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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS CLÁSSICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA

Viviane de Melo Resende

ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA E ETNOGRAFIA:


O MOVIMENTO NACIONAL DE MENINOS E
MENINAS DE RUA, SUA CRISE E O
PROTAGONISMO JUVENIL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Lingüística, Departamento de Lingüística, Português e
Línguas Clássicas, Instituto de Letras, Universidade de
Brasília, como requisito parcial para obtenção do Grau de
Doutora em Lingüística, área de concentração Linguagem
e Sociedade.

Orientadora: Profa. Dra. Izabel Magalhães – Universidade de Brasília


Co-orientadora: Profa. Dra. Clara Keating – Universidade de Coimbra

Brasília, junho de 2008


Para a ‘Maria’, a ‘Amanda’ e a ‘Joana’.
Para a ‘Júlia’ e a ‘Vera’.

E para a Yara, menina dos meus olhos.


Nos anos em que me dediquei a esta pesquisa aprendi muito, sobretudo porque
pude contar com a colaboração e a energia de pessoas que estiveram a meu lado.
Entre elas, merecem destaque Izabel Magalhães, Clara Keating, Denize Elena Silva,
Rachael Radhay, Viviane Ramalho, Décio Bessa, Gláucio Resende, Yara Resende,
Bruno Martinelli, Yara Martinelli, Marli Maia e Marlene Ferreira. A todas essas
pessoas devo minha gratidão, cada qual sabe o porquê. Devo mencionar, também,
o apoio imprescindível que recebi da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior – CAPES – tanto no Brasil quanto no período do estágio no
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Um agradecimento muito especial às pessoas sem as quais essa investigação não


seria possível: ‘Maria’, ‘Joana’, ‘Amanda’, ‘Karina’, ‘Fernanda’, ‘Rita’, ‘Marília’,
‘Rafael’, ‘Gabriel’, ‘Júlia’, ‘Vera’, ‘Paula’, ‘Glauco’, ‘Marcelo’, ‘Henrique’, ‘Mônica’. A
todas essas pessoas agradeço por confiarem em mim, por me dedicarem seu tempo
e por compartilharem comigo seu conhecimento e um pouco de sua história.
Resumo

Esta tese é o resultado de uma pesquisa que visou à investigação da crise do Movimento
Nacional de Meninos e Meninas de Rua no Distrito Federal, empiricamente constatada e
confirmada em dados etnográficos, e suas conseqüências para o protagonismo juvenil,
objetivo central do Movimento. Para realizar esta pesquisa, foram utilizados métodos
etnográficos para geração e coleta de dados. Os métodos selecionados foram a
observação participante, as notas de campo, as entrevistas focalizadas, os grupos focais e a
gravação de reuniões. Foi realizada observação participante na sede do Movimento na Asa
Norte e junto aos núcleos de base do Movimento em cidades satélites de Brasília, desde
abril de 2005 até o encerramento das atividades dos núcleos de base em dezembro de
2005. A observação foi registrada em notas de campo, sob a forma de diário de pesquisa.
Foram realizados dois encontros de grupos focais em abril de 2006; ambos os grupos
tiveram como participantes jovens que na infância e/ou adolescência participaram do
Movimento e na juventude mantiveram vínculos com a instituição. Quatro entrevistas
focalizadas foram realizadas com membros do MNMMR/DF entre outubro de 2006 e
fevereiro de 2007. Participaram das entrevistas duas jovens protagonistas, líderes de
núcleos de base, e duas educadoras do Movimento. Duas reuniões foram gravadas; a
primeira foi registrada em março de 2006, e a segunda em março de 2007. Como
referencial teórico e epistemológico, foi explorada a articulação interdisciplinar entre a
Análise de Discurso Crítica e o Realismo Crítico. Para as análises de dados foram
utilizadas categorias da Análise de Discurso Crítica, como a interdiscursividade, a
modalidade, a coesão, a metáfora, a representação de atores sociais. Os resultados das
análises apontam algumas causas discursivas da crise do Movimento, de acordo com
pressupostos da crítica explanatória do Realismo Crítico. Os principais mecanismos
gerativos que explicam o problema, apontados nos dados, são as contradições na
construção de identidades e identificações, no que se refere à constituição da posição
‘menina-educadora’; as relações sociais hierárquicas resistentes à transformação; a crise de
legitimação social da luta do Movimento; a adesão ao discurso da imobilidade das
estruturas sociais; a carência de recursos simbólicos ligados ao discurso e a naturalização
da incapacidade de transformar essa carência; a ausência de espaços legítimos de transição
de papéis na instituição. Os capítulos analíticos da tese possibilitam, portanto, reflexões
acerca da crise do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua no Distrito
Federal e suas conseqüências para o protagonismo juvenil, gerando compreensão de
algumas das causas discursivas dessa crise e de seus efeitos para a instituição.

Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica; Etnografia; Realismo Crítico; movimento


social, protagonismo juvenil.
Abstract

This thesis is the result of a research study aimed at investigating the crisis in the National
Street Children’s Movement in the Federal District. This crisis as well as its consequences
on juvenile protagonism, the Movement’s main focus, were proven empirically and
confirmed in ethnographic data. In conducting this study, ethnographic methods were
used to generate and collect data. The methods used were participant-observation, field-
notes, focus interviews, focus groups and recordings of meetings. Participant-observation
was carried out at the Movement’s headquarters in Brasilia as well as at the Movement’s
branches in Brasilia’s satellite cities from April 2005 up to the close of the branches’
activities in December, 2005. Observations were recorded as field notes in a research
diary. Two focal group meetings were held in April, 2006. Both groups included young
people who during their childhood and/or adolescence had taken part in the Movement
and still maintained links to the institution. Four focus interviews were conducted with
the Federal District Movement’s members between October, 2006 and February, 2007.
Two young protagonists – branch leaders and two Movement educators participated in
the interviews. Two meetings were taped. The first was recorded in March 2006 and the
second in March 2007. Theoretical and epistemological references were based upon the
interdisciplinary articulation between Critical Discourse Analysis and Critical Realism. In
analyzing the data, Critical Discourse Analysis categories such as interdiscursivity,
modality, cohesion, metaphor and representation of social actors were used. Results of
the analyses indicate that there are some discursive causes for the Movement’s crisis in
keeping with the presuppositions in explanatory criticism in Critical Realism. The main
generative mechanisms that explain the problem and highlighted in the data are
contradictions in identity and identification construction regarding the constitution of the
‘girl-educator’ position; hierarchical social relations resistant to transformation; the social
legitimating of the crisis in the Movement’s struggle; adherence to immobility discourse in
social structures; the lack of symbolic resources linked to discourse and the naturalization
of the incapacity to transform this; the absence of legitimate spaces for role transition in
the institution. The analytical chapters in this study allow therefore for reflecting upon the
Federal District Street Children’s Movement crisis and its consequences on youth
protagonism and hence consider some of the discursive causes for this crisis and its
effects upon the institution.

Keywords: Critical Discourse Analysis; Ethnography; Critical Realism; social movement;


youth protagonism
Quando contemplo um homem situado fora de mim e à
minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são
efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais
perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e
saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o
situa fora de mim e à minha frente, não pode ver.
(Mikhail Bakhtin, 1997 [1979]: 43)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO  9 

CAPÍTULO 1 
1. NEGOCIANDO UM PONTO DE PARTIDA  13 
1.1  MOVIMENTO NACIONAL DE MENINOS E MENINAS DE RUA 15 
1.2  DA NECESSÁRIA FLEXIBILIDADE NO PLANEJAMENTO DA PESQUISA 28 
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 32 
 

PARTE I  35 
 
CAPÍTULO 2 
2. PRÁTICA SOCIAL E DISCURSO: PERSPECTIVA ONTOLÓGICA EM ADC  37 
2.1  ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA: HETEROGENEIDADE E CONTINUIDADES 39 
2.2  PERSPECTIVA ONTOLÓGICA DA SOCIEDADE E DISCURSO 44 
2.3  REPRESENTAÇÃO E IDENTIFICAÇÃO 59 
2.4  ANÁLISE DISCURSIVA TEXTUALMENTE ORIENTADA 70 
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 74 

CAPÍTULO 3 
3.  A  CONSTRUÇÃO  DO  CONHECIMENTO  EM  ADC:  REFLEXÃO  EPISTEMOLÓGICA  E  OS  ESTUDOS 
CRÍTICOS DO DISCURSO  77 
3.1  POR QUE UM CAPÍTULO DEDICADO A REFLEXÕES EPISTEMOLÓGICAS 79 
3.2  PESQUISA QUALITATIVA 82 
3.3  REALISMO CRÍTICO E EPISTEMOLOGIA NOS ESTUDOS CRÍTICOS DO DISCURSO 85 
3.3.1 ESTRATIFICAÇÃO DO MUNDO SOCIAL 86 
3.3.2 DIMENSÕES TRANSITIVA E INTRANSITIVA DO CONHECIMENTO 89 
3.3.3 MODELO TRANSFORMACIONAL DA ATIVIDADE SOCIAL 91 
3.3.4 REALISMO CRÍTICO E ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA 94 
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 99 

CAPÍTULO 4 
4.  ESTABELECENDO  RELAÇÕES  ENTRE  ONTOLOGIA,  EPISTEMOLOGIA  E  METODOLOGIA:  AS 
ESTRATÉGIAS DA PESQUISA  101 
4.1  ÉTICA EM PESQUISA QUALITATIVA 103 
4.2  GERAÇÃO E COLETA DE DADOS: AS ESTRATÉGIAS DE PESQUISA 109 
4.2.1   OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE 113 
4.2.2   NOTAS DE CAMPO 119 
4.2.3   GRUPOS FOCAIS 123 
4.2.4   ENTREVISTAS FOCALIZADAS 129 
4.2.5   GRAVAÇÃO DE REUNIÕES 132 
4.3  POR QUE A ARTICULAÇÃO DESSES MÉTODOS? 135 
4.4  O TRATAMENTO DOS DADOS 138 
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 142 
PARTE II  145 
 
CAPÍTULO 5 
5. REPRESENTAÇÕES DA CRISE PELAS EDUCADORAS DO MNMMR/DF  147 
5.1  A ENTREVISTA COM JÚLIA 149 
5.2  A ENTREVISTA COM VERA 163 
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 182 

CAPÍTULO 6 
6. REPRESENTAÇÕES DO PROTAGONISMO JUVENIL NOS GRUPOS FOCAIS  185 
6.1  O GRUPO FOCAL 1 187 
6.2  O GRUPO FOCAL 2 206 
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 217 

CAPÍTULO 7 
7. SER MENINA E SER JOVEM NO MNMMR/DF: AS ENTREVISTAS COM MARIA E JOANA  221 
7.1.  A ENTREVISTA COM MARIA 223 
7.2.  A ENTREVISTA COM JOANA 235 
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 245 

CAPÍTULO 8 
8. REUNIÕES NO MNMMR/DF EM DOIS CONTEXTOS DIFERENTES  247 
8.1.  A REUNIÃO 1 249 
8.2.  A REUNIÃO 2 263 
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 280 
 

DISCUSSÃO: UMA CRÍTICA EXPLANATÓRIA  285 
CONSIDERAÇÕES FINAIS  293 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  297 
ANEXOS  305 
ANEXO A – RECORTES DAS ENTREVISTAS COM AS EDUCADORAS  307 
RECORTE DA ENTREVISTA COM JÚLIA 307 
RECORTE DA ENTREVISTA COM VERA 309 
ANEXO B – RECORTES DOS GRUPOS FOCAIS  313 
RECORTE DO GRUPO FOCAL 1 313 
RECORTE DO GRUPO FOCAL 2 315 
ANEXO C – RECORTES DAS ENTREVISTAS COM AS JOVENS  319 
RECORTE DA ENTREVISTA COM MARIA 319 
RECORTE DA ENTREVISTA COM JOANA 321 
ANEXO D – RECORTES DAS REUNIÕES  325 
RECORTE DA REUNIÃO 1 325 
RECORTE DA REUNIÃO 2 327 
APRESENTAÇÃO

A precarização social e a desmobilização da sociedade são preocupações transversais que


têm motivado pesquisadores/as em diversas áreas do conhecimento. A má distribuição de
recursos, materiais e simbólicos, ultrapassa, nesse sentido, as fronteiras da Economia e da
Política para inspirar trabalhos localizados no âmbito da Ciência Social Crítica (CSC),
perspectiva científica que visa intervir ativamente na mudança social, assumindo uma
posição crítica, liberta do mito da neutralidade científica.
É nessa perspectiva crítica da prática de pesquisa que se situa esta tese, em que
apresento resultados de minha investigação no contexto do Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua no Distrito Federal. A pesquisa focaliza representações e
identificações por parte das educadoras do Movimento e de jovens engajadas no trabalho
da instituição, consideradas protagonistas juvenis.
A investigação empírica dessas questões discursivas foi feita por meio de dados
etnográficos, e meu objetivo foi investigar algumas das causas discursivas da crise desse
movimento social, empiricamente constatada e confirmada em representações de seus
membros. As questões de pesquisa que norteiam o estudo, retomadas nos Capítulos 1 e 4, são
as seguintes: (a) Como as educadoras do MNMMR/DF representam a ação e a crise da
instituição?; (b) Como as jovens representam o MNMMR/DF e identificam-se como
protagonistas?; (c) Como as jovens representam suas trajetórias dentro do MNMMR/DF e sua
ação como protagonistas?; (d) Como as educadoras do MNMMR/DF (e outros/as adultos/as
envolvidos/as com o Movimento) representam o protagonismo e identificam as jovens?
Destacam-se duas principais motivações para o desenvolvimento desta pesquisa.
Em primeiro lugar, a pertinência de se investigar, no âmbito da Lingüística, questões de
cunho social tangendo à má distribuição de recursos, dada a relevância contemporânea
dessa discussão e a contribuição que a Análise de Discurso Crítica (ADC) pode oferecer ao
debate; em seguida, a pertinência da análise concernente aos movimentos sociais – dada a
agenda de pesquisa da ADC em seu diálogo com a CSC –, sobretudo um movimento social
voltado para crianças e adolescentes cujos direitos e oportunidades são frágeis e que são
objeto de repressão. Não há muitas pesquisas sobre movimentos sociais em ADC, mas se
percebemos que a desmobilização da sociedade civil na atual fase do capitalismo é um
problema que tem efeitos na manutenção de desigualdades, então a relevância de
pesquisas junto a movimentos sociais torna-se clara.
No primeiro capítulo da tese, considerado uma negociação do foco deste
estudo, contextualizo o Movimento, em termos de sua relevância histórica para a luta
pela garantia de direitos de crianças e adolescentes no Brasil, e reflito acerca do
planejamento de minha pesquisa. Os demais capítulos são divididos em duas partes: na
Parte I, ocupo-me da definição de pressupostos que servem de subsídio para as
análises apresentadas na Parte II.
O segundo, o terceiro e o quarto capítulos compõem a Parte I. No Capítulo 2,
dedico-me à reflexão teórica acerca da ADC como interdisciplina localizada nas fronteiras
entre a Lingüística e a CSC, além de focalizar a ontologia acerca da vida social, baseada no
Realismo Crítico (RC), que alimenta a versão de ADC com a qual trabalho. O Capítulo 3,
dando continuidade ao segundo, centra-se em uma reflexão epistemológica acerca da ADC
face às relações interdisciplinares que busca estabelecer – que implicações as escolhas
ontológicas têm para a definição de modos de construção de conhecimento baseados no
discurso? O Capítulo 4 completa a discussão levada a cabo nos dois capítulos
precedentes, pois nele dedico-me à narrativa dos métodos selecionados para a pesquisa,
buscando deixar clara a relação entre ontologia, epistemologia e metodologia na pesquisa.
Na Parte II da tese, dedico-me às análises discursivas dos dados gerados e coletados
junto ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua no Distrito Federal. Os
quatro capítulos analíticos foram definidos de acordo com a natureza dos dados: no
Capítulo 5, analiso recortes das entrevistas com as duas educadoras, aqui identificadas como
Júlia e Vera; no Capítulo 6, debruço-me sobre recortes dos dois grupos focais realizados
com jovens ‘ex-meninos/as’ do Movimento; no Capítulo 7, analiso recortes das entrevistas

[10]
individuais com as jovens identificadas pelos pseudônimos Maria e Joana; no Capítulo 8,
dedico-me à análise dos recortes das duas reuniões gravadas no Movimento. A Parte II é
encerrada com uma Discussão em que busco oferecer uma crítica explanatória do problema
investigado, aliando alguns resultados das análises discursivas discutidas nos capítulos
precedentes à reflexão em torno do RC e da ADC nos Capítulos 2 e 3. Os recortes analisados
nos quatro capítulos da Parte II compõem os anexos.
Esta tese traz contribuições para a ADC na perspectiva teórica, buscando tornar mais
clara a relação entre o RC e a versão de ADC a que me filio; na perspectiva epistemológica, por
meio de uma reflexão pautada na necessidade de coerência entre ontologia e epistemologia
em ADC, e na perspectiva metodológica, pela articulação de métodos etnográficos diversos,
como a observação participante, as notas de campo, o grupo focal, a entrevista focalizada e a
gravação de reuniões. A abordagem multimetodológica e multidimensional tem por objetivo,
por um lado, um acercamento amplo do objeto da pesquisa e, por outro, uma abordagem das
práticas em que o movimento social pesquisado envolve-se, a fim de dar conta de uma
ontologia do mundo social como composto de práticas sociais articuladas.
Assim, é meta desta tese a superação de dois aspectos de pesquisas discursivas
críticas que considero problemáticos. Em primeiro lugar, incluo na tese um capítulo que
não costuma figurar nesse tipo de trabalho: um capítulo dedicado a reflexões
epistemológicas, cuja ausência me parece ser uma causa do descompasso entre uma
perspectiva ontológica complexa acerca da relação entre linguagem e sociedade e
metodologias muitas vezes incapazes de responder satisfatoriamente à complexidade
dessa relação. Em segundo lugar, busco elaborar um capítulo metodológico detalhado, em
que figuram não apenas as teorias acerca dos métodos e procedimentos utilizados, mas
também a narrativa do processo da pesquisa. Além disso, separo as análises em quatro
capítulos de acordo com os tipos de dados e também com seu potencial para responder às
questões da pesquisa. Evidentemente, esse conjunto de decisões acerca da composição da
tese resulta um texto mais extenso que o habitual. Minha expectativa é que os pontos
positivos decorrentes dessas decisões sejam mais relevantes para o interesse que meu
trabalho possa despertar em potenciais leitores/as que sua extensão.

[11]
1
NEGOCIANDO UM PONTO DE PARTIDA  

O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua


– MNMMR – é uma organização não- governamental que
atua na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes
brasileiros, com especial atenção aos meninos e meninas
de rua; e vêm investindo na busca de caminhos que
permitam a construção de propostas e estratégias, unindo
educadores, crianças e adolescentes como atores na
concretização da cidadania. A idéia e concepção
mobilizadora do MNMMR é a de que os próprios
meninos/as podem e devem participar da construção de
alternativas que viabilizem a garantia plena de seus
direitos.
(Rede Tecendo Parcerias, 2007)

N este primeiro capítulo, meu objetivo é contextualizar, ainda que brevemente,


o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e a pesquisa
que realizei. Na primeira seção, concentro-me na história do Movimento desde a sua
fundação e na configuração da Comissão Local do MNMMR no DF, com a qual
trabalhei diretamente. Na segunda seção, meu foco desloca-se para a pesquisa
propriamente dita, uma vez que procuro mostrar por que a realização deste trabalho
exigiu ampla flexibilidade e muitas revisões de planejamento. Por isso este capítulo é
considerado uma negociação do ponto de partida para a tese: embora a reflexão mais
detida acerca da pesquisa e do trabalho de campo seja apresentada no Capítulo 4,
aqui discuto as razões que me fizeram rever meu próprio ponto de partida para a
realização deste trabalho.
1.1 Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua

Movimentos sociais são definidos como “ações sociais coletivas de caráter


sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas de a população se organizar e
expressar suas demandas” (Gohn, 2003b: 13). Para Pasquino (2004: 787), os movimentos
sociais “constituem tentativas, fundadas num conjunto de valores comuns, destinadas a
definir formas de ação social e influir em seus resultados”. Assim, o significado de
movimentos sociais está associado à mobilização da sociedade civil e à crença na capacidade
de atores sociais, engajados em ação coletiva, influenciarem no sentido da mudança social.
Castells (1999) e Gohn (2003a) concordam que a emergência de movimentos
populares urbanos deu-se nas décadas de 1970 e 1980, quando “os movimentos urbanos
estavam se tornando as principais fontes de resistência à lógica unilateral do capitalismo”
(Castells, 1999: 80). No que se refere à mobilização voltada para a questão de crianças e
adolescentes em situação de rua, Santos (1994) localiza o surgimento de um movimento de
oposição à concepção assistencialista e repressora no tratamento da infância e da
adolescência no Brasil no final da década de 1970. Segundo ele, em resposta a esse enfoque
que “atua retirando as crianças e adolescentes do meio em que vivem para colocá-las em
instituições fechadas de recuperação” e cujo modelo é “autoritário pois não permite – nem
muito menos estimula – a participação da população na gestão da política para a infância e
adolescência”, formou-se uma abordagem participativa, que “centra-se na criação de
condições para que as crianças e adolescentes descubram soluções alternativas para seus
próprios problemas” (Santos, 1994: 11). Este último modelo é fundamentado na
participação da sociedade, e a ação voltada para as crianças e adolescentes é realizada no
próprio ambiente em que vivem. Esse novo enfoque teve inspiração nos trabalhos
desenvolvidos pela Pastoral do Menor e pelo Movimento de Defesa do Menor.
O ano de 1979 foi proclamado, pela Organização das Nações Unidas, o Ano
Internacional da Criança. No Brasil, durante esse ano realizaram-se campanhas,
seminários e debates que difundiram a problemática da situação de crianças no país. Essa
interlocução difundiu também o papel da educação social de rua como alternativa ao
modelo repressor e assistencialista no que se refere a crianças e adolescentes em situação

[15]
de rua. Como resultado, configuraram-se diversas iniciativas com propostas alternativas
para o tratamento do problema da vulnerabilidade de crianças e adolescentes no Brasil.
Esses diversos movimentos populares isolados tiveram a oportunidade de se organizar
em rede por meio do Projeto Alternativas Comunitárias de Atendimento a Meninos de Rua,
implantado em 1982 com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância. A articulação
em rede é, para Castells (1999), um fator fundamental para a capacidade de os movimentos
sociais configurarem-se atores políticos com influência nas tomadas de decisão. A interlocução
entre as iniciativas então existentes no país, engajadas na construção de alternativas, resultou na
formação, em 1985, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR):

O contato entre vários programas e projetos alternativos proporcionou e


facilitou um intenso intercâmbio de experiências e uma profunda
reflexão sobre suas práticas. Isso levou ao surgimento dos primeiros
grupos locais, cujo propósito era integrar pessoas e recursos sociais do
município e da região para enfrentar os desafios das novas práticas e
mobilizar a comunidade para contribuir para aquela nova proposta de
trabalho. Em junho de 1985, esses grupos locais, reunidos em Brasília,
decidiram criar uma organização não-governamental para a defesa e
promoção dos direitos dos meninos e meninas de rua do Brasil, o
Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (Santos, 1994: 12).
A construção do MNMMR só se deu porque os programas alternativos e
seus educadores romperam o isolamento e criaram um instrumento de
articulação em rede de caráter permanente (Santos, 1994: 34).

Nesse primeiro ano de sua existência, o MNMMR foi batizado como Movimento
Nacional de Alternativas Comunitárias de Atendimento a Meninos de Rua, marcando sua
posição como concepção alternativa ao modelo assistencialista e repressor em vigência,
materializado no Código de Menores, lei de 1979. No Encontro Nacional de Grupos
Locais, realizado em Brasília em 1985, foram traçadas as diretrizes para a constituição do
Movimento e foi eleita uma Comissão Nacional com dez membros, dois de cada região
do país, com a missão de viabilizar sua fundação oficial.
Em maio de 1986, esse movimento recém fundado foi capaz de organizar o I
Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, com a participação de cerca de 500
crianças e adolescentes de todas as regiões do Brasil: “este encontro, inédito em todo o
mundo, desperta a atenção da sociedade e transforma-se em um marco significativo para
[16]
que meninos e meninas de rua comecem a adquirir voz e vez e iniciem um processo de
organização para lutar contra a violência e pelos seus direitos de cidadania” (Santos, 1994:
14). Em agosto do mesmo ano, na II Assembléia Nacional do Movimento, seu estatuto
foi aprovado e o Movimento foi oficialmente constituído como Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua.
Entre 1986 e 1988, foram formadas comissões locais na maior parte dos estados
brasileiros e foram estruturadas comissões regionais nas cinco regiões geográficas do país e a
secretaria nacional com sede em Brasília. Por meio da articulação em rede, o MNMMR foi
capaz de ultrapassar seu papel reivindicatório para assumir também um papel propositivo, de
acordo com a configuração dos novos movimentos sociais discutida por Gohn (2003b: 24):

os movimentos populares criaram, ou ampliaram, ou fortaleceram a


construção de redes sociais. (...) As identidades coletivas dos
movimentos populares deixaram alguns elementos de lado, tais como as
freqüentes contestações às políticas públicas, mas como eles
incorporaram outros elementos, isso possibilitou-lhes sair do nível
apenas reivindicatório, para um nível mais operacional, propositivo. (...)
Não se tratava mais de ficar de costas para o Estado, mas de participar
das políticas, das parcerias etc. Eles ajudaram a construir outros canais de
participação, principalmente os fóruns; e contribuiram para a
institucionalização de espaços públicos importantes, tais como os
diferentes conselhos criados nas esferas municipais, estaduais e nacional.

Nesse sentido, o Movimento participou da criação do Fórum Nacional


Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Fórum DCA), em 1988. Por meio de sua participação ativa no Fórum DCA,

“o MNMMR participou do processo de elaboração da Constituição Federal, fazendo lobby


junto a deputados e senadores constituintes. Esse trabalho resultou na inclusão dos
artigos 227 e 228 na Constituição. O Movimento participou também da elaboração do
anteprojeto do Estatuto da Criança e do Adolescente” (Santos, 1994: 16).1

1 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta

prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.
[17]
Embora nunca tenha abandonado seu papel de denúncia (“a denúncia de omissão
e violação desses direitos também é dos papéis concretamente assumidos pelo
Movimento”; Santos, 1994: 30), o MNMMR articula também papéis de pressão
reivindicatória (como as marchas de 18 de maio, Dia Nacional de Enfretamento à
Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes) e propositiva, como nos casos em que
fez lobby junto ao Congresso Nacional para a aprovação do Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA (em 1990) e para a criação do Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente – Conanda (em 1991), ou como ainda tem feito contra o
rebaixamento da maioridade penal (ver Capítulo 4). Por seu trabalho junto a crianças e
adolescentes em situação de rua, o Movimento recebeu, em 1991, o Prêmio Internacional
da Associação de Direitos Humanos do Equador e o Prêmio Internacional da Associação
Pró-Direitos Humanos da Espanha, e, em 1992, o Prêmio Criança da Fundação Abrinq.
Apesar da configuração em rede e da participação de militantes do Movimento nos
conselhos de direitos, e também nos conselhos tutelares, outros elementos da configuração
do MNMMR afastam-no da caracterização dos novos movimentos sociais: a
profissionalização de seus membros e a utilização dos novos meios de comunicação. Em
sua discussão sobre os novos movimentos sociais, Gohn (2003b: 30) sugere que “a nova
fase gerou práticas novas, exigiu a qualificação de militantes, por isso é grande o número de
militantes/assessores de movimentos que têm entrado nos programas de pós-graduação da
academia”. No MNMMR, ao contrário, “os educadores, voluntários, militantes e ativistas dos
direitos da criança e do adolescente engajados nas comissões locais, na sua maioria, têm
escolaridade entre os graus primário e secundário; apenas uma pequena parcela tem
formação universitária” (Santos, 1994: 24). Na Comissão Local do DF, em que realizei a
pesquisa, essa informação continua sendo verdadeira: em 11 de abril de 2006, depois de
conversa com a educadora Vera na sede da Comissão Local do DF, registrei em meu diário
de campo: “A Vera disse que nenhuma ONG trabalha mais com educadores/as de nível
médio, todo mundo investiu na capacitação de seus/suas educadores/as, mas o Movimento
ficou para trás por falta de recursos” (sobre notas de campo, ver Capítulo 4).2 À falta de

2 Todas as pessoas que participaram da pesquisa são referidas por meio de pseudônimos. As participantes da
pesquisa são apresentadas no Capítulo 4.
[18]
qualificação formal soma-se a desarticulação dos espaços institucionais de formação no
interior do próprio Movimento (veja a seguir; ver também Capítulo 5).
Em relação à utilização dos novos meios de comunicação para a articulação mais
efetiva da rede, aspecto fundamental dos movimentos sociais de maior impacto na
atualidade segundo Castells (1999), o MNMMR não utiliza com eficácia as ferramentas de
comunicação disponibilizadas pela Internet. Ainda que as comissões locais disponham de
computadores conectados à Internet, e ainda que as mensagens eletrônicas sejam
utilizadas para comunicação entre as comissões do Movimento e sua iniciativa nacional,
outros recursos não são bem explorados. Por exemplo, o Movimento atualmente não
dispõe de um site atualizado, não utiliza a Internet para divulgar suas atividades e não
explora os recursos disponíveis para teleconferências, o que poderia ter resultados
positivos para a integração dos trabalhos desenvolvidos pelas diversas comissões e para a
visibilidade do Movimento e de suas propostas (ver Capítulo 8).
Esse aspecto, ligado às tecnologias de comunicação, pode estar relacionado à atual
desarticulação da rede nacional do Movimento, observada em minha pesquisa de campo.
A desarticulação nacional do Movimento foi tema debatido na Assembléia Nacional de
que participei em abril de 2006, e sobre a qual tomei as seguintes notas de campo (sobre
minha participação na assembléia e seu contexto de realização, ver Capítulo 4):

Houve um consenso de que o Movimento precisa de estratégias de comunicação


para divulgar seu trabalho.
Disseram na Assembléia que houve um tempo em que o Movimento tinha ‘cabeça na
estrutura nacional’ e não tinha ‘corpo nos estados’, mas que agora a situação se
inverteu: tem corpo nos estados, mas não tem estruturação nacional eficiente (Notas
de campo registradas em 1º de abril de 2006).

Assim, ao contrário do que Gohn (2003b) e Castells (1999) definem como


característica dos novos movimentos sociais, no caso do MNMMR em vez de uma maior
integração em rede o que se observou foi um enfraquecimento da rede anteriormente
existente. A sensação predominante na assembléia de 2006 foi a inexistência de um
movimento propriamente nacional, mas sim de diversos movimentos locais que
representam essa iniciativa nacional de forma pouco integrada.

[19]
Os principais projetos do Movimento desde sua criação, registrados em seu estatuto,
são a conquista e a defesa de direitos, a formação de educadores/as e a organização de
meninos e meninas.3 A conquista de direitos foi um aspecto fundamental da atuação do
Movimento no período imediato a sua criação, com as pressões realizadas junto a
parlamentares à época da formulação da Constituição de 1988, e com as atividades
vinculadas à elaboração e à aprovação do ECA e à formação dos conselhos de direitos. A
defesa de direitos continua sendo um foco central, uma vez que “as dezenas de comissões
do MNMMR funcionam como virtuais centros de defesa da criança, sendo um canal para
expressão da voz de meninos e meninas cujos direitos são violados” (Santos, 1994: 40).
A formação de educadores/as para atuação na educação social de rua baseou-se na
criação do Centro de Formação e Apoio a Educadores, que chegou a ter três pólos: o
primeiro deles foi criado em 1989 em São Paulo, o segundo foi fundado em 1990 em Belém,
e o terceiro em 1992 em Recife. O centro de formação atuava promovendo cursos de
capacitação para educadores/as, atividade fundamental para a profissionalização do trabalho e
a manutenção das equipes. Entretanto, atualmente os pólos do Centro de Formação já não
funcionam, segundo me foi informado pela educadora Júlia e pela jovem Maria em
entrevistas individuais (sobre a participação de Júlia e Maria na pesquisa, ver Capítulo 4; sobre
o Centro de Formação, ver Capítulos 5 e 7). Na mesma assembléia a que me referi nos
parágrafos anteriores, Paula, então coordenadora da Comissão Local do MNMMR no DF,

afirmou: “O problema não é só discutir a estrutura do Movimento. Precisamos pensar o que


trava a nossa ação. Considerando uma conjuntura, o que acontece que faz com que não
consigamos realizar essa tarefa importante? A formação é um problema”.
A organização e a formação de meninos e meninas são consideradas as atividades
essenciais do Movimento, uma vez que seu “princípio básico é a promoção da criança e
do adolescente como sujeitos de sua história e cidadania” (MNMMR, 1997). Esse projeto é
perseguido nos núcleos de base, “espaços co-geridos pelas próprias crianças, onde elas
podem debater sua condição social de excluídos, adquirir conhecimento e consciência de
seus direitos (e dos serviços disponíveis) e elaborar soluções alternativas para suas vidas”

3 Sobre o funcionamento atual dessas linhas de atuação na Comissão Local do DF, ver Seção 5.1.
[20]
(Santos, 1994: 31). O centro da proposta, pautada no conceito de ‘protagonismo juvenil’,
é que por meio da participação ativa o/a adolescente possa envolver-se na solução de
problemas na comunidade e na sociedade. O que caracteriza o protagonismo juvenil é que
o/a jovem emerge como fonte de iniciativa, na medida em que é dele/a que parte a ação;
de liberdade, uma vez que na raiz de suas ações está uma decisão consciente; e de
compromisso, manifesto em sua disposição para responder por seus atos (Costa, 1998).
Sobre protagonismo juvenil, Castro (2001: 485) sugere que “a perspectiva é a produção de
sujeitos sociais para, a partir da potencialidade dos jovens, resgatar projetos, referências de
vida”. Ela também ressalta que o conceito de protagonismo juvenil entrelaça-se com
“uma série de outros conceitos próprios de um léxico preocupado em qualificar a
democracia”, em termos de participação da sociedade civil na mudança social. Isso se
alinha com o conceito de participação cidadã, conforme discutido por Gohn (2003b: 18-9):

A Participação Cidadã é lastreada num conceito amplo de cidadania, que


não se restringe ao direito ao voto, mas constrói o direito à vida do ser
humano como um todo (...) A Participação Cidadã funda-se também
numa concepção democrática radical que objetiva fortalecer a sociedade
civil no sentido de construir ou apontar caminhos para uma nova
realidade social – sem exclusões de qualquer natureza (...) Para que venha
a ocorrer a Participação Cidadã, os sujeitos de uma localidade/
comunidade precisam estar organizados/mobilizados de uma forma que
ideários múltiplos fragmentados possam ser articulados.

Um aspecto central ao discurso do protagonismo, então, é a mobilidade: a crença


na possibilidade de mudança social e na capacidade de atores sociais engajados
influenciarem essa mudança. Os focos iniciais do Movimento, em termos de
protagonismo, eram a questão da situação de rua entre crianças e adolescentes, a
necessidade de se pensar e implantar políticas públicas para transformar sua situação, e a
promoção de sua capacidade de organização para se tornarem agentes de mudança social
no que se refere à resolução de seus problemas e à exigência da garantia de direitos nas
instâncias adequadas.
Embora a Constituição brasileira, em seu Artigo 227, adote a teoria da proteção
integral a crianças e adolescentes – que se define na responsabilização da família, da
sociedade e do Estado por sua proteção –, o Estatuto da Criança e do Adolescente é
[21]
freqüentemente desrespeitado, inclusive por falta de conhecimento da sociedade a seu
respeito (Melo, 2001). Crianças e adolescentes, protegidos/as pelo Estatuto, não raro
desconhecem seu conteúdo e/ou não sabem a que órgãos recorrer em caso de desrespeito
a seus direitos. O MNMMR atua nessa lacuna: busca ampliar o conhecimento acerca de
direitos assegurados em lei. O foco de ação do Movimento, hoje, é a conscientização de
crianças e adolescentes atingidos/as pela precariedade social, que se encontram em
situação de risco devido a sua localização desprivilegiada na distribuição de recursos
materiais e simbólicos na sociedade, não necessariamente em situação de rua. Esse
alargamento do conceito de ‘meninos e meninas de rua’ a que se refere o próprio nome
do Movimento parece ser mais presente hoje que na época de sua formação, quando as
ações da organização eram mais especificamente voltadas para esse público. Entretanto, já
no início da década de 1990, Fregnani (1992: 6) ressaltou:

O nome ‘Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua’ existe


desde sua criação, em 1985. Tem a ‘rua’ no nome do Movimento porque
de início a discussão e a ação maior foi em torno dessa situação: meninos
e meninas que moram nas ruas. Essa é a pior das situações que vivem as
crianças do Brasil. Mas se formos ao fundo da questão, o problema são
as desigualdades e as injustiças que todos vivem no país, e se não
fizermos alguma coisa, mais crianças estarão nas ruas.

O conceito de ‘meninos e meninas de rua’ adotado hoje pelo Movimento, então, é


amplo: ultrapassa o senso comum de que pertencem a essa categoria apenas crianças e
adolescentes que vivem nas ruas ou tiram dela seu sustento, para abarcar também
aqueles/as de famílias extremamente pobres. Isso porque essas crianças e adolescentes
encontram-se constantemente em situação de risco, inclusive o risco de rua, devido ao
contexto de precariedade sócio-econômica em que se situam.
Essa ampliação do foco não é vista, entretanto, como uma questão simples. Ao
contrário, é problemática no Movimento, pois não se trata apenas de uma ampliação do
foco – o que significaria o trabalho simultâneo com crianças e adolescentes efetivamente
em situação de rua e com crianças e adolescentes em outras situações de vulnerabilidade
–, mas de uma mudança de foco: as comissões locais, de um modo geral, passaram a

[22]
trabalhar em núcleos de base nas periferias e não nas ruas.4 Essa questão foi debatida na
Assembléia Nacional do Movimento de que participei em abril de 2006, ocasião em que
anotei em meu diário de campo: “A questão do trabalho com crianças e adolescentes
efetivamente em situação de rua parece ter sido abandonada em todas as comissões
locais! Essa é uma grande preocupação da Paula [então coordenadora da Comissão
Local do MNMMR no DF]”. Essa questão também foi tratada em outros dados da
pesquisa, em que a interrupção do trabalho de educação social de rua foi considerada
‘perda do eixo’ do Movimento (ver Capítulo 8).
Já na primeira metade da década de 1990, Santos (1994: 41) reconhece um
diagnóstico de crise no que se refere aos núcleos de base do Movimento:

Um diagnóstico vem preocupando o Movimento: a velocidade dos


acontecimentos conjunturais na área da infância tem determinado e
mesmo imposto ao MNMMR um ritmo muito acelerado às suas
intervenções políticas, obrigando-o a deixar em segundo plano suas
questões de organização interna. Frente ao imenso leque de campos de
ação abertos, seus militantes, engajados em frentes, fóruns, conselhos,
organização de crianças e adolescentes, cursos de capacitação e
atividades de formulação de políticas públicas, não têm tido tempo para
se dedicarem minimamente à arquitetura de sua própria organização. Em
outras palavras, tempo para fortelecer as comissões locais e seus núcleos
de participação das próprias crianças, que, já fragilizados, correm o risco
de perder a unidade interna.

Essa conjuntura de crise da nucleação foi observada em minha pesquisa de campo: a


desestruturação dos núcleos de base é um aspecto claro da condição do Movimento no
Distrito Federal. O surgimento dos núcleos de base da Comissão Local do MNMMR no DF

(MNMMR/DF) está intimamente relacionado à atuação de Júlia. O envolvimento dessa


educadora com o Movimento deu-se quando de sua visita à comissão estadual de
Pernambuco, no Recife (ela não soube me informar o ano exato em que isso aconteceu,
mas há registro de sua participação na Comissão Local do DF em 1990). Ela já atuava com
crianças e adolescentes em Pequizeiro, cidade satélite de Brasília, em seu trabalho como

4Sobre a retomada desse foco inicial pela Comissão Local do Movimento no DF, por meio do Projeto Giração, ver
Capítulos 4, 6 e 8.
[23]
educadora em uma ONG ligada à Igreja Católica.5 Quando voltou dessa viagem, integrou-se
como militante no Movimento, que à essa época mantinha um pequeno escritório no
Conjunto Nacional de Brasília. A história da formação dos núcleos de base no Distrito
Federal está atrelada à Igreja pela atuação de Júlia nessa ONG, que possibilitou seu acesso a
uma creche em Pequizeiro, a Espaço Criança6, por meio de uma freira que atuava na creche
como coordenadora.7 Dentro dessa creche formou-se o que viria a ser o embrião dos
núcleos que se espalharam por quatro cidades satélites de Brasília:

O Espaço Criança, ele era um núcleo dentro de uma creche, que tinha uma
coordenadora, assim, mais aberta já naquela época e que me conhecia de Pequizeiro
porque eu lutava pelos direitos da criança, já lá nessa minha entidade, articulava. E eu
fui desenvolver esse trabalho lá, a convite da Irmã Márcia. Aí eu fui lá um dia, falei
do Movimento, o quê que era o Movimento, o quê que o Movimento pensava
(Entrevista com Júlia).

Assim, iniciou-se um processo de nucleação na própria creche, com a atuação de


Júlia e um colega, militantes no voluntariado do Movimento. Entretanto, com a saída de
Irmã Márcia, que “acreditava na organização dos meninos”, da coordenação do Espaço
Criança, foi substituída por um “coordenador bem radical, e a primeira coisa que ele fez
foi proibir as atividades”. Júlia reflete sobre essa atitude do coordenador a partir do
conflito que se instala com a participação: é mais fácil lidar com crianças “omissas” que
com crianças participativas, capazes de criticar.
As crianças e os/as adolescentes, contudo, não estavam dispostos/as a abandonar o
núcleo, de modo que se formou um grupo independente do Espaço Criança. Júlia
trabalhava na outra ONG, aquela ligada à Igreja, durante a semana e aos finais de semana
dedicava-se à nucleação, como militante voluntária do Movimento. Como já não

5 As cidades satélites de Brasília são referidas por meio de nomes fictícios.


6 Nome fictício. Embora seja referida como ‘creche’, a Espaço Criança não se ocupava apenas de crianças pequenas,
atendia também crianças maiores e até adolescentes.
7 A relação entre a formação do MNMMR e a Igreja fica clara se pensarmos na influência da Pastoral do Menor na

articulação de movimentos de defesa dos direitos de crianças e adolescentes, no final da década de 1970. Entre os/as
dez representantes das cinco regiões do Brasil na primeira gestão do MNMMR (de junho de 1985 a agosto de 1986),
havia três padres e uma freira (Santos, 1994). A influência da Teologia da Libertação na configuração dos
movimentos populares no Brasil das décadas de 1970 e 1980 também é registrada por Gohn (2003b). O MNMMR,
contudo, não é um movimento ligado a nenhuma religião, e o discurso religioso não foi observado em meus dados
ou mesmo no período de observação participante. A relação com a Igreja continua, entretanto, por meio de
financiamentos que o Movimento já recebeu de instituições como a Cáritas, a Misereor e o Sécours Catholique.
[24]
dispunham do espaço institucional da creche, segundo Júlia o grupo “caçava espaço nas
escolas, sempre foi assim”. Dentre os/as jovens participantes da pesquisa, já faziam parte
desse grupo do Espaço Criança Maria, suas irmãs Rita e Fernanda, e Rafael (ver Capítulo 4).
O espalhamento desse primeiro grupo deu-se em decorrência da instabilidade de
residência que acompanha a vida dos/as extremamente pobres em Brasília. Vários
membros do grupo mudaram-se de Pequizeiro para outras cidades satélites, e “como eles
não queriam deixar de ser do Movimento, eles começaram a organizar os meninos” em
suas novas cidades (Entrevista com Júlia). Algumas crianças mudaram-se com suas
famílias para Oliveiras, montando lá um núcleo de base do Movimento. A família de
Maria mudou-se para Campina, onde ela e suas irmãs deram origem a outro núcleo. Em
Pequizeiro formaram-se dois núcleos. Por fim, formou-se o núcleo de Brasiliana.
Até 1998, o MNMMR/DF contou com recursos de um projeto intitulado “Programa de
Fortalecimento da Organização de Meninos e Meninas de Rua para a Defesa de seus Direitos
e Exercício da Cidadania”, financiado pelo Sécours Catholique. Isso possibilitava a manutenção
de educadores/as atuando no trabalho de nucleação, junto aos grupos formados nas cidades.
Com o encerramento desse projeto e o insucesso na aprovação de outros projetos para a área
de organização de meninos e meninas, os núcleos de base do MNMMR/DF foram
enfraquecidos e perderam a metodologia própria do Movimento para a nucleação: “O núcleo
de base é a unidade orgânica de participação de crianças e adolescentes. (...) Cada grupo
possui, no mínimo, um educador acompanhante” (Santos, 1994: 28). Segundo Júlia, um
núcleo de base “é um espaço de organização dos meninos. É um espaço que, dentro da
metodologia do Movimento, é importante que tenha um educador, que faça reflexão do
cotidiano dos meninos e pense formas de mudar os seus problemas ou organizar” (Entrevista
com Júlia). Na entrevista que me concedeu, a educadora Vera refletiu sobre o funcionamento
da nucleação quando havia recursos para manter educadores/as envolvidos/as com os
núcleos de base e para uma coordenação desse trabalho:

E a gente tinha uma coordenação, na época era a Júlia. Nós éramos quatro
educadores e os educadores se dividiam entre os núcleos e a gente tinha
coordenação, tinha a... – como é que fala? – o projeto, a organização para o... o quê
que era para fazer, a planilha do quê que é para fazer, como é que era para a gente
movimentar nas cidades. Porque a idéia era do seu núcleo estar discutindo direito e
[25]
cidadania mas, na sua cidade, ele estar discutindo com outros jovens, ampliando o
trabalho, fazendo com que aquele núcleo, núcleo de direitos, núcleo de cidadãos, de
protagonistas, ele crescesse na sua cidade. Isso só foi possível quando o Movimento
tinha projeto para isso também (Entrevista com Vera).

Mas os núcleos de base das cidades satélites de Brasília já não contavam com
educadores/as disponíveis para a execução desse trabalho. Um fator agravante foi a
aprovação de um projeto para realização de um trabalho de organização junto a um grupo
de catadores/as de material reciclável. O envolvimento do Movimento com essa questão,
motivado pela existência de crianças fora da escola e em situação de trabalho infantil no
grupo, iniciou-se por volta de 1998, segundo a história que Vera me contou a respeito e
que registrei em minhas notas de campo:

Era 1998. Júlia estava participando de uma exposição no Congresso Nacional e,


quando ela estava tirando os bonecos grandes da Kombi, ela conheceu um menino
de uns dez anos. Ele veio perguntar sobre os bonecos, ela lhe disse que agora estava
com pressa, mas que na volta conversaria com ele e mostraria os bonecos. Ele ficou
lá do lado esperando, achando que a Júlia lhe daria alguma coisa. Quando ela voltou,
ele ainda estava lá, e então conversaram. Jú lhe perguntou onde ele morava, ele
explicou e combinaram de se encontrar no sábado. Morava em um acampamento de
catadores/as de papelão. (…). O Movimento iniciou então um trabalho de educação
de rua na comunidade. No início, o trabalho consistia em jogos de futebol aos
sábados. Passaram quatro meses jogando futebol nas tardes de sábado com as
crianças. A maioria das crianças não estudava. O Movimento iniciou o contato com a
comunidade. (...) Passaram a ter atividades três vezes por semana. As crianças já
tinham sido incluídas na escola, mas tinham muita vergonha de freqüentar o
ambiente escolar. Os membros da equipe de educadores/as, então, começaram a
discutir com os/as adultos/as sobre a questão da escola, do PETI (Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil) e da moradia – o SIVSOLO [Serviço Integrado de
Vigilância do Uso do Solo do DF] fazia derrubadas sistemáticas dos barracos de lona
e queimava tudo o que as pessoas conseguiam acumular. (...) Organizou-se uma
carroceata. O GDF propôs ao grupo de catadores/as sua fixação junto à usina de lixo
da L2 sul, mas alguns membros da comunidade não aceitaram, pois já tinham estado
lá e a experiência havia sido ruim. Com a organização de catadores/as, com o
Movimento sempre atuante, negociou-se com o GDF a regulamentação de um
terreno para a cooperativa. Conseguiram a área onde até hoje está a cooperativa de
catadores/as. (…) Hoje a cooperativa conta com a participação de cerca de 120
pessoas. A cooperativa de catadores/as é hoje um movimento articulado
nacionalmente com outras organizações comunitárias, com o Governo Federal e
Distrital, com o Movimento Nacional de Catadores/as, com o Fórum de Cidadania.
Os/as catadores/as cooperativados/as foram enfim inseridos no espaço político. É
esse o papel do Movimento: a inserção no espaço político para a luta pelos direitos.
Hoje há membros da cooperativa que são lideranças nacionais na luta de

[26]
catadores/as. São protagonistas e carregam com autonomia sua bandeira (Nota de
campo registrada em 26 de abril de 2006).

Para Júlia, o trabalho com a cooperativa de catadores/as, embora tenha sido um


“trabalho belíssimo”, era “outra pressão em cima da gente; um peso terrível”, e a
conseqüência direta disso foi “um hiato na organização dos meninos”. Soma-se a isso
uma crise de militância que subtraiu educadores/as ao trabalho: “alguns desses
educadores foram estudar, foram trabalhar, não tinham mais esse tempo de estar aqui
como antes”. Júlia relaciona essa crise de militância ao contexto de precarização das
relações de trabalho: “antes, quem tinha um trabalho podia ser voluntário num tempo;
hoje em dia, o povo está tendo de trabalhar 24 horas para sobreviver mesmo”. Vera, por
sua vez, na entrevista individual, relacionou a crise de militância à desarticulação dos
espaços de formação: “se você não tem formação, você também não tem militância”.
De minha parte, creio que a falta de militantes no Movimento também pode ser
relacionada, por um lado, à ausência de mecanismos de divulgação das atividades do
Movimento e, por outro lado, a uma desmobilização da sociedade no que se refere à
questão da infância, em termos do que parece ser uma campanha difamatória do ECA,

como parte do discurso pelo rebaixamento da maioridade penal (Resende, 2007). Na


assembléia de 1º de abril de 2006, Paula refletiu sobre essa desmobilização: “A crise não é
só do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, mas do movimento de
trabalho com a infância de modo geral”.
Mas apesar das dificuldades que o Movimento enfrentava para dar continuidade
aos trabalhos nos núcleos de base, “os meninos faziam uma pressão porque não queriam
sair do Movimento” (Entrevista com Júlia). A solução encontrada foi passar-lhes a
responsabilidade da coordenação dos núcleos. Assim, coube a jovens lideranças locais a
manutenção dos núcleos do Movimento em suas cidades. Todas as jovens que assumiram
a coordenação dos núcleos de que faziam parte haviam participado do Movimento como
‘meninas’ na infância e/ou na adolescência: Maria tornou-se coordenadora do núcleo de
Campina; Joana, ao lado de sua irmã Marília, do de Brasiliana; Amanda, do de Oliveiras, e
os dois núcleos de Pequizeiro, onde tudo havia começado, deixaram de existir. Esse

[27]
processo deu-se sem um planejamento prévio, por iniciativa das próprias jovens, motivo
pelo qual podemos considerá-las protagonistas dessa história.
Isso fugia à metodologia do Movimento para a organização de meninos e meninas,
mas foi a solução aventada para responder às inquietações daquelas jovens e para manter
em funcionamento os núcleos de base, ainda que isso não se desse da maneira
considerada mais adequada:

Estava rolando umas atividades nas cidades com menos densidade do que é a
nucleação mesmo. Mas, assim, bem solto porque não tinha uma coordenação para
garantir a discussão do Movimento. E nem uma equipe. Aí o quê que tinha? Tinha
eu, fazia tudo no Movimento, discutia com esses meninos tudo, mas não tem como
você planejar e fazer um encaminhamento. E também não tinha como fazer a
captação de recursos. Então, assim, houve assim um tumulto nesse processo todo
(Entrevista com Júlia).

As jovens Maria, Amanda, Marília e Joana coordenaram os núcleos de suas cidades


até dezembro de 2005, quando a crise financeira do Movimento impossibilitou inclusive
o pagamento das bolsas que elas recebiam para desempenhar esse trabalho. Além disso, a
coordenação do Movimento e suas educadoras avaliaram que a manutenção dos núcleos
não atendia à metodologia de organização do Movimento, e que portanto seria melhor
interromper esse trabalho para canalizar energia para outros projetos.

1.2 Da necessária flexibilidade no planejamento da pesquisa

Na seção anterior, procurei fazer uma contextualização da história do MNMMR e de


sua Comissão Local do DF em particular. Quando iniciei o projeto junto ao Movimento,
em abril de 2005, entretanto, eu não conhecia a história que acabo de narrar, não sabia
dos problemas enfrentados pela organização, da interrupção do trabalho junto a crianças e
adolescentes efetivamente em situação de rua, da crise de nucleação. Meu interesse inicial
no desenvolvimento da pesquisa junto ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de
Rua era investigar as práticas de educação social de rua, segundo informações obtidas no
site do MNMMR na Internet (MNMMR, 2005), cuja falta de atualização eu desconhecia. De
acordo com as informações disponíveis na Internet, o trabalho de nucleação seria
[28]
desenvolvido em cinco etapas: 1. Mapeamento das “diferentes condições em que vivem as
crianças e adolescentes na rua” e “trabalho de abordagem”; 2. Realização do trabalho
lúdico de atração das crianças e adolescentes, por meio de “oficinas pedagógicas de arte-
educação, jogos, brincadeiras, teatros, danças, lazer, debates”; 3. Apresentação da
proposta do Movimento, quando “despertando o interesse das crianças e adolescentes, o
educador convida-os para participar do Movimento”, apresentando-lhes outros grupos já
nucleados; 4. Criação de um novo núcleo de base ou filiação a um núcleo já existente; 5.
Elaboração conjunta de um “plano de trabalho”, definição das atividades a serem
realizadas pelo núcleo (MNMMR, 2005). Com base nessas informações, vislumbrei a
possibilidade de desenvolver um trabalho de acompanhamento dessas etapas de formação
de um núcleo de base, realizando oficinas, entrevistas e grupos focais com meninos/as e
educadores/as do Movimento. A primeira providência foi procurar a Comissão Local do
Movimento no DF para expor essa idéia inicial do projeto.
Logo em minha primeira visita à sede da Comissão Local do Movimento no DF,

entretanto, Júlia explicou-me que as atividades realizadas diretamente na rua haviam sido
interrompidas por falta de educadores/as e de projetos para captação de recursos. Sobre
isso, anotei em meu diário de campo:

Hoje visitei a sede distrital do Movimento. Conversei com uma educadora, a Júlia.
Ela me disse que o Movimento enfrenta vários problemas políticos, financeiros e
problemas internos. Parece que está havendo uma desarticulação do Movimento em
âmbito nacional, e que as atividades estão restritas aos comitês regionais. Eu queria
trabalhar, inicialmente com observação participante, no programa de abordagem a
crianças em situação de rua, mas ela me disse que esse programa está desativado por
falta de colaboradores/as. Ela disse que os trabalhos na Comissão Local do DF estão
restritos a quatro núcleos – Oliveiras, Campina, Brasiliana e a Cooperativa de
catadores/as de papelão – e que cada núcleo desenvolve atividades independentes.
(Nota de Campo registrada em 12 de abril de 2005).

Assim, o desenho inicial da pesquisa, cujo projeto começou a ser desenvolvido


depois dessa conversa com Júlia, previa estratégias de geração/coleta de dados (ver
Capítulo 3) nos núcleos de base do Movimento, junto a adolescentes dos núcleos que
teoricamente estavam ativos para a organização de meninos e meninas em cidades
satélites de Brasília. Havia aprendido uma primeira lição importante acerca do
[29]
Movimento: o conceito de ‘meninos/as de rua’ adotado pela organização. Sobre esse
conceito amplo de ‘meninos/as de rua’ no contexto do Movimento, uma das educadoras
da organização, aqui chamada Vera, contou-me em entrevista:

Aí, eu entrava também nesses conflitos. “Ah mas esses meninos não são meninos de
rua”. Porque os meninos de rua eram os meninos que ficavam debaixo da ponte,
cheirando cola, fumando maconha e ali naquela vunerabilidade toda. E os meninos de
Pequizeiro não eram meninos de rua! Eram meninos que tinham casa! E aí é que eu
fui entender, também tinha esse conflito. “Pô, mas era o Movimento dos Meninos de
Rua e está aqui em Pequizeiro. Os meninos todos têm casa”. Mas eram os meninos
que estavam envolvidos com gangue, com arma, com droga. Só desse núcleo
morreram mais de cinco, outros foram presos. Então eu fui entendendo a concepção
dos meninos de rua para o Movimento. (…) E o Movimento é mais amplo: meninos
e meninas, filhos dos trabalhadores, da classe dos trabalhadores. Que está aí. Essa
falsa inclusão. Você mora em Oliveiras, você está numa casa, mas você não tem
escola, você não tem nada! As armas, as drogas, estão tudo lá. Eles estão se matando
por falta de política pública (Entrevista com Vera).

Fiz observação participante nos núcleos de Campina e de Brasiliana – o primeiro


liderado por Maria e o segundo por Joana, ambas jovens do Movimento –, além da sede
do Movimento no Plano Piloto de Brasília, a fim de me aproximar dos contextos em que
pretendia realizar pesquisa de campo (ver Capítulo 4). Minha idéia agora era realizar
oficinas de texto junto aos dois grupos para posteriormente organizar, em parceria com
os/as adolescentes, com as jovens e com a coordenação do Movimento, um jornal
comunitário. Essa idéia surgiu da constatação de que o Movimento tinha na falta de
mecanismos de divulgação de suas atividades um de seus problemas. As questões que eu
pretendia abordar nessa primeira versão do projeto eram:

(a) Como as crianças e adolescentes membros do MNMMR no DF identificam-se em


textos e interações sociais?
(b) Como as crianças e adolescentes membros do MNMMR no DF representam a
exclusão social? Que discursos subjazem a essas representações?
(c) A que discursos se filia o MNMMR no DF em defesa dos interesses de crianças e
adolescentes sócio-economicamente excluídas?
(d) O MNMMR/DF atua no fortalecimento do protagonismo juvenil? Quais as
evidências discursivas disso, em textos e interações sociais?
(e) A ação do MNMMR/DF junto a essas crianças e adolescentes colabora na
construção ativa de identidades de projeto? Como?

[30]
Logo compreendi, contudo, que os núcleos de base do Movimento no DF não
estavam articulados como eu imaginava, como aquela minha primeira conversa com Júlia
me tinha dado a entender. Não havia constância nas atividades nem coordenação do
trabalho das jovens, que atuavam como lideranças em suas cidades (ver Capítulo 4).
Aprendi que a crise do Movimento era ainda mais grave e que, se eu quisesse continuar a
pesquisa junto a essa organização, não poderia centrar a investigação em ‘meninos e
meninas de rua’, fosse o conceito entendido de modo restrito ou amplo. Foi então que
decidi que, se eu pretendia mesmo realizar minha pesquisa junto àquele movimento social
– e eu de fato o pretendia – era necessário rever o planejamento, dessa vez de forma mais
radical. Era claro que a atuação do Movimento não havia sido sempre assim, e eu
reconhecia a importância histórica desse movimento social na luta por direitos de crianças
e adolescentes no Brasil. Reformulei, então, o projeto com base nas seguintes questões:

(a) Como as jovens líderes de núcleos do MNMMR/DF representam a condição de


exclusão? Que discursos subjazem a essas representações? O que isso implica para
sua identificação como protagonistas?
(b) A que discursos se filiam as educadoras do MNMMR/DF em defesa dos interesses
de crianças e adolescentes sócio-economicamente excluídos/as? O que isso
implica para sua identificação?
(c) Como o MNMMR/DF atua no fortalecimento do protagonismo juvenil? Quais as
evidências acionais/discursivas disso, em (inter)ações sociais?

Embora essas questões não trouxessem, como as que me havia colocado antes,
impedimentos para sua persecução, comecei a me questionar quanto à pertinência de
análises conduzidas por essas questões. Valeria a pena analisar dados para chegar a
conclusões que acabariam por ser indiferentes para o Movimento com o qual eu
trabalhava? Valeria a pena investigar a atuação do Movimento em relação ao
protagonismo juvenil se eu já sabia que a nucleação estava desmobilizada? Deparava com
uma conjuntura de crise ainda maior do que o admitiam as pessoas profundamente
envolvidas com o Movimento – e que muitas vezes se agarravam a ficções, acerca do
Movimento, baseadas no passado da instituição –, e desejava que meu esforço na pesquisa
pudesse servir para uma melhor compreensão dessa crise, inclusive por seus membros. As
perguntas que eu começava então a me fazer eram:

[31]
(a) Como as educadoras do MNMMR/DF representam a ação e a crise da instituição?
(b) Como as jovens representam o MNMMR/DF e identificam-se como protagonistas?
(c) Como as jovens representam suas trajetórias dentro do MNMMR/DF e sua ação
como protagonistas?
(d) Como as educadoras do MNMMR/DF (e outros/as adultos/as envolvidos/as com
o Movimento) representam o protagonismo e identificam as jovens?

Meu objetivo era compreender os modos de representação da crise do Movimento


e do protagonismo juvenil, com a expectativa de que essas reflexões pudessem ser úteis
também ao Movimento, por meio do compartilhamento dos resultados da pesquisa. A
conjuntura de dificuldades na captação de recursos, de desarticulação do Movimento e de
desestruturação da nucleação foi determinante de minhas (im)possibilidades na pesquisa e
dos sucessivos redesenhos a que tive de submeter meu projeto. Por outro lado, mantenho
a esperança de que minha pesquisa possa contribuir para o movimento social que me
recebeu, não só pela natureza participativa da pesquisa (ver Capítulo 4), mas também pelo
potencial de seus resultados em termos da compreensão de aspectos opacos da crise.

Algumas Considerações

Neste capítulo procurei contextualizar o Movimento Nacional de Meninos e


Meninas de Rua, em termos de sua história. Buscando enfatizar sua importância para a
conquista de direitos de crianças e adolescentes no Brasil, quis também justificar minha
insistência nesta pesquisa, apesar das dificuldades que se apresentaram ao longo do
processo. Por outro lado, também discuti alguns dos obstáculos que o Movimento tem
enfrentado na luta pela continuidade de suas atividades, aspecto que permeia toda a
discussão que levo a cabo ao longo da tese.
Alguns esclarecimentos relevantes foram feitos na negociação desse ponto de
partida – está claro que não realizei pesquisa diretamente com meninos e meninas em
situação de rua, tampouco um estudo sociológico da atuação do MNMMR. Minha pesquisa é,
antes, um estudo discursivo – em termos das representações – da crise desse movimento
social, em que meu objetivo é desvendar algumas de suas causas discursivas, com base

[32]
nos modos como seus membros representam a crise, legitimam modos de ação e se
identificam em relação à organização e ao papel protagonista.
Para tanto, mobilizo pressupostos da Etnografia, para a geração/coleta de dados
junto ao Movimento, e da Análise de Discurso Crítica e da Ciência Social Crítica,
notadamente o Realismo Crítico, para a análise e a discussão desses dados. Nos
próximos três capítulos, que compõem a Parte I da tese, discuto esses pressupostos, a
fim de esclarecer também os pontos de partida para as análises apresentadas nos
capítulos da Parte II.

[33]
PARTE I
2
PRÁTICA SOCIAL E DISCURSO: PERSPECTIVA 
ONTOLÓGICA EM ADC 

A ADC afirma que o discurso é socialmente constitutivo


assim como é socialmente condicionado. Além disso, o
discurso é um instrumento de poder, de importância
crescente nas sociedades contemporâneas. O modo como
esse instrumento de poder opera é difícil de compreender, e
a ADC procura torná-lo mais visível.
(Jan Blommaert, 2005: 25)

N este capítulo, meu foco é a perspectiva ontológica que orienta pesquisas em


Análise de Discurso Crítica (ADC), especificamente a versão de ADC com a qual
trabalho. Na primeira seção, apresento a ADC como constituída de uma heterogeneidade
de abordagens que, no entanto, compartilham princípios comuns, e esclareço meu foco,
dentre essas diferentes versões. Na segunda seção, com base no Realismo Crítico (RC),
teoria social que inspira a abordagem para ADC com a qual trabalho, discuto alguns
preceitos básicos sobre a realidade social e sobre a relação entre estrutura e ação social, e
focalizo as influências da ontologia do RC na ADC. Em seguida, com base em alguns dos
pressupostos da Lingüística Sistêmica Funcional (LSF) e na recontextualização desses
conceitos em ADC, abordo as duas funções da linguagem que se mostram centrais para o
interesse específico de minhas análises: a representação e a identificação. Na quarta seção
do capítulo, procuro enfatizar a relevância de análises discursivas textualmente orientadas
para a crítica social.
2.1 Análise de Discurso Crítica: heterogeneidade e continuidades

A Análise de Discurso Crítica (ADC) define-se por uma heterogeneidade de


abordagens que, embora diversas, identificam-se com o rótulo ‘Análise de Discurso
Crítica’.8 Apesar da diversidade, as propostas teóricas e metodológicas em ADC guardam
algumas características em comum, o que confere coerência ao campo.9
Em primeiro lugar, uma característica fundamental dessas abordagens críticas nos
estudos da linguagem é a interdisciplinaridade: o rompimento de fronteiras disciplinares e
o reconhecimento de que para se analisar problemas sociais discursivamente manifestos é
preciso operacionalizar conceitos e categorias desenvolvidos pelas Ciências Sociais
(Wodak, 2003a). Sobre a relevância das relações interdisciplinares para a constituição da
ADC, Blommaert (2005: 2) ressalta:

O desenvolvimento da análise de discurso crítica foi impulsionado, por


um lado, por desenvolvimentos na teoria lingüística em si, que
chamavam atenção para abordagens mais centradas na atividade, no
reconhecimento da linguagem em uso como um objeto de análise
legítimo (...) por outro lado, foi impulsionado por contatos
interdisciplinares intensos entre lingüistas e pesquisadores/as situados
em campos como a análise literária, a semiótica, a filosofia, a
antropologia e a sociologia. 10

Entre as diferentes abordagens em ADC, algumas já se tornaram basilares, inspirando


diversos trabalhos acadêmicos. É o caso das propostas de Norman Fairclough, Teun van
Dijk e Ruth Wodak, que estabelecem diferentes relações interdisciplinares em suas versões
de ADC. Fairclough propõe uma articulação entre Lingüística Sistêmica Funcional e

8 Opto pela tradução ‘Análise de Discurso Crítica’ para ‘Critical Discourse Analysis’, em lugar de ‘Análise Crítica do
Discurso’. Justifico minha escolha pela tradição histórica dos estudos discursivos no Brasil, consolidados com o
rótulo ‘análise de discurso’. Tome-se como mais um argumento – este diretamente ligado à tradução do termo em si
– o texto de van Dijk (1996), em que ambas as formas aparecem: “Critical Discourse Analysis” (p. 84) e “critical analysis
of discourses” (p. 102). Parece-me coerente traduzir a primeira por ‘Análise de Discurso Crítica’ e a segunda por ‘análise
crítica de discursos’. Para uma reflexão mais detida sobre isso, veja Magalhães (2005).
9 Blommaert (2005: 21) enfatiza esse aspecto heterogêneo porém coerente da ADC: “Quando falamos de ADC,

estamos lidando com um grupo de pesquisadores/as que lideram abordagens, cada qual com seus pressupostos
específicos, mas que concordam em certos princípios de análise, que se dirigem a questões similares, e que
desenvolveram algumas ferramentas para isso”.
10 Todas as traduções de trechos de obras em línguas estrangeiras presentes em citações nesta tese são traduções

livres de minha autoria.


[39]
Sociologia (Fairclough, 2003); van Dijk (1989) estabelece diálogo entre Lingüística Textual e
Psicologia Social; enquanto Ruth Wodak volta-se para a Sociolingüística e a História
(Wodak, 1996). Reconhecendo a heterogeneidade, assumo a filiação de meu próprio
trabalho à abordagem de Fairclough, que sugere que pesquisas discursivas críticas estejam
baseadas na identificação de problemas sociais parcialmente discursivos que possam ser
investigados por meio da análise situada de textos (Chouliaraki e Fairclough, 1999).
Uma segunda característica comum às diversas propostas teórico-metodológicas em
ADC é seu caráter posicionado. Trata-se de abordagens críticas para o estudo lingüístico-
discursivo de textos no sentido de que as pesquisas vinculadas à ADC assumem uma
posição explícita em face de problemas sociais parcialmente discursivos, isto é, não
simulam ‘imparcialidade científica’. Partindo da identificação de problemas sociais com
facetas discursivas, o objetivo é desvelar discursos que servem de suporte a estruturas de
dominação ou que limitam a capacidade de transformação dessas estruturas, por isso a
ADC requer atenção tanto ao uso da linguagem quanto à estruturação da ação social
(Blommaert, 2005; Resende & Ramalho, 2006). No caso específico desta pesquisa, o
objetivo é, com base na constatação empírica da conjuntura de crise do MNMMR/DF,

identificar facetas discursivas da crise a fim de torná-las mais visíveis para os membros
desse movimento social e de trazer uma contribuição contextualizada à abordagem teórica
da relação entre discurso e sociedade.
Dessas duas características fundamentais às diferentes abordagens em ADC emerge
uma terceira, nem sempre claramente formulada: nos trabalhos em ADC, o ‘valor’ de
teorias e categorias propriamente lingüísticas não é tomado como tácito, mas emerge dos
dados e dos objetivos da análise. Explico: a Lingüística é utilizada nos trabalhos de análise
discursiva como instrumento para a crítica social. Assim sendo, o objetivo das análises é a
crítica social obtida por meio da análise de instanciações discursivas que servem de
subsídio e sustentação à crítica de problemas sociais. A utilização de categorias
lingüísticas, portanto, justifica-se na medida em que possibilita ao/à analista explorar a
materialização discursiva de problemas sociais, em termos dos efeitos dos aspectos
discursivos em práticas sociais contextualizadas (e vice-versa), da vinculação de textos a

[40]
discursos particulares, dos efeitos de discursos particulares na constituição de identidades
e na legitimação de modos de ação.
Os estudos discursivos têm atraído atenção de pesquisadores/as de diversas áreas da
teoria social contemporânea. Segundo Fairclough (2000), esse interesse deve-se, por um
lado, a teorizações sociais recentes acerca da atual fase da modernidade, amplamente
centradas no papel da linguagem na vida social, e, por outro lado, à “virada lingüística na
vida social recente” propriamente dita (Fairclough, 2000: 164). Isto é, tais teorizações
sociais baseadas na linguagem (a chamada virada lingüística na teoria social) estão na
esteira de um processo concreto vivenciado nas práticas sociais contemporâneas: a vida
social é cada vez mais mediada por textos e o papel de textos na vida social é cada vez
mais saliente em todos os campos da atividade humana, como por exemplo a cultura, a
política e a economia (Fairclough, 2006). Blommaert (2005) faz, entretanto, uma ressalva:
embora concorde que muitos aspectos da vida social contemporânea sejam de fato cada
vez mais influenciados pela linguagem mediada, pela comunicação digital e pela
recontextualização de textos, isso não pode ser generalizado em termos absolutos, sob
risco de se perder de vista as imensas desigualdades entre regiões do mundo, algumas das
quais são excluídas desses processos, e entre grupos sociais em uma mesma região: a
‘virada lingüística’ da vida social não afeta das mesmas maneiras todas as pessoas.
Embora essas abordagens teóricas das Ciências Sociais, baseadas na linguagem e no
discurso, ajudem a iluminar a questão de como a linguagem adquire maior visibilidade em
algumas práticas sociais contemporâneas – sendo, portanto, enriquecedoras para a
discussão do discurso na sociedade –, não elaboram investigações empíricas dos modos
como essa relação discurso/sociedade se concretiza na prática social (Chouliaraki, 2005).
Nesse sentido, Fairclough, Jessop & Sayer (2002: 3) sugerem:

Cientistas sociais e analistas de discurso rotineiramente defendem a


análise semiótica com o argumento de que a semiose tem efeitos reais em
práticas sociais, em instituições sociais e, mais amplamente, na ordem
social. Argumentam, em poucas palavras, que a semiose é performativa.
(...) normalmente falamos ou escrevemos a fim de produzir algum tipo
de efeito. Entretanto, é visível, em análises sociais, a ausência de
respostas à questão de como a semiose produz tais efeitos.

[41]
A ADC busca superar essa lacuna entre teorizações baseadas na linguagem e em
outros sistemas semióticos e pesquisas voltadas para uma explanação dos papéis da
linguagem (e de outras semioses) em práticas sociais contextualizadas.11 Para isso, conta
com a consolidação de um corpo teórico da linguagem na sociedade que, alimentado nas
ciências sociais, apresenta um foco mais específico nos modos como a linguagem figura
na vida social, e de um conjunto de métodos para a análise lingüística de dados empíricos,
entendendo o texto como unidade mínima de análise (Wodak, 2003b). O conceito de
texto envolvido nessa definição da unidade mínima de análise em pesquisas discursivas é
amplo em dois sentidos: primeiro, “qualquer instância de linguagem em uso é um texto”
(Fairclough, 2003: 3), o que ultrapassa o sentido estrito de textos como produções
escritas; segundo, o sentido de texto em ADC ultrapassa a linguagem verbal, oral e escrita,
para incluir outros sistemas semióticos, como os textos imagéticos e os textos
multimodais, que articulam diferentes modalidades semióticas, como a linguagem verbal, a
linguagem visual e efeitos sonoros (Kress & van Leeuwen, 1999).
Para dar conta de sua relação com a teoria social crítica em termos teóricos e da
dimensão crítica assumida em termos práticos – ou seja, para se configurar uma prática
teórica crítica nas fronteiras da Lingüística –, a ADC busca o conceito de práticas sociais,
um dos conceitos basilares da ADC, ao lado do de discurso (Resende & Ramalho, 2004;
ver Seção 2.2). Para Fairclough (2000: 167), a análise das práticas sociais constitui um foco
“teoricamente coerente e metodologicamente efetivo” porque permite conectar a análise
das estruturas sociais à análise da (inter)ação, o que busca superar a já amplamante
discutida divisão entre teorias da estrutura e teorias da ação (sobre teorias da relação entre
estrutura e ação, veja por exemplo Bhaskar, 1989; Giddens, 1991; Bourdieu, 2002. Veja
também Peters, 2006).
Uma característica relevante das práticas sociais é sua articulação em redes
relativamente estáveis. As redes de práticas são organizadas nas diversas áreas da vida

11 O termo ‘semiose’ refere-se à construção inter-subjetiva de significados, o que ultrapassa a linguagem verbal para

envolver também outros tipos de linguagem, como a linguagem visual (Fairclough, Jessop & Sayer, 2002). Uma vez
que nesta pesquisa meu foco é apenas a linguagem verbal, utilizo o termo ‘discurso’, como substantivo incontável,
para me referir ao aspecto discursivo de práticas sociais (Fairclough, 2003; sobre a ambigüidade do conceito de
‘discurso’, ver Seção 2.3).
[42]
social, ou campos (Bourdieu & Wacquant, 2005). 12 Tanto a articulação das práticas em
redes quanto a organização dos campos são sistemas abertos à mudança social
(Fairclough, 2000), já que as pressões pela manutenção das continuidades são parte da luta
hegemônica e toda hegemonia é um equilíbrio instável (Gramsci, 1995).
A articulação entre redes de práticas assegura que a hegemonia é um estado de
relativa permanência de articulações dos elementos sociais, incluído o discurso. Fairclough
(1997) define duas relações que se estabelecem entre discurso e hegemonia. Em primeiro
lugar, a hegemonia e a luta hegemônica assumem a forma do momento discursivo em
interações verbais, por meio da relação entre discurso e sociedade – hegemonias são
produzidas, reproduzidas, contestadas e transformadas também no discurso. Em segundo
lugar, o próprio discurso apresenta-se como uma esfera da hegemonia, pois a hegemonia
de um grupo é dependente, em parte, de sua capacidade de gerar práticas discursivas que a
sustentem (Fairclough, 2003). Uma vez que a hegemonia é conceituada em termos da
permanência relativa de articulações entre elementos sociais, existe uma possibilidade
intrínseca de desarticulação e rearticulação desses elementos. Isso porque os atores
sociais, individuais ou coletivos, embora não gozem de plena liberdade dados os
constrangimentos oriundos da estrutura social, são dotados de relativa liberdade na
rearticulação/transformação de práticas sociais. Obviamente essa ‘liberdade relativa’ é
dependente da disponibilidade de recursos materiais e simbólicos que sustentem a ação
social criativa (sobre recursos e constrangimentos oriundos da estrutura social e sua
relação com a ação, veja a próxima seção).
Em termos discursivos, a luta hegemônica é percebida como disputa pela
criação/sustentação de um status universal para determinadas representações particulares
– do mundo material, mental e social –, ou seja, para certos discursos que podem ser
interiorizados em modos de (inter)ação social e em modos de identificação (Fairclough,

12Sobre o conceito de campo, Bourdieu & Wacquant (2005: 150) explicam: “Em termos analíticos, um campo pode
ser definido como uma rede ou uma configuração de relações objetivas entre posições. Essas posições estão
objetivamente definidas, em sua existência e nos condicionamentos que impõem sobre seus ocupantes, agentes ou
instituições, por sua situação presente e potencial na distribuição de espécies do poder (capital) cuja posse ordena o
acesso a vantagens específicas que estão em jogo no campo, assim como por sua relação objetiva com outras
posições. Nas sociedades altamente diferenciadas, o cosmos social está conformado por vários desses microcosmos
sociais relativamente autônomos, isto é, espaços de relações objetivas que são o lugar de uma lógica e de
necessidades específicas e irredutíveis àquelas que regulam outros campos”.
[43]
2003; ver Seção 2.3). Considerando-se que o poder depende da conquista do consenso e
não apenas dos recursos para o uso da força, o discurso figura como elemento essencial
para a sustentação de relações hegemônicas em um dado contexto histórico. O conceito
aberto de hegemonia, recontextualizado de Gramsci, reforça o papel do discurso no
estabelecimento e na manutenção de relações de dominação, uma vez que a naturalização
de representações particulares é fundamental para a permanência de articulações baseadas
no poder (Thompson, 1995).
O foco nessas perspectivas ontológicas oriundas de desdobramentos recentes das
ciências sociais garante à ADC uma abordagem social de textos, o que tem implicação
direta no tipo de análises de textos formuladas por pesquisadores/as em ADC. Isso porque
não há separação entre as perspectivas social e lingüística nas análises, ao contrário, uma
análise discursiva crítica será tanto mais eficiente quanto maior for a integração entre os
pressupostos articulados na relação interdisciplinar: “se queremos entender formas
contemporâneas de desigualdade na linguagem e por meio da linguagem, devemos olhar
tanto dentro dela quanto na sociedade, e ambos os aspectos da análise não são separáveis”
(Blommaert, 2005: 35). Tendo isso em vista, na próxima seção meu foco volta-se para
algumas implicações ontológicas da relação da ADC com o Realismo Crítico.

2.2 Perspectiva ontológica da sociedade e discurso

A ontologia diz respeito ao modo como se entende a natureza do mundo social, aos
componentes da realidade social considerados essenciais. Embora a essência do mundo social
possa parecer fundamental e evidente, há perspectivas ontológicas alternativas, diferentes
percepções acerca do que compõe a realidade social. Não há uma verdade universal que possa
ser tomada como tácita; a adoção de uma perspectiva ontológica clara do mundo social deve,
então, ser o primeiro passo na definição de um planejamento de pesquisa (Mason, 2002).
A abordagem de ADC com a qual trabalho adota uma versão ontológica baseada no
Realismo Crítico (RC; Fairclough, Jessop & Sayer, 2002). Fairclough (2003: 14) deixa clara
a relação entre essa versão de ADC e o RC:

[44]
A perspectiva social em que me baseio é realista, baseada em uma
ontologia realista: tanto eventos sociais concretos como estruturas
abstratas, assim como as menos abstratas ‘práticas sociais’, são parte da
realidade. Podemos fazer uma distinção entre o ‘potencial’ e o ‘realizado’
– o que é possível devido à natureza (constrangimentos e possibilidades)
de estruturas sociais e práticas, e o que acontece de fato. Ambos
precisam ser distinguidos do ‘empírico’, o que sabemos sobre a realidade.
(...) A realidade (o potencial, o realizado) não pode ser reduzida a nosso
conhecimento sobre ela, que é contingente, mutável e parcial.

Embora não seja minha intenção esgotar as formulações propostas no campo


do RC, nesta seção seleciono alguns aspectos da teoria que me parecem relevantes para
o embasamento das discussões que apresento ao longo da tese. Inicio pela
estratificação da realidade social – cuja implicação epistemológica será discutida no
Capítulo 3 – para em seguida abordar a vida social como sistema aberto e o modelo
transformacional da relação entre estrutura e ação social.
Ao contrário de uma abordagem realista ingênua, que consideraria o que existe
como equivalente ao que poderia existir, e o objeto empírico como separado de nosso
conhecimento sobre ele (ver Capítulo 3), Bhaskar (1989) propõe uma ontologia
estratificada do mundo social. Trata-se de uma ontologia que sugere a existência de três
estratos da realidade: o potencial, o realizado e o empírico. 13
O domínio do potencial refere-se ao que quer que exista, “independentemente de
ser um objeto empírico para nós e de termos uma compreensão adequada de sua
natureza” (Sayer, 2000b: 9). O potencial refere-se também às estruturas internas e poderes
causais dos elementos sociais, isto é, sua capacidade de se comportarem de maneiras
particulares, suas tendências e suscetibilidades a certas mudanças. Por exemplo, uma
pessoa desempregada pode, em termos de estruturas internas – físicas, biológicas, mentais
– ser potencialmente capaz de trabalhar, se tiver um emprego; essa capacidade permanece

13 Bhaskar (1989) utiliza os termos ‘real’, ‘actual’ e ‘empirical’ para se referir aos três estratos da realidade. Quanto ao

nível do que Bhaskar designa ‘real’, preferi utilizar a nomenclatura ‘potencial’, conforme adaptação de Fairclough
(2003). Isso porque entendo que, por um lado, ‘potencial’ designa com maior clareza o que se entende pelo estrato
da realidade relacionado aos poderes dos objetos sociais, potencialmente ativados em eventos realizados e, por outro
lado, porque a designação desse estrato como ‘real’ pode levar a uma interpretação de que os dois outros estratos
seriam menos ‘reais’, sentido não pretendido na teoria. Quanto ao nível do ‘actual’, a despeito de haver traduções
como ‘atual’ (por exemplo, em Ramalho, 2007), considero essa tradução equivocada porque ‘atual’ em português não
carrega o mesmo significado de ‘actual’ em inglês, que se refere ao que ‘se atualiza’ de fato em um dado evento. Por
isso preferi a tradução por ‘realizado’. Essas traduções são mantidas nas citações de originais em inglês.
[45]
existente mesmo quando ela está desempregada, ou seja, existe no plano do potencial –
ainda que não se concretize no plano do realizado. Pesquisadores/as em RC interessam-se
pelo que existe e pelo que potencialmente existiria de acordo com os poderes causais
daquilo que estudam – e por isso o RC oferece uma capacidade explanatória crítica das
coisas do mundo social a partir do estudo das possibilidades em redes de práticas sociais.
Se o potencial refere-se às estruturas e poderes dos elementos sociais, o realizado
refere-se “ao que acontece quando [e se] esses poderes são ativados” (Sayer, 2000b: 10).
Retomando o exemplo anterior sobre o desemprego, no nível do potencial identifica-se o
poder potencial do sujeito para desempenhar trabalho; no realizado, o trabalho como
exercício desse poder e seus efeitos, caso a pessoa venha de fato a trabalhar, ou o
bloqueio desse poder potencial devido a contingências contextuais (note-se que ‘bloqueio’
aqui não é usado em termos deterministas, mas contingenciais).
O empírico, por fim, é definido como o domínio da experiência, da observação – é
aquilo que nós efetivamente observamos dos efeitos das estruturas, das potencialidades e das
realizações. Enquanto o potencial e o realizado são dimensões ontológicas, o empírico é uma
dimensão epistemológica (Fairclough, Jessop & Sayer, 2002; ver Capítulo 3). A diferença do RC
em relação a um realismo empírico é que nossa capacidade de observar efeitos e ações sociais
não esgota o que poderia existir ou de fato existe, ou seja, o empírico não é correspondente
nem ao potencial nem ao realizado, embora a observação possa nos ensinar sobre o que se
realiza e sobre o que se poderia realizar – o acesso ao potencial e ao realizado por meio da
observação é ‘contingente’: não é impossível mas também não é garantido (Sayer, 2000b).
Assim, para o RC, “a realidade é constituída não apenas de experiências e do curso de
eventos realizados, mas também de estruturas, poderes, mecanismos e tendências – de
aspectos da realidade que geram e facilitam eventos realizados que nós podemos (ou não)
experienciar” (Bhaskar & Lawson, 1998: 5). Nesses termos, distinguir entre potencial e
realizado significa reivindicar um status de realidade para as estruturas sociais – que embora
não sejam diretamente observáveis podem ser conhecidas por seus efeitos em eventos.
No Quadro 2.1, a seguir, procuro sintetizar a proposta de realidade estratificada
do Realismo Crítico, mostrando como os três estratos relacionam-se:

[46]
POTENCIAL: Objetos sociais com suas estruturas e poderes gerativos

REALIZADO: O modo como os objetos sociais com suas estruturas e poderes


gerativos são configurados em um dado momento e em um dado contexto de
articulação de (redes) de práticas
EMPÍRICO: O que podemos observar dos objetos sociais, suas estruturas e
poderes gerativos e do modo como se configuram em um dado momento e contexto de
articulação de (redes) de práticas

Quadro 2.1 – Os três estratos da realidade segundo o Realismo Crítico

A estratificação como característica ontológica da realidade social significa que nem


tudo o que poderia acontecer em função das estruturas internas dos objetos sociais (por
exemplo, de instituições como o MNMMR/DF) acontece de fato, pois há contingências
contextuais que podem bloquear mecanismos. Para Collier (1994), distinguir os domínios do
potencial e do realizado significa simplesmente dizer que ‘poder fazer’ não é sinônimo de
‘faz’. A distinção entre os domínios do realizado e do empírico, por sua vez, implica que nem
tudo o que é concretizado em eventos é captado em nossa experiência. Assim, a relação entre
potencial, realizado e empírico é de continente e conteúdo, em que o domínio do potencial é
maior que o do realizado, que por sua vez é maior que o do empírico (Archer, 1998).
Bhaskar (1998b: 41) propõe o seguinte quadro para relacionar o potencial, o
realizado e o empírico, como estratos da realidade social, e os elementos sociais:

Domínio do Potencial Domínio do Realizado Domínio do Empírico

Mecanismos √
Eventos √ √
Experiências √ √ √

Quadro 2.2 – Estratificação da realidade (Bhaskar, 1998b: 41)

Embora esse discurso científico possa parecer à primeira vista hermético, os


mecanismos e poderes causais a que se refere não são misteriosos: são, em muitos casos,
“mecanismos comuns, freqüentemente identificados na linguagem comum por verbos
transitivos, como em ‘eles construíram uma rede de conexões políticas’. Tanto na vida

[47]
cotidiana como na ciência social, freqüentemente explicamos coisas por referência a
poderes causais” (Sayer, 2000a: 14, grifo no original). No caso desse exemplo de Sayer,
referente a um poder causal utilizado em uma explicação cotidiana, a ‘construção de redes’
é um poder causal atribuído a ‘eles’ (e que foi ativado devido a mecanismos específicos do
contexto, embora isso não tenha sido explicitado no exemplo).
Outro exemplo que pode ajudar a trazer os conceitos transcedentais do RC para
mais perto da experiência – no caso, da experiência específica desta pesquisa – é o trecho
do Grupo Focal 1 (ver Capítulos 4 e 6) em que Maria afirmou: “o Movimento (...) faz que
a gente seja agentes da nossa própria promoção”. Quando representou assim sua
experiência no Movimento, Maria atribuiu à instituição – no nível discursivo da
representação – um poder causal: o de possibilitar a emergência do protagonismo juvenil.
Por outro lado, quando Vera, na entrevista individual que fiz com a educadora (ver
Capítulos 4 e 5), afirmou que “se tivesse gente para coordenar o trabalho dos núcleos, os
núcleos não tinham morrido, eles nem estavam sem dinheiro, se você quer saber”,
identificou, em sua representação da experiência, a falta de recursos humanos como um
mecanismo que bloqueia a capacidade do Movimento de manter suas atividades em
funcionamento e de captar recursos, em uma relação cíclica na qual a falta de pessoas
envolvidas no trabalho limita o poder de captação de recursos que por sua vez limita a
capacidade de contratação de outros/as profissionais.
Ao discutir a relação entre linguagem e sociedade, Fairclough (2003)
recontextualiza a noção de poderes causais do RC para propor que textos também têm
efeitos causais, e que a análise desses efeitos é parte da análise discursiva de textos:

Textos como elementos de eventos sociais têm efeitos causais – ou seja,


acarretam mudanças. Em primeiro lugar, textos podem acarretar
mudanças em nosso conhecimento (aprendemos coisas por meio deles),
em nossas crenças, atitudes, valores e assim por diante. Eles também têm
efeitos causais em longo prazo – acredita-se, por exemplo, que a
exposição prolongada a textos publicitários contribui na formação das
identidades das pessoas como ‘consumidoras’. Textos também podem
iniciar guerras, contribuir com mudanças na educação, nas relações
industriais etc. Seus efeitos podem incluir, então, mudanças no mundo
material. Em suma, textos têm efeitos causais sobre as pessoas (crenças,

[48]
atitudes), as ações, as relações sociais e o mundo material. Esses efeitos
são mediados pela construção de significado.
É necessário, contudo, tornar clara essa causalidade. Não se trata de uma
simples causalidade mecânica – não podemos, por exemplo, sugerir que
traços particulares de textos acarretam mudanças particulares no
conhecimento ou no comportamento das pessoas, ou efeitos sociais e
políticos particulares. A causalidade não implica regularidade: pode não
haver um padrão regular de causa-efeito associado a um tipo particular
de texto ou traços particulares em textos, mas isso não significa que não
haja efeitos causais (Fairclough, 2003: 8).

