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Teresa Pizarro Beleza

FDUNL
2º semestre 2007/2008

TEORIA DO CRIME

Algumas notas de actualização sobre a teoria geral do crime


relacionadas com o actual Código Penal

Incluo aqui, por pensar que será útil para os estudantes, algumas
notas sumárias que dizem respeito a pontos específicos da
“teoria da infracção” (ou do crime) vistos à luz do actual Código
Penal - recorde-se que o 2º volume das minhas Lições foi escrito
ainda na vigência do Código Penal anterior; muitos aspectos
doutrinários são ainda válidos, mas há evidentemente muitas
alterações no texto legislativo.

Volto a lembrar que muitas soluções admitidas expressamente


pelo legislador de 1982 já eram, em alguma medida, aceites pela
doutrina e jurisprudência anteriores à sua vigência e nesses
termos estão referidas nas Lições a título de soluções que
constavam da então Proposta de Revisão do Código Penal.

Lembro ainda, conforme referi nas aulas iniciais, que existem


neste momento Lições actualizadas (escritas já por referência
ao Código Penal vigente). Figueiredo Dias, Taipa de Carvalho e G.
Marques da Silva publicaram textos em que boa parte da nossa
matéria está tratada (Ver bibliografia).
A EDIÇÃO RECENTE (2007) DE FIGUEIREDO DIAS 1 É
CERTAMENTE A MAIS RELEVANTE.
Admito porém que seja natural a utilização do texto do meu
Direito Penal como elemento básico de estudo, dado que é o que
1
  DIAS, Jorge de FIGUEIREDO: Direito Penal. Parte Geral, tomo I, Questões
fundamentais. A doutrina geral do crime Coimbra Editora, 2007, 2ª edição.

1
mais se aproxima da sistematização utilizada nas aulas. Por isso
pensei que, apesar do carácter sumário e fragmentário destas
notas, elas continuariam a ser de alguma utilidade para os
estudantes.

Os textos de Angelika Buch (sobre tentativa) e de Frederico


Costa Pinto (sobre erro) – ambos nesta mesma página –, além do
meu texto “Ilicitamente Comparticipando”, habitualmente
vendido como anexo ao segundo volume das minhas Lições, são
textos actualizados que ajudarão a completar a preparação da
cadeira em relação a essas três matérias.

Principais alterações ou inovações em pontos essenciais


relativos aos conceitos da teoria geral da infracção no CP de
1982, por contraposição ao CP de 1886 :

1. Acção (omissão).
Omissão: artº10º, nº2 (equiparação à acção em casos de
especial obrigação jurídica de agir); cria tipos penais de omissão
impura, alargando os tipos de resultado que estão na Parte
Especial (homicídio, ofensas corporais...). Isto é evidentemente
relevante a propósito da Dogmática dos crimes omissivos .
Coisa diferente é a incriminação, a título de omissão pura,
da falta de auxílio - artº200º (dever geral de socorro em caso de
“acidente”).

2. Tipo

a) objectivo: atenção à regra de imputação objectiva


(”causalidade”) do artº10º: “a acção adequada a ...”. Embora esta
regra não pretenda ser uma decisão teórica geral sobre o
problema, é pelo menos defensável que o legislador aceitou
“partir” de uma ideia de adequação. Isto não significa que não
seja possível ou até desejável, consoante os tipos da Parte
Especial, fazer uma triagem mais “fina” dos problemas de
imputação - através da chamada “teoria do risco”,
designadamente.

2
b) subjectivo:
o CP define agora expressamente as três formas de dolo no
artº14º - directo, necessário e eventual; na delimitação entre esta
última figura e a negligência consciente (artº15º) adopta uma
linguagem compatível com a chamada teoria da aceitação.
Em numerosos artigos da Parte Especial - ie, em
numerosos tipos de crime - o CP contém especiais elementos
subjectivos além do dolo.
Exs. artº 203º ( furto) - intenção de apropriação; artº 217º
(burla) - intenção de enriquecimento; artº 382º (abuso de poder) -
intenção de obter benefício ou causar prejuízo.

