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Capítulo 1

Introdução
GENÉTICA E GENÔMICA NA MEDICINA
A genética surgiu na medicina no início do século XX, quando Garrod e outros perceberam que as
leis mendelianas de hereditariedade eram capazes de explicar a recorrência de certos transtornos nas
famílias. Durante os 100 anos seguintes, a genética médica passou de uma pequena subespecialidade
preocupada com alguns poucos transtornos hereditários raros a uma especialidade médica
reconhecida, cujos conceitos e abordagens constituem componentes importantes do diagnóstico e
tratamento de muitas doenças, tanto as comuns como as raras. Isso é ainda mais notável no começo
do século XXI, com a conclusão do Projeto Genoma Humano, um empreendimento internacional
para determinar a seqüência completa do genoma humano, definido como a soma total de
informações genéticas da nossa espécie (o sufixo -oma significa, em grego, “todo” ou “completo”).
Podemos atualmente estudar o genoma humano como uma entidade, em vez de estudarmos um só gene
de cada vez. A genética médica se tornou parte de um campo mais amplo, a genômica médica, que
busca aplicar uma análise em grande escala do genoma humano, incluindo o controle da expressão
gênica, a variação gênica humana e interações entre os genes e o ambiente, de modo a aprimorar os
tratamentos médicos.
A genética médica não aborda apenas o paciente, e sim a família como um todo. Uma história
familiar abrangente é uma etapa inicial importante na análise de qualquer doença, seja esta
sabidamente genética ou não. Como ressaltado por Childs, “não colher adequadamente uma boa
história familiar denota má prática médica”. A história familiar é importante porque pode ser crucial
no diagnóstico, pode demonstrar que um determinado transtorno é hereditário, fornecer informações
sobre a história natural de uma doença e variações em sua expressão, e pode esclarecer o padrão de
herança. Além disso, a descoberta de um componente familiar em um transtorno médico permite
estimar o risco em outros membros da família de modo que o tratamento apropriado, prevenção e
consulta genética * seja oferecida ao paciente e à família.
Nos últimos anos, o Projeto Genoma Humano forneceu a seqüência completa do DNA humano,
o que torna possível a identificação de todos os seus genes, a determinação do grau de variação
desses genes em diferentes populações e, por fim, a identificação do processo através do qual essa
variação contribui para a saúde e as doenças. Juntamente com as demais disciplinas da biologia
moderna, o Projeto Genoma Humano revolucionou a genética humana e médica, por fornecer uma
nova compreensão do funcionamento de muitas doenças e promover o desenvolvimento de melhores
ferramentas de diagnóstico, medidas preventivas e métodos terapêuticos baseados em uma visão
abrangente do genoma.
A genética está se tornando rapidamente um principio organizador central da prática médica. A
seguir são apresentados alguns exemplos das inúmeras aplicações da genética e da genômica na
medicina atualmente:
Uma criança que tenha múltiplas malformações congênitas e uma análise cromossômica de rotina
normal é submetida a um exame genômico de alta resolução em busca de deleções ou duplicações
cromossômicas submicroscópicas.
Uma mulher jovem com história familiar de câncer de mama recebe educação, interpretação de
exames e apoio de um especialista em câncer de mama hereditário.
Um obstetra envia uma amostra de vilosidades coriônicas colhida de uma mulher grávida, de 38 anos
de idade, a um laboratório de citogenética, para pesquisar anormalidades no número ou estrutura dos
cromossomos fetais.
Um hematologista combina a história familiar e clínica a um exame genético de um adulto jovem com
trombose venosa profunda, para avaliar os benefícios e riscos de se iniciar e manter uma terapia
anticoagulante.
O uso de microarrays de DNA para a análise da expressão gênica em amostras tumorais pode
determinar o prognóstico e guiar a tomada de decisões terapêuticas.
Uma oncologista realiza exames nos seus pacientes para investigar variações genéticas capazes de
prever uma resposta adequada ou uma reação adversa a um quimioterápico.
Um patologista forense utiliza bancos de dados de polimorfismos genéticos para a análise de amostras
de DNA obtidas a partir de objetos pessoais de vítimas e de seus genitores sobreviventes,
possibilitando a identificação dos restos mortais no atentado de 11 de setembro de 2001 no World
Trade Center, Estados Unidos.
A descoberta de uma via de sinalização oncogênica reativada de maneira inadequada por uma
mutação somática em um tipo de tumor leva ao desenvolvimento de um inibidor potente e específico
dessa mesma via, o que permite o tratamento bem-sucedido do câncer.
Os princípios e as abordagens genéticos não se restringem a nenhuma especialidade ou
subespecialidade médica; ao contrário, permeiam muitas áreas da medicina. Para que os pacientes e
suas famílias possam se beneficiar plenamente da expansão do conhecimento genético, todos os
médicos e seus colegas nas profissões da saúde precisam entender os princípios subjacentes da
genética humana. Esses princípios incluem a existência de formas alternativas de um mesmo gene
(alelos) na população; a ocorrência de fenótipos semelhantes surgidos a partir de mutações e
variações em diferentes loci; a noção de que os transtornos familiares podem surgir a partir de
variantes genéticas que causam suscetibilidade a doenças em meio às interações gene-gene e gene-
ambiente; o papel das mutações somáticas no câncer e no envelhecimento; a possibilidade de se
