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Portal do Criador

ONDE VAMOS PARAR?

“Nos próximos cinqüenta anos, a inteligência artificial, a nanotecnologia, a engenharia genética


e outras tecnologias permitirão aos seres humanos transcender as limitações do corpo. O ciclo da
vida ultrapassará um século. Nossos sentidos e cognição serão ampliados. Ganharemos maior
controle sobre nossas emoções e memória. Nossos corpos e cérebros serão envolvidos e se
fundirão com o poderio computacional. Usaremos essas tecnologias para redesenhar a nós e
nossos olhos em diversas formas de pós-humanidade.”
Esse texto foi escrito em 1997 por Max More, um inglês nascido em 1964, PHD em filosofia,
política e economia pela Universidade de Oxford e fundador, nos Estados Unidos, onde vive hoje,
do Extropy Institute, uma entidade que defende “o uso da tecnologia para melhorar a saúde do
homem, aumentar sua inteligência e aperfeiçoar os sistemas sociais”, acenando com um “trans-
humanismo” que prevê até a superação da inteligência humana pela artificial, dos computadores.
As especulações sobre o pós-humano, que vêm tomando projeção cada vez maior em
determinado meio cultural desde o final do século 20, baseiam-se nos avanços e pesquisas da
ciência e da tecnologia. Os seguidores das teorias de More e outros estudiosos, ou futurólogos,
estão prevendo mutações chocantes para daqui a algumas poucas décadas, quando o corpo
humano viria a ser, por exemplo, uma adequação de “silício e carne”. Mas, pensando que, hoje, já
se pode substituir não só pernas, braços, dedos, artérias, mas órgãos mais complexos como o
coração (e agora as células-tronco a partir da pele humana), e olhando como a tecnologia e a
ciência estão alterando o modo de vida das pessoas, e como as crianças são tão diferentes das que
fomos, não são de estranhar tanto as previsões sobre o pós-humano.
É disso que trata esta edição especial de Caros Amigos, contando com valiosas contribuições
de estudiosos não apenas do campo científico, mas também da política, do social, da alma
humana, dos sentimentos, da afetividade, que, aliás e assustadoramente, também fariam parte da
constituição do homem-robô ou robô-homem.

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◊ TECNOLOGIA E PENSAMENTO
Roberto Manera avalia o choque entre a ciência dura e o pensamento amortecido

◊ MUTAÇÕES
Adauto Novaes observa que vivemos não uma crise, mas uma mutação

◊ FÍSICA NUCLEAR
Maria Cristina Batoni Abdalla descreve a máquina que vai ensaiar o Big Bang

◊ TEMPO E FILOSOFIA
Olgária Matos aconselha a ciência a pensar a ciência e o homem a recuperar o tempo de que abriu mão

◊ BIOPODER
Newton Bignotto teme o totalitarismo tecnológico

◊ FILOSOFIA DA CIÊNCIA
Luiz Alberto Oliveira analisa as complexidades da Teoria do Caos

◊ CIÊNCIA E FICÇÃO
Jair Ferreira dos Santos e a poesia da substituição do humano pelo artificial

◊ FILOSOFIA DA LINGUAGEM
João Vergílío Galterani Cuter disseca a palavra “consciência”

◊ NEUROCIÊNCIAS
Lionel Naccache visualiza o “inconsciente” a partir da neurociência cognitiva

◊ LITERATURA E CINEMA
João Camillo Penna lê e vê o futuro nos livros e nos filmes

◊ ENGENHARIA GENÉTICA
O estado atual das pesquisas, na genética e na biônica

◊ SOCIOLOGIA DO FUTURO
Eugène Enriquez vislumbra o destino do amor, da amizade, das utopias - e não gosta do que vê

◊ E O NOSSO AMANHÃ?
Renato Pompeu discute a sobrevivência da espécie humana

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ROBERTO MANERA
MÁQUINAS COMO NÓS?
Os primeiros computadores operacionais - na época, pomposamente chamados de cérebros
eletrônicos - foram construídos nos anos 1940. Seu desenvolvimento, muito lento no princípio,
foi-se acelerando e tomou escala exponencial. Em seu livro A Era das Máquinas Espirituais,
publicado em 1999 nos Estados Unidos e este ano ( 2007 ) traduzido para o português, o escritor,
empresário e engenheiro de som Raymond Kurzweil compara a trajetória e o ritmo crescente
desse desenvolvimento à fórmula de pagamento proposta pelo criador do xadrez ao imperador da
China, na conhecida fábula. Um grão de arroz na primeira casa do tabuleiro, dois grãos na
segunda e, subseqüentemente, o dobro dos grãos da última na próxima, o que levou o imperador à
dívida final de 18 milhões de trilhões de grãos e - segundo alguns dos leitores da fábula - à
decapitação do cobrador. A comparação entre a fábula milenar e a transmutação do primitivo
cérebro eletrônico, primeiro para a vertiginosa velocidade dos atuais computadores e brevemente,
segundo os projetistas, para um verdadeiro cérebro, capaz de pensar e até criar um legítimo
“espírito”, também serve para Kurzweil defender uma tese que é quase um lugar-comum entre os
filósofos que analisam e pensam as atuais mutações sofridas pelo Homem e o meio em que ele
vive; os neurocientistas que utilizam a tecnologia para aprimorá-lo e os físicos que pretendem
recriá-lo à sua semelhança. Todos eles admitem que o tempo vem ganhando velocidade crescente,
na mesma medida em que ganharam a evolução humana no estágio entre o macaco e o Homo
sapiens, e as máquinas, nas últimas duas décadas. Esse fato dá a Kurzweil, até, a coragem de
afirmar que por volta de 3042 o computador atingirá um estágio de desenvolvimento “mental”
igual ao de seu criador - o que pressupõe um certo descrédito na capacidade evolutiva futura dos
humanos. Só que as máquinas serão muitíssimo mais velozes, como hoje já o são nas tarefas mais
simples de realizar cálculos, processar algoritmos e fazer projeções matemáticas. Ou seja, serão
funcionalmente mais capazes que o próprio Homem, a ponto de torná-lo obsoleto.

O pós-humano

Correntes de pensamento dedicadas à filosofia, à ética e ao desenvolvimento social humano,


acreditando ou não na verossimilhança das projeções da chamada “ciência dura” - a que se limita
à corrida tecnológica como se ela fosse, simplesmente, inevitável, imune ao próprio desejo das
criaturas naturais e despida de crenças religiosas, alinhamentos políticos e do que
convencionamos chamar de “sentimentos” -, passaram a meditar e a trocar informações sobre um
novo tema: o “pós-humano”. A simples cunhagem do título já parece assustadora, ao levar-nos a
crer que mesmo os que duvidam do processo e do método que vêm sendo anunciados pelos
cientistas “duros” para criar uma verdadeira inteligência artificial já aceitam o advento de nossa
sucessão pela máquina.
Entre os meses de agosto e outubro passados, um grupo de reconhecidos pensadores brasileiros
e estrangeiros, de diversas áreas, reunido pela empresa de produção cultural Artepensamento com
o apoio do Ministério da Cultura, participou de um encontro que percorreu cinco capitais
brasileiras discutindo, entre outros, o tema do pós-humano, mas cautelosamente classificando-o
so o título “Mutações - novas configurações do mundo”. No encontro, coordenado pelo jornalista
e professor universitário Adauto Novaes, como parte do ciclo “Cultura e Pensamento em Tempos
de Incerteza”, cientistas, filósofos, sociólogos e psicanalistas analisaram o que percebem como
uma grande mutação, muito diferente de algumas bruscas mudanças ocorridas no passado,

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pontualmente provocadas por crises e conflitos ao longo da história humana, principalmente no
mundo ocidental. Tal mutação, concordam os participantes, descende diretamente de dois
fenômenos - a globalização e a verdadeira revolução tecnocientífica das últimas duas décadas.
Entre os participantes do encontro, muitos dos quais escreveram artigos ou deram entrevistas
para esta edição, o filósofo Newton Bignotto, professor da Universidade Federal de Minas Gerais
e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, lembra que o
surgimento da Internet (cuja idéia nasceu da interligação de computadores do CERN – Comitê
Europeu de Pesquisas Nucleares, para manter estreito contato entre seus diversos departamentos e
pesquisadores - N. do A.) provocou uma verdadeira mutação na forma de viver a política e as
vidas particulares, e que essa mudança foi fundamental para o desenvolvimento científico e
tecnológico. Mas ressalta que esse desenvolvimento nem sempre foi benéfico, “muitas vezes
levando os humanos a aproximarem-se das bestas”. Ele afirma também que o problema não está
na tecnologia, mas sim em manter os valores em que acreditamos, num mundo em que os meios
dominam os fins.

Sem controle

Para os cientistas duros, as restrições filosóficas não fazem qualquer sentido. Para eles, o
desenvolvimento tecnológico é incontrolável, e enquanto o neurocientista francês Lionel
Naccache diz que a criação de uma “inteligência consciente artificial” seria a proposta mais
ambiciosa de sua especialidade, a neurociência cognitiva, mas o faz num tom algo descrente, com
vagas alusões à cibernética e à robótica, Raymond Kurzweil cita no extenso glossário de seu livro
o teste de Turing, um procedimento proposto no longínquo ano de 1950 para aferir a capacidade
“mental” de um sistema (em geral, de um computador). O teste consiste na entrevista de um
computador por um “juiz” humano, com uma ou mais “iscas” humanas digitando respostas em
terminais ocultos. Quando o juiz não é capaz de distinguir o computador das iscas, a máquina é
considerada tão inteligente como seu entrevistador. Kurzweil aponta várias deficiências no teste,
mas afirma que por volta de 2029 os computadores começarão a passar por ele com uma placa
nas costas, não importa a sofisticação mental do juiz ou das iscas.
Os filósofos opõem, em geral, restrições éticas e - no duríssimo ambiente em que rola a
polêmica - ligeiramente utópicas ao desenvolvimento tecnocientífico incontrolável. A filósofa
Olgária Matos, doutora pela École des Hautes Études, de Paris, afirma que a ciência devia pensar
a ciência como a filosofia pensa o pensamento. “O que é a ciência, para os gregos?”, pergunta, e
imediatamente responde: primeira coisa é “isso que vou pesquisar é útil ou prejudicial? Visa os
fins últimos do sumo bem ou não? Se não, não vou pesquisar isso”. Mas ela mesma admite que a
ciência, hoje, não pensa a não ser em despertar, no futuro, um homem igualzinho ao que a
desenvolve. A dúvida de todos é saber se isso representará, ou não, um novo princípio dos
tempos.
Roberto Manera é jornalista.

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ADAUTO NOVAES
O MUNDO EM NOVA CONFIGURAÇÃO

Durante dois meses, pensadores nacionais e estrangeiros de diversas áreas - cientistas,


filósofos, sociólogos, críticos de arte, psicanalistas - percorreram cinco estados do país para
discutir um tema pouco estudado: as mutações. Todos partiram de uma hipótese geral: o Ocidente
vive hoje não propriamente uma crise das instituições políticas e culturais, das normas morais e
éticas, da sensibilidade e das mentalidades, mas uma grande mutação, fruto de dois fenômenos
incontornáveis, a globalização e a revolução tecnocientífica. Uma nova era, que dá nova
configuração ao mundo, torna obsoletas as noções de saber, poder e história e, com isso, a própria
idéia do homem e seus valores. Lemos, por exemplo, na epígrafe de Os Exilados do Diálogo, um
dos últimos textos publicados pelo filósofo francês Jean Baudrillard: Marx sempre disse que os
filósofos se contentaram em interpretar o mundo e de que agora se trata de transformá-lo, mas,
“hoje, não basta transformar o mundo. Isso já acontece de alguma maneira. O que é preciso,
urgentemente, é interpretar essa transformação - para que o mundo não se transforme sem nós, e
para que não se torne finalmente um mundo sem nós”.
Esse acontecer “de alguma maneira” é o trabalho da tecnociência. Pela primeira vez na história,
entramos em um mundo que, concebido pelo homem, certamente não é regido por ele, mas pela
ciência-poder. O grande problema que se põe é que não sabemos propriamente onde estamos e
para onde vamos porque o movimento vertiginoso da revolução técnica escapa ao entendimento.
É essa a peculiaridade dessa mutação: se tomarmos o exemplo das mutações que nos precederam
- o Renascimento e o Iluminismo -, veremos que elas foram acompanhadas não só de
revolucionárias visões de mundo na política, nas artes, nas ciências, nas mentalidades e costumes,
mas também deram origem a outras revoluções. O poeta Paul Valéry descreve assim a
multiplicidade de tendências e pensamentos das mutações anteriores, ainda concebidas pelo
homem: “Esse foi Leonardo (da Vinci). Ele inventou o homem voador, mas o homem voador não
tem servido precisamente às intenções de seu inventor: sabemos que o homem voador, montado
em seu grande cisne (il grande uccello sopra del dosso Del suo magnio cecero), tem, em nossos
dias, outros empregos que não o de ir apanhar neve no cimo dos montes para jogá-la, nos dias de
calor, sobre as calçadas das cidades... E esse outro crânio é o de Leibniz, que sonhou com a paz
universal. E esse foi Kant, Kant qui genuit Hegel, qui genuit Marx, qui genuit...”.

O homem banalizado

Pode-se perguntar então: o que gerou a revolução tecnocientífica? E certo que a idéia de
progresso foi determinante. O que acontece hoje não é “apesar” das invenções anteriores, mas
graças a elas. Pode-se dizer também que o império da técnica não é um acidente da civilização
ocidental, mas sua própria essência.
Mas o que nos interessou no ciclo de conferências “Mutações - Novas Configurações do
Mundo”, projeto do Ministério da Cultura, e “Artepensamento”, com
o patrocínio da Petrobras e apoios da Caixa Econômica Federal, do
Sesc São Paulo e da Fiat, foi responder a outras questões: a perfeição

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automática do aparelho técnico tende a desqualificar definitivamente o homem sem que se tenha
consciência do que acontece? Estamos na presença da “inauguração de um mundo sem homem”,
um mundo, como diz ainda Baudrillard, que não precisa mais de nós, que implica o
desaparecimento de qualquer sujeito, seja do poder, do saber ou da história? Uma primeira
resposta a essas questões pode ser lida neste número de Caros Amigos: com o surgimento da
inteligência artificial e as idéias de trans-humano e pós-humano, com o descontrole do tempo
histórico e a canalização da experiência humana e com as transformações nos sentidos do amor e
da amizade, estaria o homem renunciando definitivamente ao seu destino?

Progresso x Moral

Em um ensaio publicado recentemente, o filósofo Jacques Bouveresse afirma que a crença


romântica nas virtudes do progresso científico e técnico decorre do fato de as pessoas julgarem a
situação atual “em função de conceitos que cessaram há muito tempo de se aplicarem e que falam
dela em uma linguagem completamente ultrapassada, esquecendo-se de que um processo que se
tornou completamente autônomo e cego e que quase se faz no essencial sem o homem e mesmo,
em certos casos, contra ele, não deveria suscitar nenhuma exaltação romântica. O progresso de
um lado e a moral convencional de outro parecem ter feito hoje uma aliança de ataque à natureza
em geral e à natureza humana em particular”. Bouveresse cita ainda Karl Kraus: (O progresso)
inventou a moral e a máquina para expulsar da natureza o homem e do homem a natureza. Um
fragmento do livro Condição do Homem Moderno, de Hannah Arendt, impressiona pela
proximidade do que escreveu Kraus e pela condição trágica do nosso tempo: “E possível que nós,
criaturas terrestres que começamos a agir como habitantes do universo, não sejamos mais capazes
de compreender, ou seja, de pensar e de exprimir as coisas que, no entanto, somos capazes de
fazer. Nesse caso, tudo se passaria como se nosso cérebro, que constitui a condição material,
física de nossos pensamentos, não pudesse mais acompanhar o que fazemos, de modo que
doravante teríamos realmente necessidade de máquinas para pensar e para falar em nosso lugar.”
Texto impressionante pela crueza da forma e pela precisão, que levou Gerard Lebrun a
comentar que é agora que temos “realmente necessidade” de máquinas, “mas como muletas, a tal
ponto que o uso desses aparentes gadgets que não tínhamos vocação de dominar nos aleijou. Pior
ainda: habituados a serem superados pelas maravilhas crescentes da técnica, no sentido em que se
é 'superado pelos acontecimentos', os humanos quase perderam a idéia de que valeria a pena
dominar esse progresso...”.

Espírito em perigo

Mas a mutação mais aterradora é a do espírito. Entendemos por espírito a “potência de


transformação” do mundo. Ora, o trabalho puramente funcional e técnico que lhe é atribuído pela
tecnociência tende a suprimi-lo. Diante daquilo que o próprio espírito produziu de mais racional
ao
longo da história, não só no campo dos objetos, mas também no do pensamento, o que esperar?
A resposta de Valéry, “angustiante e angustiada”, parece evidente: o espírito tornou-se impossível
- impossível porque supérfluo. Lemos em muitos de seus ensaios a advertência: O espirito sofre
perigo mortal. A conclusão a que se pode chegar com Valéry é que, enquanto a precisão científica
entrou, pouco a pouco, no comércio do homem com a natureza, “as relações do homem com o
homem permaneceram dominadas por um empirismo detestável”.
Com o espírito, toda a nossa civilização está em jogo. Seja pelo excesso de precisão ou pelo
excesso de potência, seja pelo rigor inumano ou pela bruta precipitação de tudo, escreve Édouard
Gaède, um dos comentadores de Valéry, a civilização está prestes a se destruir por seus próprios
meios. A ordem absoluta que o espírito quis imprimir ao mundo volta-se, pois, à sua perda. A

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imagem que reflete a impotência do espírito hoje é de Valéry: “Estamos na situação de um
jogador que percebe com espanto que a mão do seu parceiro lhe dá cartas jamais vistas e que as
regras do jogo são modificadas a cada lance. Nenhum cálculo de probabilidade é mais possível e
ele nem pode mais lançar as cartas contra seu adversário. Por quê? Porque, quanto mais ele o
encara, mais se reconhece nele!... O mundo moderno forma-se à imagem do espírito do homem”.
Adauto Novaes é jornalista e professor,
foi diretor durante 20 anos do Centro de Estudos e Pesquisas da
Fundação Nacional de Arte/Ministério da Cultura.