Ainda a propósito do tipo subjectivo, vejamos as questões


relativas ao Erro.

A Teoria do Erro e o actual Código Penal

Para efeitos de responsabilização criminal por um facto, é


essencial saber que conhecimento da situação objectiva a
pessoa tem quando age. Por outras palavras, é necessário saber
se a pessoa que pratica um acto que lesa gravemente interesses
de outrem representa correctamente no seu espírito aquilo que
está fazendo no momento em que age ou não (deixa de agir,
devendo fazê-lo: crimes omissivos).

Se essa representação mental não existe ou é incorrecta,


diz-se que a pessoa age em erro.

Talvez se possa distinguir entre erro por excesso e erro por


defeito. Embora só a este último seja usual chamar-se erro,
penso que esta terminologia poderá ajudar a entender as
relações e diferenças entre estes dois tipos de situação.

A dispara contra B...

1. sem saber que B está na sua frente;


2. pensando que B está vivo e afinal B está
morto;

3
Em 1, A erra por defeito: a sua representação da realidade é
menos grave do que essa mesma realidade. ERRO propriamente
dito (artº16º CP) - para esta figura se costuma reservar a palavra
erro. É este fenómeno que estudamos a propósito do tipo
subjectivo.
Em 2, A erra por excesso: a sua representação da realidade
é mais grave do que essa mesma realidade. TENTATIVA
IMPOSSÍVEL (artº23º CP). Estudaremos esta situação no capítulo
da tentativa.

O actual CP (1982) refere-se ao ERRO (propriamente dito)


nos artºs seguintes:
- artº16º “Erro sobre as circunstâncias do facto”; esta
disposição cobre várias formas de erro:
- o erro sobre o tipo propriamente dito (”erro sobre
elementos de facto ... de um tipo de crime” - ex. disparar contra
uma pessoa pensando que se trata de uma árvore; ”erro sobre
elementos ... de direito de um tipo de crime” ex. levar para casa
um livro alheio, pensando que é nosso);
- erro sobre (certas) proibições (”erro sobre proibições
cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o
agente possa tomar conhecimento da ilicitude do facto” - ex.
ignorar que vigora uma Lei que proibe transportar crianças
pequenas ao colo no banco traseiro dos automóveis);
- erro sobre pressupostos de facto de causas de
justificação (”erro sobre um estado de coisas que, a existir,
excluiria a ilicitude do facto” - ex. A agride B porque pensa que B
o vai agredir, quando B o está a saudar efusivamente);
- erro sobre pressupostos de facto de causas de exclusão
da culpa (”erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria
a culpa do agente” - ex. O náufrago X tira a tábua ao náufrago Z ,
para se salvar, pensando que é a única, mas na realidade há
outras tábuas próximas, que X não viu, dada a sua aflição);
Todos estes erros excluem o dolo, ou pelo menos a punição
a título de dolo.

- artº17º “Erro sobre a ilicitude”; trata-se de um possível


fundamento de exclusão da culpa. Será estudado a esse
propósito. Não confundir este erro com o erro sobre o tipo

4
tratado no artº16º, como acabamos de ver!!! Da censurabilidade
ou não do erro depende a sua relevância (isto é: o agente tinha
ou não obrigação de se ter interrogado sobre a licitude do
facto?).