realizarem diagnósticos pré-natais, exames pré-sintomáticos e triagens populacionais; e, por fim, a
promessa de poderosas terapias baseadas nos genes. Esses conceitos influenciam atualmente em toda
a prática médica e se tornarão cada vez mais importantes.
Classificação dos Transtornos Genéticos
Na prática clínica, o principal significado da genética está na elucidação do papel das variações e
mutações genéticas na predisposição às doenças, na modificação do curso das doenças ou em suas
próprias causas. Praticamente todas as doenças resultam na ação combinada dos genes e do
ambiente, mas o papel relativo do componente genético pode ser maior ou menor. Entre as doenças
causadas inteiramente ou em parte por fatores genéticos, três tipos principais podem ser
reconhecidos: os transtornos cromossômicos, os transtornos de um único gene e os transtornos
multifatoriais.
Nos transtornos cromossômicos, o defeito não se deve a um único erro na seqüência genética,
e sim a um excesso ou a uma deficiência dos genes contidos em cromossomos inteiros ou em seus
segmentos. Por exemplo, a presença de uma cópia extra do cromossomo 21 provoca uma doença
específica: a síndrome de Down, embora nenhum dos genes do cromossomo seja anormal. Como um
todo, os transtornos cromossômicos são comuns, afetando cerca de sete entre 1.000 nascidos vivos e
sendo responsáveis por cerca da metade dos abortos espontâneos no primeiro trimestre. Esses
transtornos serão discutidos no Capítulo 6.
O s transtornos de um único gene são causados por genes mutantes individuais. A mutação
pode estar presente em apenas um dos cromossomos do par (pareado a um alelo normal do
cromossomo homólogo) ou em ambos os cromossomos. Em alguns casos, a mutação se encontra no
genoma mitocondrial, e não no nuclear. De qualquer maneira, a causa é um erro crítico na informacão
genética transportada por um único gene. Transtornos de um único gene, como a fibrose cística, a
anemia falciforme e a síndrome de Marfan, geralmente apresentam padrões de heredograma
evidentes e característicos. A maioria desses transtornos é rara, com uma freqüência que pode chegar
a um em 500 a 1.000 indivíduos, embora seja, em geral, muito menor. Ainda que sejam raros
individualmente, os transtornos de único gene são responsáveis, como um todo, por uma proporção
significativa das doenças e mortes. Tomando-se a população como um todo, os transtornos de um
único gene afetam 2% da população em algum momento da vida. Num estudo populacional realizado
em mais de um milhão de nascimentos vivos, estimou-se que a incidência de transtornos de um único
gene na população pediátrica era de 0,36%; entre crianças internadas, 6% a 8% provavelmente
possuem transtornos de único gene. Essas doenças serão discutidas no Capítulo 7.
A herança multifatorial é responsável pela maior parte das doenças, todas as quais têm um
componente genético, conforme demonstrado por um maior risco de recorrência em parentes de
pessoas afetadas ou pela maior freqüência em gêmeos idênticos, e ainda assim apresentam padrões
familiares de herança que não se enquadram nos padrões característicos observados nos transtornos
de único gene. As doenças multifatoriais incluem transtornos do desenvolvimento pré-natal,
resultando em malformações congênitas, como a doença de Hirschsprung, a fenda labial e palatina ou
defeitos cardíacos congênitos, assim como muitos transtornos comuns da vida adulta, como a doença
de Alzheimer, o diabetes e a hipertensão. Em muitos desses transtornos, não parece haver um erro na
informação genética. Em vez disso, a doença resulta de um, dois ou mais genes diferentes que, juntos,
geram ou predispõem a um defeito grave, freqüentemente combinado com fatores ambientais. As
estimativas do impacto das doenças multifatoriais variam de 5% na população pediátrica a mais de
60% na população geral. Essas doenças serão abordadas no Capítulo 8.
RUMO AO FUTURO
Durante os 50 anos da vida profissional dos alunos de pós-graduação e profissionais, é provável que
mudanças significativas ocorram na descoberta, desenvolvimento e utilização do conhecimento e
ferramentas genéticas e genômicas na medicina. É difícil imaginar que alguma outra época pudesse
conter mudanças maiores que aquelas observadas nos últimos 50 anos, durante os quais essa
disciplina passou do reconhecimento inicial da identidade do DNA como agente ativo da
hereditariedade à descoberta da estrutura molecular do DNA e dos cromossomos e à determinação
do código completo do genoma humano. Ainda assim, a julgar pela aceleração do passo das
descobertas apenas na última década, é praticamente certo que estejamos à beira do início de uma
revolução na integração do conhecimento sobre a genética e o genoma à saúde pública e à prática
médica. Uma introdução à linguagem e aos conceitos da genética humana e médica e uma apreciação
da perspectiva genética e genômica na saúde e nas doenças formarão as bases para um aprendizado
que durará por toda a vida, tornando-se parte da carreira de todo profissional da saúde.

REFERÊNCIAS GERAIS

uttmacher AE, Collins FS. Genomic medicine—a primer. N Engl J Med. 2002;347:1512-1520.
eltonen L, McKusick VA. Genomics and medicine. Dissecting human disease in the postgenomic era.
Science. 2001;291:1224-1229.
Willard HF, Angrist M, Ginsburg GS. Genomic medicine: genetic variation and its impact on the future
of health care. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2005;360:1543-1550.

* N. R. C.: Como não se deve dar conselhos e sim informações, nesta obra usaremos consulta,
consultor e consulente.

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