Assim como textos podem ter efeitos causais identificáveis, também há causas
sociais implicadas na construção de textos, isto é, a relação de causalidade entre práticas
sociais e textos é de mão dupla, o que está ligado ao conceito de ordens do discurso (veja
a seguir). Ainda, outro conceito central à discussão das relações causais entre textos e
práticas sociais é o das representações discursivas, já que diferentes representações de
práticas e eventos podem acarretar diferentes modos de legitimação de ações e de
identificação de atores sociais (ver Seção 2.3). Fairclough, Jessop & Sayer (2002) listam
alguns aspectos discursivos que, em práticas sociais contextualizadas, podem ser
identificados como mecanismos capazes de ativar ou bloquear poderes causais. Entre eles,
está a seleção de determinados discursos para a interpretação de eventos, que pode
implicar a legitimação de ações particulares; configurar modos de conduta, como
procedimentos organizacionais específicos; resultar na inculcação desses discursos na
construção de identidades; influenciar a construção de estratégias de ação.
Um exemplo específico desta pesquisa é a vinculação de membros do Movimento ao
discurso da imobilidade das estruturas – parte do discurso neoliberal, que prega a
inexorabilidade das estruturas sociais que sustentam o novo capitalismo (Fairclough, 2006;
ver Seção 2.3) –, discurso que entra em contradição irreconciliável com o discurso do
protagonismo, que prega o envolvimento da sociedade civil na resolução de seus problemas e
a necessidade de mobilização da sociedade para transformar estruturas de poder e exploração.
As análises dos dados desta pesquisa sugerem que a vinculação ao discurso da imobilidade é
um dos aspectos discursivos da crise do Movimento, e que funciona como mecanismo que
influencia conflitos identitários e bloqueia certas possibilidades de ação (ver Parte II).

[49]
O bloqueio de possibilidades, nos termos do RC, não é definitivo, mas contingente e
contextualizado, pois além da distinção entre os três níveis da realidade, o RC considera a
vida social um sistema aberto, constituído por várias dimensões – física, química, biológica,
psicológica, econômica, social, semiótica –, que têm suas próprias estruturas distintivas, seus
mecanismos particulares e poder gerativo (Bhaskar, 1989; Chouliaraki & Fairclough, 1999).
Na produção da vida social, a operação de qualquer mecanismo é mediada por outros, de
tal forma que nunca se excluem ou se reduzem um ao outro (Danermark, 2002).
Por exemplo, para aprender uma língua, uma pessoa precisa ser dotada de certas
capacidades cognitivas (estrato psicológico); para falar essa língua, precisa, além dos
conhecimentos relativos à língua e a sua utilização (estrato semiótico), ser dotada de cordas
vocais (estrato biológico) e contar com um meio de propagação do som (estrato físico); se e
quando esses poderes serão ativados depende de contingências contextuais, assim como
dependem também dessas contingências os efeitos da utilização dessas capacidades – por
exemplo, a proficiência em uma língua de prestígio pode legitimar a participação em
práticas sociais específicas (estrato social) ou mesmo um aumento salarial (estrato
econômico). As diversas dimensões da vida social não operam isoladas, e as contingências
contextuais podem apresentar mecanismos de ativação/bloqueio de poderes causais, o que
significa que a vida social é um sistema aberto, isto é, não pode ser prevista.
Sayer (2000a: 11) oferece um exemplo esclarecedor a esse respeito: o das
“propriedades emergentes da água, que são bastante diferentes daquelas de seus elementos
constituintes, o hidrogênio e o oxigênio”. Os objetos sociais também são emergentes de
fenômenos biológicos, que por sua vez emergem de fenômenos físicos e químicos. Por
exemplo, problemas escolares de aprendizagem podem ser emergentes de problemas
biológicos (e sociais) de subnutrição, e também da relação desse com outros problemas
sociais, por exemplo o trabalho infantil. Sayer também discute outro exemplo das
propriedades emergentes da sociedade, este diretamente relacionado ao uso da linguagem:

fenômenos sociais são emergentes de fenômenos biológicos, que são,


por seu turno, emergentes dos estratos físicos e químicos. Assim, a
prática social da conversação depende do estado fisiológico dos agentes,
incluindo os sinais enviados e recebidos em torno de nossas células
nervosas, mas a conversação não é redutível a estes processos
[50]
fisiológicos. (...) Embora nós não precisemos voltar ao nível da biologia
ou da química para explicar os fenômenos sociais, isto não significa que
os primeiros não tenham efeito sobre a sociedade (Sayer, 2000a: 11).

Assim, para o RC, a emergência é uma característica do mundo: a conjunção de


certas condições em um dado contexto dá origem a novos processos, os quais têm
características irredutíveis às de seus constituintes (Sayer, 2000a). A irredutibilidade é
conseqüência da abertura do social, que garante que as relações entre (redes de) práticas
seja um equilíbrio provisório, nunca acabado – o que é realizado em um dado momento é
dependente de que poderes causais são ativados.
A centralidade do conceito de práticas é decorrente do tipo de relação
estabelecida entre estruturas sociais e a atividade social. Em suas atividades na
sociedade, as pessoas realizam uma dupla função: “elas não devem fazer apenas
produtos sociais, mas produzir também as condições da produção de produtos sociais,
isto é, reproduzir (ou, em maior ou menor grau, transformar) as estruturas que
governam suas atividades substantivas de produção” (Bhaskar, 1998d: 218).
Isso significa que as estruturas sociais são também resultado da ação social e,
portanto, são também possíveis objetos de transformação. Uma perspectiva das estruturas
sociais como objetos reais e como produtos sociais é indispensável à ciência crítica, pois
de outro modo não há como propor a possibilidade de mudança social.
Estrutura sociais, então, existem em função das atividades que governam. Mas a relação
entre estrutura e ação não é dialética, e sim transformacional, isto é, “não constituem dois
momentos de um mesmo processo” (Bhaskar, 1998d: 214). Dizer que não constituem dois
momentos de um mesmo processo significa dizer que não são simultâneas, que há uma
assimetria entre esses dois elementos: as estruturas são sempre prévias à ação. A sociedade é
sempre prévia aos indivíduos, que nunca a criam, apenas a reproduzem ou transformam. 14

14 Bhaskar (1998d: 216) resume o modelo transformacional da relação entre estruturas e atividades sociais: “O

modelo de conexão sociedade/pessoa que estou propondo poderia ser sumarizado assim: pessoas não criam a
sociedade, que é sempre pré-existente a elas e é a condição necessária para sua atividade. Em vez disso, a sociedade
pode ser entendida como um conjunto de estruturas, práticas e convenções que os indivíduos reproduzem ou
transformam, e que não existiriam se eles não fizessem isso. A sociedade não existe independentemente da atividade
humana (o erro da reificação). Mas não é produto imediato da atividade humana (o erro do voluntarismo)”.
[51]
Assim como as estruturas sociais são concebidas como coerção da atividade, devem
também ser concebidas como recurso para a atividade, o que implica o caráter recursivo da
vida social: agentes reproduzem e transformam as estruturas que utilizam (e que os
constrangem) em suas atividades. Bhaskar (1998d: 215) sugere uma metáfora ilustrativa do
modelo proposto: “o paradigma é o de uma escultora no trabalho, moldando um produto a
partir de um material e com as ferramentas acessíveis a ela. Chamarei esse modelo de
Modelo Transformacional da Atividade Social. Ele se aplica às práticas discursivas e não-
discursivas”. A Figura 2.1, a seguir, ilustra o modelo transformacional de Bhaskar:

Estrutura

recurso/constrangimento reprodução/transformação

Ação

Figura 2.1 – Modelo Transformacional da Atividade Social (baseado em Bhaskar, 1998d: 217)

De acordo com esse modelo, as estruturas, por um lado, sempre provêem as


condições necessárias e indispensáveis para a ação intencional humana e, por outro lado,
só existem nas ações humanas, que sempre utilizam alguma forma pré-existente de ordem
social. Mais uma vez, o uso da linguagem é um bom exemplo:

Podemos conceber que a fala é governada pelas regras gramaticais sem


supor no entanto que tais regras existam independentemente de seu uso
ou que elas determinem o que dizemos. As regras da gramática, como as
estruturas, impõem limites aos atos de fala que podemos produzir, mas
não determinam nossas produções. Essa concepção, então, preserva o
status da agência humana e ao mesmo tempo mantém distante o mito da
criação [das estrutras pelas pessoas] (Bhaskar, 1998d: 216).

A concepção realista crítica da relação entre estrutura e ação, então, enfatiza que as
estruturas sociais são condição necessária e pré-existente à agência intencional, mas
também que elas existem apenas em virtude da agência. Nessa concepção, então, as
estruturas sociais são tanto condição como resultado da agência humana, que ao mesmo
[52]
tempo as reproduz e as transforma. Um aspecto essencial desse modelo (e que o
diferencia da Teoria da Estruturação de Giddens, segundo Archer, 1998) é a assimetria
histórica entre estrutura e ação – o fato de que as estruturas são sempre prévias, isto é,
embora na agência seja potencialmente possível transformar estruturas (e não apenas
reproduzi-las), as estruturas com as quais um ator social lida hoje foram conformadas em
ações anteriores de atores sociais que o antecederam.
Então é possível propor uma relação temporal (em termos de sincronia/diacronia)
entre os dois elementos da recursividade estrutura/agência, como ilustra a Figura 2.2:

Estrutura Estrutura Estrutura


(resultado (resultado (resultado
da ação em T1) da ação em T2) da ação em T3)

T1 T2 T3 T4

Estrutura Estrutura Estrutura Estrutura (Tempo T)


(recurso/ (recurso/ (recurso/ (recurso/
constrangimento) constrangimento) constrangimento) constrangimento)
Ação Ação Ação Ação

Figura 2.2 – Relação sicrônica/diacrônica entre estrutura e ação

De acordo com o Modelo Transformacional da Atividade Social, ilustrado em


termos temporais na Figura 2.2, as estruturas são tanto a condição (sincrônica) quanto o
resultado (diacrônico) da ação social. Que recursos e constrangimentos presentes nas
estruturas sociais são produto da ação (já que não há estrutura sem ação, segundo
Bhaskar) não significa que estruturas e ações possam ser colapsadas uma na outra:

quando se olha para elas no tempo – lembrando que elas não podem ser
outra coisa senão temporais – então, fica claro que ações pressupõem um
conjunto pré-existente de estruturas, incluindo significados partilhados,
ainda que essas estruturas devam sua existência ao fato de que, em algum
tempo anterior, pessoas reproduziram-nas e transformaram-nas por meio
de suas ações, que por sua vez foram constrangidas e possibilitadas por
estruturas existentes nesse tempo (Sayer, 2000b: 18).

[53]
Assim, o modelo transformacional, quando reivindica a assimetria entre estrutura e
ação social, está focalizando a historicidade da mudança social, incluindo tanto os recursos e
os constrangimentos para a ação quanto a transformação das estruturas sociais no tempo.
Toda atividade social pressupõe condições estruturais sincrônicas e possui um potencial para
transformar diacronicamente essas mesmas condições: “a estruturação de papéis e posições
emerge de atividades passadas de agentes (possivelmente já mortos), então a emergência de
tais propriedades e poderes não pode ser atribuída a práticas dos agentes presentes, que
podem manter e transformar essa estruturação, mas não criá-la” (Archer, 1998: 201).
Essa assimetria implica também que a relação entre estrutura e ação não é de
equivalentes, o que aponta a necessidade de entidades intermediárias. Práticas sociais e
posições são conceitos mediadores entre as estruturas sociais e a ação social. Bhaskar
ressalta a centralidade desses dois conceitos para a crítica explanatória, e a decorrente
relevância do conceito de relações sociais, quando se refere ao ‘sistema posição-prática’. Se
as estruturas sociais são continuamente reproduzidas ou transformadas e se existem apenas
em virtude da atividade humana, e são exercidas apenas na agência humana, então15

precisamos de um sistema de conceitos mediadores (...) um sistema de


conceitos designando o ponto de contato entre a agência humana e as
estruturas sociais. Um tal ponto, ligando ação e estrutura, deve ser
simultaneamente durável e ocupado por indivíduos. Está claro que o
sistema de mediação que precisamos é aquele das posições (lugares,
funções, regras, tarefas, deveres, direitos etc.) ocupadas (preenchidas,
assumidas, desempenhadas etc.) por indivíduos, e aquele das práticas em
que, em virtude de ocuparem essas posições se engajam. Chamarei esse
sistema de sistema posição-prática (Bhaskar, 1998d: 221).

Os conceitos de práticas e posições garantem então o foco nas condições estruturais


para a ação, isto é, possibilitam que não se perca de vista nem a estrutura nem a ação, e
que se tenha em mente o tipo de relação transformacional entre ambas. O modelo
transformacional da atividade social, aliado à perspectiva da vida social como um sistema
aberto em que diversos mecanismos operam em simultâneo, também garante que embora

15Bhaskar (1998d: 214) enfatiza que “a estrutura social está para os indivíduos como algo que eles nunca fazem, mas
que existe apenas em virtude da atividade deles”.
[54]
as atividades sejam restringidas pelas estruturas – em termos materiais e simbólicos – essa
restrição é sempre parcial, no sentido de que há possibilidades para a mudança social.
Assim, a relação transformacional entre estrutura e ação social assegura que
hegemonias são articulações em relativa permanência. Os atores sociais não são
apenas pré-posicionados pelas estruturas, são capazes de relativa autonomia na
realização de sua ação social, de modo que a ação social é possibilitada e
constrangida por estruturas mas pode também transformar estruturas e relações
sociais (Gramsci, 1995; Chouliaraki & Fairclough, 1999).
Chouliaraki & Fairclough (1999) e Fairclough, Jessop & Sayer (2002)
operacionalizam essa abordagem para construírem a ontologia que orienta a versão de ADC
que discuto aqui. Além da concepção da realidade estratificada, captam a conceituação da
vida social como um sistema aberto e a noção de mundo social como constituído de redes
de práticas articuladas. As práticas são constituídas na vida social, nos domínios da
economia, da política e da cultura, incluindo a vida cotidiana (Chouliaraki & Fairclough,
1999; Fairclough, 2006). Práticas sociais, em ADC, são conceituadas como caracterizadas
pela articulação de quatro elementos: discurso, relações sociais, fenômeno mental (crenças,
valores, desejos, ideologias) e atividade material, como ilustra a Figura 2.3, a seguir.

Crenças,
valores, Atividade
ideologias material

Prática
social

Discurso Relações
e semiose sociais

Figura 2.3 – Os momentos da prática social segundo a ADC

[55]
É importante ressaltar que nessa ontologia se mantém a noção essencial de
que esses elementos da prática, embora em relação de interiorização, não se podem
reduzir um ao outro:

A relação entre os diferentes elementos de práticas sociais é dialética,


como Harvey sustenta (Fairclough, 2001; Harvey, 1996): essa é uma
maneira de abordar o fato aparentemente paradoxal de que, embora o
elemento discursivo de uma prática social não seja igual, por exemplo, a
suas relações sociais, cada qual contém ou internaliza o outro – relações
sociais são parcialmente discursivas em sua natureza, o discurso é
parcialmente constituído de relações sociais. Eventos sociais são
causalmente conformados por (redes de) práticas sociais – práticas
sociais definem modos particulares de ação, e embora eventos realizados
possam divergir mais ou menos dessas definições e expectativas (porque
eles atravessam diferentes práticas sociais e por causa dos poderes
causais de agentes sociais), ainda assim são parcialmente moldadas por
elas (Fairclough, 2003: 25).16

A irredutibilidade dos momentos da prática significa (i) que os momentos das


práticas sociais não podem ser reduzidos ao discurso e (ii) que uma alteração na
configuração interna de um momento causa uma alteração na configuração da prática.
Entender os processos discursivos como contextualizados em práticas sociais implica
localizá-los em sua relação com pessoas, relações sociais e o mundo material, lembrando
que embora os aspectos discursivos das práticas sociais sejam cruciais para sua
configuração, não exaurem todos os aspectos dessas práticas. Os componentes
ontológicos do mundo social, nessa perspectiva, são: estruturas e ações sociais, práticas,
posições e relações sociais, eventos, identidades, ideologias, discursos, textos.
Essa ontologia é coerente com a discussão de Chouliaraki & Fairclough (1999)
acerca do continuum entre estruturas, práticas e eventos. Estruturas sociais são entidades
abstratas que definem um potencial, um conjunto de possibilidades para a realização de
eventos. Mas a relação entre o que é estruturalmente possível e o que acontece de fato
não é simples, eventos não são efeitos diretos de estruturas: a relação entre eles é mediada
por “entidades organizacionais intermediárias”, as práticas sociais (Fairclough, 2003: 23).

16As obras a que Fairclough refere-se nessa citação são: FAIRCLOUGH, N. The dialetics of discourse. Textus. vol. 14,
2001: 231-42 e HARVEY, D. Justice, nature and the geography of difference. Oxford: Blackwell, 1996.
[56]
Assim, pode-se dizer que estruturas, práticas e eventos estão em um continuum de
abstração/concretude.
Em termos especificamente discursivos, pode-se dizer que ao nível de abstração da
estrutura correspondem os sistemas lingüísticos (incluindo tanto o léxico e a gramática
quanto o sistema ideacional e o sistema interpessoal; ver Seção 2.3) e ao nível de concretude
do evento correspondem os textos produzidos em interações. O que do potencial dos
sistemas lingüísticos será ativado no evento discursivo depende da configuração de (redes
de) práticas de que o momento discursivo é parte, ou seja, a instanciação do potencial
semiótico é organizada nas práticas sociais. Ao nível das práticas, então, corresponde a
categoria organizacional intermediária da ordem do discurso (Fairclough, 2000): “em
termos do Realismo Crítico, a lacuna entre o potencial dos sistemas semióticos e as facetas
semióticas de eventos realizados é tamanha que outra estrutura precisa ser proposta em um
nível mais baixo de abstração, isto é, mais perto do concreto” (Fairclough, Jessop & Sayer,
2002: 9). Tendo em vista que não se trata de uma relação de correspondência direta entre os
elementos, mas de uma relação em termos de níveis de abstração/concretude, a Figura 2.4,
a seguir, ilustra essa relação entre os elementos da estruturação social e discursiva:

Estrutura Prática social Evento

Sistema lingüístico √
Ordem do discurso √
Texto √

Figura 2.4 – Relação entre estruturação social e discursiva

Assim como a relação entre o potencial presente nas estruturas sociais e a


concretização de eventos é mediada pelas práticas sociais, entidades organizacionais
intermediárias no sentido de que organizam esse potencial em relação a campos
específicos da atividade social, também a relação entre o potencial dos sistemas
lingüísticos e os textos produzidos em eventos discursivos é mediada pelas ordens do

[57]
discurso, que se referem a permanências relativas de aspectos discursivos em práticas
sociais específicas.
Estabelecidas as conexões entre os conceitos de estrutura e sistema
lingüístico, prática social e ordem do discurso, evento social e texto, a relação entre a
estruturação da sociedade e a estruturação de seu potencial semiótico/discursivo
pode ser ilutrada como sugere a Figura 2.5, a seguir:

Prática social
Estrutura Evento

Ordem do discurso
Sistema lingüístico Texto

Figura 2.5 – Organização social do potencial semiótico

Na Figura 2.5, as categorias intermediárias de prática social e de ordem do discurso


aparecem ligadas porque a estruturação do potencial discursivo somente pode ser estudada
e entendida em relação a práticas sociais específicas: as práticas sociais, ligadas a campos
específicos da atividade social (“diferentes áreas da vida social que têm coerência interna
relativa e são relativamente demarcadas em relação a outras, por exemplo a política e a
educação”, Fairclough, 2000: 170), organizam e articulam, de modos relativamente estáveis,
o potencial discursivo disponível para eventos discursivos nas atividades inerentes a essas
mesmas práticas. A configuração de elementos discursivos em textos depende, portanto,
das práticas sociais articuladas, por isso as duas categorias intermediárias de práticas sociais
e de ordens do discurso explicam a relação entre linguagem e sociedade. Assim como
eventos podem criativamente confrontar as expectativas presentes em práticas sociais
estruturadas e, então, produzir mudança social, também textos como eventos discursivos
contextualizados podem transgredir a ordem do discurso, produzindo transformações na
relação entre gêneros, discursos e estilos em práticas específicas.
A mudança no momento discursivo de práticas é tanto efeito de mudanças sociais
mais amplas como pode ter efeito na estruturação social. À ADC interessam tanto os
modos como práticas sociais específicas conformam ordens do discurso quanto os modos
[58]
como mudanças articulatórias em ordens do discurso ligadas a práticas específicas podem
configurar mudanças também em seus aspectos não-discursivos.
Fairclough (2003) destaca os três principais elementos discursivos ligados ao
conceito de ordem do discurso: gênero, discurso e estilo. Gêneros discursivos são
relacionados a modos relativamente estáveis de ação por meio da linguagem, isto é,
constituem “o aspecto especificamente discursivo de maneiras de ação e interação no
decorrer de eventos sociais” (Fairclough, 2003: 65). Quando se analisa um texto em termos
de gênero, o objetivo é examinar como o texto figura na (inter)ação social e como contribui
para ela em eventos sociais concretos. Nesta pesquisa, os documentos etnográficos
analisados não são focalizados em termos de seu aspecto acional em interações sociais (no
que se refere aos dados gerados em campo, apenas poderiam ser focalizados em termos
acionais se meu objeto de pesquisa fosse a própria prática de pesquisa; sobre a distinção
entre geração de dados e coleta de dados, e suas implicações epistemológicas, ver Capítulo
3), motivo pelo qual o conceito de gênero não será discutido em pormenor. O aspecto
representacional dos textos – ligado ao conceito de discurso – e seu aspecto identificacional
– ligado à construção de identidades e identificações – são, entretanto, centrais às análises
de dados, e serão objeto da próxima seção.

2.3 Representação e identificação

Em Lingüística Sistêmica Funcional (LSF), entende-se que a função primordial da


linguagem é a comunicação. Quando nos comunicamos por meio da linguagem,
participamos de eventos discursivos, em que a interação social é mediada por textos
(escritos, orais, visuais, multimodais). Ao lado de sua macrofunção interpessoal, de
estabelecimento de relações sociais, a linguagem também é utilizada para representar o
mundo externo – objetos, eventos, práticas – e interno – crenças, valores, desejos. Esta é
sua macrofunção experiencial ou ideacional (Halliday, 1991; G. Thompson, 2004). A
terceira macrofunção da linguagem teorizada por Halliday é sua função textual, que diz
respeito à organização da mensagem em texto – entendendo a gramática como o

[59]
mecanismo lingüístico que opera ligações entre as seleções significativas derivadas das
funções lingüísticas, realizando-as em estrutura unificada (Magalhães, 2005).17
Fairclough (2003) propõe uma recontextualização da perspectiva multifuncional da
linguagem em LSF, sugerindo não três macrofunções da linguagem, mas três principais
significados presentes em todo texto. Essa renomeação de ‘macrofunções’ para
‘significados’ não chega a ser uma novidade, uma vez que Halliday (2004 [1ª ed. 1985]: 58)
já falava em “três linhas de significado” para se referir à distinção entre as funções. A
diferença entre as propostas de Halliday e Fairclough, no que se refere à
multifuncionalidade lingüística, é significativa, entretanto, em termos do conteúdo de
alguns desses significados. Vejamos o Quadro 2.3 a seguir:

LSF ADC ADC


(Halliday, 1991) (Fairclough, 1992) (Fairclough, 2003)
F. Ideacional F. Ideacional S. Representacional
F. Interpessoal F. Identitária S. Identificacional
F. Relacional S. Acional
F. Textual F. Textual

Quadro 2.3 – Recontextualização da LSF na ADC (Resende & Ramalho, 2006: 61)

Em 1992, Fairclough (trad. 2001) propôs a cisão da macrofunção interpessoal de


Halliday nas funções identitária e relacional. A função identitária diz respeito “aos modos
pelos quais as identidades sociais são estabelecidas [construídas] no discurso”, enquanto a
função relacional refere-se aos modos “como as relações sociais entre os/as participantes
do discurso [de interações discursivas] são representadas e negociadas” (Fairclough, 2001:
92, acréscimos meus). A justificativa para essa cisão é que, segundo Fairclough, as
macrofunções conforme apresentadas por Halliday não captam a relevância da linguagem
na constituição, reprodução, contestação e reestruturação de identidades.

17 “As três macrofunções são inter-relacionadas, e os textos devem ser analisados sob cada um desses aspectos. Isso

significa que todo enunciado é multifuncional em sua totalidade, serve simultaneamente a diversas funções. Nesse
sentido, a linguagem é funcionalmente complexa. As estruturas lingüísticas não ‘selecionam’ funções específicas
isoladas para desempenhar; ao contrário, expressam de forma integrada todos os componentes funcionais do
significado” (Resende & Ramalho, 2006: 58).

[60]
Em 2003, Fairclough ampliou o diálogo teórico entre a LSF ea ADC propondo os
conceitos de gêneros, discursos e estilos como associados aos significados acional,
representacional e identificacional, respectivamente.18 Esses conceitos são considerados
simultaneamente discursivos e sociais, já que são os principais elementos das ordens do
discurso e, portanto, estão associados a práticas sociais específicas e a áreas específicas da
vida social:

uma ordem do discurso é uma combinação ou configuração particular de


gêneros, discursos e estilos que constitui o aspecto discursivo de uma
rede de práticas sociais. Como tais, ordens do discurso têm relativa
estabilidade e durabilidade – embora elas possam, é claro, ser
transformadas (...). Podemos ver ordens do discurso, em termos gerais,
como a estruturação social da variação lingüística – há muitas diferentes
possibilidades na linguagem, mas a escolha entre elas é socialmente
estruturada (Fairclough, 2003: 220).

Os conceitos de gêneros, discursos e estilos – como modos relativamente estáveis


de ação discursiva, de representação discursiva e de identificação discursiva,
respectivamente – associados ao conceito de ordens do discurso e à multifuncionalidade
da linguagem trazem a vantagem de ressaltar o caráter socialmente estruturado da
variabilidade lingüística, em termos das possibilidades de recombinação de elementos
discursivos em textos específicos de práticas particulares, e de associar essa variabilidade
às funções sociais da linguagem – os modos como agimos, representamos e identificamos
discursivamente estão associados às práticas de que participamos, e têm efeitos tanto na
configuração de textos quanto na reprodução/transformação dessas mesmas práticas.
A relação entre práticas sociais e ordens do discurso e o foco na estruturação social
das práticas implica que os recursos e constrangimentos das estruturas sociais também

18 Sobre a recontextualização da multifuncionalidade lingüística da LSF em ADC, Resende & Ramalho (2006: 60)

explicam: “Fairclough operou essa articulação tendo como ponto de partida não as macrofunções tal como
propostas por Halliday (as funções ideacional, interpessoal e textual), mas a sua própria modificação anterior da
teoria, ou seja, as funções relacional, ideacional e identitária. Quanto à função textual, embora em seu livro de 1992
Fairclough a tenha incorporado (‘Halliday também distingue uma função ‘textual’ que pode ser utilmente
acrescentada a minha lista’ [Fairclough, 2001a: 92]), em 2003 ele rejeita a idéia de uma função textual separada,
prefere incorporá-la ao significado acional: ‘não distingo uma função ‘textual’ separada, ao contrário, eu a incorporo
dentro da ação’ (Fairclough, 2003a: 27)”.

[61]
incidem sobre a estruturação do potencial semiótico, e essa estruturação tem efeito na
configuração dos eventos discursivos. Nas palavras de Blommaert (2005):

Usuários/as da linguagem têm repertórios que contêm diferentes conjuntos


de variedades, e esses repertórios são o material por meio do qual eles/as se
engajam na comunicação (...) Como conseqüência, as pessoas não são
inteiramente ‘livres’ quando comunicam, elas são constrangidas pelo
conjunto e pela estrutura de seus repertórios, e a distribuição de elementos
de repertórios é desigual (Blommaert, 2005: 15).
Falantes são/não são capazes de falar uma variedade de línguas, são/não
são capazes de ler e escrever, são/não são capazes de mobilizar recursos
específicos na performance de ações específicas na sociedade. E todas
essas diferenças – diferentes graus de proficiência variando de ‘completa
inabilidade’ a ‘maestria’ no uso de códigos, variedades lingüísticas, estilos
– são socialmente condicionadas. Recursos são hierarquizados (...) e o
acesso a alguns direitos e benefícios na sociedade é constrangido pelo
acesso a recursos comunicativos específicos (Blommaert, 2005: 58).

A distribuição de recursos discursivos associados a ordens de discurso não pode


ser desvinculada das práticas sociais, e constitui um foco discursivo de relações sociais
baseadas em poder. Para van Dijk (2001: 355-6), “entre muitos outros recursos que
definem a base de poder de um grupo ou instituição, o acesso ao discurso, o controle
sobre ele e sobre a comunicação pública são importantes recursos simbólicos”. Assim, a
distribuição desigual de recursos discursivos/semióticos é um dos pontos de tangência
entre discurso e poder.
Por um lado, as possibilidades de ação de um ator social ou grupo são
constrangidas, em termos especificamente discursivos, pelos recursos disponíveis para sua
ação discursiva, entre eles a capacidade, desigualmente distribuída, de lidar com gêneros
discursivos específicos e com variantes lingüísticas de prestígio. Por exemplo, meus dados
apontam que a dificuldade em lidar com certos gêneros discursivos (como projetos para
captação de recursos) e em divulgar as atividades desenvolvidas são alguns dos aspectos
discursivos da crise do Movimento (ver Capítulo 5).
Por outro lado, a manutenção de relações de poder pode ser facilitada por
discursos que sustentem sua legitimidade, isto é, pela circulação de representações
específicas acerca de práticas e eventos. Nesse sentido, Fairclough (2003; entre outros:

[62]
veja também Bourdieu, 1998) tem ressaltado o papel do discurso na manutenção da
hegemonia neoliberal, enfatizando que a circulação massiva do discurso neoliberal
resultou também na desarticulação de forças engajadas em alternativas e no
enfraquecimento do debate público. De modo semelhante, Castells (1999: 27) enfatiza
que “sob essas novas condições, as sociedades civis encolhem-se e são desarticuladas”
(veja exemplos relativos ao Movimento a seguir).
O conceito de ‘discurso’ está longe de ser um consenso. Wodak (1996) chama
atenção para a heterogeneidade de aproximações ao conceito, tanto em seus usos
cotidianos quanto nas conceituações especializadas. Nesta tese, a abordagem de discurso
adotada é aquela que vem sendo desenvolvida por Fairclough, que se baseia na relação
entre linguagem e sociedade: textos, como instanciações discursivas, são resultantes da
estruturação social da linguagem (nas ordens do discurso), mas são também
potencialmente transformadores dessa estruturação, assim como os eventos sociais são
tanto resultado quanto substrato das estruturas sociais (Bhaskar, 1989; Faiclough, 2000).
Como vimos, a estruturação social do semiótico não é independente da estruturação
social de práticas sociais: as ordens do discurso estão associadas a práticas sociais
específicas (veja a discussão da Figura 2.5 na Seção 2.2).
Fairclough (2001) define discurso como elemento da prática social, modo de ação
sobre o mundo e a sociedade, um elemento da vida social interconectado a outros
elementos. Mas em ADC o termo ‘discurso’ apresenta uma ambigüidade: também pode ser
usado em um sentido mais concreto, como um substantivo contável, em referência a
‘discursos’ particulares – como, por exemplo, o discurso do protagonismo, o ‘discurso da
imobilidade’ (veja a seguir), o discurso neoliberal (Fairclough, Jessop & Sayer, 2002;
Fairclough, 2006).
Assim, em expressões como ‘análise de discurso’, o termo remete ao elemento
discursivo de práticas sociais. Os ‘momentos da prática social’ estabelecem entre si
relações de interiorização, por isso é possível analisar em textos a materialização
discursiva, por exemplo, de relações sociais. Quando se faz ‘análise de discurso’, então, o
objetivo é mapear a relação entre escolhas lingüísticas em textos e interações particulares e
outros momentos não-discursivos das práticas sociais em análise. Por outro lado, quando

[63]
nos referimos a ‘discursos’ particulares, o foco são modos de representação da realidade,
maneiras situadas de representar e compreender a realidade. Assim, podemos nos referir a
discursos políticos, a discursos pedagógicos, ao discurso neoliberal etc., e proceder à
‘análise dos discursos’ que estabelecem relação interdiscursiva em textos específicos.
Discursos, nesse sentido mais concreto, são elementos que constituem, ao lado de
gêneros e estilos, o momento discursivo de práticas sociais, na configuração de ordens do
discurso (Fairclough, 2003; veja também Fairclough, Jessop & Sayer, 2002). O significado
representacional de textos é relacionado ao conceito de discursos como modos de
representação de aspectos do mundo, ou seja, ao significado mais concreto de discurso,
como substantivo contável.
Diferentes discursos são diferentes perspectivas do mundo, associadas a diferentes
relações que as pessoas estabelecem com o mundo e que dependem das posições que
ocupam e das relações que estabelecem com outras pessoas (Fairclough, 2003). Os
diferentes discursos não apenas representam o mundo concreto, mas também projetam
diferentes possibilidades da realidade, ou seja, relacionam-se a projetos de mudança do
mundo de acordo com perspectivas particulares. As relações estabelecidas entre diferentes
discursos podem ser de diversos tipos, a exemplo das relações estabelecidas entre pessoas
– discursos podem complementar-se ou podem competir um com o outro, em relações
de dominação –, porque os discursos constituem parte do recurso utilizado por atores
sociais para se relacionarem, cooperando, competindo, dominando.
O fato de ordens do discurso estarem ligadas a práticas específicas não significa que
sejam homogêneas ou livres de conflitos. Lembrando que ordens do discurso estão
relacionadas a “instituições, organizações e redes de práticas sociais”, Fairclough (2006:
31) ressalta que “uma ordem do discurso particular inclui um número de diferentes
discursos, diferentes gêneros e diferentes estilos. Eles podem ser complementares um ao
outro (...) ou podem ser alternativos e em alguns casos conflitantes”.
Alguns discursos, em contextos sócio-históricos definidos, apresentam um alto
grau de compartilhamento e repetição, podendo gerar muitas representações e participar
de diferentes tipos de texto. Um bom exemplo é o discurso neoliberal, que classifica as
reestruturações recentes do capitalismo como evolução ‘natural’, isenta da ação humana e

[64]
inescapável, um fenômeno (e não um processo) universal e inevitável. Para Fairclough
(2003), as aspirações hegemônicas do neoliberalismo são, em parte, uma questão de
universalização desse discurso particular.
Assim, o sucesso dessa representação pode ser medido em termos de sua
repetibilidade, isto é, do quanto circula em diversos domínios e em vários tipos de texto.
Bourdieu (1998: 42) também capta a importância da circulação desse discurso no
estabelecimento e manutenção da hegemonia. Para ele, “a força desse discurso
dominante” reside no que “se ouve dizer por toda parte, o dia inteiro”. A visão neoliberal,
que “se apresenta como evidente, como desprovida de alternativa”, produz uma
verdadeira crença, uma “impregnação”, posto que é muitas vezes repetida e, assim,
tomada como tácita. Desse modo, o discurso fatalista adquire o status de consenso, passa a
ser compartilhado. E, para Bourdieu (1998), a crença no fatalismo gera submissão, uma
vez que se crê que não haja alternativas.
Em relação à possibilidade de estabelecimento de relações interdiscursivas
conflituosas em uma mesma prática, meus dados apontam a contradição entre o discurso
neoliberal e o discurso do protagonismo, no contexto do Movimento. Identifiquei, em
diferentes dados, um aspecto fundamental do discurso neoliberal, e para enfatizar esse
aspecto específico do discurso neoliberal chamei-o ‘discurso da imobilidade’ (veja os
capítulos da Parte II). O discurso da imobilidade, que prega a impossibilidade de
transformação de práticas e estruturas, entra em choque irreconciliável com o discurso do
protagonismo, que prega não só a existência de mobilidade mas também a necessidade de
a sociedade se engajar diretamente na luta pela mudança social, em termos de justiça e
eqüidade de oportunidades (ver Capítulo 1).19

19 Outro aspecto do discurso neoliberal que se choca com o discurso do protagonismo é o individualismo, uma vez

que o protagonismo social exige engajamento e militância, o que por sua vez exige desprendimento no sentido de
doação de parte do tempo disponível na luta por uma causa. Nesse sentido, a jovem Maria sugeriu na entrevista uma
relação entre o individualismo, como falta de disposição para o trabalho por uma causa coletiva, e a formação nas
universidades: “Porque você não tem como pagar um profissional sem ter dinheiro. Um profissional ele não vai vir
voluntário. Porque, hoje em dia, as academias não formam mais profissional nenhum com a visão de que ele pode
doar uma parte do seu tempo para contribuir com o social. Formam para ganhar dinheiro. Então, os movimentos
sociais vão perdendo as forças por causa disso. Porque é muito difícil hoje em dia você encontrar um psicólogo que
quer ser voluntário. Um assistente social. Um advogado. É muito difícil mesmo. Quando você trabalha com um
movimento de grande porte, como é o nosso movimento, então... É complicado”.
[65]
A contradição entre esses discursos ultrapassa a representação, resultando também
em conflitos na constituição de identidades, de acordo com a dialética entre os significados
representacional e identificacional. Em ADC, o significado identificacional está relacionado
ao conceito de ‘estilo’. Estilos constituem o aspecto discursivo de identidades, ou seja,
relacionam-se à identificação de atores sociais em textos. Fairclough (2003: 159) destaca que
“estilos estão ligados à identificação – usando a nominalização ao invés do nome
‘identidades’ enfatizo o processo de identificação, o modo como as pessoas se identificam e
são identificadas por outras”. Assim, o significado identificacional está ligado não apenas às
identidades, mas também à identificação de outrem, o que enfatiza a relação entre
identificação e relações sociais. A relação entre discursos e estilos é dialética, uma relação de
interiorização. Isso significa que discursos são inculcados em estilos: modos de representar
realidades sociais implicam modos de (se) identificar face a essas realidades. A distinção
entre representação e identificação é, portanto, uma necessidade analítica, mas não há
fronteiras rígidas entre os significados, ao contrário, há fluxo e fluidez.
Nesse sentido, proponho que o significado identificacional seja visto como um
ponto de mediação entre a função ideacional e a função interpessoal da linguagem, nos
termos de Halliday (1991), pois o modo como (nos) identificamos em interações
discursivas depende tanto dos discursos que interiorizamos quanto das relações que
estabelecemos com nossos/as interlocutores/as. Fairclough (2003: 159) ressalta a relação
de interiorização entre representação e identificação:

Como o processo de identificação envolve os efeitos constitutivos do


discurso, deve ser visto como um processo dialético no qual discursos
são inculcados em identidades. (...) Uma conseqüência dessa visão
dialética é que significados identificacionais em textos podem ser vistos
como pressupondo significados representacionais, as presunções por
meio das quais as pessoas se identificam.

Além dos discursos interiorizados em processos de identificação, também as


relações sociais têm efeito nos modos como (nos) identificamos em interações, se
entendemos que os processos identificacionais estão ligados às posições ocupadas por
atores sociais. Sayer (2000b: 13) chama atenção para a relação interna entre os papéis e as
posições que as pessoas ocupam e suas identidades: “no mundo social, os papéis das
[66]
pessoas e suas identidades freqüentemente são internamente relacionados, de modo que o
que uma pessoa ou instituição é ou pode fazer depende de suas relações com outras”.
Para discutir essa relação entre posição e identificação, Sayer recorre ao exemplo do
aspecto relacional do que significa ser um/a professor/a, que não pode ser explicado no
nível do indivíduo, mas apenas em termos de sua relação com estudantes, e vice-versa.
O mesmo se observa na identificação das jovens do Movimento como ‘meninas’
ou ‘educadoras’, identificação relacional no sentido de que depende das relações sociais
estabelecidas com as educadoras do Movimento e também das posições que as jovens
ocupam na instituição (ver Capítulos 6 e 7). Assim, a construção de identidades e de
identificações também está ligada aos processos representacionais de classificação, de
elaboração de semelhanças e diferenças (Fairclough, 2003).
Castells (1999: 22) define identidade como “o processo de construção de significado
com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-
relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado”. Embora o
autor faça distinção entre identidades e papéis, admite que “algumas autodefinições podem
também coincidir com papéis sociais”. O foco de minha pesquisa no Movimento e nas
posições que as participantes ocupam leva a um foco em identidades/identificações
relacionais em termos dos papéis desempenhados, das posições ocupadas e das relações
estabelecidas na instituição. Assim, focalizo construções identitárias baseadas nos papéis de
‘menina’ e de ‘educadora’, os conflitos referentes a essas (auto)identificações e as relações
sociais ligadas à ocupação desses papéis.
A diferença que proponho entre identidade e identificação é que “as identidades
constituem fontes de significado para os próprios atores” (Castells, 1999: 23), isto é, são
autodefinições, auto-identificações. As identificações alheias, por outro lado, são
construções discursivas de identificação para outras pessoas em textos e interações –
usamos o potencial discursivo não só para nos identificarmos, mas também para construir
identificações das pessoas com quem/de quem falamos. Ambos os processos, porém, não
estão estritamente separados: Blommaert (2005: 205) sugere que “para serem estabelecidas,
identidades precisam ser reconhecidas pelos/as outros/as”, enfatizando o caráter
interpessoal da identidade. Nesse sentido, em meus dados, os conflitos identitários que as

[67]
jovens experimentam (em sua identificação como ‘meninas’ e como ‘educadoras’) parecem
relacionar-se ao reconhecimento (ou à falta de reconhecimento) por parte de membros
adultos do Movimento acerca de sua ‘atuação como’ educadoras (ver Capítulos 7 e 8).
Castells (1999) aponta que toda e qualquer identidade é construída. Como a
construção da identidade sempre se dá em contextos de poder, Castells (1999: 24)
propõe três formas de construção da identidade: a identidade legitimadora, a
identidade de resistência e a identidade de projeto:

Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da


sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em
relação aos atores sociais (...)20
Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em
posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da
dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência (...)
Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer
tipo de material cultural a seu alcance, constroem uma nova identidade
capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a
transformação da estrutura social (...)

Identidades de resistência levam à formação de comunidades ligadas à resistência


coletiva a modos específicos de opressão, experimentados pelos membros da comunidade.
Um desses modos de opressão, destacado por Castells (1999: 25), refere-se a “um
ressentimento contrário à exclusão injusta”, o que pode se dever a motivações políticas,
econômicas ou sociais (ou uma mescla desses fatores). Embora Castells enfatize esse tipo de
resistência em movimentos voltados para valores tradicionais, como os movimentos ligados a
religião, ressalta que “identidades de resistência podem também ser construídas por
movimentos sociais ativistas ou ao redor deles” (Castells, 1999: 419). Identidades de
resistência podem se desenvolver para conformar identidades de projeto, mas Castells (1999:
420) ressalta que “o fato de uma comunidade ser constituída em torno de uma identidade de
resistência não significa que resultará necessariamente em uma identidade de projeto”.

20Castells enfatiza que embora as identidades legitimadoras sejam introduzidas por instituições dominantes, somente
se tornam identidades propriamente ditas quando são internalizadas pelas pessoas – de outro modo serão
identificações, já que a identidade carrega o aspecto de autodefinição.
[68]
Identidades de projeto referem-se à formação do ‘ator social coletivo’, constituindo
recurso para projetos de tranformação de situações de opressão; para além da resistência, a
identidade de projeto está ligada à construção de projetos coletivos de mudança social. A
formulação da educadora Júlia acerca de um dos objetivos do Movimento chama atenção
por ecoar o conceito de identidade de projeto: “A gente está formando pessoas com senso
crítico para formular novos projetos de vida” (Júlia, na Reunião 1; ver Capítulo 8). Para que isso
aconteça, Castells (1999: 79) sugere, “faz-se necessário um processo de mobilização social,
as pessoas precisam participar de movimentos (...) pelos quais são revelados e defendidos
interesses em comum (...) e um novo significado pode ser produzido”. A relação entre a
mobilização social e a identificação é que esses novos significados produzidos no interior de
movimentos sociais podem ser articulados na construção de identidades.
Archer (2000) também propõe um tipo de relação entre identidade e mobilização
para a transformação da sociedade, distinguindo os conceitos de ‘agentes primários’ e
‘agentes incorporados’.21 Em sua experiência no mundo, as pessoas são posicionadas
involuntariamente como agentes primários pelo modo como nascem e sobre o qual são
impossibilitadas, inicialmente, de operar escolhas – isso inclui a noção de classe social, uma
vez que o conceito de agente primário está ligado a “nosso pertencimento a coletividades
particulares com privilégios ou falta de privilégios compartilhados” (Archer, 2000: 262).
A capacidade de transformarem sua condição nesse posicionamento primário
depende de sua reflexividade para se transformarem em agentes incorporados capazes de
agir coletivamente e de atuar na mudança social:

A alternativa, que tem conseqüências sistêmicas, é superar o status


agregado como agentes primários por meio do desenvolvimento de ação
coletiva. Grupos de interesse organizados representam a geração de uma
nova propriedade emergente das pessoas (...) somente aqueles/as que
têm consciência do que querem podem articular-se e organizar-se a fim
de obtê-lo; podem se engajar em ações planejadas para reconfigurar ou

21 Archer (2000) também faz distinção entre identidade pessoal – que envolve o sentido de si mesmo/a e a personalidade –
e identidade social – ligada aos conceitos de agente primário e agente incorporado. Essas quatro categorias estão em relação
de emergência, isto é, o sentido de si (percepção de si mesmo/a como um indivíduo único, em termos físicos e
espirituais) é prévio à formação da personalidade, que está em relação dialética com a identidade social. A agência
primária, por sua vez, é prévia à agência incorporada. A autora oferece longas explanações a respeito desses
conceitos; farei, entretanto, uma pequena seleção de aspectos relevantes para a discussão nesta tese.
[69]
manter aspectos estruturais em questão. Estes são chamados de agentes
incorporados (Archer, 2000: 265).

Entre os poderes emergentes de agentes incorporados, Archer destaca a capacidade


de articulação de interesses comuns, a organização de ação coletiva e a formação de
movimentos sociais. Assim, a ação coletiva de agentes incorporados ultrapassa o somatório
dos interesses individuais de cada membro da coletividade, pois está voltada para os
interesses comuns e os objetivos identificados como centrais àquela mobilização.
Tanto Castells quanto Archer identificam relações entre a construção de
identidades e a ação social, e ambos localizam nos movimentos sociais possibilidades
estratégicas de ação coletiva potencialmente transformadora. Isso sugere a relação
dialética entre representação, identificação e ação, já que discursos são inculcados em
identidades, e identidades podem estar relacionadas à ação estratégica. Os discursos
tomados como pressupostos para a construção identitária, portanto, têm efeito nas
possibilidades de ação – e então a contradição entre os discursos do protagonismo e da
imobilidade das estruturas, e os modos como são mobilizados para a construção
identitária, podem ser causalmente relacionados à ação (ver Parte II).

2.4 Análise discursiva textualmente orientada

Ainda que as relações com disciplinas das ciências sociais sejam fundamentais para a
constituição da ADC como interdisciplina, sua origem identifica-se nos estudos
lingüísticos, mais especificamente na Lingüística Crítica (LC), desenvolvida na década de
1970 na Universidade de East Anglia (Wodak, 2003a). Para Blommaert (2005: 22), a
relevância da LC para o desenvolvimento da ADC decorre de que a LC “voltou-se para
questões tais como o uso da linguagem em instituições sociais e as relações entre
linguagem, poder e ideologia, e proclamou uma agenda crítica para a análise lingüística”,
abrindo campo para o posterior estabelecimento das relações interdisciplinares que se
tornariam fundamentais para a constituição da ADC (ver Seção 2.1). Embora Wodak
(2003a) chegue a igualar a LC à ADC, utilizando os dois rótulos como permutáveis em seu
texto, Magalhães (2005: 3) argumenta que “considerar a ADC como uma continuação da
[70]
LC é uma redução de questões fundamentais que foram explicitadas pela ADC”. Pode-se
dizer, então, que a ADC ampliou em termos de teoria e de aplicação a tradição de estudos
lingüísticos a que se filia (Resende e Ramalho, 2006).
Em termos teóricos, a ADC explicita uma diferença notável, em relação à LC, no
modo de entender a relação entre linguagem e sociedade, avanço resultante da
articulação estabelecida com a teoria social recente no que se refere especificamente às
teorizações que buscam “a superação da divisão improdutiva entre teorias da estrutura e
teorias da ação” (Fairclough, 2000: 170). Para Fowler (2004: 209, grifos meus), um dos
fundadores da LC, as representações lingüísticas são “moldadas por sistemas de valores
que estão impregnados na linguagem”, ou seja, na perspectiva da LC que deu origem à ADC
as representações lingüísticas refletem as estruturas sociais. Já para a ADC, a relação entre
linguagem e sociedade é interna (Fairclough, 1989), isto é, textos como parte de práticas
sociais não apenas recebem informação oriunda das estruturas sociais como também
têm efeitos na reprodução/transformação dessas mesmas estruturas. Por isso relações
sociais e identidades apresentam uma “faceta discursiva” (Magalhães, 2004) e são
reformuladas em instâncias discursivas concretas.
Em termos de escopo e aplicação, a ADC acrescentou aos estudos lingüísticos um
interesse na investigação do aspecto discursivo de práticas problemáticas na vida social
contemporânea (Chouliaraki e Fairclough, 1999). Nesse sentido, a “dimensão crítica
relaciona a ADC com uma preocupação explícita com o exercício do poder nas relações
sociais” (Magalhães, 2005: 6), e uma conseqüência disso é a incorporação de questões que
antes pareciam alheias ao campo da Lingüística (Martins, 2005; Silva, 2008). Uma dessas
questões é a pobreza, a precariedade a que estão expostas tantas pessoas ao redor do
mundo, problema que tem inspirado meu próprio trabalho.22 Outras questões que se têm

22 Quero destacar a pertinência de pesquisas sobre esse tema em ADC fazendo referência à Red Latinoamericana de
Estudios del Discurso sobre la Pobreza (REDLAD), coordenada por Laura Pardo, da Universidade de Buenos Aires. O
volume 2 (2) da revista Discurso & Sociedad, de 2008, foi dedicado a trabalhos desse grupo, que congrega
pesquisadores/as de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Venezuela. No Brasil, o grupo de pesquisa intitulado O
conceito de família e a pobreza nas ruas: um enlace analítico crítico voltado para o contexto brasileiro, coordenado por Denize Elena
Garcia da Silva, da Universidade de Brasília, é um desdobramento da REDLAD. Como resultados desse projeto, já
foram defendidas na Universidade de Brasília duas dissertações de mestrado, ambas em 2007: “Ruptura familiar e
pobreza: a gramática da experiência no discurso de adolescentes”, de Miguel Ângelo Moreira, e “Discurso de
adolescentes em situação de rua: da ruptura familiar à exclusão”, de Kelly C. A. Moreira.
[71]
mostrado pertinentes são os preconceitos de raça e gênero e os modos como são
veiculados na mídia e em ambientes institucionais, a exclusão de portadores de
deficiências ou necessidades especiais, as políticas de imigração no contexto do novo
capitalismo, o status hegemônico do discurso neoliberal e sua naturalização em diversos
tipos de texto etc.
No que se refere aos métodos para análise de textos, as diversas versões de ADC se
apropriam de conceitos e categorias desenvolvidos por vertentes da Lingüística Funcional – a
Lingüística Textual, a Sociolingüística, a Pragmática, a Lingüística Sistêmica Funcional etc. – e
os põem em funcionamento para seus objetivos de crítica social. Nos termos da LSF, a função
textual da linguagem é instrumental de suas demais funções – representação discursiva do
mundo, estabelecimento de relações sociais, alter- e auto-identificação, ação social mediada
pela linguagem. Nesse sentido, a linguagem oferece recursos lingüísticos – textuais – para que
essas funções possam ser organizadas em textos pertinentes a interações específicas (Ghio &
Fernández, 2005). Os recursos disponíveis são selecionados por atores sociais para sua
interação por meio da linguagem, e essa seleção pode ser analisada com vistas à relação entre
os recursos textuais utilizados e a natureza contextual/histórica das interações – em análises
discursivas críticas que visam ao mapeamento da natureza social de textos.
Assim, a articulação de categorias lingüísticas de análise se justifica pela relação que
possibilitam estabelecer entre os recursos lingüísticos mobilizados em textos e categorias
sociológicas como poder, hegemonia, ideologia, identidade. Isso pode fazer crer que a
análise lingüística é um elemento menor da crítica sociodiscursiva, o que não é verdade:
analistas de discurso críticos/as prezam, ao contrário, análises textualmente orientadas
capazes de mapear escolhas lingüísticas em contextos sociais amplos, a fim de
desenvolver uma compreensão acurada do funcionamento social da linguagem. Ao invés
de meramente descrever estruturas lingüísticas e sua utilização em textos, esses/as
analistas interessam-se por explicá-las em termos da natureza das práticas sociais,
focalizando as relações entre estruturas lingüísticas selecionadas e relações de poder que
atravessam a sociedade (van Dijk, 2001).
A vantagem de uma análise de discurso textualmente orientada é oferecer subsídios
para uma análise social fundamentada em dados lingüísticos que sustentem a crítica

[72]
explanatória. Por meio de análises discursivas críticas, é possível identificar conexões entre
escolhas lingüísticas de atores sociais ou grupos e os contextos sociais mais amplos nos
quais os textos analisados são formulados. Assim, é gerado conhecimento acerca da
interiorização de discursos na construção de identidades e na constituição de relações
sociais, acerca da utilização de estruturas lingüísticas com propósitos políticos, acerca da
distribuição desigual do acesso a elementos discursivos, acerca da relação entre os
momentos discursivos e não discursivos de práticas sociais específicas.
A ADC, então, provê meios para investigar os modos como a linguagem figura na
vida social, possibilitando o desvelamento da universalização de discursos particulares
e da vinculação de textos particulares a ideologias, entendidas como construções
simbólicas a serviço da manutenção de estruturas de dominação (Thompson, 1995).
Por isso a ADC é considerada uma ferramenta para pesquisas compromissadas com
objetivos éticos e políticos, uma vez que um objetivo de pesquisas dessa natureza é
apontar como certos discursos naturalizam injustiças sociais e dissimulam problemas
sociais, e mostrar como isso se realiza em instanciações discursivas concretas, a partir
de uma análise minuciosa de elementos lingüísticos nos textos.
Considerando que significados ideológicos são tanto mais eficazes quanto menos
transparentes (Bakhtin, 2002 [1929]; Fairclough, 1989), a análise textualmente orientada de
instanciações discursivas assume relevância na crítica social contemporânea. Por meio desse
tipo de análise é possível demonstrar empiricamente os papéis da linguagem na sociedade,
conferindo uma resposta de base lingüística às inquietações de cientistas sociais acerca do
discurso e consolidando o papel de lingüistas críticos/as em redes interdisciplinares
engajadas no trabalho científico como forma de crítica social e luta emancipatória.
A eficácia de pesquisas dessa natureza para a transformação de relações de poder
no seio de sociedades contemporâneas, entretanto, depende ainda de um salto que a
ADC não foi capaz de lograr satisfatoriamente: a superação dos círculos acadêmicos e
intelectuais. Para tanto, será imprescindível um esforço no sentido de alcançar outros
públicos para nossos textos além de nossos próprios pares e divulgar muito mais
amplamente os avanços que nossas pesquisas nos permitem em relação ao
conhecimento acerca do funcionamento social da linguagem.

[73]
Não se trata de tarefa fácil, mas creio que um caminho passa pela consolidação de
redes de pesquisadores/as engajados/as com temas particulares a fim de buscar modos de
influenciar políticas públicas e ações sociais protagonistas, considerando que “a condição
principal para que um programa interdisciplinar possa se desenvolver é um interesse
compartilhado por problemas no mundo e o desejo de contribuir para sua solução”
(Blommaert, 2005: 19). Temos muito ainda a fazer para conquistar a desejável articulação
entre instituições, departamentos e grupos de pesquisa, tanto em nosso campo de estudos
quanto com pesquisadores/as de outras áreas. O desafio é ainda maior se pensarmos na
necessária articulação com atores sociais atuantes em outras esferas para além da
Academia. Tudo isso, entretanto, poderá nos permitir somar esforços para multiplicar a
abrangência de nosso alcance.

Algumas considerações

A ADC não é um campo fechado em dois sentidos. Primeiro, não se trata de uma
perspectiva teórico-metodológica homogênea, ao contrário, configura-se um conjunto de
propostas teóricas sobre o discurso e seu funcionamento social e de enquadres
metodológicos para análise de textos escritos, falados, visuais, multimodais. Assim, a ADC
não possui uma superfície claramente definida, sendo necessário delimitar vínculos e
perspectivas quando se pretende tornar claro de que tipo de ADC se fala.
Em segundo lugar, a ADC não é um campo fechado porque um de seus pressupostos
básicos é a interdisciplinaridade. Isso se deve à percepção de que para a análise de textos
enquanto instâncias discursivas a Lingüística não é suficiente. Assim, as diversas
abordagens de ADC recorrem a diferentes relações entre disciplinas para recontextualizar
conceitos oriundos das Ciências Sociais.
A heterogeneidade de abordagens deve ser celebrada como uma diversidade capaz de
garantir diálogos profícuos que possibilitam um constante aperfeiçoamento das ferramentas
de que dispomos para analisar instanciações discursivas contextualmente situadas. Não se
trata de um vale-tudo epistemológico, pois há marcantes continuidades que garantem a
coerência necessária ao campo. Em primeiro lugar, as diversas abordagens críticas ao discurso
[74]
mantêm um foco na relação entre linguagem e sociedade, entendendo que o discurso, como
parte das práticas sociais, é tanto influenciado pelas estruturas/práticas sociais como
influencia sua manutenção ou transformação. Uma vez que textos são tanto socialmente
estruturados quanto estruturantes, precisamos examinar não só os modos como se produzem
significados em textos, que então ajudam a reproduzir/transformar as estruturas sociais, mas
também os modos como a produção de significados é também constrangida/possibilitada
por aspectos não-semióticos emergentes da estrutura social.
Além disso, o foco na análise lingüística de textos, recorrendo-se a ferramentas
desenvolvidas por diversos ramos da Lingüística Funcional como categorias de análise, é uma
constante observável nas diferentes abordagens de ADC. A Lingüística é utilizada por analistas
de discurso críticos/as como instrumento para a análise e a crítica de problemas sociais
discursivamente manifestos, a fim de mapear os modos pelos quais escolhas lingüísticas de
falantes ou grupos de atores sociais relacionam-se a questões sociais mais amplas.
Esse interesse por problemas sociais parcialmente discursivos é outra continuidade
notável nas diversas abordagens de ADC. Como prática teórica crítica, a ADC assume uma
agenda de pesquisa engajada com problemas relativos à distribuição de recursos materiais
e simbólicos nas sociedades contemporâneas. Por isso o conceito de prática social é caro à
ADC, pois se entende que assim como a linguagem pode ser utilizada como um recurso
para a manutenção de relações exploratórias baseadas em poder, é também um recurso
potencial para a mudança social.
A opção pela ADC como campo de investigação é, portanto, uma decisão acima de
tudo política. Muitos desafios são impostos àqueles/as que enveredam por esse caminho.
Dadas as relações interdisciplinares de que dependemos para garantir a pertinência de
nossas análises lingüísticas, dada a necessidade de apresentar análises lingüisticamente
orientadas e contextualmente localizadas e politicamente posicionadas, enfim, dada essa
conjunção de fatores que torna o trabalho de analistas de discurso complexo e instigante,
como conquistar o necessário equilíbrio entre a contextualização do problema, a
profundidade da análise e da reflexão teórica e a defesa de interesses ligados à justiça e à
igualdade? Sem dúvida, pesquisas em Análise de Discurso Crítica estão longe de ser
empreendimentos fáceis.

[75]
3
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO EM ADC: 
REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA E OS ESTUDOS 
CRÍTICOS DO DISCURSO  

Sua perspectiva epistemológica é, literalmente, a sua teoria do


conhecimento, e deve então dizer respeito aos princípios e regras
pelos quais você decide se e como fenômenos sociais podem ser
conhecidos, e como o conhecimento pode ser demonstrado.
Questões epistemológicas devem então direcionar você a uma
consideração de questões filosóficas envolvidas na delineação
exata do que você conta como evidência ou conhecimento de
coisas sociais. Você deve ser capaz de relacionar as respostas a
essas questões às suas respostas às questões ontológicas, e os
dois conjuntos de respostas devem ser consistentes de modo que,
por exemplo, sua epistemologia lhe ajude a gerar conhecimento
e explicações sobre os componentes ontológicos do mundo social,
sejam eles processos sociais, ações sociais, discursos, significados
ou o que quer que você tenha identificado como sendo central.
(Jennifer Mason, 2002: 13)

N este capítulo, procuro justificar a filiação deste estudo à tradição da pesquisa


qualitativa e a seleção por métodos etnográficos para a geração e a coleta de
dados. A discussão levada a cabo aqui deve ser compreendida como uma continuação das
reflexões do capítulo anterior e como uma aproximação inicial àquelas apresentadas no
próximo capítulo. Na primeira seção, explico que trazendo reflexões de cunho
epistemológico como centrais ao desenvolvimento da pesquisa – e da tese –, procuro
contribuir para a superação da lacuna epistemológica que me parece ser um problema em
ADC. Na segunda, explicito a filiação deste estudo à tradição da pesquisa qualitativa. Em
seguida, procuro destacar implicações epistemológicas do Realismo Crítico para a Análise
de Discurso Crítica.
3.1 Por que um capítulo dedicado a reflexões epistemológicas

O planejamento da metodologia de uma pesquisa não deve decorrer diretamente do


campo social pesquisado e/ou dos objetivos iniciais da pesquisa; deve, antes, ser resultante
da reflexão acerca das perspectivas ontológica e epistemológica adotadas (Mason, 2006). A
epistemologia é definida como “o estudo da natureza e dos fundamentos do saber” (Laville
& Dionne, 1999: 332). Para Páramo & Otálvaro (2006: 3), a postura epistemológica refere-
se ao “conjunto de pressuposições das quais nos valemos para nos orientar na busca do
conhecimento”. Questões epistemológicas, então, são questões sobre como se considera
possível gerar conhecimento acerca da realidade social pesquisada; são questões acerca da
natureza do conhecimento, não sobre estratégias de geração e coleta de dados – essas
últimas são questões metodológicas (tratadas no Capítulo 4). A epistemologia diz respeito
aos modos por meio dos quais a realidade social pode ser conhecida, ao que se considera
como evidência ou conhecimento das coisas sociais.
O modelo epistemológico adotado em uma pesquisa precisa ajudar a produzir
conhecimentos acerca dos componentes ontológicos do mundo social, de acordo com a
versão da ontologia considerada para a pesquisa. Por isso em uma pesquisa é necessário
haver correspondência entre as perspectivas ontológica e epistemológica. Isso deve
decorrer do reconhecimento não só de que há diversas epistemologias disponíveis, mas
também de que “elas não são todas complementares ou igualmente consistentes com
determinadas posições ontológicas” (Mason, 2002: 13).
Por exemplo, se o objetivo de uma pesquisa é explorar as relações entre atividades,
relações sociais, identidades e discursos em uma prática social específica, então essa
pesquisa apresentará inconsistências caso baseie-se em uma epistemologia segundo a qual
apenas o que é produzido no momento discursivo das práticas é passível de
conhecimento – porque deseja explorar também outros momentos da prática, mas não
percebe que tais momentos são também passíveis de conhecimento. Se concordamos que
ações e processos sociais são passíveis de conhecimento e se queremos entender a relação

[79]
entre eventos, práticas e estruturas sociais, então só o discurso não definirá um bom
projeto: é preciso lançar mão de relações interdisciplinares, o que inclui reflexão
epistemológica. Análises discursivas críticas baseadas apenas em dados documentais (e a
maioria das abordagens é documental, segundo Meyer, 2003) não conseguem realizar
epistemologicamente todo o potencial da perspectiva ontológica adotada pela ADC,

baseada em uma realidade social estratificada composta de práticas e redes de práticas.


Em outras palavras, carecem de coerência entre teoria e empiria.
Existe, então, uma inconsistência entre a perspectiva ontológica da ADC e sua
tradição de análise documental isolada: se os componentes do mundo social são práticas
sociais compostas de relações sociais, ideologias, atividades materiais e discursos, e se
esses elementos da prática social são dialeticamente interconectados e não se podem
reduzir um ao outro, então há uma incongruência entre essa ontologia e a postura
epistemológica que acredita que essa realidade social pode ser conhecida simplesmente
por meio do discurso materializado em textos (análise documental). A epistemologia que
dá conta dessa ontologia das práticas sociais tem de ser mais reflexiva de sua prática e,
provavelmente, tem de articular outros métodos além da coleta de documentos. A
questão fundamental é que pesquisadores/as em ADC precisam engajar-se na reflexão
epistemológica de seus projetos antes de passar à construção de metodologias capazes de
gerar explanações contextualmente informadas das relações entre o momento discursivo e
as dimensões extra-discursivas das práticas sociais que estudam.
Para Retamozo (2006: 4), “a dimensão ontológica se relaciona com o nível
metodológico através do epistemológico”, e por isso “é necessário construir pontes que
permitam transitar da ontologia para a epistemologia e para a metodologia”. Em muitas
pesquisas discursivas, ao contrário, parece haver um salto entre uma ontologia altamente
complexa e uma metodologia por vezes incapaz de responder a essa complexidade, e esse
salto se dá justamente sobre a reflexão epistemológica, que é suprimida da pesquisa gerando
uma lacuna. Reconhecendo que toda prática teórica crítica deve ser também auto-crítica,
nesta pesquisa pretendo introduzir uma preocupação com a reflexão epistemológica em
ADC, com base no Realismo Crítico e na tradição qualitativa etnográfica.

[80]
Não pretendo com isso afirmar que acredito que a realidade social possa ser
diretamente acessada, como preferiria uma abordagem realista ingênua. Sabemos que
nossa compreensão do mundo social sempre é mediada por nossos conhecimentos e
teorias do mundo social, por isso toda abordagem plenamente naturalista do mundo
social deve ser vista com cautela. Com Páramo & Otálvaro (2006: 4), assumo que “a
informação empírica não é imediata, mas está a uma certa distância do objeto que
representa. Portanto, é ingênuo considerar os dados empíricos como equivalentes diretos
dos objetos materiais”. A ADC, assim como o RC, considera “a impossibilidade de pesquisas
científicas acessarem diretamente, por exemplo sem passar pelo crivo do pesquisador, o
estrato empírico da realidade” (Ramalho, 2007: 79). Tal fato, entretanto, não deve ser
suficiente para pôr em risco a validade dos métodos observacionais para investigação da
ação social e das práticas sociais, pois mesmo os dados textuais são analisados de acordo
com a subjetividade do/a analista, e isso – como sabemos – não constitui um problema
para a interpretação em ADC, que não se pretende imparcial e assume a impossibilidade da
neutralidade analítica: “não existe análise ‘objetiva’ de textos, pois não é possível descrever
simplesmente ‘o que está lá’ sem a participação da subjetividade do/a analista” (Fairclough,
2003: 14; ver também Chouliaraki & Fairclough, 1999).
Um desafio intelectual imposto a esta pesquisa, então, é ampliar a relação entre a
Ciência Social Crítica (CSC) e a ADC por meio de uma abordagem etnográfica
multimetodológica e multidimensional capaz de acessar a relação entre práticas, eventos,
discursos, identidades, relações sociais (ver Capítulo 4). A ADC tem sido criticada por não
realizar, nas práticas de pesquisa e análise, as relações interdisciplinares discutidas no nível
teórico (Wodak, 2003b). Isso pode ser devido, em parte, a uma falta de reflexão – no
sentido de abordagem questionadora e ativa – no desenho da pesquisa. Creio que algumas
pesquisas em ADC tendem a repetir modelos de forma mecânica, sem reconhecer que a
abertura para diferentes abordagens pode trazer vantagens para a investigação.
As reflexões que apresento aqui são voltadas especificamente para a pesquisa que
fiz: não se trata de formular um modelo considerado melhor nem pior que nenhum outro;
creio que cada pesquisador/a precisa engajar-se pessoalmente nas considerações

[81]
epistemológicas de sua pesquisa. Assim como a ADC não é compatível com metodologias
pré-moldadas, também não pode contar com reflexões epistemológicas prontas.
Na próxima seção, procuro justificar o engajamento de minha pesquisa ao
paradigma qualitativo para, na seção seguinte, qualificar mais especificamente a que tipo
de pesquisa qualitativa meu estudo filiou-se.

3.2 Pesquisa qualitativa

A pesquisa de natureza qualitativa (PQ) lida com descrições e interpretações da


realidade social tendo como base dados interpretativos; é uma forma de pesquisa
potencialmente crítica: por meio da PQ as ciências sociais críticas identificam estruturas de
poder naturalizadas em um contexto sócio-histórico definido. Por isso, a PQ é indicada
quando se pretende focar representações de mundo, relações sociais, identidades,
opiniões, atitudes, crenças ligadas a um meio social. Isso justifica a escolha do paradigma
interpretativo para o desenvolvimento desta pesquisa, de acordo com a concepção de
discurso adotada, explicitada no Capítulo 2.
Mesmo que em certas áreas ainda haja preconceitos em relação à PQ, pode-se dizer
que ela agora está estabelecida como paradigma para pesquisa social (Flick, Kardorff &
Steinke, 2004). A dinâmica da PQ tem dois elementos distintivos em relação à pesquisa
quantitativa. Primeiro, não há planejamentos de pesquisa pré-moldados; ao contrário, há
múltiplas opções de métodos para geração e coleta de dados, construção de corpora,
manejo e análise de dados – o/a pesquisador/a precisa engajar-se na construção de uma
metodologia adequada a sua pesquisa.
Proponho uma distinção epistemológica entre a ‘coleta de dados’ e a ‘geração de
dados’. Entendo que em pesquisa de campo de natureza etnográfica a maior parte dos
dados não é simplesmente coletada – como se já estivesse disponível independente do
trabalho do/a pesquisador/a –, e sim gerada para fins específicos da pesquisa. Ir a campo
e realizar interações especificamente organizadas para a pesquisa não é coletar algo que já
esteja disponível na vida social, pois o que fazemos é criar situações, gerar espaços de
interlocução e, muitas vezes, criar métodos para isso. Investigamos problemas sociais sem
[82]
dúvida pré-existentes à pesquisa, mas criamos situações sociais úteis para sua investigação.
Por outro lado, algumas vezes coletamos textos e interações já disponíveis, que existem
independentemente de nossa intervenção – é o caso da coleta de materiais impressos, no
contexto da pesquisa, ou da gravação de interações típicas desse contexto.
Essa distinção é epistemológica porque os dados gerados e os dados coletados nos
permitem acesso a diferentes componentes ontológicos (veja a seguir). Reconhecer a
diferença entre os dois tipos de dados, entretanto, não implica uma objetivação dos dados
coletados, pois mesmo esses são selecionados pelo/a pesquisador/a. Tampouco implica
desconsiderar que mesmo as interações típicas do contexto pesquisado se construam no
momento mesmo do evento discursivo em que ocorrem – a questão é que esse tipo de
dado (coletado) nos possibilita estudar a estruturação dos eventos no contexto pesquisado,
o desenrolar de uma atividade que ocorreria independentemente da pesquisa que se realiza.
Nesta pesquisa, foram gerados dados por meio de grupos focais e de entrevistas, e
foram coletados dados por meio da gravação de reuniões (ver Capítulo 4). A diferença entre
um e outro tipo de dados é que o primeiro decorre de interações que não ocorreriam fora
da pesquisa, são interações geradas para fins da pesquisa; já o segundo decorre do registro,
ou coleta, de interações existentes fora do universo da pesquisa e que são aproveitadas
também para esse fim. Uma implicação epistemológica dessa distinção é que os dados
gerados em campo serão úteis para a análise de representações da ação, da atividade
material, das relações sociais, mas não para a análise da ação social em si – a menos que a
atividade social investigada seja a própria prática da pesquisa. Por isso é imprescindível, em
pesquisas discursivas, que esteja clara a distinção entre ação social e sua representação.
O segundo elemento distintivo da PQ em relação à pesquisa quantitativa é que o
processo de PQ é cíclico, recursivo: a geração/coleta e a análise de dados são relacionadas,
ou seja, as análises iniciais podem apontar necessidade de revisão dos métodos para
geração e coleta de dados e, por isso, o manejo dos métodos deve ser suficientemente
flexível para dar conta desses ajustes (Crabtree & Miller, 1992; Mason, 2006; veja
discussão da necessidade de flexibilidade no planejamento desta pesquisa no Capítulo 1).
A escolha entre diferentes tipos de pesquisa deve depender daquilo que se
pretende pesquisar e do modo como o/a pesquisador/a posiciona-se em relação à

[83]
construção de conhecimento. A questão, entretanto, não é estabelecer uma hierarquia
entre modelos quantitativos e qualitativos; não é assumir a priori que um tipo de pesquisa
seja superior ou inferior a outro. A questão seminal que nos devemos fazer quando
desenhamos uma pesquisa é: “os métodos de pesquisa adotados são apropriados à
natureza da questão que está sendo investigada na pesquisa?” (Silverman, 2000: 12). Uma
vez que se trata de uma questão de caráter epistemológico, essa reflexão deve ser anterior
à seleção/criação de métodos para a pesquisa.
Outros autores posicionam-se da mesma maneira ao estabelecerem um elo
imprescindível entre o problema investigado e a tradição de pesquisa selecionada na
construção da pesquisa (veja, por exemplo, o trabalho de Mason, 2002; 2006). Para Miller
& Crabtree (1992: 6), “a escolha de um estilo de pesquisa para um projeto particular
depende do objeto da pesquisa, do objetivo da análise e das questões de pesquisa
relacionadas.” Kuzel (1992: 37) também corrobora essa perspectiva ao afirmar que “a
natureza da questão/problema de interesse permite fazer um julgamento acerca da forma
de pesquisa – quantitativa ou qualitativa – desejável para a investigação”.
A filiação à tradição qualitativa, entretanto, pode não ser suficiente para esclarecer
a natureza de uma pesquisa. Embora o rótulo ‘pesquisa qualitativa’ possa sugerir
homogeneidade e consenso, tal não faz jus à multiplicidade de abordagens que se
identificam com o rótulo: trata-se de um nome genérico para uma variedade de
abordagens interpretativas. Há, entretanto, um princípio epistemológico comum às
abordagens qualitativas: o interesse na compreensão de relações complexas de redes de
práticas, o que justifica a adoção de métodos múltiplos e a recusa a métodos
padronizados, como os questionários, a menos que sejam articulados a outros métodos
complementares. Por isso, por meio da PQ – e notadamente por meio de métodos
observacionais – é possível o acesso a informações específicas, não encontradas em dados
quantitativos e/ou documentais isolados.
Flick, Kardorff & Steinke (2004) definem dois tipos de tradição em PQ: (i) com
foco na ação social e (ii) com foco na estrutura. Essa cisão, entretanto, parece-me pouco
produtiva em um momento em que as ciências sociais buscam abandonar a centralidade
de estrutura ou de ação (exemplos disso são as perspectivas de Bhaskar, 1989; de

[84]
Bourdieu & Wacquant, 2005; de Sousa Santos, 2007; ver também Fairclough 2000). Assim
como as ciências sociais notam ser improdutiva a divisão entre teorias da estrutura e
teorias da ação, a PQ pode superar a centralidade no sistema ou no indivíduo. Esse é um
dos objetivos centrais do Realismo Crítico, tanto em termos ontológicos quanto
epistemológicos. Na próxima seção, discuto algumas implicações epistemológicas do RC

para as ciências sociais e, especialmente, para a ADC.

3.3 Realismo Crítico e epistemologia nos estudos críticos do discurso

No capítulo anterior, vimos que as perspectivas ontológicas que orientam


pesquisas em ADC baseiam-se em propostas desenvolvidas na CSC. Vimos também que
entre essas perspectivas a versão de ADC com a qual trabalho privilegia a ontologia
proposta no RC. A vantagem da articulação interdisciplinar entre o RC ea ADC é de mão
dupla: pesquisas em RC lidam com dados textuais, e podem beneficiar-se da formulação
metodológica para análise de textos construída na ADC; e pesquisas em ADC costumam ser
pouco explícitas acerca de vínculos epistemológicos, e podem tirar proveito de um
diálogo com o RC, que é rigoroso nesse aspecto.
Nesta seção, abordo algumas implicações epistemológicas da ontologia do
Realismo Crítico. Na primeira subseção, meu foco é a estratificação do mundo social nos
domínios do potencial, do realizado e do empírico. Em seguida, abordo a discussão
realista crítica das dimensões intransitiva e transitiva do conhecimento. Na terceira
subseção, passo a discutir o aspecto epistemológico do modelo transformacional da
relação entre estrutura e ação social. Por fim, procuro relacionar essas implicações
epistemológicas aos estudos críticos do discurso. Devo esclarecer que, assim como no
capítulo anterior, minhas reflexões sobre o Realismo Crítico não visam esgotar o assunto
nem discutir toda a ampla teoria desenvolvida nessa área: faço uma seleção de tópicos que
me parecem relevantes para esta pesquisa.

[85]
3.3.1 Estratificação do mundo social 

Um dos aspectos básicos do RC é a distinção entre ontologia e epistemologia, “uma


reivindicação da ontologia, teoria do ser, como distinta da epistemologia, teoria do
conhecimento” (Bhaskar & Lawson, 1998: 5). Com base nessa distinção, o RC oferece
uma crítica ao que denomina ‘falácia epistêmica’: a redução da questão do que existe à
questão do que somos capazes de conhecer (Bhaskar, 1998a). A falácia epistêmica é
associada ao Realismo Empírico, ou Empiricismo, que assume a possibilidade de
apreender por observação tudo o que existe. Em outras palavras, iguala o estrato
potencial ao empírico, propondo a existência de um ‘mundo empírico’:

Essa expressão [mundo empírico] sugere, por um lado, um mundo


definido por suas relações com nossa experiência, e, por outro lado, o
único mundo que há (ou no mínimo o único acessível para nós). Na
expressão ‘mundo empírico’ está encerrada a permissão para reduzir as
questões sobre o que existe (questões ontológicas) às questões sobre o
que podemos conhecer (questões epistemológicas) (Collier, 1994: 36).

Essa crítica da redução da realidade ao estrato empírico tem por base a


estratificação da realidade social no RC, segundo a qual se distinguem os domínios do
potencial, do realizado e do empírico (ver Capítulo 2). Enquanto o potencial e o realizado
são categorias ontológicas, referentes respectivamente às estruturas e poderes causais dos
objetos sociais e ao que se realiza quando esses poderes causais são ativados em eventos,
o empírico é uma categoria epistemológica que se refere ao que podemos observar
(Fairclough, Jessop & Sayer, 2002).
De acordo com essa estratificação da realidade social, o potencial é distinto e maior
que o domínio do realizado, no sentido de que nem todos os poderes causais de um
objeto são ativados em eventos, dadas as contingências contextuais. Tendo isso em vista,
o RC denuncia também o equívoco de se considerar o realizado equivalente ao potencial, o
que nega a existência de estruturas subjacentes e “não deixa espaço para o potencial, para
os poderes que podem tanto ser ativados quanto estar dormentes” (Sayer, 2000b: 12).
Distinguir o potencial do realizado significa entender que nem tudo o que poderia
acontecer dados os poderes causais acontece de fato, devido às contingências da articulação

[86]
de elementos sociais em um dado momento, que podem bloquear possibilidades que ficam
não-realizadas. Em termos epistemológicos, essa estratificação da realidade implica que em
análises é possível reivindicar causas não observáveis (no domínio do potencial, dos poderes
causais) para efeitos em eventos (no domínio do realizado) observados empiricamente (no
domínio do empírico). Em outras palavras, significa que a emergência de eventos realizados
pode ser explicada com base na causação. Esse argumento epistemológico é transcendental
no sentido de que a explanação de um processo social pode ter por base a “descrição de algo
que o produz ou é sua condição” (Bhaskar, 1986: 11).
A explanação de objetos/processos sociais com base na causação, isto é, na
ativação de poderes causais, não pressupõe uma lógica de regularidades entre causas e
efeitos. A causação “não é entendida como um modelo de sucessões regulares de eventos,
e então a explanação não depende de se descobrirem regularidades ou leis sociais” (Sayer,
2000b: 14). No RC, a explanação depende, em vez disso, da identificação de mecanismos
causais e das condições que os ativaram/bloquearam.
Recordemos os exemplos citados no capítulo anterior, sobre a identificação de
poderes causais em representações identificadas em documentos etnográficos da pesquisa:
Maria atribuiu ao Movimento o poder causal de possibilitar a emergência do
protagonismo juvenil; Vera identificou a falta de recursos humanos no Movimento como
mecanismo que bloqueia sua capacidade de manter certas atividades em funcionamento
(ver Seção 2.2). A identificação desses modos de representação pelos atores sociais
implicados em uma prática estudada é parte da análise social, mas o que se deseja em uma
crítica explanatória é, além disso, identificar poderes causais que não lhes sejam tão
evidentes. Isso porque a experiência direta nos fornece dados empíricos, mas o
conhecimento é gerado quando se cotejam esses dados a nossos conhecimentos sobre as
práticas e às teorias que sustentam nossas análises (Bhaskar & Lawson, 1998). No caso da
pesquisa sobre a crise do Movimento, o objetivo é localizar mecanismos sociodiscursivos
que bloqueiam o sucesso das aspirações da instituição – notadamente em relação ao
protagonismo juvenil – e modos de superá-los.
Sayer (2000b) propõe a seguinte ilustração da visão realista da causação:

[87]
efeito/evento

mecanismo
Condições(outros mecanismos)
estrutura

Figura 3.1 - Visão realista crítica de causação (Sayer, 2000b: 15)

A focalização das condições contextuais como relevantes para a explanação da


realização de um evento assegura a perspectiva da vida social como um sistema aberto:
em toda prática social há a atuação simultânea de diversos mecanismos. A conjunção
desses mecanismos implica que as explanações sociais não podem conter previsões, assim
como os eventos sociais não podem ser previstos (Sayer, 2000b).
As implicações epistemológicas da estratificação da realidade proposta no
Realismo Crítico, então, são: (i) o que se realiza em eventos e o que podemos observar do
mundo social não esgotam o que existe, uma vez que há poderes causais subjacentes às
estruturas; (ii) isso não significa que não seja possível gerar conhecimento sobre aquilo
que não podemos, diretamente, observar empiricamente, já que podemos, com base no
conhecimento sobre as práticas, fazer abstrações sobre os poderes causais
ativados/bloqueados em um dado evento; (iii) como a vida social é um sistema aberto,
aquilo que acontece não esgota o que poderia ter acontecido, pois pode haver poderes
causais latentes; (iv) toda explanação social é falível e passível de ser superada, pois as
estruturas não são transparentes à razão.
Uma vantagem da crítica explanatória baseada na estratificação da realidade é a
visão do mundo social como um sistema aberto, dadas as contingências contextuais que
tornam imprevisíveis as mudanças sociais. Identificar contingências que bloqueiam
possíveis mudanças sociais, que sejam desejáveis em um contexto de injustiça social por
exemplo, é um modo de potencialmente contribuir para sua superação. Tal contribuição é
qualificada como potencial porque não basta desenvolver pesquisa com o objetivo de
gerar conhecimento acerca de obstáculos para a mudança social e possíveis modos de
superá-los, é preciso também formular meios de fazer com que esse conhecimento seja
útil no contexto pesquisado (sobre isso, veja discussão no Capítulo 4).

[88]
3.3.2 Dimensões transitiva e intransitiva do conhecimento 

Bhaskar (1989) propõe a distinção entre as dimensões intransitiva e transitiva da


ciência: os objetos da ciência (aquilo que estudamos no mundo social) estão em sua
dimensão intransitiva; as teorias e discursos sobre o mundo social formam sua dimensão
transitiva. Isso implica que o mundo não deve ser reduzido a nosso conhecimento sobre ele
e que a “realidade – dimensão intransitiva e ontológica” é independente da “relatividade de
nossos conhecimentos – na dimensão transitiva e epistemológica” (Bhaskar, 1998a: x). A
construção de conhecimento é uma atividade transitiva, dependente de conhecimentos
anteriores e da atividade do ser humano; mas tem objetos intransitivos, que existem
anteriormente à pesquisa e cuja realidade não depende de nossos conhecimentos.
Nesse sentido, teorias rivais possuem diferentes perspectivas transitivas, isto é,
diferentes interpretações sobre o mundo, mas o mundo de que tratam – sua dimensão
intransitiva – é o mesmo, ou não seriam rivais (Collier, 1994). O exemplo que Sayer
(2000a) utiliza para ilustrar isso pode ser esclarecedor: a mudança de uma teoria da Terra
plana para uma teoria da Terra redonda (dimensão transitiva) não determinou nenhuma
mudança no formato da Terra (dimensão intransitiva), mas uma mudança em nossa
compreensão sobre essa realidade (dimensão transitiva).

DIMENSÃO INTRANSITIVA DIMENSÃO TRANSITIVA


Os objetos da ciência Teorias científicas
(aquilo que estudamos no mundo) (discursos científicos sobre o mundo)

Exemplo: O planeta Terra (Sayer, 2000a: 8)

Teoria da Terra plana


= ≠
Teoria da Terra redonda

Quadro 3.1 – Dimensões transitiva e intransitiva da ciência segundo Bhaskar (1898) e Sayer (2000a)

A dimensão intransitiva do conhecimento é sua dimensão ontológica – das coisas


que há no mundo – e a dimensão transitiva é epistemológica no sentido de que se refere
[89]
às teorias que construímos sobre o mundo (natural ou social) e por meio das quais
podemos gerar conhecimento sobre sua dimensão intransitiva. Assim, o reconhecimento
dessas duas dimensões caminha ao lado da estratificação do mundo social na distinção
entre ontologia e epistemologia.
Quando se trata de questões sociais, e não físicas, isso se complexifica, pois o mundo
social é também socialmente construído, mas essa característica do mundo social não dilui a
realidade intransitiva de seus objetos: “embora aspectos do mundo social (como, por exemplo,
instituições sociais) definitivamente sejam construídos socialmente, uma vez construídos eles
são realidades que afetam e limitam a construção discursiva do social” (Fairclough, 2003: 8).
Evidentemente, de acordo com a relação entre discurso e sociedade em ADC (ver Capítulo 2),
assim como a estruturação da realidade social afeta a construção discursiva também nossos
modos de representação podem ter efeitos na organização do mundo social. Isso significa que
nosso conhecimento acerca do mundo social não pode ser estritamente separado do mundo
social em si, pois nossas construções têm implicação sobre o modo como o mundo social se
organiza. Mas essa ‘interdependência causal’ entre as dimensões intransitiva e transitiva do
conhecimento das coisas sociais não deve ser confundida com a ‘intransitividade existencial’,
como explica Bhaskar (1998d: 227, grifos no original):

Enquanto, em geral, no mundo natural os objetos do conhecimento existem


e agem independentemente do processo de produção de conhecimento do
qual são objetos, na arena social não é assim. O processo de produção de
conhecimento pode ser causal e internamente relacionado ao processo de
produção dos objetos em questão. Entretanto, quero distinguir essa
interdependência causal, que é um aspecto contingente dos processos, da
intransitividade existencial, que é uma condição prévia para qualquer
investigação e se aplica igualmente nas esferas natural e social.