3. Causas de justificação do facto, ou causas de exclusão da


ilicitude

O CP de 1982 enuncia uma regra geral de exclusão da


ilicitude (= justificação do facto) no artº31º, contendo o nº2 uma
enunciação exemplificativa. Em seguida, enumera os
pressupostos da legítima defesa (artº32º), do direito de
necessidade (artº34º), do conflito de deveres (artº36º) e do
consentimento (artº38º).
No artº 38º, nº 4 prevê a punição por tentativa para o caso
de haver consentimento por parte da vítima de um crime (ex.
ofensas corporais) mas essa circunstância ser desconhecida do
agente (que pensa, portanto, que está a agir contra a vontade da
vítima). Essa regra pode ser estendida às outras causas de
justificação do facto, se partirmos do princípio que delas faz
parte integrante, como elemento subjectivo, o conhecimento da
situação objectiva de justificação - e que portanto, não existindo
esse conhecimento, o agente seria punido pelo cirme
(consumado). Ex.: A mata B sem saber que B o ia agredir e que
essa era a única maneira de o impedir de consumar a agressão.
A será punido por tentativa de homicídio por aplicação analógica
do artº 38º, nº 4 (analogia em favor do arguido!!).

4.Causas de exclusão da culpa

O CP atribui expressamente o efeito de excluir a culpa a


certas circunstâncias; em geral, podem ser reconduzidas ou à
falta de consciência não censurável da ilicitude (artº17º) ou à
falta de liberdade de decisão (artº35º; artº 33º, nº 2).
Além disso, o CP considera incapazes de culpa os
inimputáveis (= insusceptíveis de serem responsabilizados pelos
seus actos) quer em razão da idade, quer em razão de anomalia
psíquica (artºs 19º e 20º).

5
Aos inimputáveis em razão da idade podem ser aplicadas
medidas de reeducação, nos termos da legislação de Menores;
aos inimputáveis por anomalia psíquica podem ser aplicadas
medidas de segurança se praticarem um facto típico e ilícito
(artºs 91ºss do CP).
A total embriaguês pode gerar uma situação de
inimputabilidade; mas atenção às regras sobre acções livres na
causa (artº20º, nº4) e à responsabilidade que pode advir, para o
ébrio e para terceiros, da própria situação de embriaguês (artºs
291º, 292º, 295º; artº 101º).

5.Tentativa

Sobre este capítulo, V. nesta mesma página da Faculdade o


texto de actualização preparado por Angelika Buch no ano
lectivo de 2000/2001.

O CP actual contém regras expressas sobre:

- a definição de actos de execução: conceito formal-


objectivo (artº22º, nº2, al.a); material-objectivo (artº22º, nº2, al.b);
a al. c) estende esses conceitos até actos que lhes são
imediatamente anteriores em circunstâncias normais (“segundo
a experiência comum...”); mas o conceito de actos de execução
pressupõe que estes sejam sempre “iluminados” pela decisão do
agente - é o plano do agente (de matar, violar, roubar...) que lhes
dá, em última análise, o sentido (artº 22º, nº 1: “que decidiu
cometer”);

- a punibilidade da tentativa (além da regra geral do artº


23º, nº 1):
idónea: desde que crime consumado seja punível com
prisão superior a três anos (ou o CP, na Parte Especial, determine
outra coisa - ex. artº 203º, nº 2 “furto”);
inidónea : desde que a inidoneidade do meio ou a
existência do objecto não sejam evidentes (”aparentes”) para a
generalidade das pessoas; exs. tentar matar por actos de
bruxaria ou tentar matar os cadáveres da morgue não são actos
puníveis, porque nem sequer existe uma aparência de
perigosidade dos factos praticados - toda a gente sabe que se

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não pode matar cadáveres ou causar a morte de alguém por
artes de bruxaria;

