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Direitos Fundamentais Indisponíveis - Os Limites e Os Padrões Do Consentimento para A Autolimitação Do Direito Fundamental À Vida
Direitos Fundamentais Indisponíveis - Os Limites e Os Padrões Do Consentimento para A Autolimitação Do Direito Fundamental À Vida
RIO DE JANEIRO
2010
LETÍCIA DE CAMPOS VELHO MARTEL
RIO DE JANEIRO
2010
Elogio da sombra
Jorge Luis Borges1
1
BORGES, Jorge Luís. Elogio da sombra. In: BORGES, Jorge Luis. Elogio da Sombra e Um ensaio
autobiográfico. Trad. [para Elogio da Sombra] Carlos Nejar e Alfredo Jacques; Trad. [para Um ensaio
autobiográfico] Maria da Glória Bordini. 5.ed. São Paulo: Globo, 1993, p.67.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Abr./Apr. Abril
ACP Ação Civil Pública
ADIn ou ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade
Ago/Ag. Agosto
AMM Associação Médica Mundial
CCB Código Civil Brasileiro
CEDH Corte Européia de Direitos Humanos
CF/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
CFM Conselho Federal de Medicina
Cit. Citado
CNS Conselho Nacional de Saúde
COE Conselho Europeu
CP Código Penal
CPC Código de Processo Civil
CPP Código de Processo Penal
CRM Conselho Regional de Medicina
Des. Desembargador(a)
Dez. Dezembro
DJ Diário de Justiça
e.g. exempli gratia
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
Extr. Extraordinário
Fev. Fevereiro
FMC Fundamentação da Metafísica dos Costumes
GT Grupo de Trabalho
HC Habeas Corpus
i.e. isto é
IEE Intervenção Efetiva Estabelecida
Jan. Janeiro
Jul. Julho
Jun. Junho
LCT Limitação Consentida de Tratamento
LICC Lei de Introdução ao Código Civil
M.S. Ministério da Saúde
Mai. Maio
Mar. Março
Min. Ministro(a)
MP Ministério Público
MPT Ministério Público do Trabalho
MS Mandado de Segurança
n. Número
nº Número
Nov. Novembro
NSV Não-oferta de suporte vital
OMS Organização Mundial da Saúde
ONR Ordem de Não-Ressuscitação
ONU Organização das Nações Unidas
Out./Oct. Outubro
PGR Procuradoria Geral da República
POP Procedimento Operacional Padrão
RE Recurso Extraordinário
Rel. Relator(a)
REsp. Recurso Especial
RISF Regimento Interno do Senado Federal
RSV Retirada de Suporte Vital
Set. Setembro
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
TJ Tribunal de Justiça
TJRJ Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
TJRS Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
TJSP Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
TRF Tribunal Regional Federal
TST Tribunal Superior do Trabalho
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e
Cultura
UTI Unidade de Terapia Intensiva
v. Versus
v. Volume
ii
LISTA DE SÍMBOLOS
iii
Tese defendida em 18 de Março de 2010. Aprovada com nota máxima (10,0), Distinção e Louvor.
Banca examinadora:
iv
RESUMO
O tema da tese é a indisponibilidade dos direitos fundamentais de cunho pessoal. Está delimitado no exame da
possibilidade de disposição de posições subjetivas do direito fundamental à vida e na análise dos limites e
padrões do consentimento para a autolimitação, no contexto da morte com intervenção, à luz do sistema
constitucional brasileiro. Como marco teórico, foi adotado o liberalismo igualitário, aliado a teorias
primariamente baseadas em direitos. O objetivo geral foi discutir a possibilidade de disposição de posições
subjetivas do direito fundamental à vida e os limites e padrões do consentimento autolimitador, no contexto da
morte com intervenção. Para atender ao objetivo, foram traçados quatro objetivos específicos, cada qual
correspondente a um Capítulo. O primeiro foi delimitar conceitualmente a disposição de direitos fundamentais,
distinguindo-a de figuras afins. Concluiu-se que a indisponibilidade é normativa e que dispor de um direito
fundamental significa enfraquecer, por força do consentimento do titular, uma ou mais posições subjetivas de
direito fundamental perante terceiros, quer seja o Estado, quer sejam particulares, permitindo-lhes agir de forma
que não poderiam, tudo o mais sendo igual, se não houvesse o consentimento. Reputado indisponível um direito,
apenas o consentimento do titular não será suficiente a alterar posições subjetivas de direito fundamental, não
justificando a interferência de terceiros, nem criando novos deveres de mesmo conteúdo para o titular. O
consentimento é necessário à disposição e opera como justificação procedimental. O segundo objetivo específico
foi investigar as teses de justificação da (in)disponibilidade. O estudo levou à adoção da premissa operativa da
tese, a disponibilidade prima facie das posições subjetivas de direitos fundamentais. Concluiu-se pela
necessidade de justificação para o emprego de argumentos de paternalismo jurídico e afins, bem como para a
dignidade como heteronomia, eis que o sistema constitucional, à luz da integridade, tende mais à dignidade como
autonomia. O terceiro objetivo específico foi investigar as teses de aplicação sobre a disponibilidade. Concluiu-
se que a genuinidade do consentimento, centrada na escolha livre e informada, é elemento aplicativo nuclear, ao
lado das modalidades de disposição, da relação de base, dos postulados normativos aplicativos e do conteúdo
essencial dos direitos fundamentais. Concluiu-se que para que o titular possa dispor, é preciso que seja um
sujeito do consentimento. Em hipóteses de julgamento por substituição e de atuação de representantes, poderá
ocorrer disposição, se houver recondução ao consentimento ou modo de decidir do titular. O quarto objetivo
específico consistiu em compreender e discutir a autolimitação de posições jurídicas subjetivas do direito
fundamental à vida no contexto da morte com intervenção. Como conclusão central, entendeu-se que é
justificável que sejam reputadas indisponíveis as posições subjetivas do direito fundamental à vida como linha de
princípio, em função da proteção dos direitos de terceiros, da manutenção dos níveis de proteção do direito à
vida em sua dimensão objetiva e da dignidade humana como heteronomia. As condicionantes fáticas e jurídicas
da morte com intervenção modificam a justificação para a indisponibilidade das posições subjetivas do direito
fundamental à vida quanto à LCT, em razão: (a) das diferenças entre a LCT e os cuidados paliativos, de um lado,
e a eutanásia e o suicídio assistido, de outro; (b) do equacionamento diferenciado na aplicação do postulado da
proporcionalidade; (c) da dignidade humana como autonomia; (d) da vedação do paternalismo e afins
injustificados. Em assim sendo, há hipóteses permitidas de disposição de posições subjetivas do direito
fundamental à vida, quais sejam, a recusa genuína em iniciar ou persistir em intervenções médicas de
prolongamento e de manutenção de vida. Concluindo-se pela permissão da LCT e das disposições de posições
subjetivas do direito à vida que acarreta, elaboraram-se as diretrizes para a genuinidade do consentimento. Além
das diretrizes básicas, expostas no Capítulo 3, na LCT são necessárias: (a) verificação da origem da decisão e da
maturidade da manifestação por profissionais habilitados, após o adequado processo de informação; (b)
confirmação do diagnóstico e do prognóstico; (c) verificação da inocorrência de depressão tratável; (d)
verificação da adequação dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos; (e) verificação de eventuais
conflitos de interesses entre a instituição hospitalar, a equipe de saúde e os interesses dos pacientes e de seus
responsáveis; (f) garantia de assistência plena, se desejada, e verificação da inexistência de conflitos
econômicos; (g) verificação da inexistência de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares
ou representantes; (h) debate dos casos e condutas por Comitês Hospitalares de Bioética, quando ainda não
houver posicionamento em situações análogas; (i) formulação de TCLE específico. Conjuntamente às
salvaguardas, concluiu-se pela necessidade de adoção de quatro políticas públicas: (a) regulamentação dos
contornos da LCT; (b) incentivo, aperfeiçoamento e promoção dos sistemas de cuidados paliativos e de controle
da dor; (c) incentivo, aperfeiçoamento e promoção dos CBs; (d) educação dos profissionais da saúde para a
tomada de decisões morais complexas e para o trato com a finitude humana, além de informação do público em
geral.
AGRADECIMENTOS
“No fim da minha visita ao hospital, ele começou a contar suas lembranças. Lembrou-me de
coisas que devo ter dito quando tinha dezesseis anos. Naquele momento, compreendi o único
sentido que a amizade pode ter hoje. A amizade é indispensável ao homem pata o bom
funcionamento de sua memória. Lembrar-se do passado, carregá-lo sempre consigo é talvez
condição necessária para conservar, como se diz, a integridade do seu eu. Para que o eu não se
encolha, para que guarde seu volume, é preciso regar as lembranças como flores num vaso e
essa rega exige um contato regular com testemunhas do passado, quer dizer, com os amigos.
Eles são nosso espelho; nossa memória; não exigimos nada deles, a não ser que de vez em
quando nos lustrem esse espelho para que possamos nos olhar nele. Mas estou pouco ligando
para o que fazia no ginásio! O que sempre desejei, desde a adolescência, desde a infância
talvez, foi outra coisa: a amizade como valor elevado acima de todos os outros. Gostava de
dizer: entre a verdade e o amigo, escolho sempre o amigo. Dizia para provocar, mas acreditava
seriamente nisso. Hoje sei que esta máxima está superada. Podia ser válida para Aquiles, amigo
de Pátroclo, para os mosqueteiros de Alexandre Dumas, até mesmo para Sancho, que era um
amigo verdadeiro de seu amo, apesar de todas as suas desavenças. Mas para nós ela não vale
mais. Vou tão longe no meu pessimismo que hoje estou pronto a preferir a verdade à amizade.
(…) A amizade para mim era a prova de que existe alguma coisa mais forte do que a ideologia,
do que a religião, do que a nação. No romance de Dumas, os quatro amigos se encontram muitas
vezes em campos opostos, obrigados assim a lutar uns contra os outros. Mas isso não altera a
amizade deles. Não deixam de se ajudar (…). Como a amizade nasceu? Certamente como uma
aliança contra a adversidade, sem a qual o homem ficaria desarmado perante seus inimigos.
Talvez não se tenha mais necessidade de alianças desse tipo. (…) [os inimigos] são invisíveis e
anônimos (…). Atravessamos nossas vidas sem grandes perigos, mas também sem amizade”.2
2
KUNDERA, Milan. A identidade. Trad. Teresa Bulhões de Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, 1998,
p.43-46.
À Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aos meus olhos que buscam cor, a primeira impressão
foi cinzenta. Mas as cores estão nas pessoas que compõem a Universidade. Bastou saber olhar para
encontrar um ambiente de aprendizagem, respeito e efervescência acadêmica. Agradeço especialmente
à Pós-Graduação em Direito, pela acolhida, seriedade, republicanismo e espaço proporcionado.
À CAPES, por viabilizar materialmente parte da realização da pesquisa, bem como pela manutenção
dos portais de periódicos e de teses e dissertações.
À Universidade do Extremo Sul Catarinense, por proporcionar aos seus docentes a constante busca
pelo saber.
Ao Prof. Dr. Luís Roberto Barroso, pelo exemplo. Pela confiança. Pela sabedoria. Por ser a pessoa que é.
Mais do que exemplo acadêmico, exemplo de vida. Em um dos seus discursos, ele escreveu que teve uma pitada
de sorte em sua carreira (mas eu creio que o merecimento, no seu caso, não depende de sorte alguma...). De
qualquer modo, desta vez a sorte esteve comigo, por ser orientada por um estudioso tão competente e com tantas
virtudes morais. Como aprendi com meu orientador de mestrado, existem virtudes que só os espíritos elevados
possuem. Felicidade a minha conviver academicamente com uma pessoa assim, que não apenas crê no bem, na
tolerância e igualdade, mas os pratica, sem perder a leveza e o bom humor. Tudo isso em conjunto a um
conhecimento jurídico inigualável. Obrigada.
Ao Prof. Dr. Daniel Sarmento, pesquisador incansável, que constrói e pratica o direito sempre ao ensejo do igual
respeito e consideração. Como Professor, instiga os estudantes ao exercício do pensar, com abertura, inteligência
e, claro, com igual respeito e consideração. Obrigada por todos os ensinamentos, pelo espaço, pelas indicações
de leitura, troca de ideias. Com certeza minha trajetória acadêmica estará profundamente marcada pelas suas
aulas. Obrigada.
À Profª. Drª. Bethânia de Albuquerque Assy, uma daquelas surpresas inacreditáveis que a vida nos traz.
Obrigada pelos ensinamentos, pelos debates, pela confiança. Obrigada por mostrar a sabedoria, o tempero da
força com a gentileza, da razão com a sensibilidade. Obrigada pela inspiração.
Ao Prof. Dr. Ricardo Lobo Torres, pela sua seriedade e amor pela vida acadêmica, que se transmite aos seus
alunos. Agradeço também pela paciência e incentivo. Expresso minha intensa admiração pela combinação ímpar
de conhecimento e humildade.
À Profª. Drª. Maria Celina Bodin de Moraes e à turma de civil-constitucional pela instigação ao conhecimento e
pela acolhida.
À Professora Ana Paula de Barcellos, pela seriedade, caráter e receptividade.
Ao Prof. Dr. Ingo Sarlet, pelos ensinamentos e, especialmente, por ter enviado um texto crucial para o
desenvolvimento do projeto de doutoramento.
A todos os professores da Pós-Graduação em Direito da UERJ, em especial às professoras Jane Reis Gonçalves
Pereira, Patrícia Glioche e Paulo Galvão.
Agradeço imensamente à Sônia Leitão, que, com gentileza, simpatia e competência, está sempre pronta a
auxiliar e amparar os pós-graduandos da UERJ.
Ao Prof. Dr. Cláudio Ladeira de Oliveira, pelo grande apoio acadêmico.
Ao Prof. Dr. Salo de Carvalho, pela colaboração acadêmica.
vi
Aos colegas do mestrado e do doutorado em Direito da UERJ, em especial: Amália, uma amiga de verdade.
Bruno e Antônio, colegas, interlocutores e amigos. Fábio Andrade e Rachell, pela amizade e gentileza. Fábio
Leite, pela interlocução e amizade. À Ana Maria, pela força e constância.
Aos Professores Sílvio Dobrowolski e Moacyr Motta da Silva, sempre presentes.
Ao meu grande e primeiro amigo Daniel Aragão, ou seria Dartagnan? À minha grande e primeira amiga, Carla
Ribeiro, ou seria Aramis? À minha amiga Cristiane de Menezes. Única. Demorei mais de dez anos para
perceber sua estatura real, tão grande a alma... À minha amiga Leca. À minha amiga Mônica, “em todo tempo
ama o amigo, e na angústia se faz o irmão” (Rogério, você também...). Ao meu amigo Carlos
Strapazzon, ou seria Athos? À minha amiga Liana Lins, que sabe onde a beleza está. À minha amiga
Dida, presente enviado pela Liana, a riqueza em pessoa. À minha querida amiga Débora, “presença
certa nas horas incertas”. As amigas de sempre, Dani Estevão, Fofa, Bila, Luthi, Karen (eu estou muito
ligando para o que fazíamos no ginásio!), Di, Simone, Kümell, Pati, Josi, Flica&Fábio. Agradeço também à
Aline Daronco, Valerinha, Bibi, Rogério e Ekatherina. Ao Gustavo Pedrollo, pela trilha sonora. À Ju, por cuidar
de como pisar com alma leve. Agradeço à Diana, Ivi e Maíra, pelo apoio.
Aos colegas e estudantes da UNESC, principalmente os Professores Luís Afonso, Gildo Volpatto, Félix,
Ricardo Pinho, João Quevedo, Michel Alisson, Aline Bez, Alfredo Engelmann, Janete, Sheila, Geralda, Carlos
Magno, Clélia, Tânia, Vanessa e Karina. À Patrícia Gaspar dos Santos. E, mais do que especial, à Louvani de
Fátima Sebastião da Silva.
Aos amigos da Prorunner, especialmente Riro e Kari, Santi e Vavá, Gerusa e ao Marco. Aos amigos da Água
Doce, por entenderem a falta de horários...
À Maria Joana, presença constante, forte e discreta na minha vida acadêmica. Creio que todos os meus textos
passaram por suas mãos...
À Ana Agassi e sua família, verdadeiros amigos.
Reservei o final àqueles a quem mais grata sou. Sempre: Nadão (in memorian), Izara, Teca, João, Gué (a
terceira), Paulo, Inho, Greice, Camilinha, Kenji, Fer, Zé, Ellen, João, Rafa, Catito, Clarice, Lelo, Jamile, Lucca e
Jaime.
A propósito, o doutorado foi um caminho, não uma estrada. E a obra era A imortalidade...
vii
SUMÁRIO
2.2.1 O DIREITO GERAL DE LIBERDADE: DIREITOS FUNDAMENTAIS DISPONÍVEIS PRIMA FACIE ............ 94
2.2.2 LIBERDADES BÁSICAS: EXERCÍCIO INTERPRETATIVO PARA DETERMINAR O PONTO DE PARTIDA 99
2.2.3 SÍNTESE CONCLUSIVA E TOMADA DE POSIÇÃO ........................................................................... 108
2.3 LIMITES À LIBERDADE: O PRINCÍPIO LIBERAL DO DANO E O PATERNALISMO JURÍDICO ........ 113
2.3.1 O PRINCÍPIO LIBERAL DO DANO .................................................................................................. 115
2.3.2 O PATERNALISMO JURÍDICO ....................................................................................................... 121
2.3.3 PATERNALISMO JURÍDICO E INDISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ...................... 142
2.4 A DIGNIDADE HUMANA: A TENSÃO ENTRE AS VERSÕES AUTÔNOMA E HETERÔNOMA ............ 147
2.4.1 A DIGNIDADE HUMANA COMO CONCEITO INÚTIL ....................................................................... 149
2.4.2 A DIMENSÃO MATERIAL DA DIGNIDADE HUMANA ..................................................................... 151
2.4.3 DIGNIDADE HUMANA COMO VIRTUDE ....................................................................................... 153
2.4.4 A DIGNIDADE HUMANA COMO AUTONOMIA ............................................................................... 154
2.4.5 A DIGNIDADE HUMANA COMO HETERONOMIA ........................................................................... 172
2.4.6 DIGNIDADE HUMANA E DISPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: ASSUMINDO UMA POSIÇÃO 188
4.3.1 MORTE COM INTERVENÇÃO: UM DIÁLOGO SOBRE NOVOS CONCEITOS E SEUS REFLEXOS
JURÍDICOS ............................................................................................................................................ 333
iv
4.3.2 CONCLUSÕES PARCIAIS SOBRE OS NOVOS CONCEITOS ............................................................ 358
4.3.2 HIPÓTESES DE DISPOSIÇÃO DE POSIÇÕES SUBJETIVAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NA
MORTE COM INTERVENÇÃO ................................................................................................................. 360
v
INTRODUÇÃO
“Gosto imensamente desta vida e desejo falar sobre ela com liberdade: dá-me o
orgulho de minha condição de homem. Sobre o mar, o silêncio enorme do meio-
dia. Todo ser belo tem o orgulho natural de sua beleza, e o mundo, hoje, deixa
seu orgulho destilar por todos os poros. Diante dele, por que haveria de negar a
alegria de viver, se conheço a maneira de não encerrar tudo nessa mesma alegria
de viver? Não há vergonha alguma em ser feliz. Há um tempo para viver e um
tempo para testemunhar a vida. (…). Penso agora em flores, sorrisos, desejo de
mulher, e compreendo que todo o meu horror de morrer está contido em meu ciúme
de vida. Sinto ciúme daqueles que virão e para os quais as flores e o desejo de
mulher terão todo o seu sentido de carne e de sangue. Sou invejoso porque amo
demais a vida para não ser egoísta... Quero suportar minha lucidez até o fim e
contemplar minha morte com toda a exuberância de meu ciúme e de meu horror.”3
3
CAMUS, Albert. Núpcias, o verão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
4
CAMUS, Albert. Núpcias..., Op. cit.
5
Atribuído a Albert Camus, na obra A Queda, por Jorge Luis Gutiérrez.
Conta-se que Sigmund Freud, após dezesseis anos de sofrimentos atrozes em
decorrência de um câncer de maxilar, solicitou ao seu fiel amigo e médico Schur a abreviação
daquilo que chamou tortura. Com a aquiescência de Anna, o médico despediu-se do amigo e
ministrou doses demasiadamente altas de morfina. Diz-se que Freud havia viajado à Inglaterra
para morrer em liberdade (parafraseando Veríssimo, é assim que nascem os mitos)*.
Setenta anos se passaram. Neste longo lapso, o mundo assistiu à barbárie nazista, à
matança, dita eugênica, de milhões de pessoas. Forjaram-se Declarações Internacionais de
Direitos, manifestou-se, mais e mais, o intenso e sagrado valor da vida e da liberdade
humanas. Paralelamente, muito avançou a medicina, tanto em suas técnicas, como na
discussão do seu papel ético. Também mudaram muito as sociedades políticas ocidentais, que
vem se modificando, se reconstruindo criticamente e quebrando muitos tabus, como os
referentes à sexualidade, à família, e também à morte. Repudiada a ideia eugênica, segue
aceso o debate a respeito da escolha, livre, do momento e das condições da própria morte.
Sabe-se que o tema da eutanásia voluntária, do suicídio assistido e da recusa e da suspensão
de tratamentos médicos está na ordem do dia.
*
A palavra “conta-se” foi utilizada porque não há certeza histórica a respeito dessa passagem da vida de Freud,
que é largamente repetida, por vários autores e até mesmo via internet. Informa-se que, a título de estruturação
de texto e ordenação metodológica, a Introdução e a Conclusão da tese não trazem indicações bibliográficas,
pois as informações nelas contidas encontram-se devidamente atribuídas ao longo da tese. Salvo quando tal não
ocorre é que se faz a menção completa.
2
Variam entre extremos: há tabus, há estudos profundos à luz da principiologia da bioética, de
teorias da moral e da justiça, há pesquisas sob a ótica da dignidade da pessoa humana, da
intangibilidade do direito à vida, da exaltação da liberdade humana, há visões religiosas. Há
preocupação com o perigo constante da ladeira escorregadia, de reviver os tempos
hitlerianos. Há preocupação com o perigo constante da submissão compulsória de pessoas
acometidas por doenças incuráveis, debilitantes, no limiar da vida, a sofrimentos
exasperadores.
3
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em que pese manifestar a
inviolabilidade de uma série de direitos fundamentais, não expressa proibição geral acerca da
livre disposição dos direitos fundamentais pelo titular. O Código Civil brasileiro, por seu
turno, ao tratar dos direitos da personalidade, proíbe expressamente sua renúncia e a limitação
voluntária do seu exercício, ressalvando os permissivos legais. Ora, se a Constituição
brasileira não elencou tal enunciado geral de indisponibilidade dos direitos fundamentais,
poderia o legislador ordinário fazê-lo quanto aos direitos da personalidade6? Ao categorizar
um direito fundamental como indisponível, não seria lançada sobre o titular uma ablação
correlata em seu âmbito de liberdade? Tal não significaria que, na exata medida em que o
titular não pudesse dispor do direito, existiria constrição à sua liberdade quanto ao destino de
seus próprios direitos? Além disso, quando um direito fundamental é identificado como
indisponível, recairia, sobre todos os demais, o dever de não infringi-lo mediante
consentimento do titular. Haveria, nesse dever, ablação de posições jusfundamentalmente
protegidas?7 Se efetivamente houver ablação de posições jusfundamentalmente protegidas,
quer do titular, quer de terceiros, é necessária justificação adequada, é preciso arcar com o
ônus argumentativo.
6
Nesta tese, entende-se, com apoio em Luís Roberto Barroso, que os direitos da personalidade são algumas
projeções dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas. Já os direitos humanos, como situa Ingo
Sarlet, referem-se aos sistemas de proteção internacional dos direitos (sistemas regional e global) e os direitos
fundamentais ao sistema nacional de proteção.
7
Não se desconhece a problemática da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, apenas
se está a referir o direito à vida como aplicável a estas relações em razão das mediações concretizadoras já
existentes. Tampouco é ignorada a diferença entre Estado e particulares na violação de direitos fundamentais. As
distinções serão formuladas ao longo da tese.
4
dois homens adultos pactuam que um pode matar o outro, dividir seu corpo e comê-lo, com o
consentimento da vítima e evidências, inclusive escritas, da aquiescência. Teria o
consentimento, emitido em frente a testemunhas, ou devidamente comprovado, o condão de
neutralizar os efeitos jurídicos do ato praticado, bem como de absolver o agente? Se a
resposta a esta indagação for afirmativa, diversos problemas serão postos. Um deles, de
fundo, é a vulgarização da vida humana e até a aceitação de uma cultura da morte. Outro
deles refere-se a uma séria diminuição da capacidade de um sistema jurídico de responder a
ataques ao direito à vida. Dificilmente um homicida deixaria de alegar que a vítima consentira
na sua conduta. Desta feita, a tutela do direito à vida de terceiros não consententes estaria sob
sério risco.
5
acuados pelas normas jurídicas vigentes, podem lançar mão das técnicas referidas, não apenas
contra a vontade dos pacientes, mas em violação à sua própria consciência.
Foi exatamente a partir deste segundo extremo que nasceu o problema de pesquisa
desta tese de doutoramento: “Podem-se considerar hipóteses de disposição de posições
jurídicas do direito fundamental à vida? Quais os limites e padrões a serem observados, sob
o enfoque constitucional, para a autolimitação de posições jurídicas subjetivas do direito à
vida?” Como hipótese, foi formulada a seguinte: Apesar de ser justificável, em linha de
princípio, que um sistema jurídico repute o direito à vida indisponível, poderá ocorrer a
autolimitação, mediante consentimento genuíno, quando associada a determinadas
condicionantes de fato e de direito. Então, a par de todas estas vertentes de exame e das
questões práticas, a tese que ora se apresenta tem como meta estudar a temática em um recorte
epistemológico bastante definido. Em virtude da muito difundida tese da indisponibilidade
dos direitos fundamentais, lança-se como questão central a possibilidade de se considerar
hipóteses de disposição do direito fundamental à vida, bem como a existência de limites e
padrões a serem observados, sob o enfoque constitucional, para a autolimitação, mediante
consentimento, de posições jurídicas subjetivas deste direito fundamental.
6
A pesquisa é justificada em face da gravidade dos casos-limite apontados linhas atrás.
Como será visto, é necessário definir com precisão e rigor a locução indisponibilidade dos
direitos fundamentais. Faz-se mister que sejam densamente conhecidas as origens e as razões
das teses de defesa da indisponibilidade dos direitos fundamentais, assim como é necessário
aprofundar o estudo das consequências dessa classificação. Importa conhecer, ainda, as teses
que negam a indisponibilidade dos direitos fundamentais e examinar os resultados da sua
adoção.
7
dispor do bem protegido ou do exercício do direito à vida sem que esteja a abrir mão do
próprio direito, assim como parece o direito à vida confundir-se com seu conteúdo essencial.
Para tanto, a tese está dividida em quatro capítulos. No Capítulo 1, será formulado um
mapeamento dos sentidos conferidos à expressão direitos indisponíveis na doutrina e na
jurisprudência brasileiras, pois a expressão parece confusa e de aplicação discutível. A seguir,
será estudada a estrutura dos direitos subjetivos e as posições jurídicas subjetivas de direito
fundamental, a fim de melhor apreender a primeira parte da expressão direitos indisponíveis.
Compreendida a estrutura dos direitos subjetivos fundamentais, será discutido o sentido de
indisponível e proposto um conceito para a indisponibilidade de posições jurídicas subjetivas
de direito fundamental. Por fim, a (in)disponibilidade será diferenciada de institutos que
podem com ela confundir-se, como o não-exercício de posições jurídicas subjetivas de direito
fundamental, a interferência heterônoma nos direitos fundamentais, a autocolocação em risco
e o dano a si. Perceber-se-á que a disposição está associada ao consentimento, condição
necessária à disposição.
Enfim, no Capítulo 4, os elementos dos três primeiros capítulos serão conjugados para
aplicação no problema da morte com intervenção, que envolve disposição de posições
jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida. Neste ensejo, será, inicialmente, formulada
a estrutura do direito subjetivo fundamental à vida, com demarcação das posições subjetivas e
discussão das suas características e alcance. Logo após, serão trabalhadas as situações
referentes à terminalidade da vida, à luz dos conceitos adotados no campo hegemônico da
bioética. Discutir-se-á a limitação consentida de tratamento (forma de recusa de tratamento
médico), a extensão do dever de salvamento e a disposição de posições jurídicas subjetivas de
direito fundamental no ponto. Como se trata de uma tese de doutoramento, serão propostos
alguns limites e padrões à disposição de posições jurídicas subjetivas do direito à vida em
cada uma das hipóteses.