A interdependência causal, então, diz respeito à possibilidade de os objetos das


ciências sociais serem afetados pelos processos de construção do conhecimento, o que é
visto com bons olhos, já que, como pontua Collier (1994: 15), “a importância prática da
teoria é que teorias podem transformar práticas”. Isso não se confunde com a
intransitividade existencial dos objetos sociais, que se refere à existência material desses
objetos anteriormente ao processo da pesquisa e da construção do conhecimento. A

[90]
alternativa à perspectiva da intransitividade seria crer que as situações sociais que
pesquisamos não existem independentemente dos modos como são interpretadas por
seus participantes ou por pesquisadores/as (Outhwaite, 1998).
A abordagem das dimensões transitiva e intransitiva da ciência social – entendendo que
nosso conhecimento sobre o mundo social, embora não se iguale ao mundo social em si, não
pode ser estritamente separado do que existe na sociedade – justifica a existência da ciência
crítica que crê que sua prática teórica possa resultar na superação de questões problemáticas.
Essa perspectiva se alinha com a ADC, em sua identidade como prática teórica crítica.
A implicação da reivindicação de intransividade dos objetos sociais, especificamente
para os estudos do discurso, é que os elementos discursivos que investigamos – sejam
discursos como modos de representação de eventos, sejam construções discursivas de
identidades – são objetos concretos no sentido de que são, tal como as atividades materiais,
“produtos de múltiplos componentes e forças” (Sayer, 2000b: 19).
Assim como discursos contextualmente localizados podem ser explicados em
termos causais, podem também ser identificados como tendo poderes causais em eventos.
É isso o que justifica a perspectiva de relação dialética entre linguagem e sociedade,
reivindicada pela ADC e nem sempre claramente formulada: aspectos discursivos de
práticas sociais, como representações discursivas de eventos e práticas, podem ter efeitos
causais na sociedade; podem, por exemplo, legitimar certos modos de ação ou ser
utilizadas como base para construções identitárias. Por outro lado, a colonização de
diferentes práticas sociais por certas representações discursivas e sua presença em
diferentes tipos de texto, e a configuração de ordens do discurso em práticas particulares
são também resultados de poderes causais, no sentido de que a organização dos
elementos discursivos em práticas é socialmente estruturada.

3.3.3 Modelo Transformacional da Atividade Social 

A perspectiva transformacional da relação entre estrutura e ação social é


fundamental para uma ciência crítica, que procura estudar questões problemáticas na vida
social, como a exclusão social. É preciso reconhecer as estruturas como existindo
previamente aos eventos estudados, embora sejam nos eventos historicamente criadas,
[91]
reificadas e transformadas – um/a pesquisador/a crítico/a da exclusão social que não
perceba as estruturas causadoras da miséria e da favelização, por exemplo, como prévias
às interações e aos eventos apresentará uma inconsistência ontológica grave, com
conseqüências epistemológicas para a explanação social.
Uma tal perspectiva do mundo social é também fundamental para se acercar da
relação entre estrutura e ação social com base nos conceitos de práticas e posições – as
estruturas são tanto a condição (sincrônica) quanto o resultado (diacrônico) da ação social, ou
seja, são prévias às práticas mas podem também ser transformadas nas práticas (ver Capítulo
2). Para Bhaskar (1989: 4), “as relações em que as pessoas entram pré-existem aos indivíduos
cuja atividade as reproduz ou as transforma. E é a essas estruturas de relações sociais que o
realismo dirige sua atenção (...) como chaves explanatórias para entender eventos sociais”.
O foco nas relações sociais como estruturadas, isto é, pré-existentes, garante uma
perspectiva transformacional entre tais relações e as atividades em que atores sociais se
engajam. As relações pré-estabelecidas são condições necessárias para os eventos
estruturados por essas relações, e os eventos são potencialmente transformadores dessas
mesmas relações, dependendo das contingências contextuais. Um conceito mediador
entre relações sociais e atividades é o de posições:

Uma posição precisa existir previamente a sua ocupação, e mesmo que as


mesmas pessoas se tornem ocupantes de posições elaboradas
recentemente, o novo conjunto de relações internas nas quais estão
implicadas exerce uma influência condicional sobre elas – que é
causalmente detectável precisamente através de suas práticas
transformadas e da elaboração da agência (Sayer, 1998: 202).

O conceito de posição é mediador entre relações sociais e atividades sociais porque


permite um foco simultâneo na ação individual – de atores sociais que ocupam
contextualmente posições previamente estabelecidas – e nas práticas sociais estruturadas.
Em RC, “influência condicional” não é sinônimo de determinismo: significa que as relações
sociais estabelecidas nas novas posições ocupadas influenciam as práticas inerentes a essas
novas posições. Entretanto, como minhas análises indicam, a mudança de posição dentro
de uma instituição estruturada não é um processo livre de conflitos – as posições anteriores
continuam exercendo pressões para a continuidade de práticas internas às relações prévias.
[92]
Assim, a mudança de posição de ‘menina’ para ‘menina-educadora’ acarreta conflitos entre
as posições de ‘menina’ e de ‘educadora’, sobretudo em decorrência de relações hierárquicas
difíceis de superar (ver Parte II). Os conceitos de práticas e posições, então, mostram-se
epistemologicamente produtivos, no sentido de que possibilitam a explanação desses
conflitos decorrentes de hierarquias e sua influência para a ação social.
Assim, os conceitos mediadores de práticas e posições permitem focalizar questões
relacionadas à distribuição de condições estruturais para a ação, nesse caso especialmente
à alocação diferenciada de pessoas e grupos a funções e papéis dentro da instituição – ser
uma ‘menina-educadora’ é mais que articular funções e papéis tanto de ‘menina’ quanto
de ‘educadora’, é experimentar as tensões existentes entre uma e outra posição. Uma
implicação epistemológica desse modelo transformacional estrutura/ação social, baseado
na mediação de práticas e posições, então, é a atenção analítica que devemos ter nas
relações sociais como base para as explanações.
Como vimos no capítulo anterior, o Modelo Transformacional da Atividade Social
garante que, apesar do constrangimento das atividades pelas estruturas, essa restrição é
sempre parcial, no sentido de que há possibilidades para a mudança social. Em termos
epistemológicos, isso significa que é possível propor projetos de pesquisa emancipatórios,
capazes de revelar: “(a) uma necessidade; (b) algum obstáculo impedindo a realização
dessa necessidade; (c) alguns meios para a remoção desse obstáculo” (Collier, 1994: 183).
Tendo em vista a figura que ilustra, em termos ontológicos, o modelo
transformacional da relação estrutura/ação (Bhaskar, 1998d: 217; ver Figura 2.1, no
Capítulo 2), podemos propor a Figura 3.2 a seguir, como uma ilustração da implicação
epistemológica desse modelo transformacional para pesquisas sociais:

(b) bloqueio da satisfação da necessidade

Estrutura
recurso/constrangimento reprodução/transformação
Ação

(c) Alguns meios para a


(a) necessidade remoção desse bloqueio

Figura 3.2 – Implicação epistemológica do Modelo Transformacional da Atividade Social


[93]
Assim, pesquisas comprometidas com a mudança social podem basear-se
epistemologicamente no Modelo Transformacional da Atividade Social de Bhaskar (1989),
visando identificar necessidades não-satisfeitas de atores sociais envolvidos nas práticas
estudadas, mecanismos que possivelmente bloqueiem a satisfação dessas necessidades, em
termos das estruturações sociais, e modos potenciais para a superação desses mecanismos
e, então, de transformação dos aspectos estruturais considerados problemáticos. Nas
palavras de Collier (1994: 182), “a ciência social não leva em conta apenas as crenças e
suas relações causais com as estruturas, ela também revela necessidades humanas, suas
frustrações e as relações entre essas necessidades e frustrações e a estrutura social”.
Esse modelo serve de inspiração ao enquadre para ADC proposto por Chouliaraki
& Fairclough (1999), notadamente nas etapas em que a autora e o autor sugerem que se
identifiquem, em relação ao problema social parcialmente discursivo estudado, obstáculos
para serem superados, a função do problema na prática e possíveis modos de se
ultrapassarem os obstáculos (sobre a relação entre o enquadre para ADC de Chouliaraki &
Fairclough e o RC, veja também Ramalho, 2007).

3.3.4 Realismo Crítico e Análise de Discurso Crítica 

Vimos, nas seções anteriores, algumas implicações epistemológicas do RC para


pesquisas em ciências sociais e, especificamente, para pesquisas discursivas. Não somos
cientistas sociais, somos analistas de discurso. Embora nossos problemas sejam de caráter
social e dialoguemos com teorias sociais, é importante que mantenhamos nossa posição
como analistas – o que, por um lado, ajuda a legitimar a lingüística como campo de
investigação crítica e, por outro, esclarece nosso foco. Isso não significa nos fecharmos em
um campo considerado acabado; sabemos que todo conhecimento é histórico e contextual,
e como qualquer outro conjunto de crenças é passível de transformação e superação. Nesse
sentido, é vantajosa a abertura a teorias fronteiriças, e é essa abertura que faz da ADC não
uma disciplina, mas uma interdisciplina. Mantermos a distinção de nosso trabalho como
analistas de discurso em relação ao trabalho de cientistas sociais é um modo, porém, de

[94]
estabelecermos com clareza nosso papel particular na crítica social contemporânea – não se
trata de demarcação de territórios acadêmicos, mas de clareza em relação a objetos e
objetivos, o que é relevante inclusive para a formação de redes multidisciplinares.
Temos interesses específicos em aspectos de problemas sociais que não coincidem
plenamente com os interesses das ciências sociais (em termos da dimensão intransitiva do
conhecimento), e contamos com habilidades e discursos científicos diferentes (em sua
dimensão transitiva). Acontece que nosso foco, como analistas de discurso, não são
primariamente as atividades materiais ou as estruturas sociais de um modo amplo, mas o
momento discursivo das práticas sociais e as relações causais que estabelecem com outros
momentos das práticas, as relações de emergência entre aspectos discursivos e não
discursivos na reprodução/transformação da sociedade. Como determinados discursos
são utilizados para manter/transformar relações sociais? Como construções discursivas de
identidades entram em conflito em práticas sociais específicas? Como recursos discursivos
– habilidades para a produção de textos em gêneros específicos, acesso a espaços
privilegiados de interlocução etc. – são disponibilizados a atores sociais que ocupam
posições específicas?
Uma implicação direta desse interesse particular nos aspectos discursivos de
práticas sociais é que, em nosso diálogo profícuo com as ciências sociais, precisamos fazer
reflexões que nos permitam adaptar categorias e conceitos a nossos interesses, precisamos
transformá-los em ferramentas adaptadas a nossas necessidades. Um bom exemplo disso
é a necessidade de se distinguir com clareza ação social e representação da ação social para
não incorrer em inconscistências epistemológicas.
Para examinar essa distinção, tomemos a seguinte citação de Bhaskar (1998a: xvii,
grifos meus): “o interesse das ciências sociais inclui não apenas objetos sociais mas também
crenças sobre esses objetos”. Enquanto pesquisas em RC também percebem a relevância dos
discursos sobre objetos sociais não discursivos, pesquisas em ADC estão primariamente
interessadas nas representações discursivas, sem perder de vista a relevância dos momentos
não discursivos das práticas sociais para a crítica explanatória do papel do momento
discursivo das práticas. Isso porque o foco de pesquisas em ADC é no discurso, e portanto nas

[95]
representações.23 No caso específico de pesquisas etnográfico-discursivas como esta, é
preciso ter em mente que “não descobrimos estruturas sociais reais entrevistando pessoas
sobre elas” (Archer, 1998: 199). Por isso o foco central em pesquisas etnográfico-discursivas
não são as estruturas, práticas e eventos em si, mas suas representações discursivas, embora
para o estudo dessas representações o conhecimento contextualizado das práticas em questão
seja imprescindível. Vejamos o que Sayer (2000b: 20) nos diz a esse respeito:

Quando pesquisadores/as estão interessados/as em discursos e nas


qualidades significativas de práticas sociais, não se trata de abstração
seguida de síntese concreta, mas de interpretação. Entretanto, realistas
acrescentariam que para interpretar o que atores sociais dizem
precisamos relacionar seu discurso aos referentes e aos contextos.
Também vale lembrar que a realidade social é apenas parcialmente
textual. Muito do que acontece não depende ou não corresponde à
compreensão de atores sociais; há conseqüências inesperadas e
condições não percebidas, e as coisas podem acontecer a pessoas
independentemente de sua compreensão.

Para análises discursivas lograrem críticas explanatórias, é indispensável um


conhecimento contextual capaz de possibilitar o estabelecimento das relações entre
representações discursivas e práticas sociais. Isso endossa a relação desejável entre ADC e
etnografia. O reconhecimento de que a realidade social é apenas parcialmente discursiva, e
de que portanto as representações das práticas/eventos carregam lacunas inevitáveis,
sugere que os documentos etnográficos gerados/coletados em campo sejam
complementados por estratégias observacionais na construção do objeto da pesquisa.
Nesse sentido, Fairclough, Jessop & Sayer (2002: 2) sugerem que “pode ser necessário ou
apropriado suplementar a ADC com análises mais concretas-complexas dos domínios
extradiscursivos”, assim como Wodak (2003a) insiste que o trabalho de campo é desejável
para se explorar o objeto da investigação e como condição prévia para trabalhos de

23 Não excluo a possibilidade de pesquisas em ADC focalizarem o aspecto discursivo da ação social em si, e não a
representação da ação social. Tomemos como exemplo uma pesquisa em que audiências públicas sejam gravadas a
fim de se investigar como os atores sociais participantes agem por meio da linguagem. Nesse caso, o foco será o
aspecto discursivo da ação social, a ação discursiva. Nesta pesquisa, entretanto, discuto a questão da distinção entre
ação e representação da ação, pois meu interesse específico é a representação. A questão da relação entre ação social
e ação discursiva fica em aberto.
[96]
análise. Blommaert (2005: 233) vai mais além, quando sugere o caráter central da
contextualização para pesquisas discursivas e propõe a etnografia como meio para tanto:

Precisamos desenvolver uma abordagem ampla da linguagem na


sociedade, em que a contextualização do discurso seja um elemento
central. Se tomamos contexto seriamente, então precisamos investigá-lo
seriamente. Isso significa que precisamos adotar um registro eclético de
abordagens e métodos capaz de captar a complexidade do discurso como
local de desigualdade. Para isso a etnografia é central: uma perspectiva da
linguagem como intrinsecamente ligada a contexto e atividade humana.

Não basta identificar desejos, motivações – e mesmo ações – de atores sociais


em relação a um objetivo de mudança social, porque a efetividade dos projetos
pessoais/institucionais depende dos modos como se relacionam com contingências
contextuais, com as possibilidades apresentadas nos contextos em que sua atividade
social se desenrola. Isso justifica explanações causais: o que há nos contextos
pesquisados que permite ou bloqueia o sucesso de uma ação intencional? O fracasso das
estratégias de atores sociais/instituições pode ter mais relação com as limitações
contextuais que com suas intenções discursivamente representadas. Daí a relevância da
observação para a apreensão dessas contingências.
A crítica explanatória construída em termos de relações causais, explica Collier
(1994: 18), é interna no sentido de que “as contradições descobertas são internas à prática”.
O que está em questão é identificar nas próprias práticas pesquisadas contradições que
bloqueiam a ação social. No caso de pesquisas discursivas, essas contradições podem ser
entre discursos interiorizados e práticas – por exemplo, o discurso da imobilidade das
estruturas sociais, que entra em contradição irreconciliável com a mobilização social –, entre
construções identitárias e posições – como no caso das posições de ‘menina’ e de
‘educadora’ e a luta identitária em torno dessas posições (ver Parte II). Como vimos, esses
elementos discursivos são objetos concretos que podem ser causalmente explicados, por
um lado, e identificados como mecanismos em explanações causais, por outro.
A descrição do objeto da pesquisa é uma necessidade anterior à produção de uma
crítica explanatória. Bhaskar (1998c: 72) sugere que essa etapa descritiva depende de dois
tipos de trabalho: o trabalho prático experimental, cujo objetivo é tornar o objeto
[97]
acessível à percepção do/a pesquisador/a, “em que os poderes perceptivos do/a cientista
aumentam”, e o trabalho teórico, cujo objetivo é possibilitar a produção de uma descrição
cientificamente informada do objeto, “em que os poderes conceitual e descritivo do/a
cientista aumentam”. Bhaskar pondera que ambos os tipos de trabalho são essenciais para
uma descrição qualitativa, mas para ele são tarefas independentes.
No caso de pesquisas de caráter etnográfico-discursivo como a que realizei,
entretanto, essa separação entre construção do objeto e construção do conceito do objeto
não se verifica, já que o processo da pesquisa etnográfica é recursivo (ver Capítulo 4). Creio
que em qualquer pesquisa que lide com geração/coleta de dados por meio de trabalho de
campo, quando se inicia o processo de produção do corpus (construção do objeto) já se
inicia a formulação de conceitos com base nas teorias que nos servem de suporte
(construção do conceito do objeto). Tentar estabelecer uma separação por um lado não é
possível e por outro não é desejável. Nesse sentido, prefiro concordar com Sayer (1998:
122) quando argumenta que “a observação não é teoricamente neutra, e a teoria não apenas
‘organiza os fatos’, mas traz reivindicações sobre a natureza de seu objeto”.
Uma vez construído o corpus e formulados os conceitos básicos da pesquisa,
realistas críticos/as procedem à explanação social dos problemas investigados. O ponto
de partida para a identificação de estruturas explanatórias é a interpretação. Para Bhaskar
(1998d: 238), o potencial explanatório de pesquisas sociais tem por base a análise de
significados e “dos modos como tais significados são produzidos”. Essa relevância da
análise semiótica para a crítica explanatória sugere a vantagem de uma articulação com a
ADC e sua formulação metodológica para a análise de dados textuais: “é aí que a análise de
discurso pode contribuir no desenvolvimento da pesquisa social; mas isso não deve ser
concebido como um simples somatório de teorias de linguagem existentes com teorias
sociais existentes” (Fairclough, 2000: 165). A interiorização entre teorias sociais e
discursivas sem dúvida recebe uma contribuição relevante da ADC, mas não podemos
considerar essa relação como estando pronta: há ainda muita reflexão por fazer.

[98]
Algumas considerações

Como vimos no capítulo anterior, o diálogo com a Ciência Social Crítica, e


especialmente com o Realismo Crítico, provê à Análise de Discurso Crítica uma versão de
ontologia que prevê a estratificação da realidade social, a vida social como um sistema
aberto constituído de redes de práticas em relações relativamente estáveis, em que as
estruturas sociais são a condição sincrônica dos eventos sociais e o resultado diacrônico
desses mesmos eventos. Neste capítulo, procurei enfatizar a necessidade de reflexões de
caráter epistemológico em estudos discursivos, sobretudo do ponto de vista das vantagens
e limitações das relações entre disciplinas de que nos valemos em nossas pesquisas. Nesse
sentido, foram abordadas algumas implicações epistemológicas dessa versão da ontologia.
A distinção entre os estudos sociais e os estudos discursivos, no que se refere à
crítica explanatória baseada em relações causais, é que nosso interesse são os mecanismos
gerativos de elementos discursivos e os modos como facetas desse momento discursivo
podem ser também mecanismos gerativos de mudança social. Se questões epistemológicas
também incluem a consideração de que evidências contam como conhecimento das coisas
sociais, outra diferença notável pode ser formulada: para a ADC, as evidências mais
significativas são lingüístico-discursivas, pois nossa ferramenta para a crítica social são
categorias para análises textualmente orientadas.
Assim, se em pesquisas etnográfico-discursivas os processos de construção do
objeto e de construção do conceito do objeto são considerados recursivos – pois a
observação não é teoricamente neutra e as teorias carregam pressupostos sobre seus
objetos –, o mesmo também é verdade para os processos de análise discursiva e crítica
explanatória. Isso porque as evidências de que nos valemos para a crítica explanatória são
as articulações entre as análises textualmente orientadas de dados e conhecimentos extra-
discursivos da prática social. Quanto mais eficiente for a pesquisa no sentido de mapear
essas conexões, mais relevantes serão seus resultados em termos da crítica explanatória.
Tomadas as decisões sobre as perspectivas ontológica e epistemológica adotadas
para a pesquisa, é preciso considerar que estratégias de geração e coleta de dados podem
ser coerentes com tais decisões. Além disso, essas estratégias precisam levar em
consideração as questões de pesquisa, isto é, o planejamento da pesquisa deve decorrer
[99]
também das questões que se pretende abordar. Antes de apresentar a metodologia da
pesquisa foi necessária uma reflexão acerca das relações entre as perspectivas ontológica e
epistemológica em seu planejamento, pois “as técnicas são selecionadas pela instância
ontológica e epistemológica, e não o contrário” (Páramo & Otálvaro, 2006: 6).
Os métodos etnográficos selecionados para a pesquisa de campo neste estudo
foram a observação participante, as notas de campo, o grupo focal, a entrevista focalizada
e a gravação de reuniões. No próximo capítulo, discuto cada um desses métodos
utilizados para geração/coleta de dados e procuro mostrar como se relacionam às
questões da pesquisa.

[100]
4
ESTABELECENDO RELAÇÕES ENTRE ONTOLOGIA, 
EPISTEMOLOGIA E METODOLOGIA: AS ESTRATÉGIAS 
DA PESQUISA 
Busco uma etnografia de redenção, pragmaticamente
profética, existencial, vulnerável, que nos mostre como
agir moralmente, com solidariedade e dignidade (...).
Essa etnografia se movimenta da minha biografia para
as biografias de outras pessoas, para esses raros
momentos em que nossas vidas se conectam.
(Norman Denzin, 1999: 511)

N o desenvolvimento desta pesquisa, a geração e a coleta de dados foram feitas por


meio da articulação de diversos métodos etnográficos, e essa articulação –
decorrente da reflexão acerca da necessária relação entre ontologia, epistemologia e
metodologia – define uma contribuição da pesquisa para os estudos em ADC. Este
capítulo, então, deve ser considerado como uma continuação da discussão sobre a
ontologia que orienta a versão de ADC que adoto e das reflexões sobre epistemologia.
Isso porque as estratégias para geração e coleta de dados usadas em uma pesquisa
não se justificam em si mesmas, mas em sua relação com os componentes ontológicos
do mundo social que se pretende acessar, com a versão de epistemologia adotada e com
as questões da pesquisa. O capítulo encontra-se dividido em quatro seções. Na primeira,
faço uma reflexão inicial sobre colaboração e ética em pesquisa qualitativa. Em seguida,
abordo os métodos selecionados para a geração e a coleta dos dados da pesquisa. Na
terceira seção, dedico-me à reflexão acerca do que se espera com a articulação dos
diversos métodos selecionados para geração e coleta de dados, baseada em uma
discussão das questões da pesquisa. Na quarta seção, desloco meu foco para as
estratégias observadas para o tratamento dos dados. Por fim, apresento algumas
considerações sobre o capítulo.
4.1 Ética em pesquisa qualitativa

Discussões acerca de ética em pesquisa qualitativa têm favorecido métodos


colaborativos de pesquisa, em que o objetivo do/a pesquisador/a não é apenas pesquisar
sobre ou para sujeitos, mas pesquisar sobre, para e com sujeitos participantes do processo de
pesquisa (Cameron et al., 1992). Isso implica um reconhecimento dos/as participantes da
pesquisa como participantes de fato, não como ‘sujeitos pesquisados’ ou, muito menos,
como ‘informantes’. Tomar os atores sociais implicados no processo de pesquisa como
participantes implica inserir sua agenda de interesses na prática investigativa, o que exige
um planejamento de pesquisa suficientemente flexível, apto a ser modificado para tornar-
se relevante para a comunidade que compartilha seus conhecimentos com o/a
pesquisador/a (Demo, 2004; veja discussão no Capítulo 1).
A pesquisa participativa inclui, então, riscos específicos, visto que sua condução
torna-se válida não pela generalização dos resultados, mas por sua adequação também à
agenda de interesses dos/as participantes – é preciso estar sensível a isso para se abrir
mão de etapas previstas no planejamento inicial e que, embora nos pareçam
academicamente pertinentes, mostrem-se inadequadas ao grupo. Isso aconteceu nesta
pesquisa no que se refere ao planejamento inicial de uma etapa colaborativa de condução
de oficinas de texto para a construção participativa de um jornal comunitário, etapa
suprimida do processo por ter-se mostrado inadequada.
Além das motivações acadêmicas desta pesquisa, sua realização responde a uma
motivação de cunho social, relacionada ao engajamento com uma organização – a
Comissão Local do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do Distrito Federal
(MNMMR/DF) –, com base na reflexão acerca das causas sócio-discursivas da crise dessa
organização. Pesquisas socialmente engajadas têm sido referidas como pesquisas
comprometidas com o empoderamento (Cameron et al., 1992). O termo ‘empoderamento’,
entretanto, guarda uma contradição, pois sugere uma perspectiva segundo a qual
pesquisadores/as seriam detentores de ‘poder’ a ser redistribuído entre sujeitos
‘desempoderados’. Sabemos, contudo, que há diferentes tipos de conhecimento e diferentes
tipos de poder distribuídos na sociedade. Nesse sentido, todo sujeito excluído de uma
[103]
prática estará incluído em outras, o que implica que o próprio conceito de exclusão é
sempre relativo a algo específico. Assim, o que uma pesquisa como a que conduzi pode
ambicionar em termos de resultados práticos está mais ligado à reflexão que pode
desencadear no contexto pesquisado, à desnaturalização de representações tomadas como
tácitas, ao desvelamento de mecanismos causadores de questões problemáticas ou
bloqueadores de soluções (Outhwaite, 1998).
Nesta pesquisa, a motivação social não implica uma perspectiva segundo a qual a
Academia, do alto de sua sabedoria, empodera sujeitos carentes dessa mesma sabedoria,
em uma intervenção vertical, de cima para baixo. Não me vejo acima. Reconheço que ao
mesmo tempo em que busco o fortalecimento do movimento social com o qual trabalho,
por meio da promoção da reflexão de sua crise, eu mesma me fortaleço – provavelmente
mais que possa imaginar contribuir para essa organização.
Fortaleço-me em minha trajetória acadêmica, evidentemente, mas fortaleço-me
sobretudo pelos conhecimentos que as participantes concordam, gentilmente, em
compartilhar comigo; fortaleço-me pelas práticas que me permitem vivenciar. Somente
uma prática de pesquisa que busque superar assimetrias tomadas como tácitas pode se
pretender colaborativa, no sentido que procurei explicitar nos parágrafos anteriores.
Há três princípios que devem ser considerados no desenvolvimento de um projeto de
pesquisa colaborativa: (i) o uso de métodos interativos, dialógicos, que são imprescindíveis
quando se pretende desenvolver pesquisa dessa natureza; (ii) a abordagem de temas de
interesse dos/as participantes, que assegura a incorporação da agenda da comunidade no
projeto de pesquisa; (iii) o compartilhamento dos resultados, que garante acesso ao
conhecimento especializado e às interpretações geradas pela pesquisa (Cameron et al., 1994).
Embora esses princípios não sejam normativos, isto é, não sejam etapas obrigatórias
a todo projeto socialmente engajado, pretendi seguir todos eles. O princípio (i) foi relevante
em todas as etapas da pesquisa, pois todos os métodos adotados basearam-se em interações
dialógicas abertas. Ainda que os grupos focais (ver Seção 4.2.3) e as entrevistas focalizadas
(ver Seção 4.2.4) tenham sido orientados por tópicos-guia, estes não foram tomados como
imposições, havendo espaço para a inserção de outros temas.

[104]
O princípio (ii) foi mais evidenciado na etapa das oficinas pedagógicas, embora eu
tenha procurado inserir a agenda de interesse do Movimento e das participantes em todo o
processo de pesquisa, inclusive tomando como conceito-chave na pesquisa o de
protagonismo juvenil – de grande relevância para o Movimento – e alterando o foco da
pesquisa para uma compreensão da crise da organização. A tematização da crise em minha
pesquisa é uma resposta à inquietação empiricamente observada no contexto do Movimento;
trata-se de abordar um tema de relevo na agenda de interesses das participantes
As oficinas pedagógicas referem-se à etapa da pesquisa em que oganizamos juntas
– as jovens Maria, Amanda, Karina, Joana, Rita e eu – ‘oficinas de oficinas’, isto é, nos
reuníamos para pensar possibilidades de organização de oficinas que demandassem
poucos recursos e que pudessem ser realizadas no contexto dos núcleos de base. O foco
das discussões foram métodos para oficinas de cidadania, a fim de, ao mesmo tempo,
discutir problemas e dificuldades enfrentados na prática da realização de oficinas nos
núcleos e refletir sobre a realização dessa atividade, além de buscar promover a integração
entre os núcleos e uma coordenação no trabalho das jovens.
Foram organizadas e levadas a cabo seis oficinas, em que, além da discussão de
métodos e abordagens para oficinas relacionadas à cidadania, foram elaborados os
materiais necessários para a realização de quatro oficinas temáticas a serem testadas nos
núcleos de base, pelas próprias jovens, caso seja de seu interesse, quando o Movimento
retomar as atividades de nucleação nas cidades satélites ou em outro ambiente. Os temas
escolhidos, de modo participativo, foram: (1) a vida como direito, (2) o direito a ter onde
morar, (3) o direito a uma escola para todos/as, (4) o direito de participar. As discussões e
a confecção de materiais basearam-se no livro Tecendo a cidadania: oficinas pedagógicas de
direitos humanos, de Candau et al. (1995). Embora tenha sido eu a apresentar, em uma
reunião na sede do Movimento, o livro que embasou as discussões, a idéia das oficinas
pedagógicas com as jovens foi de Júlia. Sobre isso tomei a seguinte nota:

Conversei com a Júlia, resolvemos acrescentar uma etapa ao projeto – eu e ela, tendo
idéias juntas, debatendo minha pesquisa, participativo mesmo! Vou trabalhar oficinas
junto com as meninas – Maria, Amanda, Joana, Karina e a Rita, irmã da Maria –,
oficinas de oficina! É assim: a gente vai discutir as propostas de oficinas do livro,
modificar de acordo com a experiência delas, confeccionar materiais (...). Assim
[105]
minha pesquisa contribui mais porque atua diretamente em uma demanda grave do
Movimento que é a falta de planejamento das oficinas. Agora falta saber se as
meninas vão se interessar... (Nota de campo registrada em 18 de julho de 2006).

Essa minha reflexão acerca da demanda de planejamento e coordenação dos


trabalhos levados a cabo nos diversos núcleos tinha por base minha experiência anterior
com a observação nos núcleos e em outros eventos no Movimento, como a reunião de
que participei em abril de 2005, logo no início do trabalho de campo. Foi nessa reunião
que apresentei à coordenação do Movimento meu projeto inicial – estava ainda
começando a conhecer as práticas do Movimento, só depois fui compreender de fato o
que a Júlia disse, e que anotei em meu diário:

Júlia disse que os/as meninos/as [dos núcleos] não têm noção do ECA, que estão numa
confusão de conteúdos e que por isso as oficinas dos núcleos precisam ser reelaboradas.
Ela estava preocupada em decidir modos de resolver isso. Pensou em fazer uma jornada
para recuperar o conteúdo. Ela acha que são necessárias oficinas temáticas bem
elaboradas e avaliadas (Nota de campo registrada em 29 de abril de 2005).

Nos encontros de oficinas pedagógicas, as jovens refletiam sobre as propostas


trazidas no livro, comparando-as com as realidades dos núcleos e propondo alterações de
acordo com suas experiências. Por isso, embora as oficinas não tenham sido utilizadas
como dados analíticos, foram úteis também para que eu compreendesse um pouco mais o
universo da nucleação e constituíram outro produto desse processo de pesquisa,
independente da tese.
O princípio (iii), referente ao compartilhamento dos resultados com os/as
participantes, é primordial para a pesquisa colaborativa, pois de outra maneira as reflexões
levadas a cabo na pesquisa dificilmente têm efeito no contexto pesquisado. Isso está de
acordo com a reflexão de Blommaert (2005: 33) acerca do corte no processo dialógico da
pesquisa no que se refere às análises:

Um problema claro [em ADC] é a reflexividade. O processo de análise


é necessariamente dialógico, e então a interpretação é afetada pelo/a
analista. Mas quando o/a analista se retira para o nível mais alto do
domínio da teoria-como-verdade, o processo dialógico se fecha e o/a
analista se torna o único árbitro dos significados. (...). O/A
[106]
participante é empurrado/a para fora da análise, por assim dizer, tão
logo a fase explanatória da análise é iniciada. Esse é um problema
sério na medida em que a ADC aspira ao empoderamento de sujeitos
por meio da análise crítica.

Para uma pesquisa configurar-se como dialógica é necessário, portanto, que as


análises e seus resultados sejam compartilhados com os/as participantes, que haja espaço
para negociação das interpretações, que as pessoas envolvidas no processo da pesquisa
sejam ouvidas também em relação às conclusões do/a pesquisador/a. A democratização
do conhecimento gerado pela pesquisa e a negociação das interpretações só podem ser
efetivas se os métodos para tanto forem definidos de acordo com o grupo e com seus
interesses específicos na pesquisa. Por isso, os modos para fazê-lo foram debatidos em
reunião no Movimento em 1º de março de 2008. Na ocasião, ficou decidido que o modo
mais efetivo para a discussão dos resultados seria uma oficina com as participantes da
pesquisa, na qual eu faria uma exposição oral de minhas reflexões e abriria um debate
acerca das interpretações. A decisão por uma reunião congregando todas as participantes
deve-se a questões práticas relativas à disponibilidade de tempo; a decisão pela exposição
oral, ao invés da simples distribuição do texto final da tese, deve-se ao caráter acadêmico
do texto e ao uso de conceitos e categorias especializadas. Mesmo assim, cada participante
da pesquisa recebeu cópia da transcrição dos materiais etnográficos resultantes de
interação de que tenha participado e cópia das análises referentes a esses documentos.
A reunião aconteceu em 28 de abril de 2008, na sala do Projeto Giração. Estiveram
presentes as educadoras Júlia e Vera e as jovens Maria e Joana (Amanda não pôde
comparecer). Foram distribuídas cópias de todos os capítulos analíticos e das transcrições
de entrevistas, grupos focais e reuniões. Em seguida, apresentei cada capítulo, explicando
o que havia investigado em cada documento e o que as análises apontavam. Discutimos
ainda o documento “Discussão: uma crítica explanatória”, em que destaco algumas
conclusões gerais da pesquisa, em termos das necessidades não satisfeitas para um
funcionamento mais efetivo do Movimento e alguns modos de superar os obstáculos
identificados na pesquisa (ver Discussão).
O encontro, que durou pouco mais de duas horas, foi muito positivo, pois me
permitiu não apenas mostrar minhas conclusões mas também ouvir as opiniões das
[107]
participantes acerca das interpretações e confirmar algumas considerações. Por fim,
traçamos algumas diretrizes para projetos futuros.
Se não houve maiores contradições, nessa reunião, entre as interpretações que
apresentei e interpretações alternativas, isso não me causa estranhamento: acho que virão
depois. Entendo que nesta pesquisa tratei de temas sobre os quais elas não tinham
interpretações prontas, desenvolvi reflexões a respeito de certas causas sociodiscursivas da
crise do Movimento que ainda não faziam parte do conjunto de reflexões da crise
disponível no Movimento. Leva algum tempo até que as contradições e discordâncias se
formulem, e me alegra saber que ainda estaremos em contato (já que temos projetos futuros
traçados) e que poderei ainda refletir (e, quem sabe, escrever) sobre isso.
É imprescindível, tratando-se de pesquisa crítica, comprometida com a ética, que
desde os estágios iniciais da pesquisa os objetivos da investigação e os métodos que se
pretende adotar sejam discutidos e negociados com os/as participantes, em uma prática
de pesquisa que prima pela clareza e pelo respeito aos sujeitos. As estratégias de pesquisa
que passo agora a discutir foram negociadas previamente – em diversas ocasiões, de
acordo com as alterações que se delineavam (ver Capítulo 1) –, bem como o foram os
objetivos e as questões de minha pesquisa. Meu projeto fez parte da pauta de uma reunião
na sede do MNMMR/DF, em 29 de abril de 2005, com a então coordenadora, Paula, e as
duas educadoras do Movimento, Júlia e Vera. Na ocasião expus minhas motivações,
explicitei os métodos, apresentei minha pesquisa e recebi e aprovação do Movimento para
sua realização. Voltei a explicar sobre meu projeto em outras oportunidades, para pessoas
que não haviam estado nessa reunião, por ocasião dos encontros de grupo focal (ver
Seção 4.2.3) e das oficinas pedagógicas, sempre solicitando autorização para executar
gravações em áudio e deixando claras as utilizações que seriam feitas do material
resultante. Garanti às participantes a proteção de sua identidade, motivo pelo qual as
pessoas envolvidas na pesquisa são identificadas por meio de pseudônimos e os nomes de
suas cidades satélites são substituídos por nomes fictícios.
Sempre busquei debater com as participantes minhas dificuldades e frustrações
com as impossibilidades que refreavam meu planejamento, sobretudo com Júlia. O grupo
mostrou-se solidário, trazendo propostas e ajudando-me a encontrar caminhos

[108]
alternativos. Por todos esses motivos, posso afirmar que esta pesquisa foi uma construção
conjunta, cujo resultado não é mérito apenas meu.
Essa preocupação em tornar claros os objetivos e as estratégias visa a um
afastamento em relação à prática de pesquisa exploratória, em que o/a pesquisador/a
utiliza os conhecimentos do grupo sem preocupar-se com as (des)vantagens que a
pesquisa possa lhes trazer. Na pesquisa engajada, ao contrário, os dados serão válidos
apenas se forem, também, éticos. Minha expectativa é que as reflexões que fui capaz de
fazer com base nos dados possam alimentar outras reflexões, no âmbito do Movimento, e
que essa reflexão acerca da crise da organização possa gerar uma maior compreensão, que
por sua vez possibilite a superação de barreiras e a construção de pontes.
A reflexão ética em pesquisa qualitativa relaciona a epistemologia – no sentido de
como percebemos os sujeitos participantes e como nos posicionamos em relação a eles
para construir conhecimento – e a metodologia – no sentido de como essa reflexão
influencia o planejamento da pesquisa e a composição das estratégias para o acesso ao
conhecimento contextualizado. Na próxima seção, passo a discutir e descrever os
métodos para geração e coleta de dados adotados na pesquisa.

4.2 Geração e coleta de dados: as estratégias de pesquisa

Em termos metodológicos, esta pesquisa busca estabelecer diálogo entre o


paradigma etnográfico de pesquisa qualitativa e os estudos discursivos críticos,
especialmente a ADC. 24 A etnografia é definida como uma tradição de PQ que agrupa a
análise de dados empíricos gerados e coletados sistematicamente para a pesquisa,
provenientes de contextos situados e de uma variedade de métodos, embora o foco deva
ser relativamente estreito em escala, envolvendo poucos grupos de indivíduos
(Hammersley, 1994). A geração/coleta de dados etnográficos e sua fixação em textos
passíveis de análise seguem uma tradição metodológica que conta com variados métodos

24Chouliaraki & Fairclough (1999), Wodak (2003a), Fairclough (2003) e Blommaert (2005) recomendam a etnografia
como método complementar à ADC.

[109]
a serem selecionados de acordo com os objetivos de cada pesquisa. Além disso é possível,
quando necessária para os objetivos de uma pesquisa, a criação de métodos inovadores
para a geração de dados – o que para alguns/algumas autores/as é uma vantagem, visto
que denota maior flexibilidade e criatividade no desenho da pesquisa (veja, por exemplo,
Flick, Kardorff & Steinke, 2004; Denzin & Lincoln, 2006; Mason, 2006).
Os métodos clássicos para geração de dados de campo são a observação e a entrevista
etnográfica (Miller & Crabtree, 1992). Para Silverman (2000: 8), os métodos utilizados na
pesquisa etnográfica provêem “uma compreensão mais profunda dos fenômenos sociais do
que poderia ser obtida por meio de dados quantitativos”. O método múltiplo que caracteriza
a etnografia reduz o risco de abordagem unilateral do tema. Taylor (1996) pontua que a
etnografia caracteriza-se por geração e coleta de dados por meio de diferentes métodos
(entrevistas, conversas, observação, documentos formais); uso de abordagem sem
estruturação rígida prévia e compreensão a partir de análise em profundidade. As conclusões
são mais acuradas se baseadas em diversas fontes de informação, de modo colaborativo: não
se trata de justapor informações obtidas por diferentes métodos, trata-se, antes, de obter
diversas dimensões do objeto da pesquisa; por isso esse trabalho tem sido chamado
‘multidimensional’ (Mason, 2006). Tendo em vista essa perspectiva, foram escolhidos para a
construção dos corpora desta pesquisa métodos complementares, a fim de garantir o acesso a
uma gama ampliada de conhecimento acerca dos processos sócio-discursivos pesquisados, e
buscando coerência entre os métodos selecionados e as questões da pesquisa.
Barton & Hamilton (1998) definem a pesquisa etnográfica delineando quatro de
suas características: (1) utilização de dados reais e situados; (2) foco no processo social
contextualizado; (3) utilização de método múltiplo; (4) análise interpretativa. Em
etnografia, não se objetiva uma generalização por meio dos dados, mas a focalização de
práticas particulares em eventos particulares – daí a adequação desse tipo de pesquisa a
projetos que, como o meu, focalizam perspectivas localizadas. Pesquisas etnográficas têm
uma preocupação habitual com o particular, com a compreensão da experiência social
situada, seus processos e mudanças, sensíveis ao fato de que “processos sociais são
contingentes a contextos específicos, e neles encaixados” (Mason, 2006: 17).

[110]
Reconhecendo meu interesse por esse movimento específico, e vinculando minha
pesquisa a esse contexto particular, objetivei compreender a negociação de significados entre
seus membros e os modos como esses significados configuram, ao mesmo tempo, produto e
meio dos processos de ação social, influenciando os modos de identificação, as relações
sociais e a própria ação do Movimento. Para tanto, fiz uso de diversos métodos para geração
e coleta de dados, visando explorar diferentes dimensões de meu objeto de pesquisa.
Esta pesquisa traz contribuições para os estudos críticos do discurso pela
articulação de métodos etnográficos diversos, como a observação participante, as notas de
campo, o grupo focal, a entrevista focalizada e a gravação de reuniões. O desafio foi
mobilizar a ADC para a análise de dados etnográficos, a fim de acessar os seguintes
componentes ontológicos do mundo social: discursos, relações sociais, atividades
materiais, ação social, identidades e (redes de) práticas (ver Capítulo 2). Como meu foco é
o momento discursivo das práticas, sobretudo em seus aspectos representacional e
identificacional, a representação de eventos, práticas e relações sociais e a construção
discursiva de identidades são salientes nos dados; entretanto os métodos observacionais
são úteis na apreensão também de aspectos materiais das práticas investigadas.
Segundo Geertz (1989: 15), a necessidade de se definir uma metodologia específica
de trabalho etnográfico é imperativa. O antropólogo pondera que “o ecletismo é uma
autofrustração, não porque haja somente uma direção a percorrer, mas porque há muitas:
é preciso escolher”. Isso não pode ser tomado, entretanto, como necessidade de se ter no
planejamento de pesquisa uma ‘camisa de força’: como já pontuei, o planejamento deve
ser suficientemente flexível para incorporar necessidades evidenciadas no decorrer da
pesquisa, sobretudo quando se opta pela pesquisa participativa e quando se trabalha em
contextos de crise, que trazem dificuldades especiais (ver Capítulo 1).
No que se refere à articulação teórica e epistemológica com o RC, e suas
implicações metodológicas, Sayer (2000b: 19) pondera:

O RC endossa ou é compatível com um conjunto relativamente amplo de


métodos de pesquisa, e isso implica que as escolhas particulares devem
depender da natureza do objeto de estudo e do que se pretende aprender
sobre ele. Por exemplo, abordagens etnográficas e quantitativas são bastante
diferentes, mas cada uma pode ser apropriada para tarefas diferentes e
[111]
legítimas – a primeira talvez para a pesquisa de normas e costumes de um
grupo; a segunda, digamos, para pesquisar fluxos do comércio mundial.
Talvez o mais importante seja que realistas rejeitam prescrições de ‘livros de
receita’ sobre métodos que façam crer que se possa fazer pesquisa
simplesmente aplicando-os ao objeto de estudo em questão.

Assim, considerando meu objeto de pesquisa – a crise do Movimento – e meu interesse


em compreender relações causais que possam existir entre essa crise e elementos de natureza
discursiva na prática social, como modos de representação e construções identitárias, esclarece-
se a adequação do estilo de pesquisa e dos métodos escolhidos para geração e coleta de dados.25
Em relação à relevância de um capítulo metodológico detalhado em pesquisa
etnográfica, ressalto que há vantagens em se tornar a metodologia explícita: prover
possibilidades de avaliação e de intercâmbio de experiências entre pesquisadores/as, além
de promover a auto-reflexão em relação à própria prática de pesquisa (Barton &
Hamilton, 1998: 58). Ao discutir a utilização de métodos etnográficos em pesquisas em
ADC, Blommaert (2005: 52) pondera que “não somos informados/as sobre de onde
informações etnográficas cruciais vêm. (...) A fonte de informações contextuais é
freqüentemente referida de modo oblíquo (...). Sua função, entretanto, é crucial: são
aspectos centrais da contextualização”.
A fim de evitar deixar de fora do escopo da ADC a base etnográfica da pesquisa, nesta
seção explicito as estratégias que me permitiram o acesso ao grupo e às informações
relevantes para a pesquisa, e a geração e a coleta de dados. A seção divide-se em cinco
subseções. Em 4.2.1 discuto a observação participante como método para aproximação e
estabelecimento de relações de confiança com as participantes da pesquisa; em 4.2.2 focalizo
as notas de campo como procedimento que, por um lado, favorece a auto-reflexão na
pesquisa e, por outro, constitui uma primeira interpretação dos dados; em 4.2.3 explico como

25A pesquisa que realizei relaciona-se ao que Sayer (2000b: 20) define como pesquisa intensiva: “A pesquisa intensiva
está interessada principalmente com o que faz as coisas acontecerem em casos específicos ou, numa forma mais
etnográfica, que tipo de universo de significados existe em uma situação particular”. Quando discute as vantagens e
desvantagens desse tipo de pesquisa, Sayer (2000b: 21) argumenta: “A pesquisa intensiva é forte em explanação
causal e na interpretação de significados contextualizados, mas tende a consumir muito tempo (...) a validade da
análise desses casos e sua representatividade em termos numéricos são questões inteiramente separadas; a adequação
da análise de um único caso não precisa ter nada a ver com quantos outros casos desse tipo existem”.
[112]
se deu a decisão pela realização de grupos focais na pesquisa; em 4.2.4 discuto a realização de
entrevistas focalizadas; e, finalmente, em 4.2.5 explico sobre a gravação de reuniões.

4.2.1   Observação participante 

A observação participante origina-se, como boa parte dos métodos etnográficos, da


antropologia social e cultural. Opõe-se à observação (pretensamente) objetiva, em que o
contexto social pesquisado é abordado ‘de fora para dentro’. A observação participante, ao
contrário, define-se pela perspectiva interna, situada na ação cotidiana, em que o/a
pesquisador/a envolve-se diretamente nas atividades dos/as participantes da pesquisa
(Bogdewic, 1992). Uma vantagem da observação participante é o acesso a certas assunções
que em uma dada comunidade são tomadas como tácitas e que, de outra forma, apenas
seriam disponibilizadas por meio das representações da própria comunidade (Gans, 1999).
Geertz (1989: 27) demonstra preocupação com a observação do comportamento
dos/as participantes em pesquisa etnográfica. Para ele, é “através do fluxo do
comportamento – ou, mais precisamente, da ação social – que as formas culturais
encontram articulação”. Mas a observação participante ultrapassa esse primeiro objetivo
de anotação da ação social, de sua transformação em relato passível de análise: a
observação participante consiste não apenas em estar presente no contexto a ser
pesquisado, mas em participar das atividades observadas, tornar-se um ‘membro do
grupo’. Assim, sendo eu um membro externo ao Movimento, um dos objetivos da
observação participante foi, na medida do possível, tornar-me um membro interno. Isso é
relevante inclusive para uma melhor percepção das práticas, atividades e interações em
curso no campo (Holliday, 1998).
A observação participante foi o método inicial da pesquisa, porque uma
aproximação paulatina com relação ao contexto de pesquisa e aos/às participantes
assegura maior validade dos dados, uma vez que aos poucos se conquista mais confiança
dos sujeitos envolvidos e menos interferência da presença da pesquisadora no contexto de
pesquisa – isso não significa que eu tenha alimententado a ilusão de me manter neutra em
campo ou, mais que isso, que a neutralidade tenha sido meu objetivo. Significa apenas que

[113]
me tornar, ainda que perifericamente, membro do grupo com o qual realizei minha
pesquisa, e assim estabelecer relação prévia com as participantes, foi um modo de
assegurar a geração de dados – no sentido do acesso a campo – e a validade dos dados –
no sentido da obtenção de informações no momento das entrevistas.
A primeira preocupação de quem pretende ser um/a observador/a participante é
como conseguir ingressar na comunidade. É útil nessa abordagem inicial contar com
‘participantes-chave’ (embora o termo ‘informante-chave’ já esteja cristalizado na
literatura especializada, prefiro evitar o termo ‘informante’ por questões éticas referentes à
relação entre pesquisadores/as e participantes de pesquisas, por isso optei por
‘participantes-chave’). Segundo Gilchrist (1992), ‘participantes-chave’ diferem de
outros/as participantes pela natureza de sua posição na comunidade e pela relação que
estabelecem com o/a pesquisador/a. Como o objetivo aqui é ser introduzido/a no
contexto da pesquisa, é importante que essa pessoa seja membro ativo da comunidade,
que conheça muitas pessoas no grupo, que tenha um status elevado e, sobretudo, que
deseje partilhar seu conhecimento com o/a pesquisador/a. A vantagem de se trabalhar
com uma ‘participante-chave’, nesta pesquisa especificamente, foi a facilidade de acesso a
outras participantes: é mais fácil ter acesso a um grupo de atores sociais quando se é
introduzida por um membro da comunidade.
Meu primeiro contato no Movimento foi com a educadora Júlia, que integrava as
atividades entre a sede e os núcleos de base do Movimento. Por isso ela foi uma
‘participante-chave’ para meu acesso a outros atores sociais. Foi ela que me apresentou às
jovens líderes de núcleo e garantiu meu acesso a atividades nos núcleos de base e na sede.
Foi ela também que demostrou maior preocupação com minhas frustrações na realização
da pesquisa e me ajudou a montar planejamentos mais adequados ao contexto de crise do
Movimento. Mais que isso, manteve o entusiasmo com meu trabalho e tantas vezes me
encorajou com seu “não desiste não, Vivi”.
Acompanhei, como observadora participante, as atividades de dois dos núcleos de
base do Movimento em cidades satélites de Brasília, enquanto esses núcleos estiveram
ativos. Isso se deu durante oito meses, entre abril e dezembro de 2005. Inicialmente,
pretendia acompanhar as atividades de todos os quatro núcleos, mas questões materiais

[114]
levaram-me a limitar esse trabalho a dois deles, aqui identificados como Campina e
Brasiliana. A distância das cidades satélites e, sobretudo, o fato de eu custear meu
deslocamento com recursos provenientes de minha própria bolsa de estudos não
demoraram a me mostrar a inviabilidade da observação em todos os núcleos.
As atividades em questão nessa etapa de observação nos núcleos eram oficinas de
organização de meninos e meninas, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
As estruturas organizacionais de cada um desses núcleos eram bem diferentes. Enquanto
Brasiliana dispunha de um galpão com quadro-negro e carteiras, ao estilo sala de aula (o
núcleo coordenado por Joana; veja a seguir), as oficinas do núcleo de Campina (coordenado
por Maria; veja a seguir) eram realizadas na área externa da casa da mãe de uma das meninas
do núcleo, sem instalações adequadas ao trabalho desenvolvido. As oficinas de ambos os
núcleos, contudo, funcionavam de maneira semelhante: centravam-se no ECA – sobretudo em
seu Artigo 4º, que trata dos direitos de crianças e adolescentes “à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária” como deveres do Estado, da sociedade, da
comunidade e da família – e nos mecanismos de defesa em casos de violação desses direitos
(Estatuto da Criança e do Adolescente, Conanda, 2002: 22).
Desde o início da pesquisa, entretanto, encontrei o Movimento já bastante
enfraquecido devido ao encerramento do projeto financiado pelo Sécours Catholique e à
ausência de novos projetos voltados para a organização de meninos e meninas (ver
Capítulos 1 e 5). Uma conseqüência direta disso é que esse trabalho de observação nos
núcleos deu-se de maneira bastante irregular: algumas vezes percorri largas distâncias sem
resultado, pois ao chegar constatava o cancelamento de uma atividade previamente
agendada; outras vezes os encontros de que pretendia participar eram cancelados por
diversos motivos, por exemplo a estação de chuvas. A desestruturação dos núcleos de
base, como conseqüência da crise financeira e pedagógica, limitou sobremaneira a etapa
de observação nesses núcleos, e acabou por impossibilitar a continuidade desse trabalho
quando do encerramento completo das atividades de nucleação, em dezembro de 2005.
Quanto às atividades da sede do MNMMR/DF na Asa Norte de Brasília, acompanhei
reuniões sempre que fui convidada, desde abril de 2005 até março de 2007 – duas dessas

[115]
reuniões foram gravadas em áudio, com a permissão de todos/as os/as presentes, e
transcritas para análise (ver Seção 4.2.5); as mobilizações para as manifestações de 18
maio (dia nacional de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes) de
2005 e de 2006; algumas oficinas do Projeto Chic.com (projeto de redução de danos,
levado à cabo pelo MNMMR/DF em 2006, voltado para o problema da exploração sexual de
crianças e adolescentes e que visava formar multiplicadores/as de conhecimento acerca
dos direitos e das instâncias de garantia de direitos); a Assembléia Nacional do
Movimento, na sede nacional, na Asa Sul, em abril de 2006; a mobilização contra o
rebaixamento da maioridade penal no Brasil em fevereiro de 2007; além da observação
participante em atividades cotidianas da sede, como o atendimento a adolescentes em
situação de rua que buscavam o Movimento, a articulação para aprovação de projetos de
captação de recursos, a produção desses projetos – de que muitas vezes participei
auxiliando na redação e fazendo a revisão lingüística –, a recepção de estudantes
universitários/as interessados/as em gravar entrevistas com membros do Movimento etc.
Considero que a etapa de observação participante obteve sucesso tanto no
estabelecimento de relações de confiança quanto na tentativa de me tornar membro do
grupo, o que se nota no fato de eu ter sido convidada a participar de diversas atividades
do Movimento – como reuniões, assembléias, manifestações – e ter sido solicitada a
colaborar com a produção e a revisão de projetos e na ‘tradução’ de textos jurídicos.
Envolvi-me, por exemplo, na produção do projeto para formação de um núcleo
de organização de adolescentes e jovens trabalhadores/as da Rodoviária do Plano
Piloto, tanto em sua versão inicial, cujo financiamento foi negado pelo Instituto HSBC

Solidariedade, quanto em sua versão final, que foi selecionada em edital da Petrobrás,
vivenciando, ao lado das participantes da pesquisa, a correria do último dia para
entrega do projeto, a ansiedade da espera, a frustração da resposta negativa e a
esperança trazida pelo desfecho positivo.
Sobre o trabalho de produção da primeira versão desse projeto, participei de uma
reunião na sede do MNMMR/DF em novembro de 2005, com a Júlia e a Paula, então
coordenadora do MNMMR/DF, e registrei em meu diário:

[116]
Hoje fui no Movimento, na Asa Norte, pr’uma reunião com a Júlia e a Paula a
respeito de captação de recurso. Vamos escrever dois projetos: um para o Brazil
Foundation, para Brasiliana, e outro para o HSBC, para o projeto dos/as adolescentes
trabalhadores/as da rodoviária. Eu que vou escrever a primeira versão. A Júlia me
passou um projeto antigo, para eu ler. É o projeto do tempo em que a Marília, a
Joana, a Amanda e a Maria eram meninas (1997). Segundo a Júlia, do tempo em que
os núcleos funcionavam... O projeto inicial para a rodoviária foi escrito por uma
jovem e um jovem desse tempo do Movimento – a Karina e o Rogério (Nota de
campo registrada em 18 de novembro de 2005).

Ambos os projetos citados na nota foram recusados. Cerca de seis meses depois,
entretanto, o projeto para a rodoviária foi ampliado para ser submetido ao edital da
Petrobrás. Novamente me vi envolvida na produção dessa versão do projeto, conforme
registrei no diário de campo:

Ontem a aula da Izabel acabou mais cedo e eu aproveitei para passar no Movimento.
Cheguei lá e estava todo mundo envolvido com o projeto de captação que vão mandar
para a Petrobrás – é uma ampliação do projeto de organização para a rodoviária. O
prazo é amanhã e estava todo mundo doido! Me pediram para fazer a revisão e eu disse
que sim (embora eu esteja meio atolada em trabalho!). (...)
De noite, quando eu fui ver meu e-mail, o projeto da Petrobrás estava lá, a Maria tinha
mandado. 23 páginas! “Vou ter de fazer isso amanhã depois da aula”, eu pensei –
porque hoje é terça e eu dou aula o dia todo. Pois bem, hoje de manhã quando eu olhei
de novo meu correio, tinha um e-mail da Maria pedindo pra eu fazer a Apresentação do
projeto! Eu não tinha tempo e o prazo já é amanhã. Desesperei e liguei pra ela pra
dizer que não dava, que era impossível, que eu ia dar aula o dia todo, que não dava
tempo. Ela tava no Nacional e eu consegui falar com ela. Caramba! Pelo menos eu sei
que elas contam comigo mesmo! Bem, eu fiz o que podia: são duas horas da manhã e
só agora eu consegui terminar a revisão do projeto. Não tinha mesmo condição de
fazer a apresentação!!! (Nota de campo registrada em 18 de julho de 2006).

Outro exemplo de meu engajamento com o MNMMR/DF, que extrapolou o contexto


do Movimento e teve uma conseqüência mais direta na minha experiência estritamente
acadêmica, foi a militância contra o rebaixamento da maioridade penal no Brasil, em 2007.
Esse envolvimento levou-me não só ao Congresso Nacional – para participar da reunião do
Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente (Fórum DCA) – mas também me levou à produção do texto
“Dessemelhança e expurgo: a mídia e o debate sobre a violência e o rebaixamento da
maioridade penal”, publicado no Mídia & Política e depois, para minha surpresa, capturado
pelo Observatório da Imprensa como “O debate sobre violência e rebaixamento da idade
[117]
penal”.26 Meu objetivo era colocar o conhecimento acadêmico – nesse caso, as ferramentas
da Análise de Discurso Crítica – em prática no debate que me parecia urgente. Não vejo
esse envolvimento com a militância do Movimento e as relações próximas que estabeleci
com as participantes como problemáticos para a pesquisa, ao contrário: não só me
fortalecem – no sentido a que me referi na seção anterior – como aumentam a possibilidade
de meu trabalho ser útil ao Movimento, que é, no fim, a minha meta (sobre o engajamento
em pesquisa etnográfica, veja Denzin, 1999; sobre observação participante e engajamento
do/a pequisador/a, veja Atkinson & Pugsley, 2005).
A experiência inicial com a observação participante foi, também, fundamental para
me acercar de conceitos-chave da organização, como o de protagonismo juvenil, que se
tornou um conceito central também para o projeto de pesquisa e para as etapas
posteriores de geração de dados. Além disso, por meio da observação participante pude
ter acesso a diversas atividades do Movimento e conhecer outras organizações com as
quais o MNMMR/DF se relaciona. Isso foi relevante para a compreensão das práticas sociais
das quais o Movimento participa. A etapa de observação participante permitiu, ainda,
proceder ajustes no planejamento inicial da pesquisa, de modo a torná-lo adequado ao
contexto pesquisado. Nesse sentido, pude perceber, desde o início, a crise em que o
Movimento se encontrava – tanto em termos financeiros quanto administrativos,
pedagógicos e organizacionais –, o que foi confirmado em diversas interações pelas
representações de membros do grupo. Essa conjuntura de crise obrigou-me a reavaliar
etapas previstas para o trabalho de campo. Talvez esse seja o principal mérito da
observação como primeira etapa de pesquisas colaborativas. No caso específico desta
pesquisa, a observação foi também fundamental para o conhecimento da ação social e das
(redes de) práticas sociais como componentes ontológicos do mundo social.

26Os sítios do Mídia & Política e do Observatório da Imprensa são <http://www.midiaepolitica.unb.br/index.php> e


<http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br>, respectivamente.
[118]
4.2.2   Notas de campo 

A observação foi registrada em notas de campo. As notas de campo constituem


um momento fundamental no trabalho de campo porque articulam, no discurso, os
diversos métodos adotados em uma pesquisa particular, integrando percepções e
interpretações associadas aos vários momentos da pesquisa. Clifford (1993: 51-2) delimita
três tipos de notas de campo, a que ele classifica como inscrição, transcrição e descrição.
Inscrição é o tipo de nota de campo que o/a pesquisador/a toma durante uma interação
com participantes da pesquisa, uma interrupção na interação para tomada de notas
mnemônicas, de auxílio à memória. Trata-se da anotação de palavras-chave que auxiliam
o/a pesquisador/a no desenvolvimento posterior de notas mais acuradas. Transcrição é o
tipo de nota de campo utilizado quando o/a pesquisador/a, ao mesmo tempo em que faz
perguntas, anota as respostas dos/as participantes da pesquisa. Descrição, por fim, refere-
se à produção coerente de representações de uma realidade cultural observada; constitui
um momento de isolamento do/a pesquisador/a, um momento de reflexão, análise e
interpretação.
Entre esses tipos de notas, privilegiei nesta pesquisa as descrições interpretativas da
observação participante, feitas logo após a interação para que a observação não ‘esfrie’
(Mead, 1977 apud Sanjek, 1993).27 O método de tomada de notas de campo definido
como transcrição apenas foi utilizado em circunstâncias nas quais não pude gravar
interações, mas precisava de anotações precisas. Nesses casos, eu observava mais que
participava e, por isso, podia tomar notas de transcrição sem que tal procedimento
constituísse quebra na interação. As notas de transcrição foram utilizadas na Assembléia
Nacional do MNMMR, de que participei em abril de 2006, na sede nacional do Movimento,
e na reunião do Fórum DCA, sobre os Projetos de Emenda Constitucional de
rebaixamento da maioridade penal, de que participei em fevereiro de 2007, na Biblioteca
do Senado. Minha participação nessas atividades do Movimento não estava, obviamente,
no desenho inicial da pesquisa. Fui convidada a participar desses eventos e, percebendo

27 Sanjek (1993) faz referência a MEAD, M. Letters from the field, 1925-1975. New York: Harper & Row, 1977.
[119]
seu potencial para gerar conhecimento acerca de atividade material e ação social do
Movimento, tomei as referidas notas de transcrição.
Excluídas essas duas situações em que atuei como observadora, não tomei notas
sistemáticas durante as interações, para evitar um distanciamento com o grupo e para
favorecer uma desmistificação do trabalho de pesquisa como atividade exclusiva de
pesquisadores/as. Entendo que em observação participante é mais adequado tomar notas
posteriores porque a tomada simultânea de notas pode prejudicar a participação efetiva
nas atividades do grupo, quando se pretende atuar como participante. Quanto às notas
definidas como inscrição, também foram evitadas – privilegiei as notas mentais –, porém,
houve momentos específicos em que foram necessárias, como para anotação do nome de
uma organização citada, por exemplo.
Optei por tomar notas sob a forma de diário de pesquisa, com a finalidade de
registrar minhas impressões acerca das interações de que participei. Os diários de pesquisa
são produtos escritos do trabalho de campo que têm um propósito catártico para
etnógrafos/as porque registram reações pessoais, frustrações e conquistas do trabalho no
campo. Além disso, o diário de pesquisa é um ambiente intertextual no sentido de que
entre as impressões anotadas também se registram as relações percebidas entre a prática
da pesquisa particular e a ‘teoria de método’ adotada – entre a previsão abstrata do
desenho da pesquisa e a realização concreta do trabalho de campo – e entre os métodos e
as teorias adotadas na pesquisa. Daí sua utilidade no favorecimento da auto-reflexão sobre
a prática de pesquisa: o diário não é só um mecanismo de reflexão sobre o objeto da
investigação, é também uma oportunidade de reflexão sobre a própria prática.
Selecionei, entre minhas notas de campo, um exemplo em que a experiência prática
da pesquisa e as teorias de método se cruzam. Essa nota diz respeito ao episódio que
narrei na seção anterior, sobre a correria que envolveu a produção do projeto para
captação de recurso junto à Petrobrás e a solicitação que Maria me fez em relação à
redação da Apresentação do projeto. O trecho copiado a seguir é, em continuação à nota
de campo de 18 de julho de 2006 que discuti na seção anterior, um registro das
mensagens eletrônicas que Maria e eu trocamos a esse respeito:

[120]
Os emails que trocamos [Maria e eu] sobre esse projeto, de ontem para hoje:
1. E-mail da Maria para mim encaminhando o projeto
Oi Viviane estou te enviando o projeto depois faça as alterações que preciso
Beijos
Maria
2. E-mail da Maria para mim pedindo que fizesse a apresentação
Oi Viviane quero te pedir um favor vc pode escrever pra mim a apresentação do projeto meus
neuronius estão falidos rsrs esta indo em anexo o que esta pedindo na apresentação
Beijos
Maria
3. Meu e-mail dizendo que não seria possível fazer a apresentação
Maria, eu tô bem atolada aqui, cheia de trabalho atrasado, vou dar aula até tarde... acho meio
difícil eu fazer a apresentação nessas condições, ainda por cima porque eu vou fazer a revisão do
projeto todo essa madrugada e a entrega do projeto é amanhã! Acho arriscado você contar com isso.
Acho melhor você pedir à Jú ou à Paula para fazer a apresentação, ou então faça você e me mande
em seguida para eu corrigir - entenda, Maria, não é falta de vontade. Tente fazer e eu farei o possível
para te ajudar, ok?
Abraço,
Viviane.
P.S. Me escreva confirmando o recebimento deste email (caso contrário ficarei preocupada...)
4. Meu e-mail de agora há pouco com a revisão do projeto em anexo
Oi, Maria.
Fiz a revisão do texto todo, estou encaminhando em anexo. Estou trabalhando desde que cheguei da
aula e já são quase 2 horas da manhã! Eu tinha razão: não dava mesmo para fazer a
apresentação... espero que você tenha conseguido escrever. Se quiser, me mande para eu corrigir, ok?
Algumas observações:
1. Falta: histórico da instituição – CECRIA (e será que não seria bom um breve histórico do
MNMMR também?);
2. A parte de Estratégias pode ser desenvolvida (há apenas uma frase!);
3. Não sei se a parte de Replicabilidade foi bem respondida... acho que o que eles querem é saber se
há perspectiva do projeto ser replicado, isto é, de surgirem novos projetos a partir deste ou dele ser
ampliado posteriormente e com sustentabilidade;
4. As tabelas de Avaliação do Processo e de Avaliação de Resultados estão idênticas! Isso não é
bom para o projeto, é necessário distinguir entre os dois modos de avaliação. Além disso, há partes
da tabela Avaliação de Impactos também idênticas às duas anteriores;
5. Falta preencher as partes finais: Composição da Equipe; Identificação de Parcerias; Comunicação
do Projeto (acho que isso é bem importante, afinal é aí que a empresa ganha com a publicidade) e
Orçamento;
6. Na coluna 'No de atividades' do Cronograma não há nada.
É isso, Maria. Espero ter ajudado. Se precisar falar comigo amanhã, me ligue. Se vc me mandar
mais alguma coisa para revisar, ligue avisando.
Abraço,
Viviane.

Parece que as relações de poder nessa pesquisa estão bem diferentes da discussão
teórica a respeito de assimetrias entre pesquisadores/as e participantes de pesquisas!

[121]
Nota só o emprego de imperativos pela Ana e as minhas modalizações!!! (Nota de
campo registrada em 18 de julho de 2006).

Nessa nota, a experiência prática da pesquisa leva-me à reflexão do que havia lido em
textos sobre pesquisa etnográfica acerca das assimetrias na relação interpessoal entre
pesquisadores/as e participantes de pesquisa, comparando a teoria ao que de fato vivenciei
em minha pesquisa. Por outro lado, utilizo o conhecimento oriundo da ADC sobre
modalidade e estratégias de polidez/relações de poder para avaliar os modos como Maria e eu
nos dirigimos uma à outra e o que se pode depreender das relações de poder na pesquisa.
Além de sua utilidade para a reflexão da prática de pesquisa, as notas de campo são
úteis como auxílio à memória, e ainda que não tenham sido diretamente utilizadas como
dados analíticos nesta pesquisa, foram muitas vezes utilizadas no momento da análise dos
dados. Ademais, a prática de se fazer notas de campo já é parte da interpretação e é útil
para a seleção de que tópicos serão então investigados (Stubbs, 1987), por isso as notas
carregam de antemão um tipo de análise. Além de terem sido consultadas como validação
das análises interpretativas, as notas de campo foram retomadas diversas vezes durante o
processo de pesquisa, revistas, repensadas. Isso está de acordo com o que propõe Geertz
(1989), para quem as notas de campo são uma inscrição da atividade social, uma anotação
que a transforma em relato, que a conserva para ser consultada novamente.
Nesta pesquisa, as notas são vistas, enquanto registros do trabalho de campo,
como estratégia capaz de prover acesso às práticas, à ação do Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua no Distrito Federal. Evidentemente, o acesso às práticas e à
ação não é direto, mas mediado por minha própria compreensão, por meus modos de
observar e compreender. Isso não invalida a observação como fonte de dados, já que
também os textos são analisados, sempre, com base na subjetividade do/a analista
(Chouliaraki & Fairclough, 1999).
Não anexei meu diário de campo à tese; trata-se de um diário, um documento
pessoal de notas e impressões, com a finalidade de me permitir (auto)reflexões sobre o
trabalho de campo, sobre as relações entre teorias, métodos e práticas de pesquisa,
sobre as experiências pessoais que vivi e aquelas alheias que presenciei. Preferi
selecionar alguns recortes que ilustram questões discutidas ao longo da tese ou que
[122]
sustentam análises de dados de outras naturezas. Assim fazendo também pretendi
preservar a intimidade das pessoas citadas no diário. Com esse mesmo propósito, decidi
não explorar certos trechos de entrevistas, grupos focais e reuniões, mesmo que me
parecessem academicamente relevantes. Foi uma tentativa de fazer com que minha
pesquisa causasse o mínimo inconveniente às minhas colaboradoras. Digo ‘o mínimo
inconveniente’ porque tenho consciência que algum desconforto sempre há quando se
traz à tona questões mal resolvidas ou problemáticas, às vezes ligadas inclusive à
identidade. Esse desconforto, entretanto, é indispensável à reflexão crítica: não
podemos, ao mesmo tempo, permanecer acomodados/as sobre as racionalizações que
nos sossegam o espírito e compreender a necessidade de mudanças.

4.2.3   Grupos focais 

Uma vez estabelecido contato com as participantes por meio da observação, a


pesquisa passou a uma segunda etapa: a realização de grupos focais com jovens que
participaram do MNMMR/DF na infância e na adolescência, a fim de discutir a ação do
Movimento em suas cidades. Grupo focal define-se como uma técnica de pesquisa que diz
respeito à geração de dados “por meio de interação grupal sobre um tópico determinado”
(Morgan, 1996: 130). O grupo focal, então, localiza a interação em uma discussão em grupo
que é a fonte dos dados. A vantagem do grupo focal sobre a entrevista individual é
justamente a interação: por meio do grupo de discussão é possível captar pontos de
instabilidade e discordância, negociação de significados, liderança (Hollander, 2004).
Gaskell (2005: 66) chama atenção para a necessidade de formulação de um
tópico-guia na condução de qualquer tipo de entrevista qualitativa, individual ou em
grupo. Para ele, “um bom tópico-guia irá criar um referencial fácil e confortável para
uma discussão, fornecendo uma progressão lógica plausível através dos temas em foco”.
Entretanto, é preciso adotar o tópico-guia, formulado para dar conta das questões de
pesquisa, com flexibilidade: algumas alterações de foco podem acontecer devido ao
próprio interesse dos/as participantes.

[123]
Os encontros de grupo focal foram a primeira estratégia de geração de dados
analíticos no contexto do MNMMR/DF. Antes disso eu havia feito observação participante e
tomado notas de campo, mas ainda não havia feito entrevistas individuais ou grupais. O
método de grupo focal não constava no planejamento inicial da pesquisa, foi inserido por
sugestão de Júlia, a educadora do MNMMR/DF a que me referi como sendo ‘participante-
chave’. A educadora percebeu minha preocupação com a desestruturação do MNMMR/DF

– o Movimento, que tem mais de 20 anos de existência, encontrava-se, de acordo com


representações de seus próprios membros, em fase de crise financeira, administrativa,
pedagógica e de militância – e considerou que uma discussão com jovens que passaram
pelo Movimento antes desse período de crise seria pertinente para que eu pudesse tomar
conhecimento dessa outra fase das atividades do MNMMR/DF.
Júlia julgava interessante que eu conversasse com ‘ex-meninos/as’ do Movimento
que pudessem me contar sobre suas trajetórias junto à organização e sobre o
funcionamento dos núcleos antes de sua crise e do encerramento de suas atividades. A
denominação ‘ex-meninos/as’ não é uma imposição da pesquisa; é interna ao Movimento,
sendo um modo usual de referência a jovens que na infância e/ou adolescência
participaram do Movimento como ‘meninos/as’, fizeram parte de projetos de nucleação e
organização, e, na juventude, ou deixaram de participar diretamente, mantendo entretanto
vínculo com a instituição, ou assumiram outros papéis junto ao Movimento, tornando-se
‘protagonistas’. Como meu projeto tem por base a pesquisa participativa, achei por bem
acatar sua sugestão e realizei dois encontros de grupo focal, em abril de 2006, na sede do
Movimento. Ambos os encontros foram organizados pela educadora.
Para participarem do Grupo Focal 1, que aconteceu no sábado 07 de abril de 2006,
pela manhã, na sede do Movimento na Asa Norte, Júlia contatou nove jovens, que
confirmaram sua presença. No dia marcado, entretanto, uma chuva muito forte impediu
que algumas pessoas fossem à Asa Norte – todas moram em cidades satélites distantes do
Plano Piloto. Outras pessoas, ainda, deixaram de comparecer sem justificar sua ausência.
Trata-se de uma dificuldade identificada em qualquer tipo de entrevista em grupo:
é preciso contar com a disponibilidade de um número de pessoas, e isso sempre pode
trazer problemas. No caso de minha pesquisa, devo confessar que a ausência de mais da

[124]
metade das pessoas convidadas, embora tenha me frustrado, não me impressionou: não
era a primeira vez – e não seria a última – que um compromisso agendado deixava de ser
cumprido. Sobre minha decepção em relação às ausências nesse encontro de grupo focal,
registrei em meu diário de campo:

Hoje às 9h eu estava no Movimento. A Jú também chegou pontualmente para abrir


para mim, mas já adiantou: com essa chuva os/as meninos/as vão chegar atrasados.
Foi pior que isso: dos nove confirmados só vieram quatro! Parece que estava
chovendo muito hoje de manhã no entorno. Fiquei bem chateada, depositei tanta
energia nisso! Puxa! Fizemos a discussão só nós cinco mesmo (a Jú foi embora
depois de abrir e conversar um pouco com a gente). (...) Cheguei em casa meio tonta,
cansada, frustrada. Tenho de registrar também que fiquei um bocado decepcionada
com as ausências de hoje... mas não posso desanimar! Difícil isso... (Nota de campo
registrada em 8 de abril de 2006).

Na verdade, o processo de minha pesquisa foi fortemente marcado por frustrações


decorrentes de insucessos no planejamento e por angústias a respeito da geração de dados
– logo no início da pesquisa registrei em meu diário: “Isso é sempre uma incógnita no
Movimento... a gente nunca sabe se as coisas acontecerão como planejamos...”. Não fosse
por minha insistência no prosseguimento da pesquisa, que em parte devo às participantes
e a minha orientadora, o projeto poderia ter sido abandonado. Como vimos no Capítulo 1,
foi necessário fazer ajustes não raros para adequar o planejamento inicial a essa realidade
complexa na qual escolhi realizar minha pesquisa. A pesquisa com movimentos sociais da
natureza do MNMMR/DF, sobretudo em contextos de crise organizacional, inclui esse risco.
O tempo da pesquisa e o tempo da organização não coincidem, assim como não
coincidem minhas urgências como pesquisadora e as urgências dos membros do grupo.
Uma das coisas que aprendi é que é preciso ter paciência.
Vieram enfim quatro pessoas a esse Grupo Focal 1, chegando com mais de uma
hora de atraso. Eram dois ex-meninos e duas ex-meninas, que já se conheciam do
Movimento. Os jovens, Rafael e Alexandre, fazem parte do primeiro grupo de ‘ex-
meninos/as’ identificado – aquele composto por jovens que deixaram de participar
diretamente das atividades do Movimento –, as jovens, Maria e Amanda, ao contrário,
fazem parte do segundo grupo – assumiram papéis na organização.

[125]
Maria foi uma parceira importante em todo o desenvolvimento da pesquisa. Tinha,
à época do Grupo Focal 1, 25 anos. Ela participou do Movimento na infância, deixou de
participar na adolescência, em decorrência de uma gravidez aos 15 anos. Casou-se e teve
duas filhas. Aos 21 anos separou-se de seu companheiro e voltou a participar do
Movimento, dedicando-se à nucleação de meninos e meninas em sua comunidade: foi
coordenadora do Núcleo de Base do MNMMR/DF em sua cidade, aqui identificada como
Campina. O núcleo teve suas atividades totalmente interrompidas em dezembro de 2005,
e meses antes disso já não funcionava bem. Quando realizamos o Grupo Focal 1, Maria
militava no Movimento e era também membro do comitê da juventude do Comitê
Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. No papel
de representante do Centro-Oeste na coordenação colegiada desse comitê, viajava
regularmente por todo o país. Hoje Maria é contratada como educadora no Projeto
Giração, aprovado pelo Cecria (Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e
Adolescentes), em parceria com o MNMMR/DF, para organização de jovens
trabalhadores/as das imediações da rodoviária do Plano Piloto de Brasília (trata-se do
projeto a que me referi na Seção 3.2.1).
Amanda tinha também 25 anos na ocasião do grupo focal. Ela é casada, mãe de
duas filhas. Participou como menina no Movimento e teve papel na constituição de um
núcleo de base em Oliveiras. O núcleo foi coordenado por ela até o encerramento das
atividades em dezembro de 2005. Desempenhou na comunidade sobretudo ações
culturais relacionadas à formação de um grupo de quadrilha que se apresenta em festas de
São João, atividade articulada à organização de meninos e meninas e à garantia de direitos.
Em meados de 2006, Amanda empregou-se como balconista na cafeteria de um shopping,
mas, segundo ela, depois de alguns meses foi acusada injustamente de furto por seu
empregador – que depois admitiu o engano –, e pediu demissão. Atualmente participa,
com Maria, do Projeto Giração, tendo sido contratada também como educadora.
Rafael contava 20 anos quando de sua participação no Grupo Focal 1. É solteiro, ex-
menino do Movimento, esteve em situação de rua e estudou, junto com sua irmã, na Escola do
Parque, instituição pública de educação para crianças e adolescentes em situação de rua. Na
adolescência, ao lado de Amanda e de mais outros/as 18 meninos e meninas do Movimento,

[126]
participou da montagem da peça de teatro “Brasileirinho”, em que atuou no papel principal. A
peça, a respeito da situação de crianças e adolescentes pobres no Brasil, obteve apoio da Caixa
Econômica Federal para se apresentar no Canadá – Rafael sempre conta com saudades de sua
atuação na peça e de sua viagem ao exterior. Aos 17 anos Rafael cometeu um ato infracional
relacionado ao tráfico de drogas e cumpriu medida sócio-educativa no CAJE – Centro de
Atendimento Juvenil Especializado; à época do encontro estava em regime de liberdade
assistida, vivendo com sua mãe. Em meados de 2006, entretanto, foi preso por tráfico de
drogas e encarcerado no presídio da Papuda, no Distrito Federal. Posteriormente, foi libertado
por haver sido considerado usuário de drogas e não traficante.
Alexandre foi o mais jovem integrante desse grupo focal. Ainda adolescente, tinha
16 anos quando fizemos o encontro. Alexandre esteve em situação de rua dos 11 aos 15
anos, tendo sido usuário de drogas. Vivia na rua quando conheceu o Movimento, a
convite de um primo que o acompanhava. Aproximou-se do Movimento atraído por
atividades culturais e esportivas então oferecidas pela organização. À época da realização
do grupo focal vivia com a família no entorno do Distrito Federal, em Goiás.
Os dois encontros de grupo focal não tiveram exatamente os/as mesmos/as
participantes – como vimos, uma dificuldade das interações grupais é a disponibilidade
das pessoas em participar dos encontros. O Grupo Focal 2 aconteceu também na sede da
Comissão Local do MNMMR/DF, no dia 11 de abril de 2006, na terça-feira seguinte ao dia
do Grupo Focal 1. Dessa vez, foi agendado para o período da tarde, às 14h30. Estiveram
presentes, do Grupo 1, Maria, Amanda e Rafael. Outras participações foram as de
Fernanda, irmã de Maria, e Gabriel.
Fernanda é irmã mais nova de Maria. É casada e mora na casa dos pais com sua
família. Tem um filho de quatro anos e uma filha de dois meses. Ambas as crianças foram
levadas ao encontro – nesse dia Amanda também precisou levar sua filha de quatro anos,
de modo que o Grupo Focal 2 foi realizado em um ambiente algo conturbado. Fernanda
foi uma das adolescentes fundadoras do núcleo de Campina, onde sua família vive até
hoje. Ela participou do Movimento na infância e adolescência, mas deixou de participar
ao completar 18 anos – no encontro ela afirmou que se sentiu sem espaço no Movimento
quando deixou de ser adolescente. Maria e Fernanda têm uma relação difícil, e a

[127]
participação de Fernanda no Grupo Focal 2 praticamente limitou-se às provocações feitas
a Maria. Em meu diário de campo registrei: Faltaram discutir as duas.
Gabriel também particiou do Movimento na infância e na adolescência, tendo
posteriormente deixado de participar diretamente. É estudante universitário, o único entre
os/as participantes dos dois encontros a ter ingressado no curso superior. Em minhas
notas de campo registrei que sua fala parece ter sido amplamente direcionada pelas
provocações de Fernanda. Registrei também que isso se alinha com a discussão de
Hollander (2004) acerca de discursos problemáticos em grupos focais:

A Fernanda disse que se sentiu excluída [do Movimento] quando fez 18 anos e fez
uma porção de críticas. O Gabriel falou pouco e parece que a fala dele foi muito
direcionada pela fala da Fernanda. Ele concordava com ela em tudo. Senti direitinho
o que Hollander fala sobre os discursos problemáticos em grupo focal! Como ela foi
a primeira a falar e fez críticas logo de cara, foi a opinião dela e o modo dela de se
expressar que pautaram toda a discussão. Do jeitinho como Hollander discute no
artigo! (Nota de campo registrada em 11 de abril de 2006).

Os encontros de grupo focal tiveram a duração média de duas horas cada. Foram
gravados em áudio e transcritos para serem analisados de acordo com os métodos
propostos pela ADC. Além do objetivo inicial dos encontros, de conhecer uma perspectiva
anterior ao período de crise, os grupos focais resultaram relevantes para a análise da
identificação das jovens protagonistas, Maria e Amanda, nas interações grupais. Nesse
sentido, as discussões em grupo possibilitaram acesso a perspectivas divergentes em
relação ao protagonismo juvenil e à mobilização social, o que implica diferenças na
identificação de Maria e de Amanda como protagonistas. Ademais, as participações de
Rafael, Alexandre, Fernanda e Gabriel denotam uma incerteza acerca do que seja
protagonismo juvenil, o que causa estranhamento uma vez que esse é um tópico
considerado central na ação do Movimento (ver Capítulo 6).
O tópico-guia formulado para os encontros de grupo focal nesta pesquisa centrou-se
em dois principais eixos temáticos: (1) o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
no Distrito Federal e (2) o protagonismo juvenil. Formulei questões abertas, propondo temas
para a discussão, com base nesses dois eixos. Para ambos os eixos temáticos, iniciei com
perguntas descritivas, procurando incitar respostas dirigidas pela compreensão dos/as
[128]
participantes quanto aos temas tratados, e adicionei perguntas estruturais, que acrescentam
um foco mais específico (Gilchrist, 1992). As questões propostas foram:

EIXO TEMÁTICO (1)


O que é o MNMMR/DF?
Quais são os objetivos do MNMMR/DF?
Como o MNMMR/DF age para atingir esses objetivos?
Como se deu o ingresso do/a participante no MNMMR/DF?
EIXO TEMÁTICO (2)
O que é o protagonismo juvenil?
O protagonismo juvenil tem uma importância social? Se sim, qual?
O que faz de um/a jovem protagonista?
O MNMMR/DF favorece o protagonismo juvenil? Se sim, como?

Quadro 4.1 – Tópico-guia para os grupos focais

Não depositei demasiada preocupação em seguir as questões na ordem em que


foram pensadas inicialmente, respeitando o fluxo da interação, nem tampouco em
formulá-las exatamente no formato pré-estabelecido (Atkinson & Pugsley, 2005). Esse
tópico-guia, como o nome sugere, foi utilizado como um guia para as interações grupais,
mas houve abertura para que os/as participantes sugerissem outros temas de interesse ou
conduzissem um tema levantado em direções não previstas no momento de formulação
do tópico. Isso reflete a necessária flexibilidade do planejamento em pesquisa etnográfica
de caráter participativo. Uma conseqüência dessa abertura, entretanto, é que nem todos os
temas levantados foram efetivamente tratados.

4.2.4   Entrevistas focalizadas 

Quatro entrevistas focalizadas foram realizadas com membros do MNMMR/DF

entre outubro de 2006 e fevereiro de 2007. Participaram das entrevistas duas jovens
protagonistas e duas educadoras do Movimento. As entrevistas são focalizadas, um tipo de
entrevista que permite que a interação se desenvolva mais livremente, ainda que focalizada
em pontos específicos de interesse (Doncaster, 1998). Esse método visa deixar os/as

[129]
participantes livres para relatarem o que considerem relevante acerca do tema estudado, o
que tem o duplo mérito de alcançar a perspectiva dos sujeitos face ao tema e de não
invadir de maneira indesejável sua privacidade.
Embora o objetivo tenha sido focalizar questões específicas, relacionadas à
experiência das participantes com o MNMMR/DF, as entrevistas não passaram por um
planejamento rigoroso de questões a serem levantadas, uma vez que a participação essencial
nessas entrevistas é a do/a entrevistado/a e não a do/a entrevistador/a (Magalhães, 1986).
A vantagem desse tipo de entrevista é que garante o foco no tema de interesse da pesquisa
mas ao mesmo tempo confere liberdade de expressão aos/às participantes, o que pode ser
relevante para a construção discursiva de suas identidades. As entrevistas foram gravadas
em áudio, e as transcrições resultaram em dados analisados sob o foco da ADC.
No método de entrevista focalizada não é desejável uma lista de perguntas a serem
feitas, mas é útil levantar desde o início os temas a serem abordados, elaborando-se, tal
como para os grupos focais, um tópico-guia. Para Gaskell (2005: 66), “duas questões
centrais devem ser consideradas antes de qualquer forma de entrevista: o que perguntar (a
especificação do tópico-guia) e a quem perguntar (como selecionar os entrevistados)”.
Quanto à primeira questão, a formulação do tópico-guia levou em consideração o
fato de que as entrevistas deveriam servir para obter representações acerca do Movimento
e sua atuação, da identificação das participantes em relação ao Movimento e das redes de
práticas de que o Movimento faz parte. Quanto à segunda questão, aproveitei minha
experiência anterior com o Movimento para ‘selecionar’ que participantes poderiam me
ajudar a conhecer essas informações e teriam disponibilidade para tanto.
As duas jovens entrevistadas, Maria e Joana, haviam participado das oficinas
pedagógicas que realizamos em parceria e haviam me recebido nos núcleos de suas
cidades, no período da observação participante. A entrevista com Maria foi gravada, em
25 de outubro de 2006, em uma sala do ‘Corredor da Cidadania’, como é chamado o
subsolo do prédio da polícia rodoviária onde se instalaram várias organizações não-
governamentais voltadas para os direitos humanos, inclusive a Comissão Local do
MNMMR/DF. A sala em que gravamos a entrevista, de cerca de 45 minutos, é a do Comitê
Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, de que

[130]
Maria faz parte no comitê da juventude. Joana recebeu-me em sua casa para a entrevista
em 16 de fevereiro de 2007. A entrevista com Joana durou pouco mais de uma hora, mas
passei em sua casa quase a tarde inteira, tendo a oportunidade de conhecer sua família.
As duas educadoras entrevistadas eram também parceiras em meu projeto. Uma
delas é a mesma a que me referi como ‘participante-chave’, a Júlia; a outra havia
participado ativamente do projeto desenvolvido pelo Movimento com catadores/as de
material reciclável, que teve um papel relevante na sua crise, e poderia me fornecer
informações sobre a rede de práticas em que a organização atua (ver Capítulo 1). Trata-se
de Vera, educadora do Movimento desde 1994. Ambas as entrevistas foram gravadas em
salas da Comissão Local do MNMMR/DF em fevereiro de 2007. A entrevista com Júlia teve
duração de cerca de 45 minutos, e a de Vera demorou uma hora e vinte minutos.
As entrevistas, com as jovens e com as educadoras, foram baseadas em um tópico-
guia focalizado em questões acerca de suas histórias no Movimento. No Quadro 4.2, a
seguir, listo as questões que nortearam as entrevistas focalizadas.

