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Carneiro - O Peso Da Carne Negra Feminina No Mercado Da Saúde PDF
Carneiro - O Peso Da Carne Negra Feminina No Mercado Da Saúde PDF
Rosamaria Carneiro
Universidade de Brasília
1
Prólogo
Era uma tarde de sexta-feira, como as que de costume passávamos na Casa de Parto.
Estávamos, eu e uma estudante, praticamente nos despedindo, quando pelo corredor
chega uma moça em uma cadeira de rodas, levada por uma profissional. “Ai meu pai,
me ajuda! Me ajuda! Ai, ai, ai, ai que dor!”. Ela gemia e se contorcia na cadeira. Era
jovem, negra, tinha os cabelos alisados e compridos, usava um short curto, uma blusa
branca larga, chinelos e um esmalte vermelho já bastante descascado nas unhas do pé e
das mãos. A barriga era pequena e, por isso, quando minha aluna me disse que para
esperarmos para ver o que aconteceria, primeiro, pensei: “não é parto para hoje. É
impossível”. Ela havia passado por uma consulta na CP horas antes e, em tese, estava
“tudo tranquilo”, salvo por uma anemia e pelas pouquíssimas consultas de pré-natal; o
que havia feito com que a enfermeira horas antes lhe dissesse da impossibilidade de dar
à luz naquele espaço. No entanto, a moça havia retornado. Decidi entrar para me
despedir depois de mais um dia de pesquisa de campo no local. Estava na recepção,
quando então uma das técnicas passou e lhe perguntei se moça estava parindo, já que
minha aluna insistia para que esperássemos. E então, para minha surpresa: sim, estava
parindo. Fui até a porta e de longe uma outra profissional me avistou. Quando me viu,
comentou com a moça: “tem uma moça aqui na porta que pesquisa parto aqui conosco.
Se você deixar ela entrar, ela pode segurar a sua mão. Você quer? Pode ser?”Marcella
autorizou a minha entrada, dei-lhe minha mão e fiquei ao seu lado até o nascimento da
criança. Foi um parto rápido, que trouxe à vida, Manuela. Entre uma contração e outra
Marcella me olhava fundo nos olhos e apertava com muita força minha mão. Estávamos
somente nós, as enfermeiras, eu, minha aluna, a técnica, a parturiente e depois a menina
recém-nascida. Marcella não conhecia nenhuma de nós. Deu à luz entre desconhecidas.
Estava sozinha. Sozinha. Quando lhe perguntaram para quem ligar, quase não escutei a
resposta. Mas ela, curiosamente, respondeu: “logo, logo, isso aqui estará lotado de
gente. Todos virão me ver”. Depois de uma semana, voltamos para a CP e logo
corremos ao prontuário. Para nossa surpresa e desconforto: Marcella havia sido
removida da CP por conta de depressão pós-parto no dia seguinte. Segundo as
enfermeiras, Marcella não recebeu nenhuma visita e passou a falar e caminhar sozinha
pela CP, dizendo frases desconexas. Ficamos perplexas. Soubemos que Marcella tinha
30 anos, era o seu terceiro filho, era moradora de uma região rural próxima dali, “Café
sem troco”, que havia feito somente 2 consultas de pré-natal e que, dos exames
obrigatório, só possuía as sorologias para HIV e sífilis. Marcella, uma mulher negra e
jovem, que estava sozinha ao parir, foi, ao final, taxada de“louca”. Naquele dia, assim
como no dia do parto, minha sensação era de incomodo diante da solidão daquela
mulher. Foi um parto rápido, sem intervenções e vaginal, mas embebido em solidão e
abandono... Parto de uma mulher negra, relativamente jovem e podre. Onde fica a a
ideia de humanização ou até onde pode ir? (notas caderno de campo, maio de 2014)
2
contemporâneo (Carneiro, 2011). Para tanto, acompanhei grupos de preparo para o parto,
trajetórias gestacionais, o cotidiano de mulheres e de “casais grávidos” (Salem, 2007),
blogs, sites e redes na internet sobre o assunto. Nesse dia, entretanto, ao retornar para
casa, gritante me parecia ser a diferença entre as experiências que havia acompanhado e a
que então havia assistido. De certo modo, a centralidade dada ao parto, enquanto
acontecimento, se via, no sistema público de saúde, nuançada e matizada; o parto era
somente mais um evento na vida daquela mulher e, nesse sentido, não “o evento”, como
parece ocorrer nas últimas décadas entre as adeptas do parto humanizado.
Do caso aqui recuperado, muito poderíamos escrever ou refletir. Marcella era
mesmo louca? Ou, então: experimentou mesmo uma depressão pós-parto, ainda que
carregasse todo o tempo a criança nos braços? Por que Marcella não recebeu visitas? Por
que estava tão suja e anêmica? Estaria vivendo na rua? Onde estavam os outros filhos?
Por que não quis telefonar para ninguém ao parir? Por que não realizou os exames de
pré-natal; não teria dinheiro ou não haveria posto de saúde em sua localidade? Por que
insistia em dizer que muitas pessoas viriam visitá-la? Parece-me impossível encontrar
respostas para tantas perguntas e tampouco parece ser esse o propósito de quem faz
antropologia. Podemos, porém, no limite, pensar sobre a solidão por ela vivida; no
quanto nem sempre basta uma equipe adepta do parto natural para uma experiência
positiva de parto; que um parto humanizado poderia ser muito mais do que se pensa a
priori; que o parto enquanto evento comporta inúmeras semânticas e que as
particularidades vividas por mulheres jovens, pobres, negras e moradoras de regiões
rurais, assim como Marcella, podem importar e desenhar uma outra premissa de cuidado,
para além da fisiologia ou da ausência de intervenções técnicas e farmacológicas.
Em um seminário sobre a pesquisa “Nascer no Brasil” da Fiocruz na Unicamp,
recordo-me de, em 2010, ter tomado conhecimento de que a mortalidade materna entre as
mulheres negras é quase 7 vezes superior a das mulheres brancas. Pouco menos de 1 ano
depois, também guardo a notícia de que “quanto mais jovem, mais pobre e mais negra,
mais violência no parto existiria”, de acordo com os dados da Perseu Abramo (2011)
sobre “violência no parto”. Se à época pesquisava “camadas médias” e, na maioria,
mulheres brancas e suas interpretações de parto, instigou-me dar seguimento a essa
pesquisa no SUS e entre mulheres negras, tentando compreender ideais de humanização
do parto, como essas mulheres o percebem, quais seriam os seus significados, de que
maneira cuidam e têm os seus corpos cuidados pelos outros, mas, sobretudo, de que
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maneiras raça e classe social adensariam a questão de gênero nas cenas de parto, partindo
da perspectiva da importância da interseccionalidade (Brah, 2006 e Crenshaw, 2002).
Essas inquietações, por fim, parecem ter me inserido na cena recuperada e mais
especificamente em uma etnografia de uma Casa de Parto do Distrito Federal.