Como será percebido, nesse Capítulo final sustentar-se-á que as posições jurídicas
subjetivas do direito à vida são, em linha de princípio, indisponíveis. Para defender esta
posição, serão evitados alguns argumentos, anteriormente descartados na tese. O ponto é
muito relevante, uma vez que a tese gira em torno da possibilidade de disposição de posições
jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida. Ou seja, demonstrar-se-á, primeiro, que é
substantivamente justificável que o sistema jurídico brasileiro repute as posições jurídicas
subjetivas do direito à vida indisponíveis, considerando o consentimento, ainda que válido,
insuficiente para que terceiros ajam ou deixem de agir de forma que não poderiam se não
houvesse o consentimento. Depois, mostrar-se-á que a justificação não é absoluta e válida
para toda e qualquer situação. Haverá situações nas quais não subsiste a justificação e o
consentimento passa a adquirir suficiência, pois associado a outras condicionantes fáticas e
jurídicas.
Outro recorte da tese é o tipo de disposição que será examinada. Tratar-se-á apenas
dos casos de disposição não-onerosa, ligados ao viés pessoal dos direitos. Estão excluídas do
objeto de estudo as hipóteses de disposição onerosa e ligadas ao viés patrimonial ou
econômico das posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. Então, o centro está nos
direitos pessoais (em oposição aos direitos reais), no seu viés existencial (em oposição a um
eventual viés econômico dos direitos pessoais). Em sendo o foco primário o sistema jurídico
nacional, entendeu-se oportuno centrar a discussão sobre a disponibilidade de posições
subjetivas do direito à vida no contexto da morte com intervenção, mais precisamente na
limitação consentida de tratamento e nos cuidados paliativos. A agenda dos direitos
fundamentais, no que tange à disposição de posições subjetivas do direito à vida, está nesses
dois pontos. Há um relevante processo em andamento (ACP da Ortotanásia) e discussões
legislativas de monta, inclusive com a realização de audiência pública e aprovação, em uma
das Casas Legislativas, da excludente de ilicitude de formas de limitação consentida de
tratamento.
8
Compreende-se que se situam nesse marco autores como John Rawls, Ronald Dworkin, Joel Feinberg, Robert
Alexy e Cass Sustein, respeitadas suas peculiaridades, é claro. Nesta tese, exercerão influência determinante o
11
pressuposto o fato do pluralismo9. Não se pode confundir o liberalismo igualitário com o
libertarianismo, tampouco com o liberalismo clássico e suas neoversões. O liberalismo
igualitário situa no indivíduo a unidade de agência, não o substituindo por outras agências
coletivas, como a comunidade. Porém, não adota um sujeito completamente ilhado,
autossuficiente por si só e absolutamente distanciado de manifestações coletivas do eu. No
amplo arco liberal, o liberalismo igualitário não é refratário à ideia de justiça social e suas
manifestações na formulação de políticas públicas. Também não recusa de plano a ideia da
formação de alguns consensos substantivos a serem protegidos pela força estatal ou
promovidos pelo Estado, desde que não sejam produto exclusivo de doutrinas morais
abragentes, que penetram nos mais variados ângulos da vida dos sujeitos sem uma base
comum de justiça política que eles possam razoavelmente endossar. Tais consensos
substantivos, no marco do liberalismo igualitário, coexistem com o fato do pluralismo e com
o respeito devido ao sujeito, normalmente traduzido em seus direitos jusfundamentais. A
tradução do respeito ao sujeito a partir de seus direitos, que funcionam como seu invólucro
protetor, indica que se está a trabalhar com uma teoria baseada em direitos e não com teorias
baseadas em deveres ou em metas10.
método da integridade de Ronald Dworkin, a concepção dos sujeitos como destinários de igual respeito e
consideração, o que exige considerar-se que eles possuem habilidades de agência, dentre elas a de ter uma
concepção moral do bem e considerar uns aos outros desse modo”. Ademais, “a identidade pública ou legal do
sujeito não se altera se se alterar a sua concepção de bem”. Também são relevantes os estudos de Alexy,
especialmente acerca da estrutura dos direitos fundamentais e também, em certa medida, da ponderação, com
suas características e seus limites. Joel Feinberg vem à cena especialmente por sua habilidade em precisar
conceitos. Cass Sunstein, por seu turno, mostra-se no final do trabalho, em razão da sua proposição de um
minimalismo judicial e de seus estudos sobre o Estado regulatório.
9
O termo é de John Rawls. O fato do pluralismo razoável “consiste em profundas e irreconciliáveis diferenças
nas concepções religiosas e filosóficas, razoáveis e abrangentes, que os cidadãos têm do mundo, e na idéia que
eles têm dos valores morais e estéticos a serem alcançados na vida humana”. Outro fato que Rawls toma como
um dado (premissa ora aceita) é o fato da opressão: certas compreensões do bem não podem ser abandonadas a
não ser autonomamente, se a constrição for heterônoma, haverá opressão e isso se mostra de modo
particularmente forte ao longo da história, especialmente em sociedades calçadas em uma doutrina moral
abrangente. Por doutrina moral abrangente, no pensamento de Rawls, são “doutrinas - filosóficas, morais,
religiosas - pessoais que englobam, de maneira mais ou menos sistemática e completa, os diversos aspectos da
existência humana e, portanto, que ultrapassam as questões meramente políticas, considerando-as como um caso
particular de uma concepção mais ampla”. Cf. RAWLS, John. Justiça como eqüidade – uma reformulação.
Trad. Claudia Berliner. Rev. Técnica: Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.04-05. RAWLS, John.
Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. RAWLS,
John. Justiça e Democracia. Sel. Catherine Audard. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
AUDARD, Catherine. Glossário. In: Justiça e democracia. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p.376.
10
Diferenciam-se aqui as teses (a) baseadas em direitos; (b) baseadas em metas; (c) baseadas em deveres. Nas
primeiras, o centro está no exercício e na preservação de direitos morais (e jurídicos) e os interesses que eles
protegem. Nas segundas, o foco está nas consequências produzidas, normalmente à luz de um critério de
utilidade. Nas terceiras, o foco está em conformar o comportamento humano segundo proibições estipuladas
para manutenção da integridade moral (e jurídica). A respeito, consultar: DWORKIN, Ronald. Levando os
12
Acredita-se que a combinação do liberalismo igualitário a uma teoria baseada em
direitos está em ampla conformidade com a ordem constitucional vigente no Brasil, bem
como as teorias e doutrinas formuladas no período que se segue à abertura democrática do
país. Algumas peculiaridades de índole mais comunitária podem se mostrar na ordem vigente,
mas, como será argumentado adiante, são pequenas aberturas do sistema liberal igualitário ao
comunitarismo, sem que este se torne a marca da ordem constitucional atual.
Como toda pesquisa acadêmica, esta tese tem seus contornos delineados. Centra-se
nos problemas da morte com intervenção e da (in)disponibilidade de posições jurídicas do
direito fundamental à vida. Diante dos acalorados debates sobre as técnicas de abreviação da
vida em circunstâncias extremas, não se pretende, logicamente, que esta pesquisa seja capaz
de pôr fim à contenda, muito menos de abrangê-la integralmente. Soa sequer desejável que tal
aconteça, pois, com tão precioso direito em liça, em uma sociedade pluralista, a maturação
democrática (leia-se, diálogo constitucional, envolvendo os três poderes e a sociedade) há de
ser o rumo inexorável para o estabelecimento de políticas públicas. Contudo, é importante
tentar contribuir academicamente para o desenlace de alguns tópicos correlacionados ao tema.
A tese, a partir de um enfoque epistêmico bastante delimitado, visa a cooperar com a
construção de elementos de objetivação e de racionalização do discurso jurídico acerca da
indisponibilidade do direito à vida. Salienta-se que não se trata de uma tese sobre a morte, o
morrer e sua leitura jurídica. O tema é a (in)disponibilidade de posições jurídicas subjetivas de
direito fundamental, aplicado ao direito à vida no contexto da morte com intervenção.
direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, Capítulo 6. BROCK, Dan W. Life and
death: philosophical essays in biomedical ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p.95-99.
13
hegemônica), comunitarista, utilitarista, feminista, kantiana, fundada na ética da virtude, laica,
não-laica, enfim, a bioética encampa diferentes enfoques. Isso não permite que se faça
referência ao termo como uno e fechado. Em segundo lugar, os estudos realizados por
bioeticistas são forjados, via de regra, na ambiência da filosofia moral e da ética aplicada.
Portanto, não podem ser tomados como as soluções únicas e necessárias a um sistema jurídico
simplesmente porque se forma certo consenso entre bioeticistas e profissionais envolvidos
com as ciências da vida. Se esta postura for adotada, adentra-se em um elitismo
epistemológico, no qual um grupo de iniciados em um ou alguns ramos do saber ditam as
regras e os princípios de conduta autoritativamente para toda a sociedade política. As soluções
e diretrizes eventualmente sustentadas pelos bioeticistas e pelas associações profissionais
carecem de ligação com o arcabouço jurídico, especialmente quanto ao debate nas instituições
democráticas de cada sistema, sejam elas o Legislativo, o Executivo ou o Judiciário. Nesse
sentido, se trabalha, aprioristicamente, nesta tese, com argumentos oriundos de ramos
diversos da bioética como autoritativos para solucionar questões jurídicas sem qualquer crivo
democrático. O que se propõe é um diálogo entre as vertentes da bioética e o sistema jurídico,
ou, parafraseando Potter, a construção de pontes entre as bioéticas, os sistemas jurídicos e as
ciências da saúde.
14
1. (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS E DISTINÇÃO DE FIGURAS
AFINS
“SINÔNIMOS
“AH! OS RELÓGIOS
“A COISA
11
QUINTANA, Mário. Caderno H. Rio de Janeiro: Globo, 2007, p.190.
12
QUINTANA, Mário. A cor do invisível. Rio de Janeiro: Globo, 2006.
13
QUINTANA, Mário. Caderno H, p.156.
O que significa afirmar a tradicionalmente aceita indisponibilidade dos direitos
fundamentais enunciada na introdução? O objetivo nuclear deste Capítulo é enfrentar
essa indagação, pois o conceito de disposição dos direitos fundamentais é impreciso.
Notam-se diferenças significativas no seu emprego. Algumas vezes, ele é invocado
como um axioma, não carecedor de maiores explicações, tampouco de justificação;
noutras, integra contextos tão diferenciados entre si que se torna realmente difícil
encontrar um mínimo denominador comum que lhe confira utilidade e clareza14.
14
O termo axioma é aqui utilizado no sentido que lhe empresta Humberto Ávila: “Axioma denota uma
proposição cuja veracidade é aceita por todos, dado que não é nem possível nem necessário prová-la. Por
isso mesmo são os axiomas aplicáveis exclusivamente por meio da lógica, e deduzidos sem a intervenção
de pontos de vista materiais. A veracidade dos axiomas é demonstrada pela sua própria e mera afirmação,
como se o fossem autoevidentes. Não se encontram, portanto, no mundo jurídico do dever ser, cuja
concretização é sempre prático-institucional”. No entender de Ávila, um axioma é tratado “como se fosse
descoberto a priori, sem o prévio exame da sua referência ao ordenamento jurídico” [sem grifos no
original]. ÁVILA, Humberto. Repensando “o princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular”. In: SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo a
supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.176-177. ÁVILA, Humberto. A
distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Diálogo Jurídico,
Salvador, CAJ – Centro de Atualização jurídica, v.I, n. 4, jul. 2001. Disponível em:
http://www.direitopublico.com.br.
16
metodológica consistirá em apreciar a estrutura de um direito fundamental, lançando
mão de um olhar analítico e formal, com foco, apenas nas posições e nas relações
jurídicas de direito fundamental (itens 1.2.).
15
Foi realizada uma ampla coleta jurisprudencial, com enfoque prioritário para os tribunais superiores.
Dos dados obtidos, foi elaborado um catálogo com os sentidos da expressão direitos indisponíveis. Não
foram excluídos os acórdãos que lidavam com direitos não-fundamentais. Constam aqui os principais
sentidos e os acórdãos considerados determinantes.
16
Ver art. 127 da CF/88. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. São Paulo: Saraiva, 2008.
17
desses direitos, ressalvando a limitação voluntária apenas na medida de lei
autorizadora17.
17
A proibição mencionada encontra-se no artigo 11 do CC: “Com exceção dos casos previstos em lei, os
direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo seu exercício sofrer
limitação voluntária”. BRASIL. Código Civil. Lei nº10.406, de 10/01/2002. São Paulo: Saraiva, 2009.
18
No que se refere ao pensamento constitucional brasileiro, não há aprofundados estudos sobre a temática
da existência de direitos fundamentais indisponíveis e suas consequências. O assunto é normalmente
tratado de forma pouco generosa e recebe espaço, no mais das vezes, como simples dictum nos manuais,
quando da explanação das características dos direitos fundamentais. Como exemplo de publicistas que
consideram os direitos fundamentais indisponíveis, José Afonso da Silva: “II – inalienabilidade: são
direitos intransferíveis, inegociáveis, porque não são de conteúdo econômico patrimonial. Se a ordem
constitucional os confere a todos, deles não se pode se desfazer, porque são indisponíveis. […] IV –
Irrenunciabilidade: não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos,
mas não se admite sejam renunciados. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional
positivo. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 166. [sem grifos no original]. Tupinambá Miguel Castro do
Nascimento assim se refere: “Os direitos e garantias individuais são indisponíveis. Seus titulares não
podem transferi-los, negociá-los ou aliená-los a quem quer que seja. Configuram-se como direitos
públicos subjetivos que, ingressando na esfera jurídica de alguém, passam a ser tratados como
personalíssimos. Por isso, se demonstram intransferíveis, inegociáveis e inalienáveis. […] por idênticas
razões, são irrenunciáveis”. NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Comentários à constituição
federal: direitos e garantias fundamentais – artigos 1º a 17. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1997, p.17. Luiz Alberto David de Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior mencionam que uma das
“características intrínsecas” aos direitos fundamentais é a irrenunciabilidade. ARAUJO, Luiz Alberto
David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva,
2006, p.125. Exatamente no mesmo sentido: CAPEZ, Fernando et al. Curso de direito constitucional.
São Paulo: Saraiva: 2004. Para Alexandre de Moraes, os direitos fundamentais estão “em elevada posição
hermenêutica em relação aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, apresentando diversas
características: imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade,
universalidade, efetividade, interdependência e complementaridade: […] inalienabilidade: não há
possibilidade de transferência dos direitos humanos fundamentais, seja a título gratuito, seja a título
oneroso; irrenunciabilidade: os direitos humanos fundamentais não podem ser objeto de renúncia. Dessa
característica surgem discussões importantes na doutrina e posteriormente analisadas, como a renúncia ao
direito à vida e a eutanásia, o suicídio e o aborto”. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos
fundamentais: teoria geral. Comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa
do Brasil:. doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2000, (Coleção Temas Jurídicos) p.41 [itálicos
do original. Os grifos não constam do original].
19
A menção ocorre, normalmente, em relação ao art.11 do Código Civil. Não obstante o fato de os
autores enunciarem a indisponibilidade, muitos reconhecem casos de disposição, sem, no entanto,
abandonar a classificação. Cite-se, a título exemplificativo, José Antônio Peres Gediel: “A
indissociabilidade entre sujeito e bens da personalidade, por sua vez, não só orientou a formulação da
teoria do direito geral da personalidade e o reconhecimento da necessária garantia jurídica das condições
para o livre desenvolvimento da personalidade humana, mas tem resultado a crescente afirmação da
irrenunciabilidade desses direitos, como reflete o texto do artigo 11 do novo Código Civil brasileiro
[…]”. GEDIEL, José Antônio Peres. A irrenunciabilidade dos direitos do trabalhador. In: SARLET, Ingo
Wolfgang. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003, p.149 [sem grifos no original]. BARROS, Ana Lúcia Porto de et al. O novo código civil
comentado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003, p.19: “A intransmissibilidade deriva da
indisponibilidade, não podendo seu titular dispor do direito, decorrendo daí também a irrenunciabilidade e
a impenhorabilidade”. No mesmo rumo, LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. Vol. I, Parte Geral
(arts. 1º a 232). São Paulo: Saraiva, 2003. DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no Código
Civil. In: TEPEDINO, Gustavo. A parte geral do novo Código Civil: estudos numa perspectiva civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.35-59. TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil.
18
humanos o são20. Ainda, no âmbito do direito penal, é forte a ideia de que o
consentimento da vítima (ou do ofendido) não produz efeitos jurídicos, quando se tratar
(o que é, no mais das vezes, o caso) da proteção de bens ou de direitos indisponíveis, o
que seria, em grande parcela das vezes, o caso21. Também na ambiência dos direitos
sociais, assevera-se que são indisponíveis: percebe-se essa aplicação no ramo trabalhista
e previdenciário e também no que concerne aos direitos à saúde e à educação22.
Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Ressalte-se, todavia, que Tepedino, ao escrever seus comentários ao novo
Código Civil, junto a Heloisa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes, embora ainda
sustentando que os direitos da personalidade são indisponíveis, menciona que a tese admite
“temperamentos”. TEPEDINO, Gustavo et al. Código civil interpretado conforme a constituição da
república. Vol. I, Parte Geral (arts. 1º a 420). Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
20
No Preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral da ONU
em 1948, há manifestação de que os direitos indisponíveis compõem, ao lado da dignidade humana, a
estrutura da liberdade, da justiça e da paz mundiais: “whereas recognition of the inherent dignity and the
equal and inalienable rights of all members of the human family is the foundation of freedom, justice and
peace in the world, […]”. UN. Eveyone’s United Nations: a handbook on the work of United Nations.
New York: United Nations Publication, Tenth Edition, 1986, p. 462. [sem grifos no original]. No sentido
de serem os direitos humanos inalienáveis, Almir Oliveira: “[…] esses direitos caracterizam-se como:
inatos, ou congênitos,- universais,- absolutos,- necessários,- inalienáveis,- invioláveis, - imprescritíveis.
[…] Porque pertencem de modo indissolúvel à essência mesma do homem, sem que possa dele separar-
se, não podem ser transferidos a outrem, a qualquer título, diferentemente do que acontece com os direitos
que podem ser objeto de transação jurídica, são inalienáveis. OLIVEIRA, Almir. Curso de Direitos
Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 11-14; 58-59 e 97-98 [sem grifos no original]. Na doutrina
portuguesa, Cristina de Queiroz, sem grandes aprofundamentos, refere: “‘Fundamentais’ ainda que não se
fundam em atos legislativos, mas na natureza do homem no momento do seu nascimento. Por isso
encontram-se subtraídos a todo acto do Estado ou da legislação. O Estado não pode subtraí-los ao
cidadão, nem este pode ‘renunciar’ a estes”. QUEIROZ, Cristina M.M. Direitos fundamentais: teoria
Geral. Coimbra: Coimbra, 2002 (Série Teses e Dissertações), p.67 [sem grifos no original].
21
Discutindo a questão, PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido na teoria do
delito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
22
GOLDSHMIDT, Rodrigo. Os clássicos princípios do direito do trabalho frente às novas competências
da justiça obreira. Revista do Tribunal Regional do Trabalho 12ª Região. Florianópolis: v.14, n.23,
2007, p.283-295. Com novas leituras sobre o contrato de trabalho: BACARAT, Eduardo Milléo. A boa-fé
no direito individual do trabalho. São Paulo: LTr, 2003.
19
O que se percebe é que muitos juristas seguem referindo, de modo laudatório,
que os direitos fundamentais são indisponíveis e apresentando os casos de disposição de
direitos fundamentais (ou da personalidade) como anomalias incapazes de afetar o
epíteto indisponíveis (a propalada indisponibilidade). É pouco comum, ainda, encontrar
uma definição do que deva ser compreendido por direito fundamental, para que se possa
ter claro exatamente o que é indisponível. Por vezes, a ideia é de que o bem protegido
pelo direito é que não pode ser afetado pelo próprio titular; noutras, tem-se a noção de
que terceiros não podem interferir em direito alheio, mesmo com o consentimento do
titular.
23
Nesse sentido, Luís Roberto Barroso: “Nesse ponto, seria possível enveredar por uma discussão teórica
mais ampla acerca da disponibilidade dos direitos fundamentais ou dos direitos da personalidade, de
forma geral. A afirmação simplista de que tais direitos seriam integralmente indisponíveis está longe
de captar todas as nuances do tema, sobretudo tendo em conta a liberdade e a autonomia pessoal
reconhecidas pela Constituição aos indivíduos. O ponto será retomado adiante, mas apenas para dar um
exemplo, tatuar o corpo de alguém contra a sua vontade seria, sem dúvida, uma agressão a sua integridade
física. Não se pode dizer o mesmo nos casos em que a prática é consentida. Da mesma forma, divulgar
fotos ousadas de uma pessoa sem a sua autorização constitui grave invasão ao seu direito à intimidade,
mas não se pode dizer o mesmo quando a exposição é voluntária.” BARROSO, Luís Roberto. O direito
individual à própria imagem e a possibilidade de disposição por parte do titular: conteúdo e limites.
Parecer não publicado. Mimeografado. [sem grifos no original]. Na doutrina brasileira, relativizam a ideia
de indisponibilidade: SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no
direito comparado e no Brasil. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A reconstrução democrática do
direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.310-311. SILVA, Virgílio Afonso da. A
constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo,
2004. Tese (Livre Docência em Direito) – USP. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade
dos direitos de personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005. TEPEDINO, Gustavo et
al. Comentários... Também José Antônio Peres Gediel, apesar de afirmar fortemente a indisponibilidade,
admite relativizações GEDIEL, Op.cit. Na doutrina portuguesa, são exemplos Canotilho: “As clássicas
declarações de direitos referiam-se aos direitos inalienáveis e imprescritíveis. Todavia, ao lado do
processo de relativização dos direitos resultante da ideia clássica de réglémentation de libertés, assistiu-se
e assiste-se ainda a um processo paralelo de relativização através da ideia de renúncia a direitos
fundamentais […]. Em síntese, propor-se-á como eixo argumentativo a invocação do caráter inalienável
dos direitos, liberdades e garantias, (e direitos de natureza análoga). Dizer que as liberdades básicas são
inalienáveis é o mesmo que dizer que qualquer acordo entre cidadãos que prescinda de uma
liberdade básica ou a viole, mesmo que esse acordo possa ser racional e voluntário, é nulo ab initio,
isto é, não tem qualquer força legal nem afeta as liberdades básicas de qualquer cidadão”. CANOTILHO,
J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, s/d, p. 422. E Jorge
Miranda: “Por princípio, ninguém pode renunciar a direitos, liberdades e garantias, ou a direitos
econômicos, sociais ou culturais (precisamente porque são direitos fundamentais, assentes na dignidade
da pessoa humana e elementos estruturantes da ordem constitucional). Apenas se concebe que o próprio
titular deste ou daquele direito venha a estabelecer uma limitação temporária do seu exercício ou uma
autorrestrição, sem afetar o respectivo conteúdo essencial, em hipóteses bem contadas [...]”. MIRANDA,
Jorge. Manual de direito constitucional: direitos fundamentais. Tomo IV. 3. ed. rev. atual. Coimbra:
Coimbra, 2000, p. 357-358 [sem grifos no original].
20
que pese dispositivo legal proibitivo, está debatendo possibilidades de disposição de
alguns dos direitos da personalidade, lançando relativizações à interpretação do art. 11
do Código Civil24. Há também, em minoria no Brasil, aqueles que sugerem que os
direitos fundamentais e os direitos da personalidade deveriam ser vistos justamente do
ângulo oposto – como direitos disponíveis25.
Mas o que significa dizer que alguns direitos são indisponíveis? No grupo dos
que esposam a indisponibilidade geral, ela normalmente é apresentada como uma
característica intrínseca aos direitos fundamentais, descritivamente. Esses doutrinadores
difundem, também, conceitos circulares, ou seja, mencionam que os direitos
fundamentais são indisponíveis por serem irrenunciáveis ou vice-versa. Torna-se ainda
mais complicada a tarefa de investigar o sentido da expressão direitos indisponíveis
24
Por exemplo, o enunciado aprovado na Jornada de Direito Civil: “Limitação Voluntária. Jornada
STJ 4. ‘o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja
permanente, nem geral’”. NERY Junior, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado
e legislação extravagante. 2.ed. rev. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.158.
25
No Brasil, Alexandre dos Santos Cunha, ao tratar da patrimonialização do próprio corpo, refere:
“Assim sendo, a decisão de patrimonializar ou não o próprio corpo diz respeito única e exclusivamente,
desde que não atinja direitos de terceiros, ao livre arbítrio de cada um, no exercício de seu direito
constitucional à autonomia. Por isso, contrariamente ao que versa o art. 11 do novo Código Civil, o
único tipo de limitação que pode ser dado a este direito fundamental é o voluntário. Disso advém a
inconstitucionalidade do dispositivo”. CUNHA, Alexandre dos Santos. Dignidade da pessoa humana:
conceito fundamental no direito civil. In: MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito
privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais no direito privado.. São Paulo:
RT, 2002, p.260. [sem grifos no original]. Do mesmo autor: CUNHA, Alexandre dos Santos. A
normatividade da pessoa humana: o estatuto jurídico da personalidade e o Código Civil de 2002.
Rio de Janeiro, Forense, 2005. Na doutrina portuguesa, Jorge Reis Novais parte do eixo da
disponibilidade dos direitos fundamentais, uma vez que analisa a renúncia como um ato complexo, de
dupla via, pois “na renúncia se verifi[cam], simultaneamente, um exercício e uma restrição de um direito
fundamental”. Ele sustenta, então, que a indisponibilidade não pode ser a regra. Em seu olhar, a regra é
justamente a disposição do direito fundamental, disposição esta que somente poderá ser reduzida ou
impedida mediante justificação em interesse público dotado de peso relevante em face das circunstâncias
que envolvem a renúncia. NOVAIS, Jorge Reis. Renúncia a direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge.
Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996, p.299.
Também José Carlos Vieira de Andrade posiciona-se no sentido da disponibilidade como ponto de
partida nas relações permeadas pela igualdade entre os sujeitos, desde que mantidos certos limites:
“Num contexto jurídico-constitucional em que, ultrapassada a visão liberalista, a liberdade individual está
associada à solidariedade cívica e a uma ética de responsabilidade comunitária, em que os direitos
fundamentais têm uma dupla dimensão, subjetiva e objectiva, percebe-se que o primado da liberdade e o
consequente princípio da disponibilidade dos direitos fundamentais depende de algumas condições e
estejam sujeitos a determinados limites. […] A Constituição, como é compreensível, não regula ex
professo a questão da admissibilidade da autolimitação e das respectivas condições e limites, mas dos
seus preceitos podem retirar-se, por via interpretativa, algumas indicações normativas mais ou menos
claras sobre as hipóteses, condições e limites da sua admissibilidade [...]. Contudo, apesar das distinções
entre os direitos, o problema da disponibilidade e do grau de disponibilidade dos direitos, liberdades e
garantias pelos seus titulares não se resolve em abstracto, constitui um problema que, em última análise,
só é susceptível de uma solução definitiva nas circunstâncias dos casos concretos”. ANDRADE, José
Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3.ed. Coimbra:
Almedina, 2004, p.331-335. Na doutrina italiana, Adriano de Cupis parte da noção de disponibilidade dos
direitos da personalidade, com fulcro na autonomia privada. DE CUPIS, Adriano. Os direitos de
personalidade. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1961.
21
quando se leva em conta os exemplos utilizados. Por vezes, referem-se ao bem tutelado
pelo direito; noutras, a relações jurídicas subjacentes a tais direitos.
Já foi assinalado que a CF/88 refere-se aos interesses indisponíveis, no que tange
à legitimidade processual do Ministério Público. Existem diversas menções legislativas,
em dispositivos infraconstitucionais, à atuação do MP e aos interesses indisponíveis. É
o que ocorre na LC nº75/93, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no
Estatuto do Idoso27. Nesses diplomas legais, a palavra indisponíveis aparece ligada aos
interesses individuais e, em alguns casos, aos sociais. Porém, não há elo entre as
26
Um dos exemplos utilizados nesse sentido é o do suicídio. SILVA, Virgílio Afonso da. A
constitucionalização..., p.73.