NOSSA MULHER NO FUTURO


Quando se formou em Física pela Universidade de São Paulo, em 1976, Maria Cristina Batoni
Abdalla Ribeiro já estava longe à frente de seus colegas de classe. Ela se apaixonara pela ciência
ainda na puberdade, por influência de um primo que depois de formado no mesmo curso voltara
para a pequena cidade de Amparo, na divisa com Minas Gerais, e a iniciara na matéria. 0 primo
devia ser um grande professor, porque aos 13 anos, recém-entrada no segundo ciclo, Cristina já
dava aulas de Física num curso de madureza (o antigo supletivo) de Amparo. Depois de 17 anos
de mestrados, doutorados e pós-doutora-dos no Brasil, na Alemanha e na Dinamarca, tornou-se a
primeira, e até agora uma das poucas brasileiras a estagiar no CERN (Centro Europeu para a
Pesquisa Nuclear) onde uma multidão de cientistas - principalmente físicos - se empenha em
instalar o LHC - Large Hadron Collider, ou Grande Colisor de Hádrons - o acelerador de
partículas que a Comunidade Européia está construindo em Genebra, na Suíça, cujo tubo,
construído com materiais especiais, como o nióbio, percorre um túnel circular com 27
quilômetros de circunferência a 100 metros da superfície. O LHC é um acelerador de partículas
subatômicas e custou a 20 países europeus e várias outras nações colaboradoras 10 bilhões de
francos suíços - algo em torno de 15 bilhões de reais. É tido como o mais ambicioso - e caro -
instrumento científico já construído pela Humanidade.
A partir de maio de 2008, quando o formidável artefato entra em efetiva operação, Maria
Cristina e outros físicos teóricos de todo o mundo começarão a ver comprovadas ou negadas suas
teorias sobre o acontecimento que quase todos eles têm como certo: o Big Bang - uma explosão
cósmica ocorrida a 13,7 bilhões de anos, que teria dado origem a todo o universo que
conhecemos.
“Isso significa que os cientistas do CERN poderão provocar, em escala reduzida e sob controle,
o mesmíssimo acidente que gerou o universo” - explica a cientista, que desde 1990 é professora
livre-docente do Instituto de Física Teórica da Unesp, e atualmente membro eleito do conselho
deliberativo do Instituto.
Maria Cristina já publicou seis livros, três deles no exterior. No Brasil, é autora de uma obra
sobre a vida do dinamarquês Niels Bohr, autor de uma revolucionária teoria sobre a estrutura do

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átomo, no início do século passado; de um instigante livro sobre a estrutura do microcosmo - “O
discreto charme das partículas elementares” -; e, junto com o também físico Thyrso Villela Neto,
de uma espécie de guia de introdução ao conhecimento astronômico - “Novas janelas para o
universo”. Na apresentação deste último livro, fica bem clara a naturalidade com que a ciência de
hoje encara fatos e coisas que até uns poucos anos atrás eram tratadas como ficção: lá, Maria
Cristina começa dizendo que “descobrir o universo em que vivemos sempre foi uma das
atividades mais importantes e divertidas das nossas vidas”.
E com esse mesmo espírito que, na qualidade de quem melhor conhece o projeto e as metas do
gigantesco LHC entre os cientistas brasileiros, ela encara a tarefa de traduzir em miúdos - mas,
atenção: a segunda parte de seu artigo exige constantes consultas a, pelo menos, um bom
glossário técnico - como foi construída e quais serão as tarefas programadas para a imensa
instalação franco-suíça com a qual se espera, um tanto candidamente aos olhos dos não-iniciados,
recriar o universo.
Roberto Manera é jornalista.

MARIA CRISTINA BATONI ABDALLA


DE VOLTA AO INÍCIO
O MAIOR ACELERADOR DE PARTÍCULAS JÁ CONSTRUÍDO ENSAIA O BIG BANG

A física que pesquisa os fenômenos da natureza a altíssimas energias está prestes a entrar em
uma nova era. Os instrumentos científicos que foram construídos para essa aventura superam, em
várias ordens de grandeza, tudo o que já foi feito até hoje, seja em termos da tecnologia
empregada, seja no que tange à construção civil ou ainda em termos de verba orçamentaria: seu
custo chegou perto dos 10 bilhões de francos suíços (cerca de 15 bilhões de reais). Em maio de
2008, o LHC {Large Hadron Collider - Grande Colisor de Hádrons) entra em operação!
O LHC é um acelerador de partículas subatômicas - O maior, o mais rápido e o mais
sofisticado instrumento científico jamais concebido -, certamente o experimento que reuniu o
maior esforço humano desde os primórdios de sua civilização. Congrega 6.500 cientistas de
quinhentas universidades de mais de oitenta nações. Imagine um enorme túnel subterrâneo (a 100
metros abaixo do solo), de 37 quilômetros de circunferência, por onde dois feixes de partículas,
viajando em sentidos opostos, com velocidades próximas à da luz, se chocam em pontos
escolhidos onde detetores imensos e ultra-sensíveis observam com olhos eletrônicos as colisões
dessas partículas pequeninas. O resultado é a formação de um spray de novas partículas
reproduzindo, no laboratório, a energia liberada instantes após o Big Bang. A análise cuidadosa
desse spray nos revela detalhes da estrutura da matéria. No LHC, as partículas aceleradas são
prótons e a energia das colisões é de 14 Tera elétron-Volts (TeV = 10¹² eV). Essa é a idéia do
Grande Colisor de Hádrons, pois prótons são hádrons (partículas que sofrem a chamada força
forte, um dos tipos de força na física nuclear). A circunferência do túnel é um limitante para a
energia que o feixe pode adquirir. Outro parâmetro importante é a intensidade do feixe. Quanto
maior a intensidade, maior o número de colisões.
Construído no laboratório franco-suíço CERN (Centro Europeu para a Pesquisa Nuclear), nas
proximidades de Genebra, Suíça, uma vez em operação, a tarefa do LHC será sondar
profundamente a constituição íntima da matéria e explicar alguns dos mistérios que ainda rondam
as teorias mais modernas da física. Do micro ao macro, perguntas ainda sem resposta, tais como:
vamos de fato descobrir o Higgs, essa misteriosa desconhecida que seria responsável pela geração
de toda a massa do universo? Quais seriam as razões pelas quais nosso universo preferiu a
matéria à antimatéria? O que é o plasma cósmico primordial gerado pelo Big Bang? Qual seria a
natureza da energia escura que permeia o vácuo acelerando a expansão do universo? Nosso
espaço-tempo teria dimensões extras, como preconiza a teoria de cordas? Todas essas questões

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não são respondidas pelo atual Modelo Padrão, pois, apesar de este ter sido o modelo mais
testado de todos os tempos, é ainda incompleto. O LHC permitirá buscar pistas para tais
respostas.
A concepção do LHC surgiu na década de 70, antes mesmo do seu precursor LEP - Large
Electron Positron - ter sido construído. O LEP, instalado na década de 80 no mesmo túnel de 37
km, acelerava em direções opostas elétrons e pósitrons (a antipartícula do elétron). Produziu
resultados importantes de grande precisão que foram agregados ao Modelo Padrão. Produzia
feixes com energias de Giga eV (GeV = 10^9 eV). Obsoleto, o LEP foi desmontado. Hoje, o túnel
abriga o LHC, responsável pelo sistema de aceleração dos feixes de prótons e quatro novos
detetores: ATLAS, CMS, ALICE e LHC-b, responsáveis pela observação e pelo registro das
colisões. Cada detetor exibe características distintas e sofisticadas bem peculiares. Foram
construídos em imensas cavernas (a do CMS é a maior do mundo), constituindo uma magnífica e
complexa obra de engenharia civil. O armazenamento e a análise computacional dessas colisões
são um problema gigantesco. Os dados chegarão à casa dos exabytes (10^18 bytes) por ano.
Concebida especialmente para esse fim, a EDG - European DataGrid - conecta centenas de
milhares de computadores espalhados pelo mundo. Hoje, a transferência de dados entre o CERN
e a Califórnia é de 10 Gigabytes por segundo. Iniciar-se-á uma nova era de trânsito mundial de
dados, com bandas excepcionalmente largas. Lembre que foi no CERN que a WWW nasceu,
dando origem à Internet com um protocolo livre.
Manter os feixes de prótons estáveis circulando no túnel a velocidades próximas da velocidade
da luz não é uma tarefa fácil. Para isso se usa uma tecnologia altamente sofisticada, baseada na
supercondutividade. Para criar campos magnéticos intensos que pudessem domar os feixes,
mantendo-os numa trajetória curva ao longo dos 27 km, foi preciso usar ligas supercondutoras de
nióbio e titânio que conduzem a eletricidade sem resistência. Coloque tudo isso imerso num
banho de gás de hélio (96 toneladas) que se torna um superfluido a -271,3ºC (1,9 K) e temos a
temperatura na qual o LHC vai funcionar, ou seja, próximo ao zero absoluto! Como a temperatura
do universo é -270,5ºC (3,7 K). o LHC será o local mais frio do universo.
O CERN mantém uma política de transferência de tecnologia à sociedade, pois as descobertas
são incorporadas na medicina (terapia de câncer, tecnologia de imagens, instrumentos de medida,
radioterapia, tomografias com emissão de pósitrons (PET), produção de radiofármacos,
hadronterapia, anti-hadronterapia), na informação, na climatologia, na computação, na eletrônica,
na produção de materiais resistentes etc. Além de produzir uma quantidade imensa de tecnologia
nova, o LHC certamente mudará nosso entendimento sobre o universo, um conhecimento que não
tem preço.
Maria Cristina Batoni Abdalla é física teórica
e professora livre-docente do Instituto
de Física Teórica da UNESP

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THIAGO DOMENICI
É PRECISO RECONQUISTAR O TEMPO
Olgária Matos, filósofa renomada, doutora pela École des Hautes Études, de Paris, e professora
aposentada da USP, ganhadora do prêmio Jabuti de 1990 com o livro Os arcanos do inteiramente
outro - a Escola de Frankfurt, a melancolia, a revolução (ed. Brasiliense). Nessa entrevista
concedida em sua casa, na zona sul de São Paulo, ela fala do “conceito de tempo e suas mutações
no inundo contemporâneo”. Por exemplo, sua resposta à idéia geral de que hoje as pessoas não
têm tempo é, resumida, a seguinte: “a forma mais perversa (...) é a alienação do tempo, você não
ser senhor do seu tempo, você é determinado pelo tempo das coisas e não escolhe mais sua vida.”
Sobre a hiperatividade dos dias atuais, ela diz que é fazer muitas coisas com nenhum sentido. E
que as pessoas querem matar o tempo porque não sabem o que fazer com o tempo livre. Uma
visão instigante sobre os dias de hoje.

Gostaria que a senhora falasse o que é o tempo e o que são as mutações do tempo?

Santo Agostinho diz: “quando não me perguntam o que é o tempo eu sei, quando me
perguntam eu já não sei mais”. Porque o tempo pode ser acelerado em anos, pode ser
extremamente longo em segundos, são experiências muito diferentes as que a gente pode falar
sobre o tempo. No mundo contemporâneo, a impressão que dá é que existe um “não tempo”, uma
experiência do tempo que não passa, porque ele não se faz mais com experiências. Na verdade,
experiência supõe uma relação de conhecimento com valores e acontecimentos do passado que
são transmitidos das formas mais diversas. Os antigos tinham muito essa idéia - até recentemente
tínhamos, até pelo menos o século 19 - de que era preciso resistir aos embates do infortúnio, quer
dizer, reagir aos acontecimentos inesperados e catastróficos para continuar vivo. As parábolas e
fábulas tinham esse sentido de ensinamento. Hoje não temos mais tempo para essa tessitura
coletiva das experiências dos sonhos, das expectativas.

E por que a gente não tem mais tempo?

Tanto no mundo grego quanto na Idade Média até o Renascimento você tem a idéia do mundo
perfeito. Que é o cosmos grego? É um todo, fechado, onde cada coisa ocupa o lugar que lhe é
próprio na ordem da criação. o otimismo grego achando que o homem nasceu para a felicidade,
sua destinação é a felicidade, ele pode escolher os meios para chegar à felicidade. Agora, os fins
últimos ele não escolhe. Então é muito tranqüilizador esse universo, não é habitado por nenhum
desejo de autoridade, ele já está no perfeito, já está na verdade, e a possibilidade de conhecimento
é sempre no sentido de um aprimoramento de si, de um cuidado de si. Na Idade Média você tem a
criação divina, ali já é a emanação da beleza invisível transcendente. Quando chega o século 16,
17 se acaba a idéia de universo finito e entra em cena o universo infinito. A idéia de limite, que é
uma idéia grega, passa a ser entendida como barreira, como privação, e essa idéia de infinito e de
deslimite está na base dos esportes radicais, das performances até a morte, da obesidade mórbida,
do uso imoderado de drogas, enfim, todas as formas do excesso, do deslimite. Além do que a
modernidade, a partir dos séculos 17 e 18, começa a elogiar a paixão - a paixão é o excesso, e a
nossa cultura valoriza o excesso.

É aí que entra a história do tempo qualitativo e do quantitativo?

Vamos supor: como era a sobrevivência na Idade Média? Era, sobretudo, no campo, então você
tinha que seguir as estações do ano, as colheitas, a plantação, o tempo de trabalho não se sabe

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exatamente, mas a média devia ser umas quatro horas por dia, no máximo. Era um tempo
qualitativo, porque você seguia aquilo que era da natureza das coisas. Por exemplo. trabalhar
antes do nascer do sol ou depois do pôr-do-sol era considerado imoral, era pecado, porque você
desafiava a ordem da criação. Com o advento da luz elétrica, no século 19, o dia passou a ter 24
horas, o trabalho noturno entrou com uma voracidade de consumir todas as forças do homem, até
o fim - isso foi o capitalismo do século 19, e está voltando. Antes tinha um tempo na Grécia, em
Roma, na Idade Média e nas religiões que era um tempo livre, mas o que era o tempo livre? Era
um tempo totalmente autônomo com relação às necessidades materiais da sobrevivência, um
tempo que você dedicava à contemplação, por mais indefinida que pra nós seja essa palavra
contemplação. Você não se entretinha com nada que dissesse respeito à materialidade da vida, era
a liberdade absoluta. Hoje não temos mais essa idéia de tempo livre, já é preenchido de coisas,
então você tem um tempo inteiramente espacializado, não é mais qualitativo, ele não diz respeito
a propriedades representativas de um acontecimento, de uma pessoa ou de um desejo. Essa idéia
de que você não tem tempo é a forma mais perversa da alienação. Marx já dizia isso, a forma
mais perversa não é a alienação do trabalhador com relação ao produto do seu trabalho e ao
sentido do trabalho, é a alienação do tempo, você não ser senhor do seu tempo, você é
determinado pelo tempo das coisas e não escolhe mais a sua vida. É o que está acontecendo hoje.
Você vê, por exemplo, que um empresário trabalha 24 horas e não pára um segundo - esse
empresário na visão de um homem da Idade Média vivo pior do que um servo da gleba. São
mutações na experiência do tempo e na maneira de vivenciá-lo. Independentemente da
modalidade do acúmulo do capital e da distribuição da riqueza, esse capitalismo acelerado, que é
o das nanotecnologias e tal, é uma coisa extremamente nova no seguinte sentido: se você pensa
no capitalismo até a década de 30, ou até pelo menos até a Primeira Guerra Mundial, havia uma
autonomia da política com relação à economia, tanto que a economia tinha que pressionar a
política para que a política revisasse seus interesses de acumulação. Quando isso não acontecia,
tinha guerra, tinha ditadura, para forçar a política a realizar os desígnios da economia. Hoje não,
há uma total fusão entre a economia de mercado e a sociedade de mercado, não há mais espaço
de autonomia, porque a política nada mais é do que a realização do status quo econômico. Você
não tem esse espaço mínimo que se chamava espaço público. E não pode ter liberdade política se
está raciocinando em função do que a economia permite e do que ela não permite. Então, essa
liberdade está tendendo a desaparecer, porque o realismo político está tomando o lugar da
inteligência social.

A senhora aborda em suas palestras a questão do tédio, da monotonia e do desejo de


“matar o tempo”. A gente não tem tempo e ao mesmo passo quer matar o tempo...