TÓPICO-GUIA
Me fala do Movimento
Me conta como você começou no Movimento
Como era ser menina no Movimento? Como é ser jovem no Movimento? (apenas para as jovens)
O que significa ser militante no Movimento?

Quadro 4.2 – Tópico-guia das entrevistas focalizadas

Planejei questões abertas e em pequeno número, pois meu objetivo era mais levantar
tópicos para discussão que fazer perguntas propriamente. Outras questões foram sendo
integradas às interações de acordo com o fluxo de cada entrevista. As entrevistas foram
diálogos informais, em que tanto as entrevistadas quanto eu negociávamos conhecimentos e
partilhávamos experiências sobre o Movimento. O período anterior, de observação, foi
fundamental para as entrevistas por dois motivos: primeiro porque me permitiu estabelecer
relação prévia com as participantes, o que é imprescindível para se realizar esse tipo de
entrevista dialógica; segundo porque os conhecimentos que adquiri sobre o Movimento

[131]
durante a observação foram utilizados nas entrevistas para a construção desse diálogo, o
que distancia as entrevistas que realizei do modelo pergunta-resposta.
Vale ressaltar que essas questões previstas não foram tratadas como imposições à
pesquisa. É importante reconhecer que a pesquisa etnográfica, como um processo
autoconstrutivo, se constrói a medida em que é feita, pode ser modificada e, como vimos,
freqüentemente o é. Houve abertura também para as participantes inserirem outras
questões, de acordo com sua própria agenda de interesses. Em cada uma das entrevistas
essas questões levantadas deram ensejo a outras questões, de modo que as entrevistas
seguiram distintos caminhos.

4.2.5   Gravação de reuniões 

Durante o trabalho de campo, em diversas ocasiões fui convidada a participar de


eventos e atividades do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, como a
Assembléia Nacional, reuniões na sede da Comissão Local, produção de projetos,
mobilizações, manifestações, oficinas. Sempre que me foi possível, respondi
positivamente aos convites, comparecendo aos eventos para os quais gentilmente me
convidavam, sabendo de meu interesse nas práticas da organização.
Em algumas ocasiões, não julgava adequado efetuar gravações em áudio das
interações de que participava, por exemplo na Assembléia Nacional e na reunião do
Fórum DCA, por estarem presentes pessoas que não sabiam/não participavam de minha
pesquisa ou por a situação não ser favorável a gravações. Nesses casos, tomei notas de
transcrição (ver Seção 4.2.2).
Duas reuniões, entretanto, puderam ser gravadas. A primeira foi uma reunião
interna da Comissão Local do MNMMR/DF, em 28 de março de 2006, de que participaram
a então coordenadora do MNMMR/DF, Paula; as duas educadoras, Júlia e Vera; a jovem
Maria, e um voluntário, Marcelo, além de mim. Na pauta dessa reunião estavam a crise
financeira do Movimento; a Assembléia Nacional, que ocorreria dias depois; o
encerramento das atividades dos núcleos de base. Foi uma reunião tensa, pois a pauta
girava em torno da situação de desestruturação da organização, em nível local e nacional.

[132]
A segunda reunião que pude registrar foi quase um ano depois, em 16 de março de
2007. Tratava-se de uma reunião do Grupo de Trabalho Gira-Ação para a qual fui
convidada na véspera. O projeto Giração é um grande projeto de parceria entre o Cecria e
o MNMMR/DF, aprovado pela Petrobrás para organização de adolescentes e jovens
trabalhadores/as informais das imediações da rodoviária do Plano Piloto de Brasília. O
projeto foi aprovado para realização em um ano, a partir de abril de 2007, com um bom
financiamento, que se esperava viesse marcar o fim da crise do MNMMR/DF (o Projeto
Giração foi renovado por mais um ano). O clima da reunião era outro: os/as participantes
estavam animados/as com a perspectiva aberta pela aprovação desse projeto e faziam
planos para sua implantação. Participaram da reunião Glauco, então coordenador do
MNMMR/DF; Paula, ex-coordenadora do MNMMR/DF, agora conselheira da coordenação;
Júlia; Henrique, coordenador do Cecria e professor universitário; Mônica, ex-
coordenadora nacional e militante do MNMMR, além de mim. Nessa reunião, a gravação
em áudio me foi solicitada para fins de registro no MNMMR/DF, além de me ter sido
permitido seu uso para a pesquisa.
A gravação dessas reuniões não estava, evidentemente, no desenho inicial da
pesquisa. Aproveitei, entretanto, essas ocasiões para coletar dados, de acordo com o que
Retamozo (2006: 11) sugere ao afirmar que “ao estudar movimentos sociais, é preciso pôr
em prática uma vigilância etnográfica para identificar situações que possam brindar
material para uma melhor compreensão”. Uma vantagem da utilização desses dados é seu
potencial para a análise da atividade do Movimento, uma vez que não se trata de dados
gerados em situação específica de pesquisa – como são os dados gerados por meio de
entrevistas, por exemplo –, mas dados relativos à atividade concreta da própria
organização. Em um primeiro momento, pensei mesmo em utilizar esses dados para a
análise do significado acional – nos termos da ADC –, mas depois decidi manter o foco da
pesquisa nos significados representacional e identificacional. Entretanto, como se pode
notar pelas análises apresentadas no Capítulo 8, em muitos momentos acabo ‘deslizando’
para questões relativas à ação discursiva, como as relações hierárquicas na Reunião 1 e o
uso de estratégias discursivas para determinados efeitos na Reunião 2. Isso de certa forma
vem confirmar a adequação da distinção entre dados gerados e dados coletados em

[133]
termos de seu potencial epistemológico e, por outro lado, enfatiza a relação dialética entre
os três tipos de significado. Seja como for, a participação nessa e em outras reuniões,
assim como a observação, possibilitou meu acesso a atividades práticas da organização.
O fato de serem duas reuniões muito diversas – em termos de suas pautas, mas
também em termos das expectativas dos/as participantes e dos contextos específicos das
reuniões – é visto como positivo para a pesquisa, pois me permitiu ter acesso a dois
momentos extremamente diferentes. A primeira reunião ocorreu no contexto de
profunda crise, de início das atividades de 2006 tendo sido 2005 um ano particularmente
difícil para o MNMMR/DF, pelo encerramento das atividades de nucleação, considerada
uma das principais atividades da organização. Sobre esse agravamento da crise, registrei
em minhas notas de campo minha impressão de uma conversa que tive com Vera:

Fui ao Movimento à tarde. A Jú não estava; passou mal e foi pra casa. Falei com a
Vera. Ela disse que os últimos três anos foram os piores do Movimento, que o
Movimento está passando por uma crise severa, só tem um projeto atualmente. Ela
disse que o problema não é só questão de recurso, há também um problema grave de
metodologia. Outro problema sério do Movimento para a Vera é a falta de militantes.
O Movimento é uma organização de militância, de luta pela crença na possibilidade
de mudança, mas hoje quase não há militantes de verdade. Ela usou uma metáfora
interessante para definir o agravamento da crise: “se ano passado o Movimento tava
capenga, esse ano tá sem perna” (Nota de campo registrada em 9 de fevereiro de 2006).

A segunda reunião, um ano depois, marca o início das atividades de 2007 com a
aprovação de um grande projeto e com a expectativa de criação de um novo núcleo de
base. Sobre minha participação nessa segunda reunião – e sobre o fato de eu ter sido
convidada a participar dela – anotei em meu diário:

Ontem fui convidada a participar de uma reunião na sede. Era uma reunião do
Grupo de Trabalho Gira-Ação, que vai discutir as atividades do projeto Giração (...)
Me incluiram no GT! Eu realmente me tornei um membro interno! Uau!
Na reunião, todo mundo animado. Discutimos o projeto, pensamos suas etapas, as
dificuldades a serem enfrentadas. (...) A etapa inicial de observação na rodoviária já
começou. Maria, Amanda e Rogério estão indo lá em diversos horários e observando
as atividades (Nota de Campo registrada em 16 de março de 2007).

Dois aspectos dessa nota merecem destaque. O primeiro diz respeito a meu
entusiasmo com o convite, que ao final do período de trabalho de campo veio me felicitar

[134]
com a confirmação de que realmente me consideravam um membro do grupo, me
julgavam merecedora de compartilhar esse momento de euforia e esperança. O segundo
refere-se à atuação das jovens protagonistas no projeto – mas deixo que a relevância desse
aspecto seja desvendada nos capítulos analíticos.
A utilização da gravação de cada uma das reuniões teve seu mérito na pesquisa. A
Reunião 1 me permitiu conhecer a negociação de significados em conflito no interior do
Movimento e alguns pontos de instabilidade em termos de seus focos de atuação. A
Reunião 2, por outro lado, foi útil para perceber a negociação entre o Movimento e sua
organização parceira, em termos de hierarquias em procesos decisórios, e a representação
de jovens membros do Movimento por adultos/as envolvidos/as com a organização.

4.3 Por que a articulação desses métodos?

A articulação de diversos métodos para geração e coleta de dados, e de dados de


diferentes fontes, em pesquisa qualitativa, não deve ser feita apenas para conferir
confiabilidade à pesquisa, mas também porque as questões de pesquisa podem ser
abordadas de uma variedade de ângulos ou conceituadas de diversas maneiras, o que
sugere uma variedade de métodos e fontes (Mason, 2002; 2006). Então, não basta
desenvolver uma abordagem multimetodológica e multidimensional, é preciso estar
consciente da funcionalidade dessa abordagem na exploração das questões de pesquisa.
Minhas questões de pesquisa foram quatro, como mostra o Quadro 4.3, a seguir.

QUESTÕES DE PESQUISA
1 Como as educadoras do MNMMR/DF representam a ação e a a crise da instituição?
2 Como as jovens representam o MNMMR/DF e identificam-se como protagonistas?
3 Como as jovens representam suas trajetórias dentro do MNMMR/DF e sua ação como
protagonistas?
4 Como as educadoras do MNMMR/DF (e outros/as adultos/as envolvidos/as com o
Movimento) representam o protagonismo e identificam as jovens?

Quadro 4.3 – Questões de pesquisa

[135]
A articulação das diferentes fontes e dos diversos métodos para geração e coleta de
dados se justifica porque me possibilita, epistemologicamente, o acesso a todas as
questões de pesquisa formuladas, com base na perspectiva ontológica adotada. As quatro
questões de pesquisa são abordadas separadamente nos quatro capítulos analíticos:
Capítulo 5, “Representações da crise pelas educadoras do MNMMR/DF”; Capítulo 6,
“Representações do MNMMR/DF e do protagonismo juvenil nos grupos focais”; Capítulo 7,
“Ser menina e ser jovem no MNMMR/DF: as entrevistas com Maria e Joana” e Capítulo 8,
“Reuniões no MNMMR/DF em dois contextos diferentes”. Esses eixos na análise
asseguram, a partir das estratégias de pesquisa adotadas, o conhecimento acerca dos
componentes ontológicos do mundo social que decidi priorizar.
A Questão 1 foi abordada por meio das entrevistas individuais com as duas
educadoras; a Questão 2 teve como fonte os grupos focais; a Questão 3 foi explorada por
meio das entrevistas individuais com as jovens e a Questão 4 teve por base as reuniões
gravadas. Os componentes ontológicos acessados são discursos, identidades e a
representação discursiva de relações sociais, da ação social, de eventos, práticas e
estruturas.
Na discussão dos dados referentes à Questão 4, entretanto, acabei por focalizar
também aspectos da ação discursiva, como já pontuei (ver Capítulo 8). Em termos
epistemológicos, essa diferença de componentes ontológicos passíveis de acesso por meio
de cada tipo de dado relaciona-se também ao que já foi discutido sobre a distinção entre
dados gerados e coletados – os dados gerados de entrevistas e grupos focais somente
poderiam prover conhecimento sobre a ação se o objeto da pesquisa fosse a própria
prática de pesquisa. Caso contrário, são úteis para a investigação da representação sobre a
ação, mas não sobre a ação mesma. O que se conclui é a necessidade de se ter clara a
diferença entre ação e representação de ação em pesquisas discursivas. A observação
participante também provê conhecimentos acerca da ação e das relações sociais
estabelecidas nesses contextos. É claro que esses conhecimentos são filtrados pela
subjetividade de quem observa, mas o mesmo também é verdade para as análises de
outros tipos de dados.

[136]
Vejo a metodologia que desenvolvi como multidimensional porque embora tenha
investigado um contexto estritamente local – com foco específico em uma comissão local de
um único movimento social – tal foi feito explorando três diferentes dimensões do objeto: as
representações das educadoras (e de outros/as adultos/as envolvidos no Movimento); as
representações das jovens; e as práticas da organização. As três dimensões da pesquisa, as
quatro questões de pesquisa, os métodos para geração e coleta de dados e os componentes
ontológicos do mundo social investigados articulam-se como ilustra o Quadro 4.4:

COMPONENTES
DIMENSÕES DA PESQUISA QUESTÕES DE PESQUISA MÉTODOS
ONTOLÓGICOS
1. Como as educadoras do Entrevistas Discursos, representações
MNMMR/DF representam a ação individuais com as discursivas de relações
e a a crise da instituição? educadoras sociais e da ação social
I. Representação e Identificações e
4. Como as educadoras do
identificação: a voz das representações discursivas
MNMMR/DF (e outros/as
educadoras do Gravação de de relações sociais e da ação
MNMMR/DF
adultos/as envolvidos/as com o
reuniões no social (aspectos acionais
Movimento) representam o
MNMMR/DF como a negociação de
protagonismo e identificam as
significados e as hierarquias
jovens?
também são identificados)
2. Como as jovens representam
o MNMMR/DF e identificam-se Grupos focais
II. Representação e como protagonistas? Discursos, identidades e
identificação: a voz das representações discursivas
3. Como as jovens representam Entrevistas de relações sociais e da ação
jovens protagonistas do
MNMMR/DF
suas trajetórias dentro do individuais com as social
MNMMR/DF e sua ação como jovens
protagonistas? protagonistas

Observação
Não formulei questões participante, notas
Ação social, atividades
envolvendo as práticas, pois de campo,
III. Práticas sociais materiais, redes de práticas,
selecionei o foco em participação em
relações sociais
representação e identificação diversas atividades
do MNMMR/DF

Quadro 4.4 – Relação entre dimensões da pesquisa, questões de pesquisa, métodos e componentes ontológicos

Embora a observação participante, as notas de campo e a participação em


diversas atividades do Movimento não estejam diretamente relacionadas a nenhuma
questão de pesquisa, uma vez que não constituiram dados analíticos, foram
imprescindíveis para a geração de conhecimentos acerca das práticas do Movimento, o
que tem implicação nas análises discursivas, ainda que meu foco principal nesta pesquisa
sejam os significados representacional e identificacional. O acesso à ação social no
[137]
contexto pesquisado é útil para a análise das representações discursivas, tendo em vista a
relação dialética entre os momentos da prática.
Nesse sentido, uma pesquisa discursiva isolada do conhecimento acerca da ação
social relativa ao problema pesquisado dificilmente poderá vislumbrar as relações entre os
momentos das práticas sociais em questão. Ainda que na pesquisa que realizei o foco
central seja representação e identificação, pois meu interesse repousa principalmente no
discurso como base para as representações de práticas e eventos e como base para a
construção e a negociação de identidades, isso não significa que possa menosprezar a
relevância da observação das práticas, sob risco de manter no plano teórico a perspectiva
da relação interna entre linguagem e sociedade.

4.4 O tratamento dos dados

Pesquisas etnográficas normalmente resultam em grande quantidade de dados, o


que nos obriga a desenvolver métodos para o tratamento desse material. Em minha
pesquisa não foi diferente: as transcrições dos encontros de grupo focal, das entrevistas
individuais e das reuniões gravadas geraram centenas de páginas que não poderiam ser
analisadas integralmente seguindo-se os métodos próprios da ADC.
Embora grande parte do trabalho de produção das análises tenha sido feito
diretamente nos arquivos digitais, as etapas iniciais de tratamento dos dados são, para
mim, um trabalho a ser feitos com lápis, canetas coloridas e, infelizmente, muito papel.
Meu primeiro procedimento, após a transcrição das gravações em áudio e a impressão dos
arquivos, foi uma primeira leitura cuidadosa de cada documento. Apenas na segunda
leitura fiz grifos e tomei notas a respeito dos textos, já iniciando uma seleção prévia de
recortes potenciais. Utilizei esse primeiro recorte, mais amplo, como base para o recorte
final, imprimindo-lhe uma cópia e reiniciando o processo.
Nesse sentido, minha estratégia pode ser identificada com o que Crabtree & Miller
(1992: 95) conceituam como “abordagem mais flexível”, em oposição a uma abordagem
“mais estruturada”, em que a codificação do texto é definida a priori e depois aplicada aos
dados. Na abordagem flexível, ao contrário, é a leitura dos dados que define a codificação,
[138]
em termos dos temas e categorias que se decide explorar. Evidentemente, essa abertura na
codificação é algo relativa: quando procedemos à primeira leitura dos documentos não
estamos livres de pressuposições a seu respeito, temos já construídas algumas perspectivas
a respeito do que vamos buscar, não só porque conhecemos as interações de que são
resultado, mas também por toda a experiência etnográfica com a observação.
Trata-se de uma tarefa trabalhosa, demorada, mas que resulta útil para a redução
do extenso material em dados especificamente relacionados às questões de pesquisa. Se
por um lado todo recorte carrega a desvantagem do não aproveitamento de parte dos
dados gerados – e muitas vezes é preciso excluir da pesquisa temas que seriam também
relevantes – por outro lado traz a vantagem de manter o foco nos problemas da pesquisa.
O consolo é saber que toda pesquisa é mesmo um processo formado por escolhas
subseqüentes – e além disso sempre é possível utilizar os dados não explorados na tese
em trabalhos posteriores. A vantagem de se trabalhar com recortes decorre de que as
formulações para análise textual da ADC referem-se a “um trabalho intensivo que pode ser
produtivamente aplicado a recortes de material de pesquisa mais que a textos longos”
(Fairclough, 2003: 6). Como a unidade mínima de análise em ADC é o texto, entretanto, é
necessário que os recortes selecionados para análise não sejam constituídos de enunciados
isolados, mas de trechos significativos em seu conjunto.
Uma vez definido o recorte final a ser aplicado sobre um determinado documento
etnográfico, e providenciada sua impressão, adotei o procedimento da codificação em
cores como primeira estratégia de identificação das categorias relevantes para a análise
discursiva do documento. A codificação em cores é uma dentre as diversas estratégias
para codificação disponíveis e, embora seja um procedimento muito simples – com base
na utilização de canetas ou lápis coloridos para separar tópicos ou categorias que depois
terão análise sistemática –, é útil para tornar mais ‘legíveis’ (ou ‘analisáveis’) os dados
etnográficos. Utilizei canetas marca-texto de quatro cores diferentes para destacar
recorrências de categorias que se mostravam úteis em cada texto. Assim fazendo, não
apenas identificava categorias como também as separava, o que facilita no momento
posterior, o da primeira redação da análise.

[139]
Os capítulos analíticos são organizados de modo a contemplarem, cada qual, dois
documentos etnográficos: no Capítulo 5, duas entrevistas com educadoras; no Capítulo 6,
dois encontros de grupo focal; no Capítulo 7, duas entrevistas com jovens; no Capítulo 8,
duas reuniões. Essa organização em duplas de documentos me permitiu experimentar duas
estratégias analíticas em cada capítulo. Em cada um deles, a análise de um dos documentos
seguiu uma estratégia mais estruturada, em termos de categorias de análise, e a outra seguiu
uma estratégia mais seqüencial. Nesse sentido, Fairclough (2003: 6) sugere que o nível de
detalhamento de análises em ADC pode variar: “a análise textual pode focalizar apenas
alguns aspectos selecionados de textos, ou muitos aspectos simultaneamente”.
Nas análises mais estruturadas, uma ou poucas categorias foram selecionadas a
partir da codificação e então trabalhadas exaustivamente; nas análises mais seqüenciais, a
análise não partiu da definição prévia de categorias a serem exploradas a fundo, mas foi
conduzida de modo mais livre, incorporando diversas categorias à medida em que a
análise se desenvolvia, isto é, apliquei uma estratégia mais seqüencialmente dirigida.
Nesses casos, utilizei uma aproximação menos estruturada em categorias analíticas
específicas e mais ancorada em uma abordagem integral dos recortes; busquei realizar a
análise desses recortes de modo seqüencial, procedendo à aplicação de diversas categorias,
de modo menos pré-definido, à medida que as categorias mostravam-se mais relevantes
em cada trecho do recorte.
Que fique claro: mesmo nas análises que defino como mais estruturadas, a escolha
das categorias não foi feita previamente à codificação, mas previamente ao trabalho de
primeira sistematização das análises (algo como ‘no recorte X, parece relavante a categoria
Y’ ou ‘parecem relevantes as categorias Y e Z’). Julgo esse detalhe relevante porque
sabemos que nas análises lingüísticas os dados é que nos devem mostrar as categorias
adequadas e não serem encaixados em categorias definidas a priori. A diferença é que no
caso das análises definidas como mais seqüenciais essa primeira sistematização foi mais
intuitiva, isto é, nesse caso a codificação não me forneceu uma ou poucas categorias a
serem perseguidas à exaustão mas sim um mosaico de categorias que foram trabalhadas
de acordo com a linearidade do texto, resultando análises mais diversificadas. Ainda,
mesmo nas análises que defini como mais estruturadas as seqüências dos recortes foram

[140]
respeitadas, na medida do possível (em alguns casos o foco em categorias específicas nos
obriga a reorganizar trechos do texto para análise dos dados), pois considero que em
textos, ao contrário do que ensina a matemática, a ordem dos fatores altera a soma.
Assim, no Capítulo 5, a análise da entrevista com Júlia foi feita segundo uma
abordagem seqüencial, tendo se mostrado relevantes como categorias analíticas a seleção
de tempos verbais, as estratégias de mitigação, distanciamento e indeterminação, a
modalidade e a utilização dos pronomes ‘a gente’ e ‘você’. A entrevista com Vera foi
analisada de modo mais estruturado, a análise centrou-se na categoria de coesão,
especificamente nas relações causais entre orações. No Capítulo 6, a análise do Grupo
Focal 1 seguiu um padrão estruturado baseado nas categorias interdiscursividade e
metáfora conceitual. No Grupo Focal 2, por outro lado, apliquei uma análise seqüencial
em que foram relevantes as categorias (negociação de) significado de palavra, modalidade,
uso de qualificadores e circunstâncias/complexidade em representações, intertextualidade.
No Capítulo 7, a análise da entrevista com Maria foi estruturada nas categorias de
modalidade e de processos verbais (esses para investigação de identificação relacional), e a
entrevista com Joana teve uma análise mais seqüencial que sugeriu a relevância das
categorias de coesão, indeterminação, metáfora, intertextualidade, modalidade e
pressuposição. Por fim, no Capítulo 8, a Reunião 1 foi analisada por meio das categorias
de negociação de significados, modalidade, uso de dêiticos e metáfora, e a análise da
Reunião 2 foi estruturada na categoria representação de atores sociais.
Evidentemente, o tipo de análise escolhido para cada documento dependeu do
próprio documento. Em alguns casos, os textos mostram-se mais claros, apontam
categorias cuja exploração se vê útil, salta aos olhos. Em outros, aparecem instâncias de
categorias diversas que, juntas, mostram-se mais eficazes que a exploração sistemática de
uma ou duas. Agora, depois de escritos os capítulos analíticos e finalizada a tese, a
avaliação que faço de um e outro método é que ambos resultam análises capazes de nos
levar a conclusões pertinentes do ponto de vista da articulação entre categorias lingüísticas
e sociais – que no fundo é o que buscamos. Uma diferença é que as análises mais
estruturadas parecem mais duras, inclusive gerando textos analíticos mais pesados,

[141]
enquanto as análises seqüenciais têm o potencial de serem, por um lado, mais abertas e,
por outo lado, mais leves.
Outra observação: as análises foram concluídas na ordem em que os capítulos
analíticos aparecem na tese – ou seja, comecei pelas entrevistas com as educadoras, passei
para os grupos focais e assim por diante –, e a impressão que tenho é que a diferença
entre os dois tipos de análise diminuiu à medida que esse trabalho foi sendo desenvolvido.
O que quero dizer é que nos capítulos iniciais a diferença entre as análises mais
estruturadas e mais seqüenciais (compare por exemplo as análises das entrevistas com
Júlia e Vera) parece ser maior que nos capítulos finais (por exemplo, nas análises das
reuniões). Isso pode indicar que em vez de buscar identificar e comparar vantagens de um
e outro método o mais adequado é mesmo encontrar o equilíbrio entre os dois tipos de
análise – por exemplo, focalizando algumas categorias a serem exploradas mais a fundo
mas sem perder de vista a contribuição que outras categorias, mais localizadas, podem
trazer. As categorias utilizadas são definidas nos próprios capítulos analíticos.

Algumas considerações

A seleção da abordagem multimetodológica nesta pesquisa se justifica porque as


fontes e métodos selecionados para a geração e a coleta de dados ensinam sobre as
práticas implicadas na atuação do Movimento e ajudam a perceber como relações sociais,
identidades e discursos articulam-se nessas práticas. Também porque, por meio dessas
fontes e métodos, foi possível examinar todas as questões de pesquisa levantadas.
Além disso, a articulação dos métodos selecionados foi uma forma de explorar
diferentes dimensões de um processo social e de dirigir-me a diferentes níveis
ontológicos. Assim, por meio da observação participante registrada em notas de campo,
que se estendeu a todo o processo de pesquisa, pretendi conhecer atividades materiais,
relações sociais e redes de práticas; por meio de grupos focais e entrevistas focalizadas,
pretendi acessar discursos, identidades e representações discursivas da ação social e de
relações sociais; por meio da gravação de reuniões, busquei acesso a identificações e
representações discursivas de relações sociais e da ação social, além de converter em
[142]
textos passíveis de análise atividades materiais do Movimento, o que me permitiu focalizar
também a negociação de significados e as relações sociais estabelecidades nas interações.
Os produtos analíticos resultantes da exploração desses dados, então, são
ontologicamente consistentes porque estão baseados em assunções similares a respeito da
realidade social como estratificada e constituída de práticas formadas por articulações
relativamente estáveis de elementos que não se podem reduzir um ao outro, e porque
possibilitaram o acesso aos componentes ontológicos de acordo com essa perspectiva do
mundo social (ver Capítulo 2). São epistemologicamente consistentes porque estão
baseados em assunções acerca do que pode constituir conhecimento da realidade social
coerentes com a ontologia adotada (ver Capítulo 3). E são, também, coerentes com o
desafio intelectual que me imponho e com a ética de pesquisa que me exijo.

[143]
PARTE II

REPRESENTAÇÕES DA CRISE PELAS EDUCADORAS DO 
MNMMR/DF 
E o Movimento teve um auge mesmo. Na década de ‘80,
juntou o Estatuto, a luta do Estatuto, do próprio
Movimento Nacional dos Meninos de Rua que veio, que
mobilizou, que trouxe a meninada pra o Congresso (…).
E você cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente,
você fazer com que os meninos percebam o Estatuto…É
uma lei brasileira moderna, só que, quando você põe em
prática na luta, é muito difícil você fazer essa conquista,
principalmente em se falando de protagonismo juvenil.
(Entrevista com Vera)

N este primeiro capítulo analítico, investigo as representações das educadoras do


MNMMR/DF, Júlia e Vera, a respeito do Movimento e de sua crise – as origens do
Movimento, sua formação como entidade de luta pelos direitos de crianças e adolescentes,
suas conquistas e desafios, as causas e conseqüências de sua crise.
O que me interessa neste capítulo é investigar como as educadoras representam os
eventos que acarretaram a crise e como constroem relações causais/temporais entre esses
eventos. Dessa forma, o capítulo tem o mérito de construir um quadro acerca da
compreensão da crise do Movimento por parte de pessoas que atuam na organização há
mais de uma década e que foram atores/testemunhas de sua história, desde antes do
período de crise.
Embora este capítulo não toque diretamente nas questões centrais da tese – o
significado de protagonismo juvenil; a luta em torno da construção de identidades; a
contradição entre mobilização social e a percepção de imobilidade na estrutura –, as
análises indicam questões que podem ser identificadas nas representações da crise pelas
educadoras, e que nos ajudam a compreender os recortes analisados nos capítulos
posteriores. Os recortes analisados das entrevistas com Júlia e Vera constam no Anexo A.
5.1 A entrevista com Júlia

Na entrevista individual realizada com Júlia, analiso as representações, pela


educadora, de uma série de eventos relativos ao MNMMR. São eles: (1) a organização do
MNMMR em 1985; (2) a conquista do ECA; (3) a crise do Movimento com a aprovação do
ECA; (4) a crise financeira do Movimento; (5) a má gestão de recursos. Essa enumeração
segue a ordem em que os temas são tratados na entrevista. Para discutir a representação
de cada um dos temas, apresento recortes da transcrição, de modo que os exemplos
listados a seguir também são fiéis à seqüência da interação.
A entrevista inicia-se com formulações acerca da formação do Movimento
Nacional de Meninos e Meninas de Rua em 1985. A seleção desse tópico para o início do
diálogo foi condicionada por minha primeira intervenção – “Eu queria só conversar
mesmo sobre o Movimento com você, que você me dissesse coisas sobre a história do
Movimento, sobre como é que começou e o que aconteceu depois” –, que inaugurou a
entrevista. A resposta de Júlia a essa questão foi a seguinte:

(1) Júlia: É, o Movimento começou em ‘85 com uma conjuntura de... O Movimento
não nasceu de uma pessoa. Nasceu de vários educadores que já trabalhavm em
ONGs, no próprio Estado, mas que achavam que deveria ter uma nova forma de
tratar meninos e meninas. E, dentro dessa luta, nasceu o Movimento em ‘85, com
quatro linhas de atuação. Uma chamava – chama ainda – formação e organização
de meninos, que era o trabalho todo desenvolvido com a meninada, na
perspectiva de lutas dos direitos, de conquista de cidadania. Uma outra linha de
ação do Movimento era a formação de educadores para pensar uma nova
pedagogia de atendimento aos meninos e tudo. E uma linha que era conquistar
novos miliantes para o Movimento.
(…)
Viviane: Você falou quatro linhas de atuação: formação de meninos e meninas,
formação de educadores, a questão da militância... Falta uma.
Júlia: Ah, e a defesa dos direitos! A defesa dos direitos, que é a defesa jurídico-
social. É a base do trabalho do Movimento. 28

28 Nas transcrições dos dados para esta pesquisa, utilizei (...) para indicar um corte na fala de um/a participante e [...]
para indicar um corte de um ou mais turnos inteiros. As reticências simples, sem parêntese nem colchete, indicam
frase inconclusa, mas transcrita conforme aparece na interação. Em virtude da natureza de meu interesse nos dados,
não julguei necessário adotar convenções de transcrição mais detalhadas – não analiso aspectos como trocas de
turno, falas sobrepostas ou entonação.
[149]
A educadora enfatiza que a organização do MNMMR na década de 1980 foi fruto de
uma mobilização coletiva, derivada do interesse de pessoas que já atuavam na área relativa
à infância e à adolescência, nas instâncias de outras ONGs e do Estado. Ao se referir às
quatro linhas de atuação do Movimento quando de sua criação, Júlia seleciona
diferentemente os tempos verbais a utilizar em referência a cada uma das linhas. Essa
diferença é organizada no Quadro 5.1 a seguir:

1. Organização de meninos/as PASSADO “Uma chamava – chama ainda – formação e organização de meninos,
PRESENTE que era o trabalho todo desenvolvido com a meninada (…)
PASSADO
2. Formação de educadores/as PASSADO Uma outra linha de ação do Movimento era a formação de educadores
para pensar uma nova pedagogia de atendimento aos meninos e tudo.
3. Atração de militantes PASSADO E uma linha que era conquistar novos miliantes para o Movimento.
[…]
4. Defesa de direitos PRESENTE e a defesa dos direitos! A defesa dos direitos, que é a defesa jurídico-
social. É a base do trabalho do Movimento.”

Quadro 5.1 – Seleções de tempos verbais em relação às linhas de atuação do Movimento

Para se referir à formação e à organização de meninos e meninas, Júlia utiliza o


tempo passado e em seguida corrige com o presente, mas volta ao passado na
caracterização da ação; quando trata da formação de educadores, seleciona simplesmente
o tempo passado; em referência ao trabalho de militância, o passado é novamente o
tempo escolhido; por fim, para se referir à defesa de direitos, seleciona o tempo presente.
Note-se que essa seleção diferenciada de tempos verbais está de acordo com a manutenção
ou o encerramento das atividades mencionadas: as únicas atividades ainda presentes na ação
do Movimento, à época da entrevista, eram a organização de meninos/as e a garantia de
direitos; as demais atividades, referidas no passado, de fato fazem parte da história passada
desse movimento social.
Ainda, cabe notar que quando se refere à formação e a organização de meninos/as,
atividade em crise durante a pesquisa de campo, Júlia utiliza o passado e depois corrige-se
com o presente, fazendo uso entretanto de uma estrutura com “ainda”, que poderia
sugerir a possibilidade de interrupção dessa linha de ação, sentido completado na
caracterização da atividade no passado. Quanto ao trabalho com a garantia de direitos,
[150]
atuação mais forte do Movimento à época da entrevista, a educadora seleciona uma
estrutura presente mais enfática, e completa: “É a base do trabalho do Movimento”.
O período de observação participante (ver Seção 3.1) confirma cada uma dessas
escolhas de tempo verbal pela educadora – de fato, quando estive participando das
atividades da organização, pude perceber que as duas linhas de atuação referidas no
passado não eram observáveis e que entre as duas atividades referidas no presente a
garantia de direitos tinha papel mais central e se fazia de modo mais organizado que a
nucleação, trabalho de organização de meninos e meninas. Embora o encerramento das
atividades de alguns desses eixos considerados centrais ao trabalho do Movimento não
seja explicitamente afirmado – mantendo, de certa forma, uma ficção de sua existência
latente –, é possível depreendê-lo dos tempos verbais empregados.
Ainda como parte de sua resposta a essa primeira questão levantada, Júlia ressalta a
participação do MNMMR na superação do Código de Menores com a conquista do
Estatuto da Criança e do Adolescente. Veja-se o exemplo (2):

(2) Júlia: O Movimento teve uma ação muito importante desde ‘85, a mudança do
paradigma de atendimento à criança e ao adolescente, desde o tal antigo Código
de Menores, que veio com a luta do ECA. O Movimento foi uma das atividades
protagonistas nessa época de elaboração do ECA, de uma nova metodologia, de
igualar os filhos – criança e adolescente. Porque, até então, os filhos dos
trabalhadores eram tidos como ‘menores’. Criança e adolescente era, assim, da
classe média. Hoje em dia, com o ECA, veio a igualar isso para, pelo menos, na lei.
E o ECA também criou novos mecanismos de defesa de direito que pode ser
utilizado e ainda não é cumprido porque o povo não sabe o valor que ele tem de
luta, de intervir e tudo.

Mais uma vez a escolha do tempo verbal denota um tipo de representação em que
a atuação do Movimento aparece atrelada ao passado: quando escolhe afirmar “O
Movimento teve uma atuação muito importante desde ‘85” – em vez de optar por
estruturas como ‘vem tendo’ ou ‘tem tido’, por exemplo – Júlia marca essa “atuação muito
importante” como sendo parte de um tempo anterior ao presente da entrevista.
A referência ao Código de Menores é feita por meio de uma estratégia de
distanciamento (“tal antigo”) em que a superação dessa lei pelo ECA é marcada pela
oposição entre o velho e o novo (“antigo código”/“nova metodologia”). Nota-se na fala de

[151]
Júlia um discurso muito freqüente no âmbito dos movimentos sociais que atuam na área:
o da separação entre ‘menor’ e ‘criança’, em que ‘menor’ representa os filhos dos/as
pobres e ‘criança’ os filhos da elite. 29 A presença desse discurso no contexto da luta pelos
direitos de crianças e adolescentes pode ser exemplificada pela citação do seguinte trecho da
apresentação da edição comemorativa do ECA, referente a seus 12 anos, completados no
ano 2002:

Estamos ainda num processo de transição em que o novo convive com o


velho. Um teima em resistir amarrado a uma vertente muito viva na sociedade
de que nem todos são crianças e adolescentes. A estes uma forma
diferenciada de atenção, centrada na repressão. O outro anuncia e desvela a
todos que temos enquanto sociedade a responsabilidade de garantir a todas as
crianças e adolescentes condições dignas de vida, garantir as políticas públicas
necessárias para que tenham vida em abundância (Conanda, 2002: 7).

Também no contexto acadêmico a separação dos significados de ‘menor’ e de


‘criança’, com base em classe social, já foi debatido (Resende, 2007). Um exemplo disso é
o verbete ‘menor’ no dicionário de Cristovam Buarque, que registra:

Na apartação, a palavra criança perde sua conotação etária e passa a


significar os filhos dos incluídos, enquanto os filhos dos excluídos são quase
sempre chamados de menores, com uma conotação legal que nada tem de
etária, significando aquele que ainda não pode ser julgado por seus crimes
(Buarque, 2001: 220).

Creio que uma análise discursiva, por exemplo em documentos midiáticos,


comprovaria a existência dessa divisão. Quando se noticiam eventos de atos infracionais
cometidos por adolescentes pobres, o item lexical selecionado é ‘menor’, mas não quando
se debate, digamos, o estresse em crianças ricas submetidas a uma agenda repleta de
atividades extracurriculares como cursos de idiomas e esportes.

29 Drexel & Iannone (1997: 24) explicam que “a palavra ‘menor’, antônimo de ‘maior’, passa a idéia de pequeno,
ainda por formar-se (...), que depende de um ‘maior’ sob cuja tutela e custódia deveria estar. Porém, o termo ‘menor’
nesse sentido, tem sido aplicado apenas às crianças e jovens de famílias economicamente estáveis. Para os demais –
os pobres, os internos em orfanatos ou os órfãos do Estado –, a palavra ‘menor’ assume uma conotação pejorativa,
trazendo em seu conteúdo semântico a insinuação preconceituosa de ‘marginal’. Assim, comumente, na sociedade
brasileira, o nome ‘menor’ é usado discriminatoriamente. Para os filhos de famílias estáveis, usa-se ‘criança’, ‘jovem’
e, quando há referência a alguma situação jurídica, o termo é usado na forma de locução: menor de idade”.
[152]
Embora o Estatuto trate os direitos de crianças e adolescentes de modo universal,
o Movimento está voltado a assegurar esses direitos ao conjunto que poderia ser
relacionada ao conceito de ‘menor’ (o que está explícito no próprio nome do
Movimento). São as crianças pobres que têm seus direitos mais severamente
desrespeitados – trabalho infantil; constantes violações do direito à saúde pública com
atendimento prioritário; do direito à educação pública de qualidade; do direito ao lazer.
Ainda que crianças e adolescentes de todas as classes sociais tenham direitos
desrespeitados, por exemplo sendo vítimas de exploração sexual e violência doméstica,
crianças e adolescentes pobres não só estão sujeitos/as a uma gama mais ampla de
violações a seus direitos como também estão menos protegidas, visto que a justiça e a
segurança são bens desigualmente distribuídos (Nunes, 2003).
É a crianças e adolescentes socioeconomicamente excluídos/as que o Movimento
dedica seu trabalho, o que lhe atribui um caráter de movimento de classe – o objetivo
final é que essas crianças e adolescentes possam construir projetos de vida que lhes
permitam ser protagonistas na transformação de injustiças sociais baseadas, sobretudo, na
divisão de classe (Rede Tecendo Parcerias, 2007). Daí a instalação de núcleos de base nas
periferias e o interesse por crianças e adolescentes que buscam na rua seu sustento e
contribuem, não raro, para a manutenção também da família, que em muitos casos
mantém seu domicílio na periferia (Araújo, 2003).
Esse corte menor/criança é representado na entrevista como superado a partir da
conquista do ECA. Entretanto, Júlia marca o caráter abstrato dessa conquista, efetivada na
lei e desrespeitada nas práticas (“pelo menos na lei”, “ainda não é cumprido”). A não
implementação das conquistas legais é considerada derivada do desconhecimento da
população acerca de seu potencial transformador, e essa relação é textualmente marcada
como causalidade (“porque o povo não sabe”). O ECA foi uma conquista social
extraordinária em um país carente de participação cidadã como é o Brasil, mas o
desconhecimento da população acerca de seu conteúdo – e mesmo do papel potencial da
sociedade para sua efetivação –, sobretudo dos segmentos que em primeira instância
poderiam ser mais beneficiados pela implementação do já assegurado em lei, é um
obstáculo para que essa conquista chegue a termo – e é essa a crença que motiva o

[153]
trabalho do Movimento. Entendida assim a questão, parece coerente a ‘fixação’ que certas
atividades do Movimento, notadamente a nucleação, parecem ter no texto do ECA. Sobre
isso, em minhas notas de campo acerca da Assembléia Nacional do MNMMR em 2006,
registrei:

Parece também que em todas as comissões locais esse foco exclusivo, massivo, no ECA
é uma realidade que incomoda. A mim parece que as discussões nos núcleos de base
nunca vão para a frente porque ficam estacionadas no mesmo ponto, e esse ponto é o
ECA! (Nota registrada em 1º de abril de 2006).

O Estatuto é o texto basilar sobre o qual se realizam atividades de organização de


meninos e meninas e se desdobram ações voltadas a direitos assegurados. Apesar de sua
inegável relevância para as atividades do Movimento, e de ter sido uma das maiores
conquistas da organização (em parceria com outros atores sociais) em toda a sua história,
o ECA foi também, contraditoriamente, um fator de crise para o Movimento. Veja-se o
trecho da entrevista destacado em (3):

(3) Júlia: E, uma outra coisa, é que a gente é um CGC único. Isso também deu muito
problema para a gente. Mas a gente de Brasília, há uns seis anos atrás, já era a
favor da descentralização, mas a gente perdeu com a proposta na assembléia,
tanto de descentralizar a questão da formação e a questão dos próprios CGCs,
porque hoje em dia o Movimento está inviabilizado por isso.
Viviane: Me fala um pouco sobre essa história da crise financeira…
Júlia: Na verdade, a crise financeira do Movimento veio com a mudança mesma
de paradigma de criança e adolescente. Que, até então, o Movimento, ele atuava,
tinha uma base muito forte, no trabalho com os adolescentes. Quando a gente
aprova o ECA, a gente também tem de intervir em outras áreas. Então, assim,
vários militantes tiveram de assumir os conselhos de direito, os conselhos tutelares
em primeira mão. Então a gente ficou um pouco fragilizado no trabalho de base
com essa participação. Mas no trabalho político, de garantir os direitos, não. Mas a
gente perdeu um pouco o enfoque da base com os meninos e tudo. E a gente vem
perdendo pela falta de quadros mesmo.

A conquista do ECA apresenta uma contradição para o Movimento: parte da


militância assumiu órgãos criados pela nova lei, enfraquecendo a militância, ainda que o
trabalho nas instâncias políticas tenha sido fortalecido. Com a legitimação decorrente do
ECA e a atuação na pretendida garantia dos novos direitos adquiridos, enfraqueceu-se o
trabalho de base, notadamente a nucleação. Isso parece ter afetado de maneira especial a
[154]
Comissão Local do Distrito Federal, devido a sua localização no centro do poder político
do País e à necessidade de atuação na mobilização junto ao Congresso (em outro trecho
da entrevista, Júlia ressalta: “a Comissão Local, por estar em Brasília, teve muito peso –
tem até hoje porque tudo rola no Congresso Nacional”). Trata-se de um curioso caso em
que a legitimação enfraquece: em vez de a conquista do ECA empoderar movimentos
sociais voltados para a garantia dos direitos previstos na nova lei, enfraquece-os como se a
existência abstrata da lei suplantasse a necessidade de sua existência.
A contradição existente entre a conquista do ECA, celebrada como fato mais positivo
da história da luta pelos direitos de crianças e adolescentes no Brasil, e a conseqüente crise
de nucleação é evidenciada pela modalidade epistêmica com que Júlia inicia sua fala acerca
da crise financeira: “Na verdade”, que nesse caso sugere tanto uma alta afinidade com o
conteúdo expresso quanto seu caráter inusitado. A questão da modalidade pode ser vista
como a questão de quanto as pessoas se comprometem quando fazem afirmações ou
perguntas, demandas ou ofertas. Afirmações e perguntas referem-se à troca de conhecimento (a
troca de informação de Halliday, 2004), demandas e ofertas referem-se à troca de atividade
(a troca de bens e serviços de Halliday, 2004), sendo que todas essas funções discursivas
relacionam-se à modalidade (Fairclough, 2003). Em trocas de conhecimento, a modalidade
é epistêmica, refere-se ao comprometimento com a ‘verdade’; em trocas de atividade, a
modalidade é deôntica, refere-se ao comprometimento com a obrigatoriedade/necessidade.30

30
Halliday explica que em proposições (trocas de informação), o significado dos pólos positivo e negativo é afirmar
e negar (‘isso é assim’/‘isso não é assim’), sendo que há dois tipos de possibilidades intermediárias: os graus de
probabilidade e os graus de freqüência. Os graus de probabilidade variam, por exemplo, entre ‘possivelmente’,
‘provavelmente’, ‘certamente’; ao passo que os graus de freqüência variam, por exemplo, entre ‘às vezes’,
‘normalmente’, ‘sempre’ (Halliday, 2004). Em propostas (trocas de ‘bens e serviços’), o significado dos pólos positivo
e negativo envolve prescrever e proscrever, respectivamente (‘faça isso’/‘não faça isso’), e há também dois tipos de
possibilidades intermediárias, nesse caso relacionados à função do discurso. Em uma ordem, os pontos
intermediários entre a prescrição e a proscrição representam graus de obrigatoriedade, variando como no continuum
permitido/esperado/ obrigado. Em uma oferta, os pontos intermediários representam graus de inclinação, como em
desejoso de/ ansioso por/determinado a. Para Halliday, a modalidade refere-se especificamente aos graus
intermediários entre os pólos positivo e negativo em proposições, ou seja, os graus de probabilidade
(possível/provável/certo) e freqüência (esporádico/usual/freqüente). Para o caso das escalas de obrigatoriedade
(obrigatório/permitido/proibido) e inclinação (desejoso/ansioso/determinado), Halliday (2004) sugere o termo
modulação. Ao retomar a teoria de Halliday acerca da modalidade e modulação, Fairclough (2003) sugere a categoria de
‘modalidade epistêmica’ para o caso das proposições (comprometimento com a verdade) e a categoria de
‘modalidade deôntica’ para o caso das propostas (comprometimento com a obrigatoriedade e a inclinação), e
incorpora as ‘modalidades categóricas’ para os casos polares, isto é, deixa de circunscrever a categoria de modalidade
apenas aos graus intermediários para incluir também os pólos (‘isso é assim’/‘isso não é assim’; ‘faça isso’/‘não faça
isso’). Sobre a recontextualização do conceito de modalidade em ADC, veja Resende & Ramalho (2006).
[155]
No caso da modalidade epistêmica, algumas expressões podem reforçar o
comprometimento com a verdade de uma proposição (como ‘certamente’, ‘na verdade’)
ou mitigar o grau de certeza (como ‘um tipo de’, ‘de certo modo’). Quando há um reforço
do comprometimento com a verdade de uma proposição, dizemos que há ‘alta afinidade’
do/a falante com sua proposição, que a verdade da proposição é assumida com alta
afinidade (há modalidade epistêmica alta). Nos casos em que, ao contrário, a verdade da
proposição é enfraquecida, dizemos que o/a falante utiliza estratégias de mitigação e
distanciamento que enfraquecem sua afinidade com a proposição (há modalidade
epistêmica baixa).
Ainda em termos de modalidade epistêmica no exemplo (3), nota-se a oposição
entre as estruturas de modalidade “muito forte” e “um pouco fragilizada”. Por um lado,
Júlia ressalta aspectos positivos do trabalho de nucleação anterior ao ECA (“tinha uma
base muito forte, no trabalho com os adolescentes”); por outro lado, mitiga aspectos
negativos desse trabalho quando de sua crise (“a gente ficou um pouco fragilizado no
trabalho de base”).
A utilização de marcadores de narrativa31 ressalta relações temporais/causais entre
os eventos narrados: “a crise financeira do Movimento veio com a mudança mesma de
paradigma”; “até então o Movimento atuava, tinha uma base muito forte”; “Quando a gente
aprova o ECA, a gente também tem de intervir em outras áreas”; “Então, assim, vários
militantes tiveram de assumir os conselhos”; “Então a gente ficou um pouco fragilizado”.
A recorrência dessas estruturas lingüísticas de marcação na narrativa evidencia a
vinculação do texto a uma lógica explanatória, pois as relações entre eventos
temporalmente organizados são explicitadas: o contraste entre a ‘lógica explanatória’ e a
‘lógica de aparências’ é que a primeira inclui uma elaboração das relações causais entre
eventos, práticas e estruturas, e a última não o faz, apenas lista determinadas ‘aparências’

31 “Em textos narrativos, o fluxo de eventos é construído como séries de episódios. Cada episódio é tipicamente

desenvolvido passo a passo como seqüências que são ligadas por meio de conectores temporais (...). A estratégia
dominante para a realização [textual] de uma seqüência de eventos é a relação de seqüência temporal. (...) A
integração de séries de eventos em sub-seqüências é um aspecto de narrativas em geral; isso inclui não só a narrativa
ficcional, mas também a narrativa biográfica, noticiosa e outros tipos de texto em que experiências passadas são
construídas” (Halliday, 2004: 363-5, acréscimo meu).
[156]
relacionadas a eventos sem referência às práticas e às estruturas que conformam esses
eventos (Fairclough, 2003).

Ainda sobre a crise financeira, Júlia continua:

(4) Viviane: Me fala um pouco sobre essa história da crise financeira…


Júlia: (...) A gente já tinha problemas financeiros exatamente por não ter quadro,
porque quem assumiu da militância não tinha esse preparo de lidar com uma
questão nacional. Uma coisa, eu não sei, é lidar com uma comissão no seu estado,
uma comissão estadual. E, você assumir, de repente, um espaço nacional, você
não dá conta de lidar com ele. E a coordenação nacional também não é liberada
para isso. São voluntários. Então, como é que você coordena um movimento
desses lá do Amazonas? É difícil e a estrutura que a gente criou do Movimento
ficou uma estrutura muito cara, inviável! Como é que você reúne um conselho de
27 pessoas, 27 meninos, de três em três meses? Não tinha dinheiro que agüentasse
isso. Aí, isso foi enfraquecendo a gente e... A falta de encontrar, de pensar.

Nesse trecho (4), cabe destacar a utilização de ‘a gente’ e ‘você’ para referência à
coletividade do Movimento. Ambas as formas de tratamento são utilizadas no excerto; a
utilização de uma ou outra se dá em distribuição complementar, como ilustra o Quadro
5.2, que deve ser lido no sentido das linhas, de modo a manter a seqüência do trecho:

A GENTE VOCÊ
A GENTE já tinha problemas financeiros (…)
E, VOCÊ assumir, de repente, um espaço nacional,
VOCÊ não dá conta de lidar com ele (…)
Então, como é que VOCÊ coordena um movimento
desses lá do Amazonas?
É difícil e a estrutura que A GENTE criou do
Movimento ficou uma estrutura muito cara (…)
Como é que VOCÊ reúne um conselho de 27
pessoas, 27 meninos, de três em três meses?
Aí, isso foi enfraquecendo A GENTE (…).

Quadro 5.2 – Distribuição complementar entre ‘a gente’ e ‘você’ no exemplo (4)

Júlia utiliza ‘a gente’ nos casos em que a utilização de ‘você’ não é possível – nos
casos em que o processo relacionado está expresso no passado, referindo-se a episódios
mais especificamente localizados na história do Movimento. Sempre que o processo em
questão está no presente ou que o verbo é expresso no infinitivo (denotando
[157]
atemporalidade), a seleção é por ‘você’. Além disso, os casos em que a representação se
faz com ‘a gente’ referem-se a descrições de estados, contextualizações das estruturas
sociais como resultados de decisões e eventos anteriores; os trechos com ‘você’, por outro
lado, referem-se ao que (não) se pode fazer dessas mesmas estruturas, aferem
(im)possibilidades de ação, denotam uma percepção de falta de espaço de manobra em
relação aos estados descritos.
As construções com ‘você’ carregam aspectos de indefinição, denotando um maior
distanciamento do fato narrado, uma vez que ‘a gente’ guarda relação com ‘nós’, primeira
pessoa, enquanto ‘você’ guarda relação com ‘tu’, segunda pessoa, o outro que não ‘eu’.
Mesmo que no caso desses usos não se trate propriamente de segunda pessoa, ‘você’
carrega aspetos de segunda pessoa, incluindo-me no evento. Isso poderia ser interpretado
como uma estratégia para trazer a interlocutora, no caso eu mesma, à empatia quando se
representam dificuldades, procurando justificá-las. A utilização desse ‘você’ indefinido,
que outrifica a experiência, somada às escolhas de tempo verbal também resulta em
reificação, no sentido de generalização de experiências particulares que são descoladas de
seu tempo específico tornando-se atemporais, abstratas.
Quando a estrutura narrativa não permite o uso de ‘você’, Júlia opta por ‘a gente’,
utilizando entretanto, sempre que possível, a forma que parece resultar no maior
distanciamento em relação aos eventos narrados. O que temos é uma tensão semiótica entre
as descrições de estados (o resultado de eventos passados, que constrói um quadro para a
ação presente) e as experiências de ação em espaço de manobra reduzido, que são
reificadas. Uma questão pertinente seria: o que, na natureza dos eventos representados,
poderia explicar isso? Parece-me plausível supor que as estruturas lingüísticas de
distanciamento tenham sido utilizadas, de forma até inconsciente, em decorrência da
natureza problemática dos eventos narrados, que dizem respeito a uma estruturação
organizacional considerada inviável. A inviabilidade dessa configuração nacional da
organização tem como conseqüência um isolamento entre as diversas comissões locais, o
que atomiza a ação, tornando-a menos efetiva (sobre isso, veja também a análise da Reunião
1, na Seção 8.1).

[158]
Essa relação entre a utilização de mecanismos de distanciamento e a representação
de questões problemáticas confirma-se no trecho seguinte: outras formas de mitigação são
observadas quando a educadora se refere a problemas de gestão de recurso público:

(5) Viviane: Aí teve a história do CGC...


Júlia: A história do CGC foi o seguinte. Uma comissão, no Mato Grosso do Sul, no
governo do PT – como era todo mundo militante, essa história, todo mundo acha
que... Aí, a comissão lá executou um projeto em parceria com o Estado, que era
de capacitação dos adolescentes, parecido com o [Programa] Primeiro Emprego.
E foi uma má gestão isso. Até por inexperiência e tudo. Houve um uso do
Movimento indevido. O Movimento estava a serviço do partido, de algumas
pessoas. Então, e aí, foi denunciado no Ministério Público. Tinha um grande
interesse de queimar aquilo lá tudo, a briga dos partidos. Aí o Movimento foi
denunciado. Desde então, a gente tem problema para aprovar projetos porque o
CGC é único. Então lá deu cheque sem fundo, depois não conseguiu pagar.

Nesse trecho em que trata um problema envolvendo má utilização de recurso


público por uma das comissões estaduais do MNMMR, Júlia utiliza uma série de estratégias
de distanciamento e indeterminação. Em primeiro lugar, observa-se que a educadora deixa
uma reflexão incompleta, não nos fornece uma informação que começa a formular e
desiste de concluir (“como era todo mundo militante, essa história, todo mundo acha
que…”) – trata-se de informação referente a um vínculo político partidário, negado pelo
Movimento, que se afirma uma organização sem relação com partidos políticos ou igrejas
(em outro trecho da entrevista, Júlia afirma: “O Movimento, ele é supra-partidário, não
tem nada com partido, nada com religião, é um ser neutro e coletivo”). Duas informações
ficam ‘no ar’: “era todo mundo militante” do Movimento ou do partido? E o que é que
“todo mundo acha”? Talvez a educadora tenha desistido de formular a reflexão que havia
iniciado, lembrando-se que estava sendo gravada e que a entrevista seria transcrita.
Deixemos isso de lado, então – se ela decidiu calar, não há motivo para continuar
especulando sobre suas razões. Há ainda outros aspectos a destacar nesse excerto.
Por três vezes Júlia utiliza, como estratégia de distanciamento, o dêitico ‘lá’,
partícula espacial que nesses casos congrega também valor intersubjetivo. A primeira
ocorrência é em referência à comissão estadual responsável pelo problema. Quando a
educadora se refere a “a comissão lá” marca a devida distância entre aquela instância do

[159]
MNMMR e ‘a Comissão Local do DF aqui’. Depois, quando o advérbio volta a ser utilizado
em “Tinha um grande interesse de queimar aquilo lá tudo, a briga dos partidos”, mais uma
vez o efeito é um distanciamento, por um lado da comissão em foco, por outro das
desavenças político-partidárias. Por fim, temos “Então lá deu cheque sem fundo”, outra
instância que marca a responsabilidade de uma dentre as comissões locais do Movimento,
salvaguardando tanto a Comissão Local do DF quanto a instituição em sua iniciativa
nacional.
Além da utilização do dêitico, não há economia de expressões clássicas de omissão
de agência e desresponsabilização – muitos dos usos ressaltados em teorias discursivas são
empregados: nominalização, apassivação, personificação, indeterminação. A
nominalização diz respeito à representação de processos como entidades, e para
Fairclough (2003: 143) a nominalização é “um recurso para a generalização, para a
abstração de eventos particulares e séries de eventos. Generalização e abstração podem
ofuscar ou suprimir a diferença, apagar a agência e com ela as responsabilidades e as
divisões sociais”. De acordo com meus dados, podemos acrescentar outro efeito do uso
recursivo de nominalizações em textos: a indefinição (veja exemplos a seguir). Além da
nominalização, os uso da voz passiva também pode omitir atores sociais envolvidos em
processos, quando o agente da passiva não é expresso (van Leeuwen, 1997). A
personificação de entidades não-humanas é outra forma de encobrir agência: nos casos
tratados aqui, a personificação do Movimento ou de suas comissões locais cria um ator
coletivo que encobre os atores individuais envolvidos nos processos narrados.
Nas nominalizações (“foi uma má gestão”, “houve um uso do Movimento indevido”,
“Tinha um grande interesse de queimar aquilo lá tudo”), apesar do uso de qualificadores em
todos os casos, nota-se a indefinição que resulta da recorrência dos grupos nominais pré-
modificados por artigos indefinidos: não se sabe por que a “gestão” foi “má”, que “uso
do Movimento” foi “indevido”, por que o “interesse em queimar aquilo lá tudo” era
“grande”, o que exatamente era “aquilo lá tudo”, ou quem foi responsável por cada um
desses episódios. Em pelo menos uma passagem o Movimento é personificado (“O
Movimento estava a serviço do partido”), resultando uma indefinição dos atores sociais por
trás disso. O mesmo acontece com a comissão estadual responsável por essa crise (“a

[160]
comissão lá executou um projeto”). A voz passiva aparece nas duas vezes em que faz
referência à denúncia sofrida pelo Movimento (“foi denunciado no Ministério Público”; “o
Movimento foi denunciado”), omitindo os autores da denúncia. Por fim, há indeterminação
pela utilização de pró-formas nominais (“todo mundo” e “algumas pessoas”) e por
ocultação dos atores de processos (“deu cheque sem fundo”, “não conseguiu pagar”).
Todas essas escolhas somadas conferem ao excerto um alto grau de indefinição: é
impossível recuperar o que exatamente aconteceu, como, por quê e quem foram as
pessoas envolvidas. Ao mesmo tempo em que conta, Júlia deixa de contar. Na seqüência,
a educadora volta-se para outro problema de gestão de recursos públicos, dessa vez
envolvendo a iniciativa nacional do MNMMR.
Depois de havido o problema da má gestão em Mato Grosso do Sul, mas antes
que os documentos do Movimento fossem parar no Tribunal de Contas da União, a
iniciativa nacional do MNMMR aprovou, na Comissão de Participação da Câmara dos
Deputados, um projeto vinculado ao orçamento público. Embora o projeto envolvesse
outras organizações parceiras, o recurso foi rubricado no nome do Movimento. Segundo
Júlia, tratava-se de quase um milhão de reais.
Com esse novo fôlego, “ressurgiu o Movimento no Brasil todo, na defesa de
direitos, na organização de meninos”. Entretanto, no encerramento do projeto, houve
novo escândalo envolvendo a má gestão de recursos públicos no Movimento:

(6) E teve um jogo político lá no meio deles. Aí eles começaram a fazer um jogo de
uma investigação de dizer que tinha gerido recurso, não-sei-o-quê. Aí, o quê?
Caíram em cima do Movimento. Aí, toda a prestação de contas, eles não
aprovaram. Fizeram uma auditoria bem legal dentro do Movimento. E como esse
coordenador que não sabia atender a auditoria, nem respondia em tempo hábil e
tudo. E a gente só ficou sabendo disso depois que tinha perdido. A gente já estava
denunciado mesmo no TCU. Aí foi o que inviabilizou. Já tinha a história do Mato
Grosso, mais essa. A gente ficou assim, bem inviabilizado, tentando ainda...

Seguindo o mesmo caminho da representação do evento envolvendo a comissão


estadual do Mato Grosso do Sul, na representação desse episódio envolvendo a iniciativa
nacional as coisas não ficam muito claras, como novamente se nota na utilização de
dêiticos: “E teve um jogo político lá no meio deles”. Onde? Quem? Há uma alta

[161]
densidade de uso de pronomes de terceira pessoa do plural com indeterminação do
sujeito. A utilização, duas vezes, da palavra ‘jogo’ na representação (“jogo político”, “jogo
de uma investigação”) parece funcionar para a deslegitimação, por um lado, dos fatos e,
por outro, da fiscalização dos fatos: questiona-se implicitamente sua credibilidade, numa
tentativa de mitigação para a preservação da integridade do Movimento.
Não é apenas a seleção por ‘jogo de investigação’ que deslegitima a fiscalização: o
qualificador desse “jogo de investigação” é “de dizer que tinha gerido [mal o] recurso”, em
que o processo verbal ‘dizer’ – seguido de projeção introduzida por ‘que’ – é utilizado de
modo a levantar incertezas sobre a factualidade ou não do conteúdo da denúncia, pondo
em dúvida a própria ocorrência da má gestão. A narrativa contém também índices de
indeterminação, como “não-sei-o-quê”, que por um lado torna os fatos incertos e por
outro mitiga sua importância.
O texto opera a construção de um papel, para o Movimento, de vítima de uma
espécie de perseguição política nesse episódio, por meio das orações “Caíram em cima
do Movimento” e “Fizeram uma auditoria bem legal dentro do Movimento”, que
sugerem a execução de uma fiscalização acima do esperado. Por fim, há uma
responsabilização individual do coordenador nacional em atividade à época da
denúncia, não por agir de má fé, mas por incompetência administrativa (“não sabia
atender a auditoria nem respondia em tempo hábil e tudo”).
O objetivo desta análise não é julgar a veracidade da história relatada, não é
comparar o que me conta Júlia com uma realidade factual – a qual, diga-se de passagem,
eu não experienciei e não posso conhecer senão por meio de narrativas alheias –, mas
investigar os modos como os eventos são representados. Não se trata de uma
investigação sobre os eventos em si, mas sobre a representação dos eventos envolvidos
com a crise do Movimento32. E a indeterminação é uma dentre as diversas escolhas
possíveis para se representar a experiência.

32Nesse sentido, Hammersley (2005: 12) ressalta que “as perspectivas dos/as participantes não devem ser tomadas
como verdadeiras ou falsas, mas como constitutivas – elas mesmas produzindo uma entre diversas versões possíveis
de eventos”.
[162]
Entretanto, considerando as práticas sociais como abertas e complexas,
organizadas em torno de momentos que se articulam e são irredutíveis um ao outro
(Chouliaraki & Fairclough, 1999), não nos podemos furtar a buscar relações entre as
representações discursivas dos eventos, textualmente estruturadas, e as práticas
observadas em campo. Em verdade, os procedimentos observacionais são utilizados
como um recurso capaz de prover análises discursivas mais acuradas, que nos permitem
atentar para as relações entre os momentos discursivos e não-discursivos das práticas.
Embora eu não tenha conhecido o Movimento antes desses episódios narrados
por Júlia, quando passei a frequentá-lo, em abril de 2005, encontrei-o sem dúvida
fragilizado, desestabilizado, em crise financeira que se desdobrava em problemas de
diversas naturezas – administrativa, pedagógica, de militância. Além disso, os escândalos
envolvendo má utilização de recursos públicos, para além da crise financeira pela
resultante dificuldade em aprovar novos projetos, trouxe também um mal-estar e uma
crise de legitimação. Isso pode explicar a utilização de elementos textuais de
indeterminação, o tom lacônico do recorte: as escolhas discursivas para a representação
dos eventos encontram aqui um vínculo com as práticas sociais observadas, nos termos
do parágrafo anterior.
O que observei nesse período de pesquisa confirma conseqüências dos eventos
representados por Júlia. E essa conjuntura foi determinante de minhas (im)possibilidades
na pesquisa, dos sucessivos redesenhos a que precisei submeter minha investigação.

5.2 A entrevista com Vera

Meu objetivo com esta análise do recorte da entrevista com Vera é investigar os
modos de representação da crise do MNMMR/DF pela educadora, especialmente no que
tange à representação de suas causas e conseqüências para a atuação da organização.
Salta aos olhos na entrevista a alta densidade de relações causais explicitamente
marcadas por ‘porque’. Concentro minha atenção em alguns dos trechos em que esse
elemento textual aparece em referência a eventos relacionados aos problemas enfrentados

[163]
pelo Movimento, trabalhando especificamente sobre excertos tangentes à cooperativa de
catadores/as de material reciclável, aos núcleos de base e à crise propriamente dita. Os
excertos são apresentados na ordem em que figuram na entrevista.
A análise das relações causais na amostra discursiva em foco resulta de um longo
processo. Como sabemos, pesquisas que lidam com dados etnográficos são trabalhosas
pela extensão dos dados gerados, o que exige métodos para organização dos dados. Em
primeiro lugar, fiz a transcrição da gravação da entrevista e, em seguida, uma leitura
cuidadosa das páginas resultantes da transcrição. O próximo passo foi a seleção de
recortes do texto com base em temas específicos, o que reduziu o material à metade, e
nova leitura acurada dos excertos. Foi nessa etapa do trabalho que percebi a alta
densidade do marcador causal ‘porque’ nos trechos selecionados: em nove páginas de
recortes da transcrição havia 60 ocorrências do marcador. Foi então que decidi trabalhar
com essa categoria analítica na investigação das representações da ‘crise do Movimento’
por Vera, uma vez que a análise das relações de causa e efeito poderia ser esclarecedora
dos eventos por ela considerados determinantes dos problemas enfrentados pela
organização.
Ao tratar as relações estabelecidas entre orações pelos mecanismos de coesão
textual, Halliday distingue três tipos de relações lógico-semânticas de expansão entre
orações: elaboração, extensão e realce (Halliday, 2004). Na elaboração, a oração que
expande o significado expresso em outra provê uma maior caracterização da informação
dada: reafirma, esclarece, refina, exemplifica, comenta. Na extensão, uma oração expande
o significado de outra introduzindo algo novo por meio de adição, deslocamento ou
alternativa. No realce, uma oração destaca o significado de outra, monta-lhe um cenário
qualificando-a com característica circunstancial em referência a tempo, espaço, modo,
causa ou condição.
Uma vez que o foco aqui são relações causais, interessam-me os casos de realce.
Segundo Halliday (2004), quando as relações causais focalizam a razão podem ser
construídas no sentido ‘causa^efeito’ ou no sentido ‘efeito^causa’, dependendo do

[164]
elemento tematizado.33 As relações de realce do tipo ‘causa^efeito’ são freqüentemente
marcadas por ‘então’ (causa > então > efeito), e nas relações do tipo ‘efeito^causa’ o
marcador mais freqüente é o ‘porque’ (efeito > porque > causa). Essa descrição dos
modos de texturização de relações causais faz muito sentido como abstração
descontextualizada, mas em interações o estabelecimento das relações causais opera de
maneiras menos claras devido às rupturas e reformulações, como os dados que analiso a
seguir sinalizam.
Não pretendo proceder a uma caracterização formal das relações causais, mas uma
análise representacional, isto é, interessa-me o modo como essas relações representam
simbolicamente os eventos sociais focalizados por Vera. Nesse sentido, em algumas
representações é possível utilizar a análise das relações causais para tornar visíveis os
modos de racionalização de eventos e práticas narrados, para investigar os modos como
se responde, direta ou indiretamente, à questão de ‘por que fizemos isso e por que o
fizemos dessa maneira’. Explorando os modos como se respondem essas questões em
textos que objetivam racionalizar práticas e eventos, van Leeuwen (2007: 100) distingue a
racionalização instrumental da racionalização teórica: “a racionalidade instrumental
legitima práticas por referência a seus objetivos, usos e efeitos; a racionalidade teórica
legitima práticas por referência à ordem natural das coisas”. Essas ponderações de van
Leeuwen sobre a racionalização são úteis à análise dos dados da entrevista com Vera: a
alta densidade de relações causais no recorte indica uma reflexão direcionada à
racionalização, ao estabelecimento de continuidades e coerências entre práticas e eventos
contextualmente organizados, tanto em termos teóricos quanto instrumentais.
Seguindo a seqüência da interação, em primeiro lugar abordo os exemplos
referentes à cooperativa; em seguida, focalizo aqueles referentes aos núcleos de base e,
por fim, analiso os excertos diretamente referentes à crise da organização. Vejamos o
exemplo (7):

33 A estrutura tema-rema diz respeito à organização da oração em termos da metafunção textual (ver Seção 2.3). “O

tema é o elemento que serve de ponto de partida da mensagem; é o que localiza e orienta a oração (...). A
continuação da mensagem, a parte em que o tema é desenvolvido, é chamada rema. Como estrutura da mensagem,
então, a oração consiste de um tema acompanhado de um rema” (Halliday, 2004: 64-5).
[165]
(7) Viviane: Então, você estava falando que estava desistindo… me conta isso.
Vera: (…) E a gente ficou com um número muito reduzido – quer dizer,
reduzidíssimo – de educador, com um tanto de coisa para fazer porque a gente
tem o... um dos projetos que o Movimento, nos últimos anos, teve, de grande
porte, foi esse projeto com os catadores.

efeito ^ causa [ruptura] ^ causa reformulada [REALCE (causa)]


EFEITO CAUSA TIPO DE RELAÇÃO
Número reduzido de educadores/as Trabalho com a cooperativa Implícita (ruptura)
com muito trabalho (reformulada)

Quadro 5.3 – Relação desestruturação da nucleação/organização da cooperativa

Ao estabelecer relação entre a desestruturação da nucleação no Movimento e a


organização da cooperativa, Vera opera uma ruptura na relação de causa, tornando-a
menos explícita. Ela não completa a oração introduzida por ‘porque’; opera uma
segmentação na estrutura iniciando uma nova oração. Embora o conector causal esteja
explícito, a relação causal permanece implícita. O efeito dessa ruptura na relação causal é
uma mitigação do trabalho com a cooperativa como causa da desestruturação dos
núcleos. Importa lembrar que Vera é a educadora do Movimento mais diretamente
relacionada com o trabalho com os/as catadores/as; era ela que atuava diretamente junto
a esse grupo, estando, nessa época, mais próxima da cooperativa que dos núcleos de base.
No excerto (8), ainda na seqüência do início da entrevista, a educadora ocupa-se
em justificar o início do trabalho com os/as catadores/as no âmbito de um movimento
social dedicado aos direitos sociais de crianças e adolescentes:

(8) Não tinha condições de incluir os meninos numa invasão. A gente tinha que
trabalhar com os pais, organizar os pais no trabalho porque a gente também viu
na atividade que o governo derrubava toda vez essas pessoas, as casas que elas
moravam, queimava o material que eles trabalhavam, aonde dava alimentação para
as crianças e davam para eles se virarem.

efeito ^ causa [REALCE (causa)]


EFEITO CAUSA TIPO DE RELAÇÃO
Necessidade de organizar os/as Manutenção da subsistência das Explícita
adultos/as no trabalho famílias (incluídas as crianças)

Quadro 5.4 – Relação organização da cooperativa/subsistência das famílias

[166]
Vera justifica a atuação do Movimento junto ao grupo de catadores/as pela
condição das crianças. A relação causal aqui é explícita, o que pode ser explicado pelo fato
de essa atuação ter sido muito criticada – sobretudo por jovens membros do Movimento
que se sentiam prejudicados/as pela desestruturação dos núcleos – como perda de foco
do Movimento, cujo escopo são os direitos de crianças e adolescentes (sobre isso, ver
também o exemplo (12)). Esse tema também foi debatido no Grupo Focal 2:

Fernanda: Aí, foi aparecendo o pessoal dos catadores de papel, ficamos de escanteio.
(…) O problema é que o Movimento também esqueceu da gente, quer saber por quê?
(…) quando entrou a questão dos catadores de papel, o Movimento, ó, esqueceu da
gente. Depois o Movimento só ficou concentrado nos catadores de papel.
(…)
Maria: E aí, o Movimento perdeu o seu foco porque, ao mesmo tempo para ele acabar
com o trabalho infantil dentro da cooperativa, ele tinha que montar a cooperativa
junto com os catadores. Mostrar para eles que a cooperativa valia a pena, que não-sei-
o-quê. Então foi aí que o Movimento perdeu, no meu ponto de vista, o seu foco de
trabalho. Foi quando ele se preocupou muito com a questão de organizar os catadores
e perdeu o seu foco com o trabalho de base, com o trabalho da rua.

Nesse encontro de grupo focal, Fernanda manteve uma atitude de crítica em


relação ao Movimento, e essa sua atitude deu o tom do debate. No trecho destacado, ela
acusa a dedicação à organização da cooperativa como fonte de abandono do trabalho de
base na nucleação (“ficamos de escanteio”, “o Movimento também esqueceu da gente”).
Em face das críticas de Fernanda, Maria assumiu a tarefa de defender o Movimento. Com
relação à cooperativa, entretanto, Maria admite ter representado uma ‘perda de foco’ no
Movimento.
Ainda assim, Maria lança mão do mesmo discurso que caracteriza a justificativa de
Vera: a defesa dos direitos das crianças (em situação de trabalho infantil na catação de
material reciclável). O que se nota na fala de Maria nesse grupo focal é uma interiorização
de discursos próprios da coordenação do Movimento – a educadora também reconhece o
trabalho com a cooperativa como perda de foco, em outro trecho em que ela enuncia: “a
gente saiu um pouco do objetivo central que era a nucleação. Mas, naquela época
também, a gente só tinha projeto aprovado para os catadores de papel”. Nesse caso, outra
justificativa aparece para esse desvio do “objetivo central”: o financiamento.

[167]
No caso do exemplo (8), o significado da justificativa proposta é fortalecido pela
modalidade deôntica de obrigatoriedade expressa em dois trechos do excerto (“não tinha
condições”34 e “tinha que trabalhar com os pais”; sobre modalidade, ver Seção 5.1). Assim, a
necessidade de garantir os direitos de crianças das famílias de catadores/as, que se
encontravam em situação de trabalho infantil e fora da escola, além da garantia de sua
subsistência, justifica, nessa relação causal, o início da organização de pais/mães no
trabalho.
A análise das relações estabelecidas por Vera entre a organização dos/as
catadores/as e os problemas de nucleação do Movimento deixa clara uma percepção de
que a dedicação a esse trabalho teve, para ela, efeito na desestruturação do trabalho de
nucleação, embora a organização da cooperativa seja representada como uma ação
necessária e justificável, no âmbito de um movimento voltado para a garantia dos direitos
de crianças e adolescentes, pela existência de crianças em situação de vulnerabilidade no
grupo de catadores/as. A representação de Vera, por um lado, mitiga o trabalho com
os/as catadores como fonte de crise – por meio da ruptura na relação causal, que se torna
implícita no exemplo (7) – e, por outro lado, ressalta a importância desse trabalho – pela
utilização da relação causal explícita e de modalidades deônticas no exemplo (8). A
racionalidade que constrói essa justificativa em torno da atuação junto ao grupo de
catadores/as é instrumental, está voltada para o efeito esperado: “incluir os meninos”.
Nos excertos referentes aos núcleos de base, Vera ocupa-se em caracterizar: (i) a
relação entre projetos de mobilização/organização comunitária e agências de
financiamento; (ii) a necessidade de recursos financeiros para a realização desse trabalho;
(iii) os eventos que levaram à manutenção dos núcleos por jovens protagonistas do
MNMMR/DF, sem a coordenação de educadores/as; (iv) alguns dos problemas que isso
acarretou. Por meio da análise das relações causais estabelecidadas nos trechos, é possível
perceber os modos como Vera representa esses eventos. Vejamos:

34Embora aqui não apareça um elemento modal clássico, uma vez que o verbo ‘ter’ é utilizado na acepção de ‘haver’
e não no sentido de obrigatoriedade (como em “tinha que” no exemplo seguinte), considero a ocorrência de
modalidade deôntica pelo significado expresso: “não tinha condições” é paralelo a ‘não era possível’.
[168]
(9) Viviane: Antes disso, como é que eram os núcleos?
[…]
Viviane: Aí, depois, quando não mais as…
Vera: Quando o Sécours Catholique deixou de financiar o projeto, a organização de
meninos, que é um projeto caro – ele demora a dar resultado porque não é um
resultado a pequeno prazo. Ele é um resultado a longo prazo, ele é um processo
de participação que os meninos têm voz, de protagonismo, participação mais
política, de mobilização.

efeito ^ causa [IMPLÍCITO/ REALCE (causa)]/ efeito ^ causa [REALCE (causa)]/ REELABORAÇÃO/ EXTENSÃO]
EFEITO CAUSA TIPO DE RELAÇÃO
1. O Sécours Catholique deixou de financiar É um projeto caro Implícita (inconcluso)
o projeto de organização
2. A organização é um projeto caro que Não é um projeto em pequeno Explícita
demora a dar resultados prazo, é um projeto de
protagonismo e mobilização

Quadro 5.5 – Relação financiamento/natureza da nuclação

A principal relação estabelecida nesse trecho é implícita: aquela entre o


encerramento do financiamento pela agência Sécours Catholique e o fato de a organização
de meninos e meninas ser um projeto caro que apresenta poucos resultados em curto
prazo (ver, a seguir, a discussão do próximo exemplo). A relação causal explícita no
excerto é redundante: “demora a dar resultado porque não é um resultado a pequeno
prazo”.
O aspecto de longo prazo dos resultados é elaborado três vezes no excerto, o que
denota sua relevância para a questão: “ele demora a dar resultado”, “não é um resultado a
pequeno prazo” e “é um resultado a longo prazo”. Isso é explicado na enumeração das
características do trabalho de organização: “é um processo de participação que os meninos
têm voz, de protagonismo, participação mais política, de mobilização”. Esse tópico também
é focalizado no exemplo (10), seqüência imediata ao trecho destacado em (9):

(10) Então, é um projeto caro, que dá poucos frutos e que a gente agora que está
recebendo, os meninos assimilam mais na juventude. Porque o trabalho que o
Movimento tem, ele tem o lúdico-pedagógico, mas, de verdade, é fazer com que
os meninos se movimentem na cidade, em Brasília, no país para mobilizar a
questão dos direitos e formar políticas, não deixar passar tantos projetos que
inviabilizam os direitos e principalmente [que causem modificações] na lei do
Estatuto da Criança e do Adolescente.

[169]
efeito + efeito + efeito ^ causa ^ finalidade [REALCE (causa + finalidade)]
EFEITO CAUSA FINALIDADE TIPO DE RELAÇÃO
A organização é um O trabalho do Movimento Mobilizar a questão dos Explícita
projeto caro é fazer com que os/as direitos
+ que dá poucos frutos meninos/as movimentem-
+ que é mais assimilado na se [organizem-se,
juventude articulem-se]

Quadro 5.6 – Relação natureza do projeto/mobilização

Nesse trecho, Vera explica, com base em uma racionalidade instrumental voltada
para os objetivos (“é fazer com que os meninos se movimentem na cidade, em Brasília,
no país”) e para os efeitos (“para mobilizar a questão dos direitos e formar políticas”), por
que a organização de meninos e meninas dá poucos frutos em curto prazo: trata-se de
trabalho de mobilização para a ação política que é mais assimilado na juventude. Embora
esse trabalho seja feito com base em oficinas lúdico-pedagógicas (oficinas de teatro,
esporte e música, por exemplo), o objetivo não é a assistência, mas o estímulo à ação
protagonista – isso fica claro pela modalidade epistêmica em “de verdade”. Se o objetivo
fosse a assistência, os resultados seriam mais visíveis e quantificáveis e, talvez (como o
excerto (10), quando pensado em articulação com o exemplo (9), pode sugerir), de maior
interesse para agências financiadoras. Essa relação entre a dificuldade de financiamento e
a natureza do trabalho de nucleação, entretanto, não é texturizada claramente.
Temos aqui duas diferentes racionalizações teóricas que se imbricam na
legitimação do ‘modo como as coisas são’: a natureza do trabalho de nucleação, que é
tomada como dada, não sendo aberta à discussão, legitima a falta de interesse das agências
financiadoras, que também não é questionada: discursos legitimadores, especificamente
acerca do corte entre resultados quantitativos e qualitativos do trabalho social no que se
refere ao financiamento de projetos, silenciam Vera.
Durante minha pesquisa de campo, muitas vezes ouvi formulações acerca da
dificuldade em aprovar projetos para organização política em comparação a projetos que
apresentem viés assistencialista, como creche ou reforço escolar. Isso se relaciona, creio, à
tendência de a sociedade civil, sob a forma de ONGs, substituir o Estado em parte de suas
funções sociais, o que Bourdieu conceitua como ‘demissão do Estado’ (Bourdieu, 1997).
Em sua tese de doutoramento, Magda Lúcio (2007) argumenta que o financiamento

[170]
internacional de projetos sociais no Brasil tem pouco impacto sobre a garantia de direitos,
sendo muito mais voltado para a prestação de serviços de assistência. Isso está de acordo
com as representações de membros do Movimento que registrei em meu diário de campo:

Elas falaram da lei de incentivo fiscal para empresas que financiam esse tipo de projeto
para a infância e a juventude. As empresas podem fazer as doações ‘rubricadas’, quer
dizer, destinadas já de antemão a alguma instituição em particular... elas me explicaram
que desde que passou a ser assim (antes o fundo tinha autonomia sobre a destinação
dos recursos), as instituições assistencialistas passaram a receber muito mais recurso
que as instituições de articulação e conscientização de direitos! (Nota registrada em 18
de novembro de 2005).

No exemplo (11), a seguir, referente ainda à mesma seqüência da entrevista, Vera


volta a enfatizar o problema do desinteresse de agências financiadoras no trabalho de
nucleação, dessa vez em relação à visibilidade da organização de meninos e meninas:

(11) Então, eu acho que, como esse resultado é demorado, as agências financiadoras
também... A gente, por exemplo, não ocupa terra. A gente não tem essa
mobilização maior, até porque é diferente a luta dos meninos, é mais no nível de
congresso, de buscar as políticas públicas, de propor.

causa ^ efeito [IMPLÍCITO/ REALCE (causa)] efeito ^ causa [REALCE (causa)]


CAUSA EFEITO TIPO DE RELAÇÃO
1. O resultado é demorado As agências financiadoras também... Implícita (ruptura)
(RUPTURA// deixam de financiar o
projeto)//
EFEITO CAUSA TIPO DE RELAÇÃO
2. O Movimento não tem essa A luta do Movimento é mais política Explícita
mobilização maior (como o MST por
exemplo)

Quadro 5.7 – Relação natureza da nuclação/financiamento

Mais uma vez a relação causal que considero mais importante no trecho é deixada
implícita por ruptura da relação que começa a ser estabelecida e é silenciada: aquela que
vincula a demora dos resultados com o financiamento de projetos de organização. Assim
como no exemplo (9), o que se oculta é a relação entre o sucesso na aprovação de
projetos e a possibilidade de apresentar resultados quantificáveis e/ou salientes. A
utilização de rupturas que tornam as estruturas causais implícitas em ambos os casos em

[171]
que traça essa relação pode sugerir que Vera a considere ‘indizível’, provavelmente pela
evidente relação de poder existente entre movimentos sociais e as agências financiadoras
de que dependem para desenvolver seu trabalho. Em seguida a educadora estabelece
relação causal entre a pouca visibilidade da ação do Movimento e sua atuação mais
política, visto que a mobilização do MNMMR/DF acontece nas instâncias políticas do
Congresso; junto a frentes parlamentares que se posicionam contra os projetos de
rebaixamento da maioridade penal e pela exigência do cumprimento do Estatuto da
Criança e do Adolescente; junto aos Conselhos Tutelares. A falta de visibilidade dessas
ações volta a ser formulada no exemplo (15); antes, porém, Vera atenta para o
encerramento do projeto financiado pelo Sécours Catholique e suas conseqüências para a
atividade de nucleação. Vejamos o exemplo (12):

(12) Viviane: Mas os núcleos funcionaram por um tempo com as próprias meninas.
Vera: (…) Para não perder esse trabalho de núcleo, o quê que o Movimento fez,
pensou-se... Porque os meninos, os jovens começaram também a cobrar do
Movimento “Ah, agora vocês só estão com catador, vocês não dão apoio. E o
Movimento, como é que está, não-sei-o-quê”. Aí a gente: “Tá, vocês tocam isso?”.
“Tocamos”. “Então tá”. Então, os jovens tiveram uma bolsa para continuar
organizando esses meninos.

finalidade ^ efeito causa ^ efeito [REALCE (finalidade + causa)]


FINALIDADE EFEITO CAUSA EFEITO TIPO DE RELAÇÃO
Para não perder esse pensou-se... Os/as jovens Os/as jovens 1. Implícito
trabalho [de (inconcluso) começaram a cobrar tiveram uma bolsa (inconcluso)
nucleação, quando para continuar o
do encerramento do trabalho nos núcleos 2. Explícito
projeto de Reformulação
organização do
Sécours Catholique]

1 2

Quadro 5.8 – Relação encerramento do financiamento/trabalho das jovens como educadoras

Há uma ruptura textual marcada pela oração inconclusa (“o quê que o Movimento
fez, pensou-se...”). Em vez de formular na oração a solução encontrada para “não perder
esse trabalho”, Vera recorre ao discurso relatado (em discurso direto) que substitui a
narrativa dos fatos que levaram à manutenção dos núcleos por jovens do Movimento.
[172]
Assim fazendo, constrói, por meio da intertextualidade, um quadro em que essa solução
aparece como uma construção conjunta de educadores/as e jovens do Movimento, ao
contrário do quadro que seria construído por meio da conclusão da oração interrompida
(“o quê que o Movimento fez”), que atribuiria a solução encontrada apenas ao Movimento,
entendido em sua coordenação.
Há, portanto, tanto uma mitigação da responsabilidade da coordenação e da
equipe de educadoras pela solução aventada – pela ruptura na estrutura causal e pelo
discurso relatado – quanto uma justificativa desse procedimento – pela finalidade expressa
ao início do excerto. Nos termos de van Leeuwen (2007: 102), há uma “racionalização
instrumental com orientação para o objetivo”, ou seja, Vera legitima a decisão tomada por
meio da referência a seus objetivos, enfatizando as motivações da decisão tomada, mais
que seus efeitos (“para não perder esse trabalho de núcleo”). Para Fairclough (2003),
relações semânticas de propósito explicitamente marcadas por conectivos (como ‘para’ no
início do excerto) podem denunciar estratégias de legitimação pela especificação clara de
motivações.
No relato da fala de jovens do Movimento, Vera também ressalta, além do desejo
desses/as jovens na manutenção da nucleação, a desconfiança que nutriam em relação à
legitimidade do trabalho com a cooperativa no âmbito do Movimento, o que meu
trabalho de campo confirma, notadamente o Grupo Focal 2 (veja comentário ao
exemplo (8)).
Nos próximos exemplos, Vera volta-se para os problemas resultantes dessa
solução encontrada para a manutenção dos núcleos, especificamente para as causas que
impediram a coordenação do trabalho das jovens. O exemplo (13), a seguir, é a seqüência
imediata ao trecho destacado no exemplo (12).