- a desistência (artºs 24º e 25º): atenção à relevância nesta


matéria da distinção entre consumação formal e material do
crime (ex. artº146º, “envenenamento”, na versão originária do
CP82: a consumação formal dá-se no momento em que veneno é
administrado; mas consumação material só se dá quando as
lesões na saúde se efectivam);
Este artigo desapareceu do CP na versão actual; mas veja-
se por ex. o artº 272º, “incêndios...”: a criação de perigo para a
vida, etc, é o momento da consumação formal; mas a lesão
efectiva da vida - ou seja, a morte de alguém - será a
consumação material); é preciso distinguir o campo de aplicação
do artº 286º do âmbito das regras da desistência propriamente
dita (artºs 24º e 25º). A Parte Especial contém algumas regras
especiais de desistência, como o artº286º quanto aos crimes de
perigo comum (aqui não funcionou um arrependimento
totalmente conseguido, uma vez que chegou a haver “dano”, mas
o agente evitou que o dano chegasse a ser “considerável”).
O “resultado não compreendido no tipo de crime” (artº 24º)
é encontrado, nos tipos de consumação antecipada, pela
referência legal ou à intenção com que o autor age: “com
intenção de causar lesões na saúde”, artº146º do CP na versão de
1982; ou, nos crimes de perigo concreto, pela referência ao bem
jurídico cuja protecção antecipada eles visam - a vida, a
integridade física, a propriedade de bens de grande valor no caso
do artº 272º.

A diferença das regras sobre desistência entre situações de


autoria singular (artº 24º) e as situações de comparticipação (artº
25º): as diferenças existem consoante quem detem (se detem
sozinho, ou em conjunto) o domínio do facto , e portanto a
capacidade de, desistindo, fazer frustrar o êxito do plano
criminoso; há casos em que é necessário um verdadeiro
“arrependimento activo”; há casos em que é suficiente o “esforço
sério”.

6. Comparticipação criminosa:

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Autoria e participação (instigação e cumplicidade)

Sobre esta matéria em geral e em especial o artº 28º, V. texto T.P.


Beleza Ilicitamente comparticipando... (fascículos de
actualização de Direito Penal 2º vol.)

O CP de 1982 também nesta matéria optou por consagrar


expressamente critérios de delimitação das figuras da
comparticipação criminosa (autoria e participação) já defendidos
por alguma doutrina portuguesa.
O artº26º (”Autoria”) estatui que são puníveis como autores
(repare-se que não se diz, em rigor, “são autores”) as seguintes
personagens:
- quem executa o facto por si mesmo (autor directo,
imediato, singular)
- quem executa o facto por intermédio de outrem (autor
mediato)
- quem toma parte directa na execução, por acordo ou
juntamente com outro ou outros (coautores)
- quem dolosamente determina outra pessoa à prática do
facto, desde que haja execução ou começo de execução
(instigador, também entre nós tradicionalmente chamado “autor
moral”)

Em relação a esta última ressalva (desde que haja


execução ou começo de execução), note-se o seguinte:
Ela poderia aplicar-se a qualquer das proposições do
artº26º; mas quanto às outras figuras além da instigação, ela é
desnecessária porque já resulta da própria enunciação das
figuras (”executa”, ou “toma parte na execução”); o legislador
teve necessidade de a enunciar expressamente para a instigação
justamente porque esta é uma forma “subsidiária”, dependente,
acessória, de participar num crime, na medida em que a
execução é controlada por outrem. É por isso mesmo que, do
ponto de vista dogmático, teórico, me parece mais correcto
designar a instigação como uma forma de participação, ao lado
da cumplicidade (como faz o Código Penal alemão) e não uma
forma de autoria.
Note-se ainda que a punição da instigação com uma pena
idêntica à da autoria é perfeitamente defensável, ainda que se

8
considere que se trata de uma forma de participação: é que a
instigação é, por definição, essencial à decisão do autor. Neste
sentido, a instigação é “causa essencial” do crime (e por isso
mesmo a teoria tradicional tende a considerá-la uma forma de
autoria - a chamada autoria moral, como vimos). É por isso justo
que seja punida de uma forma mais grave do que a cumplicidade,
de uma forma equivalente à autoria.

O artº27º (”Cumplicidade”) incrimina a cumplicidade


material ou psíquica; ambas têm de ser dolosas e referir-se a
factos dolosos. A pena parte da medida legal da do autor,
especialmente atenuada (artº74º).

Atenção: sendo a responsabilidade criminal estritamente


individual e a medida concreta da pena dependente da medida da
culpa (grau pessoal de censurabilidade pelo ilícito típico
cometido), cada comparticipante é punido na medida da sua
culpa (artº 29º).

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