Recentemente foi feita uma pesquisa na França para ver as experiências do tempo nas
metrópoles, nas classes A, B, C e D. As pessoas que não tinham tempo nenhum mesmo, para
nada, eram os desempregados. Eles sentiam a sensação de que não tinham tempo. Provavelmente
assim: um dia faz o currículo, no outro dá um telefonema, outro dia espera uma resposta e assim
vai. Então é um tempo totalmente vazio, sem sentido e também tem o seguinte: como há uma
sensação, vamos dizer, transversal na sociedade, de que ninguém tem tempo, esse “não tempo”
acaba afetando a todos, não diz respeito só àqueles que não têm tempo. Quem tem tempo acaba
sentindo que não tem, é uma coisa estranha que acontece. A hegemonia do tempo dominante é
assimilada por todos, não vai para uma classe só, racionalmente localizada, porque ela trabalha
24 horas, não, é algo que se espalha por toda a sociedade. Então, esse sentimento de não ter
tempo é a manifestação de algo estrutural na sociedade, que é o trabalho. O trabalho é totalmente
esvaziado de sentido, no mundo capitalista, com a automação do movimento do gesto do
trabalhador. Quem captou muito bem a modernidade do tempo completamente sem sentido do
trabalho alienado foi Kafka. No livro O Processo, por exemplo, quando o personagem chega para

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tentar descobrir qual é a condenação e nunca vai saber qual é a sua culpa e nem qual é a
condenação, O que ele vê? Vê um funcionário espancando um sentinela e pergunta: “Por que
você está espancando?” O funcionário não pára de espancar e fala: “fui contratado pra espancar,
então espanco”. É o trabalho alienado. Marx diz assim: “Quando o homem está no lugar de
trabalho, ele se sente fora de si, só se sente junto a si quando está fora do trabalho”. O trabalho
continua sendo o trabalho alienado que esmaga fisicamente ou espiritualmente, porque não tem
sentido nenhum. Agora, a monotonia contemporânea é o tempo da longa duração, e no
capitalismo essa longa duração é insuportável, por isso as pessoas querem matar o tempo, porque
não sabem o que fazer com o tempo livre.

Tem a questão da tecnologia no nosso tempo, parece que quanto mais tecnologia temos
menos tempo, não?

As tecnologias fazem parte desse desejo de novidade, mas não são o novo. Porque o novo é
muito raro acontecer, a última grande invenção da ciência deve ter sido no século 19, comecinho
do século 20. Agora estão desenvolvendo o que já foi descoberto até a Primeira Guerra Mundial
ou por volta disso. Mas você tem uma pulsão da novidade. Porque, como o que domina todo o
imaginário, todo o ritmo da vida biológica e todo o ritmo da vida cotidiana é a produção e o
consumo de mercadorias, a consciência disso está pautada pela sucessão e substituição rápida do
mesmo. Quer dizer, imagine no século 19 o que deve ter sido a primeira experiência da produção
em série, quando se vê o objeto único aos milhares. Essa experiência de vertigem, de alucinação,
que é o mesmo que estar em algum lugar e ter um outro igualzinho a mim, milhares de pessoas
todas do mesmo jeito, parecendo o mesmo, produz uma monotonia terrível. O mesmo objeto
milhões de vezes é totalmente insuportável; como você vai consumir, se tudo é a eterna volta do
mesmo? A não ser produzindo pequenas diferenças de objeto para objeto que não querem dizer
absolutamente nada, mas criam a ilusão da individualidade. Você perguntou da tecnologia. O que
o Marx dizia? Você tinha a infra-estrutura da sociedade, que é o modo de produção e o modo de
apropriação, e tinha uma superestrutura, que eram as produções culturais da sociedade - arte,
religião, filosofia, ideologia, ciência e tecnologia. A ciência e a técnica faziam parte das
produções culturais, espirituais, da sociedade. Hoje a ciência e a técnica são força produtiva.
Estão diretamente vinculadas ao aumento do capital, não têm mais autonomia nenhuma. O
acúmulo do capital depende da tecnologia, que depende do desenvolvimento econômico. Então,
como virou infra-estrutura, a ciência também está comprometida no não-pensamento. Porque, do
ponto de vista do conhecimento, você não tem mais a ciência, porque ela é predominantemente
pragmática-operatória, cada vez operando mais com as agências de financiamento privadas ou
com as agências de Estado. Por exemplo, a NASA, a ciência dos Estados Unidos é diretamente
ligada ao departamento da guerra, direto! Na França há um pouco mais de autonomia, na
Alemanha também, na Inglaterra não sei, deve haver, e no Brasil não existe. Então você tem a
substituição da lei - que é o conhecimento das sutilezas da ciência e das suas mutações - para o
funcionamento automático do pensamento. O que é a Fuvest senão o pensamento do computador?
É o estudante mais rápido, que pega a pegadinha mais rápido. É o vazio do pensamento com
funcionamento automático, então não tem pensamento. Tudo isso vem da predominância de uma
racionalidade da ciência que é do tipo matemático-algébrico-analítico, portanto, abstrato,
esvaziado de sentido, e você tem o mecanismo do pensamento, todo um arsenal de dispositivos
lógicos, vazio. Esse não-pensamento resulta, na hora do consumo, em não saber consumir. Quer
dizer, você já não sabe produzir, não sabe fazer, porque aplica a fórmula. Você não tem mais um
saber, tem um know-how, e na hora do consumo não tem um “saber viver”. Antes você tinha a
filosofia, a ciência, a arte, a religião, tudo que ao longo do tempo era te prover de um saber fazer,
era um saber viver. Hoje você está em descompasso entre o que precisa e o que consome. Aí
consome o que não precisa e precisa daquilo que não consome. Esse mal-estar da temporalidade

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veio da não-coincidência do que você tem e o que você deseja, mas você não deseja o que tem e
aí, obviamente, como o desejo é infinito, veja só, o capitalismo veio para ficar, porque - como
toda tradição filosófica e religiosa fala - somos seres carentes, seres desejantes, então a tendência
é preencher o vazio da carência com objetos de satisfação. Ora, o capitalismo produz a carência,
ele não quer preencher uma necessidade, quer criar necessidades ao infinito. Então, com essa
diferença minimal de um objeto a um objeto para você continuar consumidor, é o tempo do
consumo que determina o tempo interno. E o tempo da subjetividade você não tem mais. Como
você percebe isso hoje? Todas as experiências humanas que necessitam de tempo, da longa
duração, ficam comprometidas: amizade, relação pais e filhos, amor.

E o que esperar do futuro?

Veja só, a promessa exige longo prazo. Quando você promete alguma coisa, está incluída a
idéia da dúvida, você não sabe se vai conseguir cumprir ou não. Então precisa do tempo longo
para saber se cumpriu a promessa. A idéia do juramento era assim. Não havia possibilidade de
romper um juramento a não ser sendo perjúrio. Hoje é ridículo alguém jurar ou prometer alguma
coisa, porque sabe que não vai cumprir, e se cumpriu foi por acaso. Então todo esse tempo de
expectativa e, portanto, de futuro, está totalmente desaparecido. Hoje só se fala do futuro para
justificar o que é o presente, não existe mais a idéia do tempo longo e o que vai acontecer. E o
mal-estar vem muito dessa dissolução da idéia de futuro. E como a gente fala de futuro? Fala em
mercados futuros, o futuro virou mais um valor de troca. Então quando se fala: “os jovens não
têm expectativa de futuro” - não têm um monte de coisa porque não têm expectativa de futuro e
não sabem o que fazer com o tempo. Porque esse capitalismo produz uma cultura e uma educação
cuja atividade cerebral é próxima a zero. É pulsional, eu quero, vou lá e pego. Aí quer que a
juventude faça o quê? Vira delinqüente ou vira entediado. Porque o tempo que lhe é imposto
como a forma por excelência da vida é o consumo de bens materiais. Sem nenhum ideal de
espírito. E a técnica e a ciência se desenvolvem não sabendo para onde vão.

A ciência não pensa no ser humano?

A ciência não pensa. Ela faz. O mundo contemporâneo não pode ter filosofia, porque a filosofia
pensa o pensamento. A ciência deveria pensar a ciência. O que é a ciência para os gregos?
Primeira coisa é: “Isso que vou pesquisar é útil ou prejudicial? Visa os fins últimos do sumo bem
ou não? Se não, não vou pesquisar isso”. A energia nuclear é uma tecnologia não-poluente. Meu
Deus! Leva milhões de anos para acabar a toxicidade e não é poluente? Por que? Porque não
pensa. Porque se você dissesse: “Não, isso nós não vamos fazer porque o risco é morrerem
tantos”. O fato de haver risco levaria a pesquisar outras coisas. Mas esse capitalismo é inimigo do
pensamento autônomo, é inimigo da liberdade, é inimigo da vida feliz e da vida justa. E não é um
capitalista, é o capitalismo! É uma estrutura alienada que abrange também o burguês, que
também está vitimado por essa compulsão ao consumo, a compulsão à produção sem sentido
nenhum.

Cientistas falam que daqui a quarenta anos a inteligência artificial será algo palpável,
estão até discutindo a ética dos robôs. Qual poderá ser a função deles no futuro?

Não dá muito para antecipar, mas há um tempo atrás houve uma discussão no Parlamento de
Tóquio se devia ou não estender os direitos humanos aos robôs inteligentes. Isso é um fenômeno
que o Marx estudou e é a pessoa que foi mais longe, falando da inversão do inanimado em
animado. O inanimado toma o lugar do homem. E é claro que você pode falar em direitos
humanos para robôs, porque eles não são praticados para as pessoas. Talvez sejam para as coisas,

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porque a alienação é um fenômeno em que as coisas ocupam o lugar do que é vivo. Então é bem
possível. Você vê o jeito como as pessoas cuidam do carro no domingo de manhã, eles lavam com
um cuidado que certamente não têm com os filhos. Agora, esse é o final da coisificação. A ciência
moderna confunde liberdade de pesquisa com onipotência, só que não tem idéia de limite. Quer
dizer, atividade zero de pensamento. A sociedade do narcisismo e o narcisismo é uma coisa de
não saída de si, não é o ideal de ego, é o ego ideal, fica imerso em si mesmo, não chega ao outro.
A tendência disso são as sociedades da incivilidade, porque o outro não existe. Há pesquisas com
crianças que ficam na frente de computador, o que, do ponto de vista de amadurecimento
psicológico e, portanto, da progressão do narcisismo e da onipotência é muito ruim. Você dá o
comando e ele responde e isso aí aumenta muito a onipotência. A ciência é onipotente, e as
pessoas também querem que aconteça na hora. Você vê a própria educação. A educação é um
negócio chato. Por que? Porque a criança vai para a escola e tem que ficar sentada, e ela gosta de
ficar correndo, de quebrar coisas, de subir na parede. Tem aqueles mais quietos, mas, então, o que
é? “Ah, agora você tem que aprender a escrever.” Ah, então tem que fazer esse movimento, aí
você tem que ficar sentado. Então, o que é a educação contemporânea no Brasil? Porque a
educação está em crise? Por que a evasão escolar? Porque a escola não está adaptada à realidade
da criança. A escola é para tirar a criança da sua realidade e criar outros hábitos. Agora, o que
você faz? A criança não está adaptada, então vamos adaptar, vamos fazer massinha, vamos não
sei o quê. É um tédio fora do comum. E o que acontece? A criança quebra a escola. O adolescente
quebra a escola, porque ele vai fazer dentro da escola o que ele já faz melhor fora. Já faz capoeira
fora. “Ah, vai fazer capoeira”. Porque “para pobre o pouco está bom”. Então, dá um pouquinho
de capoeira que ele já faz, porque essa é a realidade dele. Por que não dá um Mozart, uma aula de
violino para ele? “Ah, não. Para pobre, o pouco está bom”. Tudo é assim, essa idéia de tudo
rápido, tudo um pouquinho, emprega na educação. Leitura? Não tem nada mais que exija tempo
do que leitura. Como é que você ensina o português? A tendência é essa hoje no mundo inteiro. O
novo presidente francês Sarkozy quer tirar a literatura do currículo francês. Uma barbárie. Então,
tudo o que exige tempo, quer dizer, a educação, quando ela começa a imitar esse tempo
acelerado, não fala mais nada. A educação não é para te dar um pouquinho de instrumento para
você se dar bem na vida e ficar rico ou ter ascensão social. Não é isso. A educação é para te
ensinar a ter paciência, as grandes obras de literatura são as obras que elaboram o teu rumo
interno. Você tem que entender aquilo e ao entender, você se entende melhor, então é todo um
mundo que desaparece. Tem que ensinar a estimular o pensamento...
O português, por exemplo, nos parâmetros curriculares nacionais consta assim: “O ensino da
Língua Portuguesa visa criar cidadãos responsáveis.” Pronto. Quer dizer, não tem literatura. Aí a
criança é analfabeta secundária por quê? Porque não aprendeu a ler através da literatura. Então na
hora que você pega um texto mais complexo, não dá para entender. Essa idéia de que a educação
tem que atender a sociedade é a incivilidade absoluta. Você dá um pouquinho rápido e só. Você
não tem todo o tempo da educação, que é o tempo de aprender a lidar com o tédio. Agora, essa
escola é o tédio, ela não ensina a lidar com o tédio. Porque o tempo não existe, você tem que
passar rápido para outra coisa.
Thiago Domenici é jornalista.

ANA LUIZA MOULATLET


A TECNOLOGIA PODE NOS APROXIMAR DAS BESTAS
Em seu texto “As Mutações do Poder e os Limites do Humano”, o filósofo Newton Bignotto
analisa as formas de dominação e as configurações políticas criadas pelo homem ao longo da
história, levando-nos a refletir sobre a intolerância, o autoritarismo e o abuso de poder. Afirma
que as experiências relatadas pelas vítimas dos regimes extremos nos fazem pensar sobre os
limites de uma natureza submetida ao quase aniquila-mento. E diz que “essa nova fronteira da dor

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abre a possibilidade de explorar uma dimensão de nossa humanidade”, enquanto acompanhamos
essa “descida aos infernos”, provocada pelos regimes totalitários.
À luz do conceito de biopoder, de Foucault, Bignotto analisa esses regimes totalitários, que nos
mostraram a intolerância. O que torna única a intolerância hoje é a sua associação ao discurso das
ciências. Em entrevista à Caros Amigos, Bignotto diz que, “mesmo quando as associações são
falsas, como no caso do uso da genética para a justificação de uma suposta superioridade racial, o
recurso aos termos científicos cria uma aura de legitimidade, que pode se transformar em uma
ferramenta eficaz para garantir o domínio do Estado por grupos políticos, que defendem idéias
extremas e não admitem contestação”.
Por isso, as descobertas científicas e o avanço da ciência têm que ser vistos com muita
precaução, como, por exemplo, o surgimento da Internet: “O aparecimento da Internet é um dado
fundamental de nossa época. Ela provocou uma verdadeira mutação em nossa forma de viver a
política e nossa vida particular”. Entretanto, a contínua mudança da condição humana em função
das descobertas científicas e do desenvolvimento de novas tecnologias “nos levou muitas vezes a
nos servirmos dos produtos da invenção humana para nos aproximarmos das bestas”. Bignotto
acredita que o problema não é a tecnologia; não precisamos fugir dela. “O problema é como
manter valores, nos quais acreditamos, num mundo em que os meios dominam os fins.”
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisador do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico e membro do Conselho Curador da Fundação
Municipal de Cultura de Belo Horizonte, Newton Bignotto também é doutor pela École des
Hautes Études en Sciences Sociales, e tem pós-doutorado pela Université de Paris VII -
Université Denis Diderot e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Escreveu sete
livros; o último deles, Republicanismo e Realismo - um Perfil de Francesco Guicciardini, foi
lançado pela editora UFMG em 2006.

O senhor cita o biopoder, conceito de Michel Foucault. Os jornais noticiam com


freqüência que a ciência descobre vários genes que explicariam certos comportamentos
humanos, por exemplo, que foi encontrado o gene do homicídio. Sabemos que seres
humanos são sistemas abertos, como a meteorologia e como a economia, portanto
imprevisíveis. O senhor acha que o biopoder pode se converter numa nova eugenia?

O conceito de biopoder, tal como apresentado por Foucault e Giorgio Agamben, diz respeito ao
fato de que a vida natural dos homens passou a estar no centro dos mecanismos de poder. O
biopoder foi plenamente desenvolvido nos Estados totalitários, em particular com o recurso aos
campos de concentração. O aparecimento dessa forma de mando, e sua consolidação como uma
das possibilidades da vida em comum dos homens, é que deve servir de alerta. Não há como dizer
simplesmente que, com o final da Segunda Guerra Mundial e a derrocada do bloco soviético, as
democracias venceram e a barbárie não retornará. Ao contrário, o que a idéia de biopoder nos
ajuda a compreender é que, ao transformar o corpo biológico em alvo de suas ações, ao tornar
supérflua a existência de laços entre os homens derivados de sua história e de sua inserção na
comunidade à qual pertencem, os Estados totalitários passaram a fazer parte dos horizontes da

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política e se transformaram em uma ameaça, que não pode ser desprezada, se quisermos pensar
nas mudanças ocorridas na cena pública do último século.

Foucault diz que o homem é um projeto recente e que “tende a desaparecer da história
como um rosto desenhado na areia do mar”. A seu ver as tecnologias que nós mesmos
criamos e que hoje imperam na nossa vida podem contribuir para isso? As condições que
nós criamos para o mundo em que vivemos acabarão nos dominando?

Desde o início da modernidade, a idéia de que o homem é um ser que cria sua própria condição
fez parte do arsenal teórico da filosofia política. Pico delia Mirándola, em sua célebre Oração da
Dignidade dos Homens, afirmou que podemos tanto nos comparar aos seres superiores quanto
nos degenerar em bestas. Ora, o que assistimos ao longo dos últimos séculos foi a contínua
mudança da condição humana em função das descobertas científicas e do desenvolvimento de
novas tecnologias, o que nos levou muitas vezes a nos servirmos dos produtos da invenção
humana para nos aproximarmos das bestas. A constatação dos riscos que passamos a correr com o
crescente domínio da técnica não pode, no entanto, nos conduzir a buscar soluções impossíveis de
serem alcançadas. Não há um ponto ao qual poderíamos retornar para nos livrarmos dos estorvos
criados pela tecnociência, pois em seu desenvolvimento ela criou as novas fronteiras de nossa
condição. A questão, portanto, não é a de fugir da tecnologia, refugiando-se em lugares que
supostamente estão a seu abrigo. O problema é como manter valores que acreditamos num
mundo em que os meios dominam os fins, que por vezes nem mesmo sabemos identificar quais
sejam.