(13) Mas, o que acontece: o Movimento, frente a esse problema de coordenação a nível
nacional e de grana, não conseguiu coordenar esses núcleos. De você poder
mesmo… coordenar e trazer os meninos para a metodologia. Por quê? Além da
gente tá envolvido nas cooperativas, você não tinha financiamento, nem grana,
nem gente para coordenar isso. Então a Júlia fazia um pouco para não morrer esse
trabalho com os meninos. Com muita dificuldade porque os meninos só tinham a
bolsa, um pouquinho de lanche e a boa vontade. Porque nem gente para ajudar
eles a se articularem, educador, a gente não podia mesmo. Porque estava todo
[173]
mundo envolvido nesse grande projeto, até porque a gente tinha que dar o
resultado e era um projeto escrito, tinha resultado [previsto, a ser atingido].

causa ^ efeito ^ causa + causa + causa ^ efeito ^ causa_efeito ^ causa_efeito ^ causa_efeito ^ causa [REALCE (causa)]
CAUSA EFEITO CAUSA EFEITO CAUSA
Problemas O Excesso de A Júlia Os/as
de Movimento trabalho na tinha meninos/as
coordenação não cooperativa dificuldade só tinham
e financeiros conseguiu + falta de em manter bolsa,
coordenar financiamento os núcleos lanche e a
Causa passa a efeito
os núcleos + falta de boa
pessoal para vontade
coordenar EFEITO CAUSA
Não havia
gente para
ajudá-los Causa passa a efeito
nos
núcleos
EFEITO CAUSA
Estavam Causa
todos/as passa a
envolvidos/as efeito
com a
cooperativa
EFEITO CAUSA
Havia um
projeto
escrito
com
resultados
a serem
atingidos

Quadro 5.9 – Relações causa/efeito/causa no exemplo (13)

Na primeira parte do exemplo, Vera identifica três causas para a ausência de um


trabalho de coordenação dos núcleos. Segundo essa representação, a continuidade do
trabalho de nucleação sob a organização das jovens não contou com a coordenação da
equipe de educadoras em decorrência do problema nacional de coordenação, da falta de
recursos para organização de meninos e meninas e do excesso de trabalho na cooperativa.
Essas diversas causas alinhadas na representação servem para justificar tomadas de
decisão que acarretaram a desestruturação dos núcleos de base: Vera enumera lado a lado
uma série de fatores que, juntos, tornam coerentes os eventos posteriores.
A representação da impossibilidade de proceder de outra forma também tem efeito
na justificação dos eventos, e é fortalecida pela modalidade deôntica de impossibilidade e

[174]
pela modalidade epistêmica de afinidade: “a gente não podia mesmo”. Como no exemplo
anterior, aqui também há racionalização com orientação para o objetivo, pois Vera
ressalta novamente que essa decisão foi tomada “para não morrer esse trabalho com os
meninos”.
A partir daí, há uma interessante recursividade entre causas e efeitos. As causas
passam a efeitos, para serem em seguida relacionadas a outras causas, que passam a efeitos
sucessivamente. Esse mecanismo é ilustrado na Figura 5.1, a seguir:

“A Júlia
tinha os meninos
dificuldade PORQUE só tinham a nem gente
em manter bolsa, um PORQUE para ajudar a gente
pouquinho eles a se estava todo tinha que
os núcleos PORQUE
de lanche e articularem, mundo dar o
envolvido ATÉ
a boa educador, a resultado e
PORQUE
vontade. gente não nesse era um
podia grande projeto
mesmo. projeto, escrito,
tinha
resultado”
EFEITO CAUSA

EFEITO CAUSA

EFEITO CAUSA

EFEITO CAUSA

Figura 5.1 – Recursividade entre causas e efeitos no exemplo (13)

Esse sistema de relações de causa e efeito sobrepostas também serve para justificar
o ‘abandono’ dos núcleos de base pela coordenação do Movimento, fato que mereceu
críticas por parte das próprias jovens que assumiram os núcleos quando do encerramento
do projeto de nucleação (como vimos na discussão do exemplo (8); ver também Capítulos
6 e 7). A recursividade entre as relações causais nesse trecho tem como resultado, assim, a
construção de uma linha de raciocínio que sustenta a solução para a manutenção dos
núcleos pelas jovens como uma decisão inevitável.
Por outro lado, essa necessidade de formular sucessivas justificativas em um
sistema de recursividade denota um mal-estar relativo à questão, a necessidade de
construir coerência para a história narrada. A recursividade entre causas e efeitos, fazendo

[175]
com que causas de situações narradas anteriormente se tornem efeitos das seguintes,
constrói uma lógica de linearidade, em que cada evento justifica o seguinte, sugerindo um
quadro de pouca ou nenhuma possibilidade de se fazerem escolhas diferentes.
Passo agora a focalizar os dois excertos selecionados em que Vera fala
especificamente da crise do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua no
Distrito Federal e suas causas. Os trechos remetem à natureza do trabalho como
educadora nessa organização, à necessidade de divulgação dos trabalhos realizados para a
continuidade da captação de recursos e ao interesse crescente das agências financiadoras
por outros temas, como o meio ambiente, o que dificulta a aprovação de projetos na área
de direitos de crianças e adolescentes, segundo Vera. Vejamos cada um dos excertos.

(14) (…) Mas, ao mesmo tempo, com essa fragilidade do Movimento, a gente ficou
trabalhando com pouco recurso e dando sangue porque é mais militância do que
emprego. Tanto é que alguns educadores vieram e foram embora: “Eu não
agüento!”. Porque, nessa conjuntura que eu te falei, tem uma época que... Você
tem agora que a questão do meio ambiente está em alta. Então, se volta os
financiamentos estrangeiros mais para isso.

causa ^ efeito ^ causa ^ efeito ^ causa (inconclusa) RUPTURA causa ^ efeito [REALCE (causa)]
CAUSA EFEITO TIPO DE RELAÇÃO
1. A fragilidade do Movimento A equipe foi obrigada a trabalhar Explícita
muito e com pouco recurso
2. É mais militância que emprego Alguns/mas educadores/as desistem Explícita
(não agüentam)
3. Nessa conjuntura, tem época (Omitido) Implícita (ruptura)
que... [inconcluso]
4. A questão do meio ambiente está Os financiamentos voltam-se para o Explícita
em alta meio ambiente

Quadro 5.10 – Relações causa/efeito no exemplo (14)

Vera formula, nesse exemplo (14), a precarização das condições de trabalho dos/as
educadores/as do Movimento em decorrência da “fragilidade do Movimento” em face
dos problemas de âmbito nacional e do encerramento do projeto para organização de
meninos e meninas. A relação causal entre a crise e as condições de trabalho é formulada
explicitamente. Entretanto, quando passa a desenvolver a relação entre essa fragilidade e a
captação de recursos, em termos da conjuntura de interesse por outros temas de

[176]
mobilização social, notadamente os problemas ambientais, Vera opera uma ruptura na
relação causal iniciada em “Porque, nessa conjuntura que eu te falei, tem uma época
que...”. A relação entre a crescente preocupação ambiental e o fluxo dos financiamentos é
reformulada no último trecho do excerto.
Nesse caso, a racionalização que explica a crise de financiamento é teórica e não
instrumental: Vera fundamenta a racionalização acerca do fluxo de financiamentos não
em uma “justificação moral da ação ou em seus propósitos e efeitos”, mas em “algum
tipo de verdade sobre ‘o modo como as coisas são’” (van Leeuwen, 2007: 103); não há
uma reflexão acerca das causas/conseqüências desse estado de coisas, que é simplesmente
afirmado como verdade.
Nota-se nesse exemplo (14) que as causas representadas para a ‘fragilidade’ e a
crise de financiamento são extrínsecas ao Movimento, independentes de sua ação
concreta. No exemplo (15) o foco se inverte:

(15) (…) A gente não deu conta de ter uma pessoa, um secretário executivo que
mostrasse esse trabalho [de divulgação das atividades do Movimento], e que a
gente conseguisse mais financiamento, que o Movimento entrasse nisso. Porque a
gente é o pessoal de base. Sabe pedreiro? Peão de obra? Aí dinheiro está lá e tal,
mas a gente é que faz. E a gente não dá conta de promover esse trabalho.
Também a gente não pensa em promoção do trabalho. Mas é necessário, senão o
Movimento quase morreu. Ele quase morreu com esse trabalho. Porque você tem
que promover ação para você receber o financiamento, para você continuar. E a
gente não tem...

efeito ^ causa + causa + causa/ deslocamento_efeito ^ causa


[REALCE (causa) EXTENSÃO (deslocamento) REALCE (causa)]
EFEITO CAUSA DESLOCAMENTO CAUSA TIPO DE RELAÇÃO
Não havia uma A equipe se compõe Mas é necessário A promoção da ação Explícita
pessoa que se de “pessoal de base” divulgar o trabalho, gera financiamento
encarregasse da + Não consegue ou o Movimento
divulgação do divulgar o trabalho pode acabar
trabalho do + Não pensa na
Movimento divulgação do
trabalho

Quadro 5.11 – Relação falta de divulgação/natureza da equipe/financiamento

Nesse excerto, Vera localiza uma causa intrínseca da ‘crise’ de financiamento: a


incapacidade da equipe de promover o trabalho, ou seja, de divulgar as ações
[177]
desenvolvidas a fim de dar visibilidade ao Movimento e atrair novos financiadores.
Embora represente a promoção da ação como necessária para a captação de recursos, em
estrutura fortalecida pela modalidade deôntica (“você tem que promover ação para receber
o financiamento”), contraditoriamente Vera enumera uma série de justificativas para a
incapacidade da organização em lograr a divulgação de suas atividades.
Nesse caso, a justificativa de não procederem à divulgação das ações da
organização realiza-se por uma racionalização teórica (pois não é baseada na justificação
da ação ou de seus objetivos e efeitos, mas no ‘modo como as coisas são’) por explanação
– não é a prática que é definida, mas características dos atores envolvidos na prática: “a
resposta para a questão do ‘por que’ é ‘porque esse modo de fazer as coisas é apropriado
à natureza dos atores’” (van Leeuwen, 2007: 104). As características que representam a
equipe do MNMMR/DF – por identificação: “a gente é pessoal de base”; por metáfora:
“Sabe pedreiro? Peão de obra?”; por negação: “a gente não dá conta” – identificam-nos
com a impossibilidade de agir de outra maneira, de assumir outros papéis. Ou seja,
embora uma racionalização instrumental voltada para o efeito (“receber o
financiamento”) oriente a necessidade de se fazer a promoção do trabalho, a
racionalização teórica acerca da natureza da equipe (ou do modo como as coisas são)
justifica a ausência desse trabalho. Por outro lado, o interesse econômico das agências
financiadoras pela publicidade dos trabalhos que financiam é também legitimado, pois
não é questionado nem trazido ao debate.
Para van Dijk (2001: 355), “entre muitos outros recursos que definem a base de
poder de um grupo ou instituição, o acesso ao discurso e à comunicação pública, ou o seu
controle, são importantes recursos ‘simbólicos’”. Nesse sentido, a falta de acesso à
produção de textos de divulgação das atividades do Movimento e a eventos discursivos de
divulgação pode ser considerada um indício da carência desse recurso simbólico, e a auto-
definição como grupo incapaz e impossibilitado de ter acesso ao poder é um agravante da
carência, pois naturaliza esse estado de coisas. Embora saibamos que grupos minoritários
têm pouco acesso à mídia (van Dijk, 1996), nesse caso não se trata de um interdito,
mesmo que implícito, de acesso, mas da interiorização da incapacidade ou da
impropriedade de utilização dos recursos disponíveis.

[178]
Os nove excertos da entrevista com Vera são, a seguir, organizados no Quadro
5.12, a fim de possibilitar uma visualização dos casos em que há explicitação ou
implicitação das relações causais. A fim de favorecer a visualização do quadro, os casos
em que a relação causal é implícita estão marcados em negrito, distinguindo-os daqueles
em que a relação causal é explicitada.

Ex. Tema Elementos relacionados Relação causal


(7) Cooperativa Crise do Movimento// trabalho com a Implícita (com ruptura e reformulação)
cooperativa
(8) Cooperativa Cooperativa// subsistência das família e trabalho Explícita (fortalecida por modalidade deôntica)
infantil
(9) Nucleação Dificuldade de financiamento// natureza da Implícita (com reformulação do aspecto de
nucleação longo prazo por três vezes)
(10) Nucleação Natureza da nucleação// objetivos do Explícita (com acréscimo de finalidade)
Movimento
(11) Nucleação (a) Demora dos resultados// desinteresse Implícita (com ruptura)
das agências
(b) Natureza da nucleação// luta mais política Explícita
(12) Nucleação Os/as jovens cobraram// tiveram uma Implícita
bolsa para atuar na nucleação (com ruptura e reformulação; antecedido por
finalidade)
(13) Nucleação Conjuntura de crise// ausência de coordenação Explícita (com recursividade)
do trabalho das jovens// cooperativa
(14) Crise (a) Fragilidade do Movimento// condições de Explícita
trabalho
(b) Fragilidade do Movimento// conjuntura Implícita (com ruptura e reformulação)
do fluxo de finaciamentos
(15) Crise Falta de divulgação do Movimento// natureza Explícita (com deslocamento)
da equipe

Quadro 5.12 – Explicitação e implicitação das relações causais na entrevista com Vera

Dentre as diversas relações causais analisadas, cabe observar as estruturas de


implicitação dessas relações quando se trata dos efeitos do trabalho com a cooperativa
para a crise de nucleação – mitigando a relevância do trabalho com os/as catadores/as
para a desestruturação dos núcleos – e das implicações da natureza do trabalho de
nucleação para a captação de recursos – indicando a relação de poder entre movimentos
sociais e agências financiadoras. A análise das relações causais no recorte também sugere
um mal-estar pela necessidade de formulação de justificativas, relativo à adequação do
trabalho com a cooperativa no âmbito do Movimento e à ausência de coordenação dos
trabalhos de nucleação. Trata-se de temas delicados no interior do Movimento, que

[179]
geraram cobranças e polêmicas, e por isso precisam ser racionalizados para adquirirem
coerência.
Na maior parte dos casos analisados, trata-se de refletir sobre o passado, sobre as
conjunturas passadas – as dificuldades de financiamento, o excesso de trabalho, a
natureza da nucleação e do Movimento – que justificam e legitimam decisões que
poderiam ser questionadas ou que mitigam responsabilidades sobre eventos e
circunstâncias. A recorrência dessas representações sobre o passado denota uma
preocupação em explicar(-se), daí a alta densidade de relações causais na entrevista: Vera
busca construir relações entre eventos (como o encerramento do projeto do Sécours
Catholique) e práticas (como a natureza da nucleação), de modo a tornar mais coerente a
história da crise do Movimento.
Nesse sentido, no Quadro 5.13, a seguir, os excertos em que há implicitação e
explicitação das relações causais são reorganizados em termos dos efeitos retóricos
obtidos por meio dos modos de expressão de causalidade:

NATUREZA DA RELAÇÃO CAUSAL EFEITO RETÓRICO ELEMENTOS RELACIONADOS


Mitigação da conseqüência de Crise do Movimento// trabalho com a cooperativa
RELAÇÃO CAUSAL IMPLÍCITA decisões anteriores (7)
Ocultação da relação causal (9) Dificuldade de captação de recurso// natureza da
nucleação
Ocultação da relação causal (11a) Natureza da nucleação// desinteresse das agências
Mitigação da responsabilidade do Jovens cobraram// obtiveram bolsa para manutenção
Movimento (12) dos núcleos
Ocultação da relação causal (14b) Fragilidade do Movimento// fluxo de financiamentos

Justificativa do trabalho com a Trabalho com a cooperativa// condição das crianças


RELAÇÃO CAUSAL EXPLÍCITA cooperativa (8) do grupo de catadores/as
Realce da natureza crítica do Natureza da nucleação// objetivos do Movimento
trabalho (10)
Realce da natureza crítica do Natureza da nucleação// luta política
trabalho (11)
Justificativa da solução para os Conjuntura de crise// ausência do trabalho das jovens
núcleos e legitimação por
racionalização (13)
Realce da conjuntura de crise (14a) Fragilidade do Movimento// condições de trabalho
Justificativa da falta de divulgação (15) Falta de divulgação// natureza da equipe

Quadro 5.13 – Efeitos retóricos da explicitação e da implicitação de causalidades

[180]
Os casos em que há causalidades implícitas referem-se à representação de tomadas
de decisão anteriores que agravaram ou tiveram efeitos na crise do Movimento – o
trabalho com a cooperativa de catadores/as e a continuidade da atividade de nucleação
pelas jovens – e à conjuntura de desinteresse das agências de financiamento pelo tipo de
trabalho realizado no Movimento. Os efeitos retóricos dessas implicitações de causalidade
são, além da ocultação da relação causal implicitada, a mitigação de conseqüências das
decisões tomadas (no caso da cooperativa) ou a mitigação da responsabilidade do
Movimento em tomadas de decisão anteriores (no caso da nucleação). A relação entre a
natureza do trabalho do Movimento e suas possibilidades de financiamento é deixada
vaga, o que denota relações de poder entre movimentos sociais e agências financiadoras e
o desinteresse dessas agências na luta por direitos.
No caso das causalidades tornadas explícitas, os efeitos são a justificativa de
tomadas de decisão anteriores; o realce da natureza crítica do trabalho do Movimento e a
justificativa de uma presumida incapacidade de divulgar os trabalhos e as atividades da
organização. No caso do trabalho com a cooperativa, a justificativa é ainda fortalecida
pela modalidade deôntica; no caso da continuidade das atividades dos núcleos de base
pelas jovens sem a coordenação da equipe de educadoras, a justificativa é fortalecida pela
recursividade entre causas e efeitos, que resulta em uma racionalização que legitima a
decisão tomada. No caso referente à divulgação do Movimento, inversamente, a
justificativa é mitigada por um deslocamento que ressalta a necessidade da visibilidade
para a conquista de novos financiamentos.
As representações de Vera limitam-se ao passado – quando tangem às conjunturas
relacionadas à cooperativa, à crise da nucleação, às condições de trabalho – e ao presente
– quando se referem especificamente à natureza do trabalho de nucleação. Não sinalizam,
entretanto, o futuro. Vera não reflete acerca das possibilidades de ação futura com base
nas conjunturas representadas; suas representações estão condicionadas a construir uma
narrativa que racionaliza aspectos problemáticos da história recente do MNMMR/DF.

[181]
Algumas considerações

Na entrevista individual realizada com Júlia, analisei suas representações acerca da


formação do MNMMR, da conquista do ECA e da contradição decorrente dessa conquista,
da crise financeira do Movimento e dos episódios envolvendo má gestão de recursos.
No recorte selecionado, a utilização de processos verbais no presente ou no
passado (ou uma combinação de ambos) denota uma representação implícita do
encerramento de certas linhas de atuação no Movimento. Embora Júlia não chegue a
formulá-lo explicitamente, por meio da análise do uso dos tempos verbais é possível
chegar a conclusões acerca da representação das atividades da instituição. O fato de o
encerramento de determinadas linhas de atuação do Movimento não ser enunciado
explicitamente mas apenas sugerido na seleção dos tempos verbais pode indicar a
resistência à aceitação das mudanças estruturais que atingiram esse movimento social na
última década – uma necessidade de manutenção da ficção que garante certa segurança
ontológica, isto é, em relação ao que se acredita que o Movimento é.
Ainda que a maior parte das representações de Júlia vincule o texto a uma lógica
explanatória, pela demarcação de relações causais e temporais, ao tratar dos problemas de
má gestão de recursos públicos pelo Movimento, Júlia lança mão de uma série de
estratégias de distanciamento e mitigação que tornam essas representações difusas e
indeterminadas.
Quando representa a margem de manobra de que o Movimento dispõe para sua
ação, Júlia outrifica e generaliza a experiência, o que resulta no descolamento de seu
tempo, tornando-a abstrata e atemporal. Por outro lado, quando representa questões
problemáticas, como os episódios de má gestão de recursos, utiliza estratégias de
mitigação, indeterminação e distanciamento. O tom lacônico do recorte sinaliza uma crise
de legitimidade, um mal-estar em relação aos episódios narrados.
No caso da entrevista com Vera, a alta densidade de relações causais também
sugere sua filiação a uma lógica explanatória, pois em sua representação dos eventos
envolvidos nos problemas enfrentados pelo MNMMR/DF inclui explanação, causalidade e
argumentos expositivos. A lógica explanatória também se nota no estabelecimento de
relações temporais, no sentido de como certas conjunturas, eventos ou decisões levaram a
[182]
efeitos específicos. Há, entretanto, muitos casos em que as relações causa/efeito não são
formuladas ou são formuladas implicitamente. Quando isso ocorre, há recorrência dos
temas envolvidos: os efeitos do trabalho com catadores/as para a crise; o retrocesso no
trabalho de nucleação; as dificuldades de se obter financiamentos dada a natureza do
trabalho do Movimento.
Ainda que de modo nem sempre explícito, Vera observa um conjunto plural de
causas para a desestruturação do trabalho de nucleação, objetivo principal do Movimento
(MNMMR, 2005), na Comissão Local do DF. Entre as causas representadas destacam-se a
dedicação à organização de catadores/as de material reciclável na última década, a
dificuldade de captação de recurso para atividades de nucleação, as falhas de coordenação,
o fluxo de financiamentos para ações voltadas a outros temas, a falta de acesso à
promoção dos trabalhos realizados.
Em relação à cooperativa, os dados mostram que há uma preocupação em
justificar o início do trabalho com catadores/as de material reciclável no âmbito de um
movimento social voltado para os direitos sociais de crianças e adolescentes, o que pode
ser entendido como uma resposta a críticas que emanam do próprio Movimento,
sobretudo de jovens ligados/as aos núcleos de base. No que se refere especificamente aos
núcleos de base, a relação entre a natureza do trabalho de nucleação e a dificuldade de
captação de recurso é implicitada. Apesar disso, é possível concluir que essa relação é
representada como relevante para a crise financeira, pelas sucessivas reformulações acerca
desse tema.
Em termos dos modos de representação das causas e conseqüências da crise, nota-
se ainda que as conjunturas atribuídas à crise são organizadas nas relações causais de
modo a justificar/legitimar práticas e eventos ou mitigar questões problemáticas. Nesse
sentido, cinco relações são identificadas no recorte como relevantes para a crise: (i) o
trabalho com a cooperativa/a crise da nucleação; (ii) o encerramento do projeto do Sécours
Catholique/a liderança das jovens nos núcleos de suas cidades, sem coordenação das
educadoras; (iii) a dificuldade de financiamento/a natureza da nucleação; (iv) a dificuldade
de financiamento/o fluxo de investimento para outros temas, como o meio ambiente; (v)
a dificuldade de financiamento/a incapacidade de promoção do trabalho.

[183]
Nos dois primeiros casos, trata-se de justificar escolhas passadas. Para tornar
coerentes essas decisões, Vera constrói racionalizações instrumentais voltadas para os
objetivos ou os efeitos – as questões consideradas problemáticas são internas ao Movimento,
e Vera justifica a história recente do Movimento por meio dessas racionalizações baseadas nas
motivações.
Nos dois próximos casos, trata-se racionalizar dificuldades de financiamento externas ao
Movimento, relativas aos interesses mesmos das agências financiadoras – aqui não há
preocupação em construir uma coerência, pois as coisas já são a priori tomadas como coerentes,
ou seja, Vera interioriza discursos legitimadores que eliminam a necessidade de reflexão acerca
da natureza do trabalho de nucleação (nesse caso um discurso de cidadania que orienta o
trabalho da organização e torna inviável uma adaptação objetivando a conquista dos
financiamentos) e acerca do fluxo de financiamentos (o interesse imediatista em resultados
quantificáveis em oposição ao tipo de resultado coerente com o discurso da cidadania
mencionado anteriormente; o interesse em temas em evidência). Em termos discursivos, isso
resulta na construção de racionalizações teóricas do ‘modo como as coisas são’.
No último caso, trata-se de, admitindo a existência de um fator interno para a crise de
captação de recurso – a incapacidade presumida de promover o trabalho em resposta à
necessidade de publicidade das agências financioadoras –, legitimar essa incapacidade pela
identificação de uma ‘essência’ na equipe do Movimento que lhe impede, em termos de
racionalização teórica, um procedimento diferente. O efeito é que esse fator ganha aspectos
de inexorável, no sentido de que não se identifica a possibilidade de transformá-lo; é
simplesmente um fator existente contra o qual nada pode ser feito.
Tanto a entrevista com Júlia quanto aquela com Vera apresentam índices de um mal-
estar em relação a decisões e eventos anteriores, sinalizam uma crise de legitimidade que
resulta na necessidade de criar racionalizações capazes de conferir coerência à história recente
do Movimento. Nos próximos capítulos, as análises dos dados dos grupos focais, das
entrevistas com as jovens e das reuniões gravadas no Movimento nos permitirão
compreender melhor esse mal-estar. Neles vamos explorar os significados de protagonismo
juvenil, as construções identitárias e as instabilidades relacionadas à luta por identidades, as
contradições entre a mobilização social e uma perspectiva imóvel de estrutura social.

[184]

REPRESENTAÇÕES DO PROTAGONISMO JUVENIL NOS 
GRUPOS FOCAIS 

Mas o negócio é que também muitas pessoas deixam de


acreditar… Não no Movimento em si, mas em luta de
direitos. Tem umas pessoas que nem nunca passaram
por lutas assim, mas não acreditam no que não vêem.
Porque a gente fala assim “ah, vou pra passeata”, e
“você vai fazer isso pra quê? Você pensa que vai
mudar o mundo com isso?” É igual a história da
abelhinha com o incêndio da floresta, né? E o elefante
falando pra ela: “você pensa que vai apagar o fogo
assim?” Nunca! Você tá amenizando… E muitas
pessoas não te dão a mínima.
(Amanda, Grupo Focal 1)

C omo expliquei no Capítulo 4, eu não havia planejado encontros de grupo focal no


desenho inicial da pesquisa; realizei esses encontros por sugestão de Júlia,
educadora do Movimento. Além de seu objetivo inicial, de prover acesso a representações
das atividades do Movimento anteriormente ao período de crise, os grupos focais foram
relevantes para o acesso a representações de jovens membros do MNMMR/DF sobre o
protagonismo juvenil e a suas identificações como protagonistas. Entretanto, é preciso
salientar que a análise de grupos focais não foi um objetivo da pesquisa, por isso não
procedi a uma análise da interação, como seria o caso se o objetivo fosse de fato
investigar os grupos.
O capítulo está dividido em duas seções, cada uma dedicada a um dos encontros
de grupo focal. Na primeira seção, o recorte do Grupo Focal 1 é analisado em termos de
interdiscursividade e metáfora. Na segunda, investigo no recorte do Grupo Focal 2
representações acerca do protagonismo juvenil. A descrição completa dos grupos focais
está no Capítulo 4. Os recortes dos grupos focais encontram-se transcritos no Anexo B.
6.1 O Grupo Focal 1

O recorte selecionado da transcrição do Grupo Focal 1, centrado nas falas de


Maria e Amanda, é analisado primeiramente em termos dos discursos que as duas jovens
articulam em suas representações do Movimento e do protagonismo juvenil. Como
sabemos, um mesmo aspecto do mundo pode ser representado segundo diferentes
discursos, e textos representando o mesmo aspecto do mundo podem, portanto, articular
diferentes discursos, em relações dialógicas harmônicas ou polêmicas. A análise
interdiscursiva de um texto relaciona-se, portanto, à identificação dos discursos
articulados e da maneira como são articulados.
A identificação de um discurso em um texto cumpre duas etapas: a identificação de
que partes do mundo são representadas, e a identificação da perspectiva particular pela
qual são representadas. As maneiras particulares de representação de aspectos do mundo
podem ser especificadas por meio de elementos lingüísticos que podem ser vistos como
‘realizando’ um discurso. O mais evidente desses elementos é o vocabulário, pois
diferentes discursos ‘lexicalizam’ o mundo de maneiras diferentes (Fairclough, 2003).
A análise interdiscursiva no recorte do Grupo Focal 1 indica a articulação de três
principais discursos: o discurso da pobreza, o discurso do protagonismo juvenil e o
discurso neoliberal. O discurso da pobreza representa o espaço das comunidades e a
carência de recursos materiais que caracteriza esse espaço.
Todos os trechos do recorte que se referem às cidades satélites do DF recorrem a
esse discurso na representação. Alguns exemplos são destacados em (16):

(16) Amanda: (...) um dia desses eu cheguei pra Júlia aqui, a penúltima vez que eu vim
aqui, antepenúltima, eu sentei aqui nessa mesma mesa e chorei tanto, porque eu
tava… eu falei pra Júlia “Júlia, eu vou pro HPAP” [Hospital Pronto Atendimento
Psiquiátrico, no DF] porque um tanto de situação assim inacreditável que você
vê... você vê as pessoas passar fome (...).
[...]
Maria: sabe... você que tá lá na pobréia, que vê sua família passando fome, sua mãe
doente (...).

Na fala de Amanda, a situação de privação das comunidades é avaliada como


sendo “inacreditável”. Embora seja uma situação real, vivenciada repetidas vezes (“um
[187]
tanto”, “você vê”), é representada no plano do incrível, do extraordinário. Esse
estranhamento resulta no conflito interno experienciado pelas jovens (veja a seguir).
Na intervenção de Maria no exemplo (16) nota-se uma relexicalização da pobreza:
“pobréia”. Em minhas observações de campo, várias vezes ouvi essa expressão, nas falas
de pessoas relacionadas ao Movimento. Essa relexicalização parece fazer parte de um
discurso crítico sobre a pobreza, um discurso que se opõe à visão romântica de pobreza.
É diferente dizer-se que uma pessoa ‘é pobre’ ou se dizer que ‘está na pobréia’: quando se
diz que uma pessoa é pobre, utiliza-se um processo relacional atributivo intensivo, ou seja,
a pobreza é representada como uma característica inerente da pessoa, algo que a define, é
um atributo; ao contrário, quando se afirma que uma pessoa ‘está na pobréia’, o processo
relacional atributivo é circunstancial, o que se atribui à pessoa nesse caso é uma
circunstância na qual ela se encontra (Halliday, 2004; Ghio & Fernández, 2005). 35
Estar ‘na pobréia’ implica estar sujeito/a às privações que a caracterizam. O espaço
da pobreza é representado como um espaço distante: “lá na pobréia” – trata-se de um
espaço apartado da realidade do Plano Piloto de Brasília, onde aconteceu a interação.36
Essa oposição entre o ‘lá’ e o ‘aqui’ será retomada na discussão da tensão entre as
perspectivas de mobilização (no Movimento) e de imobilidade da estrutura (nas cidades
satélites do DF).
Amanda e Maria identificam-se com esse espaço de privação em suas falas. Nos
dois trechos, a identificação pode ser percebida por meio do uso de ‘você’ funcionando
como pronome indefinido – ‘você’ aqui não significa a segunda pessoa do discurso, o/a
interlocutor/a, e sim um ator indefinido que “vê as pessoas passar fome” e que se situa na
situação de privação. O uso dessa estrutura lingüística indefinida é, entretanto, um modo

35 O termo relacional implica que o processo estabelece uma relação entre duas partes ou duas entidades diferentes.

Essa relação pode ser de diferentes naturezas: no caso dos processos relacionais atributivos intensivos, trata-se de uma
relação do tipo X é Y; no caso dos processos relacionais atributivos circunstanciais, trata-se de relação do tipo X está em Y.
No primeiro caso, o atributo é uma qualidade de X, no segundo caso é uma circunstância em que X se encontra
(Ghio & Fernández, 2005). Halliday (2004) também distingue outras categorias de processos relacionais, que no
entanto não serão tratadas aqui.
36 Buarque (2001: 34) esclarece que “o centro do conceito de apartação está em que o desenvolvimento brasileiro não

provoca apenas desigualdade social, mas uma separação entre grupos sociais”. Ele acrescenta: “as pessoas que vivem
numa sociedade apartada conhecem a fronteira que delimita o mundo dos incluídos e dos excluídos, composta por uma
complexa linha de separação que envolve fatores como grau de educação, tipo físico, roupa, endereço etc. Assim como
numa sociedade de castas, quase sempre cada pessoa reconhece as castas das outras pessoas” (Buarque, 2001: 169).
[188]
de se referirem a suas próprias experiências nesse espaço e a sua frustração diante do peso
da estrutura que cria esse tipo de “situação inacreditável” e que lhes parece impedir,
apesar do discurso do protagonismo juvenil, a ação efetiva. Essa ‘outrificação’ da própria
experiência pode ser interpretada como uma forma inconsciente de distanciamento dessa
experiência representada como dolorosa (“chorei tanto”).
Há, na instância discursiva analisada, uma preocupação em generalizar a carência,
em deixar claro que essa situação não atinge poucas pessoas, mas o conjunto das pessoas
que vivem naquelas cidades (Campina, no caso de Maria; Oliveiras, no caso de Amanda),
sendo, portanto, a regra e não a exceção. Observe-se o exemplo (17), na interação em
seqüência ao trecho destacado em (16).

(17) Maria: (...) Você abre a geladeira da minha casa hoje não é diferente de todas as
casas, não. Na geladeira da minha casa hoje não tem nada!
Amanda: fica triste não…
Maria: sabe, não é diferente da minha vida, da do Rafael. A tia Jú falou do Rafael
ontem [a casa do Rafael, ‘ex-menino’ do Movimento que participou deste grupo
focal, estava há quatro meses sem água], e eu: “pô, não fala não, tia Jú, que dá
vontade de chorar!”. Sabe? Não pelo fato de ser o Rafael, mas pelo fato de saber
que é muita gente assim...
Amanda: é regra! A realidade dele é a de outras famílias...
Maria: é muita gente assim (...).

A pobreza é representada como um lugar (“lá na pobréia”) que reúne um grande


grupo de pessoas, um lugar de privação, de angústia e de sofrimento (“dá vontade de
chorar”). Na segunda intervenção de Maria no exemplo (17), sua identificação com o
lugar da pobreza é explicitada no uso do pronome de primeira pessoa ‘minha’ como pré-
modificador do nome ‘vida’ – é a sua própria vida e a sua própria experiência que Maria
se refere quando trata desse espaço de pobreza, compartilhado por muitas outras pessoas:
“é muita gente assim”. A frustração pelo sentimento de impossibilidade de ação nessa
estrutura que pesa sobre sua comunidade é confirmada em “dá vontade de chorar”.
De acordo com os depoimentos de Maria e Amanda, é a pobreza que faz surgir o
interesse pelo Movimento, é a situação de privação característica do espaço das cidades
satélites que resulta no primeiro interesse pelas atividades desenvolvidas no espaço do
Movimento. Alguns exemplos disso estão no excerto (18), a seguir.

[189]
(18) Maria: (...) Por exemplo, pode ser que nas primeiras vezes a gente vai porque o
Movimento convidou…
Amanda: tem lanche, aquele monte de menininho buchudo...
Maria: então a gente vai através do lanche...
(...)
Maria: aí o que que acontece? No começo pode ser que você vá através do lanche,
você tá ganhando a passagem, ah, não vou pagar nada mesmo, não vou gastar
nada, então, né? Mas com o processo, né, que o Movimento desenvolve, aí você
vai se interessando; da próxima vez você vai não por causa do lanche, mas sim
pela causa mesmo.

Como os excertos sugerem, o primeiro atrativo que o MNMMR/DF exerce sobre


crianças e adolescentes de cidades satélites do DF está diretamente relacionado à pobreza.
Note-se que no primeiro excerto Amanda recorre ao senso comum sobre a pobreza para
caracterizar o público alvo do Movimento – “aquele monte de menininho buchudo” –,
enfatizando a precariedade de satisfação das necessidades básicas no espaço das cidades
satélites. Além do atrativo do lanche, em outras conversas durante o período em que fiz
observação no campo destacaram-se os passeios – ao Parque Nacional da Água Mineral,
ao teatro, ao cinema –, as atividades de arte e esporte – montagem de peças de teatro e
torneios de futebol – e o acesso a espaços políticos – por ocasião de manifestações
públicas, por exemplo no Congresso Nacional – como atrativos essenciais para a adesão
ao Movimento. Também em outras interações etnográficas da pesquisa as atividades e as
oficinas oferecidas pelo Movimento aparecem com destaque, como os trechos a seguir
indicam:

E a gente participava porque na nossa comunidade não tinha nenhum tipo de


atividade, nenhum tipo de diversão, e todo mundo foi participar do Movimento
espontaneamente. Eles vieram aqui na rua convidar, fazer um convite para a gente
para participar do Movimento, falando de encontros, de brincadeiras. E foi isso que
motivou a gente a estar participando do Movimento. (…) E sempre para motivar os
meninos, eles falavam que ia ter um lanche, que ia vir alguém visitar a gente.
(Entrevista com Joana)

Viviane: Antes disso [da crise financeira], como é que eram os núcleos?
Vera: Então, nos núcleos, cada núcleo – também essa é a mesma metodologia – ele
decidia o quê que ele queria fazer. Então, tinha núcleo que tinha teatro em
Pequizeiro, tinha hip-hop, tinha futebol. Então, dentro dessas atividades lúdico-

[190]
pedagógicas (…) todo esse trabalho, era feito com os meninos. “O quê que vocês
querem fazer de atividade lúdica?” (Entrevista com Vera)

Fernanda: Mas a gente ficou mais interessado nisso por causa dos passeios, por causa
da galera que tinha.
Amanda: A amizade.
Maria: Por causa do passeio, dos lanches [risos].
Fernanda: É, porque...
Maria: Dos toddyinhos.
Amanda:[O lanche] já teve fases melhores. Antigamente era toddyinho!
[risos]
Maria: Porque também era uma coisa difente que a gente fazia, não era sempre a
mesma coisa.
Fernanda: Também não era a mesma coisa não, chegava lá, reunia e conversava não.
Tinha as oficinas...
Amanda: É, oficinas… (Grupo Focal 2)

Viviane: e qual foi seu interesse inicial no Movimento? O que te levou a buscar?
Alexandre: mais as, como é que era o nome? Porque antigamente quando o Ricardo
[educador do Movimento] tava aqui, nós todo dia da semana a gente fazia um esporte
no Movimento. Cada dia da semana a gente fazia um trabalho educativo aqui dentro
do Movimento. Quando era pra jogar bola nós ia pr’uma quadra, jogava. (…)
Viviane: e você, Maria, qual foi seu interesse inicial no Movimento?
Maria: ai, eu acho que... que ele proporcionava na época, né... uma criança que não
conhecia nada, nunca tinha vindo ao Plano Piloto, de repente você tá dentro do
Palácio do Planalto, aquele tanto de gente importante, aquele bando de repórter
tirando foto de você. Então, né, você fica assim: carácolis! Fica fascinado mesmo.
Dentro do Movimento, carácolis velho, conheci muita coisa. Senado, teatro, cinema...
quando a primeira vez que eu fui ao cinema, bicho, eu coloquei as mãos nos ouvidos
assim. Caramba, fiquei fascinada com aquilo tudo que eu tava vendo, né, “não
acredito!” Então eu acho que o espaço que ele proporcionava pra gente, né? (Grupo
Focal 1)

A respeito da atração de organizações comunitárias e movimentos sociais como


espaços de inclusão em situações de pobreza, Castells (1999: 82) sugere que “as pessoas
que se organizam em torno de comunidades locais de baixa renda têm a oportunidade de
se sentirem revitalizadas e reconhecidas como seres humanos”. Assim, os/as meninos/as
que participavam do Movimento viam-se em condição de ter experiências e
oportunidades que reconheciam como alheias às possibilidades ligadas à situação em que
se encontravam como agentes primários, nos termos de Archer (2000; ver Seção 2.3).
Se o interesse inicial pelo Movimento é representado como sendo o acesso a
espaços e a atividades de que carecem crianças e adolescentes das cidades satélites, sua
[191]
permanência na organização é representada como tendo outra motivação: “pela causa
mesmo”. A segunda intervenção de Maria em destaque no exemplo (18) sugere a
representação de uma delimitação temporal: Maria identifica dois ‘tempos’ em sua
trajetória pessoal: antes de seu engajamento com o MNMMR/DF (“no começo” – tempo da
‘inconsciência’) e depois (“com o processo” – tempo da ‘consciência’). Essa delimitação
ilustra sua ação como agente primário, antes da adesão ao Movimento e do acesso ao
discurso do protagonismo juvenil, e como agente incorporado, a partir de sua
conscientização de direitos desrespeitados e de sua participação em uma coletividade que
compartilha o desejo de mudança. Note-se aqui uma estrutura lingüística de causação: a
adesão ao Movimento é representada como propulsora dessa incorporação dos sujeitos,
meninos e meninas do MNMMR/DF: “o Movimento desenvolve”.37
Estruturas lingüísticas de causação também podem ser observadas no exemplo
(19), a seguir. Nesse mesmo exemplo, a divisão ‘antes/depois’ alinha-se com o segundo
discurso identificado na amostra: o discurso do protagonismo juvenil. Observem-se os
excertos:

(19) Maria: E o bom do Movimento é que ele possibilita, através do trabalho que ele
tem, que entra a questão do protagonismo juvenil, é de através desses espaços do
Movimento, é que ele desperta, ele faz que a gente seja agentes da nossa própria
promoção, né? (...)
[...]
Amanda: é impressionante, aonde que eu iria imaginar que eu seria representante
da minha cidade, que eu ia ter uma autonomia tão grande sobre os meninos que
eu tenho hoje. Porque os meninos chegam em mim, vão lá... (...)
[...]
Maria: (...) mas você acaba sendo referência dentro da sua comunidade (...)

O discurso do protagonismo juvenil é articulado na representação do MNMMR/DF,

como na primeira intervenção destacada em (19), em que a ação das jovens como
protagonistas aparece atrelada ao trabalho desenvolvido pelo Movimento (“ele desperta”,
“ele possibilita”, “ele faz que a gente seja agentes da nossa própria promoção”). O

37 Essa percepção da participação no Movimento como experiência causadora de uma nova maneira de ver o mundo

também é identificada em outros documentos etnográficos desta pesquisa, como por exemplo a entrevista com
Joana: “Todo mundo queria participar. Às vezes, ia no oba-oba e depois, quando passava aquele ano, já estava
incluído em tudo. E participando, participando... Muita gente mudou a forma de ver o mundo, de ver as coisas, de
lidar com as coisas”.
[192]
Movimento é representado como responsável pela construção de identidades de
resistência /projeto para seus membros, nos termos de Castells (1999), ou pela
incorporação dos sujeitos, nos termos de Archer (2000; ver Capítulo 2).
Na representação de Maria, a causação é marcante: o Movimento é a entidade que
desperta a consciência da necessidade de mudança, possibilita essa resistência/incorporação
e ‘faz fazer’, faz agir. Talvez justamente por essa emergência da consciência da necessidade
de mobilização social estar atrelada ao Movimento, as jovens não pareçam capazes de
desvencilhar sua ação protagonista do espaço do Movimento, o que por fim caracteriza
um empecilho para sua realização concreta (veja a seguir; ver também Capítulo 7).
Nos outros dois trechos do exemplo (19), o discurso do protagonismo juvenil
representa a ação das jovens nos núcleos de base de suas cidades. Esse discurso resulta
em sua identificação como protagonistas: Amanda identifica-se como “representante” e
Maria como “referência”. Isso sugere a dialética entre os três tipos de significado, pois o
discurso do protagonismo, no plano da representação, orienta a ação (aqui
discursivamente representada) e a identificação das jovens.
O vínculo forte do discurso do protagonismo ao espaço do Movimento, no
entanto, parece causar uma relação de dependência. Embora as jovens se identifiquem
como protagonistas, sua autonomia para a ação protagonista parece ser limitada. Elas não
se sentem capacitadas, por exemplo, para escreverem pequenos projetos de captação de
recurso, paralelos ao Movimento, para executarem ações específicas em suas cidades.
Assim, as jovens sofrem com a falta de recurso – tanto material como simbólico,
discursivo – para a execução de suas ações no âmbito do Movimento, como indica o
exemplo (20), na seqüência do trecho (19) na interação:

(20) Amanda: E vamos fazer? Vamos fazer isso? Vamos chegar e vamos fazer aquilo?
Maria: E você sabe que na verdade não é aquilo, não é desse jeito.
Amanda: E você tem uma moeda no bolso pra correr atrás.
Maria: É uma utopia, né velho? (...) Sabe, pô, é tudo uma mentira, eu sei que não
vai e esse povo não vai parar de ser corrupto e esse sistema não vai parar porque
esse Brasil foi feito pra isso, né, um país de exploração mesmo (...).

Nesse trecho, Amanda e Maria discutem a contradição entre as atividades que


julgam necessárias em suas cidades e os recursos materiais de que dispõem para executá-
[193]
las. Ao refletir sobre o resultado de sua ação, sugerindo a contradição entre o discurso do
protagonismo e a possibilidade de ação concreta, Maria recorre um discurso muito forte
sobre a política brasileira, sobre a corrupção do sistema político. Maria interioriza o senso
comum acerca da corrupção política no Brasil como um problema generalizado e sem
solução, e busca no discurso da história a justificativa para o sistema: “um país de
exploração”. O discurso da história é articulado ao discurso da corrupção em uma oração
encaixada de valor causal, com alta afinidade expressa em “mesmo”. A corrupção é
reificada pela eternalização da história colonial do Brasil (Thompson, 1995).
Isso aponta a contradição entre o protagonismo, o desejo de mudança social (e a
construção de identidades de projeto), como discurso, e a crença na possibilidade de um
protagonismo concreto (a realização desse projeto). Embora acreditem no protagonismo
juvenil como discurso, as jovens não vislumbram possibilidades de concretização da
mudança social. O discurso que eternaliza a corrupção, imobilizando as estruturas sociais,
choca-se com o discurso de mobilização para a transformação social, e a contradição
entre ambos é incontornável.
A mesma contradição entre mobilização social e percepção de imobilidade na
estrutura social é identificada em outros dados da pesquisa, como na Reunião 2, dedicada
à discussão do Projeto Giração, à época recém-aprovado para a organização de
adolescentes e jovens trabalhadores/as das imediações da Rodoviária do Plano Piloto. No
excerto destacado a seguir, Júlia, Mônica (ex-coordenadora nacional do Movimento) e
Henrique (coordenador do Cecria – Centro de Referência, Estudos e Ações sobre
Crianças e Adolescentes) discutem a condição de engraxates e a (im)possibilidade de
transformação dessa condição:

Júlia: Eles dizem que não sabem [fazer outra coisa além de engraxar sapatos],
Henrique. Eles dizem que o futuro deles é morrer na Rodoviária. Que eles não têm
saída.
Henrique: É isso. Eles estão presos nisso daí.
Júlia: E uma coisa que a gente faz também, é que a gente diz que tem outra saída.
Qual é a outra saída? Tem?
Mônica: Qual?
Júlia: Nessa conjuntura globalizada de mercado? De que antes a classe dos
trabalhadores era mão de obra barata e, hoje em dia, eles são descartáveis? Eles
podem morrer na Rodoviária.
[194]
Esse trecho da transcrição da reunião sugere o conflito de pessoas que trabalham
pela mobilização para a mudança social mas não vêem margem de manobra para a
transformação (“Eles estão presos nisso daí”). O choque aqui é o mesmo observado no
Grupo Focal 1: entre o discurso do protagonismo social e o discurso da imobilidade, do
inexorável – nesse caso, da ‘globalização neoliberal’ como fato consumado e
incontornável (“nessa conjuntura globalizada de mercado”).
A questão levantada por Júlia (“a gente diz que tem outra saída. Qual é a outra saída?
Tem?”) indica não só o conflito interno de alguém que se dedica à mudança mas não está
certa se há alternativa futura para o presente, mas também a contradição institucional de
um movimento social que prega o protagonismo e a luta política mas já não percebe
espaços de manobra. Quando Júlia afirma “a gente diz que”, põe em dúvida a validade do
discurso da mobilização social; em seguida, a sua primeira pergunta (“Qual é a outra
saída?) carrega o pressuposto de que essa “saída”, embora não esteja identificada, existe.
Contudo, sua segunda pergunta contradiz esse pressuposto, pois põe em dúvida a própria
existência dessa possibilidade na estrutura social (“Tem?”). Em termos da relação entre
discursos, nesse trecho o discurso do protagonismo (da mobilidade) compete com o
discurso da imobilidade, e essa relação de competição entre os discursos é textualmente
evidenciada por essas contradições, que poderiam ser resumidas como ‘a gente diz que X
mas na verdade Y’. Nessa relação de oposição, o discurso da imobilidade é mais forte,
assume o valor de verdade negado à crença no discurso da mobilização.
O mesmo tipo de conflito interno é observado na fala de Maria, nesse Grupo
Focal 1, quando ela destaca que tem dúvidas se o que faz não é “uma mentira”, no
exemplo (22). Antes, porém, o protagonismo juvenil e os espaços políticos de ação social
entram em conflito de outro modo, no trecho em que Maria narra sua experiência em
uma reunião da Comissão de Direitos Humanos contra o Tráfico de Seres Humanos. O
trecho está transcrito no exemplo (21).

(21) Maria: É muita gente assim. Aí você... igual antes de ontem eu tava naquele Lake
Side [um hotel, em um encontro sobre o tráfico de seres humanos, onde Maria foi
para tentar fazer uma articulação política a fim de conseguir recurso para ir ao
Fórum Social Brasileiro, no fim de outubro de 2006, em Recife]. Cara, eu sentada
[195]
na mesa e eu fiquei assim olhando pras pessoas que tavam lá e pensando “pô, eu
sou a única pobre dessa mesa! Eu sou a única que na minha casa você vai lá, e não
tem nada pra comer”. Eu pensei mesmo, sabe. E foi me dando uma indignação!
Rafael: Dá uma revolta, né?
Maria: E, gente, tratando de inclusão social, sabe, tratando do problema de tráfico
de seres humanos por causa da desigualdade social e sendo que eles ganham 16
mil, acho que o mais pouco que ganhava ali era 10 mil por mês. Pô, que sistema é
esse? Sabe? E eu sem ganhar nada, velho!

Assim como há uma divisão temporal entre os períodos anterior e posterior ao


engajamento das jovens com o Movimento, há também a identificação de dois ‘espaços’
em oposição: o espaço da cidade satélite (vinculado à representação da pobreza e à
percepção de imobilidade da estrutura social) e o espaço do Movimento (vinculado à
representação da mobilização para a mudança e à ação). Ao mesmo tempo em que o
acesso a espaços políticos é celebrado como um atrativo para a participação no
Movimento, esse acesso torna-se fonte de conflito quando se comparam esses espaços
com o espaço da cidade satélite.
A participação, ainda que periférica, nos espaços do poder político potencializa o
sentimento de desigualdade, é fonte de “indignação”. Assim, os espaços da cidade satélite
e do Movimento entram em choque de duas maneiras: o discurso do protagonismo
juvenil que caracteriza o espaço do Movimento sinaliza uma possibilidade de participação
e de mudança social cujo potencial não se realiza de fato no espaço da cidade satélite (há
um choque entre mobilização e imobilidade); o acesso a espaços políticos onde se dá a
ação do Movimento, caracterizados pela presença de recursos materiais, entra em conflito
com o espaço da cidade satélite, caracterizado pela privação, e isso é fonte de revolta.
Ainda em termos da análise interdiscursiva, observem-se os trechos transcritos em (22):

(22) Rafael: O que ela tá dizendo é que ela já tá com problema, aí acaba se envolvendo
com outros problemas que ela não consegue...
Amanda: não, é um monte de coisa, muita desigualdade, cara, é... aí, você vê...
Maria: É muito dolorido. É muito dolorido (...)
[...]
Maria: é uma utopia, né velho? Às vezes eu vou embora pensando “caramba,
gente, que que eu tô fazendo? Eu sei que eu não vou conseguir, eu sei que isso
tudo é”... Eu cheguei a pensar que é uma mentira o que eu faço. (...) Então, pô,
“que que eu tô fazendo? Eu vou é desistir de tudo, eu vou é acabar com essa
ideologia que eu tenho, vou abrir mão e quero entrar no sistema também, quero

[196]
ganhar dinheiro”. (...) só que aí, sabe, você é consciente, aí você, pô, você não vai
jogar toda uma vida construída fora, né?
[...]
Amanda: é um corpo doente e o remédio somos nós.

Nos dois últimos trechos destacados articula-se o discurso neoliberal, porém de duas
formas distintas. No último desses excertos (“é um corpo doente e o remédio somos nós”),
naturaliza-se a demissão do Estado, a transferência de parte da responsabilidade do poder
público para a sociedade, parte essencial da idéia-força que caracteriza o discurso neoliberal
(Bourdieu, 1997). No excerto anterior, Maria identifica o protagonismo juvenil – e então o
espaço do Movimento – como sendo “uma utopia”, um sonho inalcançável de mudança social,
“uma mentira”. O conflito é expresso em frases interrogativas (“que que eu tô fazendo?”) e em
afirmações modalizadas com alta afinidade epistêmica (“eu sei que eu não vou conseguir”, “é tudo
uma mentira”).38 A jovem mostra uma tensão entre o desejo de mudança social e a força do
sistema que a constrange a um projeto de adesão: “eu vou é desistir de tudo, eu vou é acabar
com essa ideologia que eu tenho, vou abrir mão e quero ganhar dinheiro”.
Maria representa como contraditórias as possibilidades de “ganhar dinheiro” e atuar
como protagonista social; representa a mobilização como uma espécie de abnegação dos
próprios interesses individuais, que são articulados apenas ao sistema que constrange, nunca
aos objetivos de realização pessoal. Assim, o trecho indica um choque entre o discurso do
protagonismo juvenil e o discurso individualista do capitalismo neoliberal. Nesse conflito
pessoal, o discurso do protagonismo se mostra mais forte: a consciência adquirida acerca
das desigualdades e dos direitos desrespeitados a impede de desistir de seu sonho de
realização coletiva, ainda que lhe pareça utópico (“você não vai jogar uma vida construída
fora, né?”). Castells (1999: 85) considera esse tipo de reação a discursos dominantes como
um dos aspectos centrais da constituição de identidades que tomam por base a negação de
significados por meio da construção de significados reativos: “reações defensivas tornam-se

38 Cabe comparar esse trecho do Grupo Focal 1 em que Maria enuncia seu conflito com um trecho da entrevista de

Joana, de semelhança notável: “Aliás, eu perguntei para mim mesma o quê que eu estava fazendo. E o quê que eu queria com
aquilo, com aquele trabalho. Se realmente o que eu estava fazendo era em prol de quem. Então, o quê que eu estava
repassando para aquelas crianças. Então eu não estava satisfeita também pelo trabalho que eu estava fazendo. Eu não
consigo fazer nada, fingir que estou fazendo as coisas. Eu gosto de fazer e ter resultado. E gosto de ser reconhecida,
como qualquer pessoa gosta de ser reconhecida pelo trabalho”.
[197]
fontes de significado e identidade ao construírem novos códigos”. Os dados apontam,
entretanto, que a contradição entre esses discursos é foco de tensão.
As divisões espaço-temporais identificadas nesta análise – espaço da
imobilidade/espaço da mobilização, tempo da ‘inconsciência’/tempo da ‘consciência’ –
podem ser representadas na Figura 6.1:

Tempo da ‘inconsciência’/Tempo da ‘consciência’

Espaço da Cidade Satélite Espaço do Movimento

Contradição da interseção

Figura 6.1 – Divisões espaço-temporais na representação

Há, na instância discursiva analisada, duas delimitações de espaço-tempo: uma


divisão temporal entre o período anterior e o período posterior ao engajamento das
jovens com o MNMMR/DF – que indica, na representação das jovens, uma percepção do
Movimento como propulsor da construção de identidades de projeto, da incorporação de
sujeitos – e a identificação de dois ‘espaços’ em oposição, o espaço da cidade satélite (da
pobreza e da imobilidade da estrutura) e o espaço do Movimento (da mobilização e da
ação social). Blommaert (2005: 221) discute a influência do espaço na constituição de
identidades: “identidades freqüentemente contêm importantes referências a espaço ou
incorporam locações espaciais ou trajetórias como ingredientes cruciais”. Nesse sentido, a
trajetória de participação no espaço do Movimento define um pertencimento que ancora
identidades trazidas depois ao espaço das cidades (como protagonistas, referências).
Note-se que as representações dessas delimitações de espaço-tempo não se limita à
sobreposição de tempos e espaços – “espaço-temporalidades particulares estão
[198]
interligadas a relações sociais e identidades particulares” (Fairclough, 2003: 152). Assim, o
movimento constante entre essas espaço-temporalidades inclui diferentes relações sociais
e tem efeito inclusive nas constituições identitárias das jovens como membros do
Movimento e como representantes em suas cidades. A relação entre as espaço-
temporalidades é de tensão. Embora o retorno ao espaço da cidade não represente um
retorno no tempo – visto que a consciência dos direitos, adquirida no espaço do
Movimento, é trazida ao espaço da cidade – as limitações percebidas para as
possibilidades de ação, em termos de recursos estruturais para a ação, limita o alcance dos
projetos imaginados no Movimento. O choque se dá entre imobilidade e mobilização.
A consciência da desigualdade e do desrespeito aos direitos assegurados torna-se
fonte de conflito quando se comparam os espaços de ação do Movimento com o espaço
da cidade satélite – a transformação vislumbrada no espaço do Movimento, por vias de
um protagonismo aprendido como discurso nesse mesmo espaço, não chega ao espaço da
cidade satélite: a ação parece não ter efeito na estrutura social, que é representada como
empecilho concreto para a realização desse discurso. A estrutura social é percebida como
constrangimento da ação, mas não como recurso para a ação. Talvez essa lacuna seja a
resposta para o caráter discursivo do protagonismo e para a dependência das jovens em
relação ao Movimento para sua ação protagonista (ver Capítulo 7) – as jovens, assim
como Júlia, Mônica e Henrique, não se mostram capazes de perceber na estrutura social
possibilidades para sua transformação.
Nos termos do RC, sugiro que se pode identificar o modo como se percebe a
relação estrutura/ação social no Movimento como um mecanismo que bloqueia o
protagonismo: a contradição entre o discurso do protagonismo e o discurso da
imobilidade resulta em descrença no potencial da mobilização social, e essa contradição é
irreconciliável com os objetivos desse movimento social. Embora as identidades de
projeto sejam construídas na divisão temporal, não encontram concretização no espaço
da cidade satélite, e isso é fonte de conflito. É preciso reconhecer que são muitas as
dificuldades enfrentadas por essas jovens para a realização de sua ação como
protagonistas. Essas dificuldades vão desde a carência mesma de recursos materiais até a
percepção que a sociedade brasileira tem de juventude.

[199]
À falta de apoio material soma-se a carência de recursos simbólicos ligados a
gêneros, discursos e estilos, nos termos de acesso discutidos por van Dijk (1996), que
limitam, por exemplo, sua capacidade de escrever projetos para captação de recursos. É
fácil propor uma oposição entre protagonismo e vitimização, e sustentar que essas jovens
vitimizam-se por sua posição desvantajosa mais do que assumem posturas protagonistas;
mas é preciso tentar imaginar as dificuldades reais que enfrentam e o sentimento de
estarem mesmo sem saída, como elas sugerem (veja análise anterior).
Outra categoria analítica explorada no recorte da transcrição do Grupo Focal 1 são
as metáforas conceituais. Lakoff & Johnson (1980) explicam que as metáforas estão
infiltradas na vida cotidiana, não somente na linguagem, mas no pensamento e na ação.
Sendo assim, nosso sistema conceitual é metafórico por natureza. Isso significa que os
conceitos que estruturam os pensamentos estruturam também o modo como percebemos
o mundo, a maneira como nos comportamos no mundo e o modo como nos
relacionamos com outras pessoas de acordo com nossa experiência física e cultural.
A essência da metáfora “é compreender uma coisa em termos de outra” (Lakoff &
Johnson, 1980: 49), o que não iguala os conceitos, trata-se de uma estruturação parcial
com base na linguagem. Conceitos são metaforicamente estruturados no pensamento e
conseqüentemente na linguagem, logo, a metáfora não nasce na linguagem, ela é possível
na linguagem porque existe em nosso sistema conceitual. Lakoff & Johnson (1980)
pontuam que a metáfora não é uma questão meramente lingüística ou lexical, ao
contrário, o pensamento humano é largamente metafórico e a metáfora só é possível
como expressão lingüística porque existe no sistema conceitual humano.
Podemos compreender aspectos de um conceito em termos de outro, no caso das
metáforas conceituais, como em “tempo é dinheiro”, em que o conceito de tempo é
compreendido em termos de dinheiro, o que implica poder-se ‘investir tempo’, ‘gastar
tempo’ (Lakoff & Johnson, 1980: 50).39

39 Lakoff & Johnson (1980) também discutem a natureza de metáforas orientacionais, em que conceitos recebem

uma orientação espacial não-arbitrária, baseada na nossa experiência física e cultural, e metáforas ontológicas,
maneiras de entender eventos, atividades, emoções, idéias como entidades e substâncias. Entretanto, será discutido
apenas o mapeamento metafórico em metáforas conceituais presentes na interação analisada.
[200]
O uso de metáforas realça ou encobre certos aspectos do que representam.
Fairclough (2001) registra que quando significamos algo por meio de uma metáfora e não
de outra estamos construindo nossa realidade de uma maneira e não de outra, o que sugere
filiação a uma maneira particular de representar aspectos do mundo e de identificá-los, daí a
importância dessa categoria para a análise do significado identificacional em textos.
Quanto às principais metáforas localizadas na interação em análise, há um
mapeamento metafórico baseado na relação doença/cura, dois mapeamentos metafóricos
de construção, um de engrenagem e dois diferentes mapeamentos metafóricos de guerra.
Vejamos a metáfora doença/cura:

(23) Amanda: (...) eu vejo esse mundo como um corpo, esse corpo todo tá doente,
com a falta de respeito, com a ignorância.
Rafael: o que ela tá dizendo é que ela já tá com problema, aí acaba se envolvendo
com outros problemas que ela não consegue...
Amanda: não, é um monte de coisa, muita desigualdade, cara, é... aí, você vê...
Maria: É muito dolorido. É muito dolorido (...)
[...]
Amanda: É um corpo doente e o remédio somos nós.
Maria: Será que o remédio somos nós? Eu acho, eu não penso assim...
Amanda: Eu também, eu não pensava assim não... tem que pensar assim pra ver se
engata, né?
Viviane: Qual é o remédio, Maria, pra você?
Maria: Vixe, eu não encontrei ainda não, sabia? No dia que eu encontrar, eu vou
tentar curar porque...
Rafael: O remédio pra todos nós é a mudança, né?
Amanda: O remédio é você, Maria! O remédio é você que vai mudar...
Rafael: Que a mudança ela não vem...
Amanda: O remédio é você que vai mudar, é eu, as minhas filhas, as suas filhas.

Os trechos destacados no exemplo (23) constroem-se com base na metáfora


conceitual ‘O MUNDO É UM CORPO’ ou ‘O MUNDO É UM SER VIVO’. Com base nessa
metáfora conceitual, torna-se possível a construção de enunciados baseados na relação
doença/cura desse corpo-mundo. Quem introduz essa metáfora na interação é Amanda,
no primeiro trecho do exemplo, em que ela identifica a doença generalizada desse ‘corpo’
(“esse corpo todo tá doente”) como sendo a “falta de respeito” e a “ignorância”. Maria
recupera a metáfora em sua resposta: “é muito dolorido”.

[201]
Por meio desse processo metafórico, a injustiça social pode ser interpretada como
uma doença, e o sofrimento decorrente de problemas sociais pode ser identificado com a
dor física. Mais adiante na interação, a metáfora do mundo-corpo é retomada por
Amanda, dessa vez diretamente na relação doença/cura: “é um corpo doente e o remédio
somos nós”. Maria não adere ao discurso de que a cura é a mobilização social –
confirmando o choque entre o discurso do protagonismo juvenil e a possibilidade de ação
concreta –, mas recorre à metáfora conceitual (assim como Rafael, e eu mesma o fiz em
minha contribuição nesse trecho) quando assume a resolução dos problemas levantados
em termos de cura (“no dia que eu encontrar [o remédio] eu vou tentar curar”).
Independente da adesão ou não à perspectiva da ação social como ‘remédio’, a
metáfora da desigualdade social como doença opera uma dissimulação da
responsabilidade humana sobre esse estado de coisas, uma vez que, em nossa cultura,
percebemos a doença como uma coisa que acontece, independentemente de nossa
vontade ou ação. Nesse sentido, trata-se de um modo de representação da pobreza que a
naturaliza.
Ainda nesse exemplo (23) uma outra metáfora pode ser identificada. Trata-se do
mapeamento metafórico que compreende a ação social em termos de engrenagem ou
máquina. Essa construção de sentido se observa na fala de Amanda: “tem que pensar
assim para ver se engata”. Nessa metáfora, a mudança social compara-se a uma ignição,
ou seja, o início da mudança depende do funcionamento de uma engrenagem que, se
engatar, poderá desencadear um processo. A ignição em questão nesse caso é a crença na
mobilização social (“tem que pensar assim”), modalizada como obrigatoriedade
(modalidade deôntica: “tem que pensar assim”).
De acordo com essa construção metafórica, a crença na possibilidade de a
mobilização social surtir um efeito material na transformação da sociedade é em si um
passo inicial necessário para a concretização dessa crença, é uma idéia-força, nos termos de
Bourdieu (1998). Isso pode ser articulado à contradição entre a mobilização e a percepção de
imobilidade na estrutura social, identificada tanto na fala de Maria quanto nas de Júlia, Mônica
e Henrique – a crença na imobilidade pode ser o que bloqueia a concretização da
mobilização, sua realização na prática, ultrapassando o discurso; pode ser o elemento que

[202]
paralisa a ‘ignição’ e emperra a ‘engrenagem’. Daí a força do discurso da imobilidade, parte do
discurso neoliberal, na manutenção das estruturas de poder como dominação.
Outras metáforas presentes na amostra são metáforas de construção, articuladas na
fala de Maria. Os trechos estão destacados no exemplo (24).

(24) Maria: É muito dolorido. É muito dolorido por exemplo você chegar, você passa
pelo problema, mas você acaba sendo referência dentro da sua comunidade e
você não pode desabar com aquele problema porque você é o pilar daquelas
pessoas. É para você que aquelas pessoas vêm, e fala pra você o que tá passando.
[...]
Maria: é uma utopia, né velho? (…) então, pô, que que eu tô fazendo? Eu vou é
desistir de tudo, eu vou é acabar com essa ideologia que eu tenho, vou abrir mão e
quero entrar no sistema também, quero ganhar dinheiro. Sabe... você que tá lá na
pobréia, que vê sua família passando fome, sua mãe doente... só que aí, sabe, você é
consciente, aí você, pô, você não vai jogar toda uma vida construída fora, né? (...)

No primeiro trecho, quando Maria fala da dificuldade em ser “referência” em sua


comunidade, ela afirma que não pode “desabar” com os problemas vividos por pessoas
de sua cidade que vêm lhe procurar, pois ela é “o pilar daquelas pessoas”. Nesse caso há
uma metáfora de construção – em termos de sustentação – que mapeia sua própria
identificação na interação. A comunidade é compreendida, por meio dessa metáfora, em
termos de construção ou edifício, e Maria identifica-se como o pilar desse edifício, daí ela
não poder “desabar”, visto que ela própria se identifica como sustentação da construção-
comunidade. Por meio dessa metáfora, Maria constrói uma imagem do modo como se
identifica em relação ao protagonismo, enfatizando o conflito existente na situação de ser
um pilar que se percebe frágil, que corre o risco de desabar face à impossibilidade de
resolver os problemas que se apresentam.
No segundo trecho em destaque no exemplo (24), a metáfora de construção se
presta à significação da própria trajetória de vida. Maria identifica sua atuação como
protagonista juvenil como sendo uma construção que resulta no significado de sua vida –
é a aquisição da consciência da desigualdade e do desrespeito aos direitos humanos
básicos (“só que aí você é consciente”) que a impede de ceder ao desejo de “entrar no
sistema” para “ganhar dinheiro” porque, em sua identificação com o discurso do

[203]
protagonismo e da consciência política, isso representaria abrir mão da ‘construção’ dessa
trajetória, “jogar fora” essa “vida construída”.
Há aqui o pressuposto da existência de um corte entre a satisfação de desejos
pessoais, em termos de necessidades materiais, e o engajamento na luta pela mudança
social. De acordo com esse pressuposto, ceder à busca da satisfação das próprias
necessidades está em oposição à dedicação à luta pelos direitos sociais universais. Esse
corte entre individualidade/coletividade é fonte de conflito para Maria. Assim, a jovem
percebe sua trajetória como protagonista em termos de uma luta contra o sistema – aderir ao
sistema é representado como trair sua luta, “jogar fora” o significado dessa trajetória. Mais
uma vez, percebe-se a perspectiva de impossibilidade de utilização de fissuras na estrutura
como recursos para a ação, pois há na representação uma oposição forte entre estrutura e
ação social. Ainda, nota-se que para Maria o protagonismo está fortemente atrelado a seu
trabalho junto ao Movimento: a jovem descarta a possibilidade de atuar como
protagonista em outro contexto profissional ou, em outras palavras, vê sua ação
protagonista como circunscrita ao trabalho que tenta desenvolver na organização.
Por fim, há dois mapeamentos metafóricos distintos em termos de guerra, ambos
na fala de Maria. No primeiro, o mapeamento da metáfora conceitual ‘A MOBILIZAÇÃO

SOCIAL É UMA GUERRA’ aparece em uma instância de discurso relatado em que Maria
representa a voz de Júlia, uma das educadoras do Movimento:

(25) Amanda: O remédio é você que vai mudar, é eu, as minhas filhas, as suas filhas….
Maria: Eu não acho não... sem mentira nenhuma, eu tô...
Rafael: Se aqui tá, por exemplo, aqui tá havendo uma reunião...
Maria: Como diz a tia Jú: “você tá muito nova pra pensar assim, eu que já tenho
tantos anos de luta eu não tô pensando assim”.

A significação da mobilização social em termos de guerra é forte no discurso do


Movimento, como pude notar em minha experiência com a observação de campo. Essa
metáfora é muito produtiva, no sentido de que permite mapear certos aspectos da
experiência em termos de ‘inimigos’ ou ‘obstáculos’, ‘derrotas’ ou ‘vitórias’ (Lakoff &
Johnson, 2004), e sobretudo permite representar a ação social em termos de luta. A
utilização dessa metáfora traz os pressupostos de que há inimigos a combater e que há

[204]
relações de poder envolvidas nessa “luta”. Quais são as armas? Quem possui o
armamento mais pesado e as melhores estratégias militares? Há outra instância na
interação analisada em que aparece uma metáfora de guerra. Observe-se o exemplo (26).

(26) Rafael: O problema circula, circula você e você não imagina! Nós tamos tendo
uma conversa aqui, uma conversa sincera, um diálogo muito bom, aí cada um vai
embora, aí chega na sua cidade é um problema que você preferia tá aqui e não ter
voltado pra lá. Porque se você soubesse o problema que ia rolar, você...
Maria: Porque é um refúgio... é um refúgio também... o Movimento é um refúgio.
Tem dia que eu não tenho vontade de voltar pra casa. Mas não porque eu não
goste da minha família, mas pra poder não enfrentar a minha realidade. É muito
difícil.

No trecho destacado em (26), nota-se que o mapeamento não é o mesmo. Nesse


caso, a metáfora conceitual é mais voltada para a estrutura social que para a ação; o que se
entende em termos de guerra é a pobreza. Com base na metáfora conceitual ‘A POBREZA É
UMA GUERRA’, ou melhor, ‘VIVER NA POBRÉIA É UMA GUERRA’, Maria identifica
metaforicamente o Movimento como sendo um refúgio, um lugar onde se proteger. A
identificação do Movimento como um refúgio é reiterada três vezes, em processos
relacionais atributivos, o que aponta a força da metáfora no processo identificacional. O
mapeamento metafórico da pobreza em termos de guerra é reafirmado no final do
excerto, quando Maria afirma preferir permanecer no “refúgio” a ser obrigada a
“enfrentar” sua “realidade”.40
Embora as duas metáforas de guerra pareçam contraditórias – uma focaliza a ação
enquanto a outra focaliza a estrutura social –, são na verdade complementares. Se a
estrutura é uma guerra, logo, a ação social precisa ser o enfrentamento dessa guerra, a
mobilização para vencer ‘os desafios’ impostos pela estrutura. Por isso, quando está em
sua cidade Maria sente que enfrenta a “realidade”, que enfrenta a estrutura e seus
obstáculos, está na posição de quem é ‘atacado/a’ nessa ‘guerra’, pois está no espaço

40 A representação do Movimento como refúgio/proteção também foi identificada em outras interações, como a
entrevista com Vera: “eles se sentem seguros no Movimento”, e a intervenção de Gabriel no Grupo Focal 2: “eu
estando no Movimento, ali, eu estava guardado”. Sobre esse aspecto de movimentos sociais, Castells (1999: 84)
explica: “as comunidades construídas por meio da ação coletiva e preservadas na memória coletiva constituem fontes
específicas de identidades. Essas identidades (...) constroem abrigos”.

[205]
identificado pela imobilidade da estrutura; mas quando está no Movimento, no espaço da
mobilização, no “refúgio” que a ‘defende’ ou a ajuda a ‘defender-se’, assume a posição de
quem ‘ataca’, de quem lança mão dos recursos disponíveis para ‘vencer obstáculos’. O
conflito decorre de que os recursos para a ação não se mostram suficientes para a fazerem
chegar à estrutura, de acordo com o corte que se constrói, discursivamente, entre
ação/mobilização e estrutura/imobilidade. Esse corte, muitas vezes repetido,
interiorizado, parece ser aquilo que prende o protagonismo ao discurso.

6.2 O Grupo Focal 2

A análise do recorte do Grupo Focal 2 baseia-se em três aspectos: a discussão em


torno da questão “o que é protagonismo juvenil”; a oposição entre dois significados de
protagonismo que emergem no recorte – o protagonismo no controle da própria vida e o
protagonismo nos espaços políticos; a contradição entre a necessidade de autonomia para
se excercer ação protagonista e a dependência de uma instituição legitimadora.
A discussão sobre a definição de protagonismo juvenil é dominada por Maria e
Amanda. Tanto Gabriel como Fernanda tomam a palavra três vezes; Gabriel arrisca uma
definição de protagonismo juvenil e Fernanda manifesta-se sobretudo para fazer
provocações a sua irmã Maria. Rafael não participa desse debate. O recorte inicia-se
assim:

(27) Viviane: Então o próximo eixo temático é o protagonismo juvenil. Então eu


começo do mesmo jeito que eu comecei hoje, perguntando o que é o Movimento,
para esse eu começo perguntando o que é o protagonismo juvenil.
Fernanda:Vai, Gabriel, fala aí, também. É para ter a sua opinião própria, não é?
Sobre protagonismo juvenil. Era para ter a sua opinião própria, não era o que a
gente tinha no Movimento?
Amanda: Também é ter uma opinião própria, é participar das mudanças. Mudança
constante para ser protagonista.
Viviane: Nada a dizer sobre protagonismo juvenil? Gabriel?
Gabriel: Eu posso dizer o quê sobre protagonismo juvenil, que eu estava
participando também?
Viviane: Não sei. Você tem alguma coisa a dizer sobre protagonismo juvenil?
Gabriel: Não sei. Depende em relação a quê.
Viviane: O que é o protagonismo juvenil.

[206]
Gabriel: O protagonismo juvenil? No meu ponto de vista, lá foi uma coisa tipo,
assim... de integração, né? O jovem protagonista, ele é um jovem que interage. Se
ele é protagonista, no caso, ele consegue participar de determinadas situações.
Não é isso mais ou menos?

Gabriel é constrangido a participar no debate, em primeiro lugar por Fernanda,


que em tom provocador desafia-o a uma “opinião própria”, fazendo referência ao
trabalho de nucleação do Movimento (“opinião própria, não era o que a gente tinha no
Movimento?”).41 Depois Gabriel é novamente levado a manifestar-se, dessa vez por mim,
quando apresento duas questões diretamente dirigidas a ele. Em suas respostas, Gabriel
lança mão de recursos de evasão, como as frases interrogativas (“Eu posso dizer o quê
sobre o protagonismo juvenil?”, “O protagonismo juvenil?”), as modalidades epistêmicas
baixas, denotando indefinição (“uma coisa tipo, assim…”, “no caso”) ou sugerindo baixa
afinidade com o conteúdo expresso (“de integração, né?”, “não é isso mais ou menos?”).
Assim, as intervenções de Gabriel indicam um desconhecimento do assunto, o que
também se pode depreender da ausência de definições por parte de Fernanda e Rafael,
embora não seja possível afirmar com certeza se não se expressaram porque não sabiam
ou porque não quiseram. Sobre meu estranhamento em relação à dificuldade de expressão
acerca de protagonismo, registrei em meu diário de campo:

Nesse grupo de hoje permaneceu evidente a insegurança de ex-meninos/as para falar


de protagonismo juvenil. É estranho porque é o tópico central do Movimento, e
ninguém explica direito o que é. Exceto a Maria e a Amanda, ninguém sabe dizer o
que seja protagonismo juvenil! (Nota de campo registrada em 11 de abril de 2006).

Na seqüência, a interação apresenta formulações acerca de protagonismo juvenil


que oscilam entre: (i) ter uma opinião própria; (ii) ser referência; (iii) repassar
conhecimento na comunidade. Vejamos as definições referentes ao primeiro caso no
exemplo (28):

41 Essa referência a ‘ter opinião própria’ volta a influenciar o debate no Grupo Focal 2 mais adiante, e é um dos

aspectos do Movimento salientados em outras interações etnográficas da pesquisa. Por exemplo, as entrevistas com
Joana: “um ambiente aonde tem várias crianças que podem se expressar, participando”; com Vera: “é um processo
de participação que os meninos têm voz”; com Júlia: “o menino que participa, que fala”.
[207]
(28) Amanda: Também é ter uma opinião própria, é participar das mudanças. Mudança
constante para ser protagonista.
[...]
Viviane: No sábado [anterior, por ocasião do Grupo Focal 1], quando a gente
falou sobre isso, de protagonismo juvenil, acho que foi você, Amanda, que disse
que ser protagonista era ter um desejo de mudança, ter uma opinião sobre as
coisas que acontecem e ter um desejo de mudança. É isso mesmo?42
Amanda: Não, você tem que ter a sua opinião. Por exemplo...
Maria: Não só o desejo de mudança.
Amanda: Mas assim, olha, exemplo, eu dou uma opinião aqui, “Você tem que
concordar com isso”. Porque mesmo ela não concordando, ela vai concordar?
Não. Ela tem a opinião dela, ela tem que falar a opinião dela, você entendeu?
Maria: Eu acho que ser protagonista, eu acho que é você ter vontade, sede de
mudança. Você ter a sua opinião própria, muitos jovens têm. Mas não é
protagonista. Porque aí eles acabam deixando aquela opinião própria. A sede de
mudança é por conta de uma outra pessoa que está superior a ele e faça que ele
não desista daquilo tudo, naquele momento. Ser protagonista é você ter que ter
voz, você ter voto, você poder ir, opinar e aquilo acontecer. E se você tiver
errado, você ter que entrar no consenso; se você tiver certo, você ir até o fim. (...)

A introdução do tema da ‘opinião própria’ no debate é influenciada pela


intervenção de Fernanda, voltada a Gabriel e transcrita no exemplo (27). A primeira
intervenção de Amanda nesse exemplo (28) é a seqüência imediata à fala de Fernanda;
Amanda retoma o termo introduzido na seqüência anterior para formular a primeira
definição direta de protagonismo juvenil na interação. Depois, o tema é reintroduzido por
mim, na pergunta que fiz a Amanda sobre o Grupo Focal 1. A resposta de Amanda a
minha questão conduz o debate que se instaura entre Maria e Amanda no trecho em
destaque, sintetizado no Quadro 6.1 a seguir:

42 A pergunta de confirmação que faço aqui (“É isso mesmo?”) não deve ser interpretada como imposição de uma

resposta determinada a Amanda, pois trata-se de uma retomada do que foi dito por ela no Grupo Focal 1: “o desejo
de mudança, a vontade de... um dia ver um menino pedindo esmola na rua e não se contentar com aquilo, se deparar
e... Sabe, você, como se você visse aquilo e quisesse mudar. Um desejo de mudança, assim, louco, como se o mundo
estivesse realmente doente e você fosse o remédio. Pequenas doses, dosagens pequenas, pequenas quantidades que
você vai passando, assim, é... Eu não tinha esse desejo de mudança em mim! Ele foi plantado de alguma forma.
Talvez eu tinha ocultado dentro de mim, mas aí ele ressurgiu assim, acho que da vontade de mudança mesmo, de
não gostar do que eu vejo, não tá nunca contente, não nunca contente com nada, mas descontente com essa forma
desumana que é o mundo hoje. Não o Brasil só, o mundo”. Na interação em grupo, meu papel era o de estimular o
debate sobre temas relevantes para a pesquisa, e um modo de fazer isso no Grupo Focal 2 foi trazer tópicos tratados
no Grupo 1, o que também foi útil para confirmar interpretações.
[208]
Ter uma opinião própria
Amanda Ter necessariamente uma opinião própria
Ter necessariamente uma opinião própria e expressar necessariamente essa opinião
Ter acesso aos espaços de deliberação e ter voz nesses espaços, debater sua opinião própria a
Maria fim de chegar a um consenso

Quadro 6.1 – Protagonismo e opinião própria

A primeira intervenção, de Amanda, esclarece – em resposta a Fernanda – que ter


opinião é uma parte do que define o/a protagonista, mas não encerra a definição (“também
é”), sentido completado em “é participar das mudanças”. Depois, Amanda introduz uma
modalidade de obrigatoriedade (“tem que ter a sua opinião”). As duas primeiras falas de
Amanda indicam, então, que ‘ter opinião’ não é condição suficiente mas é condição
necessária ao protagonismo. Também é com modalizadores de obrigatoriedade que
Amanda acresenta a necessidade da expressão dessa opinião própria: não basta ter
opinião, “tem que falar a opinião”, é preciso ser capaz de pontuar sua posição.
Maria acrescenta o elemento de discordância em relação à definição de Amanda:
não basta ter opinião e saber expressá-la, é preciso também “ter voz, voto, poder ir,
opinar e aquilo acontecer” – é necessário que a opinião do/a protagonista tenha um
peso na coletividade, é preciso ter acesso aos espaços de deliberação e que da
deliberação resulte uma ação. A expressão desses elementos acrescentados também é
modalizada como obrigatoriedade. Maria introduz também outro elemento ligado à
opinião: o consenso. Mais uma vez, na expressão do equilíbrio entre a firmeza de
opinião e a flexibilidade da busca do consenso, a modalidade deôntica de
obrigatoriedade é observada. Essa alta densidade de modalidades deônticas nas
definições de protagonismo juvenil de Maria e Amanda aponta a posição afirmativa de
ambas as jovens em relação ao conceito.
Nessas quatro definições destacados no Quadro 6.1 temos um crescendo que se
define pelo refinamento da formulação de protagonismo juvenil em relação à opinião e
pelo fortalecimento expresso no uso de modalidades deônticas, como ilustra a Figura 6.2:

[209]
1. TER OPINIÃO PRÓPRIA

2. TER QUE TER OPINIÃO 3. TER QUE EXPRESSAR 4. TER QUE TER VOZ E
PRÓPRIA + OPINIÃO PRÓPRIA + VOTO NOS ESPAÇOS DE
DELIBERAÇÃO

Figura 6.2 – Refinamento da definição de protagonismo juvenil como ‘ter opinião própria’

A Figura 6.2 ilustra o desenvolvimento no conceito de protagonismo juvenil no debate


que se instaura entre Maria e Amanda. A definição 1 aparece destacada na figura porque as
definições que se desenvolvem nos momentos posteriores têm por base essa primeira, que
relaciona protagonismo juvenil e opinião própria em linhas gerais e sem modalidade marcada.
Com base nessa primeira definição mais geral, constrói-se o refinamento do conceito, por meio
de formulações dependentes desse primeiro momento – por isso ele é destacado em um nível
mais alto na figura. Nos momentos subseqüentes, o conceito de protagonismo como ‘ter
opinião própria’ recebe modalidade de obrigatoriedade, na definição 2; é expandido para incluir
a necessidade de expressão dessa opinião, na definição 3; é completado com a necessidade de
essa opinião ter peso nos espaços de deliberação em que essa e outras opiniões são debatidas,
na definição 4.
Há ainda outro aspecto acrescentado na definição de protagonismo de Maria,
expresso de modo menos explícito: a opinião própria que define um/a protagonista precisa
estar ligada a um desejo de mudança. Essa “sede de mudança” é que implica a força da
opinião. Vejamos novamente o que disse Maria ao final do trecho destacado em (28):

Eu acho que ser protagonista, eu acho que é você ter vontade, sede de mudança.
Você ter a sua opinião própria, muitos jovens têm. Mas não é protagonista. Porque aí
eles acabam deixando aquela opinião própria. A sede de mudança [nesse caso] é por
conta de uma outra pessoa que está superior a ele e faça que ele não desista daquilo
tudo, naquele momento.

Embora a relação entre “sede de mudança” e opinião própria não esteja


estebelecida de modo explícito, é possível resgatá-la atentando para a relação causal

[210]
marcada por ‘porque’. É a relação causal que esclarece ser a sede de mudança a
responsável pela firmeza de opinião. Mas, segundo Maria ainda nesse trecho, a “opinião
própria” só será resistente caso a “sede de mudança” seja intrínseca, seja uma
característica própria do indivíduo, e não uma imposição de fora.
Outra formulação de protagonismo juvenil trazida ao debate – já discutida também
em referência ao Grupo Focal 1 – define-o em termos de ocupar uma posição referencial
na comunidade, ser líder, mobilizar outras pessoas. Vejamos os trechos destacados em (29):

(29) Viviane: É, porque eu estava pensando quando eu estava transcrevendo a fita [do
Grupo Focal 1]. Porque desejar mudança, todo mundo deseja. Mas não é isso que
faz você ser protagonista. O protagonista é a pessoa que…
Maria: Faz acontecer.
Amanda: Faz a diferença também, né? Ele é referência.
[...]
Maria: (...) O quê que é um protagonista? Não é você ser o diferencial? Não é
você tomar decisões? (...)
[...]
Maria: (...) Eu posso ser essa pessoa de chamar, de organizar e de articular, não
posso? (...)
[...]
Maria: A própria palavra fala: “protagonista”, o quê que... Por exemplo, quando
alguém começa uma novela, quem é o protagonista da novela? Não é a pessoa que
sempre [se] destaca?
Viviane: Hum-hum. O personagem principal.
Maria: Então, o protagonista é isso. Ele vai ser o personagem principal de uma
ação dentro da comunidade, ele vai ser a pessoa que vai articular, vai mobilizar, vai
chamar. Você entendeu? Protagonismo é isso.

Esses trechos são marcados pelo uso repetido de orações interrogativas na


expressão das definições de ‘protagonista’. As orações interrogativas poderiam indicar
baixa afinidade epistêmica com as proposições, dúvida, hesitação na formulação
discursiva do conceito. No entanto, parece-me que caracterizam a adoção de um tom
didático. Acredito que as duas jovens que tiveram atuação como protagonistas em suas
cidades – e que dominaram, como vimos, essa interação no Grupo Focal 2 –, percebendo
a incapacidade dos demais membros do grupo em formular definições acerca do tema
debatido, e em resposta a minha insistência na questão, acabaram por assumir esse tom
instrucional marcado por perguntas retóricas. A última intervenção de Maria no trecho
confirma essa análise: “Você entendeu? Protagonismo é isso.”
[211]
Uma terceira definição de protagonismo juvenil identificada na amostra discursiva
em análise caracteriza o/a protagonista como multiplicador/a de conhecimento. Essa
definição se ilustra na fala de Maria, transcrita no exemplo (30):

(30) Maria: Aí, então, ser protagonista, eu creio que é isso, é você ser a referência. Por
quê que a gente faz aqui no Movimento o Fala Juventude, que era formado por
protagonistas? Por que o Chic.com? A Caravana [da Cidadania]? Porque a intenção
desse projeto era você vir, se formar, ter o conhecimento e depois você levar para
a comunidade. Mas você ia ser o protagonista. Você vai ser o protagonista da sua
comunidade. Você vai levar o que você aprendeu dentro daquele grupo para
poder expandir dentro da comunidade.