Assim como Marcella, na Casa de Parto, conhecemos e tivemos notícias de outras
mulheres de regiões periféricas que, a despeito do discurso da humanização do parto,
talvez escolhessem a cesárea ao invés do parto vaginal, caso lhes fosse ofertada a
possibilidade; que pediriam por analgesia se o hospital tivesse o insumo e que se
encontravam sozinhas no momento do parto - sem a doula1, a bola, a música ou o
incenso, como ocorre nas experiências das adeptas do parto “mais natural”. Mulheres
essas que, logo depois de parir, estavam, antes, preocupadas com dinheiro e com quem
cuidaria de seus filhos enquanto estivessem trabalhando. Ou, então, que morreram ao
parir, como aconteceu com Alyne2, no Rio de Janeiro, ou deram à luz na calçada em
Santo Amaro, na Bahia. De maneira bem diferente, em nossas conversas, poucas falavam
sobre o parto em si, mas sim sobre uma totalidade de eventos nos quais o mesmo se via
inserido. Entre elas, não era raro ver, nas salas de alojamento comum, os outros filhos, os
mais velhos e nem tão mais velhos, cuidando dos irmãos recém-chegados, enquanto a
mãe tomava banho e o pai estava fora, registrando o novo filho no cartório da Unidade
Mista de Saúde. Em sua maioria, eram mulheres pardas ou pretas e pobres. E os seus
objetivos naquele espaço era parir rapidamente, aguentar o que fosse preciso e voltar para
casa.
1
Doula é geralmente uma mulher que oferece suporte emocional, afetivo e corporal para gestantes na
gestação, parto e pós-parto. Não precisa ser necessariamente uma profissional de saúde, mas alguém que
tenha experiência sobre gravidez, parto e amamentação. É uma figura cada vez mais comum e solicitada no
universo do parto humanizado. Enquanto profissional atende não somente a mulher, mas o casal e a família
envolvida nas cenas de parto. Para mais, ver www.ando.org.br
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Dois dias depois, voltou à Casa de Saúde Nossa Senhora da Glória de Belford Roxo (RJ) onde foi
constatado que ela carregava um bebê morto. Não operaram Alyne. Induziram seu parto e só 14 horas
depois de dar à luz a uma criança morta, Alyne foi operada para retirada da placenta. Já era tarde, a jovem
já tinha hemorragia e vomitava sangue. Tentaram transferi-la para outra unidade médica. Mas Alyne teve
que esperar oito horas pela ambulância e chegou ao Hospital Geral de Nova Iguaçu já em coma. A moça
morreu cinco dias depois de buscar ajuda hospitalar pela primeira vez. (...) Negra, pobre e moradora de
área periférica, a descrição de Alyne se encaixa perfeitamente com a minha. Sua imagem em preto em
branco surgiu na minha mente dias depois de descobrir que estava grávida. O medo de um pré-natal no
SUS, de não ter um atendimento respeitoso, de ter a minha saúde e a do meu bebê negligenciada fixou na
minha mente o rosto daquela jovem de 28 anos como eu, grávida de seis meses como eu, negra, como eu.
(Blogueiras Negras, post, 24 de abril de 2014)
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Nesse sentido, compreender essas possíveis interfaces tem sido o meu propósito
nessa pesquisa mencionada, que compõe, no entanto, uma outra mais ampla “E a cor do
meu corpo importa? Percepções de raça/cor no campo da saúde” (2012)3; na qual, com
inúmeras frentes de investigação, temos4 tentado mapear de que maneira gênero, raça e
saúde se cruzam no corpo e como se cruzam em espaços de saúde diferenciados,
desenhando a atenção e o cuidado, tanto o ansiado pelo que o procura quanto o ofertado
pelo profissional de saúde. Para tanto, a pesquisa conta com frentes etnográficas em 2
(dois) serviços de saúde; com uma sequencia de entrevistas com gestores do governo
local e federal para a compreensão da criação e prática das políticas públicas dedicadas
ao assunto e, por último, com uma etnografia flutuante, porque itinerante e realizada a
partir de redes sociais, em três plataformas dos feminismos negros brasileiros e
contemporâneos (Criola, Géledes e Blogueiras Negras), que, nessa oportunidade,
funcionarão como contraponto ou discurso-espelho do encontrado em campo.
3
Esse projeto de pesquisa está vinculado à Universidade de Brasília, sob minha coordenação como docente
e é composto de projetos menores, entre ProICs e TCCs, que procuram explorar a interface raça, gênero e
saúde sexual e reprodutiva em diferentes regiões e instâncias institucionais do Distrito Federal. Para tanto,
conta com pesquisadores bolsista e não-bolsistas, todos estudantes de graduação da Faculdade de Ceilândia
da Universidade de Brasília.
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Marcia França (Saúde Coletiva/UnB), Patrícia Cirqueira (Saúde Coletiva/UnB), Monica Oliveira (Saúde
Coletiva/UnB), Fernanda Lopes (Terapia Ocupacional/UnB) e Raquel Alves (Terapia Ocupacional/UnB)
5
Há 11 meses realizamos pesquisa em um posto de saúde de Ceilândia. Ceilândia
está a 26 km do Plano Piloto e é a maior e mais antiga “cidade-satélite” do DF, com forte
histórico de mobilização social desde 1971. O nome Ceilândia é derivado de “Centro de
Erradicação de Invasões”, para onde, quando do término da construção da capital, os
trabalhadores da construção civil foram removidos. Nos dias atuais, conta com uma
população de 400 mil habitantes, de maioria feminina (52%), de 25-40 anos e
parda/mulata (53%), que somados aos 6% de pretos, totalizariam, segundo o IBGE, 60%
de população negra. Desse universo, 80% é SUS dependente, usando os serviços da
própria localidade (CODEPLAN, 2013).
Estivemos em campo semanalmente, no interior do posto. Em seu interior,
observávamos o cotidiano do serviço de saúde, desde a espera, até atendimentos e coleta
de remédios na farmácia local, bem como conversávamos com os que por ali circulavam,
homens e mulheres, idosos e jovens, profissionais e “usuários do sistema”, atendentes e
técnicos, médicos e enfermeiras, diretores e equipe em geral. Esse posto de saúde oferece
assistência ginecológica, pediátrica e um programa para hipertensos e diabéticos. Em
razão de oferecer tais cuidados, pudemos perceber, na parte da entrada do posto, uma
frequência mais marcada de mulheres, com mais de 40 anos, onde se situava a clínica
geral; mas também de mulheres mais jovens, na casa dos 20-30 anos, nos fundos do
posto, onde se concentra a pediatria. Os bancos de espera, salas de consultas e de
arquivos de documentação foram os nossos pontos de apoio e espaços em que realizamos
nossas conversas e de onde observamos o cotidiano do serviço.
Esse primeiro projeto conta ainda com dois outros ambientes de pesquisa, o
governo local, nas Secretarias da Mulher e Secretaria de Igualdade Racial do GDF, e, por
último, o governo federal, mediante o Ministério da Saúde. Nesses espaços realizamos,
sobretudo, entrevistas semiestruturadas e conversas abertas com gestores e servidores
públicos sobre os desenhos das políticas sobre raça/cor e saúde.5
O segundo serviço de saúde pesquisado foi a Casa de Parto de São Sebastião,
cidade satélite localizada a 24 km do Plano Piloto. Instituída como região administrativa
em 1993, possui atualmente 97 mil habitantes, mas não possui hospital. O hospital mais
próximo está há 20 minutos. Sua população é constituída de 50% de mulheres e de 60%
de pessoas pardas/multas, sendo que com 8% de pretos, totalizaria uma população 70%
5
Essa fase da pesquisa contou com a participação de 6 (seis) entrevistados entre gestores distritais e
federais, teve duração de 5 meses e a depender da agenda dos entrevistados
6
negra. De sua população, 87% é SUS-dependente, ou seja, não possui plano de saúde e
procura auxilio nos equipamentos mais próximos.