Einstein, numa frase clássica, diz: “Conheci de perto o homem: ele é inconsistente”.
Quais elementos o senhor vê no cotidiano, hoje, que reforçam essa inconsistência? Ela
poderia explicar a capacidade de alguns seres humanos de cometerem atos bárbaros, e de
alguns outros serem coniventes e permitirem que o mal seja feito?

Não estou certo de compreender o significado do termo “inconsistente”, quando aplicado ao


homem. Talvez seja algo fora do humano. Prefiro, por isso, falar em ser aberto, para me referir à
condição humana. Isso implica dar um lugar de destaque as noções de responsabilidade e de
liberdade, quando se trata de compreender nossa humanidade, no lugar daquela de consistência,
que parece servir mais para as esferas da lógica e da matemática.
Com a quantidade de opções oferecidas pela Internet, qualquer cidadão pode, digamos, montar
seu deus, montar seu partido, montar sua religião, montar sua causa.

O senhor acha que com essa primazia do eu, com esse individualismo, as chamadas
grandes causas, que permitem, por exemplo, que o homem ajude seu semelhante, estão
sendo enterradas para todo o sempre?

O aparecimento da Internet é um dado fundamental de nossa época. Ele provocou uma


verdadeira mutação em nossa forma de viver a política e nossa vida particular. Mas a chamada
“vida virtual” não pode ocupar os espaços nos quais nos vinculamos a nossos semelhantes. Ela
pode alterar nossa maneira de nos relacionarmos com o poder, garantindo, por exemplo, canais de
informação alternativos com relação aos grandes meios de comunicação, que muitas vezes estão
profundamente implicados nas disputas políticas. Ela transforma as distâncias, que antes nos
separavam de pessoas e coisas, situadas no outro extremo do globo. Ela nos abre as portas para
conhecimentos antes fechados em arquivos e bibliotecas que eram de muito difícil acesso. Mas

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ela permanece sendo um meio. Criar um deus particular, ou um partido, pode ser uma maneira de
nos perdermos em uma vida solitária, que nos aparta do convívio com os outros e nos impede de
vivermos num verdadeiro espaço público. Não podemos nos esquecer que a solidão é a marca
principal dos regimes totalitários e não das democracias. Um partido ou uma religião particular é
uma experiência que não responde às demandas que nos levaram a buscar deuses ou grupamentos
políticos ao longo da história, e não serve como barreira para experiências como as que
destruíram o espaço público em vários momentos do século 20.

José Celso Martinez Correa chama a atenção para a falta de “messianismo prometéico”
na cultura atual. Herbert Marcuse, por sua vez, via na fantasia e no sonho os únicos
caminhos que levavam a Libertação. Stendhal ficou famoso pela frase “premesse du
bonheur”. O senhor acha que o fim do sonho e o fim das utopias colaboram decisivamente
para o fim do homem enquanto projeto?

A política necessita da imaginação e do sonho, para ser algo mais do que a repetição dos
caminhos seguidos pela tradição e que muitas vezes não respondem mais às nossas expectativas.
Por isso, precisamos de utopia. Ela representa uma forma da liberdade, uma imaginação do futuro
como algo que nos aproxima de nossos desejos por um mundo melhor, Mas é preciso observar
que a simples existência de utopias não garante nada. A realização de algumas delas nos últimos
dois séculos terminou cm catástrofe, como no caso da antiga União Soviética. As experiências
messiânicas também nem sempre foram sinônimos de felicidade e de tolerância. A grande
dificuldade da vida em comum reside no fato de que não basta desejarmos viver melhor para isso
se realizar e, ao mesmo tempo, não podemos deixar de sonhar, para não ficarmos prisioneiros das
amarras de nosso próprio tempo.

O senhor acha que a intolerância é um dos sintomas de uma suposta decadência do atual
projeto de homem?

A intolerância é parte da história humana e se manifestou em todos os tempos. Não seria


razoável supor que vivemos hoje uma era de intolerância, que se contrapõe a um passado de
tolerância. Ao contrário, a idéia de tolerância, seja no campo dos costumes, seja no terreno da
religião e da política, é uma criação recente da modernidade. O que ocorre é que essas conquistas
estão ameaçadas pela destruição dos espaços públicos, que garantiram, no Ocidente, em séculos
passados, a implementação dos princípios que estão na raiz das experiências de liberdade e de
igualdade próprias do universo democrático e republicano. A intolerância, por seu lado, também
possuí figurações históricas precisas, que necessitam ser investigadas, para não cairmos nas
armadilhas montadas pelos discursos pseudo-científicos, que querem nos convencer de que
supostos dados naturais incondicionados nos obrigam a aceitar certas políticas extremas. Um

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exemplo são os diversos discursos racistas, que desde o século 19 tentaram recorrer a teorias
científicas para se legitimar. A novidade com relação a outras épocas é a associação da
intolerância ao discurso das ciências. Mesmo quando as associações são falsas, como no caso do
uso da genética para a justificação de uma suposta superioridade racial, o recurso aos termos
científicos cria uma aura de legitimidade, que pode se transformar em uma ferramenta eficaz para
garantir o domínio do Estado por grupos políticos, que defendem idéias extremas e não admitem
contestação. Esse foi o caso do nazismo, que recorria a várias teorias raciais não apenas para
destruir o Estado de direito, mas para justificar o extermínio de milhões de pessoas, como se isso
fosse uma necessidade para a sobrevivência do próprio povo alemão.
Ana Luiza Moulatlet é jornalista.

THIAGO DOMENICI
O TEMPO É DE CAOS
FÍSICO ESPECULA SE, AO FIM DE TUDO, O CAPITAL CONTINUARÁ DOMINANDO

Luiz Alberto Oliveira é físico, doutor em cosmologia, pesquisador do Centro Brasileiro de


Pesquisas Físicas (CBPP/MCT) e professor de história e filosofia da ciência. Nesta entrevista, ele
divulga o que os físicos já sabem; que o tempo é um caos.

Qual sua opinião sobre termos ou não lugar no futuro?

Segundo a teoria dos sistemas complexos, a vida é uma matéria organizada que, aprendendo a
modificar sua própria estrutura para responder a alterações do meio, passou a conectar os tempos
infinitesimais das reações moleculares aos milhares de anos das transformações ambientais, aos
milhões de anos das transformações geológicas, às centenas de milhões das transformações
astrofísicas. A aceleração tecno-produtiva vigente na contemporaneidade superpôs um novo
modo temporal a essa conexão entre os ritmos materiais e biológicos: o prestissimo característico
das produções culturais. O aspecto crítico aqui é a condensação dos ritmos naturais em ritmos
tecnológicos, transformação que corresponde à instalação de um novo patamar de ordenação do
sistema complexo “Terra” e que justamente por esse motivo instaura uma imprevisibilidade
radical: doravante, o passado não nos servirá como guia, pois a história - quer da natureza, quer
da cultura - não pode mais ser rebatida sobre o futuro como expectativa de continuidade. Não
crise do que somos, mas mutação para o que viremos a ser. Pois o que se engendra em nossa pós-
modernidade impelida pela aceleração tecnológica é a artificialização generalizada, que, ao diluir
as fronteiras tradicionais entre natureza e cultura, sujeito e objeto, interioridade e exterioridade,
começa a nos converter em híbridos de humano e inumano. De fato, as três grandes promessas de
inovação tecnológica para o século 21, a saber, a robótica (a produção de sistemas capazes de
comportamento autônomo), a biotecnologia (a manipulação dos componentes dos seres vivos,
inclusive seu código genético) e a nanotecnologia (a fabricação de dispositivos moleculares)
compartilham tanto um fundamento comum - a crescente capacidade de manipular objetos
microscópicos - quanto a abertura de uma dupla possibilidade: a de engendrar novos tipos de
“vida”, quer dizer, de sistemas capazes de replicar-se e evoluir, e a de incluir, como matéria-prima
para a inovação técnica, nossos próprios corpos e mentes. Estamos a caminho de poder
redesenhar a forma humana e as formas da vida. Essa virtualidade, desnecessário dizer, é
inteiramente singular na história da cultura. Por exemplo, de um ponto de vista estritamente
microfísico, não há diferença entre moléculas biológicas e inorgânicas, naturais ou artificiais. A
medida que aumenta o poder de manipular objetos em escala molecular, a tendência seria ocorrer
uma integração crescente entre componentes orgânicos, gerados biologicamente, e componentes
eletrônicos, fabricados artificialmente. Sínteses de carbono e de silício: essa fusão se daria por
uma real mescla de formas, pela interpenetração entre terminais nervosos orgânicos e

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semicondutores; a perspectiva então é a de que nosso dever, nosso futuro, seja nos tornarmos
borgues, híbridos de células e chips. Essas conexões estão ainda em estágio muito rudimentar,
neurônios inteiros postos em contato com condutores metálicos, mas brevemente será possível
penetrar em um nível subneuronal, associando subestruturas dos neurônios a componentes
eletrônicos. Nesse momento, que não está longe, veremos o nascimento de autênticos híbridos
biotrônicos, veremos o nascimento de centauros cognitivos, e logo esses centauros seremos nós.

E a partir disso se poderia imaginar uma inteligência artificial (criada) com a


possibilidade de ela criar suas próprias representações? Isso se justifica de alguma
maneira?

Nossa espécie sempre foi hábil em produzir próteses de movimento, extensões das capacidades
físicas não muito notáveis de nosso corpo que ampliaram em muito seu alcance de ação - tacapes,
rodas, foguetes. A seguir, produzimos um extraordinário conjunto de próteses sensórias - como os
instrumentos de medida - que estenderam nossos sentidos até a atual onipresença telemática. Mas
ainda mais recentes - e espantosas - são as próteses de cognição, os recursos para controlar
informação que principiamos a infundir em um sem-número de objetos. Com efeito, a capacidade
de antecipar os desenvolvimentos futuros dos acontecimentos e de escolher diretrizes de ação
com base nessas antecipações seria a característica principal da faculdade que denominamos
inteligência. Durante muito tempo, pensou-se que a posse do domínio simbólico necessário para
exercer essa faculdade era exclusiva dos seres humanos (ou, pelo menos, que neles se
manifestava de modo qualitativamente diferente dos demais animais superiores). Hoje,
reconhecemos que o fator essencial das operações inteligentes é a habilidade de processar
grandes quantidades de informação, e principiamos a elaborar dispositivos que incorporam
funções de processamento altamente sofisticadas. Estima-se que, em 25 anos, os chips de
computadores serão milhões de vezes mais poderosos que os atuais, tornando-se comparáveis em
eficiência a setores do córtex humano. Assim, delineia-se no horizonte próximo a produção de
artefatos dotados de autêntica inteligência artificial, a I.A., fato que está confrontando os
pesquisadores atuais com uma série de indagações sumamente intrigantes - acerca da natureza do
pensamento, do grau de inteligência de outros seres vivos, e de nossas próprias capacidades
cognitivas. A pergunta decisiva é: o que é essa matéria (esse corpo biológico, esse dispositivo
artificial) pensante? Uma especulação servirá para dar o tom dos problemas que teremos pela
frente: com o desenvolvimento da I. A., a robótica mudaria de enfoque, da automação para a
autonomia. A simples automatização mecânica derivaria rumo à elaboração de sistemas
industriais cada vez mais independentes e auto-suficientes, com capacidades abrangendo desde a
aquisição de insumos até a distribuição dos produtos acabados. Robofábricas desse tipo poderão
se revelar indispensáveis, por exemplo, no desbravamento de outros planetas. É difícil imaginar o
grau de eficiência que uma tal entidade - auto-provedora, auto-reparadora e mesmo auto-
reprodutora - poderia alcançar, mas parece certo que nenhuma indústria calcada nos “velhos”
moldes poderia competir com um sistema assim. No limite, o próprio trabalho humano se tornaria
dispensável (ou inconveniente). Enfim, realizar-se-ia o sonho utópico da libertação do fardo do
trabalho, mas com uma peculiaridade: a transferência da espécie portadora da força produtiva,
dos organismos humanos para os robos-sistemas. O impacto desse asteróide econômico nos
converteria em dinossauros mamíferos, irremediavelmente obsoletos, aguardando a extinção
autoproduzida. Seria esse o triunfo supremo do capital?

Qual a relação entre caos, acaso e tempo no mundo contemporâneo?

Desde seu início, o século 20 testemunhou a realização de uma série de experimentos decisivos
e teorizações audaciosas que acabaram por demonstrar a inadequação da abordagem newtoniana

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ou clássica com respeito a fenômenos que ocorrem em escalas (de comprimentos, durações ou
velocidades) inumanas, estranhas à nossa percepção habitual dos acontecimentos - como o
comportamento dos componentes microscópicos da matéria (moléculas, átomos, partículas) ou a
estrutura do universo astronômico (galáxias, grupos, aglomerados). Bilionésimos de segundo,
quintilhões de quilômetros: o acesso a esses novos domínios de investigação terá uma implicação
deveras notável - a natureza deixa de ser monótona. A Revolução Científica contemporânea - para
usar a bem conhecida denominação de Thomas Kuhn - veio assim motivar toda uma nova
compreensão acerca da realidade física básica. Como resultado, a cosmologia relativística nos
revela um universo dinâmico, histórico e ativo; a microfísica quântica delineia uma matéria
dessubstancializada, elusiva, eivada de indeterminação, configurando-se uma realidade “não-
objetiva”, fundamentalmente incerta, em relação à qual o observador se torna um participador; e
ainda, o estudo dos sistemas dinâmicos, longe do equilíbrio, conduz à concepção de estados
caóticos marcados pela imprevisibilidade, mas aptos a engendrar hierarquias sofisticadas de
organização, bem como comportamentos ricos em potenciais de evolução. A noção quântica de
metaestabilidade, por exemplo, permitirá conceber a proliferação de assimetrias temporais como
propriedades coletivas de sistemas, desdobrando-se a partir de operações transdutivas,
integrações díspares que têm por motor um acaso estruturante. Essa casualidade produtiva conduz
a uma inteligibilidade paradoxal - todavia, apta a traduzir o engendramento de novas
composições formais a partir de um “caosmos”, correspondente em última análise ao próprio
reino da complexidade. Múltiplas temporal idades, Acaso inventor, caos cosmógeno: eis os
elementos de um materialismo renovado. O mundo natural configura uma hierarquia complexa,
uma pirâmide da complexidade (segundo a bela metáfora de Hubert Reeves): das partículas
elementares passamos aos núcleons, aos núcleos, aos átomos, às moléculas, às substâncias, às
estrelas, às galáxias, aos aglomerados, ao cosmos... A imagem de uma natureza inacabada: eis o
novo âmbito no qual se poderá refletir sobre a constituição da matéria, o comportamento dos
seres vivos, as formações psíquicas pessoais e coletivas, e a elaboração de uma ética da - ou
melhor, para a - complexidade.

O tempo, especificamente, do ponto de vista físico, também terá seu lugar no futuro? E
mais: o homem já tem uma grande dificuldade de se relacionar com o “tempo disponível”, o
que poderá vir a acontecer nessa relação homem versus tempo?

O elemento da atual imagem de mundo que está sofrendo o deslocamento mais drástico, o
abalo mais profundo, em função das inovações científicas do último século, é nada menos que a
noção de tempo tal como cotidianamente - e, em geral, inconscientemente - a empregamos.
Acreditamos, fundados em nosso senso comum, conhecer os atributos essenciais do tempo: fluxo
irrefreável que transporta os seres do mundo do passado para o futuro, deslizante base única em
que o real habita, linha infinita de instantes. Há, sem dúvida, uma imagem do tempo bem definida
no Ocidente, vinculada à difusão de um extraordinário objeto técnico, o relógio mecânico.
Contudo, a ciência contemporânea exibe diversas noções ou operadores denotados pelo mesmo
termo “tempo” - indicando, paradoxalmente, uma incompletude em nossa apreensão costumeira
desse(s) conceito(s) tão básico(s). Na verdade, para a ciência atual, essa imagem que praticamos
com tanta sem-cerimônia, ainda que funcional, não é “objetiva” dizer, não corresponde a nenhum
atributo fundamental da realidade natural. A célebre afirmação de Einstein resume a posição de
muitos cientistas: “Para os físicos, a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma
ilusão, ainda que persistente”. Não encontramos o tempo: nós o projetamos sobre o mundo! Surge
assim um curioso campo de problemas: como se constituiu a imagem do tempo predominante na
atualidade? Quais outras imagens de temporalidade são concebidas e empregadas pelas ciências
contemporâneas? Como o conhecimento sobre a natureza e, paralelamente, o estatuto do sujeito
humano se transformam ante essas novas figuras do pensamento? Essa revolução de perspectivas

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no âmbito de uma filosofia natural da temporalidade aponta para uma série de questões de grande
alcance que permanecem tentadoramente em aberto.

Você escreveu e palestrou sob o enfoque “sobre o caos e novos paradigmas”, daria pra
explicar o que é isso e dar exemplos do nosso dia-a-dia?