27
Na LC nº75/93, conferir os arts. 1º; 5º; 6º e 83; no ECA, o art.201; no Estatuto do Idoso, os arts.74;
79 e 81. BRASIL. LC nº75/93. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Leis/LCP/Lcp75.htm.; BRASIL. ECA. Lei nº8.069/90. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm; BRASIL. Estatuto do Idoso. Lei nº10741/03. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/2003/L10.741.htm.
22
expressões direitos ou interesses homogêneos, coletivos e difusos. Dos enunciados
normativos, não se conclui se a palavra interesses é empregada como sinônima de
direitos. Todavia, diversas decisões judiciais utilizam os termos como intercambiáveis.
28
BRASIL. STF. RE nº248.869/SP. Rel. Min. Maurício Corrêa. [sem grifos no original]. O ECA define,
em seu artigo 27, a indisponibilidade do direito discutido no acórdão: “Art. 27. O reconhecimento do
estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os
pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça”. BRASIL, ECA, Op. cit.
23
público”29. Está límpido no excerto que, para que isso ocorra, é preciso que o legislador
se manifeste, determinando quais direitos são disponíveis e quais não são.
29
BRASIL, STF, RE nº248.869/SP, Op. cit. Nesse caso, o Min. Relator citou os estudos de Hugo Nigro
Mazzili sobre a atuação do MP: “Num sentido lato, portanto, até o interesse individual, se indisponível, é
interesse público, cujo zelo é cometido ao Ministério Público”.
30
BRASIL, STF, RE nº248.869/SP, Op. cit. Intervenção do Min. Nelson Jobim. A indagação foi
corroborada pelo Min. Marco Aurélio: “[...] o Ministério Público não pode sequer representar entidade
pública. Poderá representar uma pessoa natural quanto à defesa de direito personalíssimo? Surge uma
incongruência”.
31
Um dos elementos que corrobora essa possibilidade foram os problemas contingentes quanto às
defensorias públicas que se apresentaram no caso. Pareceria a melhor solução entender que incumbe às
defensorias públicas a tarefa de propor a ação investigatória de paternidade. Porém, a deficiência desse
serviço levou o MP a propor a ação e a instaurar a discussão sobre a legitimidade ou não para fazê-lo.
24
indisponibilidade do direito das crianças e dos adolescentes ao conhecimento de sua
paternidade biológica32.
32
O sentido oferecido pelo STJ para a expressão direito indisponível nesses casos difere de muitos outros
julgados do mesmo tribunal. Aqui, a noção é a de um direito que não pode ser obstado ou restringido:
“Necessário, portanto, para a solução do embate jurídico, pautar a controvérsia sob a perspectiva dada
pelo art.27 do ECA, que qualifica o reconhecimento do estado de filiação como direito personalíssimo,
indisponível e imprescritível, o qual pode ser exercitado em face dos pais ou seus herdeiros, sem
restrição. Tal dispositivo, portanto, assenta a respeito do amplo e irrestrito direito de toda pessoa ao
reconhecimento do respectivo estado de filiação. [...] Não se deve concluir que o referido dispositivo
alcança apenas aqueles investigantes que não foram adotados, porque jamais a interpretação da lei pode
dar ensanchas a decisões discriminatórias, excludentes de direitos de cunho marcadamente indisponível,
de cunho personalíssimo, sobre cujo exercício não pode recair nenhuma restrição, como ocorre com o
Direito ao reconhecimento do estado de filiação”. BRASIL. STJ. REsp. nº813.604-SC. Rel. Min. Nancy
Andrighi. DJ de 17/09/07 [sem grifos no original].
33
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: os direitos
humanos e a tributação – imunidades e isonomia (Vol III). 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. Ver
também: BRASIL. STF. ADI nº939-DF. Rel. Min. Sydney Sanches. Disponível em: www.stf.gov.br.
34
O STF, nessa situação, não trabalhou com a questão da indisponibilidade dos direitos individuais.
Centrou-se na diferença entre o consumidor e o contribuinte. BRASIL, STF, AgRg no RE nº248.191-2/
SP, Op.cit.
35
Quando os benefícios previdenciários são tarjados de direitos disponíveis – o que ocorre quando está
em liça a legitimidade do MP para propositura de ações em prol dos possíveis segurados – o sentido
emprestado à disponibilidade é o daquilo que é passível de abdicação ou renúncia. O mesmo se passa nos
julgados que consideram o direito aos benefícios indisponíveis, bem mais raros, diga-se. O STJ
reiteradamente define o benefício previdenciário como direito disponível, cerrando as portas à
legitimidade do MP para propor ação, no que tem sido seguido pelos Tribunais Regionais Federais. Em
um acórdão paradigmático, o Ministro Relator lançou como questão norteadora se “os benefícios
previdenciários são bens disponíveis ou não? Ensejam renúncia ou transação?”. E respondeu: “O
benefício previdenciário traduz direito disponível. Refere-se à espécie de direito subjetivo, ou seja, pode
ser abdicado pelo respectivo titular, contrapondo-se ao direito indisponível, que é insuscetível de
disposição ou transação por parte de seu detentor”. É límpida a associação entre dispor e abdicar,
renunciar e transacionar. No acórdão também fica patente a ligação entre disponibilidade e a possibilidade
de decidir pleitear ou não um direito em juízo. BRASIL. STJ. REsp. nº369.822-PR. Rel. Min. Gilson
Dipp. DJ de 22/04/2003 [os grifos constam do original]. Na jurisprudência do STJ, conferir ainda, a título
25
literatura contempla, frequentemente, a noção de que todos os direitos dos
trabalhadores, por serem fundamentais, são indisponíveis, sem, contudo, defender a
legitimidade do MPT para propor ações por toda e qualquer lesão aos direitos dos
trabalhadores. Ademais, admite-se a transação judicial desses direitos (dos valores que
os traduzem), ainda que limitadamente36.
exemplificativo: BRASIL, STJ. REsp. nº448.684-RS. Rel. Min. Laurita Vaz. DJ de 02/08/2006;
BRASIL. STJ. REsp. nº757.828-PR. Rel. Min. Laurita Vaz. DJ de 19/06/2006; BRASIL. STJ. REsp.
nº770.741-PA. Rel. Min. Gilson Dipp. DJ de 15/05/2006; BRASIL. STJ. REsp. nº762.136-RS. Rel. Min.
Laurita Vaz. DJ de 01/08/2006. É importante verificar a decisão em sede de habeas corpus, no qual foi
discutida a possibilidade de renúncia ao benefício previdenciário como condição de suspensão
condicional do processo criminal por suposta fraude na sua obtenção. A cláusula foi considerada abusiva,
e a Sexta Turma concluiu que não se pode privar alguém do benefício sem o devido processo legal,
manifestando que “não nos parece que se tenha como condição da suspensão condicional do processo
renúncia a direito em si irrenunciável, como o direito à aposentadoria, se eventualmente cabível”.
Ainda que o direito à aposentadoria seja mencionado como indisponível nesse julgado, em linha
diametralmente oposta daqueles que versam sobre a legitimidade do MP, o sentido emprestado é o
mesmo: o de um direito que não pode ser abdicado nem renunciado. BRASIL. STJ. HC nº60.447/RJ.
Rel. Min. Hamilton Carvalhido. DJ de 05/02/2007 [sem grifos no original]. Em alguns acórdãos mais
antigos dos Tribunais Regionais Federais, especialmente o da 4ª Região, é possível encontrar referência
aos benefícios previdenciários como direitos indisponíveis, sempre no sentido de imunes à abdicação. Um
dos principais argumentos em razão da indisponibilidade foi o caráter alimentar do benefício.
Ilustrativamente, conferir: BRASIL. TRF4. AC nº91.04.14004-4. Rel. Des. Sílvio Dobrowolski. DJ de
11/03/1992; BRASIL. TRF4. AC nº91.04.09097-7. Rel. Des. Gilson Langaro Dipp. Redator do Acórdão:
Sílvio Dobrowolski. DJ de 08/04/1992. É interessante conferir um acórdão do STJ que reconhece o MP
como parte legítima para pleitear benefício previdenciário de companheiro homoafetivo, em virtude da
“igualdade na aplicação da lei”. BRASIL. STJ. REsp. nº 395.904-RS. Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa.
DJ de 06/02/2006.
36
No STF, há importante julgado sobre a constitucionalidade do art.83, IV, da LC75/93, que permite ao
MPT propor ações cabíveis para a declaração de nulidade de cláusula de acordo ou convenção coletiva
que viole, dentre outros, direitos indisponíveis dos trabalhadores. Em primeiro lugar, é nítido que o texto
legal permite a propositura de ações “cabíveis”, não apenas as coletivas, mas o STF interpretou o
enunciado normativo no sentido de permitir apenas “ações coletivas”. Não há maior discussão sobre a
definição de “direitos individuais indisponíveis”, todavia, o que se extrai dos votos é que se trata de
direitos que interessam à ordem pública ou à coletividade. Em momento algum os Ministros afirmam que
todos os direitos dos trabalhadores são indisponíveis, como costuma acontecer na doutrina. BRASIL.
STF. ADI nº1.852-1/DF. Rel. Min. Carlos Velloso. DJ de 21/11/2003. BRASIL. STF. AgRg no AI
nº404.860-1-DF. Rel. Min. Joaquim Barbosa Gomes. Disponível em: www.stf.gov.br. Também no TST
não se encontra tal menção, especialmente nos acórdãos que lidam com a legitimidade do MPT. Nos
julgados do TST, a indisponibilidade dos direitos aparece com o sentido de ser um direito insuscetível de
abdicação, transação ou renúncia. Contudo, não há precisão na delimitação da legitimidade do MPT
quanto aos “direitos individuais indisponíveis”, uma vez que é frequente o elo entre a legitimidade do
parquet e os direitos que são de interesse da coletividade, que extrapolam claramente os lindes
individuais, sem labor mais aprofundado sobre a indisponibilidade. Além disso, a flexibilização quanto
aos direitos dos trabalhadores repercute na possibilidade, ainda que limitada, de disposição (no sentido de
abdicação parcial). A título exemplificativo, ver: BRASIL. TST. RR nº563227/99.8. Rel. Juiz Convocado
Luiz Philippe Vieira de Mello Filho. DJ de 24/09/2004; BRASIL. TST. RR nº1143/2004-005-04-40. Rel.
Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi. DJ de 06/06/2008; BRASIL. TST. ED-RR 2090/2003-003-16-00.
Rel. Min. Rosa Maria Weber Candiota da Rosa. DJ de 09/05/2008. Quando da análise da
constitucionalidade de artigos da Lei de Arbitragem, indagado acerca da disponibilidade dos direitos dos
trabalhadores, o Min. Moreira Alves respondeu que são eles direitos patrimoniais disponíveis, com o
significado de direitos que podem ser abdicados. BRASIL. STF. AgRSE nº5.260-7 Reino da Espanha.
Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Disponível em: www.stf.gov.br.
26
julgamento da constitucionalidade de alguns artigos da Lei de Arbitragem37. À época da
publicação desse texto legal, muitos sustentaram a sua inconstitucionalidade, por
entenderem que a inafastabilidade do controle jurisdicional e o amplo acesso à justiça
(estatal) constituíam direitos fundamentais indisponíveis, que não poderiam ser
afastados pela vontade das partes, ou seja, que não poderiam ser objetos de disposição.
De pronto, entende-se que a disponibilidade era vista como a possibilidade de abrir mão
ou abdicar de algum direito fundamental por ato de vontade do titular. E foi esta a
tônica do julgado do STF: seria o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional
passível de renúncia em prol do sistema arbitral?
Por fim, ressalte-se a pertinência desse julgado para esta tese, pois nele é feita a
distinção entre direitos patrimoniais disponíveis e direitos indisponíveis (patrimoniais
ou não). Efetivamente, há direitos que são meramente patrimoniais, em geral tidos como
disponíveis (i.e., passíveis de abdicação, renúncia total, transação, etc.), e outros que
37
O art. 1º da Lei da Arbitragem permitiu a escolha pelo sistema arbitral em detrimento do sistema
judicial estatal, quando a lide versar sobre direitos patrimoniais disponíveis. BRASIL. Lei de
Arbitragem. Lei nº9.307/96. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9307.htm. No
STF, foi questionada a constitucionalidade de vários tópicos da lei, em especial a da cláusula
compromissória. BRASIL. STF. AgRSE nº5.260-7, Op.cit.
38
No acórdão (Voto do Min. Relator) encontra-se o seguinte conceito de direitos disponíveis, dentre
outros de igual ou semelhante teor: “direitos a respeito das quais as partes podem transigir”. Nos votos do
Min. Marco Aurélio e Nelson Jobim é fortíssima a associação entre a indisponibilidade de um direito e a
ablação da liberdade. Eles insistentemente referiram que a disposição do direito, no caso da arbitragem,
prestigia a liberdade e a autonomia da vontade, todas constitucionalmente tuteladas. Ver, também
Proposta de Diligência do Min. Moreira Alves. BRASIL. STF. AgRSE nº5.260-7 Reino da Espanha.
Op. cit.
27
possuem um âmbito existencial ou pessoal que se destaca, para os quais a disposição se
mostra mais problemática. Porém, apesar de a divisão entre direitos patrimoniais e não-
patrimoniais facilitar a questão da disponibilidade, não se pode simplesmente definir
que os direitos patrimoniais são disponíveis, ao passo que os demais não são. Muitos
direitos fundamentais traduzem-se justamente em valores financeiros, e seria um
imperdoável sofisma sustentar que os valores pecuniários são disponíveis e o direito, em
si, não é (e.g., direitos dos trabalhadores, direitos relacionados à previdência social,
dentre outros). Além do mais, muitos direitos não-patrimoniais são sujeitos à
disposição, como ocorreu com a inafastabilidade do controle jurisdicional no julgado
em comento.
39
O autor estuda a possibilidade de disposição do direito à imagem: “É corrente a identificação de duas
esferas no direito à imagem. Trata-se das dimensões existencial e econômica, que se superpõem
parcialmente e apresentam implicações recíprocas”. E adiante, aduz: “A identificação das duas esferas do
direito à imagem – a existencial e a econômica – tem um papel importante justamente na definição dos
limites à liberdade contratual na matéria, como se verá. Assinale-se, porém, que as conexões entre elas
são inúmeras. Na realidade, trata-se de dois aspectos de uma mesma realidade, e não de realidades
distintas, de modo que seria incorreto subestimar a dimensão econômica. A motivação econômica é um
dos fatores considerados na decisão existencial sobre a exposição da imagem, embora não seja
necessariamente o elemento preponderante em todas as ocasiões. Ninguém é obrigado a buscar a
exposição na mídia, mas uma das razões que pode ser considerada legitimamente é a expectativa de
retorno financeiro”. BARROSO, O direito individual..., p.5 e 8. Ver também: FERRAJOLI, Luigi. Los
fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2001.
28
Volvendo à investigação da jurisprudência, vale colacionar uma posição do STF
sobre indisponibilidade que é insistentemente repetida na jurisprudência brasileira. Ela
se refere ao direito à saúde, “que se qualifica como direito subjetivo inalienável”40.
Há, nesse mesmo sentido, acórdão do STF que reconhece o direito subjetivo
público à educação infantil (creche) como prerrogativa indisponível, com aparente
sentido de direito que deve (em sentido forte) ser concretizado pelo Poder Público e que
40
BRASIL. STF. RE-AgRg nº271.286-8. Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: www.stf.gov.br.
Porém, há alguns julgados, especialmente do STJ, que não reconhecem a legitimidade do MP para ajuizar
ações pleiteando medicamentos, tratamentos médicos para uma pessoa apenas, por não estar em palco
direito individual indisponível, ou por exigirem que, além de individual indisponível, seja o direito,
simultaneamente, homogêneo. Do STJ, colhe-se: “In casu, mostra-se inafastável a ilegitimidade do
Ministério Público Estadual para propor ação civil pública, uma vez que não se trata da defesa de
interesses coletivos ou difusos, transindividuais e indivisíveis, tampouco de direitos individuais
indisponíveis e homogêneos, mas de direito individual ao recebimento de medicamento”. BRASIL. STJ.
REsp. nº665.164/RS. Rel. Min. Franciulli Netto. DJ de 20/03/2006; BRASIL. STJ. REsp.
nº664.139/RS. Rel. Min. Castro Meira. DJ de 20/06/2005. Há também julgados que não reconhecem a
homogeneidade do direito individual, tampouco a presença de interesse público: BRASIL. STJ. REsp.
nº613.493/DF. Rel. Min. Cezar Asfor Rocha. DJ de 20/03/2006.
41
BRASIL. STF. AgRg no RE nº271.286/8. Voto do Min. Celso Mello [os grifos constam no original].
42
Em alguns acórdãos anteriores, mencionados no julgado em exame, o Ministro empregava exatamente
as mesmas frases, sem, no entanto, utilizar o termo indisponível. Isso pode sugerir que a palavra ali se
encontra para justificar a legitimidade do MP para propor ações relativas ao direito à saúde, mesmo em
casos individuais. Em diversos julgados sobre o tema, especialmente do STJ e dos TRFs, cuida-se do
direito à saúde de crianças, adolescentes e idosos, cujos direitos são, por força legal, indisponíveis.
Entrementes, é possível encontrar muitos acórdãos nos quais estão em causa direitos de pessoas carentes
ou hipossuficientes, e esses elementos não são empregados como razão para titularidade do direito, mas
para a concessão da sua tutela em juízo.
29
pode ser reclamado pelo MP em juízo43. No STJ, houve importante discussão sobre o
tema, pois, apesar de o STF ter reconhecido o direito à educação infantil como
prerrogativa indisponível, em alguns acórdãos não foi reconhecida a legitimidade do
MP para buscar a tutela em juízo para crianças individualmente consideradas44.
43
BRASIL. STF. RE nº410.715-AgR-SP. Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: www.stf.gov.br.
STF. RE nº436.996-AgR-SP. Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: www.stf.gov.br.
44
Citando o STF, assim se posiciona o STJ: “A educação infantil representa prerrogativa
constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeitos de seu
desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em
creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). Essa prerrogativa jurídica, em consequência, impõe,
ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste, a obrigação de criar condições
objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das ‘crianças de zero a seis anos de idade’
(CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de
configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral
adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição
Federal”. E, mais adiante: “6. O direito à educação, insculpido na Constituição Federal e no Estatuto da
Criança e do Adolescente, é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger,
derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria”. BRASIL.
STJ. Embargos de Divergência em REsp. nº485.969/SP. Rel. Min. José Delgado. DJ de 11/09/2006.
Conferir ainda: BRASIL. STJ. REsp. nº753.565/MS. Rel. Min. Luiz Fux. DJ de 28/05/2007 e BRASIL.
STJ. Embargos de Divergência em REsp. nº466.861/SP. Rel. Min. Teori Albino Zavascki. DJ de
07/05/2007.
45
BRASIL. STJ. AgRg no Recurso Especial nº547.704/RN. Rel. Min. Paulo Medina. DJ de 13/06/2005.
[sem grifos no original].
30
ligação da indisponibilidade com a justiciabilidade, nesse julgado do STJ, tampouco
está em conformidade com ideia de um direito gravado pelo interesse público, muito
menos com a noção de um direito que não pode ser alvo de restrições46.
46
Não é compatível porque o tema do julgado era a contratação de um professor substituto em detrimento
de candidatos aprovados em concurso público e habilitados para a ocupação do cargo. Ora, tratando-se de
legalidade da contratação de servidor público e da lisura dos concursos públicos, parece claro que há
interesse público envolvido na questão, não apenas direitos subjetivos dos candidatos já aprovados e não
nomeados. Em decisão mais antiga, o STJ decidira que o MP era parte legítima para propor ação sobre a
mesma matéria. BRASIL. STJ. REsp. nº268.548/SP Rel. Min. Edson Vidigal. DJ de 06/11/2000. [sem
grifos no original]. Há também acórdão aceitando a legitimidade do MP em caso análogo, em razão da
presença de interesses difusos e metaindividuais. BRASIL. STJ. REsp. nº191.751/MG. Rel. Min. João
Otávio de Noronha. DJ de 06/06/2005.
47
É bastante antigo e pacífico este entendimento no STF. Ver: BRASIL. STF. HC nº67.775/SP. Rel.
Min. Paulo Brossard. DJ de 23/02/1990. Neste acórdão, são citados precedentes há longa data firmados.
Em decisões mais atuais, tem-se: BRASIL. STF. Ext. nº953 Governo da República Federal da
Alemanha. Rel. Min. Celso de Mello. DJ de 11/11/2005 e BRASIL. STF. Ext. nº1.071-9 República
Francesa. Rel. Min. Cezar Peluso. DJ de 11/04/2008.
48
Esta questão é importante, pois, por vezes, a demora processual faz com que o réu permaneça detido,
sem condenação transitada em julgado, por mais tempo do que permaneceria se a decisão de primeiro
grau transitasse em julgado, em razão dos regimes da pena. Em assim sendo, não se pode tarjar de
irracional a escolha feita pelo réu. Ver, ilustrativamente: BRASIL. STJ. HC nº33.385/SP. Rel. Min. José
Arnaldo da Fonseca. DJ de 03/05/2004.
49
Na matéria, assim se pronunciou o STJ: “1. O Supremo Tribunal Federal assentou entendimento de que
o direito de defesa, consagrado no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, é irrenunciável, ou seja,
as partes litigantes não podem dele dispor. 2. O respeito aos princípios do due process of law e da
ampla defesa interessa também ao Estado, representado na figura do Ministério Público, na busca do
esclarecimento dos fatos e da verdade real. Assim, o juízo menorista, ao homologar a desistência das
partes de produzirem provas durante a realização da audiência de instrução, feriu diametralmente o
direito constitucional da ampla defesa assegurado ao paciente”. Esse entendimento do STJ é pacífico,
especialmente quando se trata de crianças e adolescentes. Porém, quanto à confissão, há de ser observado
que, ao passo que adolescentes não podem confessar (abdicar de uma alternativa de ação), adultos podem
31
(d) validade do consentimento expresso do proprietário quanto à vistoria
para fins de reforma agrária sem atenção a prazos estabelecidos em lei 50;
(e) possibilidade de renúncia ao direito de impenhorabilidade de bens
legalmente estipulado, excluído o bem de família51;
(f) impossibilidade de a genitora transacionar acerca da paternidade de seu
filho52;
(g) irrelevância do consentimento e da participação de médicos na pactuação
e na elaboração de regras de exclusividade de prestação de serviços com
cooperativa de saúde53.
Exemplo muito incidente, cujo sentido não é fácil desvelar, é a consideração de
indisponibilidade dos direitos das pessoas jurídicas de direito público, especialmente no
que toca às consequências previstas pelo CPC para as lides que versam sobre direitos
indisponíveis54. À primeira vista, parece certeiro o sentido oferecido à locução direitos
indisponíveis, empregada para designar o direito que não pode ser abdicado. Todavia,
um exame mais cauteloso enseja pelo menos duas dúvidas. Primeira, qual é o direito
que é indisponível? O processual – ampla defesa, produção probatória – ou o elemento
mediato versado na lide – o patrimônio público? Em conformidade com os enunciados
normativos processuais, é o direito versado na lide que deve ser indisponível para que se
fazê-lo. O fato atesta que o direito em si não é indisponível, pois o que entra em questão é justamente a
capacidade para dispor, não uma indisponibilidade intrínseca. BRASIL. STJ. HC nº61.017/RJ. Rel. Min.
Laurita Vaz. DJ de 30/10/2006 [sem grifos no original]. Colhe-se ainda na jurisprudência do STJ: “2. A
ampla defesa e os meios a ela inerentes são processualmente indeclináveis, deles não se abrindo mão;
portanto não se admite, em relação a eles, haja renúncia. BRASIL. STJ. HC nº48.003/SP. Rel. Min.
Nilson Naves. DJU de 03/04/2006 [sem grifos no original]. Exemplificativamente, conferir: BRASIL.
STJ. RHC nº15.559/SP. Rel. Min. Laurita Vaz. DJ de 02/08/2004; BRASIL. STJ. HC nº42.496/SP. Rel.
Min. Hélio Quaglia Barbosa. DJU de 06/06/2005. De modo geral, esse entendimento é seguido pelos
TRFs.
50
“Ainda que, na linha do entendimento majoritário do Tribunal, se empreste à notificação prévia da
vistoria do imóvel expropriando, prevista no art.2º, 2º, da L. nº8.629/93, as galas de requisito de validade
da expropriação subsequente, não se trata de direito indisponível: não pode, pois, invocar a sua falta o
proprietário que, expressamente, consentiu que, sem ela, se iniciasse a vistoria”. O Min. Sepúlveda
Pertence foi enfático quanto à questão da disponibilidade: “Mas, posto me ajuste à maioria, não posso
chegar a elevar o seu prazo em direito indisponível. Realmente, aí estamos indo além da marca que a
dúvida de redação daquele dispositivo permite. Obviamente um homem sui juris, proprietário, que
consente em que a vistoria se faça sem o decurso de prazo não pode depois impugnar a sua validade”.
Quanto ao ponto, houve discordância entre os Ministros, vencido o Relator. BRASIL. STF. MS nº23.370-
2/Goiás. Rel. Min. Marco Aurélio Mello. Redator do Acórdão: Min. Sepúlveda Pertence. DJ de
28/04/2000 [sem grifos no original].
51
O STJ entendeu que, se o devedor indica bem à penhora, renuncia à impenhorabilidade, dispondo do
seu direito. Mas excetuou o direito sobre o bem de família, não suscetível de renúncia em virtude da
proteção da entidade familiar e da ordem pública. Foi vencida a Relatora e o Min. Carlos Alberto
Menezes Direito, que entendiam nula a renúncia, por tratar-se de direito indisponível. BRASIL. STJ.
REsp. nº351.932. Rel. Min. Nancy Andrighi. Rel. do Acórdão. Min. Castro Filho. DJ de 09/12/2003.
52
BRASIL. STJ. AgRg no Ag nº19.374.
53
Cf. BRASIL. STJ. REsp. nº768.118/SC. Rel. Min. Luiz Fux. DJ de 30/04/2008.
54
O CPC menciona regras para os direitos indisponíveis nos arts. 320, 333 e 351. É admitida, também, a
atuação ex officio do magistrado quando em questão direitos indisponíveis das partes. BRASIL. Código
de Processo Civil. Lei nº5.869/73. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_
03/LEIS/L5869.htm.
32
operem as consequências ali previstas. Então, é o direito ao patrimônio público que é
indisponível. Porém, quando está em liça o patrimônio público, há sempre um direito?
Qual o sentido da palavra direito? Mesmo com a exclusão dessa pergunta, é carente de
lógica sustentar que se trata, no caso, de direito indisponível, uma vez que quem não
pode abdicar do direito não é o seu titular, mas apenas aquele que representa a pessoa
jurídica de direito público em circunstâncias bem delimitadas. Ora, se dispor de um
direito significa manifestar-se de modo a abdicar (renunciar total ou parcialmente,
transacionar, ceder, etc.), para que possa haver a disposição torna-se imprescindível a
titularidade do direito. Destarte, neste caso não há que se falar, propriamente, em direito
indisponível, mas em ausência de atribuição, advinda da falta de titularidade, para
movimentar direito e bens alheios55.
55
São incontáveis os acórdãos que se referem à indisponibilidade dos direitos das pessoas jurídicas de
direito público como indisponíveis, para extrair as consequências previstas no CPC. Na matéria, é
necessário frisar que em muitas ocasiões sequer é cogitada a hipótese de serem tais direitos fundamentais.
Porém, embora essa referência seja comum na jurisprudência dos tribunais, não é nada usual nos julgados
do STF. No STJ, encontra-se pacificada a seguinte orientação: “O executivo fiscal versa sobre direito de
natureza patrimonial e, portanto, indisponível. O julgador singular, ao decretar de ofício a prescrição
da execução fiscal, deixou de observar esta indisponibilidade, conforme estabelece o artigo 166 do
Código Civil e parágrafo 5º do artigo 219 do Código de Processo Civil”. BRASIL. STJ. REsp.
nº607.350/SC. Rel. Min. Castro Meira. DJ de 23/05/2005. Há julgado do STJ que manifesta com clareza
a não-titularidade do direito pelo presentante da pessoa jurídica de direito público. Essa clareza é, no
entanto, rara: “Entendeu a Corte a quo que a revelia não induzira o efeito de presunção de veracidade se o
litígio versasse sobre direitos indisponíveis. Decidiu, entretanto, que, na espécie, a matéria em questão –
crédito tributário – caracterizava-se como direito disponível, já que a Fazenda Pública poderia sempre
celebrar acordos com o contribuinte. Por essa razão, com apoio no art. 320, II, do CPC, teve como
revel o Estado do Paraná, aplicando-lhe os efeitos legais daí decorrentes. [...] Com efeito, o crédito
tributário da Fazenda Pública, no meu entender, constitui direito indisponível, seja por si mesmo, seja
pela natureza de seu titular, sobretudo em razão do preceito inscrito no art. 97 do CTN, o qual dispõe
que somente por lei podem ser estabelecidas as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de
créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades. Tal preceito, sem dúvida, impede que se
tenha como disponível o direito do ente público ao respectivo crédito tributário. Por essa razão, concluo
também que, em razão do disposto no art. 320, II, do CPC, não há como serem aplicados ao ora
recorrente os efeitos da revelia, já que o litígio versa sobre direitos indisponíveis”. BRASIL. STJ. REsp.
nº96.691/PR. Rel. Min. João Otávio de Noronha. DJ de 13/12/2004. Nos TRFs e nos TJs, são inúmeros
os acórdãos que se referem aos direitos do erário, da fazenda, do INSS, etc., como direitos indisponíveis.
