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BURKE Peter - A Historia Como Memoria-Social PDF
BURKE Peter - A Historia Como Memoria-Social PDF
A
função do historiador é ser um “lembrador”, um guardião da Memória dos
acontecimentos públicos, postos por escrito em benefício dos seus atores, para lhes
dar fama, e também para benefício da posteridade que poderá, assim, aprender com o
seu exemplo. A História, como escreveu Cícero numa passagem que tem sido
repetidas vezes citadas a partir desse momento, é “a vida da memória” (vitae
memoriae). Historiadores tão diversos quanto Heródoto, Froissart e Lord Clarendon
afirmaram escrever para manter viva a Memória de grandes feitos e de grandes
acontecimentos. Dois historiadores bizantinos defenderam longamente este ponto de
vista nos seus prólogos, utilizando as metáforas tradicionais do tempo visto como um
rio e das ações apresentadas como textos que podem ser apagados.
Halbwachs estabeleceu uma nítida distinção entre memória coletiva, que é uma
construção social, e a história escrita, que considerou - de um forma positivista e algo
antiquada - objetiva. No entanto, a forma como os estudos sobre a história da escrita
histórica a tratam é muito semelhante à maneira como Halbwachs tratou a Memória,
como um produto de grupos sociais como os senadores romanos, os mandarins
chineses, os monges beneditinos, os professores universitários, etc. Tem vindo a
tornar-se um lugar comum assinalar que em diferentes lugares e épocas os
historiadores consideraram “memoráveis” diferentes aspectos do passado (batalhas,
política, religião, economia, etc.) e que apresentaram o passado de maneiras muito
diversas (concentrando-se em acontecimentos e estruturas, em grandes homens ou na
população em geral, segundo o ponto de vista em que se enquadram).
É porque partilho desta última visão da história da História que escolhi o título “A
História como Memória Social” para este trabalho, usando o termo como uma
designação abreviada, que resume o complexo processo de seleção e de interpretação
numa fórmula simples, e sublinha a homologia existente entre as maneiras como o
passado é registrado e recordado . A frase “memória social” e o termo “relativismo”
levantam problemas incômodos, pelo que tratarei de justificar a minha posição como
segue. As analogias entre o pensamento individual e o pen ( 237 ) samento de grupo
são tão inconsistentes quanto fascinantes. Se utilizarmos termos como “memória
social”, arriscamo-nos a estar a materializar conceitos. Por outro lado, se nos
recusamos a usar tais termos, corremos o perigo de não nos apercebermos das
diferentes maneiras como as idéias individuais são influenciadas pelos grupos a que os
indivíduos pertencem. Quanto ao relativismo histórico, não defendo que qualquer relato
do passado seja tão bom (digno de confiança, plausível, penetrante …) como qualquer
outro; alguns investigadores estão melhor informados ou são mais rigorosos do que
outros. O que acontece é que temos acesso ao passado (tal como ao presente) apenas
através de categorias e esquemas (ou, como diria Durkheim, de “representações
coletivas”) da cultura que nos é própria.
Neste ponto talvez seja possível redefinir o lugar da História nesta série de ensaios
interdisciplinares. Os historiadores interessam-se ou, pelo menos, necessitariam
interessar-se pela Memória, sob dois pontos de vista. Em primeiro lugar, precisam de
estudar a Memória como uma fonte histórica, para produzir uma crítica da fiabilidade da
reminiscência, na linha da crítica tradicional de documentos históricos. Esta tarefa vem
sendo levada a cabo, de fato, desde os anos 60, quando os historiadores do século XX
se aperceberam da importância da “história oral” . Até mesmo aqueles de entre nós
que trabalham sobre períodos mais recuados temos algo a aprender com o movimento
da história oral, uma vez que necessitamos estar atentos aos testemunhos orais e às
tradições subjacentes a muitos documentos escritos.E em segundo lugar, os
historiadores interessam-se, ou ddeveriam interessar-se, pela Memória enquanto
fenômeno histórico; com aquilo a que se poderia chamar a história social da
recordação. Dado que a Memória social, tal como a Memória individual, é seletiva,
precisamos de identificar os princípios de seleção e de observar a maneira como
variam de lugar para lugar, ou de um grupo para outro, bem como a forma como se
modificam ao longo do tempo. As recordações são maleáveis e necessitamos
compreender a forma como são moldadas e por quem. Estes são tópicos que suscitam
a atenção dos histo ( 238 ) riadores apenas no final dos anos 70, mas que são hoje
objeto, em toda a parte, de livros, de artigos e conferências . É sobre o segundo tópico,
o da história social da recordação, que gostaria de me deter, dividindo-o em três
seções ou questões principais.