Nossa pesquisa de campo teve duração de 8 meses. Com frequência semanal,
observávamos o cotidiano da casa de parto, desde consultas, conversas da equipe,
discussões sobre protocolo de atenção até partos que ocorreram nos dias em que
estivemos no serviço. Esperávamos mapear quem eram as mulheres que procuravam a
casa de parto; qual era a particularidade desse sistema de cuidado e como a questão racial
era pensada no momento do parto. Inúmeras foram as situações observadas e as
conversas informais realizadas com as profissionais. Enquanto casa de parto, o serviço
não se vê atrelado a nenhum hospital e quem oferece o cuidado são enfermeiras, não
existem médicos em seu interior e são atendidos somente partos de “baixo risco”.
A casa possui protocolo próprio, uma concepção interna do que seria risco e
regras quanto à realização de procedimentos ou não. Enquanto serviço se autodenomina
como uma proposta “humanizada de atenção ao parto”, por conta de ali ser estimulado o
parto vaginal, não serem realizados procedimentos como episiotomia (5%/2013) ou
analgesia, entre outros. Não oferece pré-natal, portanto, atende mulheres já em trabalho
de parto6. É considerada um serviço modelo de humanização do parto no DF. No entanto,
está longe de ser um ambiente consolidado, haja vista inúmeras terem sido e serem ainda
as tentativas de seu fechamento em razão de contar com assistência médica. Durante esse
período em que estivemos em seu interior, pudemos perceber o crescimento no número
de partos e de procura pela casa de parto, talvez pela recorrente publicidade de seus
serviços na rede de rádio e televisão local.
Por último, ainda como nota metodológica, ressalto que o material etnográfico
dos dois serviços de saúde será cotejado ao material de uma pesquisa itinerante realizada
há praticamente 1 (um) ano em 3 (três) plataformas virtuais dedicadas à pauta da questão
racial e saúde no interior dos feminismos: Géledes, Blogueiras Negras e Criola. Esses
ambientes foram observados por meio da rede social, tendo por ponto de interesse posts
que dissessem respeito sobre saúde sexual e reprodutiva das mulheres negras. O Géledes
é um instituto paulista de articulação política e de pesquisa já bastante consolidado,
enquanto o Criola é uma OnG carioca e feminista negra que também pauta já há alguns
anos a questão racial na saúde, enquanto as Blogueiras Negras é mais uma articulação
6
Em caso de parto gemelar, quinta gestação, mulher hipertensa, cesárea prévia e sem o mínimo de 6
consultas de pré-natal é encaminhada para o hospital mais próximo.
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virtual e bem mais recente, que não realiza pesquisas ou publicações sobre a temática,
mas uma ambiente de denuncia de mulheres blogueiras e engajadas na luta anti-racismo.
Nessa etapa da pesquisa, a coleta e registro do material, foram arquivados
sistematicamente a depender da temática e data de publicação, tendo por objetivo
primordial apontar ou funcionar como espaço de ativismo nesse campo, sendo que, de
maneira semelhante, procurei mapear como pensam e escrevem sobre raça e suas
interfaces com gênero e saúde.
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Desde os clássicos como Gilberto Freire, Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro até mais contemporâneos,
para citar alguns: Guimarães, 2004, 2005 e 2011; Moutinho, 2004; Maggie, 2008 e Ribeiro, 2008.
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interpretações, conclui que o nosso sistema de classificação racial foi pensado mais em
termos de “intermediários e interstícios”, posto que tematizado a partir de um projeto de
nação que desse conta de mulatos, mestiços, cafuzos e mamulengos.
Para Guimarães (2011, p.265), pesquisador renomado nessas discussões, a partir
dessa defesa da miscigenação, deparamo-nos, depois e reversamente, com o
embraquecimento social cotidiano, principalmente, entre 1940 e 1970, quando grande
parte da população se autodeclarava branca. Depois disso, a discussão racial teria caído
em desuso também no Brasil, sobretudo, em razão do cenário pós-guerra no mundo:
Holocausto, segregação no sul dos EUA e apartheid no sul da África. Segundo o
sociólogo, o termo reaparece somente por volta de 1991, com a alteração da pergunta
realizada pelo IBGE; que, ao invés de ser, “Qual é a sua cor?” passa a ser “Qual é a sua
raça/cor?”. Essa discussão teria, então, recuperado fôlego, principalmente pelas mãos do
movimento negro, no começo do século 20, denominado de “movimento homens de cor”
e depois, a partir dos anos de 1970, de Movimento Negro Unificado.
Para Guimarães, a ideia de raça retorna recentemente como um “conceito
nominalista”, para expressar algo que, não existindo, adquire força social efetiva. E
muito em razão do sistema de cor não se sustentar sem fazer menção à noção de raça.
Enquanto conceito político e que, mais recentemente, passara a agrupar como negros os
que se declaram pretos e pardos, a ideia de raça tem, em nossos dias, se demonstrado
muito mais ampla do que a cor da pele, passando não somente por outros traços físicos,
mas também pela ideia de família, de ancestralidade e de cultura. Nesse sentido, contaria
com uma conotação mais ampliada do que, por exemplo, a “carga genética”, algo
pontuado, segundo o sociólogo, pelos próprios geneticistas, no manifesto “Cento e treze
cidadãos anti-racistas contra as leis raciais”:
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concebido à época dos processos de colonização. Nesse sentido, seria um mecanismo de
controle, tecido entre os séculos 15 e 16, porém, ainda vigente, enquanto tática de
“colonialidad del poder”, que, em ultima instância, seria uma construção ideológica cujo
suporte seria uma “natureza biológica imaginada”. Por isso, antes mesmo dos dualismos
cartesianos de corpo/mente, já vigoraria, no projeto colonial, a ideia de natureza aliada à
raça como baliza da organização de mundos. Vale dizer que, de acordo com seus escritos,
entre cor/raça também haveria uma relação de suposta equivalência entre
biologia/imaginário social, como se a cor representasse o fundamento corpóreo de uma
ideia de raça. Quijano, portanto, assim como Guimarães, percebe a categoria de raça de
maneira nominalista.
No campo da saúde brasileira, a ideia de raça, no começo do século 20, também
teria operado como grade explicativa de diferenças sociais, à lá as teses de Nina
Rodrigues, bem como teria justificado intervenções sanitaristas, sobretudo, nos anos de
1950 e 1960, considerados como os “anos desenvolvimentistas”. Na época da repressão
política, no entanto, a saúde teria sido privatizada e pouco teria se pensado a respeito da
diferença de raças. É também somente nos idos da década de 1990, e como reflexo
social, que a discussão sobre raça reaparece na saúde, enquanto ferramenta analítica e
categoria política, para que se passasse a pensar também sobre as desvantagens
simbólicas/materiais vividas por negros brasileiros na seara do cuidado e do bem-estar.