De acordo com essa representação de protagonismo juvenil, o papel de


protagonista pressupõe uma trajetória em quatro passos aos quais, com base no exemplo
(29) e no Grupo Focal 1, podemos agregar um quinto. São eles:

1. “vir” [para uma organização]


2. “se formar, ter o conhecimento” [aprender “dentro daquele grupo”]
3. “levar [o conhecimento adquirido] para a comunidade”
4. “expandir [o conhecimento] dentro da comunidade”
5. tornar-se referência na comunidade

A formulação de protagonismo em termos de uma trajetória de vai-e-volta entre


comunidade-organização-comunidade representa a ação protagonista como dependente de
conhecimentos produzidos fora das cidades satélites onde deverão ser multiplicados; não
emerge das próprias necessidades da comunidade nem de conhecimentos/estratégias
produzidos em seu interior. Isso sugere uma relação de dependência da comunidade em relação
à instituição, que se traduz também na dependência das jovens em relação ao Movimento.
O segundo tópico identificado no recorte do Grupo Focal 2 é a oposição entre
dois significados de protagonismo que emergem no texto. O primeiro relaciona-o ao
controle da própria vida, ou seja, trata-se do protagonismo no domínio da ação cotidiana.
O segundo refere-se ao protagonismo em espaços de deliberação política – na esfera
pública, definida como espaços em que pessoas deliberam como cidadãs sobre questões
sociais e políticas (Chouliaraki & Fairclough, 1999). Essa divisão do conceito de
protagonismo é discutida no trecho transcrito a seguir:
[212]
(31) Maria: (...) E você achar os espaços. Porque ser protagonista, assim, todo mundo é
protagonista da sua vida. Só que você ser protagonista dentro de uma ONG, ser
protagonista dentro de um espaço político, aí que é a questão aonde o bicho pega,
principalmente em espaços políticos, que você vai ser protagonista. Isso é muito
complicado.
Viviane: É, porque eu estava pensando quando eu estava transcrevendo a fita [do
Grupo Focal 1]. Porque desejar mudança, todo o mundo deseja. Mas não é isso
que faz você ser protagonista. O protagonista é a pessoa que...
[...]
Maria: Mas é como eu falei. Para você achar esse espaço de protagonista é muito
difícil. Porque você é visto como... Você é tachado como o encrenqueiro, você é
tachado como: “Ai, vem ali a menina briguenta” [ri]. E é aquela questão daquela
cultura do contexto que a gente vive de que os adultos não dão muito crédito para
a gente que é jovem. Se você não tem uma formação profissional, se você não tem
uma formação acadêmica, minha filha, aí então que você não é vista como nada.

Em sua primeira fala no trecho destacado, Maria identifica três espaços de


protagonismo, que são organizados textualmente em níveis crescentes de complexidade.
Isso é ilustrado na Figura 6.3 a seguir:

PROTAGONISTA
DENTRO DE UMA ONG, PROTAGONISTA
PROTAGONISTA DA PRINCIPALMENTE EM
PRÓPRIA SUA VIDA DENTRO DE UM ESPAÇO
POLÍTICO ESPAÇOS POLÍTICOS

“TODO MUNDO É” “É AONDE O BICHO PEGA” “É MUITO COMPLICADO”

Figura 6.3 – Caráter crescente da complexidade do protagonismo

Esse caráter crescente da complexidade envolvida na ação protagonista em cada


um dos espaços deixa marcas textuais recuperáveis: no caso de complexidade mínima, o
protagonismo na vida cotidiana, que se refere às pequenas decisões rotineiras, não há
qualificadores que descrevam a atividade e ela é atribuída ao conjunto de seres humanos
(não farei referência aqui aos casos contemporâneos de escravidão ou a outros casos de
[213]
subjugo extremo, embora seja um discussão possível). Disso resulta sua representação em
termos universais, pois o processo relacional atributivo identifica “todo mundo” com
“protagonista da própria vida”. A ausência de qualificadores e circunstâncias sugere um
quadro de baixa complexidade desse tipo de protagonismo, em comparação com os
outros dois espaços textualmente construídos.
Em oposição a esse protagonismo na vida cotidiana está o “protagonismo dentro
de uma ONG, dentro de um espaço político”. A oposição é explicitamente marcada na
superfície textual por “só que” e, depois, por “aí é que é a questão aonde o bicho pega” –
‘aí é que está o xis da questão’, ‘aí é que são elas’. Essa estrutura lingüística “aí é que”
marca a oposição com o expresso anteriormente, e o qualificador “aonde o bicho pega”
(apesar da utilização do advérbio de lugar, trata-se de gíria com função de especificação da
complexidade da “questão” qualificada) esclarece a qualidade dessa diferença.
A essa oposição acrescenta-se outra nuança na seqüência, sugerindo uma
subdivisão dentro do anteriormente definido como protagonismo na esfera pública. Com
“principalmente em espaços políticos”, Maria separa a ação protagonista “dentro de uma
ONG” daquela desempenhada, diretamente, nos espaços de deliberação política – uma
coisa é a atuação protagonista dentro dos limites protegidos da ONG de que se faz parte,
outra é lançar-se aos espaços externos onde atuam os atores políticos e cuja deliberação se
pretende influenciar. Esse terceiro espaço recebe o mais alto grau de complexidade na
gradação, notadamente pelo uso dos advérbios “principalmente” e “muito”, o primeiro
construindo o aspecto circunstancial e o segundo pré-modificando o qualificador
“complicado”. Assim se marca textualmente a construção da oposição entre
protagonismo na vida cotidiana e na esfera pública, e da gradação entre protagonismo
dentro de uma ONG e em espaços políticos.
Em sua segunda intervenção no trecho, Maria esclarece o significado de “E você
achar os espaços”. A primeira parte dessa fala de Maria apresenta, em relação intertextual,
elementos claramente identificáveis também na entrevista de Vera: a necessidade de se
‘cavar espaço’ para a ação protagonista e a indisponibilidade de adultos/as para ouvir
jovens. Vejamos:

[214]
Então, a gente sabe que isso também é um processo lento, você se sentir parte. Até
porque, no Brasil, você não tem esse espaço político, é um espaço que você tem que
cavar, principalmente para jovens, dar voz para jovens na escola, na comunidade. Ser
protagônico não é uma coisa fácil (Entrevista com Vera).

Parece ser uma voz institucional interiorizada, um discurso do Movimento de que


seus membros se apropriam em suas representações. A conquista do “espaço de
protagonista” por jovens, tanto na representação de Maria quanto na de Vera, é
representada como difícil – “é muito difícil” para Maria; “não é uma coisa fácil” para Vera.
Tanto em uma quanto em outra representação, essa dificuldade é relacionada a uma
“cultura adultocêntrica” (o termo foi utilizado por Maria no Grupo Focal 1). O desafio
envolvido na participação cidadã de jovens pode ser entendido como um problema amplo
associado aos movimentos que lidam com o protagonismo juvenil, segundo Castro (2001:
518), para quem “a questão da participação dos jovens é mais complexa do que se denuncia,
baseando-se na cultura adultocrata de civilizações ocidentais, submetidas a divisão
geracional do poder”.
No caso de Maria, outro obstáculo representado é a falta de formação profissional:
“Se você não tem uma formação profissional, se você não tem uma formação acadêmica,
minha filha, aí então que você não é vista como nada”. A utilização reiterada de oração
condicional indica, na representação, como a legitimidade da ação protagonista encontra-
se condicionada a instituições – profissionais ou acadêmicas. Daí viria a relação de
dependência das jovens em relação ao Movimento, já identificada em outros dados? Na
falta da legitimação profissional ou universitária, o Movimento torna-se a instituição
legitimadora que lhes permite “achar esse espaço de protagonista”? Para Vera, sim:

É difícil organizar, não é fácil arranjar parceiro na comunidade, você é discriminado,


ninguém ouve adolescente, é difícil recurso; empresário não vai financiar uma menina
que tem sonho, ele vai financiar um projeto que já tem nome (Entrevista com Vera).

Isso nos leva à terceira questão levantada nesta análise do Grupo Focal 2: a
contradição entre necessidade de autonomia para ação protagonista e dependência de uma
instituição legitimadora. Vejamos o exemplo (32):

[215]
(32) Fernanda: Você sabe falar sobre protagonismo, Maria? Você sabe o que é?
Maria: Protagonismo? Eu acabei de falar.
Viviane: O quê que vocês acham que acontece nas oficinas? Porque você faz uma
oficina de protagonismo, você estava trabalhando na organização [do núcleo de
base da comunidade]...
Maria: Deixa eu te falar. Novo ensaio, no meu ponto de vista. Vou dar um
exemplo meu. No começo, para mim ser protagonista foi muito complicado.
Porque, por exemplo, dentro de uma instituição, você é protagonista, mas você
tem que ter uma instituição-âncora para poder estar te auxiliando nesse
protagonismo. Porque não adianta também você ir lá e gritar: “Ai, quero e
pronto!”. E aí? Sabe, em nome de quem?
[...]
Maria: Porque, na verdade, o protagonismo é um pouco você ser independente.
Ser um pouco independente nas suas ações, de tudo assim. Aí quando você vai
falar “protagonismo juvenil”… só que será que você é realmente independente?
Aí tem que fazer a reflexão.

O excerto destacado em (32) é a seqüência de um trecho da interação em que


questiono o fato de o conceito de protagonismo juvenil estar muito presente no discurso
do Movimento (“Na página da Internet, em tudo o que você lê sobre o Movimento, está
lá ‘protagonismo juvenil’”, disse eu) e, contraditoriamente, ser um conceito obscuro para
ex-meninos/as do Movimento. Perguntei: “Por que será que as pessoas não lembram o
que é isso, Maria?”. Quando ela ensaiou uma resposta a essa minha questão, Fernanda,
sua irmã, deu início ao trecho em (32), interrompendo-a em tom desafiador: “Você sabe
falar sobre protagonismo, Maria?”.
A resposta de Maria a essa provocação de Fernanda sugere uma contradição entre a
autonomia necessária ao protagonismo e a dependência de uma instituição legitimadora
para sua realização. A contradição autonomia/dependência institucional é percebida por
Maria e textualmente construída pela relação adversativa estabelecida entre “você é
protagonista” e “você tem que ter uma instituição-âncora”, explicitamente marcada por
“mas”. A necessidade de legitimação institucional é fortalecida por modalidade deôntica de
obrigatoriedade (“você tem que ter”). Essa contradição é justificada pela circunstância de
finalidade expressa em seguida: “para poder estar te auxiliando nesse protagonismo”.
O mesmo significado é reforçado a seguir, quando Maria representa a necessidade
de levar suas demandas a espaços de deliberação em nome de instituição que legitime as
mesmas demandas (“Sabe, em nome de quem?”). Ao mesmo tempo, a própria organização

[216]
da demanda é sugerida como algo a ser estabelecido no âmbito da “instituição-âncora”,
uma vez que a demanda feita fora da instituição é desqualificada na representação: “não
adianta você ir lá e gritar: ‘Ai, quero e pronto!’”.
O trecho final da seqüência aponta o caráter incipiente da autonomia conquistada:
“o protagonismo é um pouco você ser independente. Ser um pouco independente nas suas ações”.
Maria reorganiza a relação entre “um pouco” e “independente” no contexto do
protagonismo juvenil quando modifica a oração expressa, corrigindo-a. Na primeira
enunciação da oração, “um pouco” liga-se ao processo relacional, resultando uma
modalidade epistêmica baixa que mitiga a identificação expressa entre “protagonismo” e
“você ser independente”. Na oração reorganizada, “um pouco” passa a ser ligado ao
atributo “independente”, qualifica o atributo com uma intensidade baixa, modificando o
valor da independência com a qual se identifica “protagonismo”.
Se no primeiro caso o advérbio relativiza o valor da identificação expressa no
processo, no segundo caso o processo é deixado absoluto, o que ganha valor relativo é o
atributo. Essa relativização é coerente com a expressão anterior da dependência de uma
“instituição-âncora” e com a questão levantada em seguida: “será que você é independente?”.
Maria encerra o excerto demandando, com alta modalidade deôntica, uma reflexão sobre isso.
A essa reflexão dedicou-se minha pesquisa, cujo resultado tenho esperança seja útil para a
mesma reflexão no contexto do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua.

Algumas considerações

No Grupo Focal 1, identificam-se duas delimitações de espaço-tempo: uma divisão


temporal entre o período anterior e o período posterior ao engajamento das jovens com o
MNMMR/DF e a identificação de dois ‘espaços’ em oposição, o espaço das cidades satélites e
o espaço do Movimento. A consciência da desigualdade e do desrespeito aos direitos
assegurados torna-se fonte de conflito quando se comparam os espaços em oposição. Isso
está de acordo com a contradição entre o discurso do protagonismo juvenil e o discurso da
imobilidade da estrutura social, que parece bloquear a ação social concreta.

[217]
O discurso do protagonismo juvenil representa a ação das jovens em suas cidades e
resulta em sua identificação como protagonistas. A carência de recursos materiais disponíveis
para a ação do Movimento e das jovens protagonistas, contudo, é representada como um
obstáculo material para sua ação social. Embora construam para si identidades de resistência
(Castells, 1999), as jovens expressam conflito na materialização de seus projetos de mudança
social. O discurso do protagonismo juvenil é interiorizado pelas jovens na construção de suas
identidades, mas a transformação social é um desafio que lhes parece utópico.
Esse sentimento de ‘mãos atadas’, forte na identificação das participantes quanto ao
espaço das cidades satélites, entra em contradição com a identificação do espaço do
Movimento como espaço de transformação, de participação e de luta pela garantia de
direitos. É essa contradição que parece definir o protagonismo juvenil no Movimento,
caracterizando-o como um discurso que atravessa todas as suas atividades e as
representações que delas se fazem, mas não chega a adquirir contornos mais concretos no
nível da ação. A ação aprendida no espaço do Movimento não parece chegar ao espaço da
cidade satélite, frustrando o projeto de protagonismo. Isso indica o caráter discursivo do
protagonismo e indica a relação de dependência existente entre as jovens e o Movimento.
A análise das metáforas conceituais no recorte do Grupo Focal 1 nos ajuda a
compreender algumas contradições entre o protagonismo juvenil como discurso e os projetos
de ação concreta. A metáfora da desigualdade social como doença opera uma dissimulação
das responsabilidades políticas e sociais, uma vez que a doença, em nossa cultura, é
geralmente vista como algo que simplesmente ocorre. A metáfora da ação social como
ignição, por outro lado, indica que a realização dos projetos de mudança depende de uma
atitude dos atores interessados na mudança; deve iniciar-se, portanto, pela ação protagonista.
O mapeamento metafórico da construção salienta a fragilidade do protagonismo
juvenil em situações de carência de condições materiais para a ação concreta, e mostra que a
contradição entre discurso e prática é fonte de conflito e sofrimento. O uso dessa metáfora
indica que o próprio protagonismo também é ainda demasiado discursivo e pouco ativo,
pois embora as jovens se considerem protagonistas permanecem dependentes do
Movimento para a realização de sua mobilização social. Em contrapartida, a identificação de
sua vida como uma construção que tem sua fundação na consciência da necessidade de

[218]
mudança social sinaliza a identidade de resistência e a possibilidade de consolidação da
identidade de projeto (Castells, 1999). Se a estrutura social impõe às jovens uma guerra
diária, elas se mostram ao menos dispostas a buscar caminhos para o enfrentamento dos
obstáculos impostos, embora nem sempre se sintam capazes de fazê-lo.
Assim, o corte entre a mobilização voluntária que define o protagonismo e a
imobilidade atribuída à estrutura social traz uma contradição irreconciliável, uma vez que
ação e estrutura se vêem de tal forma separadas que a crença na mudança social – base
inegável do protagonismo – é enfraquecida pela impregnação da estabilidade do sistema.
Para o protagonismo se desvencilhar de seu caráter meramente discursivo é imprescindível
que atores sociais que se identificam como protagonistas enxerguem nas estruturas sociais
não só o que constrange sua ação, mas também o que lhe serve de recurso: é preciso que
saibam identificar as fissuras da estrutura para utilizá-las em favor da ação social criativa.
Parece que o trabalho de formação de protagonistas no contexto do Movimento não
foi suficiente para isso, talvez em virtude de sua conjuntura de crise, talvez pelo encerramento
da linha de atuação ligada à formação de educadores/as, que se relaciona à profissionalização
de uma equipe preparada para lidar com o protagonismo, não só como ideal, conceito, mas
também em termos práticos. A responsabilidade que foi depositada sobre essas jovens,
entretanto, não levou em consideração a ausência desse trabalho de formação.
No Grupo Focal 2, além do protagonismo como papel referencial na comunidade,
emerge um significado de protagonismo como multiplicação de conhecimento, como
trajetória que implica aquisição de conhecimento numa instituição e sua posterior expansão.
Essa definição de protagonismo encerra três relações de poder baseadas em conhecimento:
(i) o/a aspirante a protagonista depende de um grupo, uma “instituição-âncora” para
adquirir o conhecimento necessário à ação protagonista; (ii) o/a protagonista torna-se
detentor/a de um conhecimento que sua comunidade não possui e é esse conhecimento
que se torna um “diferencial” e faz dele/a “referência”; (iii) esse conhecimento é formulado
fora da comunidade, trazido da instituição legitimadora. Assim, de acordo com essa
representação, a ação protagonista depende de conhecimentos formulados fora da
comunidade, o que sugere uma relação de dependência da comunidade em relação à

[219]
instituição. Essa dependência comunidade/instituição repete-se na relação estabelecida
entre as jovens e o Movimento.
Além disso, são construídos conceitos diferenciados de protagonismo em relação à
vida cotidiana e à esfera pública. O protagonismo no mundo da vida refere-se às decisões
rotineiras da vida cotidiana, ao passo que o protagonismo na esfera pública diz respeito aos
espaços de deliberação política. A esfera pública subdivide-se no espaço institucional do
Movimento e nas esferas mais amplas, que ultrapassam esse ambiente institucional.
Ainda em relação ao significado de protagonismo juvenil emergente na amostra, há a
representação da necessidade de conquista de espaços fora da comunidade e fora do
Movimento, nessas esferas amplas de ação política – primeiro, pela percepção da juventude
no Brasil, pois a “cultura adultocêntrica” não lhe permite efetiva participação em espaços de
deliberação; segundo, pela falta de legitimação profissional ou acadêmica, no caso de jovens
considerados/as desqualificados/as, que lhes sirva de passaporte para a participação nesses
espaços. O resultado é, mais uma vez, a dependência que se estabelece entre as jovens e o
Movimento, que cumpre o papel de legitimação de suas demandas.
A contradição entre a necessidade de autonomia para o desempenho da ação
protagonista e a dependência de uma instituição legitimadora é o aspecto mais significativo
desses grupos focais. A interiorização dessa dependência pode ser o que impede as jovens
de buscar meios próprios de agir em suas cidades quando deparam com uma conjuntura de
crise que impede o Movimento de lhes prover suporte para sua ação. A definição do
Movimento como instituição legitimadora (“instituição-âncora”) é sugestiva desse traço na
relação: âncora aqui é aquilo que localiza, prestigia; mas âncora é também aquilo que
prende, imobiliza.

[220]
7
SER MENINA E SER JOVEM NO MNMMR/DF: AS 
ENTREVISTAS COM MARIA E JOANA  
 
 
O Movimento foi muito bom na minha vida e ainda é. É
uma coisa que faz parte da vida da gente mesmo e da
comunidade. Nunca vai deixar de fazer parte. Eu espero
que eu possa participar do Movimento sempre. Mas
voluntariamente, com prazer, com alegria, com
disponibilidade, fazendo uma coisa que eu acho que é
muito linda.
(Entrevista com Joana)

N este capítulo, apresento análises de recortes das entrevistas com Maria e Joana
(ver Capítulo 4). Nas entrevistas, investigo as representações das jovens acerca do
Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e de suas atuações junto à
organização, e os modos como essas representações influenciam sua identificação como
meninas, adolescentes, jovens, militantes, educadoras. Analiso as contradições entre o
protagonismo juvenil como discurso e as experiências vivenciadas pelas jovens e
representadas em suas entrevistas.
O capítulo está dividido em duas seções. Na primeira, desenvolvo uma análise da
entrevista com Maria. Mostro como a utilização das modalidades epistêmicas e deônticas
por Maria sugere incerteza em relação a suas representações, por um lado, e segurança em
relação à necessidade de mobilização social, por outro. Analiso os modos como a
identificação de Maria na entrevista está relacionada ao desempenho de papéis junto ao
Movimento, denotando um corte entre sua participação como menina/adolescente e sua
ação como jovem/educadora. Na segunda seção, debruço-me sobre a entrevista com
Joana, para analisar suas representações sobre o que é ser menina no Movimento e sobre
os eventos ligados à transição de seu papel para educadora em sua cidade. Os recortes das
entrevistas com Maria e Joana podem ser consultados no Anexo C.
7.1. A entrevista com Maria

Inicio a análise discursiva do recorte da entrevista com Maria destando as


modalidades epistêmicas e deônticas utilizadas na explanação de seus sentimentos acerca
da organização. No exemplo (33) destacado a seguir, há uma curiosa combinação de
elementos modalizadores de alta e baixa afinidade. O trecho destacado foi a resposta de
Maria a uma questão aberta sobre o Movimento:

(33) Viviane: Eu queria que você me falasse sobre o Movimento.


Maria: Há quatro anos eu entrei [voltei para] no Movimento. Entrei com uma
expectativa meio assim de que... Na verdade eu estava um pouco sem rumo na
vida – eu acho que estou até hoje. Mas tem o Movimento e eu não sei nem
explicar por que eu não consigo viver sem estar aqui. Eu tenho que vir aqui e
estar fazendo alguma coisa, sei lá. Pô, o Movimento é muito complicado falar.
Como seria essa relação de: o Movimento? Eu acho que eu me sinto muito
protegida dentro dele. Não consigo me imaginar fora dele, por exemplo, num
trabalho formal. Por mais que eu não ganhe, no momento, nada por ele. Mas, de
certa forma, eu posso contribuir para ele. Acho que é mais porque eu acredito
nessa mudança. Enfim, não sei.

No exemplo (33) nota-se uma baixa afinidade de Maria com a definição do que diz
(graus de incerteza), mas uma alta afinidade com a veracidade do que diz
(comprometimento com a verdade), em termos da modalidade epistêmica. Na segunda
parte do trecho, após a ruptura marcada por “Mas tem o Movimento”, aparecem
modalidades de natureza deôntica, com alta afinidade com a necessidade. Embora a
entrevista etnográfica seja uma interação em que predominam as trocas de informação,
com papéis claramente marcados – meu papel como solicitante de informação e o dela
como possuidora da informação solicitada –, nesses trechos em que aparecem
modalidades deônticas de necessidade, Maria assume uma posição de quem demanda (“eu
tenho que vir aqui e estar fazendo alguma coisa”) ou oferece (“eu posso contribuir para
ele”) uma atividade, ligada a sua atuação no Movimento. Vejamos esse mesmo trecho
organizado no quadro a seguir, em que ilustro a discussão sobre os dois momentos:

[223]
Entrei com uma expectativa meio assim de que... Modalidade epistêmica baixa (indefinição)
Na verdade Epistêmica alta (certeza)
eu estava um pouco sem rumo na vida Espitêmica baixa (mitigação)
– eu acho que estou até hoje. Epistêmica baixa (incerteza)
Mas tem o Movimento RUPTURA – Introduz o elemento Movimento
e eu não sei nem explicar por que [ eu não consigo Epistêmica alta (tomado por pressuposto)
viver sem estar aqui. Deôntica alta (necessidade)
Eu tenho que vir aqui e estar fazendo alguma coisa, Deôntica alta (necessidade)
sei lá. Espistêmica baixa (indefinição)
Pô, o Movimento é muito complicado falar. Epistêmica baixa (incerteza), mas com advérbio
Como seria essa relação de: o Movimento? Eu de alta afinidade com a proposição
acho que eu me sinto muito protegida dentro
dele.
Não consigo me imaginar fora dele, por exemplo, Deôntica alta (necessidade)
num trabalho formal.
Por mais que eu não ganhe, no momento, nada Epistêmica baixa (indefinição)
por ele. Mas, de certa forma, eu posso contribuir Deôntica média (possibilidade)
para ele.
Acho que é mais porque [ eu acredito nessa Epistêmica baixa (incerteza)
mudança. Enfim, não sei. Epistêmica alta (tomado como pressuposto)
Epistêmica baixa (incerteza)

Quadro 7.1 – Modalidade no Exemplo (33)

Na primeira parte do trecho, até a inserção do Movimento como elemento de


ruptura na narrativa, as modalidades são de natureza epistêmica e subjetiva.43
Predominam as modalidades de baixa afinidade, denotando graus de incerteza e
indefinição, embora Maria apresente afinidade alta com a veracidade dos eventos que
narra. Até esse ponto de ruptura trata-se de uma narrativa, como indicam os verbos no
passado, tempo do mundo narrado. Após a inserção do elemento de ruptura, entretanto,
o foco desloca-se da narrativa para o comentário: o tempo verbal passa a ser o presente,
do mundo comentado. Entre as modalidades de caráter epistêmico, continuam
predominando as baixas, relativas a graus de incerteza e indefinição. Assim como na
primeira parte, as duas modalidades epistêmicas altas localizadas na segunda parte
referem-se a comprometimentos com a verdade, desta vez materializados como

43A modalidade subjetiva, em oposição à modalidade objetiva, diz respeito aos casos em que a fonte subjetiva das
proposições é explicitada – por meio do uso de estruturas lingüísticas como ‘eu acho’, ‘creio que’, ‘na minha opinião’
(ver Seção 8.1).
[224]
informações pressupostas em orações encaixadas de valor causal. O que aparece de
diferente nessa segunda parte do trecho é a introdução de modalidades de natureza
deôntica, com afirmações de possibilidade e necessidade, sempre relativas à participação
(modalidades deônticas altas) e à atuação (modalidade deôntica média) no Movimento.
A alta densidade de modalidades epistêmicas baixas sugere que Maria assume uma
incerteza sobre seus próprios conhecimentos/sentimentos em relação ao Movimento e
em relação a sua própria percepção dos eventos narrados, no caso da primeira parte.
Apresenta, entretanto, alta afinidade com a verdade do que diz e com a intensidade do
que sente. O estudo das modalidades deônticas confirma, na identificação de Maria, a
expressão de uma necessidade de fazer parte dessa história, de estar no Movimento, de
contribuir em suas atividades.
Há uma oposição entre “sem rumo na vida” e “me sinto protegida”: o Movimento
é representado como solução para o problema identificado por Maria. Essa oposição
explica o significado expresso em “eu não consigo viver sem estar aqui”, trecho que
denota uma relação de necessidade, dependência de Maria em relação ao Movimento. Na
entrevista com Vera, a educadora formula a mesma relação em termos de segurança: “eles
se sentem seguros no Movimento”.
A representação do Movimento em termos de segurança ou proteção é deslocada
quando Maria passa a discorrer sobre os diversos papéis exercidos por ela junto à
organização: como menina (antes) e como jovem (agora). Analiso a identificação de Maria
em relação às atividades assumidas por ela no Movimento, em termos de uma
‘identificação relacional’, uma vez que Maria não se identifica a partir de características
próprias, mas a partir das relações que estabeleceu/estabelece com o Movimento.44 Para
investigar como isso acontece, analiso os tipos de processos verbais associados a sua
identificação como menina/adolescente e como jovem/educadora, e sua reflexão acerca
do processo de mudança de papel, mostrando que no trecho em análise a identificação de
Maria está fortemente atrelada a sua perspectiva sobre participação/ação na organização.

44 Não me refiro aqui à categoria hallideana de processos identificativos relacionais, mas a uma identificação
discursiva que tem por base os papéis desempenhados em relação à instituição. A análise, entretanto, recorre também
à categoria de Halliday (veja a seguir).
[225]
A identificação de Maria em relação ao Movimento transita entre seu papel de
menina e adolescente (passado) e seu papel de educadora e militante (presente). No
trecho da entrevista a ser analisado, seqüência dada por Maria à questão “O Movimento
antes e o Movimento agora. Você saberia estabelecer uma comparação?”, percebe-se essa
relação entre sua condição específica como participante do Movimento e sua
identificação. É interessante notar que quando fiz essa questão eu tinha em mente as
mudanças conjunturais do Movimento, em relação à crise (ver Capítulo 1), mas Maria
interpetou a questão diferentemente, em relação a seu próprio papel na organização. Os
exemplos que seguem são referentes a essa seqüência – e à discussão acerca da atuação de
Maria como educadora – e estão organizados na ordem em que aparecem na interação. O
primeiro trecho é o exemplo (34), destacado a seguir.

(34) Viviane: O Movimento antes e o Movimento agora. Você saberia estabelecer uma
comparação?
Maria: O Movimento antes era mais protetivo. Eu era a menina atendida pelo
Movimento. Eu não precisava pensar tanto. Tinha alguém por mim dentro do
Movimento dizendo…. Enquanto adolescente, né? Eu era a menina que era
chamada para a atividade, menina que era convidada para ir falar sobre o
Movimento em algum lugar. Eu era a menina que era convidada pelo Movimento
para participar das manifestações e tudo isso. E agora mudou um pouco essa
relação porque eu já sou jovem, né? Quase adulta. (...) Mas eu atuo enquanto
jovem, atuo enquanto educadora do Movimento e tal.

Nesse trecho inicial da seqüência, é interessante notar que Maria projeta


diferentemente, em termos de processos verbais, a representação do que é ser menina e
do que é ser educadora no MNMMR/DF. Organizo essa diferença no Quadro 7.2, a seguir,
em que traço um paralelo entre os dois tipos de representação.

1. Eu era a menina 2. Eu atuo enquanto educadora


Eu era a menina atendida pelo Movimento. (...) Eu
era a menina que era chamada para a atividade, (...) E agora mudou um pouco essa relação porque
menina que era convidada para ir falar sobre o eu já sou jovem, né? Quase adulta. (...) Mas eu atuo
Movimento em algum lugar. Eu era a menina que enquanto jovem, atuo enquanto educadora do
era convidada pelo Movimento para participar das Movimento e tal.
manifestações.

Quadro 7.2 – Processos verbais na representação menina/educadora

[226]
Os processos verbais destacados no trecho da esquerda, na Coluna 1, são todos
processos relacionais identificativos45, que identificam ‘eu’ com ‘a menina’. As
atividades do Movimento em relação a esse ser-menina são, em todos os casos,
representadas no sistema de transitividade como pós-modificadores do núcleo do
identificador no processo identificativo, “menina” (“atendida pelo Movimento”, “que
era chamada”, “que era convidada”). As atividades da “menina” em relação ao
Movimento são representadas como circunstâncias de finalidade localizadas ao final
das orações (“para a atividade”, “para ir falar sobre o Movimento”, “para participar
das manifestações”). A Figura 7.1, a seguir, ilustra a organização dos processos
relacionais no sistema de transitividade:

Eu era a menina (processo relacional identificativo)

(que era) convidada (pós-modificador da característica)

para a atividade (circunstância de finalidade)

Figura 7.1 – Processos relacionais na identificação de Maria como menina

As atividades realizadas pelo Movimento em relação à menina (atender, chamar,


convidar) e pela menina no Movimento (falar, participar) são organizadas como parte do
sistema de transitividade dos processos relacionais utilizados para a identificação de Maria
como ‘menina’, são parte da identificação desse papel, modificam o significado de
‘menina’ (pós-modificadores) e acrescentam-lhe um contexto (circunstâncias).

45Em processos relacionais identificativos “alguma coisa tem uma identidade a ela associada. O que isso significa é
que uma entidade é utilizada para identificar outra: ‘X é identificado por A’ ou ‘A serve para identificar X’.
Estruturalmente, rotulamos o elemento X, o que é identificado, como Identificado, e o elemento A, o que serve
como identidade, como Identificador” (Halliday, 2004: 227).
[227]
Para além da representação em termos dos tipos de processos verbais utilizados
no sistema de transitividade, nota-se também a construção de um papel passivo para
‘menina’, tendo em vista o uso de estruturas verbais passivas (“menina atendida”,
“menina (que era) chamada”, “menina (que era) convidada”) em que o agente, expresso ou
não, é sempre ‘o Movimento’. O aspecto ativo da atuação como menina é sempre
rematizado, como vimos, no papel de circunstância (“para a atividade”, “para ir falar”,
“para participar das manifestações”). Assim, tanto as escolhas de processos verbais,
quanto as estruturas passivas e a rematização do tipo de ação realizada contribuem para
a construção discursiva de um papel passivo na representação do que é ser ‘menina’ no
Movimento, o que se confirma em “eu não precisava pensar tanto” – a representação
discursiva de ‘menina’ nesse trecho está em oposição tanto à ação quanto à reflexão no
âmbito da organização.
Já os dois processos destacados na Coluna 2 do Quadro 7.2, referentes à
identificação de Maria como educadora, são processos materiais (“eu atuo enquanto
jovem, atuo enquanto educadora”) referentes a uma atuação relacionada ao que é ser
educadora.46 Maria não se identifica como educadora por meio de um processo
relacional (do tipo ‘eu sou educadora’ ou ‘eu me tornei educadora’), opta por um
processo material em que o papel de educadora é deslocado para a posição de
circunstância de modo (“enquanto educadora” – como educadora). É plausível imaginar
que essa escolha esteja relacionada a sua dificuldade em definir seu papel atual no
Movimento, como procurarei demostrar a seguir. Antes, porém, vejamos o próximo
trecho da seqüência, destacado no exemplo (35):

(35) E é uma diferença muito grande porque quando você sai dessa relação de menina,
dessa condição de jovem e você vai para uma condição de educadora é uma
responsabilidade muito grande você compreender melhor o que é o Movimento,
qual é a conjuntura dele... Enfim, você estar por dentro de tudo do Movimento.

46“Processos materiais são processos de fazer e de acontecer” (Halliday, 2004: 179). Essa representação ‘atuar como’
também tem um caráter identificativo, já que se trata de assumir atividades (atuações) ligadas a um determinado papel
no Movimento. A questão é que para construir discursivamente essa identidade Maria opta por processo material. O
mesmo se observa a entrevista de Joana (veja a seguir).
[228]
Nesse trecho, Maria passa a discorrer sobre o processo de mudança de papel,
de menina para educadora. Essa ‘diferença’ é representada por meio de uma metáfora
de deslocamento espacial (“sai dessa”/“vai para”) com base em deslocamento
temporal da identificação (‘deixa de ser’/‘passa a ser’). Ilustro esse deslocamento no
tempo/espaço na Figura 7.2:

sai dessa/vai para – metáfora de deslocamento espacial (deixa de ser/passa a ser)

1 2
tempo/espaço (metafórico)

ser menina/adolescente atuar como jovem/educadora

Figura 7.2 – Deslocamento tempo/espaço (metafórico) na identificação de Maria

Esse deslocamento tempo/espaço é representado como sendo “uma


responsabilidade muito grande”, o que está de acordo com a análise do Grupo Focal 1.
Assim como no grupo focal, nesse trecho Maria articula o pronome ‘você’ utilizado como
pronome indefinido, para se referir a sua própria experiência (ver Seção 6.1). A mesma
estratégia de identificação por meio do pronome ‘você’ como indefinido é utilizada na
seqüência destacada no exemplo (36), a seguir:

(36) Quando você é adolescente não, você está por dentro do Movimento, só que da
parte de participação mesmo, não de ações diretas que é você ir para a
comunidade, você formar um núcleo, você ser responsável por aquele núcleo,
você ser responsável pelo que você vai estar passando para aqueles adolescentes
que estão lá também. Então, essa é a grande diferença. Essa questão da
participação: de um lado enquanto jovem e de outro enquanto adolescente.

No exemplo (36), Maria apresenta uma reflexão sobre o processo de mudança de


papel identificado no exemplo (35). Mais uma vez, como vimos no exemplo (34), os
processos que representam a identificação de menina/adolescente são relacionais,
cabendo à representação da atividade de jovem/educadora não só processos relacionais,
mas também processos materiais. Vejamos o Quadro 7.3:
[229]
1. Quando você é adolescente 2. [Quando você é educadora]
você está por dentro do Movimento, só que da (...) ações diretas que é você ir para a comunidade,
parte de participação mesmo (...) você formar um núcleo, você ser responsável por
aquele núcleo, você ser responsável pelo que você
para aqueles adolescentes que estão lá também vai estar passando

Quadro 7.3 – Processos verbais na representação adolescente/educadora

Enquanto na Coluna 1 os processos de representação da condição de adolescente


no Movimento são relacionais (‘estar por dentro’/‘estar no Movimento’), na Coluna 2
entre os processos implicitamente relacionados à condição de educadora há também
processos materiais (‘ir para a comunidade’/‘formar um núcleo’). Os processos
relacionais ligados à atividade como educadora referem-se à responsabilidade que
decorre de tal atividade, de acordo com o que vimos. Nesse trecho, percebe-se que a
condição de adolescente relaciona-se à participação (“da parte da participação mesmo”)
e a condição de jovem/educadora à ação (“ações diretas”). Há, então, um corte entre
participação e ação, e é essa diferença que define a identificação de cada um dos papéis.
Esse corte reforça o caráter passivo da condição de ‘menina’, em oposição ao papel
ativo de ‘educadora’ (o mesmo corte participação/ação volta a ser identificado na
Reunião 1; ver Seção 8.1).
No exemplo (37), Maria dá continuidade a sua reflexão acerca da mudança de
papéis em relação ao Movimento:

(37) Viviane: Então vamos falar sobre a sua atuação como educadora no
Movimento…
Maria: No momento eu não estou atuando tanto enquanto educadora porque o
Movimento está passando por essa conjuntura toda, essas dificuldades todas. Mas
eu digo que não é muito bom ser educadora. Eu digo que, às vezes, eu queria
voltar a ser criança. É, porque é muito forte a responsabilidade, é muita cobrança.
Eu acho que o sonho de todo menino que passa pelo Movimento é de ser
educador. E, de repente, quando ele se torna educador, ele vê que não é tão legal
assim.

[230]
Nesse trecho, Maria refere-se ao encerramento das atividades de nucleação em
Campina, justificando a interrupção de seu trabalho como educadora (“eu não estou
atuando tanto enquanto educadora”) pela conjuntura de crise do Movimento, que levou
ao encerramento das atividades em todos os núcleos do DF. Maria assume o caráter
subjetivo de sua reflexão, adotando modalizadores subjetivos (‘eu digo’, ‘eu acho’). É a
partir desses processos de ‘dizer’ e ‘achar’ (‘considerar’) que ela projeta sua reflexão (“não
é muito bom ser educadora”/“eu queria voltar a ser criança”/“o sonho de todo menino
que passa pelo Movimento é ser educador”).
Maria realiza esse sonho, mas frustra-se ao se dar conta de que “é muita
responsabilidade, muita cobrança” e de que “não é tão legal assim”. O mesmo conflito
percebido no Grupo Focal 1 repete-se aqui: o ser educadora depende do atuar como
educadora, e isso traz dificuldades que são fonte de conflito.
Por fim, no último trecho da seqüência, destacado no exemplo (38), Maria torna
explícita sua dificuldade de identificação em relação ao Movimento e ao desempenho de
papéis – mostra a tensão entre as condições de educadora, militante e articuladora:

(38) Viviane: Qual é a ajuda que você recebe do Movimento para atuar como
educadora?
Maria: Aí o Movimento... Eu acho que é mais na parte da formação do educador.
Eu não peguei essa parte de formação do educador no Movimento porque
quando eu entrei [voltei pro] no Movimento, ele já estava passando por esses
problemas.
Viviane: Ah já?
Maria: Já, há quatro anos atrás. Então a formação de educador não... Assim, “a
formação de educador a gente vai sentar lá, não-sei-o-quê”. Então, eu sempre
tento correr atrás da minha capacitação, participando dos seminários, participando
de congressos, de conferências e lendo sobre participação popular, sobre o que é
o educador, o que é ser educador. Eu mesmo tento me capacitar porque o
Movimento nessa atual conjuntura não oferece essa capacitação. Na verdade, eu
nem sei se posso dizer que eu sou educadora até porque também educador não é
uma profissão formal, então eu não sei como é que fica essa relação, se eu posso
dizer que eu sou educadora, se eu sou é militante que mobiliza os jovens na
comunidade. Enfim, está um pouco confuso para mim. Estou procurando saber o
que é que eu sou. Por enquanto acho que eu sou mais uma jovem articuladora
mesmo, militante.

Minha primeira pergunta no excerto (38) foi mal formulada: carrega um


pressuposto indesejável nesse tipo de interação. Assim, teria sido mais adequado eu
[231]
perguntar “Você recebe alguma ajuda do Movimento para atuar como educadora?”, mas
não foi o que eu perguntei, e só depois me dei conta de que me falhara a atenção. Seja
como for, em sua resposta Maria retoma meu pressuposto – de que havia algum tipo de
ajuda – e localiza essa ajuda nos espaços de formação de educadores, que podem, nos
termos de Lave & Wenger (1991), ser identificados como espaços legitimados para a
participação periférica:

Espaços legítimos para a participação periférica provêem um modo de se


pensar nas relações entre membros novos e antigos e sobre atividades e
identidades em comunidades de prática. A intenção de uma pessoa em
aprender é engajada, e o significado da aprendizagem é configurado por
meio do processo de se tornar um participante completo em uma prática
sociocultural (Lave & Wenger, 1991: 29).

No caso da atuação das jovens no Movimento, talvez fosse mais adequado pensar
nos espaços de formação de educadores/as como espaços legítimos para a mudança de papel.
Por meio desses espaços de formação, seria possível uma transição menos traumática
entre os papéis de menina e de educadora – no sentido de possibilitar uma transição
considerada legítima, institucionalmente legitimada, em que por meio da democratização
de saberes e recursos simbólicos específicos da participação como educadoras em espaços
formalmente formulados para tanto elas pudessem conquistar com reconhecimento sua
identificação como educadoras.
Mas Maria acrescenta, na seqüência imediata, que essa ajuda ela própria – assim
como as demais jovens suas contemporâneas no Movimento – não recebeu, o que
justifica pela conjuntura de crise. Ela retoma meu pressuposto (de que haveria algum tipo
de ajuda por parte do Movimento) para logo em seguida desconstrui-lo. Tentou suprir a
carência dos espaços de formação por meio próprios – “eu sempre tento correr atrás da
minha capacitação” – mas o caráter deslegitimado desses meios, em termos institucionais,
verifica-se na colocação entre “Eu mesmo tento me capacitar porque o Movimento nessa
atual conjuntura não oferece essa capacitação” e “Na verdade, eu nem sei se posso dizer
que eu sou educadora”. Parece-me que a falta de espaços legitimados para a mudança de
papel é parte importante do conflito experienciado pelas jovens, que por não sentirem sua
participação como legítima não são capazes de se identificar como educadoras.
[232]
O que se segue é uma tentativa de identificação em relação às atividades
desenvolvidas no Movimento. Essa identificação relacional é fortemente marcada pela
indefinição de papel. Maria associa ação e condição em sua identificação: ela já não é
criança (embora às vezes deseje voltar a ser, fazer o caminho inverso em seu
deslocamento espaço-temporal), mas não se identifica claramente como educadora, como
profissional. Encontra, então, um meio termo: é uma militante que mobiliza, uma jovem
articuladora. Tendo isso em vista, perguntei-lhe:

(39) Viviane: E o que é ser militante do Movimento?


Maria: Ah, militante do Movimento é ser… ah, você adotar a causa mesmo como
princípio da sua ideologia. Você acredita na mudança, você acredita que um outro
país vai ser possível e que todas as crianças… Você acredita no que a sociedade
civil conquistou ao longo desses anos, que foi o ECA, que através do ECA aquilo vai
mudar, que a situação de vivências da criança e do adolescente no país vai mudar.
E você lutar para que o Estatuto, ele seja cumprido. Eu acho que é mais isso ser
militante. E você se indignar com alguma violação de direitos, não só porque você
está ligado a algum movimento social, mas sim porque você adotou a causa.
Também eu poderia ser educadora, ser uma profissional e estar recebendo para
ser educadora e, de repente, eu ser educadora só dentro do Movimento, mas
quando eu sair, eu ser conivente com a violação de direitos e eu levar isso mais
para a parte profissional. Eu acho que ser militante tem essa diferença. Você é
militante por aquela causa, aonde você estiver e você ver algum tipo de violação,
alguma coisa que te indigne, alguma coisa que você não acha legal para a criança e
para o adolescente, você vai se indignar, você vai saber defender, você conhece os
direitos, você vai estar indo atrás, enfim. Acho que é mais isso ser militante. Eu
não sei muito bem dizer com palavras, só com sentimentos.

A identificação do que é “ser militante no Movimento” faz-se por meio de uma


série de identificadores expressos por meio de infinitivo: “(é) você adotar a causa”, “(é)
você lutar para que o Estatuto, ele seja cumprido”, “(é) você se indignar com alguma
violação de direitos”. Assim, ser militante é assumir uma postura (“adotar a causa”, “se
indignar”) de que deriva uma ação (“lutar”) – no caso, voltada para o ECA, texto basilar do
Movimento. Afora os processos identificacionais completados com infinitivo, há também
outras estruturas verbais que realizam uma relação entre presente e futuro:

[233]
PRESENTE FUTURO
na mudança
Você acredita que um outro país vai ser possível
que através do ECA aquilo vai mudar
que a situação de vivências da criança e do
adolescente no país vai mudar

Quadro 7.4 – Relação presente/futuro na representação do papel de militante

O presente como militante caracteriza-se pela crença na possibilidade de


transformação da sociedade, pela crença em um determinado projeto de futuro. A ação
presente, então, projeta um futuro com base em conquistas do passado (“Você acredita
no que a sociedade civil conquistou ao longo desses anos”). A focalização da crença na
mobilização social para um projeto de mudança social como central para a definição da
militância entra em choque com a descrença que Maria expressou no Grupo Focal 1 (“é
uma utopia, né velho?”), sugerindo a contradição entre os discursos do protagonismo, da
mobilização para a transformação da sociedade, e da imobilidade das estruturas sociais.
Outro aspecto do trecho em análise é a construção de uma oposição entre os
papéis de militante e de educadora. Nesse sentido, Maria relaciona o papel de educadora
com o aspecto profissional (em termos de formação e de rendimento), enquanto o papel
de militante recebe uma conotação ideológica – a partir da concepção neutra de ideologia
adotada por Maria no excerto (“Você adotar a causa como princípio da sua ideologia”). 47
Embora ambos os papéis não se excluam, sendo possível preencher simultaneamente os
requisitos de ambos, a identificação de militante construída por Maria ultrapassa a de
educadora. De acordo com essa representação, entre ser e estar ‘ser’ vincula-se ao papel
de militante e ‘estar’ ao de educadora – enquanto assumir o papel de educadora ganha
contornos de contingência, o papel de militante aproxima-se da essência: pode-se estar
educadora, mas militante é uma questão de ser.

47 Para Thompson (1995), concepções neutras de ideologia são aquelas tentam caracterizar construções ideológicas

sem implicar que sejam, necessariamente, enganadoras e ilusórias, ou ligadas aos interesses de algum grupo em
particular. A concepção crítica, ao contrário, advoga que a ideologia é, por natureza, hegemônica, no sentido de que
ela necessariamente serve para estabelecer e sustentar relações de dominação e, por isso, serve para reproduzir a
ordem social que favorece indivíduos e grupos dominantes.
[234]
7.2. A entrevista com Joana

No recorte selecionado da entrevista de Joana, concentro-me nas representações


acerca de sua experiência como menina, como oficineira e como educadora no
Movimento. Os excertos a serem analisados são organizados na ordem em que aparecem
na interação. A primeira pergunta que fiz a Joana foi sobre sua experiência como menina
no Movimento, ao que ela me respondeu:

(40) Viviane: Como é ser menina no Movimento?


Joana: Ah, era muito bom. Era brincar. Era participar de passeio, era representar o
Movimento, representar a cidade da gente, participar de oficinas de teatro. Era
estar incluído em tudo que a gente não tinha. A gente não tinha passeio, a gente
não conhecia a Água Mineral [Parque Nacional da Água Mineral, DF], a gente não
conhecia o teatro, a gente não conhecia o Congresso, não conhecia os políticos
que governavam a gente. A gente não conhecia nada e depois a gente queria estar
incluído em tudo, queria ser o representante de tudo. Então, a gente queria buscar
sempre uma liderança, sempre estar como representante do grupo, para estar
participando de mais coisas que tinha no Movimento. Ah, era muito bom!

Assim como Maria, Joana reconhece um corte entre o tempo anterior e o tempo
posterior a seu ingresso no Movimento, em termos de acesso a certas atividades. Isso fica
claro na oposição estabelecida entre “nada” e “tudo”, o primeiro elemento relativo ao
tempo anterior e o segundo à participação na organização. O corte temporal é marcado
por “depois”, elemento que estabelece a relação entre os dois períodos nesse trecho da
narrativa.
Do mesmo modo como se evidenciou no Grupo Focal 1, os passeios e atividades
de lazer aparecem como atrativos para a participação nas atividades da organização, como
resposta à carência de espaços de lazer nas cidades satélites e à falta de acesso decorrente
da condição socioeconômica das famílias. O interesse nessas atividades é representado
como sendo um estímulo para o desejo de se constituir em uma liderança, de ter um papel
representativo no núcleo de base. Em “a gente queria buscar sempre uma liderança,
sempre estar como representante do grupo, para estar participando de mais coisas que

[235]
tinha no Movimento” essa relação de finalidade fica explicitamente marcada na superfície
textual.
A seqüência imediata na interação foi a seguinte:

(41) Viviane: E como é que foi para você passar de ser menina para ser educadora?
Joana: Aí foi quando... Eu fiquei um tempo afastada porque a minha mãe queria
sempre incentivar a gente a estudar muito. Então aí eu fui fazer magistério e fiquei
três anos afastada do Movimento. Quando voltei para o Movimento, eu estava já
um pouco de fora, mas aí a Vera falou que estava tendo uma eleição de meninos
do Movimento para estar sendo oficineiro dentro do Movimento, para estar
tomando parte daquele grupo, para estar tomando conta do grupo mesmo.
Porque, até então...
Viviane: Então, teve uma eleição?
Joana: Teve uma eleição. Porque o objetivo do trabalho em Brasiliana não era que
ficasse um educador do Movimento sempre com os meninos de Brasiliana. Era
que os meninos, com o trabalho de protagonismo juvenil, sempre houvesse um
menino representando aquele grupo. Um menino educador, protagonista,
repassando. E que nunca ficasse... E que nunca ficasse só uma pessoa tomando
conta do grupo e nem do espaço porque o espaço não era para ser visto como só
de uma pessoa, era para ser visto como da comunidade. Ai fizeram a eleição, que
foi feita entre os meninos do grupo...
(…)
não existia um salário, existia uma bolsa – acho que era de 160 reais – para quem
ficasse oficineiro. E não era nada, assim, salário, essas coisas, nada. Não tinha
assim de obrigações trabalhistas também. Tinha aquele período de aprendizagem.
E aí, se a gente desse certo para ficar como educadora, depois... Ia ser um
processo para [ser] educadora em Brasiliana. Aí depois teve uns problemas
financeiros porque aí surgiu o problema de não ter mais uma educadora em
Brasiliana. Nem a Vera. E não tinha outros educadores para outras cidades. Aí a
Vera e o Ricardo tinham que estar suprindo as outras cidades e eram cinco
cidades. E ficou muito difícil para eles. E aí foi quando me pediram para ficar
educadora de Brasiliana.

A participação no Movimento é representada como estando em oposição à


dedicação ao estudo. Isso é explicitamente marcado em “porque” e em “Então aí” (“Eu
fiquei um tempo afastada porque a minha mãe queria sempre incentivar a gente a estudar
muito. Então aí eu fui fazer magistério e fiquei três anos afastada do Movimento”).
Embora Joana não formule uma justificativa para o estabelecimento dessa oposição, em
minhas notas de campo registrei uma reflexão de Vera sobre isso:

[236]
[Vera] Falou sobre a militância no Movimento (…), que deixou de procurar adiantar o
próprio lado por conta da militância e até hoje não tem curso superior, que se preocupa
com as meninas que ela vê muito entusiasmadas com a militância mas sem estudar. Ela
acha que como a militância no movimento é muito livre, a pessoa pode se engajar em
várias atividades, se ocupar de projetos, ser autônoma em seu trabalho, e como a
liberdade é uma coisa boa e rara, as meninas se empolgam com a militância e a
militância acaba tomando muito tempo (Nota de Campo registrada em 31 de outubro
de 2005).

Joana estudou e se formou no magistério, adquirindo experiência como educadora


de crianças de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental. Apesar desse hiato na participação
junto ao Movimento, o processo de transição de menina para educadora na experiência de
Joana foi mais estruturado que o experienciado por Maria. Se Maria viveu a angústia de
não se saber identificar, para Joana as coisas aconteceram com mais clareza. Ela se tornou
primeiro oficineira, em um processo regulado por uma eleição entre os membros do
grupo. Essa iniciativa foi pautada pelo trabalho de protagonismo, que previa a
representação do grupo por um de seus membros. Depois, em decorrência da crise
financeira e pedagógica do Movimento, que impossibilitou a continuidade do
acompanhamento do trabalho em Brasiliana por Vera e seu companheiro Ricardo, Joana
assumiu o papel de educadora no núcleo.
Apesar desse processo mais claramente configurado, o texto da entrevista de
Joana, ainda nesse excerto (41), apresenta características semelhantes ao de Maria no que
se refere a sua identificação como oficineira/educadora, conforme ilustra o Quadro 7.4:

… existia uma bolsa – acho que era de 160 reais – para quem ficasse oficineiro.
E aí, se a gente desse certo para ficar como educadora, depois...
E ficou muito difícil para eles. E aí foi quando me pediram para ficar educadora de Brasiliana.

Quadro 7.4 – Identificação de Joana como oficineira/educadora

Joana prefere construir textualmente sua condição de educadora com ‘ficar’ e não com
‘ser’. A seleção por ‘ficar (como) oficineira/educadora’ acarreta um significado de
transitoriedade, ao contrário de ‘ser oficineira/educadora’, que resultaria identificação mais
clara. Assim como Maria, Joana não expressa segurança em sua identificação como educadora.

[237]
Quanto ao conflito menina/educadora, também identificado no caso de Maria,
Joana também o vivenciou, mas não como um conflito interno, ligado à própria
identidade, senão como conseqüência das práticas do próprio Movimento. Vejamos o
exemplo (42), seqüência imediata ao trecho em (41):

(42) Aí, sempre quando tinha alguma coisa para fazer, era educadora. Mas, às vezes,
surgia algum problema, e a gente passava a ser menino do Movimento de novo.
Viviane: Que tipo de problema?
Joana: Assim, quando era para resolver alguma coisa, estar nas manifestações,
estar levando os meninos para alguma coisa no Congresso – algumas
manifestações ou então no Plenário. Era uma coisa, então você era... você
representava como educador. Às vezes, quando surgia algum... Surgia outras
coisas também dentro do Movimento, você era visto como menino do
Movimento. Aí surgiu, tipo, uma contradição, aí surgiram algumas contradições
no Movimento, que foi quando a gente não queria ser mais visto como menino e
queria ser visto como educador e queria receber os mesmo direitos de um
educador. (…) Aí depois eu fiquei como educadora mais três anos. Aí eu já queria
exigir os meus direitos como educadora, não queria mais ser vista como menina,
queria ser ouvida também.

A formulação de Joana acerca dessa “contradição” é imprecisa: “quando tinha


alguma coisa para fazer”, “surgia algum problema”. Solicitei-lhe uma reformulação relativa a
“que tipo de problema”, mas a explicação que ela me oferece centra-se na explicitação
referente a “alguma coisa para fazer”: “resolver alguma coisa, estar nas manifestações, estar
levando os meninos para alguma coisa no Congresso”. Quanto ao segundo elemento da
“contradição”, entretanto, a reformulação não apresenta esclarecimentos sobre que tipo
de “outras coisas” fazia com que voltasse a ser vista como menina. Em dois momentos
nessa reformulação Joana hesita. O primeiro “você era… você representava como”; o
segundo “surgia algum…”. Em ambos os casos, ela interrompe uma reflexão iniciada: no
primeiro caso, substitui a representação com ‘ser’ (educadora) por outra que sugere ‘atuar
como’ (educadora); no segundo caso, interrompe justamente a explicitação que lhe havia
sido solicitada para completá-la em seguida com outra informação igualmente imprecisa.
Respeitei seu silêncio.
Ainda nesse trecho, Joana esclarece que em sua experiência com essa contradição
menina/educadora importavam “os direitos de um educador”. Para ela, ‘ser vista como

[238]
educadora’ representava também “ser ouvida”, ter sua participação legitimada. Nesse
sentido, para Madalena Santos (2002: 9):

Para um indivíduo se perceber como competente numa dada área (de


saber, fazer e ser) é necessário não só que ele seja reconhecido
localmente como tal (pelos que lhe são próximos), mas que essa sua
competência tenha visibilidade no ‘jogo’ de relações entre saberes. E é
nesse espaço de diálogo e relação que se vivem muitas tensões, pois a
referida visibilidade vive lado a lado com a atribuição de
posicionamentos e estatutos sociais para a qual contribui o
reconhecimento e a validação das competências.

A percepção de Joana desse ‘jogo das relações entre saberes’ sugere a ausência de
espaços para a formulação dos saberes/experiências das jovens nos espaços de
interlocução do Movimento. Ela sente-se subtraída em seu direito de expressão como
educadora; reconhece uma carência de legitimidade em sua participação como educadora,
já que não tem reconhecidos os mesmos direitos que entende fazerem parte das
prerrogativas de ‘educadora’.
Mas o papel de educadora, além de direitos, também carrega deveres, e estes as
dificuldades. Trata-se de outro ponto em que se encontram as representações de Maria e Joana:

(43) Aí eu passei a ver de outro lado o trabalho do educador, a dificuldade de ter que
lidar com os meninos, ter que trabalhar com eles todas as oficinas, ter que
trabalhar com eles sozinha, às vezes. A maioria das vezes. Ter que trabalhar
também com as dificuldades, falta do lanche, faltando a orientação de outra
pessoa, de um psicólogo. Às vezes, estar correndo atrás de... Por exemplo, para
resolver os problemas familiares porque eu não tinha, assim... A minha relação
com eles, às vezes era uma relação bem próxima – porque eles passavam o dia
todinho longe dos pais e mais próximos de mim. E eles tinham aquele vínculo de
estar pedindo ajuda, estar denunciando alguma coisa. E eu, às vezes, me sentia
sem opção de estar ajudando eles. Por exemplo, de estar atrás dos direitos deles.
Porque você ia no Conselho Tutelar, o Conselho Tutelar não funciona. Você ia na
delegacia, a delegacia age de uma forma que, às vezes, afastava, por exemplo um
agressor de uma criança, mas depois o agressor estava lá no ambiente da criança.
Tinha muita coisa que eu falava para eles que existia, por exemplo, a defesa, mas
aí, na hora da defesa funcionar, a defesa não funcionava. Aí eu ficava frustrada.
(…)
Tinha essas coisas que eu comecei a ver que, quando eu era menina, eu não via
porque eu participava por diversão, participava por outros objetivos, por outras
coisas. Sempre querendo participar e tudo, mas eu não via a parte difícil do
trabalho, que os educadores já viam, como educador, que eu passei a ver depois,
[239]
quando eu me tornei educadora. Tem um lado lindo, que é quando a gente é
criança, que a gente vê a beleza de estar participando. E tem o outro lado.

Nesse trecho, as participações como menina e como educadora aparecem


novamente em termos de oposição, o que se constrói textualmente pela metáfora dos
lados (“Aí eu passei a ver de outro lado o trabalho do educador”, “ Tem um lado lindo, que é
quando a gente é criança, que a gente vê a beleza de estar participando. E tem o outro
lado”). Joana reconhece que ambos os ‘lados’ já existiam antes que ela pudesse se dar
conta, quando ela “participava por diversão” e “não via a parte difícil do trabalho”, mas
os/as educadores/as que lhe apresentavam esse “lado lindo” da participação “já viam”. O
reconhecimento desses ‘dois lados’ – ao mesmo tempo opostos e complementares – não
deixa de ser também o reconhecimento daquelas pessoas que lhe proporcionaram essa
experiência. Assim como Maria, Joana recorre a uma imagem de teor espacial para
representar esse conflito.
As dificuldades decorrentes do tornar-se educadora na representação de Joana afinam-
se com aquelas identificadas na entrevista de Maria e no Grupo Focal 1: referem-se à carência
de recursos materiais (“a falta do lanche”), à ausência de coordenação de seu trabalho
(“faltando a orientação de outra pessoa”) e à frustração de não encontrar respaldo para a
garantia dos direitos assegurados em Lei (“Tinha muita coisa que eu falava para eles que
existia, por exemplo, a defesa, mas aí, na hora da defesa funcionar, a defesa não funcionava.
Aí eu ficava frustrada”). Essa contradição entre os mecanismos legais existentes para a
garantia de direitos e seu funcionamento efetivo volta a ser formulada na próxima seqüência:

(44) E que hoje eu vejo que eu, como educadora, pude ajudar muitas pessoas, mas
também, muitas vezes, eu também não pude ajudar. Essa frustração que a gente
fica, que a gente fica com vontade de não voltar mais a trabalhar. Mas é muito
difícil trabalhar com essa área de meninos excluídos. Porque ninguém quer. Você
manda para o Conselho Tutelar, o Conselho Tutelar devolve. Você vai a uma
escola levar o menino, a escola não quer. Você vai falar com o pai, o pai não aceita
mais aquela criança. Aí ele foge. Chega um momento que ele foge, vai para a rua,
ganha a liberdade da rua. Aí fala que, em casa, ninguém quer escutar, ninguém
quer ver o lado, que eles falam que é o lado deles, “Ninguém quer me ouvir,
ninguém quer saber dos meus sentimentos, todo mundo só quer apontar e falar os
erros”. Mas ninguém pára para ouvir enquanto criança. Aquela criança tem que
ouvir, tem que obedecer. Agora, tem muitas coisas que faz você querer voltar, que
é falar: “Nossa, como que eu vou deixar essas crianças?”; “Como que eu vou
[240]
deixar eles sem apoio, sem ninguém?”. Até porque não há outro trabalho. Igual ao
trabalho do Movimento, não tem. Eu já vi muitos trabalhos, mas igual ao do
Movimento, não. Um trabalho, assim, que a criança não é obrigada a participar.
Ela vai, ela se encontra lá.

Joana articula intertextualmente, ainda que de maneira implícita, o Estatuto da


Criança e do Adolescente, quando trata das portas que se fecham quando se procura
garantir direitos de “meninos excluídos”. As responsabilidades da família, da escola e do
Conselho Tutelar em relação a crianças e adolescentes estão previstas no ECA:

É dever da família, da comunidade em geral e do poder público assegurar,


com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos [previstos na Lei para
crianças e adolescentes] (Conanda, 2002: 22 – Estatuto da Criança e do
Adolescente, Livro I, Título I, Art. 4º).
A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno
desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e
qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I – igualdade de
condições para o acesso e a permanência na escola; (Conanda, 2002: 39 –
Estatuto da Criança e do Adolescente, Livro I, Título II, Capítulo IV, Art.
53).
O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional,
encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da
criança e do adolescente, definidos nesta Lei (Conanda, 2002: 72 –
Estatuto da Criança e do Adolescente, Livro I, Título III, Art. 131).

A experiência de Joana, contudo, ensina-lhe a triste contradição entre a teoria da lei


e a prática do cotidiano. A distância entre os direitos aprendidos como menina no
Movimento e a garantia dos mesmos direitos, perseguida como educadora, é fonte de
frustração. Nesse excerto em que discorre sobre a frustração de conhecer a lei e sabê-la
desrespeitada, Joana constrói uma interessante estrutura de coesão entre as orações “Essa
frustração que a gente fica, que a gente fica com vontade de não voltar mais a trabalhar.
Mas é muito difícil trabalhar com essa área de meninos excluídos. Porque ninguém quer”.
Causa estranhamento o encadeamento entre a primeira e a segunda oração pelo conectivo
adversativo ‘mas’, uma vez que seu conteúdo denota relação causal: dá vontade de desistir
porque é muito difícil. Parece coerente sugerir que o que está aqui sendo representado
como “muito difícil” é, ao contrário, ‘deixar de trabalhar’ nessa área, como esclarece a
terceira oração, introduzida por ‘porque’: é difícil abandonar esse trabalho porque
[241]
ninguém quer se ocupar da garantia de direitos de “meninos excluídos”. Esse mesmo
sentido se completa ao final do trecho, quando Joana simula sua própria voz, sua própria
reflexão, estabelecendo uma relação intertextual com seu ‘texto interno’, sua consciência,
no texto também próprio que compartilha comigo: “Agora, tem muitas coisas que faz
você querer voltar, que é falar: ‘Nossa, como que eu vou deixar essas crianças?’; ‘Como
que eu vou deixar eles sem apoio, sem ninguém?’”.
Joana também simula a voz de uma criança queixando-se quanto à impossibilidade
de ser ouvida. A falta de voz, na família, na escola, do espaço público contrasta com a
representação do Movimento como “um ambiente aonde tem várias crianças que podem
se expressar (…) falar dos seus desejos, das suas vontades”. Há um contraste notável
entre o Movimento como espaço que possibilita a tomada de consciência da própria voz,
para meninos e meninas, e o Movimento como imposição de um silenciamento às jovens
quando procuram assumir outros papéis, quando procuram exercer essa voz em outro
nível de participação.
O Movimento como espaço de interlocução, para Joana, é o que “todo mundo
buscava” (e talvez essa contradição entre voz e silenciamento seja um aspecto
fundamental do conflito experienciado pelas jovens). Em minhas notas de campo,
registrei uma percepção semelhante em relação ao modo como me parecia que as crianças
e adolescentes se sentiam em um encontro do núcleo de base de Campina:

A atividade foi bem simples, até pouco produtiva em termos da discussão efetiva dos
direitos, mas é incrível como eles/as ficam felizes, se sentem bem quando vêem que
têm voz, que sua participação é valorizada, que sua opinião é de interesse. Há, da parte
da maioria, um engajamento forte com as atividades propostas (Nota de Campo
registrada em 09 de novembro de 2005).

Talvez graças a esse despertar para a própria voz, o Movimento é representado


como um espaço de transformação onde “a criança (…) se encontra”. Esse encontrar-se,
reconhecer-se, pode estar associado ao próprio reconhecimento como sujeito de direitos:

(45) Eles ensinavam à gente os direitos. Eu nunca imaginei entender os meus direitos,
exigir os direitos. Muita gente não sabe até hoje. É adulto e não sabe que tem
certos direitos (…) A gente não sabia que tinha. E, depois que a gente entrou no

[242]
Movimento, foi participando, não sei, a gente foi abrindo a visão de um mundo
melhor que a gente poderia fazer faculdade que a minha mãe não teve, que eu
poderia ser capaz de fazer uma faculdade, de trabalhar, de ter um emprego
melhor, de não ser mais uma doméstica, de não ser mais um carpinteiro ou
pedreiro. Se eu quisessse ser carpinteiro ou pedreiro era a minha profissão! Era
profissão que eu escolhi depois, mas não por obrigação de ter que ser.

Mais uma vez fica patente o corte temporal antes/depois do Movimento, presente
também na entrevista de Maria e no Grupo Focal 1. Para Joana, esse corte se dá entre o
‘nunca’ antes e o agora ‘depois’. Ela não formula com clareza como se deu em sua
experiência esse corte (“não sei”), mas o relaciona ao ingresso no Movimento (“depois que
a gente entrou no Movimento”) e à participação (“foi participando”), como Maria,
embora, ao contrário de Maria, formule uma agência própria no processo fundamental: “a
gente foi abrindo uma visão de mundo”. A metáfora da abertura é apropriada à formulação
que segue, de (auto)conquista de novas possibilidades, de superação de um ‘destino’ que
parecia fechado e certo: “não por obrigação de ter que ser”.
Perguntei, por fim, a Joana sobre sua relação atual com o Movimento, ao que ela
me respondeu:

(46) Viviane: E hoje? Como é que é a sua relação com o Movimento hoje?
Joana: Hoje a relação com o Movimento... Aí, o Movimento... Eu acho que a
relação, assim, eu não consigo me afastar do Movimento. É uma relação de apego,
carinho. De bronca também, igual pai e mãe. Aquela relação de quem quer sempre
estar ali participando, quer estar junto ali. Todos os meninos têm essa relação, não
só eu. Todos os meninos que saíram do Movimento adultos, eles falam: “Ah eu
não queria deixar o Movimento! Eu queria ficar no Movimento para sempre! Ah,
por que a gente tem que sair do Movimento depois que faz 18 anos? Não, a gente
tem que ficar no Movimento também, agora nós vamos ser educadoras”. Que
todo mundo queria estar em alguma parte do Movimento, estar como secretário
ou estar como educador, estar como coordenador. Todo mundo tinha esse sonho.
Aí, hoje em dia, eu vejo que eu tenho um vínculo mesmo com o Movimento. Eu
tenho. Todo ano eu falo: “Ah, eu não quero mais saber do Movimento. Agora eu
vou procurar outra coisa”. Depois eu já estou lá no Movimento de novo. Mas é
aquela vontade de estar participando, de estar trabalhando. E quando a gente vê
uma coisa dando certo, por exemplo, um 18 de maio, o disque denúncia, que já foi
uma coisa que surgiu depois de todo um processo que a gente participou dentro
do Movimento, junto com outros órgãos também. Nossa, a gente quer sempre
estar participando, quer fazer parte daquilo. Tudo o que é bom, a gente quer fazer
parte.

[243]
O início de sua resposta sugere hesitação, dificuldade em formular o que lhe pedi.
Isso se nota tanto nas interrupções sucessivas, em suas tentativas iniciais de fornecer uma
formulação direta, quanto nas modalidades epistêmicas baixas que usou quando decidiu
tomar um rumo indireto na resposta: “eu acho que”, “assim”. Quando enfim constrói sua
reflexão, afirma “eu não consigo me afastar do Movimento”, levantando o pressuposto de
que tenta se afastar, sem sucesso. Esse pressuposto é retomado ao final do excerto quando
assume um tom narrativo: “Todo ano eu falo: ‘Ah, eu não quero mais saber do
Movimento. Agora eu vou procurar outra coisa’. Depois eu já estou lá no Movimento de
novo”. Assim, Joana corrobora a sensação causada na entrevista de Maria de que haveria
uma relação de dependência das jovens pelo Movimento, talvez pela relevância que
assumem ter a organização em suas histórias pessoais.
Esse desejo de permanecer, de continuar sempre fazendo parte, também é o tom
do trecho em que generaliza esse desejo como sendo “o sonho” de “todos os meninos
que saíram do Movimento”. Para realizar textualmente essa generalização, Joana simula
uma voz compartilhada, representativa dessa coletividade: “‘Ah eu não queria deixar o
Movimento! Eu queria ficar no Movimento para sempre!’”. Também Vera, na entrevista
que me concedeu, afirmou algo semelhante:

O Movimento, ele tem, a nível nacional, esse problema dos meninos querendo ser
educador, por duas formas [razões]. Uma, por questão de trabalho mesmo porque eles
fazem parte disso, não tem só espaço para eles. Você acha que a Amanda tem espaço na
comunidade dela, que alguém vai deixar ela ir lá mobilizar? Alguém acredita em jovem?
Não, o espaço é no Movimento. Então, eles se sentem seguros no Movimento. Resolve
a questão do desemprego porque tem um salário. Mas, em condição disso, os meninos
tem que ser capacitados porque o fato de você ter participado do Movimento como
jovem não diz se você tem condição de atender outro jovem. (…) E os jovens que
passaram queriam ser educador do Movimento. Todos! Porque é um espaço legal de
trabalhar. É um espaço de mobilização, você está movimentando em tudo. (…) E a
linha que o Movimento está querendo que os meninos desenvolvam... Não é eles, por
exemplo, ser contratado pelo Movimento, mas eles pensarem em outros projetos que
possam ser contratados. Que possam ser coordenados por eles (Entrevista com Vera).

Ao mesmo tempo em que pondera que o objetivo do Movimento, coerente com a


perspectiva do protagonismo, não é que os/as jovens fiquem presos à organização, e sim
que busquem mobilização em outros espaços sociais, Vera admite que a conquista desses

[244]
espaços é um desafio difícil fora de uma ‘instituição legitimadora’. Ainda, a interrupção da
linha de trabalho voltada para capacitação, uma das linhas de atuação identificadas por
Júlia na origem do Movimento (ver Seção 5.1), é um obstáculo tanto para o trabalho
dos/as jovens egressos/as do Movimento no seio mesmo da organização quanto em
outros espaços de mobilização. Este parece ser um dos grandes problemas enfrentados
pelo Movimento: a contradição entre o discurso do protagonismo e a relação de
dependência que se criou e se vivencia na prática. Esse desejo das jovens de fazer
continuamente parte do Movimento parece, de maneira contraditória, impor freio a uma
possibilidade mais concreta de sua atuação como protagonistas, em um contexto em que
assumissem verdadeiramente as rédeas de sua ação social.

Algumas considerações

Na análise da entrevista individual com Maria, fica muito clara sua representação
em relação aos papéis desempenhados junto ao Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua. A identificação de Maria em relação a suas atividades no Movimento
deixa transparecer um corte entre a participação como menina/adolescente e a ação como
jovem/educadora/militante, o que sugere o caráter demasiado discursivo do
protagonismo juvenil e a dificuldade em se fazer esse discurso transbordar para a ação
concreta.
Joana também reconhece um corte entre o tempo anterior e o tempo posterior a
seu ingresso no Movimento, e assim como Maria textualiza esse corte em termos de uma
metáfora de deslocamento espacial. Embora o processo de transição de menina para
educadora na experiência de Joana tenha sido mais estruturado que o vivenciado por
Maria, as tensões entre os papéis desempenhados também aparecem em sua entrevista.
Assim, tanto Maria quanto Joana não demonstram segurança ao se identificarem
como educadoras. Talvez a causa desse conflito seja que embora o Movimento tenha, em
decorrência de sua crise financeira, pedagógica e de militância, necessitado sua atuação como
educadoras, não lhes permitiu uma plena identificação como educadoras – o que pode ser
uma conseqüência do problema identificado tanto por Maria e Joana quanto por Vera de
[245]
haver um desejo generalizado de atuar como educadores/as entre os/as jovens
egressos/as do Movimento, o que é causa de preocupação e contrariedade, por parte das
educadoras, pelo prejuízo desse sonho para sua atuação autônoma como protagonistas.
Embora o Movimento tenha sido identificado como um espaço de interlocução
que cria a possibilidade de os/as meninos/as terem voz, o mesmo não parece ser verdade
em relação à voz das jovens quando de sua atuação como educadoras – pelo menos é o
que se lê na entrevista de Joana: ao discorrer sobre sua experiência como menina, ela
celebra a criação, no Movimento, de um espaço onde se tem voz e se é ouvido/a, mas
como educadora precisa reclamar seu espaço, seus direitos, precisa enunciar que deseja ser
ouvida como tal, o que sugere uma relação de poder.
Ambas as jovens têm dificuldade em discorrer sobre o que representa o
Movimento em suas vidas e em explicar porque se sentem continuamente vinculadas a
ele. O que se percebe é que tanto Maria quanto Joana apresentam uma relação de
dependência em relação à organização. Embora não se possa negar que a carência de
recursos materiais para a ação seja um fator limitante para o sucesso do trabalho das
jovens nos núcleos de base que coordenaram, parece que essa relação de dependência
também atua sobre isso, visto que a dependência está em oposição à autonomia carregada
pelo conceito de protagonismo juvenil e que deveria constituir a base de seu trabalho.

[246]
8
REUNIÕES NO MNMMR/DF EM DOIS CONTEXTOS 
DIFERENTES 

O que aconteceu com o Movimento é que o Movimento,


ele foi um ator político numa época muito importante.
Então o Movimento, ainda hoje quem vê falar do
Movimento, tem na cabeça esse Movimento. É um
Movimento muito grande na cabeça e no seu propósito,
mas as suas pernas são mínimas para andar e para
agüentar essa cabeça.
(Júlia, na Reunião 1)

N este capítulo, dedico-me às análises dos recortes de duas reuniões do Movimento


de que participei, a primeira, em março de 2006, voltada para a assembléia
nacional do MNMMR, que se realizaria dias depois; a segunda, em março de 2007, no
contexto da aprovação do Projeto Giração, pela Petrobrás, para a organização de
adolescentes e jovens trabalhadores/as nas imediações da Rodoviária do Plano Piloto.
Assim, cada reunião realizou-se em contexto muito diverso: a primeira focaliza o debate
em torno da descentralização do CGC do Movimento, em contexto de crise, e a segunda
centra-se na implementação de um grande projeto que significava a superação da crise.
No recorte da Reunião 1, analiso pontos de instabilidade acerca do conceito de
protagonismo juvenil e das escalas de atuação do Movimento. Reflito também sobre os
lugares dos sujeitos na interação, as assimetrias interpessoais e suas implicações
discursivas, em termos de modalidade objetiva/subjetiva. No recorte da Reunião 2,
analiso as representações acerca dos/as jovens do Movimento envolvidos/as com o
projeto Giração, por um lado em sua criação/proposição, por outro em sua
implementação. Os recortes das reuniões encontram-se transcritos no Anexo D.
8.1. A Reunião 1

A Reunião 1 foi gravada em 28 de março de 2006, uma terça-feira. No fim de semana


seguinte, em Brasília, seria realizada a Assembléia Nacional do MNMMR, com a participação
de representantes dos diversos estados do Brasil onde há comissões locais do Movimento.
Essa assembléia realizou-se sob a tensão da necessidade de descentralização do MNMMR,

tendo em vista o problema com o CGC único, que inviabilizava a captação de recursos tanto
pela iniciativa nacional do Movimento quanto pelas iniciativas locais (ver Capítulo 5).
A análise da Reunião 1 está centrada no debate realizado em torno das posições que
a Comissão Local do DF levaria à assembléia. Como vimos no Capítulo 4, participaram
dessa reunião a então coordenadora do MNMMR/DF, Paula, além de Júlia, Vera, Maria e
Marcelo, um militante voluntário, formado em Direito e membro também da Renap –
Rede Nacional de Advogados Populares. No recorte da transcrição da reunião, analiso
pontos de instabilidade entre perspectivas de Júlia e de Marcelo. Discordam sobre
diversos aspectos da atuação do Movimento – as escalas de atuação, o conceito de
protagonismo, o significado de ação política no âmbito do Movimento.
Antes de iniciar a análise sobre a negociação desses pontos de discordância, é
preciso refletir sobre os lugares dos sujeitos na interação. Júlia posiciona-se como
educadora do Movimento com a experiência de mais de uma década de trabalho na
garantia de direitos de crianças e adolescentes; Marcelo, por outro lado, é um jovem
militante que precisa negociar o valor de suas perspectivas na interação. É relevante notar
como se posiciona cada qual em relação a seu próprio ponto de vista, em termos de
modalidade objetiva/subjetiva.
A distinção entre modalidade objetiva e subjetiva refere-se ao enlace entre a pessoa
que fala e aquilo que fala, em termos específicos da fonte subjetiva das proposições. Na
modalidade objetiva, a base subjetiva do julgamento está implícita: não fica claro qual o
ponto de vista privilegiado na representação, se “o falante projeta seu ponto de vista
como universal ou age como veículo para o ponto de vista de um outro indivíduo ou
grupo” (Fairclough, 2001: 200). Na modalidade subjetiva, por outro lado, a base subjetiva

[249]
para o grau de afinidade com a proposição é explicitada, deixando claro que a afinidade
expressa é do/a próprio/a falante.
As posições de Júlia são pouco modalizadas em termos de modalidade subjetiva, ao
passo que Marcelo recorre a orações modalizadas para introduzir seus pontos de vista.
Enquantro Júlia utiliza apenas uma vez uma oração com ‘eu acho’, sendo todas as suas
outras intervenções marcadas por modalidade objetiva, Marcelo recorre a essa mesma
estrutura lingüística quatro vezes, agregando também outras estratégias que podem ser
interpretadas como uma negociação de seu espaço no evento discursivo. Vejamos a seguir
as cinco ocorrências de ‘eu acho’:

(47) Marcelo: Eu acho que a gente poderia iniciar a fala tentando trazer isso: o que é o
escritório do Distrito Federal em termos de Movimento porque acaba
acontecendo isso, a gente acaba fazendo análise de conjuntura nacional, fica
fazendo análise social nacional e não faz o regional, que a gente que passa batendo
na tecla, que os caras acham que Brasília, que aqui é para a gente ficar pensando
os problemas do Congresso Nacional.
[…]
Júlia: Mas eles não estão preocupados com isso não. Eu acho que o principal
problema não é nem a confusão, por exemplo. Porque isso é uma confusão
política mesmo. E também de interesse nosso mesmo.
[…]
Marcelo: (...) E, às vezes, a gente ia, ia só ficar com esses protestos, e acaba que
não traz a discussão para cá. E acho importante, por exemplo... Tia Jú, eu entendo
que a gente não está formando aqui como miliante em quantidade. Mas, que o
guri, no momento em que ele passa a ter uma oficina nossa, daqui a pouco ele
visualiza dentro de uma discussão do passe livre, ele, por pernas próprias, vá até lá
e vá porque ele teve uma formação.
[…]
Júlia: A formação do Movimento não é uma formação política. É uma formação
pedagógica. É uma formação integral, não é só política.
Marcelo: Mas deveria ser.
Júlia: Não deveria.
Marcelo: Não, é uma opinião pessoal. Eu acho que deveria sim.
Júlia: Então nós temos que discutir os nossos princípios.
Marcelo: Eu acho que deveria sim. Me desculpa. Porque a gente pensa em
programar o mundo social, mundo mais social, mundo socialista e não discute
politicamente. Este é grande problema.
[…]
Marcelo: (…). E uma coisa que eu acho que é o que está afundando na questão da
criança e do adolescente, é que a gente só repete o Estatuto da Criança e do
Adolescente.

[250]
Na primeira fala de Marcelo, além da modalidade subjetiva com ‘eu acho’, ele lança
mão de uma modalidade deôntica com verbo modal e tempo hipotético (“poderia”),
expressando sua opinião acerca do posicionamento da Comissão Local do DF na
Assembléia Nacional com o caráter de uma possibilidade. Ademais, seleciona uma
estrutura verbal mitigada para sua proposta – “tentando trazer” ao invés de ‘trazendo’ por
exemplo. Outras locuções verbais com gerúndio e com o verbo ‘acabar’ utilizado como
auxiliar são observadas em sua representação dos problemas que precisariam ser postos
em pauta na assembléia – “porque acaba acontecendo isso, a gente acaba fazendo análise de
conjuntura nacional” – o que tem o efeito de sugerir uma causação indefinida para os
problemas mencionados, desresponsabilizando quaisquer membros do Movimento pelos
fatos representados como problemáticos.
A segunda ocorrência da modalidade subjetiva ‘eu acho’ acontece na fala de Júlia.
Ao contrário do observado em Marcelo, Júlia utiliza essa estrutura ao lado de elementos
que fortalecem o valor de verdade de suas proposições. Para começar, sua discordância
com o exposto por Marcelo é marcada na adversativa por meio da qual inicia sua
intervenção e pela dupla negação (“Mas eles não estão preocupados com isso não”). Em
seguida, na oração iniciada por ‘eu acho’, Júlia novamente utiliza dupla negação,
desconstruindo o problema levantado por Marcelo. Nas duas orações seguintes, marca
alta afinidade com suas próprias proposições utilizando ‘mesmo’ em ambas as orações, o
que fortalece o valor de verdade de seu ponto de vista acerca da questão do papel da
Comissão Local do DF no Movimento.
Marcelo volta a utilizar ‘[eu] acho’, marcando a natureza subjetiva de sua afirmação,
quando trata a questão do protagonismo no âmbito do Movimento. Dessa vez,
paralelamente a ‘[eu] acho’ recorre à mitigação de ‘às vezes’ – que aqui não apresenta
aspecto de freqüência, significando algo como ‘talvez’. Outra vez utiliza também uma
oração com o verbo ‘acabar’, assim como em sua primeira intervenção no excerto. É
importante notar nesse trecho que Marcelo, antes de introduzir sua discordância com
‘mas’, busca um elemento de consenso sobre o qual construir seu posicionamento: retoma
a fala de Júlia introduzindo-a com “eu entendo”.

[251]
Em seguida instaura-se um conflito mais direto entre ambos. Ainda que flexione o
verbo num tempo hipotético, Marcelo utiliza um verbo modal de obrigatoriedade,
marcando com clareza seu ponto de vista dissonante em relação ao de Júlia quando
aborda a questão da política no âmbito do Movimento (“Mas deveria ser”), ao que Júlia
responde prontamente (“Não deveria”). Em resposta aparece a oração modalizada com
‘eu acho’, que apresenta outro elemento de modalidade subjetiva, esclarecendo a natureza
pessoal de seu posicionamento (“é uma opinião pessoal”). Dessa vez Marcelo lança mão de
um recurso de fortalecimento de seu ponto de vista quando agrega um ‘sim’ ao final da
oração. A mesma oração é repetida após a resposta de Júlia (“Eu acho que deveria sim”),
mas agora seguida de um pedido de desculpas.
A descrição dos casos de ocorrência de ‘eu acho’ no recorte da reunião mostra que,
na negociação do dissenso entre Júlia e Marcelo, ela é muito mais afirmativa, marca sua
posição e sua autoridade. Ele, por outro lado, procura mitigar a discordância, busca
pontos de consenso e texturiza os pontos de conflito em orações modalizadas,
reconhecendo a autoridade de Júlia. Isso evidencia uma relação hierárquica que influencia
os modos como se constrói o debate e como se negociam as diferenças.
Abro aqui um parêntese. Lembremos que de acordo com a distinção entre dados
gerados e dados coletados, proposta nos capítulos 3 e 4, este capítulo refere-se à análise
dos dados coletados na pesquisa, enquanto todos os capítulos anteriores desta Parte II
referem-se a análises de dados gerados especificamente para a pesquisa. Sendo assim, o
foco das análises apresentadas nos capítulos 5, 6 e 7 tem sido os significados
representacional e identificacional. Pretendo manter, neste Capítulo 8, meu foco nesses
significados, isto é, priorizar nas análises as representações de práticas e eventos e a
construção de identificações. Entretanto, note-se que sendo esses documentos de
gravação de reuniões o registro de interações inerentes à prática do Movimento – não
geradas para fins da pesquisa, mas aproveitadas também para esse fim – há um potencial
para a análise também do significado acional, em termos das práticas específicas do
Movimento, e não da prática particular da pesquisa (ver Seção 3.2). Apesar de minha
decisão em manter o foco na representação e na identificação, em muitos momentos
percebo que deslizo para a ação, o que sinaliza, por um lado, a dialética entre esses tipos

[252]
de significado (de acordo com Fairclough, 2003) e, por outro lado, confirma a diferença
epistemológica entre dados gerados e coletados. Assim, quando falo em relações
hierárquicas, em negociações de diferenças na interação da Reunião 1, ou em estratégias
voltadas para efeitos específicos na interação da Reunião 2 (veja a seguir), estou no campo
da ação, mesmo que meu objetivo central seja a análise da representação e da
identificação. Ainda, embora reconheça que ‘deslizo’ para a ação em diversos momentos,
não entro em detalhes específicos da análise do significado acional, isto é, não discuto em
termos específicos categorias como potencial genérico e controle interacional, visto que
meu foco principal está voltado para representação e identificação. Fechando o parêntese,
voltemos à Reunião 1.
Feitas essas observações sobre a relação interpessoal entre Júlia e Marcelo, vejamos
os pontos de instabilidade identificados no recorte, já nos voltando para a representação.
Uma primeira questão problemática levantada refere-se ao significado de protagonismo
juvenil. A análise do significado de uma dada palavra ou expressão em um texto é a
análise de como “os sentidos das palavras entram em disputa dentro de lutas mais
amplas” (Fairclough, 2001: 105). A lexicalização de significados é construção social, no
sentido de que são socialmente negociados e contestados. Embora a expressão
‘protagonismo juvenil’ apareça no recorte uma única vez, há um debate sobre seu
significado, em termos do que significa ou deveria significar o protagonismo na experiência
de um/a adolescente ou jovem. Vejamos o excerto (48):

(48) Júlia: Mas eles não estão preocupados com isso não. Eu acho que o principal
problema não é nem a confusão, por exemplo. Porque isso é uma confusão
política mesmo. E também de interesse nosso mesmo. Porque, por exemplo,
quando a gente participava, qual é a nossa proposta? Não era de que os meninos
fossem intervir. A proposta dos meninos era dos meninos experimentarem o
protagonismo juvenil e que os meninos pudessem vivenciar esse ator político.
Então, por isso, que a gente participava das manifestações nacionais. Por quê?
Como espaço de participação. Muitas vezes, a gente, ora, já foi na marcha do MST
com os meninos, na marcha da educação, mas como exercício da cidadania, para
aprender isso. Tanto faz a gente aprender isso na marcha do MST, como aprender
aqui na Câmara Legislativa. Para nós, era indiferente isso. Isso era uma questão
metodológica.
Marcelo: Mas o protesto nacional pode acontecer, mas tu tem que trazer ele para
o teu estado também.
Júlia: Nem sempre você consegue trazer.
[253]
Marcelo: Eu sei que não! Mas essa é a luta da [??].48 Senão, nada adianta.
Júlia: Mas a gente não tem essa luta travada com os meninos, Celo. Porque, com
os meninos, é um processo. É um processo de desenvolvimento dos meninos e
que os meninos vão experienciar vários momentos da luta. Eles vão discutir o
problema lá da casa, lá, vamos dizer, de Brasiliana, de limpar o Lago, como uma
vez. Vamos fazer isso e vamos participar também da marcha dos catadores, que
era perto do dia do meio ambiente, não-sei-o-quê, para a questão do meio
ambiente, para experienciar na formação do tal do ator político. Até porque a
gente não está formando os meninos para os meninos ser A, ser B, ser D. A gente
está formando pessoas com senso crítico para formular novos projetos de vida
porque os meninos são seres em desenvolvimento. Você não pode pegar o
menino e dizer: “Olha, é isso aqui”. Ele tem de ir lá na marcha, tem de ver se é
isso que ele quer. Já teve menino que já disse: “Ah, Jú, eu não quero isso para a
minha vida não. Eu quero é estudar. Não quero ficar marchando não. E pegando
sol na moleira!”. Eu disse: “Ótimo, lindo. É isso mesmo, não pega isso não”.
Então, não é o Movimento como sindicato, como movimento de classe, não tem
isso. É um Movimento diferente de formação de crianças e adolescentes. Essa era
a nossa metodologia. O que aconteceu com o Movimento é que o Movimento, ele
foi um ator político numa época muito importante. Então o Movimento, ainda
hoje quem vê falar do Movimento, tem na cabeça esse Movimento. É um
Movimento muito grande na cabeça e no seu propósito, mas as suas pernas são
mínimas para andar a para agüentar essa cabeça. Então a pressão política, ela é
muito forte. Como é que você vai dizer que nós não vamos para o Congresso?
Como é que você vai dizer que você não vai na luta do rebaixamento penal,
contra o rebaixamento da idade penal? Como é que você vai... você entendeu?
Paula: O que ele está questionando é os outros estados não assumirem isso.
Júlia: Os outros estados, Celo, não tem a...
Marcelo: (...) E, às vezes, a gente ia, ia só ficar com esses protestos, e acaba que
não traz a discussão para cá. E acho importante, por exemplo... Tia Jú, eu entendo
que a gente não está formando aqui como miliante em quantidade. Mas, que o
guri, no momento em que ele passa a ter uma oficina nossa, daqui a pouco, ele
visualiza dentro de uma discussão do passe livre, ele, por pernas próprias, vá até lá
e vá porque ele teve uma formação. E daqui a pouco, por ele querer, pega e
abandona o Movimento e vai lá, se torna um representante. Aqui é o meu grupo
de Brasiliana. É nesse sentido. E isso que está faltando, a gente acaba fazendo
projetos amplos e acaba não trazendo esses nacionais para o nosso regional. É
isso que eu estou falando. A gente vai para as marchas contra a corrupção e a
favor do Lula, mas aí não entra numa marcha contra o Roriz aqui no Distrito
Federal.