Um dos avanços mais significativos das matemáticas no século 20 se deu com o


estabelecimento das chamadas Teorias do Caos: resumidamente, a realização de que diferenças
minúsculas na configuração inicial escolhida para a evolução de um sistema dinâmico podem
conduzir a estados finais vastamente distintos, o que implica que, a longo prazo, o
comportamento do sistema se torna rigorosamente impredizível - ou “caótico”. Tal
incomensurabilidade entre passado e futuro é especialmente importante no caso de sistemas
complexos, ou seja, compostos por muitos elementos capazes de fazer muitas ligações entre si, e
que podem exibir diversos níveis de organização, hierarquicamente estruturados - como os
organismos vivos e os agentes econômicos. Com efeito, sistemas complexos são caracterizados
por uma mediação - realizada pela hierarquia de modos de organização - entre o todo (o sistema)
e a parte (os elementos); assim, ademais das ações que exercem e sofrem sobre e desde o meio
externo, esses sistemas podem auto-afetar-se, ou seja, seu comportamento pode alterar sua
própria estrutura e remodelar sua própria evolução. Por exemplo: se uma espécie inteligente
adquire a capacidade de manipular as cadeias moleculares que constituem os genomas dos
organismos, surge a possibilidade - ou tendência - de se substituir a seleção natural como o
operador da evolução biológica das espécies; uma neofinalidade tecnicamente administrada
almeja deslocar a casualidade darwiniana. Se, por outro lado, o conjunto das atividades
produtivas dessa espécie alcança uma escala planetária, a economia passa a ter por horizonte a
ecologia, a produção torna-se contexto para a própria produção; o mercado tem como limite a
continuidade dele mesmo. Duplo dobramento, dupla indeterminação: a microinerência da técnica
visando assegurar a realização da finalidade, a macroabrangência do capital visando assegurar a
conversão do horizonte em ambiente. Em ambos os casos, por ambas as vias, apresentam-se as
condições para um desenvolvimento caótico. Como reza a antiga maldição chinesa, viveremos
tempos interessantes...
Thiago Domenici é jornalista.

LÉO ARCOVEROE
NÃO SABEMOS MAIS PARA ONDE VAMOS
O PÓS-HUMANO É APENAS UM NOME PARA NOSSA IGNORÂNCIA

Jair Ferreira dos Santos é ficcionista, poeta e ensaísta. Autor do livro Cybersenzala (contos) e
dos ensaios Breve, o Pós-humano e O que É Pós-moderno?, ele afirma que vivemos hoje uma
revolução artificial em que as tecnologias de informação estão redefinindo a natureza humana.
“Acabou a revolução natural do homem. A interação maior do ser humano não é mais com a
natureza, e sim com as máquinas inteligentes.”
Pelo fato de a estrutura de funcionamento tanto do homem quanto da máquina ser de natureza
informacional, comenta o ficcionista, a tendência é que os órgãos humanos sejam substituídos
progressivamente por órgãos artificiais. Estaremos na era das chamadas “próteses
informacionais”, uma conseqüência do processo que identificamos atualmente como interação
homem-máquina, que fará emergir o cybernefic organism (cy-borg), símbolo do pós-humano.
Embora cite teóricos que acenam positivamente para essa hipótese, ele é mais cauteloso. Diz
não acreditar em um fenômeno de tal ordem, não obstante, reafirma que o processo de
redefinição pelo qual passamos incluirá sobretudo a adoção de uma nova forma de linguagem: a

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interação a partir de códigos.

Qual é a sua concepção acerca do pós-humano? Será nosso futuro pós-biológico?

Como o nome sugere, é algo depois do humano. Encerrou-se o período do homem e há a


necessidade de redefini-lo, sob vários aspectos, sua natureza, seus objetivos, seus valores. De
acordo com vários teóricos, a revolução natural do homem acabou. O que vivemos agora é a
revolução artificial do homem, que deriva do impacto das tecnologias de informação sobre a
natureza humana. Se observarmos, qualquer criança de 5 anos entende isso hoje, a interação
maior do homem não é com a natureza ou o social, mas com as máquinas inteligentes, dotadas de
princípios como a racionalidade. Essa interação homem-máquina tornou-se possível porque tanto
o homem quanto a máquina têm um denominador comum que é a informação. A concepção geral
do que seja homem é de que ele é um animal informacional. É essa identificação que escalou a
interação do homem com as máquinas e, em função disso, conseguimos identificar três blocos
científicos que estão se entrecruzando no homem, que são a hipercomputação, a biotecnologia e a
neurociência. Em todos eles, o seu objeto é informacional. A concepção que a biotecnologia, por
exemplo, tem do funcionamento dos organismos vivos é baseada em mensagens. Essas máquinas
estão, de certa maneira, parecidas com o homem por isso. Os homens estão sendo afetados na sua
natureza, notadamente nos seus reflexos e no seu sistema neuronal, por essas máquinas. O nosso
tempo hoje é um tempo publicitário. Não agüentamos um tempo de concentração maior do que
um comercial de televisão. Em função de a estrutura de funcionamento de ambos ser
informacional, o homem está adotando uma porção de próteses também de natureza
informacional.

O que seriam essas próteses informacionais?

O próprio corpo humano está sendo afetado por essa interação homem-máquina, e a tendência
é que possamos substituir órgãos humanos por órgãos artificiais. Hoje temos notícias de que uma
máquina pode ler pensamento. Há pesquisas, por exemplo, que mostram um sujeito que ficou
paraplégico, só movimenta os olhos, mas, com a implantação de eletrodos na área da fala e da
audição dele, os pesquisadores conseguiam ver o som e a palavra correspondente ao seu
pensamento. Em função do mapeamento cerebral pode-se definir determinados padrões que
correspondem a palavras que vão permitir a esse cara, no futuro - já se conseguiu identificar
alguns monossílabos -, falar com uma voz sintética. Estamos num mundo de próteses
informacionais que, progressivamente, vão se misturar com os órgãos humanos. O exemplo que
coloquei no livro Breve, o Pós-Humano foi que um americano estava fazendo uma cirurgia em
uma mulher, tocou numa determinada região, houve uma descarga elétrica, e a mulher teve um
orgasmo. Então, desenvolveram um chip que excita a mulher através da vontade dela. Como
classificamos essa mulher? Ela está além da humanidade. Uma coisa tão subjetiva e pessoal como
o orgasmo pode ser provocada por uma micromáquina. Nos Estados Unidos, o percentual de
pessoas com próteses de qualquer ordem é muito grande. Óculos, pernas e braços mecânicos e
marca-passo são alguns exemplos. Se procurarmos no passado um outro inteligente, como os
titãs, os deuses, veremos que o homem sempre foi um pouco assaltado por esse outro inteligente
que poderia dominá-lo. Com isso, fazemos emergir aquilo que se tornou o símbolo do pós-
humano, que é o cyborg.

Quais são as características desse que é a personificação do que o senhor entende como
pós-humano?

Trata-se do cybernetic organism, a mistura de um organismo com próteses cibernéticas. Seu

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rendimento é muito superior ao rendimento de um humano sob vários aspectos. Ele, o cyborg, é
uma projeção, uma tendência. A lei de Moore diz que a cada dezoito meses os computadores
dobram a sua capacidade de processamento. Então, espera-se que lá na frente essa capacidade
seja absurda e venha a equivaler ao cérebro humano. Falava-se que em 2050 isso já aconteceria.
O teórico Hans Moravec adiantou esse fenômeno para 2040, quando, então, será possível
fazermos um upload em vez de um download. Em que consiste isso? Colocar num computador
toda a informação contida em um cérebro humano. Idéias como essa fazem com que o pós-
humano seja algo da área da contracultura. Estão preocupados com ela alguns elementos da
universidade, alguns jornalistas, alguns cientistas mais narrativos. Não há uma aceitabilidade,
entretanto, por parte do ambiente científico como um todo. Por isso que quem mais desenvolve a
concepção e, em certo grau, a fantasia do pós-humano são romancistas, cineastas. Isso começa
com um grande romance que surge em 1984, intitulado Neuromancer, de William Gibson. A
possibilidade de intervenção genética no homem foi adiantada por Blade Runner. Produzir super-
atletas, super-soldados. O exército americano pesquisa uma forma de chegar a isso. Com relação
à inteligência artificial, temos o Matrix.

O que leva romancistas e cineastas a abordar aspectos como os que são tratados
sobretudo na ficção científica?

O pós-humano é uma especulação, um desejo, e não propriamente um conceito. É uma


tentativa de, no caos reinante do mundo contemporâneo, orientar a história, uma vez que ela está
aberta. Então, podemos pensar que estejamos rumando para o pós-humano. Eu, pessoalmente,
acredito em linhas de força nesse sentido, embora ache que a ecologia vá chegar primeiro. A
menos que China, Índia e outros países reestruturem a produção e o consumo no mundo, o
planeta não vai agüentar. Trata-se do que defino como a “reanimalização” do homem, que é o
contrário do pós-humano. Se o homem não voltar a ser animal não haverá saída. Em 2020, 2025,
haverá guerras estupendas por causa da água. A invasão do Iraque se deu por conta do petróleo e
da água. Não esqueçamos que todo o aqüífero do Oriente Médio está no Iraque e na Jordânia.

O que seria a subjetividade cyborg?

Existem teóricos, um deles é Donna Haraway, que afirmam que nós, humanos, vamos nos
tornar cyborgs por conta das próteses informacionais e dos remédios que ingerimos, e que isso
vai mudar nossa maneira de sentir a vida e também a nossa cidadania, porque há um conteúdo
político nisso tudo. Já Katherine Reyes entende que a subjetividade cyborg será uma
subjetividade não mais unitária, digamos, pura, na qual cada indivíduo é ele mesmo, não se
confunde com nada, e sim uma subjetividade com amálgama, com uma coleção de componentes
heterogêneos, uma entidade material informacional com as suas fronteiras impessoais. Essas
fronteiras vão se alterar por conta da conectividade, ou seja, vai fazer parte do homem um
conjunto de coisas que estão fora dele. O celular hoje é um exemplo. A quantidade de coisas que
está convergindo para o celular faz dele uma máquina extremamente pessoal, uma vez que boa
parte do acesso ao indivíduo chegará através dele. Katherine Reyes diz exatamente isso. As
fronteiras entre o homem e as máquinas estarão submetidas a um processo de constante
construção e reconstrução. Não haverá a definição medida que existe atualmente. O ser humano
não usará exclusivamente uma linguagem. Ele estará interagindo a partir de vários códigos,
sobretudo um código computacional, por estar ligado a máquinas, que se processarão tal qual
ocorre com a computação cerebral.

O senhor acredita que o cérebro artificial terá inconsciente?

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Certamente não. O pós-humano é uma coisa de país capitalista rico, e não uma coisa de
Terceiro Mundo. A esse país interessa que o fluxo informacional do homem para a máquina e da
máquina para homem não sofra nenhuma opacidade. Não tenha história, não tenha política. Tudo
isso bloqueia o fluxo de circulação de mensagem, O capital hoje é essencialmente mensagem.
Quanto mais rápido e quanto menos travado melhor. E o inconsciente é uma opacidade.
Tecnologicamente não interessa criar zonas de opacidade. Do ponto de vista da ficção científica
seria muito interessante criar um cyborg com inconsciente. A questão é também com que idade
seria produzido um cyborg, Ele já nasce adulto, entre aspas. Não há interesse em criar uma
criança cyborg. As questões propriamente de sujeito, que são consciência, identidade,
refletividade, vontade, vão se alterar profundamente. O sujeito liberal humanista está em declínio.
O próprio inconsciente do Freud não tem essa liberdade, por conta da pressão do social. Se
observarmos a sociedade contemporânea, resta apenas o consumo para o exercício de uma
suposta liberdade. Na natureza humana, essa liberdade não é tão extensa como a ideologia liberal
quer que a gente aceite isso. A consciência, por sua vez, define o homem? Quando você toma um
porre ou injeta alguma coisa em você, essa consciência apaga. Ela é muito frágil. Essas coisas
serão também redefinidas, terão o seu valor alterado. Algumas tribos reivindicaram a reflexão e a
criação na área do pós-humano. Uma delas são os cyberpunks, que produziram literatura nos
Estados Unidos. Em um primeiro momento, a maioria deles é hacker, anarquista. Existe um outro
grupo chamado Os Extropianos, que querem que a razão contorne a lei da entropia. Esta diz que
há uma degradação progressiva do real. Eles acreditam que, se concentrarmos muito saber em
organização, uma vez que o saber é profundamente organizador, conseguiremos contornar a
entropia. O Hans Moravec é o grande ídolo extropiano. Existem, ainda, os trans-humanistas, que
gravitam em torno do filósofo inglês Keith Ansell. O pós-humano dele se baseia numa
transvaloração de todos os valores, pois se acredita que já tenhamos chegado ao máximo de
niilismo e do alcance do além do homem, exercitando novas possibilidades humanas de
sensibilidade, de prazer, de percepção. O mundo hoje está numa complexidade muito grande.
Essa sensação de incerteza, de imprevisibilidade, se dá porque temos muitos atores, é muita gente
atuando em cima da realidade. Uma das linhas que se exploram no pós-humano é a da
complexidade, do caos e da emergência. O mundo é cada vez mais imprevisível porque a resposta
que esse grande número de atores dá em qualquer campo é imprevisível. O pós-humano é uma
expressão-tampão para a falta de léxico para descrevermos a própria experiência. Não
conseguimos mais dizer para onde estamos indo e o que somos. Trata-se de uma ficção de
transcendência.
Léo Arcoverde é jornalista.

JOÃO VERGÍLIO GALLERANI CUTER


SE FOREM COMO NÓS SERÃO CAPAZES DE REVOLTA
Há muitos problemas objetivos que o homem terá que enfrentar, caso queira continuar vivendo
neste planeta - problemas que envolvem o meio ambiente, os abismos sociais entre nações ricas e
pobres, as tensões políticas internacionais, etc. Se algum desses problemas ou a conjunção deles
todos irá significar o fim da vida humana sobre a Terra, não é possível dizer. Há quem imagine
que o homem estaria correndo um risco de extinção, e que as máquinas substituiriam o homem no
planeta. Por trás disso existe, eu creio, a idéia de que num futuro próximo seremos capazes de
construir máquinas capazes de agir como se fossem seres vivos. No limite, máquinas mais aptas a
sobreviver no planeta do que o próprio homem. Esse imaginário está presente em muitas obras de
ficção científica do século 20. Novamente, a resposta é: não há como saber se conseguiremos
fazer isso, ou mesmo se é possível fazer isso. Há certa concepção de “vida” que está por trás
desse imaginário todo que, por uma razão ou por outra, a ficção científica acabou moldando.

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Imagine que sejamos capazes, um dia, de construir robôs que se comportem exatamente como
nós - robôs que falem como nós, que reclamem de dores em seus corpos nas ocasiões
apropriadas, que sejam capazes de produzir obras de arte originais, que façam filosofia, relatem
sonhos que tiveram à noite, sintam amor e ódio, riam, sejam irônicos, generosos, mesquinhos -
robôs que exibam, enfim, toda a variedade de comportamentos que seres humanos comuns são
capazes de exibir. Uma das perguntas que poderíamos fazer sobre esses robôs imaginários (e que
tem sido feita com freqüência por muitos filósofos e cientistas) é a seguinte: será que esses robôs
teriam vida, no sentido em que nós temos? Será que, por trás de todo o aparato mecânico que lhes
permite ter exatamente as reações que temos, existe algo que poderíamos chamar de
“consciência”?

Os olhos do robô

É esse tipo de questão que está por trás de filmes como Blade Runner, por exemplo. Há uma
vida por trás dos olhos de um andróide? Ele realmente vê o mundo, como eu vejo, ou apenas
reage como se o visse? Seria eticamente justificável que nos comportássemos em relação a eles
da mesma maneira que nos comportamos em relação a outro ser humano? Eles seriam seres vivos
de pleno direito, ou “meras máquinas”? É essa, mais do que qualquer outra, a pergunta que
atormenta muitos filósofos e neuro-cientistas hoje em dia. Ora, creio que por trás dessa
preocupação está um interessante e, sob muitos aspectos, lamentável retrocesso da reflexão
filosófica à agenda de questões dos séculos 17 e 18. Tudo se passa como se devêssemos reeditar a
discussão que envolveu filósofos como Descartes, Locke, Berkeley e Hume num contexto
marcado pelos avanços da neuro-ciência. Apenas para constatar que, apesar desses avanços,
nenhum passo adiante foi dado desde então. Ora, os passos adiante, na filosofia, não são dados
por nenhum tipo de inovação técnica. A filosofia não fabrica robôs, nem é capaz de se pronunciar
sobre a possibilidade de construí-los. Os avanços na filosofia são de tipo conceitual. Somos
capazes de formular os mesmos problemas de um modo que antes não formulávamos. E somos
capazes de dar respostas que antes não dávamos. O que chamo de “retrocesso”, então, é uma
tendência muito acentuada na neurociência, hoje em dia, de recolocar problemas antigos em
termos também antigos. Essas questões envolvendo a suposta “consciência” desses supostos
robôs é típica desse estado de coisas. Não é possível, depois de termos passado pela filosofia do
segundo Wittgenstein, continuar a falar nesses termos. “Consciência” é uma palavra e, como toda
a palavra, tem determinados critérios de aplicação. Podemos distinguir dois principais casos de
uso dessa palavra. Ela tem um uso intransitivo, como quando dizemos que alguém recobrou a
consciência, após um desmaio. E ela tem também um uso transitivo, como quando dizemos que
alguém possui consciência de seus próprios méritos, ou dos méritos alheios. O que se faz, em
filosofia, é muitas vezes estender o uso dessa palavra muito além dos limites que ela
originalmente tinha, para abarcar toda a nossa vida psíquica, e também outras coisas que nem
sequer pertencem à esfera psíquica no sentido estrito - nossas crenças, nossas dúvidas, nossas
capacidades lingüísticas, e por ai vai. A consciência aparece, então, como uma espécie de grande
teatro, no qual vão se desenrolando coisas tão diferentes entre si quanto nossas dores, nossos
conhecimentos, nosso pensamento, nossos sonhos, nossa visão, nossa audição etc. O que
perguntamos, então, a respeito desses robôs, é se eles possuiriam um “teatro” interno, como nós
possuímos.