Esse processo, na leitura de Fry (2005), entretanto, teria se dado muito mais por uma
produção discursiva do Estado do que pelo país. Em outras palavras, algumas premissas
teriam sido postas ou criadas semanticamente pelo Estado brasileiro, no sentido de
nomear a raça, criando negras e negros na sociedade brasileira.
É no governo FHC, portanto, mas tão somente depois de muita pressão do
movimento negro e, mais intensamente, das denúncias realizadas pelas feministas negras
sobre esterilização no país e dilemas na saúde sexual e reprodutiva, que começar a existir
um processo de “racialização positiva” (Maio e Monteiro, 2005, p. 431), em nome de um
conceito mais sociológico e menos biológico de raça/cor no país. Nessa época, é criado o
Comitê interministerial de Saúde da População Negra, bem como um Programa de Saúde
para Anemia Falciforme (PAF), ações desenvolvidas depois da Marcha Zumbi dos
Palmares em 1995 e do I Plano de Direitos Humanos para o Brasil em 1996. Nessa fase,
também se inclui o quesito raça/cor nos formulários de saúde e, assim, começam a
despontar as “doenças negras, étnicas ou racializadas”.
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Não obstante tais iniciativas, é após a Conferência de Durban, em 2001, na África
do Sul, que o assunto ganha destaque e importância na agenda de governo federal, com a
criação da SEPPIR, em 2003. E por último, com a criação da “Política Nacional de
Assistência Integral da Saúde da População Negra” (2009). De seu texto, consta que a
necessidade de tal política diferencialista ou de “ação afirmativa”, se deveria a três
motivos de agravo à saúde dessa parcela da população:
No Brasil, existe um consenso entre os diversos estudiosos
acerca das doenças e agravos prevalentes na população negra,
com destaque para aqueles que podem ser agrupados nas
seguintes categorias: a) geneticamente determinados – doença
falciforme, deficiência de glicose 6-fosfato desidrogenase,
foliculite; b) adquiridos em condições desfavoráveis –
desnutrição, anemia ferrosa, doenças do trabalho, DST/HIV/aids,
mortes violentas, mortalidade infantil elevada, abortos sépticos,
sofrimento psíquico, estresse, depressão, tuberculose, transtornos
mentais (derivados do uso abusivo de álcool e outras drogas); e
c) de evolução agravada ou tratamento dificultado – hipertensão
arterial, diabetes melito, coronariopatias, insuficiência renal
crônica, câncer, miomatoses (WORKSHOP..., 2001). (BRASIL,
2009. p.15)
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No Brasil, uma das autoras mais críticas desses processos de racialização é
Maggie (2008), que considera tais iniciativas um retrocesso impensado, sobretudo, em
tempos em que Obama, um presidente americano negro, prefere falar em nome da nação
do que no de uma comunidade, na contramão do experimentado no Brasil. E quando na
sociedade brasileira, ao contrário do previsto pela histórica Lei Afonso Arinos de 1950,
volta-se a pautar a diferença racial entre os brasileiros. Segundo a antropóloga, isto talvez
se deva a descrença em projetos globais e na rentabilidade política e emocional ao se
recorrer às identidades, o que “pode servir como arma para impedir a identificação das
pessoas com a humanidade em nós” (2008, p. 910). Maggie chega a dizer que de ações
governamentais e sociais como as que o Brasil experimenta podem advir “identidades
fraticidas” como o que ocorrera, por exemplo, cruelmente na Ruanda de 1994, com
relação aos “hutus”. Para a autora, então, “nossas leis devem ser universais e nossa luta
deve ser a defesa dessa lei universal, pois foi nela que Martin Luther King se amparou
para gritar contra leis segregacionistas do Sul dos Estados Unidos” (2008, p. 910).
Se esse é o seu posicionamento, por outro lado, o de Santos e de Ribeiro (2008), é
totalmente o avesso e outro quanto ao papel do Estado no que tange às políticas
compensatórias. Para as autoras, tais políticas veem pautadas na “lógica complexa” da
demanda por reconhecimento e necessidade de redistribuição, da qual nos fala Fraser
(2006). Enquanto proposta surgem com o crescimento da ideia de diversidade e como
decorrência de “um casamento necessário e imprescindível entre políticas universalistas e
políticas públicas específicas, como as de ação afirmativa” (2008, p. 919). Nesse sentido,
contrapõem à ideia universal dos direitos humanos, a necessidade de ações que se pautem
pela noção de equidade, anunciadas nas Conferências de Viena (1994), Beijing (1995) e,
por último, na de Durban (2001).
É justamente essa noção de equidade que parece reverberar nas políticas atuais de
saúde, que, ao partirem de um leque mais amplo de agravos para a saúde da população
negra, pautam a necessidade de políticas ou de um cuidado específico para com o
“racismo institucional” e os determinantes sociais desiguais de saúde entre brancos e
negros no Brasil. Nesse sentido, a política nacional de saúde para a população negra
parece vir amparada tanto em aspectos sociais, quando nos remete ao racismo
institucional e às desigualdades sócio-econômicas, como também fisiológicos e
supostamente genéticos, ao mencionar uma maior propensão à determinadas doenças,
como diabetes mellitus, anemia falciforme e hipertensão. Segundo o seu próprio texto,
12
para o “reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo
institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção
da equidade em saúde (BRASIL, 2009, p.18)
Quanto ao parto especificamente, tal política aponta para a taxa de mortalidade
materna maior entre as mulheres negras, baixo peso ao nascer e hipertensão das
gestantes. Vale dizer também que, anteriormente, em 2005, já havia sido criado um
capítulo relativo às mulheres negras na “Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da
Mulher” e em seu “Plano de ação para 2004-2007”, reconhecendo “maior risco que as
brancas de contrair e de morrer mais cedo de determinadas doenças” (BRASIL, 2005, p.
7). Ou então a partir de uma premissa de que
... as causas de morte materna estão relacionadas à
predisposição biológica das negras para doenças como a
hipertensão arterial, fatores relacionados à dificuldade de
acesso e à baixa qualidade do atendimento recebido e a falta
de ações e capacitação de profissionais de saúde voltadas
para os riscos específicos aos quais as mulheres negras
estão expostas (BRASIL, 2005, p. 11)
8
Sobre essa questão, vale dizer que São Paulo foi um dos primeiros estados a pensar a prática da política
nacional, mesmo antes de sua publicação. E já em 2006 possui programas de ação nesse sentido.
13
DF, constata-se que umas das ações é justamente mapear a saúde da população negra
local, em termos de fragilidades e doenças ditas “prevalentes”, e que há uma preocupação
específica com a saúde da mulher negra e com a “assistência humanizado ao parto”,
remetendo-nos, curiosamente, à casa de parto aqui etnografada. Dos textos oficiais com
os quais tivemos contato, existe a seguinte previsão:
14
Em ambos os serviços de saúde por onde circulamos no DF, pudemos perceber a
persistência tanto da ideia de democracia racial, quanto da pratica de embraquencimento
da população que procura tais espaços. Para a profissional que recebe as pessoas no posto
de saúde, por exemplo, não existe uma prevalência de brancos ou de negros no postinho
de saúde. Ou então, disse nunca ter prestado atenção nessa configuração. Em inúmeras
situações, ao serem questionados sobre o tratamento ou cuidado diferenciado da saúde
com relação aos negros, os profissionais do posto negaram qualquer diferença e,
tampouco, alguma particularidade. E na realidade, bem ao revés, sempre utilizaram a
ideia da universalidade do acesso à saúde, um dos princípios do SUS (Lei 8080/90),
como motivo para tal não diferenciação, dizendo-nos “aqui não tem diferença, todo
mundo é igual. Se fizéssemos diferença, então, sim, seria racismo” (notas de campo,
2013).
