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21832017 369
ARTIGO ARTICLE
doenças raras hereditárias como sofrimento de longa duração
Abstract This article analyzes common elements Resumo Este artigo analisa elementos comuns
in the trajectory of people affected by rare hered- na trajetória de pessoas afetadas por doenças raras
itary diseases in Brazil, focusing on the search for hereditárias no Brasil, tendo por cerne a busca por
diagnosis and treatment, and the reproducibility diagnóstico e tratamento, e a reprodutibilidade da
in the family. Rare diseases affect 65 people in ev- família. Classificam-se como “raras” as doenças
ery 100 thousand. These are usually chronic and que afetam 65 pessoas a cada 100 mil. São condi-
degenerative conditions, many incurable or with- ções geralmente crônicas e degenerativas, muitas
out effective treatment. About 80% of rare diseas- delas sem cura ou tratamento efetivo. Cerca de
es are genetic in origin and can be inherited. This 80% das doenças raras têm origem genética e são
fact has important implications for family health hereditárias. Este dado traz implicações impor-
care policies, reproduction, and care for clinical tantes no que diz respeito às políticas de atenção à
conditions that, in some cases, spanned genera- saúde da família, à reprodução e ao cuidado para
tions. To analyze the data, two theoretical axes are condições clínicas que, em alguns casos, atraves-
articulated: family and kinship studies, and ana- sam várias gerações. Para análise dos dados, arti-
lyzes of long-term suffering. The research investi- culam-se dois eixos teóricos: os estudos de família
gated people affected by rare hereditary diseases e parentesco e as análises sobre os sofrimentos de
and their families, in the political scenarios in longa duração. A pesquisa desenvolveu-se junto a
which these actors circulate, such as patient asso- pessoas afetadas por doenças raras hereditárias e
ciations, scientific congresses and public hearings. seus familiares, nos cenários políticos nos quais es-
There is evidence of the need to build a continuous ses atores transitam, como associações de pacien-
agenda on rare diseases in Brazil capable of effec- tes, congressos científicos e audiências públicas.
tively promoting universal and integral access of Evidencia-se a necessidade de construção de uma
the affected persons to the public health system, pauta contínua sobre as doenças raras no Brasil,
and seeking for solutions to alleviate suffering that capaz de promover de fato o acesso universal e in-
threatens the very continuity of the family. tegral das pessoas afetadas ao sistema público de
Key words Rare disease, Family, Kinship, Genet- saúde, e buscar soluções para minorar sofrimentos
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Instituto de Ciências
Sociais Universidade do ics. que ameaçam a própria continuidade da família.
Estado do Rio de Janeiro. R. Palavras-chave Doença rara, Família, Parentes-
São Francisco Xavier 524/2º,
co, Genética
Maracanã. 20550-900
Rio de Janeiro RJ Brasil.
waurelianorio@gmail.com
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Aureliano WA
tadas na ideia do “patrimônio genético” herdado informações podem gerar conflitos difíceis de se-
da família18. rem desfeitos considerando-se o limitado leque
Nesse processo, novas formas de organização de opções terapêuticas (quando elas existem) ou
política e representações sociais emergiram para ações possíveis que as pessoas afetadas podem re-
tratar de questões relacionadas aos processos de alizar. Novoas e Fróes Burnham26, por exemplo,
saúde e doença, a constituição dos vínculos fami- chamam a atenção para distinção que seria neces-
liares e de parentesco, e a produção de identida- sária, segundo elas, entre os exames genéticos que
des clínicas antes associadas ao “sangue”, e agora realmente podem contribuir para a melhora do
marcadas pela ideia do “patrimônio genético”. paciente e aqueles que apenas apontam a origem
Rabinow19 definiu o termo biossociabilidade de problemas, para os quais ainda não há solu-
para enfatizar a formação de novas identidades ção. Já Corrêa e Guilam27 nos mostram como o
e práticas individuais e coletivas no âmbito do AG pré-natal pode se tornar fonte de angustia e
capitalismo moderno, que seriam marcadas pela ansiedade num contexto como o nosso, onde o
ênfase na dimensão biológica, reforçada a partir aborto em casos de malformação fetal não é lega-
do Projeto Genoma Humano. lizado, contradizendo a expectativa de autonomia
No entanto, essas biotecnologias passam por da mulher e poder de escolha evocada pelo AG.
questionamentos quanto a sua real utilização Essas são situações que nos mostram o caráter
para pessoas que são assintomáticas e que podem, ambivalente de tais tecnologias e seus usos, que
a partir da testagem preditiva, por exemplo, serem não podem escapar a uma análise dos contextos
confrontadas com uma situação de grande ansie- culturais, econômicos e sociais onde elas são apli-
dade frente ao diagnóstico do provável desenvol- cadas.