1.Quais são os modos de transmissão das recordações públicas e como mudaram
esses modos ao longo do tempo?
2. Quais são as utilizações dessas recordações, as utilizações do passado, e que
modificações têm sofrido?
3. Simetricamente, quais são as utilizações do esquecimento?
mory, o crítico americano Paul Fussell observou o que designa por “domínio da
Segunda Guerra Mundial pela Primeira”, não apenas a nível dos generais, que se
espera que estejam a fazer a guerra anterior, mas também a nível dos participantes
comuns . A Primeira Grande Guerra foi também encarada em termos de esquemas, e
Fussell verifica a recorrência de imagens do Pilgrim’s Progress de Bunyan,
especialmente do Atoleiro do Desânimo e do Vale da Sombra da Morte, em descrições
da vida nas trincheiras, em livros de memórias e em jornais. Remontando um pouco
mais longe, a própria escrita de Bunyan - incluindo a sua autobiografia - faz também
uso de esquemas; o relato de Bunyan sobre a sua conversão é claramente modelado,
consciente ou inconscientemente - é difícil distinguir - na conversão de S. Paulo tal
como é descrita nos Atos dos Apóstolos .
Na Europa do início do período moderno, muita gente lia a Bíblia com tanta freqüência
que esta se tornara parte do próprio indivíduo, organizando as suas percepções e as
suas recordações. Não seria difícil citar listas de exemplos deste processo, tais como o
que se segue. Johann Kessler foi um pastor protestante suíço da primeira geração. Nas
suas memórias, conta a história da forma como, segundo as suas ( 242 ) palavras,
“Martinho Lutero se encontrou na estrada com Wittenberg”. Tinha ficado com um
companheiro em Jena no Black Bear, onde partilharam uma mesa com um homem
vestido como um cavaleiro mas lendo um livro - que depois se soube ser um saltério
judaico - e disposto a falar de Teologia. “Perguntamos: ‘Senhor, pode dizer-nos se
Martinho Lutero está agora em Wittenberg ou em algum outro sítio?’ Ele respondeu,
‘Tenho a certeza de que não está em Wittenberg neste momento’[…] ‘Meus filhos’,
perguntou, ‘o que pensam de Lutero na Suíça’. Os estudantes não percebem o que se
passa, até que o proprietário faz uma insinuação . A minha opinião, contudo, é que,
consciente ou inconscientemente, Kessler estruturou a sua história a partir de um
protótipo bíblico, o dos discípulos que encontram Cristo na estrada para Emaús.
A cadeia de exemplos poderia ser ampliada mais ainda, uma vez que a Bíblia também
está cheia de esquemas, e alguns dos acontecimentos nela narrados também são
apresentados como recriações de outros anteriores . No entanto, os exemplos dados
são talvez suficientes para sugerir algumas das características do processo através do
qual o passado recordado se transforma em mito. Utilizo, incidentalmente, o termo
escorregadio “mito”, não no sentido positivista de “história imprecisa”, mas no sentido
mais rico e mais positivo de história com significado simbólico, composta a partir de
incidentes estereotipados e envolvendo personagens caracterizadas de forma
exagerada em relação à realidade, quer se trate de heróis quer dos seus opositores.