Dito desse modo, quanto à eventuais situações de racismo na instituição, quase
que evidentemente, negaram veemente qualquer caso, quando não, de saída, já diziam
não existir racismo naquele ambiente. Parecia-nos, em algumas situações, que as
respostas eram dadas com muita naturalidade, porém, em outras, já com um tom de
justificativa. Em sua maioria, disseram tratar igualmente a todos, importando, para a
diferença da assistência, a questão do “risco de vida e gravidade da doença”. Pudemos
perceber que, no interior desses espaços, parte-se da leitura, marcadamente biomédica, de
que a diferença na atenção advém muito mais do que a pessoa apresenta em termos de
doença ou de urgência. Essa prática pôde ser percebida, por exemplo, na distribuição de
uma senha verde, amarela ou vermelha, ao entrarmos em hospitais ou postos de saúde. O
verde significa baixo risco de vida e, portanto, uma situação que pode esperar mais pelo
cuidado, o que, de maneira oposta, não se configuraria nos casos de etiqueta vermelha.
Essa, segundo os profissionais com os quais convivemos no posto de saúde, parece ser a
diversidade encontrada nesses espaços e não em razão da geração, gênero, classe social
ou raça. Não haveria, portanto, tratamento diferenciado em virtude de raça e, caso
houvesse, entenderiam essa experiência como racismo. E essa discussão parece mesmo
pouco importar, quando, percebemos que, ao preencherem a “ficha de entrada” do posto
de saúde, muitos profissionais saltaram a pergunta sobre raça/cor, deixando-a em branco
ou sinalizando “não informado”.
No que tange à documentação ou produção de conhecimento, por meio de
formulários com a questão quesito raça/cor, vale notar que na Casa de Parto sequer há
15
referência à raça/cor em seus prontuários, tal campo de informação inexiste. Diante disso,
mesmo em um serviço que se propõe “humanizado”, vê-se que a questão racial tem
poucos contornos. Em uma conversa, Helena, uma das profissionais da casa de parto,
comentara sobre essa ausência da seguinte maneira:
Essa sua resposta aparece logo após a minha conversa sobre os riscos aos quais às
mulheres negras estariam, em tese, mais propensas durante a gestação e o parto. Vê-se,
portanto, como antes de importar a cor do corpo, importava a fragilidade ou
disfuncionalidade fisiológica apresentada por uma parturiente. Do mesmo modo que no
posto de saúde, a supremacia da lógica do risco de vida, como discurso que constrói a
diferença nos espaços de cuidado e a existência da ideia de universalidade de acesso à
saúde propalado pelo SUS, foi aventada na casa de parto como justificativa para casos de
não consideração do recorte racial. Situações como essas, no limite, poderiam ser
consideradas como práticas de “embraquecimento da população”, ideia persistente desde
as discussões sobre a nação brasileira. Ou então, alternativamente, como expressão da
existência de uma suposta democracia racial em nosso país, o que não justificaria a
mensuração da população negra. Para que se possa ter notícia do processo de
subnotificação do quesito raça/cor no DF, penso ser interessante recuperar uma
informação, que me fora repassada pela SEPPIR/DF de modo informal, de que, das
“143.681 internações ocorridas no DF em 2013, apenas 7.787 apresentam a informação
“raça/cor” preenchida”.
Ainda na esteira das práticas de embraquecimento social, é também digno de nota
que pessoas consideradas “morena clara”, “morena escura” ou simplesmente “morena ou
mestiça”, em algumas situações de cuidado no posto não foram reconhecidas como
negras, mas sim como brancas. De mesma maneira, ao perguntarmos aos profissionais
sobre a maior frequência de brancos ou negros no posto de saúde e na casa de parto,
diziam não existir maioria negra, em que pese, aos nossos olhos de pesquisadores,
16
julgarmos existir uma maioria negra, expressiva e significativa em ambos os serviços,
algo compatível com os dados da CODEPLAN (2013) antes retratados sobre a população
de Ceilândia e de São Sebastião.
Para o médico cubano e geneticista, do “Programa Mais Médicos”, que atua no
Programa de Saúde da Família do posto de saúde, a não classificação ou não
consideração da questão racial se deveria ao fato de que:
Não se poder falar em raça, pois a diversidade genética é muita
vasta e não poderia ser encontrada. Em Cuba, por exemplo,
grande parte da população é geneticamente branca. Em meu caso,
sofri discriminação sim, mas não por conta de minha raça ou cor,
mas sim em virtude de ser de cubano. Senti isso quando estive na
Europa. É preciso falar antes sobre populações e suas condições
naturais, climáticas e não em diferença racial. Em Cuba não
existe esse tipo de discussão, pois não somos um país racista,
mas o Brasil é o único país que diz que não é racista, mas na
verdade é racista. (notas de caderno de campo, março de 2014)
17
os outros e em outros espaços. E nessa linha, chegam até a pensar que possa existir no
posto, porém, entre as próprias pessoas que procuravam pelo cuidado:
... já presenciei, foi aqui na frente da sala, de uma paciente com
outra, uma mulher branca que já tinha sido atendida e eu pedi que
ela retornasse, quando ela voltou para a minha sala, a outra
mulher gritou: ela está passando na frente só por que é branca!
Houve um racismo da própria negra, mas dos médicos não. Nós
tratamos todos iguais aqui.
(profissional de saúde do postinho, notas de campo, 2013)
9
Durante esse período de pesquisa no posto de saúde, o contato com as pessoas que procuravam o postinho
sempre foi mais fácil e acessível do que com aquelas que ali trabalhavam, que tenderam a demonstrar uma
18
Elas nos contam...
Em outro sentido, o contato com as pessoas que procuram pelo cuidado pareceu-
nos mais fácil e acessível, ainda que, estejamos totalmente convencidas de que no interior
da instituição nem tudo seja ou possa ser dito. Penso dessa forma, em razão de depois de
meses de pesquisa, raras pessoas terem nos contado sobre situações de racismo no
interior do posto ou da casa de parto. De modo geral, reconheciam a existência do
racismo, mas não no interior do posto e tampouco tendo-as como diretamente envolvidas.
E assim, vigorava mais a ideia de que “era com os outros e fora dali”. Não era rar,
entretanto, também dizerem-nos que, em caso de ocorrência, procurariam pela delegacia,
pois “racismo é crime”. Dessa maneira, pactuavam que o racismo existe, mas dali para
fora e com outras pessoas.