Teatro mental

Perguntamos se, além de olhos, eles possuiriam também visão, e não apenas o comportamento
mecânico de alguém que parece estar enxergando, mas é “apenas uma máquina”. Se, além de
reagirem como alguém que pensa, eles “de fato” pensariam. Pior ainda, esperamos que a neuro-

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ciência nos dê respostas a questões desse tipo. Ora, não há resposta nenhuma a ser dada, nesse
caso. A pergunta está mal formulada, e se escora num amontoado de contra-sensos. Não
atribuímos visão às outras pessoas entrando em seu “teatro mental”, quando por mais não seja,
simplesmente porque não existe “teatro” nenhum aí para entrarmos. São as reações que essas
pessoas têm que nos fazem atribuir visão a elas, e não uma espécie de telepatia ultra-perfeita, em
que eu me transformaria na outra pessoa, por assim dizer, para “ver” o que acontece dentro dela.
Pior ainda seria dizer que atribuímos visão a essas pessoas porque fazemos uma “analogia” com
nosso próprio caso. Nós “percebemos” (por introspecção) que somos capazes de “enxergar” o
mundo, e que essa capacidade nos faz reagir de um modo que não reagiríamos se fôssemos cegos.
Como os corpos das outras pessoas reagem exatamente como o nosso, então, “por analogia”,
concluímos que elas também enxergam como nós. Isso é um absurdo. Ninguém “observa” a
própria visão. A visão não é um quadro para ser “observada”. Nós podemos observar uma maçã,
mas não faz sentido dizer que eu estou observando a “visão da maçã”. Visão não é algo que se
observa. É algo que se tem, ou não. Temos critérios para atribuir visão a uma pessoa. É desses
critérios, exatamente, que alguém que esteja fingindo que é cego deve se valer. Ele fingirá ter um
andar inseguro, fingirá não saber responder a determinadas questões, fingirá não ser capaz de
fazer determinados reconhecimentos, e assim por diante. Agora, você pode me perguntar: e se um
robô satisfizer a todos esses critérios, e se comportar exatamente como nós? A resposta é: tudo
pode acontecer. Nossos conceitos não foram feitos para lidar com esse caso e, se ele aparecer um
dia, teremos que tomar uma decisão a esse respeito. Não teremos que descobrir coisa nenhuma a
respeito desses robôs. Teremos que decidir se aplicamos a eles o conceito de “vida”, ou não.
Teremos que decidir se um ser que foi fabricado por nós será considerado um ser vivo, ou não.
Não haverá nenhum critério lógico de decisão. Haverá, no máximo, decisões mais convenientes,
e outras menos convenientes, decisões mais harmônicas com o conjunto de nossas convenções, e
outras menos harmônicas. De uma coisa, porém, esteja certa. Se esses robôs forem
suficientemente parecidos conosco, eles serão seres capazes de seguir regras lingüísticas, como
nós seguimos, e de reformular essas regras, como nós reformulamos. E nada os obrigará a seguir
as mesmas convenções que nós decidirmos adotar. Se esses robôs forem suficientemente
parecidos conosco, eles deverão ser capazes, enfim, de se revoltar.
João Vergílio Gallerani Cuter é professor de lógica e filosofia da linguagem
do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

GABRIELA LAURENTIIS, DE PARIS


A TECNOLOGIA PODE NOS APROXIMAR DAS BESTAS
Lionel Naccache é neurologista do hospital de La Pitié-Salpêtrière, em Paris, e pesquisador do
Cognitive Neuroimaging Unit (Inserm Unit 563), dirigido por Stanislas Dehaene. Recentemente
esteve no Brasil para participar do terceiro ciclo de conferências da trilogia “Cultura e
Pensamento em Tempos de Incerteza”. A neurociência cognitiva é uma área de pesquisa que vem
se desenvolvendo muito nos últimos quarenta anos e Naccache é um de seus grandes
representantes. Segundo Nacacche, Freud é o primeiro a elaborar uma teoria séria e interessada
sobre o inconsciente. Porém, algumas de suas definições não podem mais ser aceitas diante das
novas pesquisas que vêm sendo realizadas no campo da neurociência cognitiva. Como, por
exemplo, a descoberta de grandes e variadas “operações mentais” que ocorrem no inconsciente.
Suas experiências são, também, uma espécie de desafio a quem pretende construir, sem o
emprego de material genético “natural”, sistemas capazes de tão complexas operações quanto o
cérebro humano que, ao mesmo tempo, nos liberta e condena a esse interminável pensar.

Qual é a definição precisa de neurociência cognitiva?

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A neurociência cognitiva explora as propriedades psicológicas e as bases cerebrais dos
processos mentais mais diversos, utilizando uma abordagem multidisciplinar que conjuga o
estudo de pacientes portadores de lesões cerebrais, a psicologia experimental e a capacidade
cerebral da imaginação.

O senhor diz que as imagens que formulamos sobre os abjetos podem ser consideradas
como representações visuais criadas por nossos cérebros. Poderia explicar esse conceito? O
senhor acredita que é possível desenvolver uma forma de inteligência artificial capaz de
criar suas próprias representações?

O conceito de representação é há muito tempo associado implicitamente ao conceito de


consciência: Uma representação é criada por um sujeito para outro sujeito, o primeiro pensado
como um ponto de observação consciente. A novidade das neurociências cognitivas é que elas
examinam também o inconsciente, e surge em decorrência da concepção de que existem
numerosas representações inconscientes. Entende-se por “representação” uma codificação
explícita de propriedades variadas de um objeto visual, portanto é claro que as representações
artificiais existem, e inclusive já foram objeto de pesquisas aplicadas em cibernética e robótica. É
interessante notar que os conhecimentos atuais reforçam a existência de representações mentais
inconscientes, algumas atuando em níveis bastante abstratos: a quantidade numérica de um
número, o sentido de uma palavra, o conteúdo emocional de um estímulo. A proposta mais
ambiciosa é exatamente a de uma inteligência consciente artificial.

Qual a diferença entre o “inconsciente freudiano” e esse “novo inconsciente”?

Quando se relêem os escritos de Freud sobre o inconsciente, levando em conta a evolução


própria de seu pensamento, é possível encontrar pontos de convergência, mas também de
profunda divergência, entre os sistemas Ics (sistemas do inconsciente) e o conjunto do processos
cognitivos inconscientes comprovados pelas neurociências contemporâneas. Sem entrar em
detalhes sobre esse confronto, observa-se que o modelo freudiano do inconsciente é incompatível
com a concepção contemporânea de inconsciente. A pedra angular do edifício freudiano, que é o
conceito de “recalque”, é essencialmente consciente! Exercer controle cognitivo sobre as
representações inconscientes, para bloquear o acesso ao sistema preconsciente-inconsciente e que
o próprio Freud chamou de “guardiões da paz mental”, é pura consciência. Muitas experiências
implacáveis da psicologia cognitiva contemporânea nos mostram que sem consciência do
estímulo de controle não se pode exercer nenhum controle. O recalque de Freud não é um
mecanismo de negação consciente. O problema consiste na duração da vida dessas representações
mentais inconscientes. Segundo Freud, essas representações podem deslizar imperturbavelmente,
como cisnes majestosos, e atravessar toda a existência do indivíduo desde a primeira infância. A
eternidade desse inconsciente freudiano nos leva a crer que Freud não descobriu o inconsciente;
mais provavelmente o inventou. O inconsciente freudiano é considerado uma ficção do
consciente de Freud.

O senhor diz que o inconsciente freudiano foi mais uma invenção do que uma descoberta.
Por quê?

Minha tese defende a idéia de que, diante do “erro de Freud”, descobrimos o resultado da
propriedade fundamental não de nosso inconsciente, mas sim de nossa consciência: a necessidade
vital que temos de inventar conscientemente as ficções mentais para chegarmos a existir. O
inconsciente freudiano existe como uma crença fictícia que permite à nossa consciência encontrar
significações aos eventos de nossa vida psíquica. Mesmo sendo fictícias, essas construções

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interpretativas conscientes não deixam de guiar as nossas ações, e terminam por atuar na nossa
realidade. A psicanálise freudiana é a primeira tentativa séria e investida de interesse para
compreender essas ficções mentais, e a primeira a reconhecer sua importância vital em nossa
existência. Essas afirmações teóricas sobre a natureza do nosso psiquismo (em particular, do
nosso “inconsciente”) são também fictícias, porém o trabalho específico que ela impulsiona se
desenvolve diretamente desde o interior do sujeito em nível adequado de sua economia psíquica.
Dessa maneira, Freud nos abre, sem dúvida de maneira intencional, as portas das neurociências e
da arte da ficção, faculdade fundamental de nossa atividade mental consciente, arte da ficção que
começamos a explorar, com dificuldade, nos laboratórios de neurociências cognitivas.

O senhor diz que o significado de uma palavra, mesmo não percebido conscientemente,
pode ser inconscientemente representado. Essas representações do inconsciente se devem a
quê?

Em nossos novos estudos pudemos registrar as atividades elétricas das amígdalas cerebrais,
uma estrutura reagente aos estímulos causados por registros de dor, ao reconhecimento de rostos
ou do significada de palavras. Esses registros foram realizados em pacientes epilépticos
refratários ao tratamento por cirurgia: nesses pacientes são implantados eletrodos para determinar
a posição do “vestíbulo” epileptogênico, procedimento que não seria possível sem a utilização de
técnicas invasivas. Adaptamos o paradigma de apresentação subliminar mascarada em flashes
muito breves (29 milissegundos), uma palavra é precedida e seguida de uma série de caracteres
(71 milissegundos). Essas tentativas estão ligadas àquelas nas quais a segunda máscara foi
suprimida, propiciando uma percepção consciente da palavra. Para mudar cada tentativa, os
sujeitos estavam submetidos a uma tarefa de escolha forçada da valência emocional, na qual a
palavra é ou não conscientemente percebida. Para garantir o mecanismo de especificação
emocional direto, utilizamos duas listas distintas de palavras, de tal forma que uma palavra
mascarada jamais se apresentasse na condição desmascarada. No centro de cada lista, as palavras
eram neutras, como, por exemplo, cousin (primo), e negativas, significando medo ou ameaça,
danger (perigo), por exemplo, com a freqüência e os comprimentos de ondas elétricas idênticos.
Nos três pacientes que observamos, a região das amígdalas se apresentou posteriormente
saudável e o fator epileptogênico foi neutralizado. Quando as palavras lhes foram apresentadas
novamente, após o teste, nenhum desses pacientes pôde identificar as palavras mascaradas, nem
mesmo reconhecê-las. Alem disso, suas performances para a categorizarão dessas palavras
ocorriam de maneira aleatória, o que nos permite assegurar que eles não podiam acessar
conscientemente os seus sentidos. Ao contrário, após
o teste, eles podiam perfeitamente reconhecer e categorizar as palavras desmascaradas. O
tempo da reação foi em média de 1.700 ms (1,7 segundo) na condição mascarada, e de 1,1
segundo na condição desmascarada. O valor emocional das palavras mascaradas não modificou
em nada o comportamento dos três pacientes. Assim, pudemos observar uma diferença tardia
significativa, em torno de 800 ms, entre as palavras negativas e neutras. Na condição
desmascarada, sobre esses mesmos eletrodos, pudemos observar uma diferença de mesma
polaridade, por volta de 500 ms. Com isso, apuramos a capacidade inconsciente de reconhecer o
valor emocional das palavras mascaradas.

Nessas representações das palavras existe algum caráter ideológico?

Acredito que não exista uma intenção inconsciente explícita, mas nossas representações
inconscientes são originárias de algum lugar, portanto elas podem ser influenciadas por nossas
ideologias conscientes.

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Noam Chomsky diz que a linguagem não possui um papel somente na área da
comunicação, mas é uma forma de expressão do pensamento e de interação entre os
indivíduos. O senhor está de acordo com esse pensamento?

Eu pessoalmente acredito que todos podem constatar uma participação da linguagem na


estrutura do pensamento. O impacto de nossas representações verbais sobre nossas representações
existe. Sei, por exemplo, que há uma série de estudos apaixonantes realizados por Pierre Pica e
Stanislas Dehaene junto a um povo da Amazônia, os mundurucus, entre os quais a linguagem não
é usada para representar as primeiras quantidades numéricas. Esse limite evidencia um impacto
sobre a capacidade de realizarem cálculos exatos com grandes quantidades numéricas. Por outro
lado, possuem uma apurada capacidade de avaliar as quantidades aproximadas, muito semelhante
à daqueles que falam inglês ou francês. Pode-se observar, nesse exemplo, que a linguagem serve
mais para estruturar do que para criar formas de representações específicas. Para o conteúdo
consciente, acredito que o mesmo princípio se aplica: possuímos conteúdos conscientes não
verbais, como algumas espécies de animais e de certos pacientes afásicos, mas a língua, é claro,
permite uma riqueza inacreditável, uma grande complexidade e numerosas nuanças aos nossos
pensamentos inconscientes.

O senhor compartilha da idéia de que existe uma linguagem inata, ou um conhecimento


instintivo?

Eu acredito que existem efetivamente processos determinantes inatos que orientam o


funcionamento mental para determinadas funções: a linguagem, a percepção visual, a
consciência... Porém, esses fatores estão intimamente ligados ao ambiente do sujeito (desde o
útero) e suas interações são determinantes para o surgimento de uma função mental considerável.
Entretanto, existe lugar para uma série de casualidades (genéticas, sociais, familiares,
psicológicas...) que não são excludentes umas das outras, mas agem em diferentes níveis de
complexidade sobre o indivíduo. Por fim, eu gostaria de mencionar uma hipótese original
formulada por meu amigo e colega Stanislas Dehaene: a “reciclagem neuronal”. Segundo
Dehaene, quando aprendemos a ler, utilizamos em particular uma região de nosso cérebro que
está programada para identificar os objetos visuais, mas não especificamente para ler. Esse fato
cultural recente (6.000 anos), que consiste em a palavra escrita necessitar da reciclagem de uma
região “nascida para reconhecer objetos” para uma função mais especifica - ler as palavras
escritas seguindo uma convenção de escrita arbitrária e simbólica - nos prova que a natureza e a
cultura estão em permanente interação.

O senhor acredita que, com o desenvolvimento de novas tecnologias, as neurociências


poderão um dia criar seres humanos perfeitos?

Creio que essa é uma falsa questão: se o problema é saber se as novas tecnologias podem nos
ajudar a ganhar em precisão, em exatitude para operações cognitivas variadas (reconhecimento de
objetos, precisão dos gestos, alarmas para corrigir erros), a resposta é provavelmente positiva. No
entanto, a “perfeição” não é nem a precisão, nem a exatidão. Falamos de uma perfeição moral, de
uma perfeição social ou interpessoal, ou ainda de uma perfeição na relação de verdade com a
realidade exterior? A cada uma dessas definições possíveis da perfeição, as respostas me parecem
diferentes. E, sobretudo, penso que, aquilo que chamo de nossas “ficções conscientes” não são
pertinentes em termos de estatuto de verdade (falsas ou verdadeiras), são representações que se
referem ao mecanismo de interpretação-crença. O doce sonho de torná-las “verdadeiras” me
parece ingênuo e errôneo: uma ficção pode ser próxima ou distante da exatidão, da realidade ou
de uma verdade exterior, isso não afeta em nada seu estatuto original de ficção, quer dizer, de

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matéria para interpretação.
Gabriela Laurentiis é estudante de ciências sociais.
Lionel Naccacfie é autor, entre outros livros, de Le Nouvel Inconscient, Freud, Christophe Colomb des Neurosoiences; Visual Phenomenal
Consciousnes: a Neuroiogical Guided Tour; Towards a Cognitive Neuroscience of Conseiousness; Basic Evidence and a Workspace Framework.

LÉO ARCOVERDE
“O SER HUMANO É POR DEFINIÇÃO OBSOLETO”
João Camillo Penna é professor de literatura comparada e teoria literária da Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Nesta entrevista, entre outros assuntos, ele explica o que
reality shows como No Limite e Survivor guardam dentro de si: hipóteses de uma nova sociedade
que parte do grau zero da cultura e da máquina. “A partir daí, produziríamos máquinas que seriam
integradas dentro desse novo universo à parte”.
Quando perguntei sobre a suposta obsolescência do ser humano enquanto espécie, Penna
respondeu: “O homem é obsoleto por essência, à medida que ele é uma superação de si mesmo,
muito embora eu acredite que as novas definições do ser humano encaminham sempre para uma
possibilidade de ele se reinventar”. Sua entrevista.

Qual é, basicamente, a diferença entre o homem e a máquina?