vimento de uma doença crônica. Testes genéticos Sendo as doenças raras em sua maioria con-
para o câncer de mama hereditário, por exemplo, dições crônicas degenerativas, sem perspectiva de
podem criar graus de ansiedade difíceis de serem cura, podemos pensá-las dentro da definição dos
resolvidos. No caso de resultados positivos que sofrimentos de longa duração. São enfermidades
aumentam o risco para este tipo de câncer, a solu- com grande potencial de alteração na vida dos
ção apresentada passa muitas vezes pela retirada sujeitos, tanto em função das limitações biológi-
preventiva das mamas, uma decisão complexa e cas que acarretam quanto das incertezas geradas
nem sempre acessível para todas as mulheres20,21. sobre seu prognóstico. Ao lado de uma grande
Além disso, a disseminação desses testes po- esperança com relação ao futuro da pesquisa ge-
deria vir a formar uma nova classe de pessoas nética temos uma enorme ausência de terapias
estigmatizadas: os doentes pré-sintomáticos, pes- efetivas para essas enfermidades. Ao contrário de
soas que são completamente saudáveis, mas cujos outras doenças de longa duração, como o diabe-
testes genéticos apontam para possibilidade de tes ou a hipertensão, muitas doenças raras não
desenvolverem uma doença no futuro. A devolu- têm sequer a perspectiva do controle dos sinto-
ção e interpretação dos resultados também pode mas. A convivência com uma enfermidade de-
despertar sentimentos de rotulação, ansiedade generativa como as ataxias ou as distrofias, por
e invasão de privacidade entre pessoas que não exemplo, demandará ajustes constantes na vida
possuem qualquer doença22, mas carregam um das pessoas diante das transformações sucessivas
gene “fora do padrão”, e ainda levar a situações de e ininterruptas pelas quais seus corpos passarão.
“discriminação genética”, especialmente no mun- Nos casos em que a manifestação da doença
do do trabalho, como demonstrado por Guedes se dá no início da vida, o esforço da família com
e Diniz23. os cuidados infantis será acrescido de uma série
É neste sentido que alguns pesquisadores de novas ações, além das já demandadas para essa
chamam a atenção para os impactos emocionais, fase, e que se estenderão por toda a vida dos sujei-
subjetivos e sociais envolvidos na disseminação tos afetados. Para as doenças de expressão tardia,
dos testes genéticos, alertando para necessidade o desafio está em administrar a ruptura causada
de atitudes eticamente responsáveis por parte dos pela doença em corpos antes saudáveis, a gestão
profissionais de saúde, especialmente aqueles en- desse corpo no mundo do trabalho e na família,
carregados de realizar o aconselhamento genético e a convivência, quase sempre, com a ausência ou
(AG)24-27. Observa-se que nem sempre os testes com os altos custos dos tratamentos. Em ambos
e as informações oferecidas no AG promovem o os casos, a doença rara hereditária acaba por afe-
empoderamento dos sujeitos frente às adversi- tar e envolver toda a família de diversas formas:
dades em saúde que possam vir a enfrentar em o cuidado imediato do familiar afetado, a reorga-
decorrência de uma condição genética. Antes, tais nização do espaço físico da casa, a preocupação
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não, se acontecer já tem um caminho a percorrer terial de pesquisa, e nós precisamos dar assistên-
(S3-mulher, com diagnóstico para DMJ). cia para pacientes que estão há anos buscando esse
No caso das doenças de herança autossômi- diagnóstico [de ataxia]. Mas se a verba para pes-
ca recessiva que surgem na primeira infância, quisa acabar, os testes também acabam. Não é o
a busca por um diagnóstico precoce é uma das SUS que dá o teste (S4-mulher, geneticista).
principais demandas dos pais e especialistas, so- A pessoa não acha onde fazer o teste do suor,
bretudo, para doenças que podem ser diagnos- que é o teste realmente que vai fechar o diagnóstico
ticadas pelos sistemas de testagem neonatal já [para FC], e não são poucos os casos que nem o tes-
existentes, como a fibrose cística (FC) e a fenil- te do suor é conclusivo porque tem valores limiares,
cetonúria (PKU), e que possuem tratamento. As a pessoa vai ter que recorrer a um teste genético, aí
doenças não testadas nos programas de triagem mesmo que é muito difícil mesmo encontrar! Tem
neonatal enfrentam outros problemas. A primei- alguns lugares que fazem como parte de uma pes-
ra, é a dificuldade em conseguir consulta com um quisa, de um pesquisador ali da genética, trabalho
especialista que irá solicitar o teste genético para do doutorado dele, não é uma coisa sistemática,
definir, por exemplo, qual o tipo de uma doença não é um serviço, a pessoa faz como parte de um
que possui diferentes variações, como é o caso estudo (S8, pai de criança com FC, membro de as-
das mucopolissacaridoses (MPS). Nestes casos, o sociação).
