou a doadora e o ser gerado por meio da reproduo assistida. A situao, que j era complexa, ganha um dado novo com a recente manifestao do STF e estimula indagaes: seria vlida, luz do entendimento da Suprema Corte, a identificao de uma relao de ascendncia biolgica sem efeito de paternidade? Ou a ascendncia biolgica representa sempre um vnculo de paternidade, com todos os seus efeitos? A resposta a essas perguntas, alm de produzir repercusses jurdicas significativas, produzir efeitos relevantes sobre o funcionamento prtico das doaes de material gentico, campo em que as imprecises e incertezas, como aquelas criadas pelo Provimento n. 52, no podem perdurar por muito tempo, sob pena de desestimular a iniciativa dos doadores. A instabilidade no deriva aqui, bom que se diga, da deciso proferida pelo STF nesta semana, a qual apenas veio colocar em evidncia inconsistncias que j vinham proliferando na matria.
A propsito, convm registrar que corte suprema do pas no
compete redesenhar, em cada deciso, todo o sistema jurdico. Ao STF cumpre dar o norte, fixar paradigmas, como fez na anlise da Repercusso Geral 622 com a consagrao da relevncia jurdica da socioafetividade no do afeto em si, que sentimento ntimo e pessoal, mas da sua manifestao exterior na vida social, apesar da insistncia de alguns em confundir os conceitos ; o reconhecimento da inexistncia de hierarquia entre a paternidade socioafetiva e a biolgica;[6] e, finalmente, o acolhimento da multiparentalidade. As respostas mais especficas a repercusses que a tese possa ter em diferentes setores jurdicos viro pouco a pouco, pelas boas mos da doutrina e da jurisprudncia.[7]
O importante aqui que, na linha do que j havia feito com o
reconhecimento das unies homoafetivas, o STF reitera seu papel no campo do direito de famlia: no fechar os olhos para realidade, acolhendo todas as diferentes formas de famlia que j existem na prtica e que no se enquadram necessariamente nos modelos fechados que constam das nossas leis e dos nossos cdigos. A tese aprovada na anlise da Repercusso Geral 622 representa um passo largo e decidido rumo consagrao de um direito de famlia efetivamente plural e democrtico no Brasil.
[1] Redao proposta pelo relator, Ministro Luiz Fux, vencidos
os Ministros Dias Toffoli e Marco Aurlio Mello. No votou o Ministro Luis Roberto Barroso, em viagem a trabalho.
[2] Confira-se, entre outras, a sentena da juza titular da 15
Vara de Famlia da Capital do Rio de Janeiro, Maria Aglae Vilardo, que reconheceu, em 2014, o direito de trs irmos terem duas mes, a biolgica e a socioafetiva, em seus registros de nascimento. Fonte: IBDFam Instituto Brasileiro de Direito de Famlia (http://www.ibdfam.org.br/noticias/5243/TJRJ+reconhece+ multiparentalidade). [3] Associando expressamente a multiparentalidade ao melhor interesse da criana e do adolescente, ver, entre outras fontes, deciso proferida no Distrito Federal em que restou assentado: De se ver que a multiparentalidade, se afigura modelada a este caso concreto. Temos flagrante paternidade socioafetiva estabelecida entre o pai registral e a infante, bem como a evidenciada paternidade biolgica, que poder agasalhar o melhor interesse da autora, na medida em que poder proporcionar a ela bons colgios, faculdade, sade, lazer, e, quem sabe, uma outra famlia que poder am-la. (Multiparentalidade preserva interesse da criana, in www.migalhas.com.br, em 14.7.2014). [4] Sobre abuso do direito e boa-f objetiva, ver Anderson Schreiber, A Proibio de Comportamento Contraditrio Tutela da Confiana e Venire contra factum proprium, So Paulo: Atlas, 4aed., cap. 2. [5] Questo suscitada por Flavio Tartuce, ao lado de outras possveis repercusses da deciso proferida no mbito do RE 898.060, em artigo escrito no dia do julgamento, acompanhado em tempo real pelo autor: Flavio Tartuce, Breves e Iniciais Reflexes sobre o Julgamento do STF sobre Parentalidade Socioafetiva, 22.9.2016, inwww.flaviotartuce.jusbrasil.com.br . [6] Era j, registre-se, a posio defendida pela melhor doutrina, como se pode ver de Jones Figueirdo Alves, Socioafetividade em Cartrio Paternidade Socioafetiva tem Igualdade com Biolgica, inwww.conjur.com.br, 18.12.2013. [7] Como tive oportunidade de ressaltar na tarde do julgamento em entrevista ao jornal O Globo: A deciso do Supremo d um norte e cria um novo paradigma do direito de famlia. Tem uma srie de repercusses, como essa, que vamos ter que discutir caso a caso na medida que elas surjam. (reportagem de Carolina Brgido, Deciso do STF abre caminho para pai biolgico e afetivo registrarem mesmo filho, inwww.oglobo.globo.com, publicado em 23.9.2016).
Anderson Schreiber. Procurador do Estado do Rio de Janeiro.
Professor Adjunto de Direito Civil da UERJ. Doutor em Direito Privado Comparado pela Universit degli Studi del Molise (Itlia). Mestre em Direito Civil pela UERJ. Autor de vrias obras, dentre elas Direitos da Personalidade, Editora Atlas.
A Obrigatoriedade da Guarda Compartilhada em Contraposição ao Princípio do Superior Interesse da Criança: uma análise do Ordenamento Jurídico Brasileiro
Tempo de Reação Simples Auditivo e Visual em Surfistas Com Diferentes Níveis de Habilidades Comparação Entre Atletas Profissionais, Amadores e Praticantes