Há uma pergunta óbvia que se coloca, neste momento, ao historiador. Porque se ligam
os mitos a certos indivíduos (mortos ou vivos) e não a outros? São muito poucos os
governantes que se tornaram heróis na memória popular; Henrique IV de França, por
exemplo, Guilherme III de Inglaterra, Frederico, o Grande. Não é qualquer santo
homem, ou mulher, que se torna santo, oficial ou não oficialmente. Porquê? A
existência de esquemas orais ou literários ou, de forma mais geral, de esquemas de
percepção não explica porque é que estes esquemas são associados a certos
indivíduos, porque e que determinadas pessoas(243) são, digamos, mais mitogências
que outras. Nem é uma resposta adequada fazer o que os historiadores positivistas,
com o seu espírito literal, geralmente fazem, ou seja, descrever os feitos dos
governantes e santos, por mais consideráveis que possam ter sido, uma vez que o mito
lhes atribui freqüentemente qualidades que nada prova terem alguma vez possuído . A
transformação do frio e cinzento Guilherme III no ídolo popular protestante Rei Billy
dificilmente se pode explicar em termos da sua personalidade. Na minha opinião, o
elemento central para a explicação desta mitogênese é a percepção (consciente ou
inconsciente) da existência de uma “parecença”, em algum aspecto ou aspectos, entre
um indivíduo particular e um estereótipo corrente de herói ou de malandro -
governante, santo, bandido, bruxa, etc. Esta “parecença” estimula a imaginação das
pessoas e começa a circular histórias acerca do indivíduo em questão, oralmente a
princípio. No decorrer desta circulação oral, o mecanismo normal da distorção
estudado pelos psicólogos sociais como levelling e sharpening entra em ação. Estes
mecanismos ajudam à assimilação da vida de um indivíduo determinado a um certo
estereótipo retirado do repertório de estereótipos presentes na memória social de uma
dada cultura . Os bandidos transformam-se em Robin dos Bosques, roubando dos ricos
para dar aos pobres. Os governantes viajam disfarçados através do seu reino para
conhecer as condições de vida dos seus súditos. A vida de um santo moderno pode ser
recordada como uma recriação da vida de um santo anterior: S. Carlo Borromeo foi
visto como um segundo Santo Ambrósio, e Santa Rosa de Lima como uma segunda
Catarina de Siena. Guilherme III de Inglaterra foi encarado como um segundo
Guilherme, o Conquistador.
Mas é claro que esta explicação do processo de fabricação de heróis nos meios de
transmissão é insuficiente. Fornecê-la como uma explicação ( 244) completa seria
politicamente ingênuo. Tenho ainda que considerar a função da Memória social.
Qual a função da Memória social? É difícil encontrar um ponto de apoio numa questão
tão vasta. Se um advogado contribuísse para esta série de conferências, poderia
discutir a importância do costume ou do precedente, a justificação ou legitimação de
ações do presente tomando o passado como referência, as funções das recordações
das testemunhas perante os tribunais, o conceito de “tempo imemorial”, por outras
palavras, do tempo “durante o qual a memória humana […] não se lembra do
contrário”, e as mudanças de atitudes quanto à prova de recordação conseqüente à
difusão da leitura e dos registros escritos .
Como historiador cultural, considero útil abordar a questão dos usos da Memória social
perguntando porque será que algumas culturas parecem mais preocupadas em
recordar o seu passado do que outras. É lugar comum contrastar a preocupação
chinesa tradicional com o seu passado com a tradicional indiferença dos índios em
relação ao seu. No seio da Europa encontramos também contrastes deste tipo. Apesar
da sua atitude reverente para com a tradição e da preocupação com a “herança
nacional”, discutida por Patrick Wright, a memória social dos ingleses é relativamente
curta. Os irlandeses e os polacos, por outro lado, têm memórias sociais relativamente
longas. Numa visita a Belfast, em 1969, recordo-me de ver um retrato de Guilherme III
a cavalo, desenhado a giz num muro, com a inscrição “recordem 1690”. No Sul da
Irlanda, a população ainda se lembra do que os ingleses lhe fizeram na época de
Cromwell como se tudo tivesse acontecido no dia anterior. Na Polônia, o filme de
Andrej Wajda Ashes, passado na época de Napoleão, provocou uma controvérsia
nacional acerca do ( 245 ) que Wajda parecia encarar como o heroísmo fútil da Legião
Polaca. Aqui, por outro lado, e quase ao mesmo tempo, o filme A carga da Brigada
Ligeira foi tratado como pouco mais do que um pretexto para a demonstração dos
trajes do século XIX. Os ingleses parecem preferir esquecer . Sofrem ou regozijam-se
com o que o antropólogo social John Barnes designou por “amnésia estrutural” . Uma
vez que a amnésia estrutural é o oposto complementar do conceito de “memória
social”, rebatizá-lo-ei para “amnésia social”.