56
Dois acórdãos lançam luzes sobre a temática. O primeiro, do STF, no qual foi admitida transação
envolvendo o interesse público. O segundo, do STJ, no qual foi admitida opção pela arbitragem por
sociedade de economia mista. Neste último, a diferenciação entre direito disponível e indisponível da
administração é feita aliada às noções de interesse público primário e secundário, aquele indisponível,
este disponível. BRASIL. STF. RE nº253.885-0/MG. Rel. Min. Ellen Gracie. Disponível em:
www.stf.gov.br; BRASIL. STJ. MS nº11.308/DF. Rel. Min. Luiz Fux. DJ de 19/05/2008. Acerca da
33
Com frequência bem menor, há acórdãos que se referem aos direitos
indisponíveis como aqueles que não podem sofrer ablações, existindo, até mesmo,
relação com a imprescritibilidade57.
Por fim, há uns poucos acórdãos que evidenciam a diferença entre o direito – a
relação jurídica – e o bem tutelado pelo direito. São casos nos quais o bem está gravado
pela indisponibilidade quanto ao titular do direito, aceitando-se, todavia, que o titular
possa alienar, ceder ou renunciar ao direito. Cabe aqui ressaltar que não se pode
confundir nem igualar a disposição de um bem juridicamente tutelado com a disposição
do direito que o protege, pois são institutos distintos.
expressão interesse público, seus significados, seu emprego na prática jurídica nacional e novas leituras, é
relevante a coletânea: SARMENTO, Interesses públicos... .
57
Afora os casos já expostos, o sentido de direitos que não podem ser violados, aliado à manifestação, por
citação da doutrina, de que os direitos humanos são indisponíveis e de que a dignidade humana é
inalienável, é trabalhado em demandas por danos morais e materiais promovidas por dissidentes políticos
do regime militar que vigorou no Brasil. Desse modo, são casos nos quais a intrusão nos direitos
individuais é fortíssima, constituindo grave violação. Cf. BRASIL. STJ. REsp. nº845.228/RJ. Rel. Min.
Luiz Fux. Vencido, quanto à prescritibilidade, o Min. Teori Albino Zavascki. DJ de 18/02/2008.
BRASIL. STJ. REsp. nº816.209/RJ. Rel. Min. Luiz Fux. DJ de 03/09/2007.
34
apenas ao direito material, mas também ao direito processual. Porém, o sentido dado à
expressão não é simples de divisar nos enunciados normativos, especialmente quando
eles são cotejados com a doutrina, que se mostra flutuante ao ensejo da matéria em
pauta. Ou seja, muitos dos dissensos doutrinários acerca da indisponibilidade advêm da
diferença entre áreas do direito e textos legislativos estudados por cada autor. Desta
forma, asseverar, em um âmbito do direito, que “os direitos fundamentais são
indisponíveis” acarreta consequências que são negadas em outro âmbito, tornando os
posicionamentos incoerentes entre si e diante do ordenamento jurídico visto
sistematicamente.
35
descompasso, é possível delinear uma tendência. No entanto, a tendência é obscura,
pois não há coerência e aprofundamento na delimitação de qual é o objeto de abdicação,
quais os casos e formas nos quais ela pode ser admitida, quais são seus limites;
tampouco há congruência quanto a ser a indisponibilidade uma característica intrínseca
a alguns direitos ou uma opção normativa que grava certos direitos.
58
As noções de integridade, teia inconsútil e de reconstrução da jurisprudência sob sua melhor luz foram
inspiradas em DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, passim.
59
McCONNELL, Terrance. Inalienable Rights: the limits of consent in medicine and the law. Oxford:
Oxford University Press, 2000, p.ix. “Inalienable rights have seemed to many mysterious and confusing
at best, and suspicious or even incoherent at worst. […] The expression ‘inalienable rights’ is used in
multiple ways, which adds to the confusion. In a loose and popular sense, inalienable rights are ones that
may never be taken from a person. But in a more focused and somewhat technical sense, inalienable
rights are ones that may not be waived or transferred by their possessors.”
36
mantém-se em posição de exigir o cumprimento do direito; (b) significa dizer que o
titular do direito não pode deixar de possuí-lo mediante venda ou comércio; (c) significa
dizer que o titular não deixa de possuir o direito por nenhum meio ao seu alcance, seja
venda ou qualquer outro. Portanto, nada pode o titular fazer para cessar a titularidade do
direito. Nesse terceiro sentido, inclui-se a impossibilidade de perda ou suspensão do
direito como sanção por alguma conduta adversa do titular60.
60
THOMSON, Judith Jarvis. The realm of rights. Cambridge: Harvard University Press, 1990, p.283-
284.
61
SCHILLER, Marvin. Are there any inalienable rights? Chicago: Ethics, v. 74, n.4. Jul. 1969, passim.
37
Os conceitos utilizados na argumentação jurídica devem ser adequados e úteis.
Do contrário, convertem-se em locus argumentativo privilegiado, cuja simples
invocação é capaz de definir um caso complexo; ou, então, operam como joguetes, ora
servindo a uma função adequada, ora a outras sequer admissíveis pelo ordenamento
jurídico. Dessa forma, tais conceitos impregnam o sistema de insegurança e de
incoerência, o que acarreta, também, desigualdade no tratamento dos jurisdicionados.
Assim, é com o escopo de buscar um conceito adequado e útil, que sirva para evitar as
situações de deficit argumentativo, que os tópicos seguintes serão redigidos.
Os níveis não são incompatíveis entre si. Ao contrário, Alexy admite que eles se
relacionam. A relação entre (a) e (b) é de fundamentação e é necessária. Enquanto uma
(a) fornece as razões para se ter direitos, fundamentando a sua existência, a outra (b)
oferece a compreensão analítica dos direitos. Já a relação entre (b) e (c) é, no entender
do autor, contingente. Apesar de a primeira (b) oferecer razões para a segunda (c), o fato
de não haver possibilidade de imposição judicial não implica, necessariamente, a
inexistência de um direito subjetivo. Assim, a relação entre (b) e (c) é uma relação entre
posições jurídicas. Para desenvolver sua análise dos direitos fundamentais como direitos
subjetivos, Alexy adere ao nível (b), tratando os “direitos subjetivos como feixes de
62
Como exemplo, ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1993, p.173-245; ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.117 e ss, que concebe o
direito subjetivo à luz da teoria da vontade; Daniel Sarmento, apesar de admitir a estrutura relacional
típica do direito subjetivo, também parece concebê-lo como ligado à justiciabilidade. SARMENTO,
Daniel. Dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: SAMPAIO, José
Adércio Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003,
p.254 e ss.
63
ALEXY, Teoria de los... p.178 e ss.
38
relações e de posições jurídicas”64. Este é o cerne da dimensão analítica do conceito de
direito fundamental.
Por isso, a abordagem adotada será o estudo analítico do objeto. Por analítico,
entende-se o exame dos conceitos basilares relativos ao objeto, sua estrutura e as
relações que com ele se estabelecem66. Trata-se, pois, de um labor de depuração
conceitual, em grande parte neutralizado, na medida em que se busca primeiramente
definir determinados objetos, compreender sua estrutura e examinar suas inter-relações,
deixando de lado, momentaneamente, elementos de justificação e de aplicação.
64
ALEXY, Teoria de los... p.186.
65
O plano da justificação será examinado no Capítulo 2.
66
Alexy considera que a analítica é uma das três dimensões da dogmática jurídica. Ao seu lado, estão as
dimensões empírica e normativa. ALEXY, Teoria de los... p.39 e ss; ALEXY, Robert. Teoria de la
argumentación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 241 e ss. No Brasil, ver:
SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e as normas
constitucionais. São Paulo, 2005. Tese (Concurso de Professor Titular) – USP, p.32 e ss.; PEDROLLO,
Gustavo Fontana. Princípio da proporcionalidade e controle material de constitucionalidade das leis.
Florianópolis, 2000. Dissertação (Mestrado em Direito) – UFSC, p.40 e ss..
67
A expressão é inspirada em uma das muitas passagens nas quais Hohfeld enfatiza o importante papel do
rigor terminológico e da clareza conceitual: “Even if the difficulty related merely to inadequacy and
ambiguity of terminology, its seriousness would nevertheless be worthy of definite recognition and
persistent effort toward improvement; for in any closely reasoned problem, whether legal or non-legal,
chameleon-hued words are a peril both to clear thought and lucid expression”. [sem grifos no original].
HOHFELD, Wesley Newcomb. Fundamental legal conceptions as applied in judicial reasoning. New
Jersey: The Law Book Exchange, 2000, p.35. Neste estudo, foi utilizada também a versão em italiano:
39
Retirar o caráter camaleônico da ideia de disposição de direitos fundamentais é
justamente o objetivo deste Capítulo. Em assim sendo, o que se faz importante analisar
são as posições e as relações jurídicas de direitos fundamentais e ligá-las à
indisponibilidade, sem adentrar nas funções dos direitos fundamentais, nas razões para
se ter direitos ou no intrincado tema da sua justiciabilidade. A tarefa estrutural-
conceitual é um primeiro e necessário passo que criará a condição teórica para a
discussão do problema de pesquisa, fator que justifica a adoção da abordagem
metodológica analítica dos direitos fundamentais nesta etapa do estudo.
O exame da estrutura de um direito teve seu impulso com dois artigos de Wesley
Newcomb Hohfeld, publicados em 1913 e em 1917, no Yale Law Journal,
posteriormente reunidos na obra Fundamental legal conceptions, as applied in judicial
reasoning and other legal essays. O texto exerceu grande influência em autores e
juristas anglo-americanos e também estrangeiros. Robert Alexy, professor germânico
cuja obra é muito difundida no Brasil, ao trabalhar com a categoria direito subjetivo
para compreender analiticamente os direitos fundamentais, utilizou como substrato
originário as categorias hohfeldianas, operando modificações importantes e baseando
sua análise em um sistema-padrão de lógica deôntica. Os elementos nucleares a seguir
expostos serão construídos com apoio nas obras de Hohfeld, Alexy e também de Judith
Jarvis Thomson, acompanhados de alguns de seus comentadores e críticos69.
HOHFELD, Wesley Newcomb. Concetti Giuridici Fondamentali. A cura di Mario G. Losano. Torino:
Giulio Einaudi, 1969, p.16.
68
A dimensão analítica possui relação metodológica com a jurisprudência dos conceitos, alvo de largas
críticas em razão do seu hermetismo. Efetivamente, se ela for a única abordagem realizada, haverá
obtenção de clareza conceitual, mas também um sério empobrecimento da apreensão do fenômeno
jurídico. A opção metodológica ora realizada não desdenha das críticas e dos debates acerca da dimensão
analítica; apenas a toma como uma primeira e necessária abordagem, porém limitada e não suficiente.
Sobre o assunto, ver: PEDROLLO, Princípio da..., p.10 e ss. ALEXY, Teoria de la..., p.241 e ss.
69
HOHFELD, Fundamental…, passim. ALEXY, Teoria de los... passim. THOMSON, Op.cit., passim.
Quanto à obra de Thomson, é importante referir que seu epicentro é a justificação moral dos direitos,
embora ela também labore com a justificação social. Porém, na parte inicial do estudo, Thomson
descreve, discute e reapresenta teses hohfeldianas no ambiente jurídico.
40
um fenômeno, mas construir um mapa estrutural do “reino dos direitos jurídicos”70.
Como resultado, ele obteve oito conceitos jurídicos fundamentais, componentes de
relações jurídicas fundamentais, que apresentou em esquemas de correlativos e
opostos71:
Correlativos Jurídicos72
Direito Dever
Privilégio Não-direito
Competência Sujeição
Imunidade Incompetência
Quadro I – Correlativos Jurídicos
Opostos Jurídicos
Direito Não-direito
Privilégio Dever
Competência Incompetência
Imunidade Sujeição
Quadro II – Opostos Jurídicos
70
A expressão é de J.J. Thomson, “a map of the realm of legal rights”. Sabe-se que a união das palavras
direitos e jurídicos, formando direitos jurídicos ou mesmo direitos legais, pode soar muito estranha em
língua portuguesa. O que se quer exprimir é que Hohfeld não teve a intenção de mapear os direitos no
reino dos direitos morais, ou seja, no patamar das razões para se ter direitos. Para uma compreensão e
discussão mais acurada da ideia de direitos jurídicos e de direitos morais, sob vértices teóricos diversos,
ver também: THOMSON, Op.cit., p.73 e ss.; NINO, Carlos Santiago. Sobre los derechos morales. Doxa:
Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.7, p. 311-325, 1990; WALDRON, Jeremy. A right to do wrong.
Ethics, v. 92, n.1, p.21-39, Oct. 1981.
71
Conforme George W. Rainbolt, uma afirmação será correlativa à outra se (1) ambas possuírem o
mesmo conteúdo, (2) o sujeito passivo da primeira for o sujeito ativo da segunda e (3) o sujeito passivo da
segunda for o sujeito ativo da primeira. Se assim for, elas serão logicamente equivalentes. Isto pode ser
assim esquematizado: “(1) P1 has a claim wrt [with relation to] P2 that P2 not hit P1. (2) P2 has a duty
wrt P1 that P2 not hit P1”. RAINBOLT, George W. Rights as normative constrains on others.
Philosophy and phenomenological research, v.53, n.1, Mar., 1993, p.95. HOHFELD, Fundamental...,
passim.
72
Alguns termos hohfeldianos são de difícil tradução para o português. Buscando acuidade, utilizou-se o
artigo em italiano, textos em língua inglesa e espanhola. As opções foram as seguintes: a) claim/right:
direito em sentido estrito, abreviado para direito estrito; b) duty: dever; c) privilege/liberty: privilégio; d)
power: competência; e) liability: sujeição; f) disability: incompetência; g) immunity: imunidade.
73
Com isso não se quer dizer, necessariamente, que os sujeitos tenham de ser seres humanos. Podem ser
pessoas jurídicas, coletividades ou outras entidades, até mesmo animais não-humanos, como ventilam
algumas teses hodiernas dos direitos. Quem exatamente pode ser titular ou quem pode ser o sujeito
passivo não se resolve no plano estrutural. Como o foco desta tese é a terminalidade da vida, torna-se
despiciendo analisar este assunto. Por isso, quando o termo pessoa ou sujeito ou indivíduo for empregado,
poderá ser compreendido em sentido abrangente. THOMSON, Op.cit., p. 42; p.62.
41
o objeto, identificado ao conteúdo – que é sempre um comportamento, comissivo,
omissivo, ou mesmo uma alternativa de ação74.
74
HOHFELD, Fundamental… passim; RAINBOLT, Op.cit., p.94; THOMSON, Op.cit., p.40 e ss.;
ALEXY, Teoria de los…, p.202 e ss.
75
HOHFELD, Fundamental… p.38. “A duty or a legal obligation is that which one ought or ought not
to do. ‘Duty’ and ‘right’ are correlatives terms. When a right is invaded, a duty is violated”. Hohfeld está
citando uma definição forjada em uma decisão judicial.
76
THOMSON, Op.cit., p.64. Jeremy Waldron também menciona a vagueza do conceito de dever em
Hohfeld e assume uma posição. WALDRON, Jeremy. Introduction. In: WALDRON, Jeremy. Theories
of Rights. Oxford: Oxford University, 1984, p.8.
77
THOMSON, Op.cit., p.41. “X has a claim against Y that p, where ‘p’ is replaced by any sentence you
like, says something equivalent to the result of writing that same sentence in for ‘p’ in Y is under a duty
toward X, namely, the duty that Y discharges if and only if p”. Thomson opta por expressar as premissas
mediante operadores modais: “(H1) Cx,y p is equivalent to Dy,x p”.
78
HOHFELD, Fundamental..., p.45. “negation of a legal duty”. “This is manifest in the terse and oft-
repeated expression, “that is your privilege,” – meaning, of course, “You are under no duty to do
otherwise”. Quando motiva a adoção do termo privilégio, Hohfeld torna límpido que não o emprega com
o sentido de um favorecimento indevido, ou nos sentidos que a palavra recebia nas relações feudais ou
monárquicas. J.J. Thomson também refere a importância de se compreender isso. THOMSON, Op.cit.,
p.44.
42
possuir um direito em sentido estrito, ou seja, este não decorre daquele. Alguém pode
ser titular de um privilégio sem que exista dever alheio correlativo79.
79
HOHFELD, Fundamental…, p.44-46.
80
RAINBOLT, Op.cit., p.95.
81
THOMSON, Op.cit., p.46; 48 e ss. “(H2) Px,yp is equivalent to Not (Dx,y Not-p)”; “(H3) No privilege
entails any claim”; “(H4) No claim entails any privilege”.
82
HOHFELD, Fundamental…, p.47; 42-43. “The closest synonym of legal ‘privilege’ seems to be legal
‘liberty’ or legal ‘freedom’”. J.J. Thomson discordará desse raciocínio hohfeldiano e reconstruirá, ao
passo que Rainbolt apresentará razões para a sua aceitação. Esse assunto será abordado adiante.
RAINBOLT, Op. cit., p.101-102. THOMSON, Op. cit., p.44 e ss.
43
sentido estrito de não-interferência. Ela oferece maior força ao conceito de liberdade
jurídica do que Hohfeld. Adiante, a importância deste tópico virá à tona.
83
HOHFELD, Fundamental… p.50-51. “A change in a given legal relationship may result: (1) from
some superadded fact or group of facts not under volitional control of a human being (or human beings);
or (2) from some superadded fact or group of facts which are under volitional control of one or more
human beings. As regards the second class of cases, the person (or persons) whose volitional control is
paramount may be said to have the (legal) power to effect the particular change of legal relations that is
involved in the problem”.
84
Um desses autores é Alexy, como será demonstrado adiante. ALEXY, Teoria de los..., p.228.
85
COOK, Walter Wheeler. Introduction. In: HOHFELD, Wesley Newcomb. Fundamental legal
conceptions as applied to judicial reasoning. New Jersey: The Law Book Exchange, 2000, p.8.
Também chamam a atenção para este ponto: BEYLEVELD, Deryck; BROWNSWORD, Roger. Consent
in the law. Oxford: Hart Publishing, 2007, p.66 e ss.
44
1.2.3.1.4 Imunidade e incompetência
Haverá uma imunidade quando o sujeito não puder modificar uma relação
jurídica alheia. A imunidade é o oposto de sujeição, e o seu correlativo é a
incompetência. Hohfeld assevera que contrastar uma competência com uma imunidade
é o mesmo que contrastar um direito em sentido estrito com um privilégio, sendo a
imunidade a “liberdade de uma pessoa do controle ou da competência jurídica de uma
outra, no que concerne a alguma relação jurídica”86.
86
HOHFELD, Fundamental..., p.60. “an immunity one´s freedom from the legal power or ‘control’ of
another as regards to some legal relations”.
87
A respeito dos package-rights, Rainbolt: “Each [right] is a package of hohfeldian relations which
contains a claim that protects the relation which the right is named” e também McConnell: “The idea is
that rights cannot be analyzed simply in terms of claims, or simply in terms of liberties [privilégios] or
simply in terms of immunities or powers. Rather, typically rights involve several of those notions in
various combinations. Some refer to these as ‘rights packages’. So, for example, the right of free speech
may involve immunity from legislative regulations plus certain liberties [privilégios]”. RAINBOLT,
Op.cit., p.103; McCONNELL, Op. cit., p.3; THOMSON, Op.cit., p.55, nota nº11. Deryck Beyleveld e
Roger Brownsword denominam o pacote de relações de “complex network of legal relationships”.
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.63.
88
THOMSON, Op.cit., p.285. Ao discutir isso, Thomson menciona que alguns daqueles que sustentam a
possibilidade da eutanásia incluem no direito à vida uma competência.
45
destinada a deslindar a estrutura dos direitos fundamentais, de sorte que a figura do
Estado aparecerá com mais intensidade do que nas relações hohfeldianas, cujo enfoque
primário são os direitos e não os direitos fundamentais89.
89
ALEXY, Teoria de los..., p.202 e ss., prioritariamente a nota nº96. J.J Thomson também apresenta as
categorias hohfeldianas mediante operadores modais, por motivação diversa da de Alexy. THOMSON,
Op.cit., p.41, nota nº5. Acerca da possibilidade de os conceitos hohfeldianos serem profícuos no direito
público: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.84. Os autores informam que Hart não
considerou de todo adequado e útil o uso das categorias hohfeldianas no âmbito do direito público.
90
Ao apresentar suas razões para esta opção, Alexy assim conclui: “Es aconsejable, por ello, utilizar la
expresión ‘derecho (subjectivo)’ siguiendo el uso existente, como un concepto general para posiciones
muy diferentes, y luego, dentro del marco de este concepto, trazar distinciones y llevar a cabo
caracterizaciones terminológicas”. ALEXY, Teoria de los..., p.185.
91
ALEXY, Teoria de los..., p.177-178. BRASIL, Constituição ..., Op.cit., art. 5º, IV.
92
ALEXY, Teoria de los..., p.201.
93
É deveras relevante compreender a dinâmica das modalidades deônticas. Alexy apresenta um quadro
das modalidades que é esclarecedor, conferir: ALEXY, Teoria de los..., p.199-202. Para uma visão mais
46
Segundo Alexy, as posições que podem ser designadas como direitos subjetivos
em sentido amplo dividem-se em três grupos: (a) direitos a algo; (b) liberdades; (c)
competências94.
abrangente acerca da lógica deôntica e da lógica modal, ver: DEONTIC LOGIC. In: STANFORD
Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/logic-deontic/.
94
ALEXY, Teoria de los..., p.186. Segundo o autor, essa distinção tricotômica foi formulada com base
em Bentham e em Bierling. Sobre o tratamento analítico dos direitos fundamentais formulado por
Bierling, Roscoe Pound informa que o autor considera os direitos como interesses reconhecidos e
delimitados, para os quais encontra três significados: a) anspruch (direito), que corresponde ao direito em
sentido estrito hohfeldiano (claim/right); b) befugniss (autorização, faculdade ou potestade): b.1) durfen
(permissão), que possui relação com a noção de liberdade/privilégio hohfeldianos, traduzido por Pound
como “natural power unrestrained – liberty”; b.2) können (poder, competência ou capacidade), que
equivaleria ao grupo das competências alexyanas. POUND, Roscoe. Legal rights. International Journal
of Ethics, v.26, n.1, p.110-11, Oct. 1915.
95
Na literatura jurídica nacional, é comum referir o objeto do direito como o bem por ele protegido.
Nesse sentido, o objeto do direito à vida seria a vida, o da propriedade, a propriedade e assim
sucessivamente. Percebe-se que a postura adotada por Alexy é diferente. O objeto do direito será uma
ação, comissiva ou omissiva, ou uma alternativa de ação, ao passo que o bem tutelado pelo direito será
um elemento material ou imaterial protegido pela relação jurídica de direito fundamental. A vantagem
desta proposta reside em evitar a confusão de se pensar que um direito pode ser uma relação entre um
sujeito e um elemento material ou imaterial, por exemplo, a relação do titular com o bem vida, sem a
basilar presença de terceiros.
96
ALEXY, Teoria de los..., p.196.
47
se X possui o direito à vida, E tem o dever correlato de não afetar a propriedade de X de
estar vivo, ou seja, dever de não matá-lo. (a.1.3) Direitos à não-eliminação de posições
jurídicas (Dxe(¬ elimina e (PJx)). Uma vez cientes do que é uma posição jurídica de
direito fundamental, é necessário esclarecer que existe também o direito a que tal
posição não seja eliminada. Se X é titular do direito à vida, a ele correspondendo o
dever de E de não matá-lo, também corresponde a E o dever de não eliminar tal posição
jurídica de X.
97
Alexy emprega a noção prima facie para uma série de direitos em sentido amplo, compreendendo que
este qualificativo está presente na estrutura dos enunciados normativos de direito fundamental e
permitindo entrever que também considera que ele está embutido estruturalmente em uma posição
jurídica de direito fundamental. Por ora, basta apenas entender a postura do autor.
98
Reafirma a questão o esquema duplo que Alexy constrói, no qual o privilégio hohfeldiano situa-se
dentro do marco dos direitos a algo. ALEXY, Teoria de los..., p.216; 208-209. “Según Hohfeld, existen
ocho ‘strictly fundamental legal relations… sui generis’. Las designa con las expresiones ‘right’, ‘duty’,
‘no-right’, ‘privilege’, ‘power’, ‘liability’, ‘disability’ y ‘immunity’. Las cuatro primeras se refieren al
ámbito de los derechos a algo; las cuatro últimas, al ámbito de las competencias”.
48
privilégio, e o próprio Alexy menciona isso em mais de uma passagem da sua obra, ao
traduzir o privilégio como uma combinação de permissões99. Pode-se, então, pensar em
duas alternativas: (a) os direitos a algo não guardam equivalência aos direitos em
sentido estrito hohfeldianos, a eles não correspondendo deveres; (b) Alexy
impropriamente deriva pelo menos o dever de não-intervenção (não-estorvamento de
ações) do privilégio hohfeldiano. A primeira alternativa não soa nada coerente, pois é
difícil imaginar, ainda que seja inserido o qualificador prima facie na etapa estrutural,
que aos direitos a algo não corresponda um dever. A categoria direitos a algo perderia
seu sentido por completo. A segunda alternativa poderia demonstrar que Alexy relê o
conceito hohfeldiano de privilégio, compreendendo que a ele corresponde um dever.
Todavia, o trabalho teórico que Alexy realiza sobre a liberdade jurídica parece desdizer
essa possibilidade. Cabe, portanto, a seguir, discorrer sucintamente sobre a compreensão
alexyana da liberdade jurídica e discutir a postura de Alexy em face dos conceitos
hohfeldianos de privilégio e de direito em sentido estrito.
99
ALEXY, Teoria de los..., p.210. Aqui o autor afirma que o conceito de privilégio pode ser referido ao
de permissão.
100
Esta é a que Alexy denomina liberdade negativa em sentido estrito, que corresponde à concepção
liberal da liberdade. O sentido que ele confere à palavra negativo é simplesmente a existência de
alternativas de ação. ALEXY, Teoria de los..., p.216.
101
ALEXY, Teoria de los..., p.218. Uma combinação de permissões não esgota a liberdade jurídica.
49
Alexy assevera que as liberdades jurídicas podem ser não-protegidas ou
protegidas. As primeiras refletem a conjugação de uma permissão jurídica de fazer algo
com a permissão jurídica de não o fazer. Pode-se expressá-las de modo relacional ou
não. À liberdade jurídica não-protegida não corresponde, necessariamente “o direito a
não ser obstaculizado no gozo dessas liberdades”102, nem é imprescindível que ela seja
assegurada mediante enunciados normativos ou normas jurídicas. As liberdades não-
protegidas podem existir por duas razões: (a) pela inexistência de um mandato ou uma
proibição no ordenamento jurídico; (b) pela existência de uma norma jurídica
permissiva. Se a norma jurídica permissiva for de hierarquia constitucional, servirá para
impedir enunciados e normas infraconstitucionais que a contradigam.
102
ALEXY, Teoria de los..., p.221. “las libertades no protegidas no implican el derecho a no ser
obstaculizado en el goce de estas libertades”.
103
Mas seu objeto será sempre uma alternativa de ação. ALEXY, Teoria de los..., p.219-226.
50
ordinário de editar certos enunciados normativos ou normas, caso a origem da liberdade
não-protegida seja um enunciado normativo constitucional permissivo104. Haveria aqui,
em termos hohfeldianos, uma imunidade e uma incompetência, não um privilégio.