De mesma forma, quando questionados sobre a prevalência de negros ou de
brancos no posto de saúde, oscilavam entre ser uma maioria branca ou negra. E alguns
até pensavam que a maioria no Brasil era branca. No entanto, curiosamente, tendem a ver
mais “discriminação de classe” do que por conta da raça. E, na realidade, percebemos
que, em muitas situações, também atribuem racismo à diferença de classe social e não
por conta da raça ou de traços fisiológicos:
... também, o povo é o diabo, sabe? Vem para cá todo sujo, com
roupa largada. Eu quando venho me consultar, me arrumo toda
(mulher, mais de 60 anos, 2013)
Na saúde isso não existe não, eu nunca vi... Os pacientes aqui são
mais negros. Acho que a população é mais morena. Assim, tem
maior resistência a nossa presença e eventuais questões. Chegamos a um ponto em que fomos impedidos
de seguir com a pesquisa juntos aos agentes de comunitários de saúde, pois, segundo argumento dos
mesmos, não queriam mais ser “avaliados pela universidade”. Na casa de parto, entretanto, é preciso
salientar, a relação com as profissionais, de maneira geral, foi mais aberta e tranquila, em que pese, a
depender de um ou outro profissional, portas fossem fechadas no momento das consultas ou dos trabalhos
de parto, para que não pudéssemos acompanhar. Em um dia de campo, por exemplo, umas das enfermeiras,
solicitou-me o seguinte: “... quando for exame de toque, peço para que você saia da sala, pois elas ficam
com vergonha”. Tal cautela poderia ser atribuída ao resguardo da privacidade daquelas que estavam em
consulta, ou então um receio de que pudéssemos assistir a um excesso de exames de toques, prática
questionável no interior do ideário da humanização. Não podemos generalizar. No entanto, recuperar a
abertura dos profissionais da casa de parto parece importante, quando se sabe das resistências que os
profissionais interpõem diante de pesquisas em razão de temerem os resultados ou avaliação de suas
práticas.
19
mais moreno, né? Agora que você perguntou, parei pra pensar...
os profissionais são mais brancos... Não sei porque, não sei se é
oportunidade ou estudo... Mas acho bonito quando vejo um
nesses cargos ai. Sabe aquele juiz lá? (Joaquim Barbosa) Ele é
ótimo, é durão... Acho que ele ser negro faz ele ser assim, ele
fica mais ativo que esses brancos ai (Maria das Graças, 60 anos,
café com leite, 2014)
... às vezes a gente até acha que é, mas a gente não fala nada, né?
As pessoas passam na frente das outras, dizem que estavam na
frente, mas acho que é racismo. A gente não fala nada porque o
atendimento já é ruim, se a gente reclamar, só piora... (jovem,
autodeclarada negra, maio de 2014)
20
Você não é negra, você é só um pouco mais escura que eu. Negro
é aquele bem escuro mesmo. (notas de campo, pesquisadora
negra, 2014)
Esses parecem ser os usos e os desusos que realizam mais da noção de cor da pele
e da cor do corpo. Porém, quando questionados sobre que seria raça, múltiplas também
são as leituras, ainda que tendam geralmente para a existência de uma só, a biológica:
“raça é tudo igual, é tudo animal”, “raça para mim é coisa de bicho”, “o sangue é tudo
igual, tudo o mesmo. O sangue e alma é um só, mas a alma do negro é ainda mais branca
do que a do branco”. Percebe-se que a categoria de raça é algo distante ou então único
para todos e o que oscila é muito mais a cor do corpo e a sua relação com os cabelos,
com o nariz e boca. Nessa esteira, escutamos: “... é morena, mas o cabelo não é ruim,
21
porque casou com um homem branco” (notas de campo, 2013). Como se o cabelo a
embranquecesse.
Em campo, vimos de fato como os estudos sobre relacionamentos inter-raciais
podem nos dizer sobre os interditos, percepções sociais e sobre os projetos de nação
experimentados no Brasil, como bem pontua Moutinho (2004). Em conversas com
algumas mulheres, pudemos perceber que muitas haviam se casado com homens negros,
mas diziam que os mesmos não tinham “cabelo ruim”. Ou então, eram mulheres negras
que havia se casado com homens brancos e, que por isso, seus filhos não seriam negros.
Certa vez namorei uma moça negra e minha mãe não gostava
nada, ela surtou, não aceitava que eu a namorasse! (Pedro, pardo,
41 anos)
No Ceará tem muitos racistas, meu pai era negro e não gostava
de negros. (Maria, 53 anos)
O meu marido não gostava da mãe dele. Ela era, sabe... “da
vida”. E era uma mulher negra. Eu achava ele um negro lindo,
mas ele não gostava que nossas filhas tivessem os cabelos soltos.
Pedia para alisar o cabelo das meninas e não me deixava comprar
sandália de plástico para elas porque achava coisa de pobre.
(Dona Francisca, 55 anos, negra, abr. 2014)
22
familiares, em um quarto depois de parirem. A casa de parto tem 2 salas de alojamento
comum e como atende, em média, 30 partos/mês, muitas das mulheres podem, depois de
parir, ficarem sozinhas com seus bebês em um desses quartos, o que não acontece nos
demais hospitais públicos da região. Hospitais esses em que “não pode ter acompanhante
porque não cabe”, “você fica sozinha”, “ou com um monte de mulher gritando”, “aqui
elas te respeitam e te tratam bem” (notas de campo, 2013/2014).
Digno de nota também parece ser que, para algumas, se pudessem, teriam uma
“cesárea porque dói menos” e que outras pedem pelos procedimentos médicos na hora de
parir, ainda que a maioria das entrevistadas tenha dito preferir o parto vaginal por conta
da recuperação e de suas mães ou tias terem tido “normal”. É certo que existem casos de
mulheres e de casais que procuram a casa por conta da ideologia da não intervenção,
porém, quando comparados à totalidade, são mínimos, ainda que o serviço esteja na
publicidade audiotelevisiva do DF e tenha aumentado a procura por seu cuidado.
As mulheres entrevistadas na casa de parto também disseram não conhecer a
política de saúde para a população negra e tampouco a existência de “doenças negras”.
Estavam ali para “ganhar o bebê” e depois retornar para casa. Das mulheres com as quais
convivemos e entrevistamos, grande parte estava no terceiro filho, mas não queriam mais
bebês, por isso, as vezes, optavam pela cesárea como estratégia para conseguir a
laqueadura. Diziam estar satisfeitas com a casa de parto por conta do silêncio, da atenção,
do carinho das enfermeiras e por conta da privacidade, que certamente não teriam nos
hospitais. Segundo pesquisa de Hirsch (2014) no RJ, algumas mulheres preferem as casas
de parto em razão de ali “serem chamadas pelos nomes” e, assim, sentirem-se pessoas,
numa espécie de teia relacional, pouco importando a presença ou não de médicos e uma
outra configuração dos serviços, aspectos que poderiam pesar no caso de mulheres de
camadas médias. Nesse sentido, do que pudemos depreender pouco parece importar a
atenção diferenciada às mulheres negras e essas pouco parecem pleitear um cuidado
diferenciado em nome da equidade racial, mas sim, o que parece lhes importar, é a
singularidade espacial do serviço, lida muito mais por um recorte de diferença de classe
social do que racial.