Nesse trecho, o tema do debate é o envolvimento da Comissão Local do DF em


questões nacionais – por sua proximidade com o centro do poder político, o MNMMR/DF

estaria assumindo funções da iniciativa nacional, o que prejudicaria sua atuação local. O

48Nesse e em outros exemplos que seguem, utilizo [??] para indicar uma palavra ou expressão cuja transcrição não
foi possível.
[254]
trecho destacado em (48) refere-se especificamente à participação em manifestações de
caráter nacional – marchas do MST e do Movimento Nacional de Catadores, para a
experiência do protagonismo. Na representação de Júlia acerca do protagonismo juvenil,
há um corte entre o protagonismo como ‘intervenção’, ação prática por mudança social, e
como experiência de um espaço de participação. Para a educadora, o objetivo do
Movimento em termos de protagonismo juvenil é possibilitar a experiência da
participação, da cidadania pelo manifesto. Marcelo discorda do efeito dessa vivência “do
ator político” para a formação de protagonistas; para ele o protagonismo está ligado a
ação, intervenção e autonomia. Vejamos o quadro 8.1 a seguir:

PROTAGONISMO PARA JÚLIA PROTAGONISMO PARA MARCELO


“Não era que os meninos fossem intervir”
“Mas, que o guri, no momento em que ele
“era dos meninos experimentarem o protagonismo juvenil”
passa a ter uma oficina nossa, daqui a pouco,
“que os meninos pudessem vivenciar esse ator político”
ele visualiza dentro de uma discussão do passe
“como exercício de cidadania”
livre, ele, por pernas próprias, vá até lá e vá
“os meninos vão experienciar vários momentos da luta”
porque ele teve uma formação.”
“para experienciar na formação do tal do ator político”

Quadro 8.1 – Negociação do significado de ‘protagonismo juvenil’ na Reunião 1

Na negociação sobre o papel de protagonistas e as atitudes que devem caracterizar


o protagonismo juvenil, há uma discordância entre Júlia e Marcelo. Na representação de
Júlia, nota-se o mesmo corte entre participação e ação evidenciado na entrevista de Maria.
O protagonismo, para Júlia, está representado no nível da participação, não no nível da
ação (“não era de que os meninos fossem intervir”). Em termos dos processos verbais
implicados na representação do protagonismo por Júlia, há a recorrência do mundo da
experiência – ‘experimentar’, ‘vivenciar’, ‘experienciar’ – denotando o protagonismo como
exercício de aprendizagem. Para Júlia, então, o significado de protagonismo juvenil refere-
se à participação como exercício.
Marcelo discorda e texturiza sua discordância com o adversativo ‘mas’, no início
do trecho destacado na coluna da direita do Quadro 8.1. Em sua representação, o
protagonismo refere-se ao campo da ação – representada em termos de um exemplo de
atuação concreta em uma luta específica, a do passe livre para estudantes em transporte
coletivo. Para Marcelo, a experiência que caracteriza o protagonismo na representação de
[255]
Júlia é apenas parte do processo que desemboca na ação protagonista – “e vá porque teve
uma formação”. Além da perspectiva agentiva do protagonismo, outro aspecto do
significado de protagonismo juvenil evidenciado na representação de Marcelo é a
autonomia (“por pernas próprias”).
Para Marcelo, o corte entre participação/ação, no debate em torno do
protagonismo juvenil, parece relacionar-se às escalas de atuação. A discussão em torno
das escalas de atuação no âmbito do Movimento desdobra-se em duas relações entre local
e nacional. Na primeira, debate-se a questão de a Comissão Local do Movimento no DF

assumir o papel da iniciativa nacional do MNMMR em ações voltadas ao Congresso


Nacional. Na segunda, o debate volta-se para a necessidade de uma ação integrada entre
as diversas comissões locais do Movimento nos estados. Vejamos a primeira faceta dessa
discussão no exemplo (49) a seguir:

(49) Marcelo: Eu acho que a gente poderia iniciar a fala [na Assembléia Nacional do
MNMMR] tentando trazer isso: o que é o escritório do Distrito Federal em termos
de Movimento porque acaba acontecendo isso, a gente acaba fazendo análise de
conjuntura nacional, fica fazendo análise social nacional e não faz o regional, que a
gente que passa batendo na tecla, que os caras acham que Brasília, que aqui é para
a gente ficar pensando os problemas do Congresso Nacional. E aí é o que a gente
vê com os guris, quando a gente vai fazer um trabalho, os guris pensam governo,
o governo deles é o Lula. Não é a Câmara Legislativa, não é o Roriz!
Paula: Parece que o Roriz é fato.
Júlia: Não, o Roriz é um administrador!
Paula: Mas não é por causa da infra-estrutura do Nacional essa conjuntura de
Brasília não.
Marcelo: Não, eu não estou falando isso. Eu só estou puxando para que a gente
tem que se atentar para isso.
Júlia: Brasília, realmente na luta de criança e adolescente acontece é aonde?
Dentro do Congresso. Era lá que nós estávamos mesmo. E estamos ainda.
Marcelo: Tia Jú, não. Isso era necessário. O problema daí é questão de lei. É a [??]
que é lei nacional. É pelo Congresso. Não estou falando isso. Eu estou falando em
que a nossa luta aqui muitas vezes, em vez de estar indo de frente com o governo
distrital, está mais se envolvendo com questões nacionais. É isso que eu....
Paula: Eu acho que, por exemplo, os estados todos têm que se envolver com as
questões nacionais.
Marcelo: Justamente! E a gente fica de fora de outros movimentos que estão
nascendo aqui no Distrito Federal e o Movimento acaba ficando de fora. É isso
que eu quero pautar.
[…]
Júlia: Mas eles não estão preocupados com isso não. Eu acho que o principal
problema não é nem a confusão, por exemplo. Porque isso é uma confusão
[256]
política mesmo. E também de interesse nosso mesmo. Porque, por exemplo,
quando a gente participava, qual é a nossa proposta? Não era de que os meninos
fossem intervir. A proposta dos meninos era dos meninos experimentarem o
protagonismo juvenil e que os meninos pudessem vivenciar esse ator político.
Então, por isso, que a gente participava das manifestações nacionais. Por quê?
Como espaço de participação. Muitas vezes, a gente, ora, já foi na marcha do MST
com os meninos, na marcha da educação, mas como exercício da cidadania, para
aprender isso. Tanto faz a gente aprender isso na marcha do MST, como aprender
aqui na Câmara Legislativa. Para nós, era indiferente isso. Isso era uma questão
metodológica.
Marcelo: Mas o protesto nacional pode acontecer, mas tu tem que trazer ele para
o teu estado também.
Júlia: Nem sempre você consegue trazer.
Marcelo: Eu sei que não! Mas essa é a luta da [??]. Senão, nada adianta.
[…]
Marcelo: (…) E, às vezes, a gente ia ia só ficar com esses protestos, e acaba que
não traz a discussão para cá. E acho importante, por exemplo... Tia Jú, eu entendo
que a gente não está formando aqui como miliante em quantidade. Mas, que o
guri, no momento em que ele passa a ter uma oficina nossa, daqui a pouco, ele
visualiza dentro de uma discussão do passe livre, ele, por pernas próprias, vá até lá
e vá porque ele teve uma formação. E daqui a pouco, por ele querer, pega e
abandona o Movimento e vai lá, se torna um representante do Movimento. Aqui é
o meu grupo de Brasiliana. É nesse sentido. E isso que está faltando, a gente acaba
fazendo projetos amplos e acaba não trazendo esses nacionais para o nosso
regional.

Nesse excerto, o que está em foco, e se representa como um problema, é o fato de


a Comissão Local assumir a tarefa de representação política do Movimento junto ao
Congresso Nacional e em manifestações públicas de caráter nacional. A oposição entre as
escalas nacional e local é texturizada em dualidades como nacional/regional, Congresso
Nacional/Câmara Legislativa, Lula/Roriz, como ilustra a Figura 8.1:

Congresso Nacional Câmara Legislativa


Nacional Local
Lula Roriz

Figura 8.1 – Escalas nacional e local como oposições

[257]
Nessa primeira parte da discussão, as escalas nacional e local são texturizadas
como oposições: há uma relação de contraste entre elas. Marcelo introduz essas oposições
no debate, ressaltando que a atuação da Comissão Local do DF em questões e
mobilizações de cunho nacional dilui o pertencimento a um contexto local, influenciando
os modos como os/as meninos/as do Movimento entendem a conjuntura política (“o
governo deles é o Lula (…), não é o Roriz”). A responsabilidade por esse estado de coisas
é atribuído, por um lado, à iniciativa nacional do MNMMR (“os caras acham que Brasília, que
aqui é para a gente ficar pensando os problemas do Congresso Nacional”). Embora isso
seja enunciado de modo indefinido, Paula recupera o significado de “os caras” como
sendo a iniciativa nacional, e nega a relação de responsabilidade construída por Marcelo:
“mas não é por causa da insfra-estrutura do nacional essa conjuntura de Brasília não”. Por
outro lado, há uma responsabilização das outras comissões locais por não tomarem para
si a tarefa de atuação nas demandas de caráter nacional, partilhando-a com a Comissão
Local do DF (“eu acho que, por exemplo, os estados todos têm que se envolver com as
questões nacionais”). A divisão da tarefa, nesse caso, é modalizada como obrigatoriedade.
Como já vimos, entretanto, a proximidade com o centro do poder leva a Comissão
Local do DF a assumir a representação política do MNMMR em instâncias de luta no
Congresso Nacional – nas manifestações de 18 de maio contra a exploração sexual de
crianças e adolescentes; no debate contra o rebaixamento da maioridade penal; junto às
frentes parlamentares que apoiam a causa da luta em favor dos direitos de crianças e
adolescentes etc. Para Júlia, essa “confusão” de escalas de atuação deve-se também a um
interesse próprio da Comissão Local do DF na participação em manifestações junto ao
Congresso (“de interesse nosso mesmo”). Sua justificativa é expressa explicitamente na
superfície textual (“por isso a gente participava das manifestações nacionais. Por quê? Como
espaço de participação”). Com a justificativa da participação, Júlia desconstrói a oposição
entre as escalas de atuação do Movimento levantada por Marcelo: “Tanto faz (…). Para
nós era indiferente isso”. Essa indiferença pauta-se no corte entre ação e participação no
significado de protagonismo juvenil – se o objetivo da atividade não é intervir, mas apenas
experienciar a mobilização, então de fato não faz diferença a natureza da marcha em
termos de escala.

[258]
Mas o significado de protagonismo juvenil defendido por Marcelo implica ação
autônoma, e nesse caso a diferença de escalas pode ter implicações, uma vez que
pequenos grupos autônomos têm mais condição de transformar em primeira instância
realidades locais, vinculadas a problemas locais imediatos, que de ter efeito em lutas mais
amplas. Daí as modalidades deônticas em “Mas o protesto nacional pode acontecer, mas tu
tem que trazer ele para o teu estado também”. Enquanto a participação em manifestações
de cunho nacional é modalizada como possibilidade, sua aplicação aos contextos mais
imediatos recebe modalidade de obrigatoriedade. Esse sentido se completa em “Senão
nada adianta”.
Começa a se delinear aí uma perspectiva não tanto de oposição entre as escalas,
mas de complementaridade. A relação entre as escalas nacional e local é texturizada na
recorrência de orações com ‘trazer’ – “tem que trazer ele [o protesto nacional] para o teu
estado também”, “acaba que não traz a discussão para cá”, “acaba não trazendo esses
nacionais para o nosso regional” –, como ilustra a figura 8.2:

Nacional

Local

Figura 8.2 – ‘Trazer’ o nacional para o local

Essa representação com ‘trazer’ sugere uma perspectiva espacial dentro/fora, em


que dentro se identifica com o local e fora com o nacional. Esse sentido se completa no
uso dos dêiticos de proximidade com o contexto local (“aqui no DF”, “pra cá”, “aqui é o
meu grupo de Brasiliana”) e da metáfora espacial ‘ficar de fora’ (de movimentos mais
locais, em decorrência da escala de atuação do Movimento). Assim, nas representações de
Marcelo, a participação nas instâncias nacionais de manifestação se justifica na medida em
que tem efeitos na mobilização pela transformação local. As setas na Figura 8.1 apontam
[259]
apenas em um sentido – de fora para dentro – uma vez que a perspectiva é da influência
da atuação em escala nacional no contexto da escala local.
A relação entre as escalas nacional e local, entretanto, se complexifica no outro
aspecto do debate acerca das escalas de atuação do Movimento, aquele relacionado à ação
integrada das diversas comissões locais do MNMMR. Esse tema é lançado em debate
quando se aborda o posicionamento que a Comissão Local do DF assumiria na assembléia
nacional em relação à atuação do Movimento junto a meninos e meninas efetivamente em
situação de rua. Observe-se o exemplo (50):

(50) Marcelo: Por exemplo, olhe o nome do Movimento: Movimento de Meninos e


Meninas de Rua. Você não discute mais a questão dos meninos de rua, parece
que...
Maria: Virou comum os meninos de rua! É normal.
Marcelo: É normal. O Movimento não está nem integrado com a questão da
discussão do tráfico porque a maioria dos meninos que estão no Movimento, não-
sei-o-quê, a gente tem zilhões de problemas. O problema é esse, a gente tinha que
estar integrado junto com o movimento, indo para o lado das favelas, tinha que
estar integrado... não está.
Vera: Da moradia.
Marcelo: De moradia.
Júlia: Marcelo, aqui quem veio dar uma chamada em mim literalmente foi um
menino. O menino que passou aqui, veio aqui e disse: “Ô Jú, eu estou a fim de
fazer um trabalho aí, mas é com os meninos de rua porque eu fui menino de rua e
eu sei a importância que foi o Movimento. E o Movimento não está trabalhando
com esses meninos mais”. O Rogério, pode checar. Eu olhei para o Rogério,
nesse dia eu não tinha o que dizer para ele. Sabe o quê que eu tive a capacidade de
dizer para o Rogério? Eu, militante, pré-histórica, não-sei-o-quê? “Ah, Rogério,
senta com a Karina, porque a Karina está na rodoviária”. Pode um negócio
desses? Não, nós estamos completamente sem um eixo!
Marcelo: Mas daí é um posicionamento que a gente tem que ter nessa assembléia.
Paula: Na assembléia nós não vamos ter isso.
Marcelo: Mas, se a gente vai propor uma descentralização jurídica e administrativa,
nós [??] para isso também!
Júlia: Não. Não vai, sabe por que, Celo? Aí, os estados vão ter autonomia, o
Distrito Federal vai ter autonomia de pensar metodologicamente o que o
Movimento deveria fazer.
Marcelo: E adianta isso se no Brasil inteiro tem menino na rua?
Maria: Mas a gente vai estar...
Marcelo: Maria, isso é ilusão! Nós só vamos se fortalecer quando nós articularmos
a nossa luta a nível nacional. Porque, do mesmo jeito que tem o Rogério aqui na
rua, tem lá na rua [??], tem em São Paulo.

[260]
Quando se aborda a questão do escopo do Movimento, em termos da atuação
direta com crianças e adolescentes efetivamente em situação de rua, surgem, por um lado,
a preocupação com a articulação com outros problemas em escala local – o tráfico de
drogas na região e a questão da defasagem de unidades domiciliares – e, por outro lado, a
necessidade de trabalho integrado com outras comissões locais do MNMMR no
enfrentamento do problema da situação de rua entre crianças e adolescentes no País.
Embora Marcelo tivesse se posicionado a favor de uma atuação mais local do
Movimento no DF, reclama a necessidade de integração entre as diversas comissões locais
para uma influência efetiva na questão da situação de rua. Quando Júlia sugere a
descentralização do Movimento como autonomia para o trabalho da Comissão Local do
DF na decisão acerca do escopo de atuação do Movimento, ele questiona a eficácia do
trabalho isolado das outras iniciativas locais, sugerindo que se levasse o problema de
escopo à assembléia nacional (“nós só vamos se fortalecer quando nós articularmos a nossa
luta a nível nacional”), com uma estrutura lingüística ‘só/quando’ que indica a representação
da integração entre as esferas locais como necessária.
Assim, a relação entre as escalas de atuação no âmbito do Movimento ganha
contornos mais complexos, o que se mostra relevante nas representações de duas
maneiras: (i) a atuação local do Movimento no DF seria fortalecida pela participação em
debates de cunho nacional se esses debates fossem trazidos para os contextos e os
problemas locais, inclusive com a articulação com outros movimentos sociais locais; (ii) as
diversas comissões locais do Movimento deveriam agir de forma integrada de modo que,
cada qual atuando em seus contextos específicos, pudessem ter juntas eficácia na
transformação da conjuntura mais ampla. Isso está de acordo com as caracterizações de
Gohn (2003a) e Castells (1999) sobre os novos movimentos sociais como movimentos
descentralizados mas articulados em redes, e denuncia a ineficácia da rede formada pelas
comissões locais do Movimento (ver Capítulo 1). Essa perspectiva da relação entre as
escalas nacional e local poderia ser representada conforme a Figura 8.3:

[261]
Nacional

Local

Figura 8.3 – Relação dialética entre as escalas nacional e local

De acordo com a Figura 8.3, estabelecem-se relações de mão-dupla entre as escalas


nacional e local – no sentido de que (i) a configuração da escala nacional influencia a
escala local e a atuação na escala local, quando integrada em rede, causa alterações na
configuração da escala nacional, e (ii) uma articulação entre as atuações nos diversos
âmbitos de escala local pode se configurar um instrumento de transformação da
conjuntura nacional. A primeira relação é representada na figura pelas setas pretas e a
segunda pelas setas brancas pontilhadas.
Ainda, nesse excerto (50), Júlia faz referência à visita que recebeu de um ‘ex-
menino de rua’ interessado em “fazer um trabalho aí, mas com os meninos de rua”. Júlia,
segundo contou, não soube o que responder a ele, pois de fato não se tinha nenhuma
atuação junto a crianças e adolescentes em situação de rua na Comissão Local do
Movimento no DF, o que ela definiu como ‘falta de eixo’.
Resultou que ela sugeriu a esse jovem, Rogério, que procurasse a Karina, que na
ocasião estava “na rodoviária”, trabalhando como vendedora de flores. Ele assim o fez.
Escreveram, Rogério e Karina, um projeto para a organização de adolescentes/jovens
trabalhadores/as nas imediações da Rodoviária do Plano Piloto, onde há grande
movimento de crianças, adolescentes e jovens em situação de rua. Enviaram o projeto
para o HSBC Solidariedade, que o recusou. Depois, o projeto foi reformatado e ampliado,
recebeu o nome de Projeto Giração e foi submetido a edital da Petrobrás, que o aprovou.

[262]
Foi em torno da aprovação desse projeto que se realizou a Reunião 2, uma reunião
do Grupo de Trabalho Gira-Ação a respeito da implementação do projeto. Ao recorte
dessa reunião dedico a próxima seção.

8.2. A Reunião 2

Embora o Projeto Giração – para organização de adolescentes e jovens


trabalhadores/as informais nas imediações da Rodoviária do Plano Piloto de Brasília –
tenha sua origem na proposta de um jovem e uma jovem do Movimento (um ex-menino
e uma ex-menina, nos termos da classificação utilizada por Júlia quando da realização dos
encontros de grupo focal; ver Capítulo 4), a Comissão Local do MNMMR no DF não pôde
submeter o projeto pela própria instituição, pois apesar da descentralização do MNMMR,

decidida naquela assembléia nacional de que tratava a Reunião 1, o problema do CGC

ainda não havia sido resolvido. Assim, o Movimento entrou como parceiro e a proposta
foi encaminhada pelo Cecria – Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e
Adolescentes –, instituição vizinha ao Movimento no Corredor da Cidadania.
Esse projeto previa um ano de duração e representou para o MNMMR/DF um novo
fôlego e uma retomada de seu objetivo – ou de seu ‘eixo’, para usar a expressão de Júlia
no exemplo (50). Sobre isso anotei em meu diário de campo:

O projeto Giração é o grande projeto que foi aprovado pela Petrobrás e que vai receber
financiamento para a nucleação de adolescentes/jovens trabalhadores/as informais das
imediações da Rodoviária. (...) Enfim, parece que o Movimento vai finalmente sair da
crise. Esse projeto promete dar novo oxigênio à organização. O Glauco está animado, a
entrada dele como coordenador também parece ter sido fundamental para a
reestruturação (Nota de campo registrada em 16 de março de 2007).

No recorte da transcrição dessa reunião, analiso a representação dos/as jovens


do Movimento envolvidos/as no Projeto Giração. Os atores sociais envolvidos em
eventos e práticas sociais e as relações estabelecidas entre eles podem ser analisadas, em
textos e interações, de um ponto de vista representacional, em termos de que atores e
atividades são incluídos ou excluídos na representação, e a que atores e atividades
incluídos é dada proeminência.
[263]
Van Leeuwen (1997) esboça um inventário sócio-semântico dos modos pelos quais
atores sociais podem ser representados, discutindo a relevância sociológica das categorias
apresentadas e sua realização lingüística. Os diversos modos pelos quais atores sociais
podem ser representados em textos podem ser vistos como uma questão também
gramatical se, como Halliday (2004), entendemos a gramática como um ‘potencial de
significados’ cuja realização concreta se dá pelas escolhas operadas por falantes.
As categorias levantadas por van Leeuwen (1997) acerca da representação de
atores sociais em textos são numerosas, e nem todas mostram-se relevantes para as
análises que proponho aqui. Por isso, simplifico o arcabouço, de acordo com meus
interesses específicos nesta seção, e utilizo o quadro de categorias ilustrado na Figura 8.4:

EXCLUSÃO
SUPRESSÃO
SEGUNDO PLANO

INCLUSÃO

ATIVAÇÃO

APASSIVAÇÃO

PERSONALIZAÇÃO

IMPERSONALIZAÇÃO

ABSTRAÇÃO

OBJETIVAÇÃO

GENERALIZAÇÃO

ESPECIFICAÇÃO

NOMEAÇÃO

CATEGORIZAÇÃO

FUNCIONALIZAÇÃO

IDENTIFICAÇÃO

CLASSIFICAÇÃO

IDENT. RELACIONAL

Figura 8.4 – Representação de atores sociais: seleção de categorias de van Leeuwen (1997)

[264]
As maneiras pelas quais atores sociais são representados em textos podem indicar
posicionamentos em relação a eles e a suas atividades – por exemplo, determinados
atores podem ter sua agência ofuscada ou enfatizada em representações, podem ser
referidos de modos que presumem julgamentos acerca do que são ou do que fazem.
Resulta que a análise de tais representações pode ser útil para a investigação da
construção discursiva de identificações e relações sociais em textos e interações.
Em primeiro lugar, as representações podem incluir ou excluir atores sociais,
servindo a interesses e propósitos em relação a quem se dirigem. Algumas exclusões
podem simplesmente se referir a pormenores que se assume que os interlocutores já
conheçam, ou que são considerados irrelevantes, outras podem estar relacionadas a uma
estratégia de ofuscação de sua responsabilidade na ação ou de sua atividade. Atores
sociais podem ser absoluta ou parcialmente excluídos em representações. No primeiro
caso, excluem-se tanto os atores sociais quanto suas atividades. Para van Leeuwen
(1997: 182), uma exclusão tão radical somente poderá ser verificada por meio da análise
de diferentes representações de uma prática social, mas não na análise de um único
texto, “pela simples razão de que não deixa marcas”. Acrescente-se, entretanto, que o
conhecimento contextual acerca dos eventos representados também pode indicar esse
tipo de exclusão, já que se sabemos quem são os atores envolvidos numa dada prática
ou evento, podemos verificar sua inclusão ou exclusão em representações dessa prática
ou evento. Quando as atividades estão incluídas mas atores sociais nelas envolvidos
estão excluídos, a exclusão deixa vestígios. Nestes casos, distinguem-se a supressão e a
colocação em segundo plano. Na supressão não há qualquer referência aos atores em
questão; na colocação em segundo plano a exclusão é menos radical: os atores sociais
excluídos não são mencionados em relação a uma dada atividade, mas são mencionados
em outra parte do texto.
Uma vez incluídos em representações, atores sociais podem ser ativados ou
apassivados. Na ativação, são representados como forças dinâmicas numa atividade. A
ativação de atores sociais pode se realizar de maneira clara, por meio dos papéis

[265]
gramaticais participantes em estruturas transitivas.49 Na apassivação, os atores sociais são
representados como “submetendo-se à atividade ou como sendo receptores dela”
(Fairclough, 2003: 145). A questão é verificar se a agência em eventos é clara ou ofuscada,
se a apassivação de atores na representação discursiva ofusca sua responsabilidade em
eventos ou seu papel em relações sociais.
Atores sociais podem ser representados como classes, por meio de uma
generalização, ou como indivíduos identificáveis, por meio de uma especificação. Atores
sociais representados especificamente podem ser representados por seus nomes próprios
(nomeação) ou pela função que desempenham na prática ou no evento social
(categorização). Funcionalização e identificação são dois tipos fundamentais de
categorização. Na funcionalização, os atores sociais são representados em termos de uma
atividade, uma ocupação ou uma função. Na identificação, os atores sociais são definidos
não em termos do que fazem, mas em termos do que são. Dois tipos de identificação são
a classificação e a identificação relacional. Na classificação, atores sociais são referidos em
termos das principais categorias através das quais uma dada sociedade ou instituição
diferencia classes de pessoas (idade, sexo, origem, classe social etc.). A identificação
relacional apresenta os atores sociais em termos das relações pessoais, de parentesco ou
de trabalho que têm entre si.
Nem sempre, em representações, atores sociais são referidos como pessoas:
podem ser representados também de maneira impessoal. Atores sociais podem, então, ser
impersonalizados, por meio de substantivos abstratos ou substantivos concretos cujo
significado não inclui a característica semântica [+ humano]. Há, segundo van Leeuwen,
dois tipos de impersonalização: a abstração e a objetivação. No caso da abstração, os
atores sociais são representados por meio de uma qualidade a eles atribuída na
representação50; na objetivação, são representados por meio de uma referência a um local

49 Para van Leeuwen (1997: 185), a relevância dos papéis gramaticais (“quem é representado como ‘agente’ (ator), e
como ‘paciente’ (finalidade) no que diz respeito a uma dada ação”) em representações decorre de que “não é
necessário que haja congruência entre os papéis que desempenham, de fato, em práticas sociais e os papéis
gramaticais que lhes são atribuídos nos textos. As representações podem redistribuir papéis e organizar as relações
sociais entre os/as participantes”.
50 O exemplo fornecido por van Leeuwen (1997: 208) é “a maneira como os migrantes ‘pobres, negros, não-

qualificados, muçulmanos ou ilegais’ são referidos através do termo ‘problemas’ – está a ser-lhes atribuída a qualidade
de serem problemáticos, e esta qualidade é usada para os designar”.
[266]
ou a algo diretamente associado a sua pessoa ou a sua atividade, por referência
metonímica ao local em que desempenham suas atividades, a seus enunciados, a seus
instrumentos de trabalho. Os efeitos da representação impessoal de atores sociais são o
encobrimento de seus papéis ou atividades.
Outra categoria de representação, que não é tratada por van Leeuwen mas que se
mostra relevante em meus dados, é aquela feita por meio de referência ao pertencimento
institucional. Esse tipo de representação liga atores sociais a um espaço material e simbólico
que os caracteriza, uma vez que parte do conhecimento utilizado para sua representação
discursiva são as características e histórias ligadas ao ambiente institucional em questão.
Para a análise da representação dos/as jovens implicados/as no Projeto Giração,
cumpro duas etapas. Em primeiro lugar, concentro-me na representação da dupla de
jovens que levantou a proposta do trabalho na rodoviária – Karina e Rogério. Em
seguida, analiso os modos de representação do grupo que à época da Reunião 2 já
cumpria uma atividade preliminar à implementação do projeto, a observação na
Rodoviária do Plano Piloto – Rogério, Maria e Amanda (nessa época, Karina havia
partido para Cuba, com bolsa de estudos do governo cubano, para cursar Letras).
A representação de Karina e Rogério como proponentes da idéia inicial que deu
origem ao projeto ocorre em três excertos do recorte. Vejamos o primeiro deles,
transcrito a seguir no exemplo (51):

(51) Paula: O projeto a gente acabou enviando. Eu acho que foi só a Mônica que não
teve oportunidade de ler ainda.
Mônica: Não, esse material aqui não. Eu já vi quando estava fazendo, né?
Paula: É, ela ajudou a gente na elaboração, então ela sabe muito bem. Mas, como
eu estava conversando com você, como foi um projeto que começou de forma
muito rápida, a gente foi adequando e trabalhando com ele. Agora, a gente tá
vendo o tamanho do projeto que... Na verdade, esse projeto, ele surge por uma
demanda de dois – na época – dois jovens do Movimento, que trabalhavam. Um
deles é o Rogério, e a Karina, que trabalhavam na Rodoviária.

Nesse excerto, a representação do jovem e da jovem que propuseram o projeto


que daria origem ao Giração é feita, primeiro, por meio de classificação (“jovens”); depois
por pertencimento institucional (“do Movimento”). Em seguida, são representados por

[267]
meio de nomeação (“o Rogério e a Karina”) e funcionalização, pela referência a sua
atividade laboral (“que trabalhavam”, “que trabalhavam na rodoviária”).
O trecho do excerto que efetivamente nos interessa para a análise de sua
representação é a parte da segunda fala de Paula que se inicia em “Na verdade”. Em
termos da estrutura tema-rema (ver Seção 5.2), há a tematização de “esse projeto”, de
modo que a representação da dupla de jovens ocupa posição remática. O resultado é que
se enfatiza o ‘surgimento’ do projeto, ficando sua autoria em segundo plano. A
representação da ação social que dá origem ao projeto como ‘surgimento’ também é digna
de nota. Em um texto dedicado ao debate da representação da ação social, van Leeuwen
(1995: 96) ressalta que ações sociais podem ser representadas de modos que enfatizem ou
ofusquem a agência. Entre os casos de ‘desagencialização’, destaca a eventualização, que
ocorre quando “uma ação é representada como um evento, como algo que simplesmente
‘acontece’, sem o envolvimento da ação humana”. Uma das maneiras de se obter esse
efeito é a utilização de processos materiais que denotam ação involuntária, como ‘surgir’.
No sistema de transitividade, temos que a representação de Karina e Rogério figura
em posição externa no sistema, como circunstância que sugere a motivação para o
‘surgimento’ do projeto. Na verdade, figura como qualificador da circunstância – ainda mais
afastado do núcleo do processo (“uma demanda de (...) dois jovens”). Também sua
representação por classificação, como “dois jovens”, recebe um qualificador – “do
Movimento” – que estabelece o vínculo institucional como parte do conhecimento
empregado na representação. Por fim, há na representação de Karina e Rogério um vínculo à
atividade, pois por duas vezes Paula menciona o trabalho como parte de sua representação,
uma delas com o esclarecimento específico de que desenvolviam essa atividade laboral na
rodoviária. O trecho em questão pode ser organizado como no Quadro 8.3 a seguir:

“Esse projeto, “uma demanda (...) do que Um deles é o que


ele surge por de dois jovens Movimento trabalhavam. Rogério, e a trabalhavam na
Karina, rodoviária.”
PERTENCIMENTO FUNCIONALIZAÇÃO FUNCIONALIZAÇÃO
EVENTUALIZAÇÃO CLASSIFICAÇÃO INSTITUCIONAL (ATIVIDADE) NOMEAÇÃO (ATIVIDADE)

Quadro 8.3 – Representação de Karina e Rogério no exemplo (51)

[268]
A representação por classificação parece ser uma constante no âmbito do
Movimento quando se trata de falar sobre ‘meninos/as’, ‘adolescentes’ ou ‘jovens’ – o
tipo de representação que me parece ser mais comum, com base tanto em minhas
observações quanto em meus dados, é essa. Por outro lado, a representação pelo
pertencimento institucional pode sugerir uma preocupação em marcar um papel para o
Movimento como ‘instituição-âncora’. A representação da atividade laboral, por sua vez,
mostra-se relevante pela relação entre o contexto de desempenho dessa atividade e o
contexto para o qual propõem o projeto. Como vimos, há nesse pequeno trecho cinco
instâncias que podem ser relacionadas à representação de Karina e Rogério. Embora o
projeto seja tematizado em detrimento de sua autoria, há o que poderíamos classificar
como uma ‘super-representação’ da dupla de jovens, o que denota sua relevância nessa
representação do ‘surgimento’ do projeto. O segundo excerto em que Karina e Rogério
são representados, a seguir no exemplo (52), mostra estrutura muito semelhante:

(52) Glauco: (...) O nascimento do projeto, por si só, já é interessante porque ele nasce
a partir de dois adolescentes do grupo, do Movimento que desenvolviam
atividades laborais na Rodoviária. E ao perceber esse universo todo, propõem
para nós uma atividade desse modelo. Então, assim, a gente, ao sistematizar o
desejo na forma de um projeto, ainda no ano passado, em julho, a gente
sistematizou a partir daquele primeiro desejo.

Nesse exemplo (52), os modos de representação são a classificação


(“adolescentes”), o pertencimento institucional (“do grupo, do Movimento”), a
funcionalização (“que desenvolviam atividades laborais na rodoviária”), além da elipse. É
interessante notar a semelhança com a representação por Paula em (51). Também há aqui
a tematização do projeto, por meio da ênfase em seu ‘nascimento’, e a rematização da
autoria. A representação da criação do projeto como ‘nascimento’ remete a outro caso de
‘desagencialização’ na representação da ação social: a naturalização. Nesses casos

uma ação é representada como um processo natural por meio de


processos materiais abstratos tais como ‘expandir’, ‘desenvolver’ etc., que
ligam ações a interpretações específicas de processos materiais – a
discursos de ascenção e queda; nascimento e morte; crescimento e recuo;

[269]
mudança, desenvolvimento e evolução; fusão e desintegração; expansão
e contração (van Leeuwen, 1995: 97).

Trata-se, portanto, da utilização de metáforas de base natural que ofuscam a


agência humana nas ações representadas. Esse tipo de representação impessoal
desumaniza, encobre o aspecto agentivo da atuação de pessoas.
Em termos do sistema de transitividade, as semelhanças entre as representações
por Paula e por Glauco persistem – a representação de Karina e Rogério aparece na
posição de circunstância que indica origem. Nos dois casos há um conjunto semelhante
de escolhas dos modos como representar a autoria do projeto – em posição remática,
como circunstância – e na ênfase a sua criação como surgimento/nascimento motivado
pela dupla de jovens (e não como uma criação sua). Se organizarmos o trecho do exemplo
(52) que vai de “a partir” até “Rodoviária” em um quadro como o 8.3, as semelhanças
ficam explícitas. Vejamos então o Quadro 8.4:

que desenvolviam
“Ele nasce a partir de dois adolescentes do grupo, do atividades laborais na
Movimento rodoviária”
PERTENCIMENTO
NATURALIZAÇÃO CLASSIFICAÇÃO INSTITUCIONAL FUNCIONALIZAÇÃO

Quadro 8.4 – representação de Karina e Rogério no exemplo (52)

O que há de comum em ambas as representações é: (i) a rematização da


representação de Karina e Rogério; (ii) sua colocação externa no sistema de transitividade,
como circunstância; (iii) a ênfase ao pertencimento institucional; (iv) a ênfase a sua
atividade laboral como parte da representação; (v) a negação de um papel agentivo no
sistema de transitividade da oração principal, que trata do projeto propriamente, sendo
representados como agentes apenas do trabalho informal que desempenhavam na
rodoviária.
Mas a representação de Glauco tem uma continuação que segue esse trecho,
destacado no Quadro 8.4 e que tanto se assemelha à de Paula. É a seguinte: “E ao
perceber esse universo todo, propõem para nós uma atividade desse modelo.” Há aqui

[270]
duas instâncias em que Karina e Rogério cumprem um papel agentivo – uma na própria
oração principal e outra na oração circunstancial. Entretanto, em ambos os casos há a
elipse como forma de representação. Van Leeuwen (1997) destaca a elipse como uma das
formas de colocação em segundo plano, já que nesses casos os atores sociais omitidos em
uma representação são referidos em outra parte do texto. Mesmo que seja uma
informação recuperável, não é a mesma coisa, em termos de representação, optar por
duas elipses que, por exemplo, optar por ‘ao perceber esse universo todo, Karina e Rogério
propõem para nós uma atividade desse modelo’. Ao contrário das representações
anteriores, que identificam o surgimento/nascimento do projeto em detrimento de sua
autoria, nesse trecho identifica-se uma ‘proposta’ autorada (“propõem para nós”), mas a
autoria fica em segundo plano pela seleção lingüística da elipse.
No terceiro trecho em que a representação de Karina e Rogério aparece no
recorte, transcrito no exemplo (53) a seguir, o quadro da representação é bastante diverso:

(53) Henrique: Quem vai coordenar o projeto? Jú, é você que vai coordenar?
Júlia: Henrique, nós fizemos uma avaliação, até nisso que a gente vai colocar
depois, nos informes do projeto, que era importante que fosse uma pessoa de
fora, com mais experiência, porque é um projeto novo. E, se a gente pudesse ter
essa pessoa, para nós seria ideal. Até porque, a gente vive meio falido de gente.
Quem sabe a gente pudesse ter novas pessoas?
Henrique: Fazer uma seleção aí...
Júlia: É, ter uma seleção de gente mais comprometida. Sei lá, uma pessoa...
Henrique: O primeiro critério é passar uma semana na Rodoviária, depois fazer a
seleção.
Paula: É um bom critério!
Júlia: É, que a gente pudesse ter gente nova. Geralmente, com o profissional
novo, já vem um bocado de gente nova, cabeça nova e tudo. A gente pensou,
nessa perspectiva, de ter pessoas novas. Agora, nós, educadores, a gente ficou
meio que de saia justa porque, assim, os meninos pensaram o projeto, vieram,
inclusive, propor, né? Então, e gente também achou que deveria, a priori,
garantindo essa parte de capacitação, que a gente pudesse priorizar esses meninos
mesmo. O menino como o Rogério, né...
Mônica: jovens!
Júlia: É, esses jovens que já estão aí.
Mônica: Já que é para formar…

No exemplo (53), o trecho relevante para a análise da representação do jovem e da


jovem que propuseram a versão inicial do projeto é aquele que se inicia na última fala de

[271]
Júlia, a partir de “Agora”, até a última intervenção de Mônica, no final do excerto.
Pensemos primeiro no trecho da fala de Júlia. Em termos do sistema de transitividade,
nesse excerto – ao contrário dos dois primeiros – a representação dota “os meninos” de
papel ativo na criação do projeto. Ao invés de estruturas como ‘o projeto surgiu a partir
dos meninos’, tem-se “os meninos pensaram o projeto”, atribuindo-se a idéia inicial, com
clareza, a seus autores. Depois, para além da versão inicial atribui-se também a proposta
de sua sistematização em projeto (“vieram, inclusive, propor”).
No que se refere aos modos de representação dos atores sociais propriamente, a
representação oscila entre a classificação (“os meninos”, “esses meninos”), a nomeação
(“como o Rogério”) – embora aqui a referência não seja a Rogério individualmente, mas a
“menino como o Rogério” – e a elipse (“vieram (...) propor”). A classificação “meninos”
ganha contornos de categorização quando aparece em oposição a outra categorização,
“nós educadores”, pois traz como fonte para a representação a questão dos papéis
desempenhados no Movimento. A oposição entre “os meninos” que “pensaram o
projeto” e os “educadores” que devem decidir sobre sua inclusão ou não no projeto que
eles próprios “pensaram” indica uma relação hierárquica no âmbito do Movimento – o
que se liga, como já vimos, à negação da identidade das jovens Maria e Joana como
educadoras, na oposição ‘ser educadora’/‘atuar como educadora’ (ver Capítulo 7).
O excerto (53) sugere uma negociação do papel que seria atribuído a “esses
meninos” no âmbito do Projeto Giração. Para compreender essa negociação (novamente
deslizo para o significado acional), é preciso ter em vista que estavam presentes a essa
reunião não apenas membros do Movimento, mas também o coordenador do Cecria,
instituição responsável oficialmente pelo projeto, no qual o Movimento assume apenas
um papel de instituição parceira. Como vimos, a parceria do Movimento com o Cecria foi
uma imposição para a possibilidade de aprovação desse projeto pela Petrobrás – pelo
problema com o CGC do Movimento, o projeto não poderia ser proposto por essa
instituição, apesar de o projeto ter ‘nascido’ no Movimento e ter sido escrito por seus
membros – eu mesma fiz a revisão da versão final enviada à Petrobrás (ver Capítulo 4).
Foi encaminhado por e aprovado para o Cecria. Isso poderia explicar as representações de
Karina e Rogério por meio do vínculo institucional, recorrentes nos dois primeiros

[272]
exemplos, que tratam da origem do projeto (“dois jovens do Movimento”, “dois
adolescentes do grupo, do Movimento”).
Júlia parece negociar a necessidade de inclusão de jovens do Movimento no
projeto – utilizando como argumentos o fato de a idéia e a proposta terem partido de
jovens membros da instituição e de ser necessário, em todo caso, qualificar educadores/as
para o projeto. A carência de pessoas qualificadas e disponíveis para trabalhar no projeto
e a necessidade de o próprio projeto incluir a qualificação de profissionais já havia,
inclusive, sido enfatizada em trecho anterior da interação – por membros do Movimento
(“Glauco: E que não tem no mercado disponível assim./Mônica: Não, disponível não
tem./Glauco: E, mesmo os que são disponíveis, não são disponíveis para a nossa
potencialidade financeira, a mesma coisa”). Estariam os membros do Movimento
adotando um recurso estratégico para convencer o coordenador do Cecria – em posição
de poder no projeto – a contratar jovens membros da organização?
Há elementos textuais na fala de Júlia que sugerem esse caráter de negociação. Em
primeiro lugar, há mitigação pela modalidade epistêmica (“meio que”, “assim”, “a priori”).
Depois, Júlia recorre a uma racionalização que encadeia causas e efeitos de modo a
construir uma argumentação em torno da necessidade de inclusão de jovens do
Movimento no projeto (“porque”, “então”, “também”, “mesmo”). Por outro lado, na
modalidade deôntica, essa necessidade é formulada como sugestão, hipótese (“deveria”,
“pudesse”). Todas essas estratégias discursivas levam a crer que Júlia tentava convencer
seus/suas interlocutores/as – a coordenação do Cecria principalmente? – da coerência da
decisão de “priorizar esses meninos mesmo”.
Júlia utiliza a expressão ‘saia justa’ para se referir a essa situação. Observei de perto
o mal-estar que resultou da aprovação do projeto e da hesitação a respeito da existência
de espaço para jovens do Movimento em sua implementação. Por um lado, as educadoras
(conversei sobre isso principalmente com Vera) tinham receio – por ser um projeto que
trazia um grande desafio e que envolvia dinheiro público, e talvez pelos problemas
anteriores relativos a isso (ver Capítulo 5) – de contratar pessoas sem as qualificações
mínimas desejáveis; por outro lado, as jovens (sobre isso falei longamente com Maria)
entreviam a possibilidade de serem excluídas do que acreditavam ser enfim uma

[273]
oportunidade de trabalho formal no âmbito do Movimento a que já se dedicavam
informalmente, e tinham nisso uma fonte de frustração – indignação até – sem tamanho.
A afirmação da falta de profissionais qualificados/as para o projeto acabou sendo,
parece-me, não um problema mas a solução para esse mal-estar. Já que não havia mesmo
profissionais com o perfil pretendido e acessíveis, em termos financeiros, para o projeto, por
que não – “garantindo essa parte da capacitação”, “já que é pra formar” – qualificar as
pessoas interessadas, disponíveis e cuja exclusão resultaria um problema ético incontornável?
Voltando aos modos de representação, note-se que a nomeação de Rogério no
exemplo (53) não implica uma representação de sua individualidade, mas sim de um
conjunto que se identifica com ele: “menino como o Rogério”. Trata-se do mapeamento
de certas características de Rogério que definem “esses meninos” – ex-meninos/as do
Movimento que se mostram ainda dispostos/as a exercer atividades junto à organização e
que militam pela causa dos direitos da infância e da adolescência. A partir desse ponto,
ainda no exemplo (53), a referência deixa de ser específica a Karina e Rogério, como
proponentes da idéia inicial do Giração, para se tornar mais genérica, reunindo também
outros/as jovens – como Maria, Amanda e Joana – que poderiam ser incluídos/as no
projeto. É quando Mônica interrompe Júlia para introduzir uma correção: “Jovens!”. Ela
questiona a adequação da definição desses/as jovens como “meninos”, trazendo para a
classificação o caráter etário de que havia sido esvaziada.
Nos exemplos que vimos, note-se que Paula define Karina e Rogério como
“jovens”, Glauco opta pela classificação “adolescentes” – o que contraria a classificação
etária segundo a qual se consideram ‘adolescentes’ pessoas entre 12 e 18 anos (Estatuto da
Criança e do Adolescente, Livro 1, Título 1, Art. 2º; Conanda, 2002: 22) – e Júlia prefere a
classe “meninos”. Isso sugere que nessa classificação ‘menino’/‘adolescente’/‘jovem’ no
âmbito do Movimento o que está em jogo não é (ou não é principalmente) a idade, mas
algo além da faixa etária – não se trata apenas de uma categorização/
identificação/classificação com base em idade. Essa identificação, ao contrário, inclui
elementos de identificação relacional, em termos de relações pessoais. Seria uma questão
da hierarquia interna do Movimento? As entrevistas de Maria e Joana sugerem que sim,
quando as jovens discutem a construção de sua identidade no Movimento. Os dados

[274]
analisados sustentam a existência de uma mescla entre as categorias de base classificatória
e aquelas de base identificativa – quando usamos classificações baseadas em idade, gênero
ou classe social como parte do conhecimento sobre o qual construímos representações de
atores sociais, essas classificações tornam-se parte de um potencial identificacional ligado
aos atores sociais representados. No caso do Movimento, as classificações ‘menino/a’,
‘jovem’ e as categorizações ‘militante’, ‘educador/a’ parecem estar fortemente associadas
às identificações de seus membros, ao potencial partilhado acerca de sua ação social e aos
significados que sua ação assume (ver Capítulo 7).
A mesma indefinição se nota na representação de Maria, Amanda e Rogério,
jovens que à época da Reunião 2 já desenvolviam a observação do contexto do Projeto
Giração, como etapa prévia a sua implementação. A representação desse grupo figura em
quatro excertos do recorte; o primeiro deles está transcrito no exemplo (54):

(54) Mônica: Queria saber uma coisa: o projeto já começou?


Paula: Não. Na verdade, a gente ainda está...
Glauco: O financiamento dele ainda não. O dinheiro não chegou....
Paula: Sim, mas...
Glauco: Mas nós já estamos na Rodoviária...
Paula: O que a gente começou, na verdade...
Glauco: ... parte de nós. Quer dizer dizer, o Movimento está lá ainda sem a equipe
que vai trabalhar. Por isso mesmo: nós não selecionamos a equipe.

Nesse excerto, a referência ao grupo que atuava na atividade de observação na


rodoviária é muito indireta, enviesada. Apenas posso perceber esse trecho como uma
referência ao grupo pelo conhecimento contextual – não posso dizer que haja de fato uma
representação do grupo; o que há é, antes, sua exclusão. Ao invés de mencionar o grupo
de jovens militantes que efetivamente realizava a observação, Glauco afirma “nós já
estamos na rodoviária” e depois corrige “parte de nós” – embora consigne um espaço
institucional para essa parcela da militância, não chega a representá-la. Em seguida a
referência institucional é ainda mais fortalecida: em “o Movimento está lá” temos uma
representação impessoal de atores sociais como elementos da estrutura organizacional
(Fairclough, 2003). A impersonalização dos indivíduos por meio da objetivação por
metonímia encobre seus papéis na ação social representada.

[275]
A perspectiva da ausência de espaço para o grupo de jovens na implementação do
projeto percebe-se na menção a uma equipe ainda não selecionada para sua execução e,
sobretudo, na oração “o Movimento está lá ainda sem a equipe que vai trabalhar”. Essa
oração, compreendida ao lado da que a antecede (“nós já estamos na rodoviária (...) parte
de nós”), leva à conclusão de que aquela ‘parte do Movimento’ que já havia iniciado o
trabalho não faria parte da ‘equipe’ que seria posteriormente selecionada. Outras
referências à ‘equipe’ aparecem no exemplo (56). Antes, porém, seguindo a seqüência do
recorte, vejamos no exemplo (55) instâncias de representação mais direta do grupo:

(55) Mônica: Que tipo de primeiro olhar? Já tem um primeiro olhar?


Paula: Tem, na verdade, a Jú, até para estar dando subsídio para o Movimento,
eles estão indo... os educadores, o Rogério, a Amanda e a Maria, apesar de não
serem os educadores – mas isso entra num processo de formação deles, caso
venham ser desse projeto ou não – mas para estar dando subsídio para o
Movimento, eles estão fazendo observação na Rodoviária.
Glauco: Há duas semanas já, de manhã, à tarde e de noite.
Henrique: Ah! Que legal!
Paula: E eles já tão percebendo mais ou menos como é que está a movimentação.
A Jú, ela achou, nesse momento, importante ela não participar porque ela já é uma
pessoa conhecida na rodoviária, pelos meninos. Então, esse trabalho da
observação seria prejudicado se ela fosse. Então tão indo os meninos. E aí, a
partir desse olhar, a gente vai começar. E aí, quando a gente estruturar mesmo o
projeto, aí contratar e tudo, esse relatório dos meninos vai servir também como
subsídio para começar as ações.
[...]
Paula: Inclusive, os meninos – os jovens – do Movimento já sistematizaram. O
primeiro relatório deles já está pronto.

O grupo é representado por categorização/funcionalização como “os educadores”


e em seguida seus membros são explicitamente nomeados. O que se passa é que sua
representação como ‘educadores’ é desconstruída na seqüência imediata: “apesar de não
serem os educadores”. Sua identificação como tal é, no mesmo passo, atribuída e
contestada. Mais uma vez é possível remeter ao conflito ‘ser educadora’/‘atuar como
educadora’ identificada nas entrevistas com Maria e Joana, à dificuldade de superar o
papel de ‘menino/a’ e alcançar outros espaços institucionais dentro do Movimento.
O mesmo sugere outra representação do grupo, nesse mesmo excerto, como
“meninos” – “esse relatório dos meninos vai servir também para começar as ações”. É

[276]
preciso estar ambientado/a e conhecer o contexto do debate para fazer a devida distinção
entre ‘meninos’ em “A Jú, ela achou, nesse momento, importante ela não participar
porque ela já é uma pessoa conhecida na rodoviária, pelos meninos” e em “esse relatório
dos meninos”, pois os/as meninos/as trabalhadores/as da rodoviária – público alvo do
projeto – e o grupo de jovens – que executava as primeiras atividades para o projeto – são
representados/as textualmente da mesma maneira. Na seqüência, tal como Mônica o fez
no exemplo (53), Paula se corrige para representar o grupo não pela classificação
‘meninos’ mas como ‘jovens’, e acrescenta o vínculo institucional como parte do
conhecimento empregado na representação.
No exemplo (56) há nova representação de Maria, Amanda e Rogério, por
classificação, como ‘meninos’, mas o que se ressalta são as referências à equipe. Vejamos:

(56) Júlia: Com os vendedores, Mônica, a gente não conseguiu fazer o levantamento.
Porque agora, na observação dos meninos, a gente não teve condição de ter o
retorno ainda do que eles fizeram. Mas, assim, as flores, tem a máfia e tem as
flores. Porque, atrás das flores, tem as meninas. E atrás das flores está a venda das
meninas também. Então, isso é um negócio mais velado. As flores é um negócio
meio que da máfia, que a gente ainda não tem o caminho...
[...]
Henrique: o trabalho com pessoas terrivelmente machucadas, é preciso uma
equipe especializada!
Paula: A nossa preocupação é essa porque a gente tem uma equipe reduzida para
o projeto. Não é a equipe que a gente sonhava, mas foi a equipe que foi possível.
Mas assim, eu acho que, uma das coisas importantes que a gente tem que pensar...
Inclusive, eu acho que é um papel desse GT é a formação de quem está envolvido
com esses meninos...
Glauco: Sim, supervisão também.
Paula: É. Formação e, exatamente, supervisão. Porque o que a gente observa é
que em muitas situações, eles não sabem muito bem como conduzir.
Júlia: É difícil... você vive uma pressão. Por exemplo, os meninos têm um fato
concreto agora. Eles estavam fazendo observação na rodoviária essa semana –
para ver como é que é a rodoviária, como é que eles se sentiam lá. Eu falei:
“Melhor eu não ir na rodoviária com vocês porque os meninos da rodoviária me
conhecem muito. Então, pode ter uma interferência no olhar de vocês”. Aí eles
foram sozinhos. Aí, como já tinham conversado com os meninos lá de cima, dos
engraxates, eles encontraram eles na rodoviária. Eles ficaram tão impressionados
que eles marcaram uma reunião com os meninos.

Henrique, o coordenador do Cecria, traz para o foco a necessidade de uma “equipe


especializada”, dada a natureza do projeto. Paula concorda afirmando sua preocupação
[277]
com a equipe disponível, tanto em termos quantitativos (“equipe reduzida”) quando
qualitativos. Se o caráter qualitativo não fica totalmente claro em “Não é a equipe que a
gente sonhava, mas foi a equipe que foi possível”, é esclarecido em “um papel desse GT é
a formação de quem está envolvido com esses meninos”.
Paula contradiz o afirmado por Glauco no exemplo (54) sobre a contratação futura de
uma equipe ainda indefinida. Paula, ao contrário, utiliza o tempo passado, representa uma
equipe já consolidada – e se preocupa com a “formação de quem está envolvido”. É mais um
indício de que, embora ainda negociasse com a instituição em posição de poder pela
aprovação do projeto, o Cecria, o Movimento já tinha uma posição definida a esse respeito.
Até esse ponto do excerto, as referências ao grupo são muito veladas – não se
poderia afirmar com certeza que é de Maria, Amanda e Rogério que se fala. Entretanto, a
partir da fala de Paula “em muitas situações eles não sabem muito bem como conduzir” e
da resposta de Júlia (“os meninos têm um fato concreto agora”), as referências implícitas
anteriores se tornam claras: “equipe reduzida”, “equipe que foi possível”, “formação de quem
está envolvido” são de fato representações do grupo de jovens.
O próximo excerto é a continuação do trecho analisado no exemplo (53):

(57) Júlia: Então, a gente também achou que deveria, a priori, garantindo essa parte de
capacitação, que a gente pudesse priorizar esses meninos mesmo. O menino como
o Rogério, né...
Mônica: jovens!
Júlia: É, esses jovens que já estão aí.
Mônica: Já que é para formar…
Júlia: Então a gente pensou de apropriar...
Henrique: Agora, tem que ser meio capitalista aí. Tem tarefa, não cumpriu a
tarefa, cai fora.
Júlia: Não, a gente vai tomar o cuidado de ter o tal do termo de referência, com as
funções, com as regras, porque [eles/as] vêm da participação, né Henrique, agora
é um trabalho, é uma outra visão.
Henrique: Exatamente. É outra relação.
Júlia: Então eu acho que isso também vai ser um aprendizado no Movimento.
Isso foi o que a gente pensou, né! Mas estamos pensando ainda se essa é a mesmo
a linha, se é por aí...

Nesse excerto, interessa-me menos a representação do grupo – os aspectos dessa


representação já foram, inclusive, discutidos – que os pressupostos. A primeira

[278]
intervenção de Henrique no excerto, por um lado, introduz o tom dos pressupostos
levantados nas intervenções seguintes e, por outro, sugere uma desconfiança que poderia
justificar as estratégias de negociação que vimos, sobretudo, no exemplo (53).
Para Fairclough, Jessop & Sayer (2002: 7), “a interpretação de textos (e sua
compreensão) depende de uma quantidade de pressuposições compartilhadas por atores
sociais a respeito do que se fala, de intenções e crenças e de relações sociais”. Os
conhecimentos partilhados acerca do que significa assumir o papel de menina e o papel de
educadora, e da tensão entre os dois papéis, é fundamental para o estabelecimento da
compreensão entre Henrique e Júlia nesse exemplo (57). A oração de Henrique “Tem
tarefa, não cumpriu a tarefa, cai fora” põe em dúvida a capacidade ou a seriedade do
grupo para a realização do projeto; sem formulá-lo explicitamente, o coordenador do
Cecria levanta a questão que, mesmo sem ter sido dita, é recuperada imediatamente por
Júlia em sua resposta.
Júlia também toma a contratação do grupo como dada – assim como Paula,
desconstrói a indefinição sugerida por Glauco – quando utiliza o futuro composto para
texturizar os cuidados que seriam tomados, à guisa de garantias que tranqüilizassem
Henrique. Ainda nessa sua fala, Júlia volta a sugerir o corte entre ‘ação’ e ‘participação’ que
vimos na análise da Reunião 1: “porque [eles/as] vêm da participação, né Henrique, agora é
um trabalho, é uma outra visão”. Senão Rogério, ao menos Maria e Amanda haviam tido,
contudo, experiências prévias com a nucleação. Mas essa sua experiência no campo da
‘ação’ é negada na representação. Do mesmo modo, sua atuação junto aos núcleos de base
de suas comunidades não é considerada um trabalho, pelo pressuposto levantado em “agora
é um trabalho, é uma outra visão”. Esse mesmo pressuposto é recuperado por Henrique em
sua resposta a Júlia. Assim, Henrique e Júlia partem de um pressuposto partilhado e não-
dito em sua representação implícita sobre “esses meninos mesmo”.
A intervenção final de Júlia – que é também a última do recorte da Reunião 2 –
volta a deixar dúvida sobre a efetivação dessa equipe, afirmando, por um lado, a natureza
provisória da decisão e, por outro lado, o desafio que representa ao Movimento. É, pelo
caráter de mudança paradigmática na relação entre ‘meninos/as’ e ‘educadores/as’, “um

[279]
aprendizado para o Movimento”. Mas o salto foi dado: Amanda, Maria e sua irmã Rita
assinaram, enfim, contratos como educadoras para atuar no Projeto Giração. 51

Algumas considerações

A análise das modalidades subjetivas/objetivas utilizadas por Júlia e Marcelo no


recorte da Reunião 1 sugere assimetrias em termos interpessoais. Essas assimetrias podem
ser relacionadas ao sistema de hierarquias interno ao Movimento: Júlia adota postura mais
afirmativa, marcando posição de autoridade; Marcelo mitiga a discordância, busca pontos
de consenso e texturiza o dissenso com modalidades. O modo como as diferenças são
negociadas é mediado pela hierarquia, o que pode se relacionar a certa imobilidade de
papéis e implicar um empecilho para mudanças no âmbito do Movimento.
Na discussão acerca do significado de protagonismo juvenil, Júlia representa um
corte entre participação e ação – o protagonismo juvenil figura no âmbito da participação
como modo de experiência. O foco de discordância é que Marcelo situa o significado de
protagonismo no campo da ação, da mobilização autônoma. A análise dos tipos de
processos verbais utilizados em uma e outra representação é útil para se perceber tanto o
corte quanto as diferenças entre os significados de protagonismo juvenil em cada uma delas.
O corte identificado entre participação e ação liga-se ao debate em torno das
escalas nacional e local em termos da atuação do Movimento. Três tipos de relação são
estabelecidas entre as escalas nacional e local no debate. Essas relações organizam-se num
crescendo de complexidade: primeiro, as escalas nacional e local são texturizadas como
oposições – no debate acerca da atuação da Comissão Local do DF em temas de âmbito

51Embora Rogério tenha iniciado o trabalho como educador, desistiu do projeto e foi morar em São Paulo. Depois
voltou para o Distrito Federal mas não quis se engajar no Projeto Giração. Segundo Maria, isso se deve ao fato de ele
considerar que não tem estrutura psicológica para suportar o trabalho, devido às situações de precariedade em que
vivem as crianças, adolescentes e jovens envolvidos no projeto. Sobre isso, anotei em meu diário de campo em 20 de
fevereiro de 2008: “Havia umas duas dezenas de crianças e adolescentes. Há dois grupos: o de trabalhadores,
engraxates; o de crianças/adolescentes em situação de mendicância. A Ana me disse que desse segundo grupo o
comprometimento com drogas é de 100%!! Vi meninos menores que minha filha viciados em crack... Agora seria
possível levar a cabo meu projeto inicial, com meninos/as do Movimento, mas seria eu capaz? De verdade, não sei”.

[280]
nacional –, o que se evidencia no léxico pela construção de dualidades; segundo,
estabelece-se uma relação de mão única entre as duas escalas de atuação, no sentido
nacional-local – em referência ao aproveitamento de experiências de mobilização nacional
em contextos locais –, o que se realiza lingüisticamente em metáforas espaciais com
‘trazer’; terceiro, quando se aborda a questão do escopo do Movimento e da necessidade
de ação integrada entre as diversas comissões locais do Movimento, a relação entre as
escalas se complexifica, configurando-se em uma relação de mão dupla.
O que está em jogo aqui é a problemática organizacional do Movimento – o modo
como se configuram as comissões locais e a iniciativa nacional, e os modos como agem
para atingir seus objetivos comuns. Talvez seja esse um dos grandes empecilhos para a ação
efetiva e também o problema de mais difícil solução, uma vez que demanda habilidade
administrativa/organizacional e recursos que possibilitem fazer funcionar essa engrenagem.
A impressão que se tem é que a iniciativa nacional apenas existe no papel e na imagem
projetada no ideal de seus membros. Quando participei da Assembléia Nacional do MNMMR
em 2006, anotei em meu diário de campo: “Na verdade, o Nacional não existe! O Nacional
não passa de uma casa com uma funcionária que faz tudo!”. Daí a Comissão Local do DF

precisar assumir as tarefas que deveriam ser do Nacional. Além disso, a realização das
assembléias nacionais é um dispositivo demasiado oneroso – para ser realizado com a
periodicidade que seria adequada – e que ademais resulta pouco produtivo – pois os debates
se tornam circulares, as intervenções se sucedem acrescentando pouco umas às outras, as
decisões efetivamente relevantes ficam demasiado diluídas.
Parece-me que duas soluções poderiam facilitar, por um lado, a eficiência da
Iniciativa Nacional e, por outro, a comunicação entre as diversas comissões locais. A
primeira, mais custosa em termos financeiros, dependeria de aprovação de projeto de
captação de recurso que incluísse gastos com a contratação de um/a coordenador/a
executivo para a Iniciativa Nacional, sediado/a em Brasília. Isso implicaria a necessidade de
uma reformulação no estatuto do Movimento, já que pelo estatuto vigente o cargo de
coordenação precisa ser voluntário. A segunda, mais fácil, consiste simplesmente na criação
de mecanismos de comunicação baseados nas tecnologias digitais (listas de discussão com
mediação que facilitassem a persecução de objetivos propostos; grupos de trabalho ligados

[281]
pela Internet para a abordagem de problemas específicos; teleconferências que lançassem
mão dos softwares gratuitos disponíveis para esse fim) que possibilitassem comunicação
constante das coordenações locais entre si e com a coordenação nacional. Isso requer
poucos recursos – já que as comissões locais já contam com computadores conectados à
Rede – mas algum esforço por parte de todas as comissões locais.
A Reunião 2, por sua vez, foi realizada em um contexto bastante distinto. Embora
os problemas referentes à Iniciativa Nacional não estivessem resolvidos, e embora a
descentralização do CGC, decidido naquela Assembléia Nacional, não tivesse ainda surtido
efeitos, na Reunião 2 havia um clima de euforia pela esperança de reorganização da
Comissão Local do DF graças à aprovação – pelo Cecria, com parceria do Movimento –
do Projeto Giração pela Petrobrás.
Apesar do clima de otimismo que permeou a reunião, havia uma questão pendente:
o lugar que a implementação desse projeto reservaria a jovens do Movimento que já
desempenhavam, informalmente, funções na instituição e que ansiavam por um espaço
profissional no âmbito do Movimento. O recorte da transcrição da Reunião 2 circunda essa
questão. A categoria empregada para as análises foi a representação de atores sociais – por
um lado, a fim de investigar os modos de atribuição de autoria do projeto a Karina e
Rogério; por outro, na análise dos modos de representação do grupo de jovens que já
realizava etapa preliminar à implementação do projeto, Maria, Amanda e Rogério.
O resultado do conjunto de escolhas recorrentes na representação de Karina e
Rogério como proponentes da idéia inicial do projeto – tanto em termos do aspecto
textual (rematização) quanto em termos do sistema de transitividade (circunstancialização)
e dos processos que representam a ação (desagencialização) – é uma ofuscação da agência
em todos os níveis. A ênfase ao pertencimento institucional pode sugerir que a agência
ofuscada na representação dos atores é redirecionada para a própria instituição de modo a
fortalecer seu papel em uma conjuntura em que atua como ‘instituição parceira’,
incapacitada que estava de aprovar o projeto em seu nome.
A flutuação das classificações empregadas para a representação de jovens do
Movimento – tanto em relação ao primeiro grupo quanto ao segundo – sugere que as
classes ‘menino’/‘adolescente’/‘jovem’ carregam algo mais que um significado meramente

[282]
etário. Nesse sentido, proponho que se misturam as categorizações por classificação e por
identificação relacional no estabelecimento e na manutenção de relações hierárquicas que
dificultam a mobilidade na instituição, a conquista de outras identidades e papéis por
parte de jovens que o almejam.
As instâncias de representação do segundo grupo indicam a indefinição de papéis –
assim como vimos no Capítulo 7 em termos do conflito ‘ser educadora’/‘atuar como
educadora’. A incerteza acerca da equipe a ser contratada para o projeto, inicialmente
formulada, é desconstruída em representações que indicam uma decisão já tomada pelo
Movimento acerca do grupo, e negociada com o Cecria, instituição em posição de poder
pela aprovação do Projeto Giração.
O corte participação/ação aparece novamente, com destaque, na base do
pressuposto partilhado – ainda que não afirmado explicitamente – e que serve de
justificativa para a hesitação acerca da contratação do grupo de jovens. Esse pressuposto,
trazido ao debate pelo coordenador do Cecria, sugere desconfiança que poderia justificar
as estratégias de negociação assumidas pelos membros do Movimento. Em diversas
instâncias no recorte dessa reunião fica suficientemente clara a dificuldade imposta ao
Movimento pela brecha que se abre com a possibilidade de atribuição de outro papel a
esse grupo de jovens – dificuldade de superar as assimetrias e de ousar romper um
paradigma de lugares bem definidos.
É de causar estranhamento que justamente na transcrição dessa reunião, não só do
recorte analisado, mas de toda a reunião, nem uma vez apareça o termo ‘protagonismo
juvenil’. Ora, justo nessa reunião em que tratam da aprovação de um projeto cuja versão
inicial foi idealizada e proposta por jovens – jovens protagonistas dessa história –, não há
menção ao proclamado objetivo da organização e que, parece-me, foi nesse projeto
finalmente atingido. Sobre isso anotei em meu diário, ainda no dia da Reunião 2:

O que eu acho bonito desse projeto é que nele pela primeira vez eu vejo o
protagonismo sair do discurso para a prática! A idéia inicial do projeto foi da Karina e
do Rogério! Escreveram a versão inicial. Isso significa muito. Representa uma
conquista do protagonismo, de fato, finalmente.

Pergunto-me por que esse fato não foi mencionado na reunião.

[283]
DISCUSSÃO: UMA CRÍTICA EXPLANATÓRIA

O Modelo Transformacional da Atividade Social (Bhaskar, 1989) propõe que se


identifiquem necessidades não-satisfeitas de atores sociais envolvidos nas práticas sociais
estudadas; mecanismos que possivelmente bloqueiam a satisfação dessas necessidades e
modos potenciais para sua superação (ver Capítulos 2 e 3). A esse respeito, Collier (1994:
165) sugere que “observando como as coisas dão errado, descobrimos mais sobre as
condições para seu bom funcionamento do que poderíamos descobrir observando seu
bom funcionamento”. Nesse sentido, algumas necessidades não-satisfeitas para a
superação da crise do Movimento foram identificadas nesta pesquisa.
A primeira delas refere-se à articulação em rede. Em sua pesquisa com
movimentos sociais, Castells (1999: 426) constatou que “o principal agente identificado
nessa jornada pelos campos povoados por movimentos sociais consiste em uma forma de
organização e intervenção descentralizada e integrada em rede, característica dos novos
movimentos sociais, refletindo a lógica de dominação de redes na sociedade informacional”.
O MNMMR conquistou a descentralização apenas em 2006, na Assembléia Nacional (ver
Capítulo 4), mas ainda falta conquistar uma articulação em rede mais efetiva. No Capítulo
5, vimos que Júlia localiza problemas no tipo de rede criada: em termos de seus
procedimentos, a necessidade de encontros presenciais para a articulação da rede mostra-
se inviável, pelos elevados custos implicados na realização de encontros e assembléias
(transporte, hospedagem e alimentação dos/as representantes dos estados, por exemplo).
Uma possibilidade de superação desse problema é a utilização dos meios de
comunicação digital para dinamizar a articulação com menores custos. Trata-se de uma
questão discursiva no sentido de que envolve a necessidade de apropriação de recursos
discursivos, como a habilidade para utilizar as ferramentas próprias desse tipo de
comunicação. A discussão em torno das escalas de atuação do Movimento, que vimos
no Capítulo 8, também está relacionada a sua articulação em rede, no sentido de
formulação de ações estratégicas e de manutenção do foco em um objetivo comum:
atuação local das iniciativas articuladas em rede para um fortalecimento das
demandas do Movimento em nível nacional. Para isso é necessária a conquista de uma
articulação eficiente, que depende da intensa comunicação entre seus membros.
A falta de divulgação das atividades realizadas é outro obstáculo a ser superado.
Essa é uma questão problemática em dois sentidos: (a) limita a capacidade de captação de
recursos, uma vez que um dos objetivos de agências financiadoras é sua própria
visibilidade, que depende da visibilidade dos projetos apoiados; (b) limita a capacidade de
o Movimento atrair novos/as militantes, pois a sociedade não enxerga essa mobilização
(ver Capítulo 5). Além disso, a divulgação do tipo de trabalho realizado pelo Movimento
poderia ter efeito no debate acerca da condição da infância/adolescência em situação de
vulnerabilidade no Brasil, o que é relevante nesse momento em que aspectos do ECA são
questionados na discussão acerca do rebaixamento da maioridade penal (ver Capítulo 4).
Assim como a questão da articulação em rede, a superação do problema da falta de
divulgação das atividades do Movimento também se relaciona a uma utilização mais eficiente
dos novos meios de comunicação. A presumida inabilidade em lidar com a comunicação é
mobilizada na construção de identidades, como sugerem os dados da entrevista com Vera
(ver Capítulo 5). Os discursos interiorizados em construções identitárias ‘impõem’ diferentes
graus de facilidade/dificuldade no que diz respeito ao uso da linguagem, “diferentes
capacidades para lidar com novos discursos, gêneros e estilos” (Fairclough, Jessop & Sayer,
2002: 6). A superação da naturalização da incapacidade de utilização desses recursos
discursivos – tanto no que se refere à comunicação quanto no que diz respeito à produção de
projetos – é um passo no sentido da superação desse problema. Entretanto, não podemos
considerar que a naturalização dessa inabilidade seja a única causa da falta de divulgação das
atividades do Movimento, se entendermos, com Sousa Santos (2007: 24), que “experiências
muito locais, não muito conhecidas nem legitimadas (...), são hostilizadas pelos meios de
comunicação social, e por isso têm permanecido invisíveis, desacreditadas”.
Uma terceira questão destacada nos dados é a ausência de espaços de formação de
educadores/as em funcionamento. A falta desses espaços de formação é um problema

[286]
relacionado à dificuldade das jovens em conquistarem seu lugar como educadoras e se
identificarem como tal – um aspecto discursivo desse problema são os modos de identificação
das jovens como educadoras: ‘ficar como educadora’ e ‘atuar como educadora’ (ver Capítulo 7).
Mais que isso, a falta dos espaços de formação interfere também na qualidade do trabalho, e
tem conseqüências metodológicas em termos das estratégias para a persecução de objetivos
comuns. Isso está relacionado à falta de profissionalização no âmbito do Movimento.
A recuperação desses espaços de formação é um problema que exige muitos
recursos materiais e que me parece depende de esforço para aprovação de projetos
específicos para essa área. Durante meu trabalho com o Movimento, entretanto, não
observei nenhuma mobilização nesse sentido, nem mesmo ouvi comentários a respeito da
necessidade de elaboração de projetos para isso. Um primeiro passo para a superação
desse obstáculo pode ser a conscientização de sua relevância.
A captação de recursos para formação/organização de meninos e meninas também
foi representada como uma necessidade não-satisfeita no Movimento. Vera observou que é
difícil captar recursos para projetos de organização (ver Capítulo 5). Há uma mudança
discursiva implicada nessa questão: se à época do surgimento do Movimento a abertura
política após o período de ditadura e a celebração da participação da sociedade civil na
esfera pública garantiam o interesse em projetos de mobilização, na conjuntura atual a
participação da sociedade parece mais voltada para suprir a carência dos serviços
abandonados pelo Estado, em programas nos quais a sociedade é convidada a participar em
termos de voluntariado. O discurso da mobilização parece ter-se enfraquecido no embate
com o discurso da assistência – enquanto o discurso da mobilização social prega o
protagonismo da sociedade na resolução de problemas sociais (como a pobreza, por
exemplo), o discurso da assistência reconhece os problemas sociais mas privilegia soluções
que não emanam das próprias populações que sofrem com os problemas identificados, mas
da assistência/caridade de outros setores da sociedade. A organização de meninos e
meninas era uma questão em evidência no período em que o Movimento começou sua luta,
mas parece já não ser uma questão considerada relevante no contexto atual. Talvez por isso
o Movimento não consiga mais recursos para a atividade de nucleação.

[287]
Uma vez que o Movimento depende de financiamentos para dar continuidade a essa
atividade – central para a organização (ver Capítulo 1) –, é necessário que se transforme para
se manter o mesmo: “quando são relativamente duráveis, como muitas instituições são, então
essa durabilidade costuma ser um feito intencional, um produto de contínuas mudanças feitas
a fim de tornar-se a mesma ou, no mínimo, manter continuidades por meio da mudança, e
não como resultado de inércia” (Sayer, 2000b: 13). Talvez o Movimento não tenha sabido
fazer isso; permitiu transformações que modificaram a essência da instituição em vez de
conduzir mudanças que mantivessem essa essência embora adequando-a a contextos
variáveis. Para seguir perseguindo os mesmos objetivos, parece-me que o Movimento precisa
incorporar também outros objetivos mais atraentes para as agências financiadoras. A
proposição de projetos que tenham, além da organização, outros efeitos mais imediatos e
quantificáveis, respondendo à lógica das agências, poderia ser uma solução.
Um exemplo disso é o próprio Projeto Giração, que foi aprovado e renovado por
mais um ano (ver Capítulo 8). Esse projeto, além da organização e da conscientização de
direitos – objetivos primários da nucleação no Movimento (Santos, 1994) – tem como
produto a formação de uma associação de engraxates e o oferecimento de oficinas
diversas a meninos e meninas que freqüentam a Escola do Parque pela manhã e passam a
tarde no projeto, onde recebem também alimentação. Essa não foi uma questão simples
no Movimento: o protagonismo e a assistência são vistos no Movimento como
diametralmente opostos, daí a configuração do Projeto Giração ter sido palco de um
‘conflito interno’. Parece, entretanto, que a superação desse corte muito radical é um
procedimento estratégico para a continuidade da própria organização para o
protagonismo. Ademais, o Projeto Giração adquiriu visibilidade suficiente para atrair a
parceria do Estado, e o objetivo final é que saia das mãos do Movimento para se tornar
uma política pública – a assistência nesse caso funcionou como uma estratégia, já que não
se trata de substituir o Estado, mas de promover uma parceria que resulte em política
pública para populações geralmente pouco beneficiadas por essas políticas.
No que se refere à construção de identidades com base em significados oriundos da
mobilização social, Castells (1999: 82) ressalta que “a manifestação diversificada das
comunidades organizadas efetivamente proporcionaram rumos alternativos para (...) a auto-

[288]
identificação, a despeito da ausência de movimentos sociais de maior porte capazes de
articular transformações na nova sociedade emergente nas últimas décadas”. Nesse sentido,
pode-se dizer que o pertencimento ao Movimento possibilita a construção de modos de
identificação para seus membros, como conseqüência de formas particulares de entender a
realidade social com base no discurso do protagonismo. Isso se nota nos recortes das
entrevistas com Maria e Joana e do Grupo Focal 1, notadamente nas estruturas lingüísticas
de causação que relacionam o trabalho do Movimento com a constituição de identidades de
resistência (Castells, 1999; ver Capítulos 2, 6 e 7). A evolução para identidades de projeto,
entretanto, parece ser limitada por uma relação de dependência que se estabelece entre as
jovens e o Movimento como ‘instituição-âncora’. Sobre a contradição entre o discurso do
protagonismo e a construção efetiva de identidades de projeto, Castro (2001: 521) observa
que “se destacam os limites em que se movem tais experiências para que seus avanços não
se limitem a espaços circunscritos a um tempo – o da permanência dos jovens nas
experiências – considerando as dificuldades que esses jovens de setores populares
encontram para inserções efetivas na sociedade e exercícios de cidadania”. Essa
dependência se observa na separação entre os significados de protagonismo dentro do
Movimento e em espaços políticos mais amplos, no Grupo Focal 2 (ver Capítulo 6).
Outro aspecto da construção de identidade/identificação destacada nos capítulos
analíticos é a tensão entre as atribuições de papéis de ‘menina’ e ‘educadora’. Como as
estruturas são anteriores à agência, existe uma transformação tensa em novos modos de agência
que emergem de novas posições (ver Capítulo 2). A posição ‘menina-educadora’ é uma nova
posição criada no âmbito do Movimento – criada em decorrência da situação de crise financeira
que acarretou uma carência de recursos humanos na instituição (ver Capítulo 1) –, mas que é
parcialmente condicionada pela posição anteriormente ocupada pelos mesmos membros do
grupo que passaram a ocupar essa nova posição criada, isto é, pela posição de ‘menina’. Não se
trata de ocupar as mesmas posições das educadoras, mas de uma nova posição criada. Essa
posição articula características de ambas as posições anteriores (menina/educadora), mas, pelo
menos inicialmente, a posição de menina, com as características que lhe são internas, prevalece
devido às relações hierárquicas já estabelecidas. Soma-se a isso que o período de crise é um
período em que há indefinição de papéis e identidades, e isso é fonte de conflitos.

[289]
As hierarquias e a nova posição criada geram uma tensão entre a anterioridade das
estruturas dadas e a posterioridade das ações implícitas na nova posição. Nesse sentido, as
hierarquias previamente estruturadas funcionam como mecanismos que bloqueiam a
agência imaginada nas práticas dessa nova posição, restringindo-a e limitando-a. Isso pode
ser notado na contradição entre a representação do Movimento como um espaço em que
meninos e meninas têm voz, presente em todos os dados gerados, e o silenciamento da
voz das jovens quando assumem papel de educadoras, denunciado por Joana quando
reclama a insatisfação do desejo de ser ouvida, de ser valorizada em seu papel de
educadora (ver Capítulo 7). Nesse sentido, Santos (2002: 8) sugere que “é necessário
garantir a possibilidade de um espaço de participação em que a resistência e/ou
transformação do que existe seja possível, em que o contributo de outros, para lá dos que
já se instituiram como poder, seja não só permitido mas pertinente”. Isso é fundamental
para que os diversos membros reconheçam a valorização de seu empenho.
A dificuldade de lograr satisfatoriamente a mudança de papel no Movimento
também parece estar relacionada ao corte entre participação e ação, em que a participação
configura a natureza do protagonismo juvenil, e da posição de menina, enquanto o campo
da ação é reservado à posição de educadora. Assim, embora a posição de ‘menina-
educadora’ tenha sido criada, permanece circunscrita ao domínio da participação. O
rompimento dessa barreira simbólica entre participar e agir parece ser um dos aspectos
problemáticos do protagonismo juvenil, que prende a atuação das jovens ao espaço do
Movimento. Talvez a criação de espaços de ação efetiva para protagonistas no Movimento
favorecesse a organização para ação também fora da instituição. Em termos do sistema
posição-prática (Bhaskar, 1998d; ver Capítulo 2), o conflito decorre de que, na nova posição
‘menina-educadora’, ao mesmo tempo em que se impõe a participação como ‘menina’, as
jovens engajam-se em algumas práticas próprias da posição de ‘educadora’ – referentes à
coordenação de um núcleo de base. Há uma indefinição de lugares, funções, tarefas,
deveres e direitos, ligados à nova posição criada, de ‘menina-educadora’.
Outra contradição destacada nos dados refere-se aos discursos do protagonismo (de
mobilização social) e da imobilidade das estruturas sociais (ver Capítulos 2 e 6). A utilidade
da análise interdiscursiva baseia-se em sua relevância para a possibilidade de

[290]
se distinguirem discursos “quando maneiras particulares de se representar o mundo
(parcialmente estáveis, parcialmente variáveis) são socialmente significativas, talvez em termos
da efetividade do discurso, de sua ‘tradução’ em aspectos não-discursivos da vida social”
(Fairclough, 2003: 126). Nesse sentido, destacam-se, como movimentos entre aspectos
discursivos e não-discursivos de práticas, a seleção de discursos particulares para interpretar
eventos, legitimar ações e representar processos sociais; a mobilização desses discursos
selecionados em modos de ação; sua inculcação em modos de identificação; sua ressonância
em práticas sociais mais amplas. A filiação de membros do Movimento ao discurso da
imobilidade entra em choque com seus objetivos de mobilização para mudança social,
refreando sua capacidade de articulação para atingir esse objetivo. A emergência desse
discurso no contexto do Movimento e sua retenção na interpretação de eventos interfere
nos projetos de mudança social e na capacidade de incorporação dos sujeitos ou de
consolidação de identidades de projeto (Archer, 2000; Castells, 1999; ver Capítulo 2).
Nos termos do Realismo Crítico, o objeto intransitivo que pesquisei foi a crise do
Movimento e o enfraquecimento do protagonismo na prática em decorrência dessa
crise. Os principais mecanismos gerativos que explicam o problema, apontados por
meus dados, são as contradições na construção de identidades e identificações, no que
se refere à constituição da posição ‘menina-educadora’; as relações sociais hierárquicas
resistentes à transformação; a crise de legitimação social da luta do Movimento no
contexto em que o discurso assistencialista se fortalece em detrimento da participação
cidadã; a adesão ao discurso da imobilidade, que entra em choque irreconciliável com os
objetivos de mobilização social; a carência de recursos simbólicos ligados ao discurso e a
naturalização da incapacidade de transformar essa carência, que têm efeito na fragilidade
da rede de articulação nacional do Movimento e na carência de recursos materiais para a
ação; a ausência de espaços legítimos de transição de papéis na instituição, notadamente
dos centros de formação de educadores/as, que resulta em problemas metodológicos
relativos à qualificação da militância.

[291]
CONSIDERAÇÕES FINAIS

 
 
 
 
Depois dos mais de três anos em que venho me dedicando a este trabalho, é hora de
colocar um ponto final na tese. Não se trata de tarefa fácil: talvez terminar um
trabalho dessa natureza seja ainda mais difícil que começá-lo. O início tampouco foi
fácil. Como pontuei no Capítulo 1, para realizar a tarefa que me impus, precisei de
um planejamento flexível que me possibilitou aproveitar oportunidades não previstas
no desenho inicial, mas também me obrigou a abrir mão de uma boa parte daquilo
que havia desejado fazer. Aprendi que a vigilância e a surpresa fazem parte da
aventura etnográfica.
Destaco a contribuição desta tese para uma articulação mais clara entre a
versão de Análise de Discurso Crítica a que me filio e a perspectiva ontológica do
Realismo Crítico – embora essa relação não seja nova, nem sempre tem sido
claramente formulada. Procurei fazer isso no Capítulo 2. A tentativa de
estreitamento dessa relação interdisciplinar continuou no Capítulo 3, em que refleti
sobre a necessidade de maior atenção à epistemologia nos estudos discursivos
críticos. Pontuei que pesquisas em ADC costumam recorrer a uma ontologia
complexa que entra em descompasso com metodologias, por vezes, incapazes de
responder a essa complexidade da relação entre linguagem e sociedade. Propus que
uma possível causa desse descompasso é o salto epistemológico, a ausência de
reflexões sobre o potencial da pesquisa na geração de conhecimento e os caminhos
possíveis para tanto.
Ademais, persegui o objetivo de superar em meu trabalho o problema que
percebo em reflexões metodológicas vagas que, por um lado, não deixam claros os
procedimentos adotados e, por outro lado, não refletem sobre suas potencialidades e
limitações. No Capítulo 4, procurei não só detalhar os métodos empregados neste
estudo e sua articulação, mas também proceder a uma narrativa minuciosa do
processo da pesquisa.
Os quatro capítulos analíticos que compõem a Parte II da tese permitiram-me
reflexões acerca da crise do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua no
Distrito Federal e suas conseqüências para o protagonismo juvenil. Busquei mobilizar
os pressupostos discutidos nos capítulos anteriores para obter uma compreensão de
algumas das causas discursivas dessa crise e de seus efeitos para a instituição, como já
pontuei também Discussão.
Volto agora à epígrafe que utilizei no início da tese, uma citação de Bakhtin,
para justificar o potencial que, tenho esperança, minha pesquisa possa ter em termos
da reflexão que pode impulsionar no âmbito do próprio Movimento. Lembro que,
para tanto, foi imprescindível investir também em estratégias para o
compartilhamento dos resultados e a negociação dialógica das interpretações.
Vejamos o que nos diz Bakhtin (não farei referência ao uso genérico de ‘homem’ na
citação, mas chamo atenção para sua inadequação):

Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente,


nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por
nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse
outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que
ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver
(Bakhtin, 1997 [1979]: 43).

As análises que fiz, e que compõem os capítulos da Parte II, foram capazes de
enxergar ficções, representações e contradições que parecem opacas aos membros do
Movimento. Com o compartilhamento dos resultados e a negociação de minhas
interpretações, procurei fazer com que essas reflexões extrapolassem o âmbito
[294]
estritamente acadêmico da pesquisa e gerassem reflexões também no âmbito do
Movimento. Por outro lado, essa experiência etnográfica também possibilitou
reflexões de minha própria prática como pesquisadora: aprendi no Movimento a
relevância da pesquisa participativa e alguns modos para sua condução, muito mais do
que poderia aprender de qualquer livro ou manual. Aí reside a maior vantagem de
pesquisas dessa natureza: na construção conjunta, dividem-se experiências, somam-se
conhecimentos e multiplicam-se objetivos.
Quando olho para trás deparo com as memórias desses anos em que me
dediquei a este trabalho. Surpreendo-me ao constatar que minhas reflexões,
memórias e análises preencheram essas 295 páginas! Contraditoriamente, não me
surpreende perceber quão incompletas são essas mesmas análises e reflexões, e
quanto mais há para ser dito e feito. Olho para frente e não me restam dúvidas de
que tenho ainda muito trabalho. Não, não se trata de um ponto final: deixemos aqui
apenas uma vírgula.