Com isso, conclui-se que uma liberdade jurídica particular, segundo a análise de
Alexy, pode conter um feixe de posições jurídicas. Pode assumir as feições de um
direito a algo, cujo objeto é uma alternativa de ação (liberdade jurídica protegida); ou as
de um privilégio hohfeldiano (liberdade jurídica não-protegida) e, até mesmo, de uma
imunidade hohfeldiana (liberdade jurídica protegida). Compreendidas as liberdades
jurídicas alexyanas, passa-se ao estudo das competências.
1.2.3.2.1.3 As competências
As competências também são posições jurídicas que podem ser designadas como
direitos, em sentido amplo, e existem tanto no direito privado quanto no direito público.
104
ALEXY, Teoria de los..., p.223-224.
105
Alexy nega tal possibilidade, informando que a liberdade não-protegida não é a negação do dever-ser.
Não obstante, assume que quando uma pessoa é objetiva e pessoalmente livre (em relação a todas as
ações e a todas as pessoas), produz-se uma situação similar à do estado de natureza hobbesiano. ALEXY,
Teoria de los..., p.220-222. Discute a questão quanto ao privilégio hohfeldiano: THOMSON, Op.cit.,
p.49-52. Assume posição contrária à de Thomson: WALDRON, Introduction, p.6. Sobre o contratualismo
clássico e suas vertentes: HOBBES, Thomas of Malmesbury. Leviathan or the matter, forme & power
of a common-wealth ecclesiastical or civil. London, 1651; LOCKE, John. Dois tratados sobre o
governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998; KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru:
EDIPRO, 2003; BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na filosofia política
moderna. São Paulo: Brasiliense, 1987.
51
Quando se possui competência, é possível modificar, criar ou extinguir situações ou
posições jurídicas mediante ações jurídicas:
106
ALEXY, Teoria de los..., p.228. “La modificación de una situación jurídica a través de una acción
puede ser descrita de dos maneras; como imposición de normas individuales o generales, que no serián
válidas sin esta acción, y también como modificación de las posiciones jurídicas de los sujetos jurídicos
que caem bajo estas normas”
107
A competência não se confunde com a permissão porque nem tudo que está permitido enseja
modificação em situações ou posições jurídicas, característico elementar das competências. Ademais, o
oposto da permissão é a proibição, conquanto o da competência seja a incompetência. A competência não
se confunde com o poder fático de agir. Muitas ações podem alterar posições ou situações jurídicas, sem
que sejam competências. Um ilícito civil é um exemplo. Quando se comete um ilícito civil, podem ser
alteradas posições e situações jurídicas, sem que se esteja no exercício de uma competência, a qual requer
reconhecimento jurídico-normativo. ALEXY, Teoria de los..., p.229-230.
108
Nesse sentido, Alexy distingue as normas de comportamento (que somente qualificam as ações que
sem elas poderiam existir) e as normas de competência (que criam a possibilidade de atos jurídicos, e,
com isso, a habilidade de modificar posições jurídicas mediante atos jurídicos). O descumprimento das
primeiras enseja um ilícito, já o das segundas enseja anulabilidade, nulidade ou deficiência do ato.
ALEXY, Teoria de los..., p.232-233.
109
ALEXY, Teoria de los..., p.236. Com especial ênfase para a nota nº178, na qual Alexy compara seus
conceitos aos de Hohfeld.
52
determinadas hipóteses poderá haver o direito subjetivo em sentido estrito do indivíduo
diante do Estado à constituição de uma competência110. Se isso ocorrer, a estrutura
analítica será a de um direito a algo, provavelmente um direito a uma ação positiva
normativa ou à não-eliminação de uma posição jurídica. Cabe aqui o exemplo do
casamento. Se deixarem de existir normas constitutivas da competência para casar,
poderão os particulares exigi-las do Estado, como um direito à não-eliminação de uma
posição jurídica. A competência, porém, não vira um direito a algo. Quando for
jusfundamentalmente protegida, haverá uma outra posição jurídica, com estrutura de
direito a algo, que não se confunde com a estrutura da posição de competência.
Algumas palavras devem ser ditas sobre a relação que Alexy afirma haver entre
a liberdade jurídica e as competências. Muitas vezes, para criar, modificar ou extinguir
posições ou situações jurídicas, os indivíduos carecerão de competências. Sem elas, os
atos serão incompletos, serão ou nulos ou anuláveis ou mesmo inexistentes. Alexy
enxerga sob dois prismas a conexão entre a liberdade jurídica e as competências. Por
um prisma, a competência, em diversas circunstâncias, é o elemento constitutivo da
liberdade jurídica. Se, de um lado, a liberdade jurídica é outorgada pela ordem jurídica
mediante um comportamento passivo quanto à alternativa de ação, de outro lado, a
competência amplia o campo de ação por um comportamento ativo da ordem jurídica
diante da alternativa de ação:
110
ALEXY, Teoria de los..., p.237.
111
“Con esto se formula el punto central para la relación entre libertad y competencia: mediante el
otorgamiento de competencias, se amplía el campo de acción del individuo. Se si presupone que el
ejercicio de la competencia no será ni ordenado ni prohibido, una ampliación de las competencias del
individuo significa un aumento de su libertad jurídica. Por ello, el no otorgamiento o la eliminación de
una competencia es un obstáculo a la libertad y, por cierto, de un tipo especialmente eficaz. Por razones
conceptuales, hace desaparecer el objeto de la liberdad (realizar o no el acto jurídico). La libertad
jurídica para realizar un acto presupone necesariamente la competencia al respecto”. Ao tratar das
restrições, Alexy também demonstra como a negação de uma competência pode ser uma restrição, em
face do caráter de princípio das normas: “[...] cada vez que la eliminación de uma competencia
obstaculiza la realización de um princípio jusfundamental, no estamos frente a uma mera configuración,
53
Por outro prisma, quando a ordem jurídica cria ativamente alternativas de ação,
cria também, de modo mediato ou imediato, não-liberdades, pois “o uso das
competências conduz a deveres, assim como a não-direitos e não-competências [...]”112.
sino frente a uma restrición que, em tanto tal, tiene que ser justificada”. Isso conduz, na teoria de Alexy,
à necessidade de o Estado arcar com o ônus argumentativo, demonstrando a existência de uma restrição e
não de uma violação. ALEXY, Teoria de los…, p.238 e p.326.
112
ALEXY, Teoria de los…, p.239. “El uso de competencias conduce a deberes como así también a no-
derechos y no-competencias […]”.
113
SARMENTO, Dimensão objetiva..., p.267.
54
A dimensão objetiva dos direitos fundamentais é um produto das construções
jurisprudenciais e teóricas da Alemanha do pós-guerra. Sua gênese coincide com a
passagem do Estado Liberal de Direito para o Estado Social de Direito, momento em
que se admitem novas tarefas ao Estado, eminentemente prestacionais, para que ele atue
perante a questão social, notadamente nas áreas de saúde, educação, trabalho e
regulação econômica. Na origem dos esforços teórico-práticos sobre a dimensão
objetiva, há um elo com a compreensão da Constituição como uma ordem cognoscível e
objetiva de valores, ideia que marcaria a superação de determinadas leituras estreitas e
menos sofisticadas do positivismo jurídico. Contudo, para que se admita a existência da
dimensão objetiva dos direitos fundamentais não se faz necessário aderir à concepção da
Constituição como uma ordem objetiva de valores. A relação entre elas é contingente e
não-necessária, como bem apresentou Daniel Sarmento114.
114
SARMENTO, Dimensão objetiva..., p.278. “Assim, e reconhecendo a procedência, pelo menos
parcial, de algumas críticas endereçadas à teoria da ordem de valores, cumpre destacar que não se afigura
necessária a adesão a ela para a aceitação da existência de uma dimensão objetiva dos direitos
fundamentais [...]”.
115
Sobre o tema, consultar: ALEXY, Teoria de los..., p.500 e ss.; ANDRADE, Os direitos
fundamentais..., p.113-170; NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p.57-125; CANOTILHO, J.J.
Gomes. Direito Constitucional..., p.1025 e ss; SARMENTO, Dimensão objetiva..., p.251-314.
55
sejam garantidos e as liberdades nele sustentados possam encontrar
efectivação. Nesse sentido, como assinala Böckenförde, o dever de
proteção pode constituir o conceito central da dimensão jurídico-
objetiva dos direitos fundamentais116.
A relação entre as dimensões não é de dependência, mas de “integração
essencial”, na medida em que pode existir uma dimensão objetiva autônoma quanto a
alguns diretos, a qual não corresponda diretamente uma dimensão subjetiva117.
116
NOVAIS, As restrições..., p.67; p.89. O termo dever não se encontra destacado no original.
117
NOVAIS, As restrições..., p.67.
118
SARMENTO, Dimensão objetiva..., p.279. O termo eficácia é empregado aqui no sentido de produção
jurídica de efeitos, não de produção de efeitos sociais.
119
Sobre a expressão filtragem constitucional e o sentido de sua aplicação, ver: SCHIER, Paulo Ricardo.
Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Safe, 1999;
SCHIER, Paulo Ricardo. Novos desafios da filtragem constitucional no momento do
neoconstitucionalismo. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador: Instituto de Direito Público
da Bahia, n.4, out/nov/dez/2005. Disponível em: www.direitodoestado.com.br; BARROSO, Luís
Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade,
teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização
Jurídica, v.I, n.6, set. 2001. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br; SARMENTO, Dimensão
objetiva..., p.281.
56
acompanhem, tampouco a admissão de que eles sejam justiciáveis ou que o Poder Judiciário
possua competência institucional para concretizá-los em todo e qualquer caso.
57
depender da situação) de acampar no terreno de X. Portanto, cada relação tem de ser
tratada separadamente.
120
A expressão poderá ser abreviada para direito estrito.
121
Deve-se manter em mente que é o equivalente lógico quando relacional.
122
Doravante, trabalhar-se-á com o mandato (O), uma vez que se pode compreender as proibições a partir
dele (OG ↔F⌐G). Então, em certas hipóteses, pode-se usar ação proibida.
58
Todavia, o privilégio não será empregado como um sinônimo de liberdade
jurídica. Como fizeram Alexy e Thomson – e pelas mesmas razões por eles arroladas –
entende-se que a liberdade jurídica poderá, sim, conter direito estrito, no qual o objeto
será uma alternativa de ação. Nestas hipóteses, a liberdade jurídica será denominada
pelo nome, acompanhada da palavra estrito (e.g., direito estrito à liberdade de
expressão). Esta alternativa permitirá distingui-la do privilégio, bem como das
imunidades e do direito fundamental como um todo.
59
1.3 Disposição de direitos fundamentais: uma proposta conceitual
O desafio deste tópico é discutir e propor um conceito de disposição de direitos
fundamentais. Ainda que muitos passos do caminho traçado contribuam para facilitar a
tarefa, ela é árdua. Por isso, os exemplos utilizados serão bastante simplistas e não será
uma preocupação – nesta etapa – saber se cada um deles é ou deve ser permitido ou
proibido em uma dada ordem jurídica.
Uma vez cientes de que um direito fundamental como um todo possui duas
dimensões, uma subjetiva e outra objetiva, e que à segunda nem sempre corresponde um
direito subjetivo em sentido amplo ou estrito, tem-se um primeiro e importante
elemento do conceito de disposição de direitos fundamentais. Se, grosso modo, dispor
de um direito fundamental significa que um titular dele abre mão, é fácil concluir que
ele apenas pode fazê-lo em relação às posições subjetivas que titulariza. Não se pode
abrir mão de algo cuja titularidade não se possui. Em assim sendo, o conceito de
disposição de direitos fundamentais refere-se à parcela subjetiva de um direito
fundamental. Quando à dimensão objetiva não corresponder uma dimensão subjetiva,
não há que se falar em disposição. Quando houver uma dimensão subjetiva associada à
objetiva, ou apenas uma dimensão subjetiva, cabe tratar da disposição. Porém, é preciso
atentar para o fato de que muitas disposições de posições subjetivas de direito
fundamental poderão impactar a concretização da dimensão objetiva, como será visto
adiante.
Além disso, o objeto da relação não é o bem por ela protegido, mas uma ação,
comissiva ou omissiva, ou uma alternativa de ação. Então, quando se dispõe de uma
60
posição subjetiva de direito fundamental, não se trata de uma ação do titular em relação
ao bem juridicamente protegido pela posição. Trata-se da modificação da posição
quanto aos seus sujeitos e ao seu objeto – uma ação ou alternativa de ação. Em assim
sendo, o mero uso, o gozo, a fruição, o exercício ou mesmo a destruição de um bem
pelo titular não representam necessariamente disposição de posição subjetiva de direito
fundamental. Por exemplo, se X for proprietário de um livro e, ao usá-lo, riscá-lo,
desgastá-lo ou mesmo destruí-lo, não terá exercido uma disposição de nenhuma posição
subjetiva do direito fundamental, uma vez que não permitiu a nenhum outro sujeito
fazer o que fez com o seu livro. Se Y houvesse riscado o livro de X, teria descumprido
um dever, violando o direito estrito de X à propriedade do livro. Porém, se X houvesse
emprestado seu livro a Y e meramente permitido que Y o riscasse, teria disposto de
posições subjetivas de direito fundamental, pois permitira que Y agisse de forma que
não poderia agir em razão do direito. Nessa hipótese, o direito estrito de X, ao qual
correspondia o dever de Y, foi alterado, de modo que Y passou a ter um privilégio e X
um não-direito.
61
bem ensejará consequências quanto às posições subjetivas do direito à vida. Mas isso
autoriza a chamar essa extinção do direito de disposição? Não123.
Tudo o mais sendo igual, nenhum terceiro poderia agir de forma diversa daquela
ditada pelas posições subjetivas do direito à vida de X enquanto o bem ainda fosse
existente. Em hipótese, se for entendido que uma das posições subjetivas do direito à
vida é o direito estrito de X a ser salvo por Yn , Y teria o dever de tentar salvar X,
mesmo que para isso tivesse que empregar a força razoável. Tudo o mais sendo igual, Y
não poderia, ao saber que X pretendia matar-se, matá-lo, pois X não efetuou nenhuma
modificação na posição subjetiva de Y124.
Além disso, o conceito de disposição ficaria tão extenso que perderia sua
utilidade e sua clareza. Suponha-se que X tente suicidar-se e, não conseguindo, fique em
estado vegetativo persistente. Teria ele disposto de alguma posição subjetiva de direito
fundamental? Do direito à vida, não. Mas, se está em estado vegetativo persistente, X
destruiu sua habilidade para comunicar-se, bem como para locomover-se. Se for
aplicado o tirocínio de que a destruição do bem é uma disposição de posições subjetivas
de direito fundamental, a conclusão terá que ser a de que X dispôs (renunciou) às
posições subjetivas do direito à liberdade de expressão e do direito à liberdade de ir e
vir. Com isso, perde-se muito em clareza conceitual, pois os fenômenos a serem
abarcados pela ideia de disposição serão tantos, tão distintos entre si e, em determinadas
ocasiões, terão resultados tão absurdos, que não há como enquadrá-los em um conceito
delimitado e útil125.
123
No Brasil, Virgílio Afonso da Silva adota a teoria alexyana e posiciona-se em sentido diverso:
“Mesmo que não se recorra a exemplos limítrofes – a renúncia ao direito à vida por meio do suicídio, por
exemplo [...]”. SILVA, Virgílio Afonso da, A constitucionalização..., p.73.
124
Utiliza-se a expressão “tudo o mais sendo igual”, pois poderia haver circunstâncias nas quais a Y fosse
permitido matar X, como a legítima defesa.
125
Outra discussão que teria de ser feita é a colocação do bem em risco pelo titular. Se a destruição do
bem for reputada disposição, por que a sua colocação em risco também não seria, principalmente quando
as consequências do risco se concretizam? Assim, alguém que toma sol em excesso, é sedentário, mantém
péssimos hábitos alimentares estaria dispondo de posições subjetivas do direito à integridade física? Se
apreendida a estrutura triádica da posição, não se pode concluir positivamente, pois o mesmo sujeito
figura nos dois polos. Levando o argumento ao extremo, soaria demasiado estranho, mesmo absurdo,
dizer que o uso e o consumo do bem são atos de disposição, pois a vida, por exemplo, conduz, à medida
que é vivida, à morte. É inexorável. Por acaso ocorre a alguém sustentar que viver é um ato de disposição
de posições subjetivas de direito fundamental?
62
disposição é intersubjetiva e relacionada ao objeto de uma relação de direito
fundamental.
63
perdido por seu titular, especialmente pela renúncia. Em seu conceito de
indisponibilidade, Meyers deixa claro que comportamentos do titular que conduzam à
perda ou restrição do direito, mesmo que indiretamente, são também disposição. No seu
pensar, um indivíduo que comete um crime e tem seu direito de liberdade atingido pelo
sistema penal teria disposto de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental126.
Embora não fique bem marcada a postura, o exemplo de Virgílio Afonso da Silva, a
respeito do suicídio, também insinua que comportamentos diferentes do consentimento
podem ensejar disposição de posições jurídicas de direito fundamental127. Do ponto de
vista mais amplo sustentado pelos autores, um elemento continua presente, ainda que
em certos momentos de forma muito tênue: a ideia de voluntariedade do
comportamento128.
Com o fito de verificar qual das posições condiz com um conceito mais
adequado e útil, elas serão testadas. O uso corrente é afirmar que “os direitos
fundamentais são indisponíveis” ou, pelo menos, “os direitos da personalidade são
indisponíveis”. Vejam-se então os resultados que serão obtidos ao se compreender que
comportamentos voluntários do titular que contribuam para a perda, extinção ou
restrição de um direito são atos de disposição. Se X cometer o crime de homicídio
doloso e for condenado, por sentença transitada em julgado, à pena de prisão, terá
disposto de diversas posições subjetivas de direito fundamental, dentre elas direitos
estritos à liberdade de ir e vir, à privacidade; privilégios, competências, enfim, uma
série de posições. Nesse mesmo sentido, se X ofender grosseiramente Y e for por isso
condenado a indenizá-lo, terá disposto de posições subjetivas de direito fundamental.
Essas são duas ilustrações simples que deixam entrever o quão dilatadas são as
consequências de se conceber que qualquer comportamento voluntário do titular dá azo
a uma disposição de posições subjetivas de direito fundamental. Se empregada, a frase
“os direitos fundamentais são indisponíveis” perde completamente seu sentido, e será
preciso, como fez Meyers, trabalhar um rol bastante sintético das posições subjetivas de
direito fundamental que são indisponíveis. Caso contrário, o conceito de disposição
mais uma vez se tornará tão amplo e hábil a abraçar uma gama tão vasta de
126
MEYERS, Diana T. Inalienable rights: a defense. New York: Columbia University Press, 1985, p.9.
É exatamente por este motivo que a lista de direitos indisponíveis de Meyers é bastante enxuta (apenas
quatro direitos), porém muito forte.
127
SILVA, Virgílio Afonso da, A constitucionalização..., p.73.
128
Na realidade, Meyers não atenua muito a ideia de voluntariedade. Mas o exemplo de Virgílio Afonso
da Silva implica uma versão bastante leve da ideia de voluntariedade, pois é altamente questionável o
quão voluntariamente age alguém que comete suicídio.
64
circunstâncias, que se torna impossível visualizar qual o seu núcleo, qual a sua
aplicação e qual a sua utilidade no discurso jurídico-prático.
Mas os argumentos ainda não são suficientes para descartar a postura ampla
esposada por autores como Meyers, pois sua intenção deve ser bem compreendida, uma
vez que, ainda que torne o conceito de disposição amplíssimo, ela visa a evitar a
disposição indireta. Ou seja, se o titular é proibido ou não pode (cannot) diretamente
abdicar de uma posição subjetiva de direito fundamental, ele o faz indiretamente,
cometendo um ilícito que leve à perda, suspensão ou restrição de posições subjetivas de
direito fundamental. Isso seria uma disposição mascarada, e de nada valeria o epíteto
indisponível de um direito ou de uma posição subjetiva de direito fundamental, se um
ato voluntário do titular pudesse conduzir ao resultado proibido pela ordem jurídica. Em
hipótese, seria o caso de um sistema jurídico que prevê a pena de morte, mas proíbe
contratos cujo objeto seja a permissão dada por X para que Y o mate, bem como a
eutanásia e o auxílio ao suicídio. Nesse contexto, se X quisesse obter o resultado morte
com auxílio, poderia chegar ao seu intento cometendo um dos crimes para os quais a
pena de morte for imputada.
Está claro, portanto, que qualquer comportamento voluntário que contribua para
a perda, suspensão ou restrição de posições subjetivas de direito fundamental não se
encaixa na ideia usual de disposição e torna o conceito muito amplo. Entrementes,
possui por base uma razão importante. Deve a noção de comportamento em sentido
amplo ser descartada? Pensa-se que sim. Os motivos expostos por Terrance McConnell
contra a proposta ampla são bastante convincentes e soam muito mais adequados à
formulação de um conceito de disposição de posições subjetivas de direito fundamental.
McConnell observa que os comportamentos não permitidos, aos quais se imputa sanção
que recai negativamente sobre posições subjetivas de direito fundamental, são bastante
diferentes do consentimento do titular. Inicialmente, porque, no primeiro caso, o que
justifica a interferência com posições subjetivas de direito fundamental do titular é o
ilícito que ele cometeu. No segundo caso, o que justifica a interferência é o
consentimento. Consoante o autor, há sólidas razões para se considerar que
interferências sejam permitidas e/ou proibidas de forma muito diversa num e noutro
caso. Além disso, não se pode imaginar que alguém que comete um ilícito
65
voluntariamente pretende a sanção do mesmo modo que aquele que consente pretende
um resultado129.
129
McCONNELL, Op.cit., p.13-14. Infra, Capítulos 2 e 3.
130
Frisa-se o que foi mencionado antes. Os exemplos postos neste item são meramente ilustrativos. Daí
informar que, embora baseado em argumento de McConnell, o exemplo não é dele. McCONNELL, Op.
cit., p.14.
131
Este ponto será pormenorizado adiante. Por ora, apresentam-se as palavras dos autores, válidas para o
consentimento em geral, não somente para a disposição: “Consent functions as a procedural justification
giving the recipient of the consent (B) a complete answer to the consenting agent (A); no wrong is done to
the consenting (authorizing) agent (A) by the recipient agent (B); but it does not follow that the recipient
agent (B) does no wrong to third-parties agents (such as C). in the absence of consent, a wrong will be
done to agents whose rights are violated even if, all things considered, the wrongdoing can be
substantively justified as the lesser of two evils – hence the principle of priority of consent”.
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.63.
66
modificação ou extinção da posição original, ou, ainda, criação de novas posições. A
segunda, a de que é ato autônomo, e não heterônomo. A terceira, a de que o
comportamento que enseja a disposição é o consentimento (em diversas manifestações).
O consentimento é condição necessária para a existência de disposição. Não havendo
consentimento, ou um ato complexo que o garanta ou dele dependa, não haverá
disposição, mas interferência heterônoma na posição subjetiva de direito fundamental.
Mais uma vez, há que se trazer à baila que, nesta etapa da construção teórica, o
trabalho restringe-se à depuração conceitual. Por isso, não são apresentados argumentos
acerca da qualidade e dos tipos de consentimento que devem ou podem ser admitidos
para a disposição de posições subjetivas de direito fundamental em um determinado
sistema jurídico num dado momento. Tampouco são objeto de consideração as razões
pelas quais a disposição pode ser proibida ou permitida, nem em quais casos certo
sistema jurídico o faz. Esta etapa é conceitual. Nos próximos capítulos do estudo esses
assuntos virão à superfície.
67
Os exemplos da cirurgia e do transplante de rim podem auxiliar. Quando X
consente em fazer uma cirurgia e autoriza o médico Y, X dispõe de posição subjetiva do
direito estrito à integridade física, permitindo que Y realize atos que não poderia
realizar, tudo o mais sendo igual, se não houvesse o consentimento. X, que titularizava
um direito estrito em face de Y, libera-o do dever correlativo, deixando-o na posição de
privilégio ou mesmo na de titular de um direito estrito, a depender da situação. X, que
era titular de um direito estrito, passa a ter um não-direito ou mesmo um novo dever.
Aqui se vê que a ideia de perda de algo parece manifestar-se. X não mais está no lado
dominante da relação, agora ocupado por Y. Entretanto, X quer realizar a cirurgia e, no
exemplo, ela será benéfica para sua saúde. Então, apesar de ocorrer um enfraquecimento
nas posições subjetivas de direito fundamental de X, é no seu interesse, em razão do seu
querer e para sua vantagem que ele consente na disposição. O mesmo acontece no
transplante inter vivos. Se X, pai de Z, decide consentir com a retirada de seu rim para o
transplante em seu filho, dispõe de posições subjetivas de direito fundamental e permite
aos outros polos das relações agir de modo que não poderiam se não houvesse o
consentimento. Novamente, a modificação enfraqueceu posições subjetivas de direito
fundamental de X. In casu, o enfraquecimento atinge um grau muito forte.
68
subjetivas de direito fundamental. Em sendo assim, a disposição implica, por um
ângulo, o enfraquecimento de posições subjetivas de direito fundamental. Por outro
ângulo, pode ser o exercício de outra (ou outras) posição subjetiva de direito
fundamental132.
132
Nesse sentido: NOVAIS, Renúncia..., p.299. O estudioso português, ao analisar a renúncia como um
ato complexo, afirma que ela é de dupla via, uma vez que “na renúncia se verifi[cam], simultaneamente,
um exercício e uma restrição de um direito fundamental”.
133
O conceito é próximo ao de Novais, mas as razões que levaram até ele são diferentes. NOVAIS,
Renúncia..., p.267.
134
Apenas para ilustrar, apresenta-se um dos exemplos trabalhados por Daniel Sarmento. O Supremo
Tribunal Alemão, em 1972, “considerou inválida a cláusula de acordo de divórcio, pela qual o ex-marido
comprometia-se a viver, durante certo período, em cidade diversa do domicílio de sua antiga cônjuge...”.
Neste acordo, um dos cônjuges dispôs de posições subjetivas de direitos fundamentais. Em um caso como
esse, antes de analisar a disposição em si, é preciso verificar se os particulares estão vinculados a tais
posições subjetivas de direitos fundamentais, pois, se não estiverem, não há que se falar em disposição. O
autor também menciona outros exemplos e faz a ligação com a renúncia a direitos fundamentais.
SARMENTO, A vinculação ..., p.310-311. Acerca da eficácia horizontal, consultar: ALEXY, Teoria de
los...; SILVA, Luís Virgílio Afonso da, A constitucionalização..., passim; ZIPPELIUS, Reinhold.
69
horizontais, pois o núcleo é o direito à vida, o qual, além de ser considerado ubíquo,
conta com mediações legislativas, administrativas e jurisprudenciais bastante densas135.
Teoria geral do estado. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p.442-444; CANARIS, Claus-
Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Coimbra: Almedina, 2003; CANARIS, Claus-
Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p.223-244; CANOTILHO, J.J. Gomes. Dogmática dos direitos fundamentais e direito
privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.339-357; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, as
liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).
Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003,
p.271-298; UBILLOS, Juan Maria Bilbao. En qué medida vinculan los particulares los derechos
fundamentales? In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito
privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.299-338; TRIBE, Laurence H. Constitutional
choices. Cambridge: Harvard University Press, 1985, p.246-266; TRIBE, Laurence H. American
constitutional law. 3.ed. New York: Foundation Press, 2000, p.1688 e ss.; SARLET, Ingo Wolfgang. A
eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 337 e ss.; SARLET,
Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação
de particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição
concretizada, construindo pontes entre o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000, p.107-163; SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Lumen Juris, 2005;
SARMENTO, A vinculação..., passim; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e
direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.431 e ss.
135
A expressão direito ubíquo como qualificadora do direito à vida é utilizada por Pontes de Miranda.
PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Parte Especial, Tomo VII.
3. ed, reimpressão. Rio de Janeiro, Borsoi, 1971, p.14-29.
136
Ver McCONNELL, Op. cit., p.3-22; NOVAIS, Renúncia..., p.273 e ss.; FEINBERG, Joel. Rights,
justice and the bounds of liberty: essays in social philosophy. Princeton: Princeton University, 1980, p.
221 e ss.
70
mediante consentimento, que um terceiro realize o ato de matá-la (e.g., eutanásia),
disporá de posições jurídicas do seu direito fundamental à vida, pois o consentimento
visou a desobrigar terceiro e a enfraquecer posições subjetivas de direito fundamental.
Hipótese I
Dxe ¬ G ↔ Oex ¬ G
Direito de X frente a E Dever de E frente a
à omissão de G. X de omitir G.