acesso ao medicamento pela via judicial depende Desta forma, percebe-se que o diagnóstico é
do diagnóstico genético que pode demorar meses um dos gargalos para a questão das doenças ra-
ou anos para ser conseguido: ras. Identificar corretamente a doença pode não
Essa, por exemplo, que está com suspeita de impedir seu curso natural, especialmente no caso
mucopolissacaridose (MPS), que apareceu essa de doenças de expressão tardia, degenerativas e
semana, a médica não estava conseguindo marcar sem tratamento específico. Porém, para quem
geneticista, encaminhar para um geneticista. E de- convive com uma enfermidade que está presente
mora só para marcar, para se encaminhar para um há décadas em suas famílias, ter um nome para
geneticista. Demora às vezes um ano e, quando vai ela significa preencher lacunas na compreensão
para a genética, ainda tem que fazer toda aquela dessa herança, dotando de novas compreensões
bateria de exames, para poder saber se é a doença o passado familiar, assim como acena com a pos-
ou não. Aí quer dizer, mais um ano, são dois anos sibilidade de estabelecer ações no presente e pro-
para conseguir [diagnosticar] (S7, mãe de criança jetar o futuro. Por exemplo, ter o diagnóstico é
com MPS, membro de associação). o que possibilita para muitas pessoas justificar o
Eu lembro que a gente ia em reunião com o Es- pedido de auxílios sociais já estabelecidos para as
tado para discutir a inclusão do teste do pezinho pessoas com deficiência, mas que podem ser mais
[na triagem neonatal do Rio de Janeiro]. A gente difíceis de acessar quando sobre aquela pessoa
falava assim: ‘o que adianta vocês não quererem paira uma interrogação sobre sua condição de
diagnosticar? A criança vai chegar em algum mo- saúde, especialmente se ela tem graus variados de
mento, grave precisando de uma UTI ou grave pre- evolução. O relato abaixo exemplifica essa com-
cisando de dez medicamentos quando na realidade plexidade que muitas vezes obriga a pessoa com
poderia está precisando de um só’ [...] a resposta uma doença rara degenerativa a ter que provar
era ‘do que adianta ter o diagnóstico, saber que tem sua condição de outras formas, se ela não possui
fibrose cística se depois não vai ter para onde en- o diagnóstico genético em mãos:
caminhar para fazer o tratamento?’ Era assim, as Eu já estou aqui andando de muleta, mas o mé-
respostas eram desse nível. (S6, mãe de criança com dico [do INSS] diz que eu tenho bom equilíbrio,
FC, membro de associação). mas eu sei que vai piorar, eu me sinto cansada. Aí o
A inclusão de testes genéticos em políticas que eu faço? No dia da perícia eu acordo mais cedo
nacionais de saúde ainda depende de uma forte e dou umas dez voltas na pracinha que tem per-
atuação das associações de pacientes nos meca- to da minha casa, porque caminhar cansa minha
nismos do Estado, pois não estão implementados musculatura e o equilíbrio fica pior. E vai ser assim
de forma sistemática no sistema público de saú- até eu ter o exame genético, faz quase um ano que
de. Muitas famílias conseguem um diagnóstico eu fiz e não saiu ainda o resultado (S9-mulher, com
ao participarem de pesquisas acadêmicas, através sintomas de DMJ).