[295]
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[303]
ANEXOS
 ANEXO A – RECORTES DAS ENTREVISTAS COM AS EDUCADORAS 

Recorte da entrevista com Júlia

SEDE DA COMISSÃO LOCAL DO MNMMR NO DF


FEVEREIRO DE 2007

Eu queria só conversar mesmo sobre o Movimento com você, que você me dissesse coisas sobre
história do Movimento, sobre como é que começou e o que aconteceu depois.
É, o Movimento começou em ‘85 com uma conjuntura de... O Movimento não nasceu de uma pessoa.
Nasceu de vários educadores que já trabalhavam em ONGs, no próprio Estado, mas que achavam que
deveria ter uma nova forma de tratar meninos e meninas. E, dentro dessa luta, nasceu o Movimento em
‘85, com quatro linhas de atuação. Uma chamava – chama ainda – formação e organização de meninos,
que é o trabalho todo desenvolvido com a meninada, na persepctiva de lutas dos direitos, de conquista de
cidadania. Uma outra linha de ação do Movimento era a formação de educadores para pensar uma nova
pedagogia de atendimento aos meninos e tudo. E uma linha que era conquistar novos miliantes para o
Movimento. O Movimeno teve uma ação muito importante desde ‘85, a mudança do paradigma de
atendimento à criança e ao adolescente, desde o tal antigo código de menores, que veio com a luta do
ECA. O Movimento foi uma das atividades protagonistas nesa época de elaboração do ECA, de uma nova
metodologia, de igualar os filhos – criança e adolescente. Porque, até então, os filhos dos trabalhadores
eram tidos como “menores”. Criança e adolescente era, assim, da classe média. Hoje em dia, com o ECA,
veio a igualar isso para, pelo menos, na lei. E o ECA também criou novos mecanismos de defesa de
direito que pode ser utilizado e ainda não é cumprido porque o povo não sabe o valor que ele tem de luta,
de intervir e tudo. Mas, no processo histórico, é muito novo. São 16 anos. Mas a gente acredita que isso
vai acontecer. E o Movimento está organizado em quase todos os estados, exceto noTocantins e na Bahia.
E, cada um, dentro da organização, vê o que dá no estado. Cada Movimento tem uma individualidade,
uma forma de se organizar. Então, assim, a Comissão Local, por estar em Brasília, teve muito peso na –
tem até hoje porque tudo rola no Congresso Nacional. Então, às vezes, a gente não está claro com os
meninos a participação, mas a gente tem que participar mesmo. Então, às vezes, é um processo um pouco
que uma tutela, mas tem tido muitos resultados de conquista de uma nova consciência, de uma forma
nova de ver o mundo.

Você falou quatro linhas de atuação: formação de meninos e meninas, formação de educadores, a
questão da militância... Falta uma.
Ah, e a defesa dos direitos! A defesa dos direitos, que é a defesa jurídico-social. É a base do trabalho do
Movimento.

[…]

E, uma outra coisa, é que a gente é um CGC único. Isso também deu muito problema para a gente. Mas a
gente de Brasília, há uns seis anos atrás, já era a favor da descentralização, mas a
gente perdeu com a proposta na assembléia, tanto de descentralizar a questão da formação e a questão dos
próprios CGCs, porque hoje em dia o Movimento está inviabilizado por isso.
Me fala um pouco sobre essa história da crise financeira…
Na verdade, a crise financeira do Movimento veio com a mudança mesma de paradigma de criança e
adolescente. Que, até então, o Movimento, ele atuava, tinha uma base muito forte, no trabalho com os
adolescentes. Quando a gente aprova o ECA, a gente também tem de intervir em outras áreas. Então,
assim, vários militantes teve de assumir os conselhos de direito,os conselhos tutelares em primeira mão.
Então a gente ficou um pouco fragilizado no trabalho de base com essa participação. Mas no trabalho
político, de garantir os direitos, não. Mas a gente perdeu um pouco o enfoque da base com os meninos e
tudo. E a gente vem perdendo pela falta de quadros mesmo. Porque, como o centro de formação, a gente
não conseguia investir nesse trabalho da base. E, também, foi aparecendo novos espaços, com a abertura
política mesmo. Os militantes foram, cada um, procurando o seu lado também. A questão da formação
individual de cada um. Então, assim, o Movimento foi perdendo um pouco esse espaço único que ele
tinha de militância dos anos ‘80, dos anos ‘90. Então, hoje em dia, o Movimento... E também a conjuntura
internacional e globalizada e que, antes, quem tinha um trabalho podia ser voluntário num tempo. Hoje
em dia, o povo está tendo de trabalhar 24 horas para sobreviver mesmo. Então, essa questão desse
voluntariado, ele perdeu um pouco essa...

Pode falar…
[risos]... essa oportunidade que a gente tinha de antes dos anos ‘80 da abertura. Mas é, a gente acredita que
nós vamos retomar as nossas bases uma hora. E a questão financeira do Movimento mesmo ficou inviável
na última gestão – na última não, na penúltima. A gente já tinha problemas financeiros exatamente por
não ter quadro, porque quem assumiu da militância não tinha esse preparo de lidar com uma questão
nacional. Uma coisa, eu não sei, é lidar com uma comissão no seu estado, uma comissão estadual. E, você
assumir, de repente, um espaço nacional, você não dá conta de lidar com ele. E a coordenação nacional
também não é liberada para isso. São voluntários. Então, como é que você coordena um movimento
desses lá do Amazonas? É difícil e a estrutura que a gente criou do Movimento ficou uma estrutura muito
cara, inviável! Como é que você reúne um conselho de 27 pessoas, 27 meninos, de três em três meses?
Não tinha dinheiro que agüentasse isso. Aí, isso foi enfraquecendo a gente e... A falta de encontrar, de
pensar. A gente, quando abriu mesmo com os conselhos e tudo, acho que a gente perdeu um pouco disso.
Também apareceram outras entidades que estava na defesa de direitos e tudo. Então, acho que foi isso.

Aí teve a história do CGC...


A história do CGC foi o seguinte: uma comissão, no Mato Grosso do Sul, no governo do PT – como era
todo mundo militante, essa história, todo mundo acha que... Aí, a comissão lá executou um projeto em
parceria com o Estado, que era de capacitação dos adolescentes, parecido com o [Programa] Primeiro
Emprego. E foi uma má gestão isso. Até por inexperiência e tudo. Houve um uso do Movimento indevido.
O Movimento estava a serviço do partido, de algumas pessoas. Então, e aí, foi denunciado no Ministério
Público. Tinha um grande interesse de queimar aquilo lá tudo, a briga dos partidos. Aí o Movimento foi
denunciado. Desde então, a gente tem problema para aprovar projetos porque o CGC é único. Então lá
deu cheque sem fundo, depois não conseguiu pagar. Aí todo o Movimento ficou sem ter condição de [???]
nessas comissões. E, mesmo assim, a gente demorou muito a descentralizar. Só nessa última assembléia
que foi aprovado para a gente descentralizar o Movimento. Mas a gente já está com um prejuízo terrível.

A comissão local?
Não, no Brasil todo! Se fosse uma comissão local, Viviane, era o paraíso!

E aqui, como é que vocês estão fazendo para...


Mas não é assim. A comissão local... Assim, de recurso internacional, não tem problemas essa questão. Só
de moral, porque é pensar em jornal e que você.. desviou dinheiro! Uma pessoa põe todo o mundo igual.
Então, a gente tem, na Comissão Local, a gente assumiu bem isso porque foi a Mônica que assumiu, a
militante da Comissão Local, quando já pegou, pegou o Movimento, já estava com esse probema lá no
Mato Grosso do Sul. E a gente foi tentando resgatar o Movimento. Infelizmente, a Mônica saiu também.
Quando a Mônica saiu, o Movimento tinha dado, assim, uma levantada. Mas a gente também teve
problema lá com o Mato Grosso que caiu aqui.

A Mônica tinha assumido a...


A Mônica assumiu o [Movimento] Nacional e a gente pautou de novo os espaços nacionais, que a gente
tinha perdido um pouco da credibilidade, tanto com as agências internacionais, quanto com as nacionais.
Mas nós fomos infelizes porque, embora tivesse esse problema lá do Mato Grosso todo, a gente estava
numa fase ainda de não ter, de não estar no Ministério Público, porque estava numa fase inicial o
processo. Mas, quando a Mônica deixou o Movimento, nós entregamos ele para um militante que não
estava preparado nacionalmente. Aí ele também não conseguiu fazer uma gestão boa. E o governo Lula
[308]
também quando entrou, na disputa interna do governo Lula, a gente tinha aprovado na comissão de
participação um projeto que, quando a gente propôs o projeto na comissão, era um projeto para todo o
mundo de defesa de direito. Só que esse dinheiro saiu rubricado no nome do Movimento no orçamento.
Aí o Movimento teve de gerir esse dinheiro, foi de quase um milhão de reais.

Isso foi quando?


Na gestão da Mônica. Depois eu posso pegar as datas direitinho para você.

E aí fizeram o quê com esse dinheiro?


Ah, aí ressurgiu o Movimento no Brasil todo! Na defesa de direito, na organização de meninos. Quando a
Mônica deixa o Movimento, tinha um aditivo para chegar desse recurso. Só que, na disputa interna, aí o
governo era do Fernando Henrique, que a gente conseguiu esse dinheiro. Mas não foi um dinheiro do
Fernando Henrique, foi um dinheiro aprovado no orçamento público, na comissão de participação [da
Câmara]. Aí... Isso! Na disputa interna, e depois que o Fernando Henrique perdeu, que o governo Lula
assumiu, tinha uma pessoa que cuidava do departamento de criança e adolescente, que era a Marli Correia.
E teve um jogo político lá no meio deles. Aí eles começaram a fazer um jogo de uma investigação de dizer
que tinha gerido recurso, não-sei-o-quê. Aí, o quê? Caíram em cima do Movimento. Aí, toda a prestação
de contas, eles não aprovaram. Fizeram uma auditoria bem legal dentro do Movimento. E como esse
coordenador que não sabia atender a auditoria, nem respondia em tempo hábil e tudo. E a gente só ficou
sabendo disso depois que tinha perdido. A gente já estava denunciado mesmo no TCU. Aí foi o que
inviabilizou. Já tinha a história do Mato Grosso, mais essa. A gente ficou assim, bem inviabilizado,
tentando ainda...

Recorte da entrevista com Vera

SEDE DA COMISSÃO LOCAL DO MNMMR NO DF


FEVEREIRO DE 2007

Então, você estava falando que estava desistindo, que não podia... Me conta isso.
É, menina, na verdade é que... questões pessoais e também a gente passou dificuldades esses últimos dois
anos... De projetos, de problemas institucionais, mas ao nível nacional, que reflete nas condições locais. E
a gente ficou com um número muito reduzido – quer dizer, reduzidíssimo – de educador, com um tanto
de coisa para fazer porque a gente tem o... um dos projetos que o Movimento, nos últimos anos, teve, de
grande porte, foi esse projeto com os catadores. Que, assim, a demanda dos catadores é muito grande e a
gente tem um resultado muito grande, mas são dez anos de trabalho.

[…]

E antes desse trabalho todo com os catadores, como é que eram os núcleos de base?
Aí, essa mesma entidade, ela financiava o projeto de organização de meninos e meninas. E aí, esse projeto,
ele funcionava. Por quê? Porque o Movimento, a nível nacional, ele tem uma... Ele é dividido em duas
frentes, que é os adultos, pensando criança e adolescente, a área da criança, e promovendo a discussão e
política pública; e os adolescentes. E o Movimento tinha – tem, né – um espaço de jovens organizados
nos seus núcleos. Então, a gente tinha a “Agenda Nacional”, os encontros de dois em dois anos e as
discussões. Os núcleos funcionavam dentro dessa dinâmica do Movimento, a nível nacional. Quando o
Movimento começou a ter outros problemas, não políticos, mas financeiros, que algumas comissões locais
tiveram alguns projetos em parceria... com o Estado e teve problemas, como é um só CGC, a gente
começou a ficar fragilizados, a nível nacional, na organização de meninos. Entã,o as comissões locais, elas
começaram a fazer os seus projetos para sobreviver. E aí o macro, que é a organização dos núcleos para
participar das instâncias dentro de um movimento nacional, chamado Luta Nacional, ela veio
enfraquecendo, desde da década de ‘90, no final da década de ‘90.

[309]
Antes disso, como é que eram os núcleos?
Então, nos núcleos, cada núcleo – também essa é a mesma metodologia – ele decidia o quê que ele queria
fazer. Então, tinha núcleo que tinha teatro em Pequizeiro, tinha hip-hop, tinha futebol. Então, dentro
dessas atividades lúdico-pedagógicas, o educador combinava. Tinha núcleo que só ia nos domingos, três
horas nos domingos. Tinha núcleo que, podia ter espaço para três dias. Então, todo esse trabalho, era feito
com os meninos. “O quê que vocês querem fazer de atividade lúdica?”. Da atividade mais pedagógica, que
é o trabalho que o Movimento desenvolve mais de protagonismo dentro da luta, dos meninos se sentirem
cidadãos, de participar tanto no espaço político do Movimento, como fora, para participar dos seminários,
dos encontros e se articular, isso era decidido com os meninos também. E a gente tinha uma
coordenação, na época era a Júlia. Nós éramos quatro educadores e os educadores se dividiam entre os
núcleos e a gente tinha coordenação, tinha a... – como é que fala? – o projeto, a organização para o... o quê
que era para fazer, a planilha do quê que é para fazer, como é que era para a gente movimentar nas
cidades. Porque a idéia era do seu núcleo estar discutindo direito e cidadania mas, na sua cidade, ele estar
discutindo com outros jovens, ampliando o trabalho, fazendo com que aquele núcleo, núcleo de direitos,
núcleo de cidadãos, de protagonistas, ele crescesse na sua cidade. Isso só foi possível quando o
Movimento tinha projeto para isso também.

Aí, depois, quando não mais as...


Quando o Catholique deixou de financiar o projeto, a organização de meninos, que é um projeto caro – ele
demora a dar resultado, porque não é um resultado a pequeno prazo. Ele é um resultado a longo prazo,
ele é um processo de participação que os meninos têm voz, de protagonismo, participação mais política,
de mobilização. Então, é um projeto caro, que dá poucos frutos e que a gente agora que está recebendo
não-sei-o-quê, os meninos assimilam mais na juventude. Porque o trabalho que o Movimento tem, ele tem
o lúdico-pedagógico, mas, de verdade, é fazer com que os meninos se movimentem na cidade, em Brasília,
no país para mobilizar a questão dos direitos e formar políticas, não deixar passar tantos projetos que
inviabilizam os direitos e principalmente na lei do Estatuto da Criança e do Adolescente. Um exemplo que
eu vou dar disso é o próprio rebaixamento da idade penal, que é, assim, uma discussão que quem teria que
estar discutindo isso com propriedade para a gente transformar isso, teria que ser os jovens porque é eles é
que sofrem, são vítimas dessa lei – dessa lei não, dessa pressão que tem pelo rebaixamento. Então, a gente
sabe que isso também é um processo lento, você se sentir parte. Até porque, no Brasil, você não tem esse
espaço político, é um espaço que você tem que cavar, principalmente para jovens, dar voz para jovens na
escola, na comunidade. Ser protagônico não é uma coisa fácil. A gente sabe que esse processo, ele foi bem
complicado. E os meninos sentiram muita diferença, quando acabou esse recurso. E não é só questão de
recurso porque o Movimento também já funcionou sem recurso, com um núcleo e fez a diferença. Mas,
junto com a falta de recurso da Comissão Local, você vê um cenário nacional de linhas, de problemas,
que não articulava as comissões locais, o trabalho comunitário. Então você já não tinha os encontros
estaduais, onde os meninos discutiam: “De que forma a gente vai fazer isso?”, “De que forma a gente vai
mobilizar na nossa comunidade?”. “Lá em Brasília é assim, lá no Sudeste é assim, no Norte é assim”. E
isso fragilizou uma luta, era uma luta nacional, não é uma luta local daquele adolescente. Então, essa
fragilização do Movimento Nacional dos Meninos de Rua também eu acho que contou um pouco com a
Igreja, porque são essas instituições que trabalham com jovens começaram também a trabalhar com
outros públicos. Então, isso dificultou muito a luta. Como agora, um exemplo, você tem o MST em alta,
todo mundo está... né? Chegou um certo momento que essa luta, ela muda de foco e ela vai para a
população de rua, ela vai para os catadores. Então você percebe que o mundo, ele se movimenta hoje, por
exemplo, pela questão da luta sobre o aquecimento global, o meio ambiente. Então, você também sente
isso. Então, os financiamentos diminuem a nível nacional também. E isso reflete nas ações de base, lá na
periferia. “Ah, mas você não trabalha com os meninos da rua, não trabalha com a população das ruas”. Só
que os meninos lá estão sem escola, os meninos estão sem trabalho, os meninos estão com uma qualidade
de escola ruim, não têm esporte, não têm cultura, não têm nada. E aí você está pensando no aquecimento
global, mas aí os meninos estão morrendo entre eles, o armamento está lá, as drogas estão lá. Então, isso
já é mais particular meu. Eu acredito que a luta da criança e do adolescente a nível nacional, ela perdeu
força no final da década de ‘90 para 2000, mas que isso está sendo retomado também. Dá para perceber a
nível nacional essas coisas. E o Movimento teve um auge mesmo. Na década de 80, juntou o estatuto, na

[310]
luta do estatuto, do próprio Movimento Nacional dos Meninos de Rua que veio, que mobilizou, que
trouxe a meninada para o Congresso. Então, era um momento ao menos de muita euforia. E você
cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente, você fazer com que os meninos percebam o Estatuto. É
uma lei brasileira moderna só que, quando você põe em prática na luta, é muito difícil você fazer essa
conquista, principalmente em se falando de protagonismo juvenil. Porque as pessoas não ouvem os
jovens. Os professores não ouvem. Não têm espaço político, é um espaço que é cavado. Então, você
também sente que aqueles meninos, eles começam a perceber isso, mas eles se sentem impotentes porque,
para eles se articularem, eles se articularem nas cidades deles, é uma dificuldade tremenda. Então,
realmente é um espaço muito novo. A participação dos jovens no protagonismo, ela é muito nova, ela está
engatinhando. A gente tem o Estatuto aí que é adolescente e o protagonismo é bebê, é criança, porque ele
não veio junto. Era para ser, mas ele não veio. Então, eu acho que, como esse resultado é demorado, as
agências financiadoras também... A gente, por exemplo, não ocupa terra. A gente não tem essa
mobilização maior, até porque é diferente a luta dos meninos, é mais no nível de congresso, de buscar as
políticas públicas, de propor. E isso realmente, eles sozinhos não dão conta, tem que ter as instituições, no
caso o Movimento. Se não tem dinheiro, você inviabiliza porque você tem que ter ônibus, você tem que
ter o espaço, você tem que ter educador, você tem que ter um lanche, que é o mínimo. Pagar lanche não é
nas atividades, mas é para garantir que os meninos possam ficar. Você vai ficar discutindo que você é
excluído na sua comunidade, você já é; que você tem que lutar e ainda você brigar por uma lei dessas,
porque você pega o Estatuto, todo mundo joga praga nele por falta de conhecimento – porque o estatuto
é a questão da falta de conhecimento, não é uma lei que popularizou. Até porque historicamente criança e
adolescente sempre foram os sujeitos de depois. A história de criança e adolescente no mundo é de
exclusão social mesmo, é de não ouvir, os adultos que sabem tudo. Então, a gente tem historicamente isso
também que conta. (…)

Mas os núcleos funcionaram por um tempo com as próprias meninas.


É, aí, o quê que aconteceu [???]. Como a gente não tinha esse [???], tem o educador. Porque o educador
do núcleo, ele está lá, ele pensava só no núcleo, nas atividades do núcleo. Ele tinha um direcionamento,
ele sabia por que que era, a gente participava do Movimento a nível nacional, a gente tinha os encontros
entre as cidades, então a gente tinha sempre cidade que tinha núcleo. Então, nós tínhamos o encontro
para, do encontro, tirar o quê que é que esses meninos em Brasília iam fazer para ter visibilidade no
trabalho deles, na luta deles. Porque não adianta, você estar lá, discutindo, discutindo... pequeno, teria que
ser mais. Então, para não perder isso – os meninos já tinham passado por um processo de quase cinco
anos, a gente começou a com a Amanda, ela devia ter doze, treze anos, dez anos, até meninos de
dezesseis, dezessete, meninos que estã há dez anos com a gente. Para não perder esse trabalho de núcleo,
o quê que o Movimento fez, pensou-se... Porque os meninos, os jovens começaram também a cobrar do
Movimento “Ah, agora vocês só estão catador, vocês não dão apoio. E o Movimento, como é que está,
não sei o quê”. Aí a gente: “Tá, vocês tocam isso?”. “Tocamos”. “Então tá”. Então, os jovens tiveram
uma bolsa para continuar organizando esses meninos. Mas, o quê que acontece: o Movimento, frente a
esse problema de coordenação a nível nacional e de grana, não conseguiu coordenar esses núcleos. De
você poder mesmo.... coordenar e trazer os meninos para a metodologia. Por quê? Além da gente estar
envolvido nas cooperativas, você não tinha financiamento, nem grana, nem gente para coordenar isso.
Então a Júlia fazia um pouco para não morrer esse trabalho com os meninos. Com muita dificuldade
porque os meninos só tinham a bolsa, um pouquinho de lanche e a boa vontade. Porque nem gente para
ajudar eles a se articularem, educador, a gente não podia mesmo. Não podia mesmo. Porque estava todo
mundo envolvido nesse grande projeto, até porque a gente tinha que dar o resultado e era um projeto
escrito, tinha resultado.

[…]

Como é que você entrou no Movimento?


Eu... Tá... O Movimento – é porque é uma história, desencadeia uma história.
(…)

[311]
Mas, ao mesmo tempo, com essa fragilidade do Movimento, a gente ficou trabalhando com pouco recurso
e dando sangue porque é mais militância do que emprego. Não é um trabalho. Tanto é que alguns
educadores vieram e foram embora: “Eu não agüento!”. Porque, nessa conjuntura que eu te falei, tem uma
época que... Você tem agora que a questão do meio ambiente está em alta. Então, se volta os
financiamentos estrangeiros mais para isso. Não é que acabou, mas você percebe. Aí o Movimento não
podia parar porque a gente trabalha com pessoas. Não pode dizer: “Não, não tenho dinheiro, a gente
pára”. Por isso que os núcleos nunca se parou. Não foi porque o Movimento é sacana com os meninos, é
porque você trabalha com [???], não fica pedindo. E você sabe da responsabilidade que você tem. Eu
também sei que o Movimento não deu esse suporte para as meninas. Elas não tinham... Eu que sou
educadora, que vim desse processo...
(…)
A gente não deu conta de ter uma pessoa, um secretário executivo que mostrasse esse trabalho, e que a
gente conseguissa mais financiamento, que o Movimento entrasse nisso. Porque a gente é o pessoal de
base. Sabe pedreiro? Peão de obra? Aí dinheiro está lá e tal, mas a gente é que faz. E a gente não dá conta
de promover esse trabalho. Também a gente não pensa em promoção do trabalho. Mas é necessário,
senão o Movimento quase morreu. Ele quase morreu com esse trabalho. Porque você tem que promover
ação para você receber o financiamento, para você continuar. E a gente não tem... Por exemplo, hoje veio
uma mulher fazer uma reportagem na cooperativa. Eu não quero! A Júlia não quer! A Manuela não quer!

[312]
ANEXO B – RECORTES DOS GRUPOS FOCAIS 

Recorte do Grupo Focal 1

SEDE DA COMISSÃO LOCAL DO MNMMR NO DF


AGOSTO DE 2006

Viviane: todo mundo tá de acordo? E como ele age pra atingir esse objetivo?
Maria: através de espaços públicos, através de...
Rafael: espaços governamentais...
Maria: audiência pública, através de seminários, fóruns, encontros, enfim, assembléias...
Rafael: passeios e etc.
Amanda: através da integração, né?
Rafael: tudo o que o ECA tem de acordo com o que a criança e o adolescente tem direito, o
Movimento...
Maria: e o bom do Movimento é que ele possibilita, através do trabalho que ele tem, que entra a questão
do protagonismo juvenil, é de através desses espaços do Movimento, é que ele desperta, ele faz que a
gente seja agentes da nossa própria promoção, né? Por exemplo, pode ser que nas primeiras vezes a gente
vai porque o Movimento convidou...
Amanda: tem lanche, aquele monte de menininho buchudo...
Maria: então a gente vai através do lanche...
Rafael: aí tem aquele problema, tem uns que presta atenção, outros...
Maria: aí o que que acontece? No começo pode ser que você vá através do lanche, você tá ganhando a
passagem, ah, não vou pagar nada mesmo, não vou gastar nada, então, né? Mas com o processo, né, que o
Movimento desenvolve, aí você vai se interessando, da próxima vez você vai não por causa do lanche, mas
sim pela causa mesmo.
Amanda: é impressionante, aonde que eu iria imaginar que eu seria representante da minha cidade, que eu
ia ter uma autonomia tão grande sobre os meninos que eu tenho hoje. Porque os meninos chegam em
mim, vão lá... um dia desses eu cheguei pra Júlia aqui, a penúltima vez que eu vim aqui, antepenúltima, eu
sentei aqui nessa mesma mesa e chorei tanto porque eu tava... eu falei pra Júlia “Júlia, eu vou pro HPAP”
porque um tanto de situação assim inacreditável que você vê... você vê as pessoas passar fome, e você tá
na situação não daquele jeito, mas quase, na beiradinha, e as pessoas virem desabafar com você e você se
sobrecarregando, se sobrecarregando, e aquilo ficando... aí junta os seus problemas com os problemas dos
outros... sabe? E eles... eu acho assim, minha mente, eu vejo esse mundo como um corpo, esse corpo todo
tá doente, com a falta de respeito, com a ignorância...
Rafael: o que ela tá dizendo é que ela já tá com problema, aí vem pra cá e acaba se envolvendo em outros
problemas que ela não consegue...
Amanda: não, a gente não [???] um monte de coisa, muita desigualdade, cara, é... aí você vê...
Maria: é muito dolorido. É muito dolorido por exemplo você chegar, você passa pelo problema, mas
você acaba sendo referência dentro da sua comunidade e você não pode desabar com aquele
problema porque você é o pilar daquelas pessoas. É para você que aquelas pessoas vêm, e fala pra você o
que tá passando...
Amanda: e vamos fazer? Vamos fazer isso? Vamos chegar e vamos fazer aquilo?
Maria: e você sabe que na verdade não é aquilo, não é desse jeito...
Amanda: e você tem uma moeda no bolso pra correr atrás...
Maria: é uma utopia, né velho? Às vezes eu vou embora pensando “caramba, gente, que que eu tô
fazendo? Eu sei que eu não vou conseguir, eu sei que isso tudo é”... Eu cheguei a pensar que é uma
mentira o que eu faço. Sabe, “pô, é tudo uma mentira, eu sei que não vai, e esse povo não vai parar de ser
corrupto e que esse sistema não vai parar porque esse Brasil foi feito pra isso, né, um país de exploração
mesmo. Então, pô, que que eu tô fazendo? Eu vou é desistir de tudo, eu vou é acabar com essa ideologia
que eu tenho, vou abrir mão e quero entrar no sistema também, quero ganhar dinheiro”. Sabe... você que
tá lá na pobréia, que vê sua família passando fome, sua mãe doente... só que aí, sabe, você é consciente, aí
você, pô, você não vai jogar toda uma vida construída fora, né? Não, mas é sério, gente! Você abre a
geladeira da minha casa hoje não é diferente de todas as casas, não. Na geladeira da minha casa hoje não
tem nada!
Amanda: fica triste não...
Maria: sabe, não é diferente da minha vida, da do Rafael. A tia Jú falou do Rafael ontem [a casa do Rafael
está há quatro meses sem água], e eu: “pô, não fala não, tia Jú, que dá vontade de chorar!”. Sabe? Não pelo
fato de ser o Rafael, mas pelo fato de saber que é muita gente assim...
Amanda: é regra! A realidade dele é a de outras famílias...
Maria: é muita gente assim. Aí você... igual antes de ontem eu tava naquele Lake Side [um hotel, em um
encontro sobre o tráfico de seres humanos, onde a Maria foi pra tentar fazer uma articulação política para
conseguir recurso para ir ao Fórum Social Brasileiro, no fim do mês em Recife]. Cara, eu sentada na mesa
e eu fiquei assim olhando pr’as pessoas que tavam lá e pensando “pô, eu sou a única pobre dessa mesa! Eu
sou a única que na minha casa você vai lá, e não tem nada pra comer”. Eu pensei mesmo, sabe. E foi me
dando uma indignação!
Rafael: dá uma revolta, né?
Maria: E gente, tratando de inclusão social, sabe, tratando do problema de tráfico de seres humanos por
causa da desigualdade social e sendo que eles ganham 16 mil, acho que o mais pouco que ganhava ali era
10 mil por mês. Pô, que sistema é esse? Sabe? E eu sem ganhar nada, velho!
Rafael: é um sistema muito bruto!
Maria: dependendo, à mercê de todo mundo, dependendo de carona, dependendo de comida, sabe? Pô!
Amanda: é um corpo doente e o remédio somos nós...
Maria: será que o remédio somos nós? Eu acho, eu não penso assim...
Amanda: eu também, eu não pensava assim não... tem que pensar assim pra ver se engata, né?
Viviane: qual é o remédio, Maria, pra você?
Maria: vixi, eu não encontrei ainda não, sabia? No dia que eu encontrar, eu vou tentar curar porque...
Rafael: o remédio pra todos nós é a mudança, né?
Amanda: o remédio é você, Maria! O remédio é você que vai mudar...
Rafael: que a mudança ela não vem...
Amanda: o remédio é você que vai mudar, é eu, as minhas filhas, as suas filhas...
Maria: eu não acho não... sem mentira nenhuma, eu tô...
Rafael: se aqui tá, por exemplo, aqui tá havendo uma reunião...
Maria: como diz a tia Jú: “você tá muito nova pra pensar assim, eu que já tenho tantos anos de luta eu
não tô pensando assim”...
Amanda: Maria, depois do dia que eu sentei bem nessa cadeira aí e conversei com a Júlia e chorei, eu falei:
“cara, eu vou cair fora disso não, vou bater pinel!”
[314]
Rafael: o problema circula, circula você e você não imagina! Nós tamos tendo uma conversa aqui, uma
conversa sincera, um diálogo muito bom, aí cada um vai embora, aí chega na sua cidade é um problema
que você preferia tá aqui e não ter voltado pra lá... porque se você soubesse o problema que ia rolar,
você...
Maria: porque é um refúgio... é um refúgio também... o Movimento é um refúgio. Tem dia que eu não
tenho vontade de voltar pra casa. Mas não porque eu não goste da minha família, mas pra poder não
enfrentar a minha realidade. É muito difícil...

Recorte do Grupo Focal 2

SEDE DA COMISSÃO LOCAL DO MNMMR NO DF


AGOSTO DE 2006

Viviane: Então o próximo eixo temático é o protagonismo juvenil. Então eu começo do mesmo jeito que
eu comecei hoje, perguntando o que é o Movimento, para esse, eu começo, perguntando o que é o
protagonismo juvenil.
Fernanda: Vai Gabriel, fala aí, também. É para ter a sua opinião própria, não é? Sobre protagonismo
juvenil. Era para ter a sua opinião própria, não era o que a gente tinha no Movimento?
Amanda: Também é ter uma opinião própria, é participar das mudanças. Mudança constante para ser
protagonista.
Viviane: Nada a dizer sobre protagonismo juvenil? Gabriel?
Gabriel: Eu posso dizer o quê sobre protagonismo juvenil, que eu estava participando também?
Viviane: Não sei. E aí? Você tem alguma coisa a dizer sobre protagonismo juvenil?
Gabriel: Não sei. Depende em relação ao quê.
Viviane: O que é o protagonismo juvenil.
Gabriel: O protagonismo juvenil? No meu ponto de vista, lá foi uma coisa tipo, assim... de integração, né?
O jovem protagonista, ele é um jovem que interage. Se ele é protagonista, no caso, ele consegue participar
de determinadas situações. Não é isso mais ou menos? (…)
Viviane: No sábado [anterior, por ocasião do Grupo Focal 1], quando a gente falou sobre isso, de
protagonismo juvenil, acho que foi você, Amanda, que disse que ser protagonista era ter um desejo de
mudança, ter uma opinião sobre as coisas que acontecem e ter um desejo de mudança. É isso mesmo?
Você acha que ter um desejo de mudança é suficiente para ser um protagonista?
Amanda: Não, você tem que ter a sua opinião. Por exemplo...
Maria: Não só o desejo de mudança.
Amanda: Mas assim, olha, exemplo, eu dou uma opinião aqui, “Você tem que concordar com isso”.
Porque mesmo ela não concordando, ela vai concordar? Não. Ela tem a opinião dela, ela tem que falar a
opinião dela, você entendeu?
Maria: Eu acho que ser protagonista, eu acho que é você ter vontade, sede de mudança. Você ter a sua
opinião própria, muitos jovens têm. Mas não é protagonista. Porque aí eles acabam deixando aquela
opinião própria. A sede de mudança é por conta de uma outra pessoa que está superior a ele e não faça
que ele desista daquilo tudo, naquele momento. Ser protagonista é você ter que ter voz, você ter voto,
você poder ir, opinar e aquilo acontecer. E se você tiver errado, você ter que entrar no consenso; se você
tiver certo, você ir até o fim. E você achar os espaços. Porque ser protagonista, assim, todo mundo é
protagonista da sua vida. Só que você ser protagonista dentro de um ONG, ser protagonista dentro de um

[315]
espaço político, aí que é a questão aonde o bicho pega, principalmente em espaços políticos, que você vai
ser protagonista. Isso é muito complicado.
Viviane: É, porque eu estava pensando quando eu estava transcrevendo a fita [do Grupo Focal 1]. Porque
desejar mudança, todo o mundo deseja. Mas não é isso que faz você ser protagonista. O protagonista é a
pessoa que…
Maria: Faz acontecer.
Amanda: Faz a diferença também, né? Ele é referência.
Fernanda: Tem muitas pessoas que interferem no acontecimento.
Maria: Mas é como eu falei. Para você achar esse espaço de protagonista é muito difícil. Porque você é
visto como... Você é tachado como o encrenqueiro, você é tachado como: “Ai, vem ali a menina
briguenta” [ri]. E é aquela questão daquela cultura do contexto que a gente vive de que os adultos não dão
muito crédito para a gente que é jovem. Se você não tem uma formação profissional, se você não tem uma
formação acadêmica, minha filha, aí então que você não é vista como nada. Jovens protagonistas só são
chamados para fazer volume, para executar projetos.
Viviane: Outra coisa que você disse, Maria, que eu fiquei pensando quando eu transcrevi é que você disse
que: “Todo adulto é protagonista porque tem que trabalhar para ganhar o seu dinheiro e tal”. Eu fiquei
pensando: “Será que é isso mesmo? Será que todo adulto é protagonista?”.
Maria: Não todo adulto, mas todo mundo, no geral, é protagonista da sua própria vida. O quê que é um
protagonista? Não é você ser o diferencial? Não é você tomar decisões? (…) Aí, você ser protagonista
dessas ações de ONGs, de mudanças mesmo social é que… aí é que eu digo é que é o difícil.
Viviane: Aquilo que você disse sobre os meninos de rua, que os meninos de rua, querendo ou não, são
protagnistas…
Maria: São protagonistas.
Viviane: porque eles decidem que horas levantam, que horas vão dormir, que horas vão comer e o que
vão fazer. Eu não concordo.
Maria: E, ao mesmo tempo, eles não são também. Mas eu disse... Quando eu falei que eles são
protagonistas num sentido, Viviane, não foi no sentido de... igual a gente pensa na questão do
protagonismo juvenil dentro de um ONG. Não foi essa a questão.
Viviane: Quer dizer que você estava pensando na palavra em dois sentidos separados.
Maria: Com certeza. Quando eu falei que eles são protagonistas e eles não sabem que são, foi por esse
fato deles fazerem e tal, mas aí cabe a eles ajustar o protagonismo deles, eles usarem o protagonismo deles.
Viviane: Seria mais um livre-arbítrio, esse primeiro conceito de protagonismo?
Maria: E aí, depois, você vai usar o seu protagonismo. Por exemplo, dentro da minha comunidade, eu
sou protagonista para poder agir dentro dela. Aí mobilizar para algum utilidade ou para alguma coisa. Se a
passagem está cara, então eu não sei ser protagonista. Eu posso ser essa pessoa de chamar, de organizar e
de articular, não posso? Agora, da minha vida, eu também sou protagonista: eu levanto a hora que eu
quero, eu vou comer se eu quiser, eu saio na noite se eu quero, ou não. Eu também sou protagonista da
minha vida.
Viviane: Então, isso é mais livre-arbítrio?
Maria: É... Não! Tem dois caminhos.
Viviane: É o uso do seu livre-arbítrio para se tornar protagonista, seria isso?
Maria: Também. É tão complicada essa palavra!

[316]
Amanda: Eu acho que o jovem protagonista é aquele que dá opinião para si própio. E também ajuda a
quem está ao seu redor a darem opiniões também. Acho que é isso também. Porque o protagonista, ele só
não... Não é só pelo lado dele. Eu acho que ele também ajuda as outras pessoas, entendeu?
Maria: A própria palavra fala “protagonista”, o quê que... Por exemplo, quando alguém começa uma
novela, quem é o protagonista da novela? Não é a pessoa que sempre [se] destaca?
Viviane: Hum-hum. O personagem principal.
Maria: Então, o protagonista é isso. Ele vai ser o personagem principal de uma ação dentro da
comunidade, ele vai ser a pessoa que vai articular, vai mobilizar, vai chamar. Você entendeu?
Protagonismo é isso.
Fernanda: O que você quer dizer é que, então, na guerra dos Estados Unidos com o Iraque, o
protagonista é o Bush?
Maria: É o Bush.
[…]
Maria: Aí, então, ser protagonista, eu creio que é isso, é você ser a referência. Por quê que a gente faz aqui
no Movimento o Fala Juventude, que era formado por protagonistas? Por que o Chic.com? A Caravana [da
Cidadania]? Porque a intenção desse projeto era você vir, se formar, ter o conhecimento e depois você
levar para a comunidade. Mas você ia ser o protagonista. Você vai ser o protagonista da sua comunidade.
Você vai levar o que você aprendeu dentro daquele grupo para poder expandir dentro da comunidade.
Então o protagonismo...
Viviane: Quando vocês estavam nas oficinas [nos núcleos de base], Gabriel, Fernanda, quando vocês
participavam do Movimento, essa questão do protagonismo juvenil era discutida?
Gabriel: Era.
Viviane: Vocês lembram de alguma coisa com relação a isso?
Gabriel: Não.
Viviane: Por que será que isso acontece? Porque o protagonismo juvenil é um conceito que está presente
no discurso do Movimento, muito. Muito presente! Na página na Internet, em tudo o que você lê sobre o
Movimento, está lá “protagonismo juvenil”. Por quê que as pessoas não lembram o que é isso, Maria?
Maria: O que é o protagonismo juvenil?
Viviane: É. O que será que acontece com esse conceito?
Maria: É porque se na verdade se lembrasse, eles hoje seriam protagonistas dentro da cidade [ri].
Viviane: Mas é a mesma coisa com o Rafael. Por que ele não sabe falar sobre protagonismo juvenil? É
uma questão que eu preciso entender.
Maria: Será que são protagonistas? Aí ficam dúvidas. Ou será que ele ainda não se apropriou do
protagonismo? Porque eu acho que é uma questão... Por exemplo, antigamente, logo quando eu voltei de
novo para o Movimento...
Fernanda: Você sabe falar sobre protagonismo, Maria? Você sabe o que é?
Maria: Protagonismo? Eu acabei de falar.
Viviane: O quê que vocês acham que acontece nas oficinas? Porque você faz uma oficina de
protagonismo, você estava trabalhando na organização [do núcleo de base da comunidade]…
Maria: Deixa eu te falar. Novo ensaio, no meu ponto de vista. Vou dar um exemplo meu. No começo,
para mim ser protagonista foi muito complicado. Porque, por exemplo, dentro de uma instituição, você é
protagonista, mas você tem que ter uma instituição-âncora para poder estar te auxiliando nesse
protagonismo. Porque não adianta também você ir lá e gritar: “Ai, quero e pronto!”. E aí? Sabe, em nome

[317]
de quem? Toda vez que eu ia falar de alguma coisa que a tia Jú estava perto de mim, eu tremia muito. Eu
não conseguia. Sem mentira nenhuma, era muito engraçado. Aí eu comecei a falar: “Pô, que protagonista
que eu sou? É isso?”. Então eu fiquei numa outra percepção de protagonismo. Não ter medo, poder expor
a minha idéia sem ter medo de qualquer outra opinião. Se isso era certo ou errado, eu estava expondo
porque eu ia aprendendo no cotidiano, nas discussões. E eu fui pegando essa concepção de protagonista a
partir das minhas participações em outros espaços.
[...]
Maria: Porque, na verdade, o protagonismo é um pouco você ser independente. Ser um pouco
independente das suas ações, de tudo assim. Aí quando você vai falar “protagonismo juvenil”… só que
será que você é realmente indepente? Aí tem que fazer a reflexão.

[318]
ANEXO C – RECORTES DAS ENTREVISTAS COM AS JOVENS 

Recorte da entrevista com Maria

SALA DA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS


OUTUBRO DE 2006

Você já me falou sobre a sua história, a forma como você se envolveu com o Movimento, o
Espaço Criança... Isso tudo eu já sei. Eu queria que você me falasse sobre o Movimento.
Mas o Movimento em que aspecto?

No aspecto que você quiser


O Movimento.. Pô que pergunta difícil agora! Como é o Movimento, alguma coisa assim?

O que você entendeu. Pode ser.


Há uns quatro anos eu voltei para o Movimento. Depois eu que havia me separado, isso está lá numa
outra entrevista. Há quatro anos eu entrei no Movimento. Entrei com uma expectativa meio assim de
que... Na verdade eu estava um pouco sem rumo na vida – eu acho que estou até hoje. Mas tem o
Movimento e eu não sei nem explicar porque eu não consigo viver sem estar aqui. Eu tenho que vir aqui e
estar fazendo alguma coisa, sei lá. Pô, o Movimento é muito complicado falar. Como seria essa relação de:
o Movimento? Eu acho que eu me sinto muito protegida dentro dele. Não consigo me imaginar fora dele,
por exemplo, num trabalho formal. Por mais que eu não ganhe, no momento, nada por ele. Mas, de certa
forma, eu posso contribuir para ele. Acho que é mais porque eu acredito nessa mudança. Enfim, não sei.

O Movimento antes e o Movimento agora. Você saberia estabelecer uma comparação?


Sim [enfática]. O Movimento antes era mais protetivo. Eu era a menina atendida pelo Movimento. Eu não
precisava pensar tanto. Tinha alguém por mim dentro do Movimento dizendo…. Enquanto adolescente,
né?. Eu era a menina que era chamada para a atividade, menina que era convidada para ir falar sobre o
Movimento em algum lugar. Eu era a menina que era convidada pelo Movimento para participar das
manifestações e tudo isso. E agora mudou um pouco essa relação porque eu já sou jovem, né? Quase
adulta. Quer dizer, eu sou adulta, mas sou jovem. E, assim, também um pouco confusa. É, porque jovem
no Brasil é até os 29 anos pela Unesco, mas para muitas instituições até os 24. Eu tenho 26. Então é um
pouco confuso isso, né? Mas eu atuo enquanto jovem, atuo enquanto educadora do Movimento e tal. E é
uma diferença muito grande porque quando você sai dessa relação de menina, dessa condição de jovem e
você vai para uma condição de educadora é uma responsabilidade muito grande você compreender
melhor o que é o Movimento, qual é a conjuntura dele... Enfim, você estar por dentro de tudo do
Movimento. Quando você é adolescente não, você está por dentro do Movimento, só que da parte de
participação mesmo, não de ações diretas que é você ir para a comunidade, você formar um núcleo, você
ser responsável por aquele núcleo, você ser responsável pelo que você vai esta passando para aqueles
adolescentes que estão lá também. Então, essa é a grande diferença. Essa questão da participação: de um
lado enquanto jovem e de outro enquanto adolescente.

Então vamos falar sobre a sua atuação como educadora no Movimento…


No momento eu não estou atuando tanto enquanto educadora porque o Movimento está passando por
essa conjuntura toda, essas dificuldades todas. Mas eu digo que não é muito bom ser educadora. Eu digo
que, às vezes, eu queria voltar a ser criança. É, porque é muito forte a responsabilidade, é muita cobrança.
Eu acho que o sonho de todo menino que passa pelo Movimento é de ser educador. E, de repente,
quando ele se torna educador, ele vê que não é tão legal assim. O legal é você estar lá, estar na farra, você
poder farrear. O educador vir e cobrar de você. Quem é o chato da história é o educador. Então quando
você passa a ser chato, acho que não é muito legal. Sim, porque a pessoa não foi formada para ser a chata.
Mas como é que é isso de ser chata?
Ah, ser chata é a gente estar cobrando, de colocar... Por exemplo: se você vai para o encontro, aí você tem
atividades no outro dia, você não pode dormir muito tarde, você tem de dormir muito cedo. E aí, o
educador, o papel dele, e ir lá e fazer essa cobrança, estar pageando – vamos dizer assim – o adolescente
ou a criança, estar falando para ele, estar orientando. Eu acho que a parte da orientação é que é meio chato
porque ele orienta para tudo. O adolescente não vê aquilo como orientação, e sim como cobrança. E aí ele
vai falar que o orientador é chato.

E a atuação nos núcleos, no dia-à-dia da comunidade? Como é que é isso?


Depende da forma que você estabelece a sua... como é que vamos dizer dizer... ah, o seu relacionamento
com o adolescente. Por exemplo: eu tenho um relacionamento muito legal com os meninos de Campina
porque eu era jovem – era não, eu sou jovem ainda porque não passei dos 30 – acho que, quando você
estabelece um relacionamento de que você está ali para passar o que você aprendeu e você é jovem tanto
quanto eles, acho que não fica tão ruim. Claro que você vai para a parte da cobrança, da orientação
quando é preciso. Mas geralmente eu tento mostrar para eles a questão da orientação, da cobrança de uma
forma bem lúdica. Bem assim olha: “Se liga”, bem na linguagem deles mesmo. Eu me mostro ser jovem
tanto quanto eles, eu me igualo a eles, nunca coloco a hierarquia no meio. “Eu sou educadora, vocês são
adolescentes então vocês vão me obedecer”, vamos supor. Não. A relação é a mesma. Só que eu estou ali
para orientá-los e para poder passar as informações que eu tive ao longo desse processo de menina do
Movimento. Agora eu estou passando para eles o que eu aprendi, o que é legal, enfim.

E nessa sua atuação como é que o Movimento te sustenta, te suporta, te assessora. Qual é a ajuda
que você recebe do Movimento para atuar como educadora?
Aí o Movimento... Eu acho que é mais na parte da formação do educador. Eu não peguei essa parte de
formação do educador no Movimento porque quando eu entrei [voltei pro] no Movimento, ele já estava
passando por esses problemas.

Ah já?
Já, há quatro anos atrás. Então a formação de educador não... Assim, “a formação de educador a gente vai
sentar lá, não-sei-o-quê”. Então, eu sempre tento correr atrás da minha capacitação, participando dos
seminários, participando de congressos, de conferências e lendo sobre participação popular, sobre o que é
o educador, o que é ser educador. Eu mesmo tento me capacitar porque o Movimento nessa atual
conjuntura não oferece essa capacitação. Na verdade, eu nem sei se posso dizer que eu sou educadora até
porque também educador não é uma profissão formal, então eu não sei como é que fica essa relação, se eu
posso dizer que eu sou educadora, se eu sou é militante que mobiliza os jovens na comunidade. Enfim,
está um pouco confuso para mim. Estou procurando saber o que é que eu sou. Por enquanto acho que eu
sou mais uma jovem articuladora mesmo, militante.

E o que é ser militante do Movimento?


Ah, militante do Movimento é ser… ah, você adotar a causa mesmo como princípio da sua ideologia.
Você acredita na mudança, você acredita que um outro país vai ser possível e que todas as crianças…
Você acredita no que a sociedade civil conquistou ao longo desses anos, que foi o ECA, que através do
ECA aquilo vai mudar, que a situação de vivências da criança e do adolescente no país vai mudar. E você
lutar para que o Estatuto, ele seja cumprido. Eu acho que é mais isso ser militante. E você se indignar com
alguma violação de direitos, não só porque você está ligado a algum movimento social, mas sim porque
você adotou a causa. Também eu poderia ser educadora, ser uma profissional e estar recebendo para ser
educadora e, de repente, eu ser educadora só dentro do Movimento, mas quando eu sair, eu ser conivente
com a violação de direitos e eu levar isso mais para a parte profissional. Eu acho que ser militante tem essa
diferença. Você é militante por aquela causa, aonde você estiver e você ver algum tipo de violação, alguma
coisa que te indigne, alguma coisa que você não acha legal para a criança e para o adolescente, você vai se

[320]
indignar, você vai saber defender, você conhece os direitos, você vai estar indo atrás, enfim. Acho que é
mais isso ser militante. Eu não sei muito bem dizer com palavras, só com sentimentos.

Recorte da entrevista com Joana

EM SUA CASA, EM BRASILIANA


FEVEREIRO DE 2007

Bena, eu queria que você me falasse sobre o Movimento.


O Movimento?

É
O Movimento é uma organização formada por crianças e adolescentes, por educadores voluntários, e que
eu comecei a participar junto com outros meninos aqui da minha rua, quando eu tinha 12 anos. E a gente
participava porque na nossa comunidade não tinha nenhum tipo de atividade, nenhum tipo de diversão, e
todo mundo foi participar do Movimento espontaneamente. Eles vieram aqui na rua convidar, fazer um
convite para a gente para participar do Movimento, falando de encontros, de brincadeiras. E foi isso que
motivou a gente a estar participando do Movimento. Aí eles começaram a trabalhar com a gente fazendo
oficinas, falando sobre os direitos, quais os direitos que a gente tinha dentro da nossa comunidade – os
direitos básicos: educação, saúde, saneamento, porque, até então, aquilo para nós não tinha. Aí a gente
aprendeu a se organizar em reuniões. A gente se encontrava todos os finais de semana nos domingos. E
sempre para motivar os meninos, eles falavam que ia ter um lanche, que ia vir alguém visitar a gente.
Geralmente vinha alguém importante: vinha embaixatriz, um representante do governo. E sempre a gente
fazia algum pedido a eles. Um pedido... Não de bens materiais, mas um pedido mais para defesa de
direitos mesmo: queremos escola, queremos parque na nossa cidade, queremos lazer, cultura. Pedia que a
gente pudesse estar na escola e não trabalhando – até porque tinha un meninos que estavam participando
do Movimento naquela época e trabalhavam, eram crianças que tinham que trabalhar. E os meninos que
participavam do Movimento que convidaram os outros meninos aqui da rua, eles conheceram as pessoas
do Movimento lavando carro. Eles estavam lavando carro lá no Plano e conheceram o marido da Júlia. E
aí ele comunicou o pessoal do Movimento que tinha esses meninos de Brasiliana. [Foi] aí que surgiu o
convite dos meninos e dos meninos para a comunidade.

Era a Júlia que vinha aqui nos finais de semana? Quem era?
Quem vinha aqui em Brasiliana era a Júlia, a Vera e o Ricardo.

Então eram vários educadores presentes.


Vários educadores. Aí sempre tinha os voluntários, esses que não ficavam durante muito tempo. Sempre
era mais eles, os que estavam continuamente com a gente, que estavam resolvendo os pepinos. Quando
um menino ia preso, ou era espancado, ou era agredido pela polícia – sempre era mais caso de polícia,
envolvendo caso de polícia, caso de abuso de autoridade. E aí eles vinham, defendiam a gente. Quando
tinha algum menino no trabalho infantil eles vinham, conversavam com os pais. Teve um caso também da
minha irmã. Porque quando a gente estava passando por uma crise familiar, eu estudava o dia inteiro, a
Marília estudava aqui em Brasiliana, só que ela queria ajudar a minha mãe e o meu pai. Aí ela pegou e foi
trabalhar, eu acho que ela tinha 11 anos.

Foi fazer o quê?


Foi cuidar de uma... Foi limpar a casa de uma vizinha, de uma amiga da gente. Limpar a casa em troca de
dinheiro. Aí o pessoal do Movimento descobriu. E aí foi dar conselhos para a minha mãe. Chamaram a
minha mãe para uma conversa, o meu pai. Conversou com a minha mãe sobre que não podia e que ela
tinha estar na escola, esse tipo de coisa. [ri]. O quê mais, Vivi?
[321]
E aí, nesse tempo que você falou, você era menina no Movimento.
Era menina.

Como é ser menina no Movimento?


Ah, era muito bom. Era brincar. Era participar de passeio, era representar o Movimento, representar a
cidade da gente, participar de oficinas de teatro. Era estar incluído em tudo que a gente não tinha. A gente
não tinha passeio, a gente não conhecia a Água Mineral, a gente não conhecia o teatro, a gente não
conhecia o Congresso, não conhecia os políticos que governavam a gente. A gente não conhecia nada e
depois a gente queria estar incluído em tudo, queria ser o representante de tudo. Então, a gente queria
buscar sempre uma liderança, sempre estar como representante do grupo, para estar participando de mais
coisas que tinha no Movimento. Ah, era muito bom [ri]!

E como é que foi para você passar de ser menina para ser educadora?
Aí foi quando... Eu fiquei um tempo afastada porque a minha mãe queria sempre incentivar a gente a
estudar muito. Então aí eu fui fazer magistério e fiquei três anos afastada do Movimento. Quando voltei
para o Movimento, eu estava já um pouco de fora, mas aí a Vera falou que estava tendo uma eleição de
meninos do Movimento para estar sendo oficineiro dentro do Movimento, para estar tomando parte
daquele grupo, para estar tomando conta do grupo mesmo. Porque, até então...

Então, teve uma eleição?


Teve uma eleição. Porque o objetivo do trabalho em Brasiliana não era que ficasse um educador do
Movimento sempre com os meninos de Brasiliana. Era que os meninos, com o trabalho de protagonismo
juvenil, sempre houvesse um menino representando aquele grupo. Um menino educador, protagonista,
repassando. E que nunca ficasse só uma pessoa tomando conta do grupo e nem do espaço porque o
espaço não era para ser visto como só de uma pessoa, era para ser visto como da comunidade. Ai fizeram
a eleição, que foi feita entre os meninos do grupo...

Só aqui em Brasiliana isso?


Só aqui em Brasiliana. Uma eleição entre os meninos do grupo, que escolheram três meninos líderes, três
adolescentes lídereres. (…) E até porque não existia um salário, existia uma bolsa – acho que era de 160
reais – para quem ficasse oficineiro. E não era nada, assim, salário, essas coisas, nada. Não tinha assim de
obrigações trabalhistas também. Tinha aquele período de aprendizagem. E aí, se a gente desse certo para
ficar como educadora, depois... Ia ser um processo para educadora em Brasiliana. Aí depois teve uns
problemas financeiros porque aí surgiu o problema de não ter mais uma educadora em Brasiliana, que foi
o Ricardo. Nem a Vera. E não tinha outros educadores para outras cidades. Aí a Vera e o Ricardo tinham
que estar suprindo as outras cidades e eram cinco cidades. E ficou muito difícil para eles. E aí foi quando
me pediram para ficar educadora de Brasiliana. Aí, sempre quando tinha alguma coisa para fazer, era
educadora. Mas, às vezes, surgia algum problema, e a gente passava a ser menino do Movimento de novo.

Que tipo de problema?


Assim, quando era para resolver alguma coisa, estar nas manifestações, estar levando os meninos para
alguma coisa no Congresso – algumas manifestações ou então no Plenário. Era uma coisa, então você
era... Você representava como educador. Às vezes, quando surgia algum... Surgia outras coisas também
dentro do Movimento, você era visto como menino do Movimento. Aí surgiu, tipo, uma contradição, aí
surgiram algumas contradições no Movimento, que foi quando a gente não queria ser mais visto como
menino e queria ser visto como educador e queria receber os mesmo direitos de um educador.

Isso foi de quando até quando que você atou como educadora de Brasiliana?
Eu fiquei só um ano como oficineira, foi o ano de 2001.

Aí depois entrou a Marília?


Aí no ano de 2002, 2003, 2004, eu já fiquei recebendo como educadora.

[322]
Ah, você ficou sendo educadora, você conseguiu isso.
Educadora. Eu consegui isso. Porque o Ricardo só ficou comigo, não foi nem um ano.

Aí ele coordenava o seu trabalho como oficineira durante esse ano.


O Ricardo, no primeiro ano, ele me coordenava. Foi quando eu peguei experiência com ele e tudo. Tinha
experência de classe, de dar aulas de primeira à quarta, mas não tinha aquela experiência de lidar com
adolescente porque eram mais de 30 meninos numa sala, de toda as idades, misturado. Meninos de vários
tipos de comportamento e era bem difícil lidar com eles. O Ricardo ficou menos de um ano.

Aí depois você ficou como educadora mais três anos?


Aí depois eu fiquei como educadora mais três anos. Aí eu já queria exigir os meus direitos como
educadora, não queria mais ser vista como menina, queria ser ouvida também. Aí foi quando surgiu alguns
problemas, problemas, assim, burocráticos mesmo.

[…]

Aí eu passei a ver de outro lado o trabalho do educador, a dificuldade de ter que lidar com os meninos,
ter que trabalhar com eles todas as oficinas, ter que trabalhar com eles sozinha, às vezes. A maioria das
vezes [ri]. Ter que trabalhar também com as dificuldades, falta do lanche, faltando a orientação de outra
pessoa, de um psicólogo. Às vezes, estar correndo atrás de... Por exemplo, para resolver os problemas
familiares porque eu não tinha, assim... A minha relação com eles, às vezes era uma relação bem próxima
– porque eles passavam o dia todinho longe dos pais e mais próxima de mim. E eles tinham aquele
vínculo de estar pedindo ajuda, estar denunciando alguma coisa. E eu, às vezes, me sentia sem opção de
estar ajudando eles. Por exemplo, de estar atrás dos direitos deles. Porque você ia no Conselho Tutelar, o
Conselho Tutela não funciona. Você ia na delegacia, a delegacia age de uma forma que, às vezes, afastava,
por exemplo um agressor de uma criança, mas depois o agressor estava lá no ambiente da criança. Tinha
muita coisa que eu falava para eles que existia, por exemplo, a defesa, mas aí, na hora da defesa funcionar,
a defesa não funcionava. Aí eu ficava frustrada. (…) Tinha essas coisas que eu comecei a ver que, quando
eu era menina, eu não via porque eu participava por diversão, participava por outros objetivos, por outras
coisas. Sempre querendo participar e tudo, mas eu não via a parte difícil do trabalho, que os educadoras já
viam, como educador, que eu passei a ver depois, quando eu me tornei educadora. Tem um lado lindo,
que é quando a gente é criança, que a gente vê a beleza de estar participando. E tem o outro lado. Por que
você iria participar de um lugar assim? De um ambiente aonde tem várias crianças que podem se
expressar, participando? Aos poucos, ela vai começando a se expressar, a falar dos seus desejos, das suas
vontades, que era isso que todo mundo buscava. E que hoje eu vejo que, eu como educadora, pude ajudar
muitas pessoas, mas também, muitas vezes, eu também não pude ajudar. Essa frustração que a gente fica,
que a gente fica com vontade de não voltar mais a trabalhar. Mas é muito difícil trabalhar com essa área de
meninos excluídos. Porque ninguém quer. Você manda para o Conselho Tutelar, o Conselho Tutelar
devolve. Você vai a um escola levar o menino, a escola não quer. Você vai falar com o pai, o pai não aceita
mais aquela criança. Aí ele foge. Chega um momento que ele foge, vai para a rua, ganha a liberdade da rua.
Aí fala que, em casa, ninguém quer escutar, ninguém quer ver o lado, que eles falam que é o lado deles,
“Ninguém quer me ouvir, ninguém quer saber dos meus sentimentos, todo mundo só quer apontar e falar
os erros. Mas ninguém pára para ouvir enquanto criança”. Aquela criança tem que ouvir, ter que obedecer.
Agora, tem muitas coisas que faz você querer voltar, que é falar: “Nossa, como que eu vou deixar essas
crianças!”; “Como que eu vou deixar eles sem apoio, sem ninguém”. Até porque não há outro trabalho.
Igual ao trabalho do Movimento, não tem. Eu já vi muitos trabalhos, mas igual ao do Movimento, não.
Um trabalho, assim, que a criança não é obrigada a participar. Ela vai, ela se encontra lá.

[…]

Como é que era a relação do Movimento com as famílias das crianças?

[323]
Nossa, era difícil! Ainda mais pelo nome. Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua?! Hunf!
“Meu filho não é de rua! Vocês estão pensando o quê?! Pegam os filhos da gente, leva para lá, ensina para
os meninos que tem que responder a gente!” [risos]. “Fica ensinando coisas para esses meninos. Esses
meninos já sabem demais, que não-sei-o-quê!”. Achava errado o que o Movimento ensinava.

Ah é?
No começo, todo... Aí ficava aquela coisa, o maior clima. Tinha muito pai que não queria deixar. Aí eles
começaram a vir em todas as casas, conversar com os pais e buscar menino por menino em casa. Foi com
o conhecimento mesmo: os pais foram conhecendo, vendo que não era aquilo que eles pensavam.
Imaginavam um bicho de sete cabeças. Imaginavam o Movimento totalmente de cabeça para baixo. Falava
que o Movimento ensinava a gente coisa errada. E não era nada daquilo. Eles ensinavam à gente os
direitos. Eu nunca imaginei entender os meus direitos, exigir os direitos. Muita gente não sabe até hoje. É
adulto e não sabe que tem certos direitos, regalias, como, por exemplo, a mulher grávida tem direito a
estar fazendo os seus exames e o governo tem obrigação de estar mantendo várias coisas, o direito do
bebê desde a barriga da mãe da criança. São os direitos da criança, que a gente não sabia. A gente não
sabia que tinha. E, depois que a gente entrou no Movimento, foi participando, não sei, a gente foi abrindo
a visão de um mundo melhor que a gente poderia fazer faculdade que a minha mãe não teve, que eu
poderia ser capaz de fazer uma faculdade, de trabalhar, de ter um emprego melhor, de não ser mais uma
doméstica, de não ser mais um carpinteiro ou pedreiro. Porque poderia sair uma pessoa! Se eu quisessse
ser carpinteiro ou pedreiro era a minha profissão! Era profissão que eu escolhi depois, mas não por
obrigação de ter que ser (…)

E hoje? Como é que é a sua relação com o Movimento hoje?


Hoje a relação com o Movimento... Aí, o Movimento... Eu acho que a relação, assim, eu não consigo me
afastar do Movimento. É uma relação de apego, carinho. De bronca também, igual pai e mãe. Aquela
relação de quem quer sempre estar ali participando, quer estar junto ali. Todos os meninos têm essa
relação, não só eu. Todos os meninos que saíram do Movimento adultos, eles falam: “Ah eu não queria
deixar o Movimento! Eu queria ficar no Movimento para sempre! Ah por que a gente tem que sair do
Movimento depois que faz 18 anos? Não, a gente tem que ficar no Movimento também, agora nós vamos
ser educadoras [ri]”. Que todo o mundo queria estar em alguma parte do Movimento, estar como
secretário ou estar como educador, estar como coordenador. Todo o mundo tinha esse sonho. Aí, hoje
em dia, eu vejo que eu tenho um vínculo mesmo com o Movimento. Eu tenho. Todo ano eu falo: “Ah, eu
não quero mais saber do Movimento. Agora eu vou procurar outra coisa”. Depois eu já estou lá no
Movimento de novo [ri]. Mas é aquela vontade de estar participando, de estar trabalhando. E quando a
gente vê uma coisa dando certo, por exemplo, um 18 de maio, o disque denúncia, que já foi uma coisa que
surgiu depois de todo um processo que a gente participou dentro do Movimento, junto com outros
órgãos também. Nossa, a gente quer sempre estar participando, quer fazer parte daquilo. Tudo o que é
bom, a gente quer fazer parte.

[324]
ANEXO D – RECORTES DAS REUNIÕES 

Recorte da Reunião 1
SEDE DA COMISSÃO LOCAL DO MNMMR/DF
CORREDOR DA CIDADANIA
ABRIL DE 2006

Marcelo: Eu acho que a gente poderia iniciar a fala tentando trazer isso: o que é o escritório do Distrito
Federal em termos de Movimento porque acaba acontecendo isso, a gente acaba fazendo análise de
conjuntura nacional, fica fazendo análise social nacional e não faz o regional, que a gente que passa
batendo na tecla, que os caras acham que Brasília, que aqui é para a gente ficar pensando os problemas do
Congresso Nacional. E aí é o que a gente vê com os guris, quando a gente vai fazer um trabalho, os guris
pensam governo, o governo deles é o Lula. Não é a Câmara Legislativa, não é o Roriz!
Paula: Parece que o Roriz é fato.
Júlia: Não, o Roriz é um administrador!
Paula: Mas não é por causa da infra-estrutura do Nacional, essa conjuntura de Brasília não.
Marcelo: Não, eu não estou falando isso. Eu só estou puxando para que a gente tem que se atentar para
isso.
Júlia: Brasília, realmente na luta de criança e adolescente acontece é aonde? Dentro do Congresso. Era lá
que nós estávamos mesmo. E estamos ainda.
Marcelo: Tia Jú, não. Isso era necessário. O problema daí é questão de lei. É a [???] que é lei nacional. É
pelo Congresso. Não estou falando isso. Eu estou falando em que a nossa luta aqui muitas vezes, em vez
de estar indo de frente com o governo distrital, está mais se envolvendo com questões nacionais. É isso
que eu....
Paula: Eu acho que, por exemplo, os estados todos têm que se envolver com as questões nacionais.
Marcelo: Justamente! E a gente fica de fora de outros movimentos que estão nascendo ali no Distrito
Federal e o Movimento acaba ficando de fora. É isso que eu quero pautar.
[…]
Júlia: Mas eles não estão preocupados com isso não. Eu acho que o principal problema não é nem a
confusão, por exemplo. Porque isso é uma confusão política mesmo. E também de interesse nosso
mesmo. Porque, por exemplo, quando a gente participava, qual é a nossa proposta? Não era de que os
meninos fossem intervir. A proposta dos meninos era dos meninos experimentarem o protagonismo
juvenil e que os meninos pudessem vivenciar esse ator político. Então, por isso, que a gente participava
das manifestações nacionais. Por quê? Como espaço de participação. Muitas vezes, a gente, ora, já foi na
marcha do MST com os meninos, na marcha da educação, mas como exercício da cidadania, para
aprender isso. Tanto faz a gente aprender isso na marcha do MST, como aprender aqui na Câmara
Legislativa. Para nós, era indiferente isso. Isso era uma questão metodológica.
Marcelo: Mas o protesto nacional pode acontecer, mas tu tem que trazer ele para o teu estado também.
Júlia: Nem sempre você consegue trazer.
Marcelo: Eu sei que não! Mas essa é a luta da [??]. Senão, nada adianta.
Júlia: Mas a gente não tem essa luta travada com os meninos, Celo. Porque, com os meninos, é um
processo. É um processo de desenvolvimento dos meninos e que os meninos vão experienciar vários
momentos da luta. Eles vão discutir o problema lá da casa, lá, vamos dizer, de Brasiliana, de limpar o
Lago, como uma vez. Vamos fazer isso e vamos participar também da marcha dos catadores, que era
perto do dia do meio ambiente, não-sei-o-quê, para a questão do meio ambiente, para experienciar na
formação do tal do ator político. Até porque a gente não está formando os meninos para os meninos ser
A, ser B, ser D. A gente está formando pessoas com senso crítico para formular novos projetos de vida
porque os meninos são seres em desenvolvimento. Você não pode pegar o [??] e dizer: “Olha, é isso aqui”.
Ele tem de ir lá na marcha, tem de ver se é isso que ele quer. Já teve menino que já disse: “Ah, Jú, eu não
quero isso para a minha vida não. Eu quero é estudar. Não quero ficar marchando não. E pegando sol na
moleira!”. Eu disse: “Ótimo, lindo. É isso mesmo, não pega isso não”. Então, não é o Movimento como
sindicato, como Movimento de classe, não tem isso. É um Movimento diferente de formação de crianças
e adolescentes. Essa era a nossa metodologia. O que aconteceu com o Movimento é que o Movimento, ele
foi um ator político numa época muito importante. Então o Movimento, ainda hoje quem vê falar do
Movimento, tem na cabeça esse Movimento. É um Movimento muito grande na cabeça e no seu
propóstio, mas as suas pernas são mínimas para andar a para agüentar essa cabeça. Então a pressão
política, ela é muito forte. Como é que você vai dizer que nós não vamos para o Congresso? Como é que
você vai dizer que você não vai na luta do rebaixamento penal, contra o rebaixamento da idade penal?
Como é que você vai... você entendeu?
Paula: O que ele está questionando é os outros estados não assumirem isso.
Júlia: Os outros estados, Celo, não tem a...
Marcelo: E, às vezes, a gente ia ia só ficar com esses protestos, e acaba que não traz a discussão para cá. E
acho importante, por exemplo... Tia Jú, eu entendo que a gente não está formando aqui como miliante em
quantidade. Mas, que o guri, no momento em que ele passa a ter uma oficina nossa, daqui a pouco, ele
visualiza dentro de uma discussão do passe livre, ele, por pernas próprias, vá até lá e vá porque ele teve
uma formação. E daqui a pouco, por ele querer, pega e abandona o Movimento e vai lá, se torna um
representante do Movimento. Aqui é o meu grupo de Brasiliana. É nesse sentido. E isso que está faltando,
a gente acaba fazendo projetos amplos e acaba não trazendo esses nacionais para o nosso regional. É isso
que eu estou falando. A gente vai para as marchas contra a corrupção e a favor do Lula, mas aí não entra
numa marcha contra o Roriz aqui no Distrito Federal.
[...]
Júlia: Eu sei, Celo [??] uma nova metodologia de discussão, uma metodologia pedagógica de formação. A
formação do Movimento não é uma formação política. É uma formação pedagógica. É uma formação
integral, não é só política.
Marcelo: Mas deveria ser.

Júlia: Não deveria.


Marcelo: Não, é uma opinião pessoal. Eu acho que deveria sim.
Júlia: Então nós temos que discutir os nossos princípios.
Marcelo: Eu acho que deveria sim. Me desculpa. Porque a gente pensa em programar o mundo social,
mundo mais social, mundo socialista e não discute politicamente. Este é grande problema.
[...]
Marcelo: Eu sei! Estou... é uma hipótese. Mas aí acaba que tem um Fórum da Criança aqui, um fórum
mundial e os caras discutindo, no Fórum Social, o socialismo. Daqui a pouco, a criança está afastada dessa
questão. Sim, mas a gente tem que incluir dentro desse mundo socialista a criança e o adolescente! E essa
criança e adolescente tem que pensar assim também porque ela é minada de mundo capitalista desde que
nasce. E uma coisa que eu acho que é o que está afundando na questão da criança e do adolescente, é que
a gente só repete o Estatuto da Criança e do Adolesnte. E não dá mais porque o Estatuto da Criança e do
Adolescente é um conjunto de leis que, se não tiver uma leitura política da realidade, que não vai conseguir
a aplicação dela.
[...]
[326]
Marcelo: Por exemplo, olhe o nome do Movimento: Movimento de Meninos e Meninas de Rua. Você
não discute mais a questão dos meninos de rua, parece que...
Maria: Virou comum os meninos de rua! É normal.
Marcelo: É normal. O Movimento não está nem integrado com a questão da discussão do tráfico porque
a maioria dos meninos que estão no Movimento, não-sei-o-quê, a gente tem zilhões de problemas. O
problema é esse, a gente tinha que estar integrado junto com o Movimento, indo para o lado das favelas,
tinha que estar integrado... não está.
Vera: Da moradia.
Marcelo: De moradia.
Júlia: Marcelo, aqui quem veio dar uma chamada em mim literalmente foi um menino. O menino que
passou aqui, veio aqui e disse: “Ô Jú, eu estou a fim de fazer um trabalho aí, mas é com os meninos de rua
porque eu fui menino de rua e eu sei a importância que foi o Movimento. E o Movimento não está
trabalhando com esses meninos mais”. O Rogério, pode checar. Eu olhei para o Rogério, nesse dia eu não
tinha o que dizer para ele. Sabe o quê que eu tive a capacidade de dizer para o Rogério? Eu, militante, pré
histórica, não-sei-o-quê? “Ah, Rogério, senta com a Karina, porque a Karina está na rodoviária”. Pode um
negócio desses? Não, nós estamos completamente sem um eixo.
Maria: Mas daí é um posicionamento que a gente tem que ter nessa assembléia.
Paula: Na assembléia nós não vamos ter isso.
Marcelo: Mas, se a gente vai propor uma descentralização jurídica e administrativa, nós [??] para isso
também!
Júlia: Não. Não vai, sabe por que, Celo? Aí, os estados vão ter autonomia, o Distrito federal vai ter
autonomia de pensar metodologicamente o que o Movimento deveria fazer.
Marcelo: E adianta isso se no Brasil inteiro tem menino na rua?
Maria: Mas a gente vai estar...
Marcelo: Maria, isso é ilusão! Nós só vamos se fortalecer quando nós articularmos a nossa luta a nível
nacional. Porque, do mesmo jeito que tem o Rogério aqui na rua, tem lá na rua [??], tem em São Paulo.

Recorte da Reunião 2
SALA DE REUNIÕES DO CORREDOR DA CIDADANIA
MARÇO DE 2007

Paula: O projeto a gente acabou enviando. Eu acho que foi só a Mônica que não teve oportunidade de
ler ainda.
Mônica: Não, esse material aqui não. Eu já vi quando estava fazendo, né?
Paula: É, ela ajudou a gente na elaboração, então ela sabe muito bem [risos]. Mas, como eu estava
conversando com você, como foi um projeto que começou de forma muito rápida, a gente foi adequando
e trabalhando com ele. Agora, a gente tá vendo o tamanho do projeto que... Na verdade, esse projeto, ele
surge por uma demanda de dois – na época – dois jovens do Movimento, que trabalhavam. Um deles é o
Rogério; e a Karina que trabalhavam na Rodoviária. E ela sempre vinha com uma demanda que tem muito
menino, que tem muito..., né? E que se precisava fazer alguma coisa dentro da Rodoviária para esses
adolescentes. E veio um grupo conversar com a Jú porque um dos pontos é que eles queriam se organizar
enquanto cooperativa para não ter... é, para não sofrer todas as violações e problemas que eles estavam...,
né? E diante disso, a gente... Bom, a gente tem um desafio aí. Primeiro que são adolescentes que já
[327]
trabalham, alguns jovens e alguns que não estão em idade para exercer trabalho. Então, como é que a
gente vai trabalhar isso? Então, quando a gente pensou o projeto, a gente pensou nesse trabalho do
cooperativismo, de trabalhar com eles a formação do cooperativismo, a organização. E com um outro
público, que seria das crianças, dos adolescentes até 16 anos, de forma a estar encaminhando para as redes
e estar fazendo trabalhos também no sentido educativo, pedagógico, dos direitos, como a gente tem o
costume e fazer. Então, o projeto, na verdade, surge dentro dessa proposta. E, enquanto metodologia, a
gente tem a metodologia da educação popular, de rua, com o trabalho com esses adolescentes, através das
vivências, das lutas, como está colocado aí no projeto. Só que a gente tem um grande desafio. Qual é o
desafio? É que, pela primeira vez, a gente tá trabalhando duas coisas ao mesmo tempo. Que é essa
concepção do cooperativismo e também o trabalho com os adolescentes. E como é que a gente vai
conseguir dar uma linha pra esse projeto e não ter, por exemplo, algums problemas que a gente está
muito preocupado? Por exemplo, a quantidade de meninos e crianças que tem na rodoviária. Que você
tem verdadeiras famílias na Rodoviária, você não tem um menino, outro menino. E, como é que o projeto
vai dar conta desse público, que é um público muito amplo? E que a gente também não pode deixar de
ver.
[…]
Mônica: Queria saber uma coisa: o projeto já começou?
Paula: Não. Na verdade, a gente ainda está...
Glauco: O financiamento dele ainda não. O dinheiro não chegou....
Paula: Sim, mas...
Glauco: Mas nós já estamos na Rodoviária...
Paula: O que a gente começou, na verdade...
Glauco: ... parte de nós. Quer dizer dizer, o Movimento está lá ainda sem a equipe que vai trabalhar. Por
isso mesmo, nós não selecionamos a equipe. Nós estamos analisando já alguns currículos, algumas
propostas. Estamos somando com gente que está vindo de outras atividades, de outros movimentos, que
são especialistas um pouco nessa área também – não de trabalho, mas na área de projetos, de coordenação
enfim. Mas a gente só pensou de fazer isso depois que tivéssemos essa conversa, essa compreensão. E é
claro que nós vamos fazer isso também no exercício do próprio projeto em si...
Henrique: A idéia é alugar um lugar ali perto da Rodoviária. Para ter um espaço que não seja lá dentro,
porque lá é complicadíssimo, mas próximo, onde os adolescentes possam ser atraídos com atividades. E
também ter um suporte financeiro para eles, na medida em que eles participem.
Mônica: Que tipo de primeiro olhar? Já tem um primeiro olhar?
Paula: tem, na verdade, a Jú, até para estar dando subsídio para o Movimento, eles estão indo – os
educadores, o Rogério, a Amanda e a Maria, apesar de não serem os educadores - mas isso entra num
processo de formação deles, caso venham ser desse projeto ou não - mas para estar dando subsídio para o
Movimento, eles estão fazendo observação na Rodoviária...
Glauco: há duas semanas já, de manhã, à tarde e de noite.
Henrique: Ah! Que legal!
Paula: E eles já tão percebendo mais ou menos como é que está a movimentação. A Jú, ela achou, nesse
momento, importante, ela não participar porque ela já é uma pessoa conhecida na rodoviária, pelos
meninos. Então, esse trabalho da observação seria prejudicado se ela fosse. Então tão indo os meninos. E
aí, a partir desse olhar, a gente vai começar. E aí, quando a gente estruturar mesmo o projeto, aí contratar
e tudo, esse relatório dos meninos vai servir também como subsídio para começar as ações. Mas ainda, a
gente ainda tá na parte, fechando a parte...
Mônica: Porque essa é a idéia do público, se já tem alguma coisa. Mais trabalhadores, mais meninos com
o uso de algum tipo de droga, mais crianças. Para atender esse tipo de olhar.
[328]
Glauco: eles tão fazendo isso, tão orientados para isso. A gente não está interrompendo o processo deles
também nessa rodada inicial pra eles poderem estar aqui conosco conversando, mas a gente quer
estabelecer esses lugares diferenciados, sem hierarquia, mas lugares diferenciados. E, nesse momento, para
eles também, para que eles possam retirar o máximo possível dessa orientação, dessa observação. Depois a
gente vai orientar a observação, seguindo.... Agora, os meninos estão... O nascimento do projeto, por si só,
já é interessante porque ele nasce a partir de dois adolescentes do grupo, do Movimento que desenvolviam
atividades laborais na Rodoviária. E ao perceber esse universo todo, propõem para nós uma atividade
desse modelo. Então, assim, a gente ao sistematizar o desejo na forma de um projeto, ainda no ano
passado, em julho, a gente sistematizou a partir daquele primeiro desejo. Hoje, eles estão, inclusive, vendo
o projeto sistematizado, mas vendo também, checando aquela primeira informação que tinha. Eles estão
ali, estão fazendo relatórios cotidianos dessa conversa. Então não está moldando relatório, estão
agregando informações.
[…]
Paula: Inclusive, os meninos – os jovens – do Movimento já sistematizaram. O primeiro relatório deles já
está pronto. A gente tinha até posto e a gente não sabia muito se a gente colocava na pauta – um pouco
por isso que o Glauco estava colocando – mas tinha um ponto de pauta que era eles darem um feedback
para esse grupo do que eles já tinham observado. Como aqui a gente estava definindo um pouco esse
papel do GT, de como a gente vai constituir, a periodicidade de estar fazendo isso, eu achei que talvez
fosse n’outro momento.
Henrique: Não, a gente vai estar conversando sempre, eu acho que...
Paula: Se vocês acharem que é o momento...
Glauco: Tem isso também. A gente tem outras pessoas que nós estamos convidando para somar conosco.
Muitas delas não puderam estar aqui, mas outras agregarão a isto. Pessoas com saberes específicos nessa
história de cooperativismo, nessa história da rua, da drogadição, para estar somando conosco. Porque, de
repente, o olhar específico vai nos ajudar mesmo a ver a integralidade ali.
[…]
Mônica: Essas coisas mostram para a gente a... a importância de pensar quem vai estar na frente
trabalhando com os meninos, quem vai dar conta, o perfil para esse tipo de enfrentamento. Porque ele vai
aparecer! No momento que eles perceberem que é um trabalho, que os meninos – sei lá – estão se
envolvendo, se organizando para ter uma cooperativa, tem atividades que não vão deixar a meninada mais
tão livre como era, essa meninada começa a dizer coisas que eles não diziam. Porque vão se esclarecendo,
vão aprendendo e aprendendo. Então, começam a mudar o comportamento, porque vai tendo as
alterações óbvias na medida em que ele participa de atividades, de oficinas, de debates, de coisas artísticas.
A mudança vai acontecendo, interna, e eles se expressam nas relações, porque eles certamente terão
relações diferenciadas depois de um tempo. Enfim, vai aparecer! Então tem um perfil aí de quem é que vai
estar à frente com a meninada, educador, coordenador, não sei como é que vai chamar. Essa equipe com
capacidade de... de ter essas relações de impasses, de… (…) Não é o fato de estudar, de aprender, de ser
educador que diz que ele vai estar qualificado para lidar com esse tipo de situação. Ou seja, quem for para
lá, é preciso saber que isso existe, que é assim. A gente, que está nesse percurso...
Glauco: E que não tem no mercado disponível assim.
Mônica: Não, disponível não tem.
Glauco: E, mesmo os que são disponíveis, não são disponíveis para a nossa potencialidade financeira, a
mesma coisa... A reflexão já deu um encaminhamento para a gente em torno do que é o que nós estamos
chamando do grande objetivo, que era a criação de uma cooperativa. As reflexões que o Henrique fez
junto com Mônica e a Vi me remetem... me chama a atenção de que talvez o melhor caminho é o
percurso, mesmo político-pedagógico, neste momento, seria a gente começar por uma associação; vamos
lidar com esses meninos a partir dessa associação, com vistas a evoluir para uma cooperativa. Porque os
critérios e as necessidades de uma são bem diferentes da outra. E aí também a responsabilidade para com

[329]
esse menino e essa menina que lá está, ela é muito diferente. Porque se é cooperativa, é cooperativa deles.
E a nossa inserção tem um limite, o limite da parceria, do conversar, do esclarecer, enfim, algo desse tipo.
O do ‘articular para’ o exercício daquela ação da cooperativa deles. Na associação, a nossa entrada,
incialmente e a priori, é mais presente mesmo. Nosso papel é bem mais incisivo.
Henrique: Inclusive a gente pode ser membro da associação.
Glauco: Claro.
[...]
Júlia: Com os vendedores, Mônica, a gente não conseguiu fazer o levantamento. Porque agora, na
observação dos meninos, a gente não teve condição de ter o retorno ainda do que eles fizeram. Mas,
assim, as flores, tem a máfia e tem as flores. Porque, atrás das flores, tem as meninas. E atrás das flores
está a venda das meninas também. Então, isso é um negócio mais velado. As flores é um negócio meio
que da máfia, que a gente ainda não tem o caminho...
Mônica: De uma das máfias.
Júlia: É. E o que eles observaram e quem tem muitos, o maior número da Rodoviária, são os que não
estão trabalhando, que não estão... tão na mendicância!
Mônica: Estão lá.
Júlia: E se drogando.
Mônica: Porque eu tenho passado por lá e tenho visto muitos!
Júlia: Esse é um número grande que eles têm observado.
Henrique: E não tem alternativa para esse povo todo?
Júlia: O número de jovens trabalhadores é grande também. O número de crianças, maior ainda, de
pedintes, com as famílias e tudo. Então esse público da Rodoviária de desocupado lá...
Mônica: É o maior
Júlia: É o maior.
[...]
Henrique: o trabalho com pessoas terrivelmente machucadas, é preciso uma equipe especializada!
Paula: A nossa preocupação é essa porque a gente tem uma equipe reduzida para o projeto. Não é a
equipe que a gente sonhava. Mas foi a equipe que foi possível. Mas assim, eu acho que, uma das coisas
importantes que a gente tem que pensar... Inclusive, eu acho que é um papel desse GT é a formação de
quem está envolvido com esses meninos...
Glauco: Sim, supervisão também.
Paula: É. Formação e, exatamente, supervisão. Porque o que a gente observa é que em muitas situações,
eles não sabem muito bem como conduzir.
Júlia: É difícil... você vive uma pressão. Por exemplo, os meninos têm um fato concreto agora. Eles
estavam fazendo observação na Rodoviária essa semana – para ver como é que é a Rodoviária, como é
que eles se sentiam lá. Eu falei: “Melhor eu não ir na Rodoviária com vocês porque os meninos da
Rodoviária me conhecem muito. Então, pode ter uma interferência no olhar de vocês”. Aí eles foram
sozinhos. Aí, como já tinham conversado com os meninos lá de cima, dos engraxates, eles encontraram
eles na Rodoviária. Eles ficaram tão impressionados que eles marcaram uma reunião com os meninos.
Então como é difícil este processo de estar, de conviver com essas dificuldades, do povo da rua e tudo.
Vamos ver..
[...]

[330]
Henrique: A gente também tem que pensar que eles melhorar a condição de engraxate deles... porque é
algo que não tem futuro.
Mônica: Não, não tem.
[…]
Henrique: Porque eles não sabem fazer outra coisa. Então tem que...
Júlia: Eles dizem que não sabem, Henrique. Eles dizem que o futuro deles é morrer na Rodoviária. Que
eles não têm saída...
Henrique: É isso. Eles estão presos nisso daí.
Júlia: E uma coisa que a gente faz também, é que a gente diz que tem outra saída. Qual é a outra saída?
Tem?
Mônica: Qual?
Júlia: Nessa conjuntura globalizada de mercado? De que antes a classe dos trabalhadores era mão de obra
barata e, hoje em dia, eles são descartáveis? Eles podem morrer na Rodoviária...
Mônica: E assim, em vez de ascender ao poder, ela virou descartável.
Júlia: É, gente! Que diferença que faz esses meninos de rua morrer de cola?
Mônica: Nenhuma!
Júlia: Morrer de AIDS? É como eles falavam: “É, tia, falar é bom, não dói, né?”.
Mônica: É um extermínio. Você sabe a única coisa que está segurando isso ainda? Que, assim, o estado
ainda se sente obrigado a fazer alguma coisa em função da questão da ética, dos direitos humanos. Porque
o capital não depende desse povo todo. E é uma massa muito grande!
[...]
Henrique: Quem vai coordenar o projeto? Jú, é você que vai coordenar?
Júlia: Henrique, nós fizemos uma avaliação, até nisso que a gente vai colocar depois, nos informes do
projeto, que era importante que fosse uma pessoa fora, com mais experiência, porque é um projeto novo.
E, se a gente pudesse ter essa pessoa, para nós seria ideal. Até porque, a gente vive meio falido de gente.
Quem sabe a gente pudesse ter novas pessoas?
Henrique: Fazer uma seleção aí...
Júlia: É, ter uma seleção de gente mais comprometida. Sei lá, uma pessoa...?
Henrique: O primeiro critério é passar uma semana na Rodoviária, depois fazer a seleção [ri].
Paula: É um bom critério!
Júlia: É, que a gente pudesse ter gente nova. Geralmente, com o profissional novo, já vem um bocado de
gente nova, cabeça nova e tudo. A gente pensou, nessa perspectiva, de ter pessoas novas. Agora, nós,
educadores, a gente ficou meio que de saia justa porque, assim, os meninos pensaram o projeto, vieram,
inclusive, propor, né? Então, e gente também achou que deveria, a priori, garantindo essa parte de
capacitação, que a gente pudesse priorizar esses meninos mesmo. O menino como o Rogério, né...
Mônica: jovens!
Júlia: É, esses jovens que já estão aí.
Mônica: Já que é para formar…
Júlia: Então a gente pensou de apropriar...
Henrique: Agora, tem que ser meio capitalista aí. Tem tarefa, não cumpriu a tarefa, cai fora.

[331]
Júlia: Não, a gente vai tomar o cuidado de ter o tal do termo de referência, com as funções, com as regras
porque vem da participação, né Henrique. Agora é um trabalho, é uma outra visão.
Henrique: Exatamente. É outra relação.
Júlia: Então eu acho que isso também vai ser um aprendizado no Movimento. Isso foi o que a gente
pensou, né! Mas estamos pensando ainda se essa é a mesmo a linha, se é por aí...

[332]

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