“Tinha que ser! Olha aí, pobre, preta, tatuada e drogada! Isso não
é eclampsia, é droga!” fala atribuída ao anestesista que foi
chamado durante a madrugada (plantão de sobreaviso) para
atender a uma cesárea de emergência de uma gestante
adolescente com eclampsia cujo parceiro estava preso por tráfico
de drogas. (Relatório CPMI da Violência contra as
mulheres/2014)
24
publicado. (O Globo, abril de 2014, replicado pelas Blogueiras
Negras)
Esses são alguns dos muitos fragmentos que tenho colecionado a partir do que as
feministas negras têm publicado em tais plataformas virtuais (Criola, Géledes e
Blogueiras Negras). Em razão de já ter discorrido um pouco sobre esses espaços,
salientarei somente que o Géledes e o Criola, um em SP e outro no RJ, são espaços de
ativismo, mas também de pesquisas sobre o cotidiano das mulheres negras brasileiras, já
com algum tempo de existência e reconhecidos socialmente no interior dos feminismos e
das demandas por direitos humanos das mulheres no Brasil. Enquanto o Blogueiras
Negras é uma articulação mais recente e de mulheres mais jovens que se valem da
internet para replicar notícias, denunciar situações ou escrever sobre fatos pessoais ou
próximos a elas, tendo a interface gênero, raça e violência como um marcador.
25
Nesses espaços virtuais feministas, vê-se, por um lado, uma valorização da beleza
feminina negra e de seus “atributos fisiológicos” até então tidos como marcas que
hierarquizavam pessoas, entre elas: os cabelos, a cor da pele, o tamanho do nariz e da
boca. Nesse sentido, vemos a pluralidade de conotações que podem ter e adquirir a
depender do contexto e de seu objetivo político. Penso, nessa esteira, que uma das
maiores bandeiras de afirmação, ainda atualmente, seja o cabelo crespo, na medida em
que demandas para terem-nos soltos e encaracolados são as mais frequentes em suas
linhas e posts. Nesse sentido, assumir os cabelos parece significar o mesmo que libertar-
se de uma opressão discursiva que diferencia raças, criando modelos brancos de beleza e
de existência. Seria o mesmo que assumir-se e valorizar-se como mulher negra, em um
autoafirmação patente, como ocorre também não somente nos “cabelaços”10, mas
também, mais recentemente no “turbante-se”11, numa referência expressa ao uso de
turbantes, como os usados em determinados lugares da África. Verifica-se um manejo
político da categoria de raça, por vezes, entretanto, alojada ao lado da biologia, ao ponto
de em certos momentos poder resvalar para uma africanidade única e homogênea,
pensada talvez à luz da noção de pan-africanismo, de cultura negra, beleza negra e, assim
sucessivamente, trabalhada por Appiah (1997).
Por isso, tendo a apreender esse movimento virtual empreendido por esses três
grupos como o que positiva a mulher negra e denúncia explicitamente as implicações de
uma mulher ser negra e pobre no Brasil atual e, em nosso caso, tendo de recorrer à saúde
e ao sistema de saúde público brasileiro. Espaços institucionais onde, de acordo com seus
escritos, as mulheres negras sofrem de violência física e simbólica, ao terem a anestesia
negada; por partirem da premissa de que as negras suportam mais a dor; terem de
perambular por maternidades em busca de vagas e parirem no chão; serem consideradas
mulheres “poliqueixosas”, que somente reclamam de suas vidas e de sua situação social;
não serem tocadas em consultas de pré-natal e/ou em razão de terem de ouvir que “são
10
“Cabelaço” é uma prática constante de um coletivo de Brasília denominado “Pretas Candangas”. É uma
convocação para ocupação de espaços públicos, nos quais as mulheres negras soltam os seus cabelos
crespos e empreendem um debate sobre raça e autovalorização. O coletivo também possui uma plataforma
virtual nas redes sociais.
11
Na mesma linha do “Cabelaço”, o turbante-se é uma oficina para que as mulheres negras possam
aprender a usar turbantes como as africanas. Geralmente são ofertadas por mulheres negras e para mulheres
negras.
26
como coelhos ou como animais, pois têm muitos filhos”, por conta de serem tidas como
irracionais ou promiscuas (Corossacz, 2009, p. 242).
Dito dessa forma, nesses espaços, a questão racial tem contornos nítidos e
implicações sérias para o campo da saúde, pois parte-se da premissa de que o racismo
institucional existe, é operante e tem sérios impactos na saúde das mulheres, bem como
em concepções sociais sobre a sua vida sexual e reprodutiva. De mesma maneira, em
seus posts e comentários, conjuga-se gênero, raça e por vezes classe social, já que não se
pode negar um recorte de classe no interior do próprio ativismo negro, sinalizando um
modo particular de existência das mulheres negras. Em outras palavras, portanto, nítidos
são os contornos da diferença racial, preconceito e discriminação, todos sobrepostos no
caso de mulheres negras e pobres, que viveriam, à lá o pensado por Brah (2002), a saber,
a partir de duplas ou triplas camadas de subordinação, que lhe terminam por desenhar e
singularizar a experiência.
Essas mulheres, entretanto, as que escrevem nesses ambientes, parecem ser as
mulheres negras de camadas médias e/ou camadas abastadas, o que também as diferencia
em termos de leituras de mundo e vivência das mulheres negras e pobres, como bem
pontua Corozzacs ao discorrer, por exemplo, sobre a existência de dois tipos de relação
entre sexualidade e reprodução, a depender do recorte de classe (2009, p. 254).
27
Há décadas operam, nas Ciências Sociais, leituras que dissociam a reprodução da
sexualidade. Em nosso caso, no entanto, partimos de um campo de pesquisa que envolve,
per si, essa relação, sem, com isso, querer reduzir um campo ao outro e, assim, afunilar a
discussão sobre prazer, erotismo, aborto e maternidade voluntária. Em nosso caso,
entretanto, ao nos concentrarmos nas relações existentes entre raça, gênero e classe social
a partir da vida sexual e reprodutiva, ainda que não queiramos, direta ou
necessariamente, acabamos por contornar discussões sobre políticas de Estado, nação,
violência e controle dos corpos femininos. Como vimos, essa discussão não é recente e
tampouco nova, mas acompanha toda a discussão sobre a brasilidade, a mestiçagem e um
projeto de cultura. Mas, para além disso, parece também circunscrever no ato de parir um
emaranhado entre sexualidade, raça e gênero, pensado, por um conjunto de feministas
adeptas da “interseccionalidade”, como o que possibilita a leitura da experiência da
mulher negra. Ou talvez esse processo pudesse ser lido também na chave do
“reentranhamento” da sexualidade (Duarte, 2004).
Essa era a crítica das feministas negras na década de 1980 ao feminismo branco,
que, em tese, havia essencializado a ideia de mulher, tanto no corpo quanto na noção de
mulher branca, sem ponderar a respeito da diversidade entre as mulheres. Foi justamente,
por isso, que as feministas negras passaram a dizer ser impossível reconhecê-las
enquanto sujeitos da experiência e de direitos sem que, a um só tempo, raça, classe e
gênero se comunicassem e compusessem uma interface a não ser separada.