de redes de colaboração que se formam entre pa- No caso das doenças raras hereditárias com
cientes, pesquisadores e médicos: algum tratamento específico, que será mais eficaz
Nós conseguimos os testes através da rede, é se iniciado precocemente, o diagnóstico correto
uma troca. Eles [pesquisadores] precisam do ma- irá determinar a qualidade de vida que a pessoa
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testagem preditiva ou recusar a ideia de que não ção. Valores associados à autonomia individual e
podem ou de que não deveriam ter filhos. profissional, à percepção das idades e suas fases
Percebeu-se que, ao menos nessas famílias, a no curso da vida, bem como às relações afetivas
procura por um diagnóstico através de testes ge- travadas entre os parentes com e sem a doença,
néticos estava sendo balizada por diferentes fato- têm um valor significativo no modo como uma
res: entre os que tinham sintomas haveria ques- doença rara hereditária é encarada e percebida
tões sociorrelacionais que poderiam ser resolvi- pelos membros assintomáticos. Isso não signifi-
das com o diagnóstico em mãos, como a necessi- ca que as pessoas não compreendem o risco de
dade de comprovar perante outros sua condição transmissão da doença aos descendentes, suas
genética e legitimar seu afastamento do trabalho. limitações e consequências físicas, mas sim que
Para os que não apresentavam os sintomas, o tes- evocam outras formas de significar esses elemen-
te era visto como meio de antecipar o sofrimento tos, a fim de tomar decisões e construir projetos,
e a angustia se desse positivo, e até mesmo acele- atitude que faz parte da experiência com doenças
rar o desenvolvimento da doença, por fazer com de longa duração.
que a pessoa ficasse “o resto da vida pensando Durante o trabalho de campo, ouvi relatos de
nisso”, e não como meio de programar a vida ou pessoas que disseram que alguns médicos, não
fazer as escolhas reprodutivas. especialistas em genética médica, afirmaram que
Nas doenças de herança autossômica reces- a única maneira de acabar com a doença here-
siva, cujos sintomas aparecem já ao nascimento ditária na família seria acabando com a própria
ou nos primeiros anos de vida, o diagnóstico do família, ou seja, interrompendo o ciclo reprodu-
filho doente revela para os pais a sua condição de tivo dos descendentes. O peso dessa afirmação
portadores de um gene “defeituoso”, que para eles é imenso e difícil de suportar, quando sabemos
não provoca a doença, mas que representa 25% que a constituição da família através do paren-
de chance de gerarem filhos doentes. Neste caso, tesco consanguíneo é um valor forte em nossa
são os testes pré-natais que emergem como tec- sociedade.
nologia diagnóstica a ser considerada e também Castiels et al.38 afirmam que algumas abor-
aqui observam-se resistências, pois a legislação dagens da biogenética têm produzido alto grau
brasileira não permite interrupção da gestação de responsabilização para pessoas que vêm de
caso o teste seja positivo para uma doença rara contextos familiares marcados pela cronicida-
que cause malformação ou sério comprometi- de, sobretudo, uma noção de “responsabilidade
mento cognitivo. Deste modo, questiona-se mui- reprodutiva” que deve ser construída a partir de
tas vezes a busca pelo diagnóstico precoce no feto, uma “escolha informada” e uma “atitude geneti-
especialmente para os casos sem tratamento me- camente responsável”. Essa é uma acepção muito
dicamentoso ou intervenções capazes de minorar corrente em contextos de economia liberal avan-
os efeitos da doença27. Mesmo em países onde a çada39, porém mesmo nesses cenários tal retórica
legislação permite o aborto no caso de doença enfrenta resistências, pois as escolhas reproduti-
rara e malformação, há pesquisas que demons- vas envolvem relações que dificilmente são equa-
tram as tensões morais pelas quais os parentes lizadas sem ruídos, sem negociações diversas
assintomáticos passam ao se defrontar com essa com valores, afetos e expectativas relacionadas à
possibilidade nas suas escolhas reprodutivas29,30. família.
Nestes casos, não é apenas a lógica da saúde que Por fim, cabe questionarmos em que sentido
é considerada para o uso dos testes, mas também podemos falar em “responsabilidade reproduti-
as relações afetivas e relacionais travadas no inte- va” ou “escolha informada”, quando sabemos que
rior da família com a doença e seus portadores, e muitas famílias com doenças raras hereditárias
as possibilidades de vida com uma condição rara. alcançam um diagnóstico definitivo depois de
Esses dados nos permitem questionar em anos, às vezes, décadas de itinerário terapêutico,
parte a afirmação de Finkler8,18 de que a bioge- quando já constituíram sua descendência. Para
nética estaria formatando relações de parentesco complicar a ideia de “escolha”, que é altamente
antes baseadas na honra, no compartilhamento individualizadora, precisamos também consi-
de crenças, valores e modos de ser, pela fisicalida- derar o que pode ser escolhido. No Brasil, tanto
de do gene. Observou-se, a partir do contato com os testes genéticos preditivos quanto as técnicas
essas famílias, e em outros estudos aqui citados, de fertilização in-vitro com seleção de embriões
que a genética tem muita importância, mas não (que permitir a reprodução sem a transmissão de
se torna um determinante para a construção de genes causadores de doenças raras40) são caros,
projetos relacionados à família e sua reprodu- não estão disponíveis na rede pública de saúde,
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