O que define o humano é o aparelho fonador, uma espécie de capacidade de articulação de


representações mentais a partir de um sistema vocal, o que já é uma prótese construída sobre um
sistema digestivo vocal. Existe, de início, uma pequena defasagem que nos torna artificiais. Com
o avanço do que o MacLuhan chamou de “extensões do homem”, a idéia de que o homem vai se
agregando, de coisas que vão aumentando a potência - o carro, de alguma maneira, aumenta a
capacidade do andar. A máquina tem exatamente uma característica de ter esse tipo de
funcionamento, de ser ao mesmo tempo uma extensão do homem, embora haja algumas
máquinas, por assim dizer, máquinas de máquinas, programas de programas, que caminham para
a questão da automação e da inteligência artificial. Seriam máquinas que se auto-reproduziriam
ou teriam a capacidade de se alterar ou se modificar. Isso é uma nova dobra nessa discussão sobre
máquinas e tecnologia.

O que são máquinas utópicas e distópicas?

A minha pesquisa girava em torno da ficção científica, que retoma freqüentemente a


perspectiva de uma ilha auto-suficiente, onde se tentaria um sistema de governo que permitiria ao
ser humano tornar-se o mais feliz possível. O que define a máquina utópica é o funcionamento
auto-suficiente que aparece freqüentemente numa espécie de funcionamento recorrente de
imagens na televisão, como No Limite, como Survivor, são hipóteses de uma nova sociedade que
parte do grau zero da cultura e da máquina. Então, a gente produziria essas máquinas, que seriam
integradas a esse novo universo à parte. A distopia é uma variante negativa da utopia, que surge
de forma muito marcante a partir da Segunda Guerra, por conta de Hiroshima e Nagasaki, e dos
campos de extermínio e concentração na Alemanha nazista; uma nova representação justamente
da tecnociência. A ficção científica é um relato sobre o futuro ligado à tecnociência e que pode
ser um relato otimista - quando se imagina um futuro, em que haja de fato uma melhoria das
condições de vida, da felicidade humana - ou uma piora, uma decadência. E o que passa a
acontecer a partir da Segunda Guerra? Começam a se multiplicar esses relatos de uma catástrofe
nuclear, com a erradicação da vida, por conta de um excesso, de uma hubris científica. O mesmo
modelo que permanece desde o começo da ficção científica, com Frankenstein, que é o protótipo
do cientista maluco que resolve retomar o sonho de Prometeu de dar o fogo aos homens, de
produzir uma nova vida. Isso já é visto desde o início do século 19 como um excesso. O cientista

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se excedeu, fez uma coisa que não devia. Toda essa discussão sobre a revolta das máquinas, que
se voltam contra os homens, retoma esse motivo, uma espécie de componente distópico na
máquina produzida pelo próprio homem e que pode se revoltar contra o seu criador.

Em que consiste essa hubris científica que o senhor mencionou?

A hubris, no vocabulário da tragédia grega, quer dizer desmedida. O que, na tradição cristã, vai
ser traduzido pelo pecado. Criou-se uma espécie de culpa, que define o percurso do herói como
sendo aquele que se excede ao desconhecer o limite do humano e querer ser Deus. Esse é um
motivo recorrente, uma máquina tão bem-feita, tão bem elaborada, isso já está em 2001 - Uma
Odisséia no Espaço, aquele supercomputador, que era uma espécie de último tripulante naquela
nave espacial e acaba sobrepujando os outros, tentando ser mais humano do que o humano. A
minha hipótese é que a ficção científica é, sobretudo, uma espécie de espelho distorcido a partir
do qual nós refletimos sobre a nossa realidade. Esses relatos que se multiplicam de uma catástrofe
nuclear são claramente um sinal de alerta para um excesso que a humanidade está cometendo,
que precisa ser remediado e para o qual a gente precisa ficar atenta.

Como o senhor identifica o utópico e o distópico nas obras clássicas de ficção científica?

Digamos que a utopia é uma ilha legislada por um projeto que visa sermos o mais felizes
possível. A distopia está ligada a uma espécie de um programa de controle. Todas as hipóteses de
uma sociedade totalitária, como em 1984 e em Admirável Mundo Novo, freqüentemente têm uma
marca importante da ciência de ponta contemporânea, que é a genética. A importância da genética
na ficção científica moderna é impressionante. A ficção científica é praticamente um sonho ou um
pesadelo biogenético. Todas as hipóteses de uma sociedade de controle, onde houvesse não um
programa de incremento da felicidade do ser humano, mas a projeção de uma sociedade
controlada e em que a liberdade das pessoas é constrangida, são distopias.

A sociedade contemporânea está cada vez mais dependente das máquinas para
acompanhar o desenvolvimento do mundo, entretanto nega essa dependência. Por que o
homem precisa fazer essa negação para afirmar sua humanidade?

Nos relatos de ficção científica é muito evidente que a função da máquina é tão-somente a
possibilidade de, a partir de um confronto - não necessariamente um confronto negativo contra a
máquina - o homem se redescubra enquanto sua essência. É preciso, de certa maneira, que ele se
equipare ou se relacione com a máquina. E que, por exercício de diferença ou de oposição, ele
então se descubra. É quase como se fosse uma espécie de luta cujo resultado seria a definição do
humano. Isso é um modelo extremamente recorrente. Como é que o homem sai desse confronto?
Se lermos, por exemplo, Blade Runner, temos ali máquinas perfeitíssimas, robôs de última
geração, mas que têm uma pequena diferença com relação ao humano. Houve justamente uma
catástrofe nuclear e a Terra deixou de produzir animais ou seres vivos, tanto que as pessoas que
possuem animais domésticos têm status especial. Para promover o êxodo para Marte, onde havia
um ambiente controlado, uma grande empresa, que isso já é um universo corporativo
ultramoderno, para efetivar esse traslado dá para as pessoas um robô de última geração. E esse
robô tem uma pequena diferença com relação ao humano, embora seja, no fundo, muito superior
ao ser humano. Há uma diferença básica, que é o fato de os robôs não terem memória ou
capacidade de sentir compaixão, piedade. E esse acaba sendo um motivo bastante recorrente. O
que é que define o humano? O humano é de fato inferior à máquina, não tem os mesmos recursos
desses robôs super-sofisticados, mas tem uma coisa que o diferencia, que é algo ligado à
solidariedade, à piedade - para usar o termo de Rousseau, à compaixão, que é o que faz o homem

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ser o homem.
Freqüentemente, esse confronto, onde fica evidente a “frieza maquínica”, essa incapacidade de
a máquina sentir a dor do outro, faz com que o homem se perceba como é, um ser compassivo e
que tem a capacidade de se identificar com a dor do outro. Isso é criticado, uma vez que os robôs
de Blade Runner têm a capacidade de sentir dor. Quando morre um outro robô, eles sentem,
choram. Praticamente deixou de haver essa diferença. Em um dos finais possíveis do filme, o
próprio detetive Deckard era também robô, para confundir ainda mais o papel de cada um.

O homem se tornará obsoleto daqui a décadas?

Por um lado, o ser humano é obsoleto por essência, à medida que ele é uma superação de si
mesmo, a partir da definição do ser humano como sendo aquele que tem uma natureza artificial,
uma natureza construída. De certa maneira, o que define o ser humano como projeto é a
obsolescência, uma espécie de constatação recorrente de que os dados precisam ser alterados,
precisa modificar a definição de fatores para encarar uma nova realidade. Então existe uma
espécie de obsolescência sistêmica do ser humano. Por outro lado, se o ser humano é por
definição, desde o início, obsoleto, uma vez que ele se esquece e se reinventa, acredito que essas
novas definições do humano encaminham sempre para uma possibilidade de o homem se
reinventar. Então ele é ao mesmo tempo aquele que se torna obsoleto, mas, também, aquele que
se reinventa. Já que a própria máquina não seria mais do que um meio de o ser humano se
redescobrir.
Léo Arcoverde é jornalista.

RENATO POMPEU
O SIMPLES PODER DE MOLDAR AS CRIATURAS
A engenharia genética consiste na alteração deliberada e com objetivo específico do DNA de
um organismo vivo, isto é, de seu material genético. Não deve ser confundida com a mutação
genética que ocorre naturalmente, nem com o seu aproveitamento pelos seres humanos para, por
meio da seleção e de cruzamentos, criar novas raças e novas variações, como ocorreu, ao longo
de milênios, com animais como o cachorro e plantas como o milho, originados, respectivamente,
do lobo e de uma gramínea de espiga menor do que o dedo mínimo.
A seleção genética, durante a história da humanidade, produziu grande variedade de seres, mas
encontra limites naturais como, particularmente, a compatibilidade reprodutiva entre macho e
fêmea. Cruzamentos entre espécies diferentes costumam dar produtos estéreis, como o burro. A
engenharia genética, ao alterar diretamente o DNA, permite uma variedade muito maior de
resultados e até mesmo possibilita imaginar tornar realidades seres fantásticos, como centauros e
sereias, o que só não está no horizonte factível porque existem sérias restrições bioéticas e legais
a experiências genéticas com seres humanos.
A engenharia genética já conta com mais de meio século de história, pois foi tornada possível a
partir de 1953, quando foi decifrado o código genético. São envolvidas três fases na engenharia
genética: o isolamento do gene a partir de um organismo, sua manipulação para alterá-lo, e sua
transferência para outro organismo.

Seres programados

Desde os anos 1970 foi possível alterar geneticamente micróbios e, desde os anos 1980,
também plantas e animais. Tornou-se possível sintetizar genes, e também se descobriu que, ao
transferir um gene de um organismo para outro, é preciso modificar o gene para torná-lo
compatível com o organismo em que vai ser introduzido. Por esses processos se dá origem aos

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chamados “organismos transgênicos”, conhecidos particularmente no ramo de alimentos de
origem agrícola, também denominados “alimentos geneticamente modificados”, um nome
enganoso, pois a rigor se aplica também a praticamente todos os alimentos de origem agrícola,
obtidos pela seleção, durante séculos, a partir de variedades silvestres pouco comestíveis.
Em larga escala, a engenharia genética começou a ser aplicada à agricultura em 1996 e, cinco
anos depois, já envolvia dezenas de milhões de hectares em todo o mundo, particularmente em
cultivos de soja, canola, milho e algodão. O objetivo principal foi criar, por meio da manipulação
genética, variedades que fossem resistentes a pragas e doenças e ao mesmo tempo tolerantes aos
agrotóxicos usados contra essas pragas e doenças. A grande polêmica é se os transgênicos podem
ser nocivos a seres humanos ou ao meio ambiente em geral; e por isso cada país tem sua
legislação sobre o assunto, sendo os transgênicos mais tolerados nos Estados Unidos e menos
tolerados na União Européia.
Um outro objetivo foi tornar os produtos agrícolas mais ricos em nutrientes. Foi possível
modificar por engenharia genética o arroz, fazendo-o conter betacaroteno, o que resultou no
chamado “arroz dourado”, uma espécie de “arroz-cenoura”. O betacaroteno, uma vez ingerido, se
transforma em vitamina A, e assim o “arroz dourado” pode fazer reduzir uma carência da
alimentação das populações mais pobres nos países menos desenvolvidos.
A engenharia genética tem sido aplicada também em medicina, por meio, por exemplo, da
manipulação de bactérias para que produzam insulina, usadas no tratamento de diabetes, e da
chamada clonagem. Esta consiste na produção de um ser vivo a partir de um ser vivo já existente
e geneticamente idêntico a ele. Por exemplo, no caso da chamada ovelha Dolly: retirou-se o DNA
de uma ovelha e ele foi introduzido no óvulo de outra ovelha do qual tinha sido retirado o
material genético; assim, com o tempo, nasceu outra ovelha idêntica geneticamente à de que tinha
sido retirado o DNA. Isso permite a formação de rebanhos compostos de animais de alta
qualidade comercial. Nada, a não ser restrições éticas e legais, impede que isso seja aplicado a
seres humanos, o que em princípio possibilita que a espécie humana seja composta só de
mulheres, pois, como no caso da Dolly, de um lado é imprescindível ter óvulos e de outro não é
necessário ter espermatozóides. No entanto, já se vislumbra a possibilidade de introduzir o DNA
do macho de uma espécie no óvulo de uma fêmea de outra espécie, como o DNA de um homem
no óvulo de uma macaca do qual foi retirado o material genético, possibilitando que os homens
independam das mulheres para sua reprodução.

Enorme e micro métrico

Para ter uma idéia naquilo que está em jogo na engenharia genética, basta levar em conta que
cada ser humano é composto de 100 trilhões de células. Cada célula tem um código do DNA
constituído de 1,5 bilhão do pares genéticos. Esticado, o DNA de cada célula mediria quase 2
metros; mas, como está enrolado em si mesmo, ocupa apenas 0,0001 centímetro. O DNA de todo
ser humano é 98 por cento igual ao DNA de todo chimpanzé e 99,8 por cento igual ao de todo
outro ser humano. Isso significa que o DNA de uma loura escandinava de 1,80 metro de altura, de
olhos azuis e pele branca, difere em apenas 0,2 por cento do DNA de um pigmeu negro de 1,30
metro, de pele e olhos escuros. Mais ainda, 97 por cento do DNA humano não têm nenhuma
função conhecida pelos cientistas.
A engenharia genética se produz principalmente pela técnica do DNA recombinante. Isso se
constitui em dividir o DNA de um organismo pela metade, fazer a mesma coisa com o DNA de
outro organismo (inclusive de outra espécie) e em seguida combinar uma metade do DNA do
primeiro organismo com uma metade do DNA do segundo organismo, mesmo que seja de outra
espécie.
A técnica do DNA recombinante permite, de um lado, a transferência do DNA de um
organismo para outro. Isso possibilita tratar doenças genéticas, introduzindo genes perfeitos em

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organismos em que há genes defeituosos. De outro lado, permite recortar o DNA em pedaços
menores que têm afinidades com fragmentos de outros DNAs e podem ser reunidos a estes. Isso
possibilita diagnosticar doenças genéticas, como a anemia falciforme. Apesar de as experiências
estarem em curso há mais de duas décadas, o tratamento de doenças por meio de transferência de
material genético ainda é incipiente e fica muito longe de estar disponível generalizadamente.
Uma notícia, na terceira terceira semana de novembro último, deu manchete nos jornais do
mundo inteiro: cientistas do Japão e dos EUA haviam tido sucesso na experiência de retirar
células da pele humana e fazê-las funcionar como se fossem células-tronco embrionárias. Ou
seja, se o sucesso da experiência se confirmar, poderão ser deixadas de lado as células-tronco
embrionárias são obtidas por meio da destruição de embriões, o que tem criado um problema
ético e forte reação dos meios religiosos. Para medir o alcance da descoberta, veja-se o que disse
um cientista americano, Robert Lanza, que trabalhava na tentativa de clonar embriões: “É um
tremendo marco científico (...), é um pouco como aprender a transformar chumbo em ouro”.
Um dos subprodutos da engenharia genética é a biotecnologia, ou seja, a aplicação da
engenharia genética para fins comerciais. Na agricultura, além das plantas resistentes a pragas e
doenças e a agrotóxicos, também se tem buscado, desde os anos 1970, variedades genéticas que
resistam a temperaturas extremas e que amadureçam com maior ou menor rapidez.
A aplicação da biotecnologia na saúde é até mesmo mais importante do que na agricultura. Até
os anos 1980, a única fonte disponível de insulina para tratamento de diabéticos provinha de
animais abatidos para alimentação. Abater animais especificamente para produzir insulina seria
economicamente inviável. Mas, pela técnica do DNA recombinante, surgiram, como vimos, as
bactérias produtoras de insulina, assegurando definitivamente a disponibilidade e o abastecimento
dessa substância.

Nanoengenharia dos genes

Outras aplicações da engenharia genética são a sua combinação com a nanotecnologia, o que
permite o desenvolvimento de computadores e robôs “biológicos”. Aqui temos de levar em conta
que praticamente toda a informática e toda a robótica atuais são baseadas na microtecnologia, ou
seja, na escala de milésimos de milímetros (por isso é que o computador pessoal, ou PC, se
chama na verdade microcomputador). A nanotecnologia, em contrapartida, lida na escala de
bilionésimos de milímetros, ou seja, já na escala das dimensões de moléculas orgânicas. Em
2001, no Instituto Weizman, em Israel, foi produzido o primeiro nanocomputador, capaz de
processar o DNA. Nanorrobôs podem ser introduzidos no organismo para efetuar diversas
tarefas; e até mesmo no Brasil, por exemplo, na Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão
Preto, SP, se usam nanocápsulas e nanoemulsões e nanofármacos em geral que, introduzidos no
organismo, tratam câncer de pele, cáries e outras doenças da pele e dos dentes. Na odontologia, já
se prevê que os nanorrobôs vão substituir o ainda temível motorzinho.
Em suma, as técnicas já disponíveis em engenharia genética e em nanotecnologia permitem,
mesmo agora, “aperfeiçoar” o ser humano, como já “aperfeiçoa” plantas, animais e micróbios, e
as únicas restrições para hoje promover aplicações mais “futuristas”, como clones humanos, são
de ordem ética e legal, e não técnica.
Renato Pompeu é jornalista

OS MEMBROS BIÔNICOS PODEM SER LIGADOS AO SISTEMA


NERVOSO
A par da engenharia genética, existe a biônica, ou seja, a utilização de princípios biológicos em
engenharia, particularmente na engenharia eletrônica. Serve para criar membros e órgãos

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artificiais para substituir membros defeituosos ou amputados e órgãos defeituosos. Por exemplo,
pernas e braços mecânicos, corações e pulmões artificiais. Desde 1928 foi desenvolvido na
Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, o chamado “pulmão de ferro”, para ajudar vítimas
da poliomielite a respirarem. Desde 1982 existem corações artificiais para uso provisório. Em
1973 surgiu o implante coclear para devolver a audição para surdos. No fim dos anos 1980
começou a haver experiências com aparelhos capazes de receber informações do sistema nervoso
e a ele transmitir “ordens”, para levar membros paralisados a se movimentarem, o que pode
ajudar paralíticos, deficientes visuais e outros. Experimentalmente, esses mecanismos podem ser
implantados no cérebro, por meio de chips ou eletrodos.
No começo dos anos 1990, foram desenvolvidos um tipo de olho artificial, a partir da proteína
de uma bactéria, e uma retina de silício. Nestes primeiros anos do novo século continuaram a ser
desenvolvidas próteses mecânicas mais aperfeiçoadas, acopladas ao sistema nervoso, como
pernas mecânicas que permitem a um amputado até mesmo disputar corridas. Mas desde os fins
dos anos 1990 o foco maior dos pesquisadores tem sido a engenharia genética.