Porque existe um contraste tão acentuado entre as atitudes para com o passado em
diferentes culturas? Diz-se muitas vezes que a história é escrita pelos vencedores.
Poderia também dizer-se que a história é esquecida pelos vencedores. Podem permitir-
se esquecer, enquanto os derrotados são incapazes de aceitar os acontecimentos e
estão condenados a meditar sobre eles, a revivê-los e a imaginar quão diferentes
poderiam ter sido. Seria possível encontrar uma outra explicação em termos de raízes
culturais. Quando as temos, podemos permitir-nos esquecê-las, mas quando as
perdemos, vamos em busca delas. Os irlandeses e os polacos foram desenraizados e
os seus países divididos; não é surpreendente, por isso, que pareçam estar obcecados
com o passado. Voltamos assim ao tema favorito de Halbwachs, a relação entre o lugar
e a Memória.
O final do século XIX foi descrito de forma provocatória como a era da “invenção da
tradição” . Foi sem dúvida uma época de recolha das tradições nacionais, nas quais
foram construídos monumentos nacionais, e estabelecidos rituais nacionais (como o
dia da Bastilha), ao mesmo tempo que a história nacional passou a ocupar um lugar
nas escolas européias que nunca tinham ocupado antes e não voltaria a ocupar depois.
O objetivo de tudo isso era essencialmente o de justificar ou de “legitimar” a existência
da Nação-Estado; quer no caso de novas nações como a Itália ou a Alemanha quer de
nações mais velhas como a França, onde a lealdade nacional tinha ainda que ser
criada, e os camponeses transformados em franceses .
As disputas entre historiadores que apresentam relatos rivais do passado refletem por
vezes conflitos sociais mais vastos e mais profundos. Um exemplo evidente é o
corrente debate acerca da importância da história “feita a partir de baixo”, um debate
que remonta pelo menos a Alexander Pushkin, historiador e poeta, que disse ao Czar
que desejava escrever acerca do líder camponês Pugachev. A resposta do Czar foi
brutalmente simples: “Um homem desses não tem história”. As recordações oficiais e
não oficiais do passado podem diferir grandemente e as recordações não oficiais, que
tem sido relativamente pouco estudadas, constituem por vezes forças históricas de
pleno direito; a Boa Velha Lei na Guerra Camponesa Alemã de 1525, o Norman Yoke
na Revolução Inglesa, etc. Sem invocar as recordações sociais deste tipo seria difícil
explicar a geografia da divergência e do protesto, o fato de que algumas idéias, por
exemplo, participem em diferentes movimentos de protesto século após século e outras
não.
Consideremos a seguinte história, recolhida pelo antropólogo Jack Goody. Diz-se que a
origem das divisões territoriais do Gonja, no Norte de Gana, resultou de um ato do
fundador, Jakpa, que dividiu o reino entre os seus filhos. “Quando os pormenores desta
história foram pela primeira vez registrados, no início do presente século, na época em
que os ingleses estendiam o seu domínio àquela área, dizia-se que Jakpa tinha tido
sete filhos, correspondendo ao número de divisões […] Mas na altura em que os
ingleses chegaram, duas das sete divisões desapareceram […] sessenta anos mais
tarde, quando os mitos do Estado foram de novo recolhidos, apenas cinco filhos eram
atribuídos a Jakpa . Este é um caso clássico de utilização do passado para legitimar o
presente, que Malinowski descreveu como o funcionamento do mito de uma “carta de
foral” das instituições (adotando o termo “carta de foral” utilizado pelos historiadores da
Idade Média).
Os mitos não devem ser desprezados, mas sua leitura literal também não é
recomendável.