Seria o caso de uma pessoa que permite que um policial entre em sua casa sem
autorização judicial para efetuar uma busca, não havendo outras circunstâncias
justificadoras. Sem o consentimento, ao policial seria proibido entrar no domicílio. O
consentimento do morador altera a posição jurídica, tornando permitido ao policial
entrar ou não entrar. Porém, desta combinação de permissões não se extrai nenhum
direito do policial. Se o morador decidir retirar o seu consentimento poderá fazê-lo a
71
qualquer tempo137. Na hipótese, o destinatário E resta na posição livre (Lp), na qual a
ação não está ordenada, mas está permitida. Ela será, no caso, um privilégio, oriundo da
combinação de permissões (Pex¬G ^ PexG), não se confundindo com o direito de Y a
algo. É necessário notar que nessa hipótese X mantém a possibilidade de retirar seu
consentimento a qualquer tempo, sem que com isso E possua qualquer direito em face
de X quanto à realização de G, pois a nova posição é meramente um privilégio de E,
não um direito estrito. Porém, se não mais se admitisse a revogação do consentimento –
por terem sido encontradas provas de crimes – não se trataria de mero privilégio, mas de
imunidade e incompetência, criando-se uma nova relação.
Hipótese II
Dxy ¬ G ↔ Oyx ¬ G
Direito de X frente a Y Dever de Y frente a
à omissão de G. X de omitir G.
DxyG ↔ OyxG
Direito de X frente a Y ¬ Pyx¬ G.
à realização de G. Dever de Y frente a
Y de realizar G
137
Este exemplo foi inspirado nos textos de Jorge Reis Novais e de José Carlos Vieira de Andrade.
NOVAIS, Renúncia.... ANDRADE, Os direitos fundamentais..., Todavia, adiante será visto que já
houve posicionamento juriasprudencial no Brasil no sentido de, uma vez genuinamente consentida, não
poderá mais o morador revogar unilateralmente o seu consentimento nessa situação.
72
fática de retorno à situação fática anterior, mas as posições jurídicas de X e de Y
retornam à posição original (direito estrito de X à omissão de Y quanto à sua
integridade física).
Hipótese III
Oxy¬G ↔ Dyx¬G
Dever de X frente a Y Direito de Y frente a X.
a omitir G. à omissão de G.
138
Esse exemplo foi inspirado na obra de McCONNELL, Op. cit.
73
que se considere um direito disponível ou indisponível. O que se pode asseverar até o
momento é que, quando um direito for reputado disponível, o titular contará com a
possibilidade de enfraquecer, mediante consentimento, uma ou mais posições jurídicas
dele decorrentes perante terceiros. Quando um direito for indisponível, esta
possibilidade não se apresentará, ou seja, apenas o consentimento do titular não será
hábil a alterar posições jurídicas de direito fundamental, não justificando a interferência
de terceiros no direito, nem criando novos deveres ou ações ordenadas de mesmo
conteúdo para o titular139.
139
Terrance McConnell posiciona-se em sentido semelhante, porém mais abrangente: “an inalienable
right is such that the possessor’s consent does not justify another in infringing that right and that consent
does not bring about any new obligations on the possessor. The possessors of inalienable rights lack the
normative authority to effect such changes”. McCONNELL, Op. cit., p.19.
140
É o próprio Alexy quem demonstra isso. Ao explicar duas teorias muito difundidas dos direitos
subjetivos, a teoria da vontade (Windscheid) e a do interesse (Jhering), Alexy menciona que elas
apresentam as razões para se ter direitos e afirma que a teoria da vontade, ao conceber o direito subjetivo
como uma esfera de controle do titular, torna a disponibilidade parte constitutiva do direito subjetivo: “El
aspecto de la libre elección puede ser referido no sólo a la demanda, es decir, a la imposición del
derecho, sino también a la disposición del derecho. […] Desde luego, cuando este aspecto es
considerado como constitutivo de los derechos subjetivos, surgen considerables dificultades en el caso
74
1.4 Distinção de figuras afins
Nos tópicos imediatamente anteriores, apresentou-se a estrutura dos direitos
fundamentais e uma proposta para o conceito de indisponibilidade dos direitos
fundamentais. Seguindo a proposta, é importante remarcar as diferenças de outros
institutos jurídicos que dela se aproximam, quais sejam: (a) o não-exercício de um
direito fundamental; (b) as ablações heterônomas de um direito fundamental; (c) o dano
a si e a autocolocação em risco.
de los derechos inalienables”. ALEXY, Teoria de los..., p.180, nota 22 [sem grifos no original]. Como
será examinado nos capítulos seguintes, diversos autores também demonstram que a concepção dos
direitos subjetivos como vontade (choice/will conception) carrega em si mesma a disponibilidade dos
direitos. McCONNELL, Op. cit., p.25-26; BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.48-49; 85 e
ss.; WALDRON, Introduction…, p.9-12.
141
A expressão direito antítese foi empregada pela Corte Europeia de Direitos Humanos em decisão
sobre a admissibilidade do suicídio assistido. A CEDH negou que o direito à vida possuísse um “direito-
antítese”, o direito de morrer. ECHR. Pretty v. United Kingdom. Disponível em:
http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=Pretty&sessio
nid=9332261&skin=hudoc-en.
142
Muitos dos autores consultados salientam essa dessemelhança e a adotam, embora o conceito de
disposição que esposem não seja o mesmo aqui exposto. Por exemplo: CANOTILHO, J.J. Gomes.
Direito constitucional..., p. 424. MIRANDA, Op. cit., p. 358.
75
dentre outras ablações143. São tais ablações disposição de posição subjetiva de direito
fundamental? No mais das vezes não, pois o que justifica a ablação não é o
consentimento do titular que enfraquece posições subjetivas de direito fundamental. A
justificação encontra-se nas razões do enunciado normativo que prevê consequências
para a inação do titular, normalmente em razão de outros princípios e direitos
concorrentes de outra titularidade. O comportamento do titular contribui para esse
resultado, mas sozinho não o justifica. Trata-se, pois, de ablações heterônomas na
posição subjetiva de direito fundamental.
143
Um exemplo simples são as prescrições e preclusões.
144
A passagem é inspirada em Feinberg, embora não esteja empregada no mesmo contexto. FEINBERG,
Joel. Legal paternalism. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota: Minnesota University,
1987, p.4.
76
direito dos pais relativamente aos filhos145. Observe-se que o jurista português não
referiu que, por ser de exercício ordenado, a posição subjetiva de direito fundamental
será indisponível. Ele tão-somente percebeu um indicativo de indisponibilidade. E está
certo. Seria um non sequitur sustentar que se uma posição subjetiva de direito
fundamental for de exercício ordenado, será indisponível. A disposição de posição
subjetiva de direito fundamental de exercício ordenado poderá ser mais difícil, pois,
além de enfraquecer a posição em face de terceiros, o titular haverá de excluir a
incidência de enunciado normativo que ordena o exercício da posição. Mas não é
impossível, tampouco é logicamente incongruente, sustentar que o consentimento do
titular possa afastar a ordenação de exercer o direito, uma vez que ele poderá, inclusive,
deixar de titularizá-lo146.
A indagação que norteia este tópico é: é possível sustentar que um titular que
dispõe de posições subjetivas de direito fundamental autorrestringe as posições que
145
ANDRADE, Os direitos fundamentais ..., p.331-335.
146
Terrance McConnell propõe justamente a indagação inversa, que sugere que um direito indisponível é
um direito cujo exercício é ordenado (mandatory right). O autor não concorda com a proposição: “an
inalienable right may neither be waived or transferred to another by its possessor; but there is nothing
about inalienable rights that requires the possessor to exercise them”. O exemplo que ele utiliza, em face
do ordenamento jurídico estadunidense, é o direito ao voto, considerado indisponível, porém de exercício
não ordenado. No caso brasileiro, o direito é de exercício ordenado. Joel Feinberg, por sua vez, considera
que os direitos de exercício ordenado (mandatory rights) são indisponíveis. FEINBERG, Joel. Voluntary
euthanasia and the inalienable right to life. The Tanner Lectures on Human Values, 1997. Disponível
em: http://www.tannerlectures.utah.edu/lectures/feinberg80.pdf. O mesmo artigo está reproduzido na já
citada obra Rights ,justice and the bounds of liberty, que reúne diversos opúsculos de Feinberg.
147
Há também críticas relevantes sobre esta concepção teórica. Porém, em virtude da sua larga adoção na
doutrina e na jurisprudência brasileiras, ela será explanada neste e no próximo Capítulo, muito embora
não constitua o único veículo de solução proposto no Capítulo final.
77
titulariza? Reflexamente, pergunta-se também se é possível que o titular autoviole o seu
direito. É possível que um sujeito, ao consentir na disposição, autorrestrinja e/ou
autoviole posições jurídicas subjetivas de direito fundamental? Em face dos conceitos
alexyanos, as respostas são limpidamente negativas.
148
ALEXY, Teoria de los…, p.272.
149
Em sentido diferente, Jorge Reis Novais, para quem a restrição envolve dois momentos, um normativo
e outro fático, operado quando da efetiva intrusão no direito. NOVAIS, Renúncia..., p.318.
150
Infra, Capítulo 2, 2.2.1.
78
ser, simultaneamente, ablações nos direitos fundamentais. Por isso, Alexy concebe a
configuração de modo estreito, visando a evitar que, sob o epíteto de configuração,
ocorra uma fuga do ônus argumentativo exigido para as restrições, ou mesmo uma
violação de direitos fundamentais151.
Mais uma vez uma hipótese pode ser de valia. Na realização de cirurgia de
mudança de sexo, o indivíduo dispõe de posições jurídicas do direito fundamental à
integridade física em face da equipe de saúde. Suponha-se que a legislação exija uma
série de requisitos para que se efetue a cirurgia, como períodos de espera, laudos
médicos, exames psiquiátricos e psicológicos. Tais medidas podem ser consideradas
configurações ao direito, uma vez que visam a assegurar a existência mesma da
liberdade no ato de disposição. Todavia, sob este mesmo impulso, poderiam ser feitas
exigências tão intensas que impediriam o efetivo exercício do direito. A saída alexyana
para apreciar essas situações é submeter ao regime de análise das restrições todas as
normas que, por um ângulo qualquer, possam ser tomadas como constritivas dos
direitos. Ou seja, no exemplo dado, quaisquer que fossem os requisitos, eles seriam
tratados como constritivos e, após a devida análise quanto à constitucionalidade, seriam
restrições (portanto admissíveis) ou violações (portanto inadmissíveis).
151
Para muitos autores, Alexy inclusive, a adoção deste pensar exige a chamada teoria externa dos
direitos fundamentais, em detrimento da teoria interna. Para uma discussão desses conceitos, ver:
BOROWSKI, Martin. La restrición de los derechos fundamentales. Revista Española de Derecho
Constitucional. Madrid: a.20, n.59, mayo/ago, 2000, p.29-59. ALEXY, Teoria de los..., p.321 e ss.
PEREIRA, Op. cit., p.195 e ss. SILVA, Virgilio Afonso da, O conteúdo essencial..., p.125 e ss.
152
Isto se passa, evidentemente, no patamar jurídico em uma tese baseada em direitos. Talvez em uma
tese baseada em metas ou em deveres tal ideia fosse possível no plano jurídico. No plano exclusivamente
moral, há importantes teses que sustentam a existência de deveres para consigo, como, por exemplo, a
doutrina da virtude kantiana.
79
restrição e de violação para o ato de disposição de posições jurídicas subjetivas de
direitos fundamentais. Confira-se a linha de pensamento: dispor de posições subjetivas
de direito fundamental significa enfraquecer, mediante consentimento, posições – ou
posição – subjetivas de direito fundamental em face de terceiros, sejam particulares, seja
o Estado, permitindo-lhes agir ou omitir-se de agir de modo que não poderiam se não
houvesse o consentimento. O consentimento é figura chave. O direito indisponível é
aquele para o qual o consentimento sozinho não é hábil a justificar procedimentalmente
a conduta do sujeito passivo da relação jurídica de direito fundamental (i.e, apenas o
consentimento é insuficiente). Por via inversa, disponível é o direito para o qual o
consentimento do titular é suficiente a justificar procedimentalmente a conduta do
sujeito passivo da relação jurídica de direito fundamental.
153
Infra, Capítulo 3.
80
Na disposição, quer em face do Estado, quer em face de particulares154, a relação
jurídica que se estabelece é completamente distinta, sendo aplicáveis, a cada uma delas,
diferentes limites e controles. Mal comparando, pode-se dizer que tratar o ato de
disposição de modo idêntico à restrição seria o mesmo que tratar de modo idêntico as
relações de direito fundamental entre Estado e o indivíduo e aquelas que se estabelecem
entre particulares. A restrição de direitos fundamentais é, no molde de Alexy,
heterônoma. Já a disposição é autônoma. Isso justifica plenamente diferenciá-las. Para
relações tão diferentes, métodos diferentes de análise.
Uma hipótese antes ventilada será útil. Cientes de que a casa é o asilo inviolável
do indivíduo, se não houver flagrante delito nem situação de emergência, não poderá
um policial adentrar em uma casa. Poderá fazê-lo sob duas condições alternativas: (a)
autorização judicial; (b) consentimento do morador. A autorização judicial, nesse caso,
é uma restrição de direito fundamental e, para que seja válida, há que seguir uma série
de requisitos e padrões, determinados pelo sistema jurídico. Mas se houver
consentimento? Poderá haver requisitos, como capacidade, inexistência de coação,
ausência de fraude, simulação, conhecimento das consequências, etc.. Mas tais
requisitos não serão os mesmos que se empregam para a autorização judicial, pois são
relações distintas e também a justificação da interferência no direito é diversa.
154
Ver, no Capítulo 3, as distinções da disposição nas relações entre particulares e nas relações entre
indivíduo e Estado.
81
Pelos motivos expostos, entende-se que, diante da construção teórica
hegemônica, convém tratar a disposição de posições jurídicas subjetivas de direito
fundamental como figura distinta da restrição de direitos fundamentais. Acredita-se que
um termo adequado poderia ser autolimitação de posições jurídicas de direito
fundamental155. Mas quais são as diferenças determinantes entre autolimitação,
restrição? Bem, a restrição é heterônoma, ou seja, sua justificação não provém de ato do
titular das posições jurídicas subjetivas de direito fundamental atingidas. A
autolimitação é autônoma, ou seja, sua justificação reside em ato do próprio titular das
posições jurídicas subjetivas de direito fundamental atingidas. Na restrição, a
justificação é normalmente substantiva, ou seja, são direitos e/ou princípios colidentes
que prevalecem sobre as posições restringidas. Em certas hipóteses, poderá existir
combinação de justificação substantiva com procedimental, porém o fundo é
efetivamente substantivo. Na autolimitação, a justificação reside no consentimento e é
procedimental.
É necessário considerar a sério tais diferenças, pois pode ser tentador justificar e
apreciar como autolimitação ablações que são, na realidade, heterônomas. É que o se dá,
por exemplo, com crianças. É regra corrente que seus pais ou responsáveis legais
decidem e consentem quanto à ablação de uma ou algumas posições jurídicas subjetivas
de direitos fundamentais que as crianças titularizam. O que se tem aqui? Autolimitação,
uma vez que há consentimento? Não. Há heteronomia e provavelmente restrição, haja
vista ter origem no consentimento de terceiro e não do titular das posições jurídicas
subjetivas. Para que exista autolimitação é fulcral que o consentimento provenha do
titular, do exercício de suas próprias posições jurídicas subjetivas de direitos
fundamentais. É preciso, pois, que o titular seja um sujeito do consentimento. Incluir na
autolimitação consentimentos de terceiros pode significar, muitas vezes, recorrer a
ficções156.
Diz-se no mais das vezes porque há casos de autolimitação que podem ser
oriundos do consentimento de terceiro, mas estas são situações nas quais o titular emitiu
um consentimento permitindo que o terceiro assim agisse. Exemplo simples é o caso do
mandato. Mais complexos e muito associados à temática da tese, são os testamentos
155
A palavra é usada, de modo parecido, por José Carlos Vieira de Andrade. No entanto, o jurista não
adere às categorias alexyanas aqui apresentadas, filiando-se, embora não integralmente, à teoria interna
dos direitos fundamentais. ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.331-333.
156
Infra, Capítulo 3.
82
vitais e as diretrizes antecipadas, documentos nos quais o titular das posições jurídicas
subjetivas permite que terceiro por ele indicado tome decisões, inclusive de
autolimitação157.
157
Infra, Capítulo 3, item 3.2. Capítulo 4.
83
O mesmo vale para a autocolocação em risco. Situações que envolvem apenas
uma parte – o titular da posição jurídica de direito fundamental - sem movimentar com
o outro sujeito da relação, não são atos de disposição, constituem autocolocação em
risco. É o caso de uma pessoa que, despreparada e sem equipamentos necessários,
dedide atravessar uma corredeira, ou nadar em águas muito perigosas. É um caso de
autocolocação em risco que não envolve disposição de posições subjetivas de direitos
fundamentais.
84
2. (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UM
INVENTÁRIO DAS TESES DE JUSTIFICAÇÃO
Como sempre acontecia nesse horário, Kiríllov estava sentado em seu divã de couro e tomando chá. Não se soergueu ao encontro
dos recém-chegados, levantou-se empinado e olhou inquieto para eles.
- Você não se enganou – disse Piotr Stiepánovitch –, vim aqui para tratar daquilo.
- É hoje?
- Não, não, é amanhã... Mais ou menos nesse horário.
Sentou-se apressadamente à mesa, observando com certa intranquilidade o inquieto Kiríllov. O outro, aliás, já se acalmara e
recobrara o aspecto de sempre.
- Veja, esse é um dos que continuam não acreditando. Você não se zanga por eu ter trazido Lipútin?
- Hoje não me zango, mas amanhã quero estar sozinho.
- Mas não antes da minha chegada, e por isso na minha presença.
- Eu queria fazê-lo sem a sua presença.
- Você está lembrado de que prometeu escrever e assinar tudo o que eu ditasse?
- Para mim é indiferente. Mas agora, vai se demorar?
(…).
- Isso está me cheirando a misticismo; que espécie de gente são vocês todos só o diabo sabe.
- Stavróguin foi embora? Perguntou Kiríllov.
- Foi.
- Fez bem.
Piotr Stiepánovitch esboçou um olhar chamejante, mas se conteve.
- Para mim é indiferente o que você pensa, contanto que cada um mantenha a sua palavra.
- Eu mantenho a minha palavra.
- Aliás, sempre estive certo de que você cumpriria o seu dever como homem independente e progressista.
-Já você é ridículo.
Que seja, fico muito contente em fazer rir. Fico sempre contente quando posso servir.
- Você está querendo muito que eu meta uma bala na cabeça e teme que de repente não o faça?
- Quer dizer, veja, você mesmo ligou o seu plano às nossas ações. Contando com o seu plano, nós já fizemos alguma coisa, de
maneira que você já não pode desistir de jeito nenhum porque iria nos lograr.
- Direito vocês não têm nenhum.
- Compreendo, compreendo, a vontade é toda sua e nós não somos nada, contanto apenas que essa sua vontade se cumpra
plenamente.
- E eu devo assumir todas as suas torpezas?
- Escute, Kiríllov, você não estará acovardando?
- Não estou acovardado.
- É que você está perguntando muito.
- Você vai sair logo?
- Outra vez perguntando?
Kiríllov o examinou com desdém.
- Pois veja – continuou Piotr Stiepánovitch, que ia ficando cada vez mais e mais zangado e preocupado e não encontrava o
devido tom – você quer que eu vá embora para ficar só, para se concentrar; mas tudo isso são sinais perigosos para você mesmo,
para você em primeiro lugar. Quer pensar muito. Acho que melhor não seria pensar, mas tratar de fazer. E, palavra, você me
preocupa.
- Só uma coisa me enoja; na hora H ter ao meu lado um canalha como vocêDHKA
158
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: 34, 2004, p.540-542 [sem grifos no original].
85
A pesquisa doutrinária e jurisprudencial elaborada no primeiro Capítulo
demonstrou que o conceito de indisponibilidade dos direitos fundamentais é
multifacetado. O emprego da expressão direitos indisponíveis é bastante variado e as
consequências jurídicas dela extraídas são tão díspares que a transformam em um
conceito demasiadamente nebuloso, quase vazio. Pôde-se notar que, em certas ocasiões,
a indisponibilidade dos direitos fundamentais é pensada em um patamar normativo;
noutras, em um patamar descritivo, como um componente conceitual e distintivo dos
direitos fundamentais. Apesar dos diferentes conceitos, usos e resultados, foi possível
delinear uma leve tendência doutrinário-jurisprudencial no Brasil, no sentido de que a
indisponibilidade é um elemento normativo, atribuído a algumas posições subjetivas de
direitos, os quais, por isso, não podem ser negativamente impactados por
comportamentos do titular.
Em razão da fragilidade da tendência, bem como por conta das causas das
diferenças teóricas e jurisprudenciais, foi necessário investigar a estrutura dos direitos
fundamentais e, a seguir, propor um conceito de indisponibilidade. O exame estrutural
dos direitos fundamentais levou à exclusão de diversas hipóteses, esclarecendo pontos
básicos, como a necessária presença de sujeito passivo na relação jurídica de direito
fundamental, e, portanto, na disposição. Ao final, entendeu-se que a disposição de
direitos fundamentais significa enfraquecer, por força do consentimento do titular, uma
ou mais posições subjetivas de direito fundamental perante terceiros, quer seja o Estado,
quer sejam particulares, permitindo-lhes agir de forma que não poderiam, tudo o mais
sendo igual, se não houvesse o consentimento. O consentimento é, pois, a chave da
disposição e atua como justificação procedimental para o comportamento daquele que
era o sujeito passivo da relação jurídica de direito fundamental. Argumentou-se que a
disposição de posições subjetivas de direito fundamental é figura jurídica distinta do
não-exercício de posição jurídica de direito fundamental, da restrição heterônoma, do
dano a si e da autocolocação em risco.
86
analítico-estrutural carece de um arcabouço axiológico, de um substrato de justificação
que ao menos exclua certas hipóteses159.
159
Rowan Cruft menciona, com olhar crítico, o fato de a tese hohfeldiana advogar, ou pelo menos
aproximar-se com facilidade daquelas que advogam a “value independence of rights”. Por isso, ela seria
demasiadamente inclusiva, aceitando como direitos em sentido amplo e estrito relações com conteúdo que
teorias contemporâneas não poderiam aceitar, como, por exemplo, o direito estrito de escravizar alguém.
Para o autor, direitos devem possuir valor para seus titulares, ou seja, seu conceito deve encampar
elementos axiológicos ausentes na tese hohfeldiana. A crítica de Cruft não pode ser estendida de plano
aos estudos de Alexy, uma vez que o autor germânico considera o direito como um caso especial da
moralidade, e labuta a reaproximação discursiva, que se pode cunhar de pós-positivista, do direito e da
moral. Mas é bom lembrar que uma das críticas que Alexy vem enfrentando é justamente seu excessivo
formalismo, que permite aberturas na porta corta fogo representada pelos direitos fundamentais. CRUFT,
Rowan. Rights: beyond interest theory and will theory? Law and philosophy, The Netherlands: Kluver
Academic, n. 23, p.347-397, 2004. Consultar também: ALEXY, Robert. The special case thesis. Ratio
Júris, v.12, n.4, p.374-384, Dec. 1999; HABERMAS, Jürgen. A short reply. Ratio Júris, v.12, n.4,
p.445-453, Dec. 1999. No Brasil, é imprescindível a leitura, embora não diretamente associada à estrutura
dos direitos fundamentais de OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. Moralidade e jurisdição: a compreensão
procedimentalista do direito em Jürgen Habermas. Florianópolis, 2006. Tese (Doutorado em Direito)
– CCJ, UFSC. A tese está no banco de teses da CAPES, gentilmente disponibilizada pelo autor em
domínio público. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?
select_action=&co_obra=42980.
160
Não é pretensão, aqui, discutir o positivismo jurídico. Entretanto, faz-se necessário referir que não
raras vezes o positivismo é apresentado em versões menos sofisticadas, as quais se afastam bastante das
teses formuladas por autores como John Austin, Hans Kelsen e H.L.A. Hart. O positivismo e seus
expoentes qualificados não merecem uma leitura superficial e nem preconceituosa, tampouco podem ser
visualizados somente à sombra de práticas legalistas autodenominadas positivismo jurídico. É por esta
87
objetivo e sua interpretação de maiores e mais profundas conexões com um ambiente
moral.
É por este motivo que, neste Capítulo, serão exploradas as razões justificatórias
da disponibilidade e da indisponibilidade dos direitos fundamentais, desenhando o elo
entre o ambiente moral e o direito. Será feito um inventário das teses de justificação da
disponibilidade e da indisponibilidade (prima facie ou definitiva) dos direitos
fundamentais. Nem todas as teses que serão descritas pertencem à mesma linha teórica,
tampouco são entre si compatíveis. À medida que elas forem expostas, as opções
teóricas da tese serão argumentadas e bem demarcadas.
razão que foi empregado o adjetivo estreito ao mencionar o positivismo, para reconduzir justamente
àquelas releituras que se apegam apenas aos defeitos teóricos (por vezes sequer existentes em seus
expoentes) ou a práticas históricas revestidas de roupagem positivista. Ver: KELSEN, Hans. Teoria pura
do direito. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991; KELSEN, Hans. O que é justiça? São Paulo: Martins
Fontes, 1998; HART, H.L.A. O conceito de direito. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1994; HART,
H.L.A. Law, liberty, and morality. Stanford: Stanford University, 2007.
161
Terrance McConnell apresenta e discute dois grupos de teses, uma no plano conceitual e as demais no
plano normativo. A conceitual refere-se à concepção de direito subjetivo. Quanto às normativas, são as
seguintes: (a) o paternalismo jurídico; (b) certas visões utilitaristas (utilitarismo de regra); (c) dignidade
da pessoa humana ao ensejo de uma determinada leitura kantiana; (d) o contratualismo clássico,
inspirador das primeiras Declarações modernas de Direitos; (e) a doutrina volenti non fit injuria; (f) a
existência de deveres para consigo. Jorge Reis Novais enuncia e examina as seguintes teses: (a) conceito,
titularidade e características dos direitos fundamentais; (b) o paternalismo estatal; (c) a concepção de
liberdade; (d) o contratualismo clássico; (e) a dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Desde já é
preciso dizer que McConnell procura justificar a indisponibilidade (prima facie) de alguns direitos
fundamentais, especialmente do direito à vida, de modo não paternalista. Já Novais parte da premissa de
disponibilidade prima facie dos direitos fundamentais. McConnell, Op. cit., p.23-44; NOVAIS,
Renúncia..., p. 285-302.
88
do direito subjetivo é formal e não penetra nas razões para se ter direitos fundamentais,
nem nas funções que eles exercem. Por isso, ela permite aclarar e lapidar o conceito de
disposição de direitos fundamentais, mas, ao seu ensejo, tais direitos não são, em si
mesmos (i.e., conceitualmente), nem disponíveis nem indisponíveis. Ocorre que há
concepções de direito subjetivo que não tomam como nota básica a sua estrutura, mas as
razões para se ter direitos subjetivos fundamentais e as funções que eles exercem em um
sistema jurídico. Essas concepções são, basicamente, a teoria da vontade (will
conception ou choice conception) e a teoria do interesse (interest conception)162. Como
será pontuado, a adoção de uma ou de outra teoria impacta bastante a questão da
disponibilidade dos direitos fundamentais, pois uma delas – a teoria da vontade – já
contém, no próprio conceito de direito subjetivo, a resposta para o problema da
disponibilidade.
Embora a discussão seja profunda e séria, o tópico será breve, uma vez que o
CF/88 inclina-se, de um lado, para uma das teorias, em virtude de quem reconhece
como titulares de direitos fundamentais, além de as opções do restante da tese, também
fundadas na CF/88, penderem a uma teoria mista. Informa-se que as teorias serão
explicitadas em sua versão ideal (puras), mas esclarece-se que há inúmeras
combinações mistas das teorias163.
A concepção dos direitos subjetivos como vontade guarda algum elo com teses
do direito natural164. Concebe o direito subjetivo como um espaço de proteção da
liberdade do titular. O centro da ideia está no controle que o titular exerce sobre os seus
direitos e as relações correlatas, “o direito subjetivo como manifestação da postestade
de vontade do indivíduo”165, ou, nas palavras de Alexy, “la teoría de la voluntad
considera como central el control del titular del derecho sobre la posición que le es
conferida por una norma e que se expresa, entre otras cosas, en la autorización para
demandar”166. Nesse sentido, os direitos subjetivos representam uma vantagem para
162
Utilizou-se o termo vontade por ser o mais corrente em língua portuguesa e nas línguas latinas para
denominar a teoria. Todavia, a denominação usada por McConnell, choice conception, parece mais
acurada, o que levaria à teoria da escolha.