GABRIELA LAURENTIIS, DE PARIS


A AMIZADE E O AMOR AGORA BUSCAM O PROVEITO PRÓPRIO
SE O OUTRO NÃO SATISFAZ INTEIRAMENTE, É DESCARTADO

Eugène Enriquez é professor emérito de sociologia da universidade Paris VI - Denis Diderot,


foi presidente do comitê de pesquisas de sociologia clínica da Associação Internacional de
Sociologia. Nesta entrevista ele fala sobre a violência, o amor, a amizade e o sujeito na pós-
modernidade. Explica como esses conceitos mudaram e de que maneira se configuram as relações
na contemporaneidade.

Primeiramente: por que a amizade mudou profundamente?

Pode-se notar que, se as amizades profundas, duráveis, tais como as evocadas, por exemplo,
por Cícero, o escritor romano, ligavam certas pessoas escolhidas, que experimentavam afinidades
eletivas (nome dado pelo escritor alemão Goethe), com as quais os indivíduos podiam
verdadeiramente contar, não desapareceram totalmente, elas, no entanto, se tornaram rarefeitas.
As razões desse relativo desaparecimento são numerosas. Algumas já haviam sido mencionadas
pelo sociólogo alemão Georg Simmel desde o início do século 20; ele notava que a passagem
progressiva de uma vida rural em comunidades relativamente fechadas para uma vida nas grandes
cidades complexas teve como conseqüência a multiplicação das relações superficiais e a
diminuição das relações entre indivíduos extremamente próximos. Se se acrescenta o
desenvolvimento do individualismo do presentismo (que faz que se viva no presente, que se
esqueça o passado e que se projete menos o futuro), do gosto pelo instante, pelo efêmero e que se
espera sempre que a relação nos será proveitosa (o sociólogo inglês A. Gidden diz: Ninguém se
empenha a não ser pelo que se espera receber desse empenho), se compreende que crescem mais
as estratégias relacionais em que cada um quer aproveitar da relação com o outro, do que as
verdadeiras amizades.

O amor está então transformado em líquido?

O tema do amor líquido foi proposto pelo sociólogo inglês Z. Bauman Mesmo se essa
qualificação não for adequada, ela significa, como diz também Giddens, que não se fica junto a
não ser que essa relação dê satisfação, dito de outro modo que o amor (como a amizade) se torna
efêmero, pois cada um dos parceiros exige do outro a plena satisfação de seus próprios desejos, o
que é a expressão de um desejo de ser todo-poderoso. Ora, ninguém é assim tão poderoso, e

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ninguém tem condições de dar uma satisfação total a seu parceiro, porque também ele mesmo
tem seus desejos, pode ser contraditório em relação aos desejos de seu parceiro, e ele tem
também, suas faltas, falhas (nobody is perfect!). Então, como o outro é sempre insuficiente, se
vive sozinho, muda-se o alter ego, a gente se divorcia, esperando que um dia achará um outro
como se quer. Esperança, naturalmente, sempre desfeita.

Qual é o significado de construção amorosa?

Construção amorosa é um termo que uso porque significa que o verdadeiro amor exige sempre
tempo e que é uma construção a dois em que cada um, na sua liberdade, se empenha por inteiro,
leva em conta seus desejos e os desejos do outro. Não se trata de um acordo, mas, ao contrário, de
uma elaboração comum em que cada um em contato com o outro, se transforma, respeita sua
alteridade e estabelece com ele uma relação simétrica (ou ao menos assimétrica possível), uma
reciprocidade dos investimentos afetivos e se baseia no desejo de manter com ele um
relacionamento privilegiado, mas não exclusivo; a exclusividade é a marca da paixão, que é
muito diferente do amor, ao contrário do que quer a sabedoria popular. Nessa relação amorosa,
cada um é fonte de prazer e também de sofrimento, porque, quando dois seres específicos se
encontram, eles vivem momentos de acordo e momentos de conflito, o conflito sendo inerente a
todas as relações humanas.

O amor que dura tem mais chances de nascer entre os indivíduos que têm as mesmas
regras de vida?

O amor pode nascer entre não importa quem. Seres totalmente diferentes, pertencentes a
culturas ou a classes opostas, ou de idades extremamente contrastantes, poderiam se amar
duravelmente. Existem exemplos. No entanto, quando as diferenças são por demais marcantes, se
constata uma forte taxa de separação, pois nenhum dos parceiros consegue fazer esforços
suficientes para tentar encontrar verdadeiramente o outro. É por isso que é mais fácil e mais
freqüente que o amor apareça entre as pessoas que pertencem à mesma cultura, a classes não
muito distantes, de origem relativamente semelhante e que têm a mesma concepção de vida. Mas
seria um erro acreditar que essa proximidade possa resolver todos os problemas. Mesmo quando
as pessoas são próximas, elas podem ter exigências impossíveis de satisfazer, não se compreender
profundamente, entrar em rivalidade. Assim, mesmo nesse último caso, o amor não pode fazer a
economia do conflito, por vezes violento e levando à separação.

Com as novas tecnologias, as relações sociais mudaram?

As novas tecnologias me parecem surgir da tendência a se inscrever numa sociedade do


efêmero; graças à Internet simular (porque não se é obrigado a declinar a verdadeira identidade),
ou se pode conversar muito tempo, ou muito pouco, porque é possível entrar em contato quando
se quer, ter relações amorosas se as pessoas se vêem e mesmo se casar. Tudo se torna fácil. Não
há mais necessidade, quando a pessoa se sente sozinha, de se dirigir a organizações que põem os
indivíduos em contato entre si. Essa fluidez é enganosa. A pessoa acredita que pode pôr uma
máscara, se divertir, talvez criticar o outro, ou achar o amor verdadeiro. Essa crença não é, na
maioria das vezes, mais do que uma ilusão. Não se acha sempre o parceiro desejado, este logo
decepciona e, se a gente usa uma máscara, o outro pode usar também; assim, o risco maior é o
mal-entendido. Enfim, as relações correm o risco de não ter autenticidade.

Sobre a violência por que ela não é mais a violência que fundou o direito e nem é
necessária para as relações humanas? Quais são as diferenças entre a violência antiga e a

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violência de hoje?

Existem sempre violências legítimas (que se exprimem no direito) e a violência necessária para
a construção de um indivíduo. Mas se vê igualmente se desenvolver a violência pela violência (a
violência sem causa legítima). O adágio a bolsa ou a vida se transforma em a bolsa e a vida;
quando se vive pelo instante, se perde a noção do bem e do mal, e, se se conserva essa noção, ela
não impede que alguns queiram satisfazer seu desejo de imediato, a ponto de agredir o outro. A
gente vive num mundo em que o respeito, a consideração pelo outro enquanto ser humano, tende
a se amenizar. A experiência do século 20 (a destruição de milhões de pessoas na Segunda Guerra
Mundial e desde então a tortura ou a destruição de milhares (ou de milhões de pessoas na
América do Sul, na África, na Ásia), infelizmente, habituou os seres humanos ao horror e a não
se sentirem culpados nem terem remorsos quando fazem algo de repreensível. E, mais, o aumento
das desigualdades no mundo exaspera muito as populações; assim alguns, movidos pelo
ressentimento (com ou sem razão), querem exercer a revanche e os que ficam com medo querem
se defender, quando não atacam (diretamente ou por pessoas interpostas) violentamente aqueles
que eles supõem que querem lhes fazer mal; assim, se os bandidos exercem a violência, a
amizade e o amor têm tendência a fazer a mesma coisa.

Como o indivíduo se tornou o sujeito histórico?

Os indivíduos sempre quiseram (mesmo sem o saber conscientemente) ser o sujeito histórico,
pois o indivíduo existiu mesmo nas sociedades hostis. Com certeza, nas tribos arcaicas os
indivíduos são fortemente submetidos às leis e costumes de sua tribo e não podem, a não ser sob
o risco de punição, fazer prova de originalidade e exprimir sua contestação; do mesmo modo, nas
sociedades da Idade Média, os indivíduos eram enquadrados pelas leis da Igreja e enquadrados no
sistema de ordens ou de castas ao qual pertenciam; essas ordens e castas reprimiam, a maior parte
do tempo, os indivíduos quaisquer, sem qualidades, diria o escritor R. Musil, e os impediam de
ter influência social. O indivíduo enquanto sujeito histórico nasce verdadeiramente primeiro na
Renascença, e em seguida no século 18, com o Bill of Rights inglês e as revoluções americana e
francesa. Ele havia nascido pela primeira vez na Atenas do século V, no tempo do florescimento
da democracia, mas ele ainda não tinha chegado, por causa da escravidão, a. um momento em que
cada um pode se tornar autônomo do ponto de vista econômico, o empresário de um lado e o
trabalho livre do outro, independente (não é mais definido por um lugar na comunidade), membro
da cidade ao obter o direito de intervir pessoalmente na vida da cidade, capaz de autocontrole,
reflexivo (apto a se interrogar sobre os valores, seus atos e as conseqüências destes), explorando
sua intimidade e desejoso de se expressar. Mais a mais, as sociedades modernas querem produzir
sua história e não ser dependentes dela, visualizam o futuro e querem edificá-lo. Elas tentam
transformar o mundo e cada um tem um papel a desempenhar nessa peça. Ora, se pode perguntar
se agora, com o indivíduo cada vez mais massificado, e cada vez mais conformista, ele é capaz
ainda de desempenhar esse papel. Em todo caso, os indivíduos são bem mais realistas, e não
sonham mais com as utopias do século 19, que queriam criar o reino de Deus sobre a Terra e que
só originaram pesadelos.
Gabriela Laurentiis é estudante de Ciências Sociais.
Eugène Enriquez é autor das publicações De la Horde à L'Etat, Gallimard, 1983, Les Figures du Maitre, Arcantères, 1991, nova edição corrigida e
revista com o título Clinique du Pouvoir - Les Figures du Maitre, P.U.F, 2005, L'Organisation en Analyse, P.U.F, 1992, Les Jeux du Pouvoir et du
Désir en Entreprise, Desclée de Brouwer, 1997, Le Goût de L'Altérité, Desclée de Brouwer, 1999, Avec C, Haroche: La Face Obscure des
Démoeraties Modernes, ERES, 2003.

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RENATO POMPEU
TEMEM O PÓS-HUMANO. MAS ALGUMA VEZ FOMOS
HUMANOS?
Como diziam os antigos, e eu sou um antigo, me meti numa camisa de onze varas. Recebi de
Sérgio de Souza, o diretor de Redação da Caros Amigos, a tarefa de ler e resenhar os livros
Politizar as novas tecnologias, de Laymert Garcia dos Santos, Editora 34, e Mutações - novas
configurações do mundo - Cultura e pensamento em tempos de incerteza, edição do Ministério da
Cultura, mas, lamentavelmente, não entendi grande coisa do que tentei ler nessas obras. Pedi
então, e consegui, dispensa da incumbência. Mas, como não gosto de não cumprir tarefas, aqui
tento o que, como também diziam os antigos, seriam umas bem mal traçadas linhas sobre o que
entendo por pós-humano.
Os cientistas já são capazes, por um lado, de produzir clones humanos e mesmo quimeras,
corno centauros, sereias e sacis, caaporas - todos viram que já produziram um camundongo tendo
no dorso uma orelha humana; dai a produzir um centauro é um pequeno passo. Por outro lado os
robôs estão ficando cada vez mais capazes dos mais diversos procedimentos e até de “pensar”
cada vez melhor.
Os especialistas que tentei ler parece que estão assustados com tudo isso. Sentem que a
humanidade já não comanda mais a si mesma, que corre o risco de ser substituída por seres de
sua própria criação. Têm saudades dos tempos dos antigos gregos, que passavam o tempo livre
meditando sobre o Ser, e dos tempos medievais, em que as pessoas tinham tempo e
disponibilidade para pensar em Deus. Não levam em conta que os gregos inventaram a
escravidão agrícola e que santos medievais recomendavam a tortura Hoje ainda há trabalhos
forçados e torturas, mas pelo menos a moral vigente não aceita essas práticas como coisa normal.
Só os governos dos Estados Unidos e de Israel admitem a tortura como prática aceitável até certo
ponto; vários Estados islâmicos admitem mutilações - os demais governos em geral praticam a
tortura, mas não a louvam, como gregos e medievais louvavam, uns, a escravidão, outros, a
tortura. Não sei por que aqueles tempos eram melhores do que os de hoje.

Manipulação do DNA

Queixam-se de que a espécie humana pode, de um lado, ser substituída pelos robôs, e de outro
lado por comunidades constituídas só de mulheres, que não precisariam de homens para
reproduzir-se - comunidades que já são possíveis hoje, como mostra a ovelha Dolly. Ou por

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comunidades constituídas só de homens, que, usando óvulos de macacas, não precisarão, num
futuro mais remoto, de mulheres para se reproduzirem. Tudo isso povoado por seres fantásticos
de livre criação dos manipuladores do DNA. Ou por robôs imortais ou capazes de se
reproduzirem.
Mas pouco se queixam de gozarem dos privilégios, manifestos nas condições de vida das
classes altas hoje, criados pelos nossos ancestrais que massacraram os índios e escravizaram os
negros. Muitos lamentam um futuro sem seres humanos, a serem destruídos por suas próprias
criações e pelas catástrofes ecológicas que eles mesmos desencadearam. Mas poucos lamentam o
presente desumano da esmagadora maioria dos seres humanos que vivem hoje, e, também, o
passado desumano da esmagadora maioria dos seres humanos que viveram no passado.
Por que mereceríamos um destino melhor do que a extinção? Só podemos aspirar a esse título
se lidarmos contra as forças cegas da economia que já condenam hoje e sempre condenaram a
esmagadora maioria dos seres humanos a viverem vidas desumanas. Já faz mais de cem anos que
se vislumbrou que a humanidade tinha de optar entre duas saídas: ou o socialismo ou a barbárie.
Duas guerras mundiais e vários genocídios depois, até o socialismo que chegou a existir foi meio
bárbaro. Estamos já no início do que pode vir a ser a Terceira Guerra Mundial, ou a catástrofe
ecológica definitiva, ou a criação de um novo Universo por meio de um Big Bang artificial - e se
formos substituídos por robôs ou por outras espécies, sempre por seres criados por nós mesmos,
teremos o que sempre merecemos, por vivermos da exploração do sangue, suor e lágrimas de
outros seres humanos.
Só depende de nós eliminarmos a exploração dos seres humanos por outros seres humanos, por
meio da eliminação da necessidade do trabalho produtivo. Por meio da combinação de todas as
novas tecnologias, podemos criar plantas-máquinas que produzirão tudo que necessitamos para
uma vida plenamente humana. O capital, porém, precisa do trabalho produtivo, do trabalho vivo
de seres humanos, sempre penoso, para conferir valor aos bens; e como pela concorrência precisa
chegar ao menos custo possível, o capital, paradoxalmente, tende a eliminar ao máximo o
trabalho vivo que lhe dá origem - essa é a raiz fundamental da crise permanente em que vivemos.
O capital precisa do trabalho vivo para se valorizar, mas ao mesmo tempo, como concorre com
outros capitais, precisa eliminar a própria fonte de que se alimenta. Periodicamente, isso leva o
capital a destruir tudo, como na Primeira e Segunda Guerra Mundiais, para então poder
reconstruir-se, tornando o trabalho produtivo outra vez necessário e outra vez criador de valor. A
situação é explosiva, como sentimos na pele e como sentem na pele os autores que não consegui
ler.

Dois reinos

A única saída é eliminar o trabalho que produz valor. Só então sairemos do reino do desumano
para entrar no reino do humano. Ingenuamente, a saída que se vislumbra é reduzir as horas de
trabalho. Mas para o capital dois homens trabalhando seis horas saem mais caros do que um
homem trabalhando doze horas, pois cada um dos dois homens precisará do mesmo salário
mínimo do homem que trabalha doze horas, e ambos junto produzirão menos horas de mais-valia
do que o homem sozinho. Se o salário é igual a quatro horas, no caso do homem trabalhando doze
horas temos quatro horas de salário e oito horas de mais-valia: no caso dos dois homens
trabalhando seis horas, teremos oito horas de salário e só quatro horas de mais-valia. Esse é o
segredo da barbárie, que contaminou até o socialismo realmente existente, que ruiu por suas
virtudes, e não pelos seus defeitos, sendo sua virtude maior a impossibilidade de introduzir
tecnologias poupadoras de mão-de-obra que levariam ao desemprego.
O que é preciso não é diminuir as horas de trabalho, é eliminar o trabalho produtivo. E reprimir
os violentos, deixando cada um se divertir como quiser, ou seja, ser humano como quiser, desde
que não seja pela violência.
Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio

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O mundo como obra de arte criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela.

Digitalização: lamps
Edição/Revisão: Betrunken

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