Entre essas autoras, atualmente encontramos Lugones (2008), McClintock (2010),
Creshaw (2006), Brah (2002) e Hill Colins (2000), que escrevem justamente sobre a
representação da mulher negra a partir de sua sexualidade, em um projeto que articula
imperialismo/colonialismo, poder, epistemologia e invenção de gênero e de raça
enquanto estratégia de controle moderna. Nesse eixo, a figura da mulher negra figura
quase como o abjeto, posto que, no pensamento colonial, não estaria nem entre os
homens brancos, nem entre as brancas burguesas e tampouco entre os homens negros,
tido como escravos. Nessa esteira, figurava como a animalidade, a raça inferior e o sexo
frágil a um só tempo. Lugones, que parte do pensamento de Quijano sobre raça como
invenção e estratégia de “colonialidad del poder”, aponta para as fragilidades de sua
leitura quanto à ideia de gênero, posto que, em seu entender, Quijano teria partido de
uma leitura fisiológica de sexo e da heterossexualidade compulsória para entender
controle e violação sexual das mulheres colonizadas, sem problematizar, no entanto,
28
grades de leituras existentes anteriormente, que talvez não trabalhassem com recortes de
gênero e tampouco com a ideia de dimorfismo sexual, como, por exemplo, se verificou
entre os Yoruba (Lugones, 2008). Nessa esteira, a imposição de uma ideia de raça e
também de gênero (masculino/feminino) teria sido, para Lugones, uma invenção
colonial, moderna e eurocêntrica cuja consequência seria uma violência epistemológica
de consequências reais. Por isso, segundo suas linhas, é preciso partir de uma perspectiva
interseccional de compreensão das experiências e de pessoa, posto que “la
interseccionalidad revela lo que no se ve cuando categorías como género y raza se
conceptualizan como separadas unas de otra. La denominación categorial construye lo
que nomina” (2008. p. 81).
Sabe-se que não era raro que as mulheres negras colonizadas fossem vistas como
animalizadas, irracionais, hipersexualizadas e promiscuas. Sendo assim e tomando de
empréstimo o termo de McClintock (1995), teríamos experimentado uma “tradição
porno-tropical”, construída por meio da biologia e do corpóreo e, assim, o advento da
ideia de raça e de papeis rígidos de gênero. Sobre essas percepções, Rago (2008), a partir
da obra de Carole Sandrel, escrevera sobre a Vênus Hotentote, Saarah Bartmann; uma
mulher negra do século 19, de uma tribo africana de mesmo nome, que fora levada aos
circos de horrores da Europa no período vitoriano, exposta como animal em uma jaula,
como exótica e irracional, por conta de suas nádegas avantajadas e clitóris alongado.
Exposta como um bicho aos olhos dos curiosos, causava medo e fascínio, como retrata o
recente filme também inspirado na obra, “A Vênus Negra”, dirigido por Abdellatif
Kechiche. Foi examinada viva e, depois de morta, dissecada por anatomistas interessados
em reconhecer as particularidades das mulheres negras selvagens. Não por acaso, o artigo
em questão recebeu o título de “Michel Foucault e o zoológico do rei”, no qual a
historiadora parte da discussão do panóptico de J. Benthan, que inspirou a ideia de
vigilância foucaultiana, para pensar a atitude dos anatomistas da época, que tudo
precisavam ver para catalogar, desvendar e, assim, controlar. No romance e no filme,
Sarah é violada inúmeras vezes, submetida a sucessivos exames de toque de uma junta
médica. Diante disso, ao reagir, era constantemente classificada como agressiva e ainda
mais próxima da natureza, em um circulo quase vicioso de leitura de seu corpo negro
como animal, descontrolado e hipersexualizado. Vale dizer que os seus restos mortais
permaneceram no Museu do Homem, na França, até bem recentemente, quando sua tribo,
finalmente, obteve o direito de sua propriedade e retorno ao seu local de origem.
29
Em pleno século 21, no entanto, ao depararmo-nos com os resultados de uma
etnografia empreendida em uma maternidade pública do Rio de Janeiro, sobre saúde
sexual e reprodutiva de mulheres negras e, portanto, sobre raça, classe social, gênero e
saúde, parece-nos, infelizmente, que esse tipo de percepção social está longe de perder
vigor ou operacionalidade, quando de maneira brutal, segundo Corossacz, encontramos
posicionamentos de tal ordem (ao referirem-se às mulheres pobres e negras):
(...) aqui é como coelho, é só você ver aqui dentro o fluxo que há.
No Brasil como um todo, falta planejamento familiar (2009, p.
242)
Por razões e leituras como essas, para Lugones, a ideia de gênero seria racializada
e a de raça, reversamente, generificada, posto que ambas seriam invenções discursivas
que, juntas, terminam por hierarquizar pessoas a partir de sua fisiologia. Em sua
compreensão, portanto, a colonialidade do poder funda e funda-se a/na colonialidade da
raça, que, por sua vez, não pode ser dissociada da de gênero, quando se tem como ponto
de partida e de chegada a figura discursiva da mulher negra; não somente nos idos do
século 19, mas ainda contemporaneamente.
Pelo que pudemos observar em nossas pesquisas sobre raça e/nas práticas e
espaços de cuidado, parece operar mais a invisibilidade do que a visibilidade ou então
uma desconsideração da interseccionalidade entre gênero, raça e classe social no campo
do cuidado ou, então, como constitutivo das experiências sociais. Vimos que, em
30
algumas situações, impera o discurso da igualdade corporal. Em outros, no entanto, como
acontece nas cenas de Corozacss, deparamo-nos com uma exotização da existência negra,
essencializada, como nos tempos de outrora. Fato é que, por conta do receio do retorno à
pura biologia e aos estragos que a mesma causara em nome de uma “raça pura” nas
grandes guerras, as pesquisas no campo da saúde sobre raça, gênero e classe social ainda
parecem carecer de peso e de investimento, como já acentuara Monteiro (2004).
Para Lugones, McClintock e Brah, talvez a internação de Marcella em um
hospital para loucos não tenha uma representação comum e tampouco poderia ser
igualada à experiência de uma mulher branca, mas conjugaria tais aspectos de
indissociabilidade entre raça, classe e gênero, tendo muito mais a dizer sobre o controle
da sexualidade, biopolítica, prole e nação do que poderíamos pensar a priori. De todo, o
assunto e tal campo temático, o da valorização da questão racial na saúde, parece-me
bastante ambíguo porque, por um lado, figura como manto de cuidado equitativo, do uso
político da categoria e da singularidade de uma existência a ser considerada. Porém, por
outro, desponta ao redor dos perigos de reatualização de uma ideia genética de raça e,
nesses casos, como o de Marcella, também de gênero, que tanto inviabiliza as mulheres
negras, quanto as satura de sexualidade, animalizando-as por uma reprodução
desenfreada. De tudo, o que parece restar é que de maneira, muito instigante, todos esses
processos acontecem a um só tempo.
Sendo assim, de algum modo, olhando à luz de “Couro Imperial” (McClintock,
1995) e das autoras de mesma inspiração; dos posts do Géledes, Criola ou Blogueiras
Negras e, sobretudo, de nossas percepções etnográficas, algo de comum parece
despontar, na medida em que (de um modo ou de outro), parece ser importante refletir
sobre como e em que medida, ao final:
31
Vai deixando todo mundo preto
E o cabelo esticado
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