163
JELLINEK, Georg. Sistema dei Diritti Pubblici Subbiettivi. Milano: Società Edittrice Libraria,
1912. p.46 e ss. ALEXY, Teoria de los..., Op. cit., p.179 e ss, principalmente as notas n.20 e 21.
164
“La prima dottrina si riannoda alla vechia teorica del dirittto naturale, che concepiva il diritto
subbiettivo come libertà” JELLINEK, Op. cit., p.46.
165
JELLINEK, Op. cit., p.46. O texto aproxima-se do original, sem ser, propriamente, uma tradução.
166
ALEXY, Terioa de los..., Op. Cit., p.179-180.
89
quem os titulariza, não podendo converter-se em ônus. Quem define o significado de
vantagem ou de ônus é o próprio titular.
Na teoria dos direitos subjetivos como vontade, a liberdade ocupa papel central.
Destarte, os direitos subjetivos (em sentido amplo) são disponíveis, pois pode o titular
enfraquecer as posições subjetivas conforme entenda mais adequado, mediante
consentimento genuíno168. Duas preocupações são subjacentes a esta ideia de os direitos
subjetivos serem conceitualmente, em virtude das suas funções e razão de ser,
disponíveis. A primeira é evitar o paternalismo jurídico e seus institutos afins. Os
direitos subjetivos são então vistos como “proteção não-paternalista dos interesses dos
indivíduos (…) e proteção não-paternalista contra o paternalismo”169. A segunda é
evitar que os direitos subjetivos possam ser convertidos em ônus para os seus titulares,
atuando de forma semelhante aos deveres.
Embora assumir este ônus argumentativo seja relevante, como fez McConnell, o
sistema constitucional brasileiro traz uma barreira à tese pura dos direitos subjetivos
167
Cf. WALDRON, Introduction. Op. cit., p.9. HART, H.L.A. Are there any natural rights? In:
WALDRON, Jeremy. Theories of Rights. Oxford: Oxford University, 1984. p.77-90. BEYLEVELD;
BROWNSWORD. Consent…, p.85 e ss. Sobre os demais autores, ver: McCONNELL, Inalienable...,
Op. cit., p.25.
168
Nesse sentido: McCONNELL, Inalienable..., p.24 e ss. ALEXY, Terioa de los..., Op. cit., p.179-180.
169
Buchanan, apud McCONNELL, Inalienable..., p.25.
170
McCONNELL, Inalienable..., p.24 e ss; p.79-94.
90
como vontade. Uma vez compreendidos como uma esfera de proteção da liberdade do
titular, como um espaço sob seu controle, a tese voluntarista restringe a titularidade dos
direitos subjetivos somente àqueles que possuem as habilidades da agência, excluindo
os indivíduos que não apresentam a plenitude da agência171. Nesse aspecto, estariam
excluídos da titularidade dos direitos subjetivos os neonatos, as crianças, muitos
adolescentes, pessoas com transtornos mentais severos, senis, entre outros indivíduos ou
grupos destituídos das habilidades da agência. Não caberia discutir a titularidade de
direitos por animais não-humanos, fetos, embriões, indivíduos já falecidos172. A CF/88
claramente confere a titularidade de direitos subjetivos a muitos indivíduos que não
possuem a chamada capacidade de exercício. Conta, inclusive, com espaço destinado
diretamente às crianças e aos adolescentes. O Código Civil e o ECA seguem a mesma
linha173. Desta feita, difícil é aderir unicamente à teoria dos direitos subjetivos como
vontade no ordenamento brasileiro.
Porém, isso não quer dizer que a adesão estará na teoria do interesse, tampouco
que se escapa ao ônus de argumentação exigido pela proposta conceitual da teoria dos
direitos subjetivos como vontade. Acredita-se que outros dois caminhos argumentativos
seguidos na tese (adiante aclarados) suprem a lacuna exigida aqui: (a) a adoção de um
direito geral de liberdade; (b) a aceitação do paternalismo jurídico e seus institutos afins
quanto a atos autorreferentes em hipóteses limitadas e justificadas.
171
Sobre a agência, ver infra, Capítulo 3, item 3.2.1.
172
A respeito: WALDRON, Introduction. Op. cit., p.9 e ss. BEYLEVELD; BROWNSWORD.
Consent…, p.85 e ss. BEYLEVELD; BROWNSWORD. Human dignity…, Op. cit., p.81. ALEXY,
Teoria de los..., Op. cit., p.179 e ss.
173
No sistema internacional de proteção dos direitos humanos, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword
afirmam que a tese adotada é a voluntarista. Para os autores, os recentes documentos conferindo direitos
às crianças e a pessoas com transtornos mentais não maculam a linha mestra, a teoria dos direitos
subjetivos como vontade. Não se pode confundir, de modo algum, o fato de os adeptos da teoria da
vontade não considerarem os indivíduos que não apresentam as habilidades da agência titulares de
direitos com descaso a tais sujeitos. Na teoria, eles são vistos como destinatários de proteção.
BEYLEVELD; BROWNSWORD. Human dignity…, p.80 e ss.
91
mentais severos e indivíduos com agência plena podem titularizar direitos, desde que se
reconheça que possuem interesses juridicamente relevantes. A concepção é associada
aos escritos de Jeremy Bentham. Mais recentemente, há nomes de relevo que a
subscrevem, como Joel Feinberg, Joseph Raz e Neil McCormick174.
À luz da teoria dos direitos subjetivos como interesse, os direitos subjetivos não
são conceitualmente disponíveis, pois não significam o controle do titular sobre as
posições subjetivas e os constranguimentos comportamentais a elas correlatas. Porém,
daí não se retira que os direitos subjetivos sejam conceitualmente indisponíveis179. A
disponibilidade ou indisponibilidade de um direito subjetivo e de suas posições, na
teoria do interesse, será normativa.
174
Cf. WALDRON, Introduction. Op. cit., p.9. ALEXY, Teoria de los..., Op. cit., p.179 e ss,
principalmente as notas n.20 e 21. FEINBERG, Joel. Rights, justice and the bounds of liberty: essays
in social philosophy. Princeton: Princeton University, 1980. MAcCORMICK, Neil. Rights in legislation.
In: HACKER, P.M.S.; RAZ, Raz (eds.). Law, Morality and Society: Essays in Honour of HLA Hart.
Oxford: Clarendon Press, 189 e ss.
175
McCONNELL, Inalienable..., p.28.
176
Jellineck menciona que a vontade seria um meio, não uma finalidade do indivíduo ou do ordenamento
jurídico. As finalidades seriam os interesses, para os quais a vontade é meio. JELLINEK, Op. cit., p.49.
177
McCONNELL, Inalienable..., p.28.
178
WALDRON, Introduction. Op. cit., p.11.
179
McCONNELL, Inalienable..., p.28-29. O autor situa as teorias dos direitos subjetivos como vontade e
como interesse no argumento conceitual (em contraposição à normativa) sobre a (in)disponibilidade dos
direitos fundamentais. Porém, neste ponto, crê-se que a teoria do interesse – conceitual, como ele chama –
não traz consigo a construção para a indisponibilidade dos direitos, embora ela pareça mais fácil de
construir dentro da teoria do interesse.
92
simplicação de McConnell, “o que quer que conte como um direito na teoria da escolha,
contará como tal na teoria do interesse”180.
180
McCONNELL, Inalienable..., p.29.
181
ALEXY, Teoria de los..., p.333.
93
serão consideradas ab initio disponíveis, ao passo que, na segunda, será necessário
aferir a presença de uma liberdade básica no ato de disposição.
Para desenvolver melhor o assunto, serão utilizados dois autores que possuem
posicionamentos diversos sobre a extensão da jusfundamentalidade do direito de
liberdade: Robert Alexy e Ronald Dworkin. A escolha se deve à grande difusão dos
seus pensamentos no Brasil, a ponto de serem eles, ao lado de John Rawls, os
estudiosos mencionados quando o assunto está em pauta182. Serão também referidos os
autores nacionais que seguem o caminho de um ou de outro e suas razões para tanto.
Depois desse exame, pautado nos termos empregados pelos autores estudados, serão
feitos alguns comentários sobre a terminologia direito geral de liberdade e liberdades
básicas, para coaduná-los com os acordos semânticos travados no Capítulo 1.
Por una parte, a cada cual le está permitido prima facie – es decir, en
caso que no intervengan restriciones – hacer y omitir lo que quiera
(norma permisiva). Por otra, cada cual tiene prima facie, es decir, en
la medida que no intervegan restriciones, un derecho frente al Estado a
que este no impida sus aciones y omisiones, es decir, no intervenga en
ellas (norma de derechos)183.
182
São teorias que almejam completude – a aceitação do direito geral de liberdade ou não é apenas um
elemento de cada uma. Em Alexy, o direito geral de liberdade anda lado a lado à adoção da teoria externa
dos direitos fundamentais, da compreensão das normas como regras e princípios, bem como da
metodologia constitucionalmente adequada para solucionar antinomias e colisões horizontais. Já em
Dworkin, a concepção dos direitos como trunfos, a distinção entre princípios e regras – diversa da de
Alexy –, a diferenciação entre argumentos de política e argumentos de princípio e a metodologia
adequada para a apreciação da concorrência entre direitos estão imbricadas à negação do direito geral de
liberdade. Esta pesquisadora fez dois estudos, durante a elaboração da tese, sobre a disponibilidade dos
direitos fundamentais em cada um dos autores, que constam como anexos da tese e foram publicados em
revistas jurídicas e apresentados em Congressos: MARTEL, Letícia de Campos Velho. São os direitos
como trunfos disponíveis? Reflexões à luz da teoria dos direitos de Ronald Dworkin. Rio de Janeiro:
Revista de Direito do Estado – RDE, Renovar, v.3, n.10, p.101-124, abril/junho de 2008. A versão
resumida foi apresentada no Congresso Anual do CONPEDI de 2007: MARTEL, Letícia de Campos
Velho. São os direitos como trunfos disponíveis? Reflexões à luz da teoria dos direitos de Ronald
Dworkin. CONPEDI, 2007. Belo Horizonte. Anais do... Disponível em:
http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/bh/leticia_de_campos_velho_martel2.pdf. Ver também:
MARTEL, Letícia de Campos Velho. São os direitos fundamentais disponíveis? Reflexões à luz da teoria
dos direitos de Robert Alexy. In: MARTEL, Letícia de Campos Velho (Org.). Estudos contemporâneos
de direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.43-69.
183
ALEXY, Teoria de los..., p.333 e ss.
94
Consequentemente, o suporte fático deste direito é muito amplo. Nele Alexy
inclui, ainda, a proteção de situações e de posições jurídicas, pois, quando elas são
afetadas, atingem indiretamente a liberdade de ação. Para o autor, aceitar o direito geral
de liberdade oferece “mas ventajas que inconvenientes”184.
184
ALEXY, Teoria de los..., p.335.
185
ALEXY, Teoria de los…, p.366.
186
Luís Roberto Barroso parece aderir à ideia de um direito geral de liberdade, ao referir que a redação do
princípio da legalidade na Constituição de 1988 é uma cláusula constitucional genérica de liberdade (art.
5º, II). O constitucionalista, porém, não apoia seus argumentos em Alexy. BARROSO, Luís Roberto.
Eficácia e efetividade do direito à liberdade. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, v.2,
n.2, p.105, 2001. Disponível em: www.ibdh.org.br/revista_02.asp.
95
formar uma redoma protetora em face da exigência de lei em sentido material para
restringir direitos fundamentais. Para ela, o direito geral de liberdade é uma “premissa
fundamental na solução do problema da restringibilidade dos direitos fundamentais”187.
A estudiosa rebate duramente as críticas formuladas ao direito geral de liberdade, a
ponto de rotulá-las de inadequadas “aos sistemas constitucionais democráticos”.
Aponta, ainda, que propostas como a de Dworkin levariam “à absurda conclusão de que
a liberdade sairia sempre perdendo quando contraposta a outros direitos, de modo que
equivale a estabelecer uma regra de preferência abstrata em desfavor da liberdade”188.
Ademais, a autora sustenta que o direito geral de liberdade não conduz a um
individualismo exacerbado, em razão do modo de solução de colisões que o
acompanham e do tipo de argumentos que podem ser adotados para restringi-lo.
Virgílio Afonso da Silva, por sua vez, entende que o direito geral de liberdade
está ligado à noção de regras e de princípios e à concepção ampla do suporte fático dos
direitos fundamentais. Para ele, a relação do suporte fático amplo com a restrição atua
“como uma ‘construção fundamental na garantia constitucional da liberdade individual
contra o poder estatal’”189. A ideia do suporte fático amplo obriga o intérprete a
considerar ampliativamente o âmbito de proteção de um direito fundamental, de modo
que tudo que possa eventualmente ser a ele reconduzido seja, prima facie, reputado
protegido. Assim agindo, o intérprete fica compelido a evitar “exclusões a priori de
condutas desse âmbito de proteção” e a arcar com o ônus argumentativo nas hipóteses
de constrição de tudo aquilo que recai sob o estendido âmbito de proteção. Com isso,
impede-se o deficit de fundamentação e oferece-se “transparência às atividades de
intervenção nos direitos fundamentais […]”190. Virgílio Afonso da Silva também
recusa, de modo mais temperado que Jane Reis, as teses que contrariam o direito geral
de liberdade, sempre com vistas a garantir a inocorrência do deficit de
fundamentação191.
187
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op.cit., p.168 e ss.
188
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op.cit., p.172-173, nota n.130. Apesar de, nesta tese, adotar-se a
concepção de um direito geral de liberdade e arcar com seu ônus argumentativo, acredita-se que, nesse
particular, a crítica da autora em relação à proposta de Ronald Dworkin mostra-se excessiva.
189
SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas
constitucionais. Rio de Janeiro: Revista de Direito do Estado – RDE, Renovar, v.1, n.4, p.28, out./dez.
2006.
190
SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo [...] e a eficácia das normas constitucionais, p.25.
191
SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo essencial..., p.111-115; 144-161. Enquanto Jane Reis
endereça suas críticas a Dworkin, Virgílio Afonso da Silva trabalha com John Rawls, jusfilósofo que não
aceita a ideia de um direito geral de liberdade. O professor da USP traz exemplos da jurisprudência
brasileira acerca do deficit de fundamentação ocorrido em virtude da consideração de um suporte fático
96
Compreendida a noção de um direito geral de liberdade, cumpre indagar qual é o
elo entre esse direito e a disponibilidade dos direitos fundamentais. Se, em razão do
direito geral de liberdade, o indivíduo possui, prima facie, o direito de não ser impedido
de fazer ou de omitir o que quiser, a indisponibilidade de um direito fundamental
representa uma constrição no direito geral de liberdade, uma vez que constitui obstáculo
à ação de livre disposição por parte do titular, retirando-lhe uma das alternativas. Por
mais que a proibição de dispor vise a preservar as posições jurídicas subjetivas de
direito fundamental que o titular pretende dispor, não deixa de ser uma constrição no
direito geral de liberdade (ou em outros direitos). Nas situações de disposição que
envolvem apenas particulares, poderá ser atingida a liberdade geral de ambos os polos,
sem prejuízo de haver constrição de outras liberdades especificamente consideradas ou
de outros direitos.
restrito para os direitos fundamentais. Além dos exemplos por ele mencionados, pode-se citar a realidade
de sua preocupação em diversas decisões tomadas por tribunais brasileiros no tema da liberdade religiosa
e a questão dos sabatistas nos concursos públicos e concursos vestibulares. Muitas vezes, os magistrados
compreenderam que as regras dos concursos não restringiam qualquer direito dos adeptos das crenças
sabatistas, excluindo de plano seus pedidos. A respeito, ver: MARTEL, Letícia de Campos Velho. “Laico,
mas nem tanto”: cinco tópicos sobre a liberdade religiosa e a laicidade estatal na jurisdição constitucional
brasileira. Brasília: Revista Jurídica, v.9, n.86, ago./set. 2007. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_86/Artigos/LeticiaCampos_Rev86.htm.
97
compatível com uma teoria liberal acerca dos direitos
fundamentais192.
Em consequência desse pensar, tem-se que os direitos fundamentais são, prima
facie, disponíveis, isto é, todo e qualquer ato de disposição de posições jurídicas de
direito fundamental representa um exercício de posições jurídicas do direito geral de
liberdade (ou de outro direito), sendo sempre um ato complexo. Com o exercício do
direito geral de liberdade (ou de outros direitos), há a possibilidade de dispor de
posições jurídicas subjetivas dos demais direitos, ou mesmo do direito geral de
liberdade193. Quando vislumbrada a tese como um todo – desde a aceitação de um
direito geral de liberdade, a divisão das normas constitucionais em regras e princípios, a
colisão e a metodologia para solucioná-la – percebe-se que as posições jurídicas de
direito fundamental serão prima facie disponíveis no plano normativo e não no
conceitual. É nas razões para se exercer direitos que se situam os argumentos que
poderão ensejar uma disponibilidade definitiva ou uma indisponibilidade definitiva,
uma vez que não se pode confundir a ideia de que os direitos fundamentais são prima
facie disponíveis com a impossibilidade de se proibir a disposição. Evidentemente,
algumas posições jurídicas subjetivas de direito fundamental poderão ser consideradas
indisponíveis. Mas, para isso, impõe-se arcar com o ônus argumentativo e demonstrar
que se trata de restrição e não de violação do direito geral de liberdade.
192
A referência à teoria liberal é feita segundo a classificação de Böckenförde. Virgílio Afonso da Silva
não adere plenamente à teoria liberal, mas aceita sua consequência quanto à disponibilidade prima facie
dos direitos fundamentais: “Diante disso, apesar da não-filiação, por razões teóricas e dogmáticas que já
ficaram claras ao longo deste trabalho, e serão ainda abordadas no Capítulo seguinte, a uma teoria
exclusivamente liberal dos direitos fundamentais, é preciso que se sublinhe, contudo, que um
pressuposto de uma das formulações dessa teoria deve ser acatado: direitos fundamentais podem
ser, em um grande número de casos e nas condições a serem expostas no Capítulo seguinte, objeto
de disposição pela livre vontade de seus titulares”. O marco teórico da tese que ora se apresenta,
conforme explicado na introdução, pode ser chamado de liberal; porém, é moderado ou igualitário, de
sorte que parece compatível com o que Virgílio Afonso da Silva apresenta como sua opção teórica.
Ademais, concorda-se com as razões por ele dadas para não aceitar uma teoria liberal (não a moderada,
mas aquela que mais se aproxima do tipo ideal liberal-clássico) no Brasil. SILVA, Virgílio Afonso da, A
constitucionalização..., p.163-164 e 167. [itálicos do original. Sem grifos no original]. A expressão tipo
ideal é usada por Afonso da Silva e aqui foi aplicada com seu sentido weberiano.
193
É dever ressaltar que Alexy não menciona essa conclusão. Pode-se atribuir isso à expressa menção, na
Constituição alemã, à indisponibilidade dos direitos fundamentais. A Constituição brasileira, entretanto,
não possui enunciado normativo análogo, o que permite traçar a conclusão da disponibilidade prima facie
dos direitos fundamentais quando do translado das construções teóricas alexyanas. Eis o texto da
Constituição alemã: em seu artigo 1º: “1. Com isso, o Povo Alemão declara invioláveis e inalienáveis os
direitos da pessoa humana, como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no
mundo”. RFA. Lei Fundamental para a República Federal da Alemanha. 23 de maio de 1949.
Disponível em: http://www.brasilia.diplo.de/pt/03/Constituicao/art01.html. [sem grifos no original].
98
liberdade prima facie disponíveis. A indisponibilidade de um direito configurará uma
ablação do direito geral de liberdade do titular (ou, em alguns casos, de outros direitos e
liberdades) e, dependendo da situação, de direitos de terceiros. Portanto, quando
posições jurídicas subjetivas de um direito forem reputadas indisponíveis pelo
legislador, pelo executivo, ou pelo órgão judicante, é preciso analisar se essa atuação do
Estado significa restrição ou violação de direitos fundamentais. Para tanto, é importante
ter em mente a diferença entre restrição e violação formulada por Alexy (e seguida por
Jane Reis e Virgílio Afonso da Silva)194.
194
Supra, Capítulo 1, item 1.4.2.
195
DWORKIN, Ronald. Rights as trumps. In: WALDRON, Jeremy. Theories of Rights. Oxford: Oxford
University, 1984, p.153.
196
Diz-se via de regra, pois o próprio Dworkin admite que algumas – raras – metas coletivas
emergenciais poderão vencer um direito-trunfo, a depender do contexto. É mister salientar essa
possibilidade é admitida apenas raramente, em situações nada ordinárias. DWORKIN, Ronald. Levando
os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.143. DWORKIN, Ronald. O império..., p.231.
99
considerados todos os aspectos, se decida qual grupo de argumentos receberá maior
197
peso no caso . Nessa hipótese, haverá um caso difícil, no qual, dentre os direitos
abstratos concorrentes, talhar-se-á um direito concreto (de modo não retroativo, segundo
Dworkin).
197
Dworkin distingue os argumentos de política dos argumentos de princípio, informando que, embora
eles não esgotem a argumentação política, são seus fundamentos essenciais: “os argumentos de política
justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da
comunidade como um todo”. Já os argumentos de princípio “justificam uma decisão política, mostrando
que a decisão respeita o direito de um indivíduo ou de um grupo”. DWORKIN, Ronald. Levando...,
p.131. Em Alexy, essa distinção não aparece. É por isso que se diz que ele adota um conceito amplo de
restrição, pois podem justificá-la tanto o que Dworkin denomina argumentos de política, como os
argumentos de princípio. Necessário dizer que o conceito de restrição de Alexy não se encontra em
Dworkin, cuja proposta para a concorrência entre princípios é diferente.
198
Todavia, é crucial compreender que estes direitos criados por lei devem ser aplicados pelo Poder
Judiciário não como uma questão de política, mas como uma questão de princípio, sob pena de ferir-se a
igualdade. DWORKIN, Ronald. Levando..., p.131. DWORKIN, Ronald. O império..., p.266.
199
O igual respeito e consideração é um postulado que Dworkin presume que todos aceitem. É
axiomático e dele derivam os direitos particulares: “o governo deve tratar aqueles a quem governa com
consideração, isto é, como seres humanos capazes de sofrimento e frustração, e com respeito, isto é, como
seres humanos capazes de formar concepções inteligentes sobre o modo como suas vidas devem ser
vividas, e de agir de acordo com elas”. A noção de respeito, pela explicação fornecida, possui uma
ligação com a liberdade. Porém, não se trata de um direito geral de liberdade, mas de direito a liberdades
básicas. DWORKIN, Ronald. Levando..., p.419-421. Sobre o conceito de axioma, Capítulo 1.
200
Assim como não é tarefa mecânica, a identificação dos direitos-trunfo também não está amparada,
segundo Dworkin, em categorias metafísicas: “Os direitos individuais são trunfos políticos que os
indivíduos detêm. Os indivíduos têm direitos quando, por alguma razão, um objetivo comum não
configura uma justificativa suficiente para negar-lhes aquilo que, enquanto indivíduos, deseja ter ou fazer,
100
De pronto se percebe que um direito-trunfo não se confunde com o conceito de
direito fundamental enquanto enunciado normativo positivado ou norma jurídica, como
trabalhado por muitos juristas da civil law. Os direitos-trunfo são antes direitos morais,
que adentram, pela via interpretativa, no direito, tornando-se vinculantes. Assentam-se
na justificação moral, por seu elo com a concepção liberal de igualdade e não se
confundem com a positivação. Por esta razão, nesta etapa do trabalho, o recurso à
expressão direitos fundamentais confina-se à noção de direitos-trunfo, como concebida
em Dworkin, e não se estende a todos os direitos que se encontram positivados como
direitos fundamentais, especialmente quando se tem em conta constituições prolixas,
como a brasileira. Somente assim torna-se possível discutir a questão da disponibilidade
prima facie dos direitos-trunfo sem incorrer em equívocos pelo inadequado emprego
terminológico.
ou quando não há uma justificativa suficiente para lhes impor uma perda ou dano. Sem dúvida, essa
caracterização de direito é formal, no sentido de que não indica quais direitos as pessoas têm nem garante
de fato que elas tenham algum. Mas não pressupõe nenhuma metafísica especial. Portanto, a teoria
defendida nesses ensaios distingue-se das teorias mais antigas que apoiam tal suposição”. E ainda: “Não
faz parte de minha teoria afirmar, por exemplo, que existe algum procedimento mecânico para demonstrar
quais direitos políticos, preferenciais ou jurídicos um indivíduo possui”. DWORKIN, Ronald.
Levando..., p.XV; XIX. E em passagem de o Império do Direito, afirma: “Na verdade, Hércules vai
chegar a essa conclusão a partir da história e prática constitucionais: embora a constituição deixe cada
estado livre em questões de política, sujeitos apenas à restrição há pouco descrita, insiste em que cada
estado reconheça certos direitos, limitando qualquer justificativa coletiva que venha a utilizar, qualquer
ponto de vista que possa ter sobre o interesse geral. A questão interpretativa crucial que se coloca é,
então, saber que direitos são esses”. DWORKIN, Ronald. O império..., p.456.
101
palavras de Morrison, “a posse [titularidade] de direitos permite que as pessoas sejam
tratadas como iguais”201.
201
MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. p.517. Acredita-se que a melhor tradução seria a “titularidade de direitos” e não a “posse”.
201
Esse parágrafo situa-se na parte III do artigo, item 1, intitulado “Natureza e fundamentos jurídicos do
poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais”. Nesse item e no subsequente,
Novais justifica o seu ponto de partida – a disponibilidade prima facie dos direitos fundamentais. Ao
invocar os direitos-trunfo, ele está arrazoando o fundamento da disponibilidade, logo após recusar
alternativas paternalistas. É muito importante tornar claro que esse excerto relativo aos direitos-trunfo
confina-se ao objetivo de demonstrar o fundamento da disponibilidade prima facie e não traduz a
globalidade do pensamento do jurista português. O que se discute neste item é apenas o emprego da
categoria direitos-trunfo como um dos fundamentos da disponibilidade prima facie e não as demais
posições e conclusões de Novais, as quais, aliás, são dignas de nota e apreço, pela profundidade e
acuidade com que são tratadas. NOVAIS, Renúncia..., p.287.
202
Esse parágrafo situa-se na parte III do artigo, item 1, intitulado “Natureza e fundamentos jurídicos do
poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais”. Nesse item e no subsequente,
Novais justifica o seu ponto de partida – a disponibilidade prima facie dos direitos fundamentais. Ao
invocar os direitos-trunfo, ele está arrazoando o fundamento da disponibilidade, logo após recusar
alternativas paternalistas. É muito importante tornar claro que esse excerto relativo aos direitos-trunfo
confina-se ao objetivo de demonstrar o fundamento da disponibilidade prima facie e não traduz a
globalidade do pensamento do jurista português. O que se discute neste item é apenas o emprego da
categoria direitos-trunfo como um dos fundamentos da disponibilidade prima facie e não as demais
posições e conclusões de Novais, as quais, aliás, são dignas de nota e apreço, pela profundidade e
acuidade com que são tratadas. NOVAIS, Renúncia..., p.287.
102
Em diversos pontos da sua obra, Dworkin menciona que não avaliza a noção de
um direito geral de liberdade, tampouco acredita que a liberdade seja o fundamento dos
demais direitos. Para ele, existem liberdades básicas, cujo fundamento é o princípio do
igual respeito e consideração (concepção liberal da igualdade). Seguindo a esteira de
John Stuart Mill, Dworkin diferencia a liberdade como licença, “isto é, o grau em que
uma pessoa está livre das restrições sociais ou jurídicas para fazer o que tenha vontade”,
da liberdade como independência, “isto é, o status de uma pessoa como independente e
203
igual e não como subserviente” . A ideia de liberdade como independência é mais
complexa e menos indiscriminada que a de liberdade como licença, já que ela permite
distinções de comportamento. Uma vez que alguém ofereça um argumento geral em
prol da liberdade como licença, “seu argumento também apoia, pelo menos pro tanto, a
204
liberdade de formar monopólios ou de apedrejar vitrines de lojas” .
203
DWORKIN, Ronald. Levando..., p.404. No Brasil, a ideia de liberdades básicas em contraposição a
um direito geral de liberdade é sustentada por Daniel Sarmento, cujos argumentos aproximam-se, neste
ponto, aos de Dworkin. Contudo, o autor brasileiro não se filia ao direito como integridade.
SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais da autonomia privada e da liberdade. Revista
RECAMPI Digital, n.1, p.65, feb. 2006. Disponível em:
http://www.cej.justicia.es/pdf/Revista_RECAMPI_N1.pdf.
204
DWORKIN, Ronald. Levando..., p.405. Para o tema em análise, é interessante observar na íntegra o
argumento de Dworkin: “A liberdade como licença é um conceito indiscriminado porque não distingue
entre formas de comportamento. Toda lei prescritiva diminui uma liberdade como licença, antes
disponível para os cidadãos: boas leis, como as que proíbem o homicídio, diminuem essa liberdade da
mesma maneira, e possivelmente em um grau maior do que as más leis, como as que proíbem a liberdade
de expressão política. A questão levantada por qualquer lei desse tipo não é se ela ataca a liberdade, coisa
que o faz, mas se o ataque é justificado por algum valor contrastante, como a igualdade, a segurança ou a
comodidade pública. Se um filósofo social atribui um valor muito alto à liberdade como licença, ele pode
ser entendido como se estivesse argumentando que esses valores contrastáveis têm um valor relativo mais
baixo. Se ele defende a liberdade de expressão, por exemplo, por meio de algum argumento geral em
favor da licença, então seu argumento também apoia, pelo menos pro tanto, a liberdade de formar
monopólios ou de apedrejar vitrines de lojas”. [sem grifos no original].
103
Na verdade, só é possível manter essa noção se diluirmos muito a
ideia do que é um direito (right). E nesse caso, o direito à liberdade
205
acaba tornando-se algo que não vale muito a pena possuir .
Ao ligar a ideia de um direito geral de liberdade à concepção de direitos,
Dworkin refere:
205
DWORKIN, Ronald. Levando..., p.411-413.
206
DWORKIN, Ronald. Levando..., p.413-414.
104
coerção estatal atinge uma liberdade básica de A e de B. Assume-se que, no caso, essa
liberdade não se faz presente, não há um elemento de liberdade como independência,
apenas liberdade como licença207. Desta sorte, não há um direito-trunfo de liberdade a
ser oposto ao Estado, e o direito-trunfo à vida pode ser reputado indisponível mediante
qualquer justificativa plausível, quer de política, quer de princípio. Fosse o direito-
trunfo à vida prima facie disponível em razão de um direito geral de liberdade, somente
seriam aceitáveis argumentos concorrentes de princípio, jamais de política208.
207
Evidentemente, a resposta a tal questão interpretativa deve ser oferecida com apoio em profundos
elementos concernentes à moralidade política de uma comunidade, à tradição, à história institucional e,
especialmente, ao igual respeito e consideração, com o emprego da atitude interpretativa. Aqui,
utilizando-se de uma simplificação, assume-se que não há a liberdade. Mas, frisa-se, a negação da
existência de uma liberdade básica não é uma tarefa mecânica ou dependente de um intuicionismo moral,
ela deve ser fundamentada segundo as diretrizes ofertadas por Dworkin. A atitude interpretativa é uma
forma de interpretação criativa, por destinar-se a práticas sociais. Os planos de descrição, compreensão e
aplicação não estão separados. Ela compreende três etapas: (a) pré-interpretativa, na qual são
identificadas as regras e os padrões que se considera fornecer o conteúdo experimental da prática; (b)
interpretativa, na qual se elabora uma justificativa geral para os principais elementos das práticas
identificadas na primeira etapa; (c) pós-interpretativa, na qual o intérprete ajusta sua ideia daquilo que a
prática realmente requer para melhor servir à justificativa que ele aceita na etapa interpretativa. Ele pode
propor reformulações e até mesmo sugerir que toda a prática tenha sido um erro à luz daquela
justificativa. Entrementes, empregar a atitude interpretativa não significa que o intérprete possa fazer da
prática o que bem entender, pois ele é constrangido pela história e pela forma da prática. Essa posição
dworkiniana possui raízes na hermenêutica de Gadamer. Além disso, em o Império do direito, Dworkin
desenvolve em pormenor essas duas dimensões da integridade (seu método, diga-se assim). Ao longo dos
capítulos, diversas vezes ele próprio emprega essas dimensões. Em O domínio da vida, ele elaborou um
pequeno resumo dessas duas dimensões, ao mencionar a interpretação constitucional: “Qualquer
interpretação da Constituição deve ser testada em duas dimensões amplas e correlacionadas. A primeira
delas é a adequação. Uma interpretação constitucional deve ser rejeitada se a prática jurídica real for
totalmente incompatível com os princípios jurídicos que tal interpretação recomenda; em outras palavras,
deve ter um considerável ponto de apoio ou fundamento na prática jurídica real. A segunda é a dimensão
da justiça. Se duas concepções diferentes sobre a melhor interpretação de alguma disposição
constitucional passarem no teste da adequação – se cada uma delas puder se alegar uma fundamentação
adequada na prática jurídica passada – deveríamos dar preferência àquela cujos princípios nos parecem
refletir melhor os direitos e deveres morais das pessoas, uma vez que a Constituição é uma afirmação de
ideais morais abstratos que cada geração deve interpretar por si própria”. É relevante assinalar que a
dinâmica dessas duas dimensões não é conservadora-descritiva, não adota apenas uma descrição das
práticas e mensura se a interpretação ofertada a elas se ajusta. Fosse assim, confundir-se-ia com a moral
cotidiana e majoritária de uma comunidade. Pelo contrário, é propositiva, pois visualiza a prática sob sua
melhor luz e a seguir a reestrutura. DWORKIN, Ronald. O império..., p.60; 75 e ss.; DWORKIN,
Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p.154; GADAMER, Hans-George. Verdade e método: traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997; ARANGO, Rodolfo. ¿Hay respuestas correctas en el
derecho? Santafé de Bogotá: Uniandes, 1999.
208
Não é difícil identificar o direito à vida como um direito-trunfo. Em primeiro lugar, ele está
intimamente relacionado, inclusive instrumentalmente, à noção de igual consideração e respeito. Em
segundo lugar, quanto à distribuição, é um direito que não se pode negar a um grupo e reconhecer a outro,
como pode ocorrer com os direitos legislativos. Em terceiro lugar, em regra, não pode ser desconsiderado
em função de metas coletivas. Em quarto, é um direito enraizado nas práticas e tradições jurídicas
ocidentais. Um exemplo clássico do cunho de trunfo do direito à vida é o do paciente do quarto 306, no
qual um paciente jovem pode ser doador de órgãos para outros cinco pacientes, que morrerão caso o
transplante não ocorra. Os cinco pacientes não são compatíveis entre si, somente o do quarto 306 pode ser
o doador. Poder-se-ia considerar a possibilidade de o paciente do quarto 306 ser compulsoriamente um
105
Porém, a mudança de contexto pode alterar o ponto de partida. É o que poderia
acontecer na hipótese CD. In casu, a proibição de tal disposição poderia significar o
bloqueio de uma liberdade básica especificamente considerada, a qual somente poderia
ser obliterada por fortes razões de princípio concorrentes. Nessa hipótese, a liberdade
básica reconhecida triunfa sobre os demais argumentos de política e concorre com
argumentos de princípio, que, para justificar a proibição da eutanásia – e, portanto, da
disposição de posições subjetivas do direito à vida –, devem ser mais fortes do que a
liberdade básica.
doador, para que salve outras cinco vidas, quando se parte de uma moralidade baseada em direitos? Sobre
o exemplo, ver: THOMSOM, Op.cit., p.135 e ss.; MORRISON, Op.cit., p.173.
209
DWORKIN, Ronald. Domínio..., p.223-235.
106
justificável mediante argumentos de política, que visassem metas coletivas, pois a
liberdade básica triunfaria.
107
Dworkin de modo a não conflitar com o igual respeito e consideração. Então, apesar de
ser Dworkin um liberal, ele não é um adepto da liberdade máxima, mas da liberdade
indispensável à igualdade liberal210. Os casos mais drásticos de disposição de direitos-
trunfo podem representar a fragilização do invólucro que protege o igual respeito e
consideração, flanco que Dworkin não abre facilmente, exigindo que a tarefa
interpretativa seja integralmente – do primeiro ao último passo – filtrada pela ideia de
igual respeito e consideração.
210
Essa passagem foi inspirada em DUTRA, Delamar Volpato. Moralidade política e bioética: os
fundamentos liberais da legitimidade do controle de constitucionalidade. Veritas, Porto Alegre, v.52, n.1,
p.60, mar. 2007, nota n.3.
108
direito estrito. Mas este não é, de maneira alguma, o ponto alto do conceito alexyano de
liberdade; muito menos quanto à sua jusfundamentalidade. Em assim sendo, o conceito
direito geral de liberdade é mais forte do que o de privilégio e está ligado aos direitos
em sentido estrito, ou às imunidades ou ao direito estrito à instituição de uma
competência (se jusfundamentalmente protegida).
Dessa forma, quando a categoria direito geral de liberdade for empregada nesta
tese, deve-se entender um direito subjetivo que possui posições de direito estrito, ou de
imunidade ou de direito à competência. Ou seja, é conceito mais forte que o hohfeldiano
e inclui, pelo menos, o dever estrito de não-intervenção ou uma imunidade. Ao elevar a
posição do direito geral de liberdade e retirá-lo do âmbito do privilégio, Alexy faz com
que muito do que seria um mero privilégio na teoria hohfeldiana seja considerado
jusfundamentalmente protegido e, portanto, sujeito à teoria das restrições por ele
elaborada, merecendo a superação do ônus argumentativo para que seja objeto de
ablações.
Antes de assumir a posição que será adotada nesta tese acerca do direito geral de
liberdade e das liberdades básicas, é conveniente trazer à baila alguns exemplos de
julgados nacionais, estrangeiros e internacionais na temática. No Brasil, conforme
mencionado anteriormente e diante dos exemplos fornecidos por Virgílio Afonso da
Silva, não é possível delinear uma tendência clara nos tribunais acerca do emprego das
liberdades básicas ou do direito geral de liberdade. Em algumas situações, usa-se o
109
direito geral de liberdade; noutras, liberdades básicas, o que implica desconsiderar
algumas alternativas de ação como jusfundamentalmente protegidas211. Exemplo do
primeiro tipo é o julgado a respeito da constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei
de Arbitragem. No caso, dois Ministros referiram um conceito amplo de liberdade212.
Um exemplo do segundo tipo são alguns casos de fiéis de agremiações religiosas
sabatistas, que envolviam pedidos para a realização de provas de concursos públicos em
horários diferenciados, nos quais sequer foi considerada a presença de uma liberdade
por parte dos fiéis, ocorrendo justamente o que Afonso da Silva denomina deficit de
fundamentação.
211
A duplicidade encontra eco, ainda, na adoção da teoria externa ou da teoria interna dos direitos
fundamentais. Quanto aos exemplos, ver: SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.144 e ss.
212
BRASIL, STF, AgRSE nº5.260-7 Reino da Espanha, Op. cit.
213
Os casos serão explicitados adiante, Capítulo 4. Para uma discussão dos casos: DWORKIN, Ronald.
Domínio..., passim; DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American
constitution. Cambridge: Harvard University, 1996, (especialmente os artigos intitulados Roe in danger;
Roe was salved e Do we have a right to die?). USA. Washington v. Glucksberg et al. Disponível em:
http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl? court=us&navby=title&v1=Glucksberg; USA. Cruzan
v. Director, Missouri Department of Health. 497 U.S. 261 (1990). Disponível em: http://
caselaw.1p.findlaw.com/scripts/getcase.p1. court=us&vol=497&invol=261; USA. Planned parenthood
of Southeastern Pennsylvania v. Casey. 112 U.S. 2791 (1992). Disponível em:
http://caselaw.1p.findlaw.com/scripts/getcase.p1.court= us&vol=492&invol=4900.
110
diminuem o espaço de atuação dos fóruns majoritários de tomada de decisão: o
legislativo e o executivo. Desta feita, a Corte aplicou um teste da razoabilidade bastante
fraco, procurando apenas uma conexão, ainda que leve, entre meios e fins na legislação
proibitiva do suicídio assistido por médicos. O que é importante notar é que o
reconhecimento ou não da liberdade como jusfundamentalmente protegida faz toda a
diferença para o equacionamento do caso, não exatamente quanto ao seu resultado final,
mas quanto ao iter argumentativo que será seguido. No voto de concorrência, uma
narrativa exemplar do significado do devido processo legal substantivo no direito
constitucional estadunidense, a jusfundamentabilidade da liberdade de optar pela
própria morte mediante suicídio assistido para certos grupos de pessoas foi reconhecida,
porém, por motivos diversos dos da maioria, o pleito também foi rejeitado214.
214
USA. Washington v. Glucksberg et al. Voto concorrente do Justice Souter.
215
O caso será relatado no Capítulo 4. CANADÁ. Canadian Charter of Rights and Freedoms. 1982.
Disponível em: http://lois.justice.gc.ca/en/charter/index.html; CANADÁ. Rodriguez v. British
Columbia (Attorney General), [1993] 3 S.C.R 519. September, 30, 1993. Disponível em:
http://scc.lexum.umontreal.ca/en/1993/ 1993rcs3-519/1993rcs3-519.html.
216
No Reino Unido, a Câmara dos Lordes, exercendo funções jurisdicionais em face do Human Rights
Act de 1998, manifestou-se acerca da proibição do suicídio assistido. O caso será detlhadao adiante,
Capítulo 4. Ver: UNITED KINGDOM. The Queen on the Application of Mrs. Dianne Pretty
(Appellant) v. Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home
Department (Interested Party). 29, november, 2001. Disponível em: http://www.publications.
parliament.uk/pa/ld200102/ldjudgmt/ jd011129/pretty-1.htm; ECHR. Pretty v. United Kingdom. Sobre
o caso, consultar: WADA, Emily. A Pretty picture: the margin of appreciation and the right to assisted
suicide. Loyola International and Comparative Law Review, v. 27, p.275-290, 2006; MILLNS, Susan.
Death, dignity and discrimination: the case of Pretty v. United Kingdom. German Law Journal, v.3,
n.10, October, 2002. Sobre a CEDH e os padrões decisórios que utiliza, ver: ALSTON, Michael;
111
que não ofereça um conceito estreito à proteção das liberdades e da vida privada, CEDH
avalia a existência ou não de uma liberdade jusfundamentalmente protegida.
Diversamente do argumento do Reino Unido, os juízes entenderam que havia, sim, um
direito de autonomia protegido, derivado do art.8º, §1º da Convenção Europeia de
Direitos Humanos217. Contudo, não obstante o reconhecimento da liberdade, o pedido
não foi concedido.
Nesta tese, é necessário assumir uma postura sobre o tema. Como, no Brasil, não
há linha clara nos tribunais a respeito e há exemplos de deficit de fundamentação no
reconhecimento de direitos de liberdade, parece mais adequado assumir a postura de um
direito geral de liberdade, prioritariamente em função da ausência de guias
interpretativos nítidos acerca da interpretação das liberdades. Nesse sentido, vale
colacionar a advertência de Rodolfo Arango, bem como tecer algumas considerações
sobre um sistema de pensamento como o dworkiniano. Quando Dworkin sustenta a tese
das liberdades básicas, está se referindo a um sistema jurídico que há mais de duzentos
anos constrói e reconstrói, interpretativamente, a proteção das liberdades. Desse modo,
há guias de interpretação e grupos inteiros de precedentes que permitem dar vazão à
noção de integridade do sistema, ou seja, trata-se de um ambiente amadurecido neste
debate, no qual se pode aliar a tradição e a prospecção pela via interpretativa. Segundo
STEINER, Henry. International human rights in context: law, politics and morals. 2.ed. Oxford:
Oxford University, 2004.
217
Sobre o caso, infra, capítulo 4. ECHR. Pretty v. United Kingdom. Cit.
112
Arango, o fato de Dworkin basear-se num sistema jurídico amadurecido cria
dificuldades quando do translado da sua tese para outros países218. Entende-se que o
pensamento de Arango fica ainda mais intenso quando são considerados Estados que
vivenciaram, há não muito tempo, governos ditatoriais e totalitários, caracterizados
exatamente por um descuido quanto às liberdades, e, portanto, ainda sem bases seguras,
quer jurisprudenciais, quer legislativas e executivas, para seu trato. Desta feita, o labor
inicial com o direito geral de liberdade pode efetivamente mostrar-se mais seguro.
218
Arango diz que um dos pressupostos fáticos para a aplicação da teoria de Dworkin (o direito como
integridade) é ser o sistema um “sistema avançado”. ARANGO, Op.cit., p.56.
219
O jurista português aceita, no Estado Democrático de Direito, algumas versões bem leves de
paternalismo (como o que se passa quando se trata de crianças, por exemplo), mas recusa o paternalismo
jurídico, como regra, no Estado Democrático de Direito: “Mas, como diz FEINBERG, se a ideia
paternalista de consideração dos direitos como direitos obrigatórios quando aplicada às crianças parece
admissível, já sua institucionalização, como regra, nas relações entre Estado e cidadão é insustentável.
Num Estado não paternalista como é essencialmente o Estado de Direito, que assenta na dignidade da
pessoa humana e faz do livre desenvolvimento da personalidade individual um valor fundamental, esta
situação de direitos de exercício obrigatório (direitos/deveres) é claramente excepcional. [...] Só o Estado
paternalista se arroga a pretensão de proteger sistematicamente o cidadão contra si próprio, numa
concepção de liberdade vinculada, cuja matriz se exprime, como diz ISAIAH BERLIN, no lema
jacobino ‘nenhum homem é livre para fazer o mal, impedi-lo é libertá-lo’”. NOVAIS, Renúncia..., p.286-
288 [sem grifos no original].
113
jurídico, reputando, portanto, os direitos como disponíveis220. A sustentação de que a
indisponibilidade dos direitos advém da aplicação do inadmissível paternalismo jurídico
foi bem sumariada por McConnell:
220
Já no prefácio de Anarquia, estado e utopia, Nozick refere a inaceitabilidade do paternalismo estatal,
ao escrever: “Duas implicações dignas de nota são que o Estado não pode usar sua máquina coercitiva
para obrigar certos cidadãos a ajudarem a outros ou para proibir atividades a pessoas que desejam
realizá-las para seu próprio bem ou proteção.” A noção está diretamente ligada à defesa do Estado
mínimo feita pelo autor, que se justifica em face da titularidade de direitos, pois, em razão deles, “[...] há
coisas que nenhuma pessoa ou grupo podem fazer com os indivíduos (sem lhes violar direitos)”. Nozick
considera que apenas o Estado mínimo é capaz de ser moralmente justificado e rejeita que qualquer
estado maior que o mínimo possa sê-lo. Em seu pensar, cada ser humano possui uma inviolabilidade,
protegida por direitos individuais bastante fortes. A proteção conferida pelos direitos não permite que o
Estado maior que o mínimo os invada e exige que o Estado mínimo proteja-os contra invasões operadas
por terceiros, desde que o titular não tenha consentido. Isso vale tanto na esfera dos direitos
econômicos (a coisas) como dos direitos pessoais. Nesse rumo, Nozick oferece exemplos como o de
alguém que se permite matar e o de alguém que se vende como escravo, não encontrando óbice para tais
contratos, que somente poderiam ser obstados mediante atos de paternalismo, que vão muito além do
Estado mínimo. NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, p.9.
[sem grifos no original]. Essa interpretação de Nozick também encontra apoio em: McCONNELL, Op.
cit., p. 25 e ss.
221
McCONNELL, Op. cit., p. 26-27. No original: “(i) If right R is inalienable, the rights-possessor’s
consent is not sufficient to authorize another in infringing R. (ii) If a right-possessor’s consent is not
sufficient to justify another in infringing his rights, then a competent individual’s option are being
restricted for that person’s own good. (iii) If a competent individual’s options are restricted for his own
good, then those who are engaged in restricting his options are engaged in paternalism. (iv) But treating
competent individuals paternalistically is unacceptable. (v) So, no right is alienable. (vi) If no right is
alienable, then all rights are alienable. (vii) So, all rights are alienable”.
114
De início, é preciso mencionar, com apoio em Feinberg e Gerald Dworkin, que
três diferentes posições podem ser tomadas em face do paternalismo jurídico: (a) plena
rejeição; (b) plena aceitação; (c) aceitação em circunstâncias delimitadas. Para os
autores, as opções (a) e (b) devem ser descartadas, ainda que se considere a grande
tradição de rejeitar o paternalismo jurídico, que remonta aos escritos de John Stuart
Mill. Segundo Feinberg, o contingente de enunciados normativos vigentes – e aceitáveis
– que encontram sua justificação no paternalismo jurídico é muito significativo para que
seja possível simplesmente ignorá-lo e não o aceitar. Entretanto, aceitá-lo plenamente é
postura que encontra barreiras demasiadamente importantes, como, por exemplo, o
caráter ad infinitum do argumento paternalista, de modo que a alternativa (c), aceitação
do paternalismo jurídico em situações e formas específicas, mostra-se a mais
adequada222. Com o intento de melhor compreender essa afirmação, será estudado o
conceito do princípio liberal do dano (2.3.1) e o do paternalismo jurídico (2.3.2), além
de outros, relativos a alguns institutos similares; serão também distinguidas formas de
paternalismo jurídico, os principais argumentos favoráveis e contrários ao paternalismo
jurídico, e, por fim, discutir-se-á sua relação com a (in)disponibilidade dos direitos
fundamentais223.
222
Para Feinberg, a negação absoluta do paternalismo jurídico conduz a problemas não apenas com o
senso comum, mas também com enunciados normativos há longa data existentes, aceitos como plausíveis
e não questionados, como, por exemplo, a regra geral que proíbe homicídio consentido, a recusa da
validade e da execução de contratos de assassinato e de escravidão voluntária, a permissão do uso da
força razoável para impedir um suicídio, a proibição de certas modalidades de jogos de azar, entre outras.
Ao ensejo do pensamento do autor, é difícil encontrar uma justificação para tais medidas que não seja
paternalista. De outro ângulo, um dos maiores entraves à aceitação do paternalismo é justamente o longo
alcance do argumento, pois, uma vez utilizado, será difícil parar ou traçar distinções entre casos. A menos
que se pretenda, nas palavras de Feinberg, proibir o álcool, o tabaco e até mesmo as frituras, ou, ainda,
segundo G. Dworkin, o sedentarismo e certos prazeres ou estilos de vida arriscados, como o alpinismo e a
fórmula I. FEINBERG, Legal paternalism..., p.110-129. O mesmo texto de Feinberg encontra-se na
coletânea de Sartorius sobre o paternalismo. A menção às páginas que serão feitas referem-se a este:
FEINBERG, Joel. Legal paternalism. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota: Minnesota
University, 1987, p.3-18; DWORKIN, Gerald. Paternalism. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism.
Minnesota: Minnesota University, 1987, p.19-35; DWORKIN, Gerald. Paternalism: some second
thoughts. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota: Minnesota University, 1987. p.105-112.
223
A palavra princípio, quando empregada aqui, não assume o significado de uma norma jurídica do tipo
princípio, em oposição aos termos regras e postulados. Utiliza-se princípio liberal do dano por ser a
expressão corrente e não por acreditar que se trata de um princípio jurídico no sentido que lhe conferem
muitos autores contemporâneos.
115
A finalidade deste Ensaio é sustentar um princípio bastante simples,
capaz de governar absolutamente as relações da sociedade com o
indivíduo no que diz respeito à compulsão e ao controle, quer os
meios empregados sejam os da força física sob a forma de penalidades
legais, quer o da coerção moral da opinião pública. Esse princípio é o
de que a autoproteção constitui a única finalidade pela qual se garante
a humanidade, individual ou coletivamente, interferir na liberdade de
ação de qualquer um. O único propósito de se exercer legitimamente o
poder sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra
a sua vontade, é evitar dano aos demais. Seu próprio bem, físico
ou moral, não é garantia suficiente. Não pode ser legitimamente
compelido a fazer ou a deixar de fazer por ser melhor para ele,
porque o fará feliz, porque, na opinião dos outros, fazê-lo seria
sábio ou mesmo acertado. Essas são boas razões para o advertir,
contestar, persuadir, instar, mas não para o compelir ou castigar
quando procede de outra forma. Para justificar esse exercício de
poder, é preciso mostrar-lhe que a conduta que se pretende impedi-lo
de ter produzirá mal a outrem. A única parte da conduta de cada um,
pela qual é responsável perante a sociedade, é a que diz respeito aos
outros. Na parte que diz respeito apenas a si mesmo, sobre seu corpo e
mente, o indivíduo é soberano224.
Este pequeno trecho da obra de Mill é alvo de muitas interpretações, e, como
bem frisam Feinberg e Gerald Dworkin, o princípio simples se mostra, em sua
aplicação, muito prolixo, além de se desdobrar em mais de um princípio225. Em síntese,
e de modo simplificado, pode-se dizer que do excerto de Mill, além da rejeição do
paternalismo jurídico e/ou social, extrai-se o princípio liberal do dano, ou seja, que
haverá justificação para a coerção estatal e/ou social quando a ação ou omissão de uma
ou mais pessoas causar dano ou ensejar risco real de dano a outra ou a outras pessoas226.
224
MILL, John Stuart. A liberdade: utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.17-18 [sem grifos
no original]. O excerto na língua inglesa pode ser conferido em: MILL, John Stuart. On liberty (1859).
Kitchner: Batoche Books, 2001, p.13.
225
FEINBERG, Legal…, p.4; 11-17; DWORKIN, Gerald. Paternalism. p.23-29; FEINBERG, Joel. Harm
to others: the moral limits of the criminal law (vol. I). Oxford: Oxford University, 1986, passim.
226
Mill é bem claro quanto à diferença entre a coerção estatal e social e os atos promocionais,
educacionais e de incentivo a certas condutas e os que visam a desestimular certos tipos de
comportamento. Importa ainda ressaltar que Mill não considera que o princípio do dano sempre será uma
justificação válida para a coerção: “Eis as máximas: primeiro, o indivíduo não é responsável perante a
sociedade por suas ações, enquanto estas não afetarem os interesses de nenhum outro além dele mesmo.
Conselhos, instrução, persuasão e isolamento [social], caso os outros julguem necessário recorrer a este
último meio para seu próprio bem, são as únicas medidas pelas quais a sociedade pode com justiça
exprimir seu desagrado ou desaprovação quanto à conduta do indivíduo. Segundo, o indivíduo é
responsável pelas ações prejudiciais aos interesses dos outros, sujeitando-se então quer à punição social,
quer à legal, se a sociedade julgar que uma ou outra seja necessária à sua proteção. Em primeiro lugar,
não se deve supor de maneira nenhuma que, se o dano ou a probabilidade do dano justificam por si
sós a interferência da sociedade, então sempre a justificam. [Mill explica que no uso das liberdades as
pessoas podem constituir obstáculos a interesses alheios] [...] No entanto, em geral se admite que é
melhor ao interesse comum da humanidade os homens perseguirem seus objetivos sem que os detenha
essa espécie de consequências. Em outras palavras, a sociedade não reconhece aos competidores
frustrados nenhum direito legal ou moral a ficar imune a esse tipo de sofrimento, e somente será
chamada a interferir quando os meios empregados para alcançar o êxito sejam contrários aos que o
116
À luz do pensamento de Mill, existem atos comissivos ou omissivos que não dizem
respeito ao Estado nem à sociedade. Os atos que dizem respeito apenas ao indivíduo,
sem envolver terceiros – ou envolvendo-os na medida em que com eles estão de acordo
– são denominados autorreferentes. Já aqueles que ensejam dano ou risco de dano a
terceiros são atos heterorreferentes. Mill menciona com nitidez, e nisto é seguido por
muitos liberais moderados contemporâneos, que simples preferências individuais ou
sociais, padrões culturais, morais ou costumeiros bastante compartilhados não
constituem, necessariamente, objeto de dano. Ou seja, a discordância com tais padrões
não implica necessariamente dano a terceiros; tampouco os atos serão, em si mesmos,
heterorreferentes. O dano possui um conceito mais estreito do que a mera ofensa a
certos padrões227.
interesse geral permitir, a saber: a fraude, ou traição, e a força”. MILL, John Stuart. A liberdade...,
p.143-144 [sem grifos no original].
227
Para a distinção entre dano e ofensa, ver: FEINBERG, Harm to others..., p.12-13; FEINBERG, Joel.
Offense to others: the moral limits of the criminal law (Vol. II). Oxford: Oxford University, 1985,
passim.
228
FEINBERG, Legal…, p.18, nota n.2. O próprio Mill tentou traçar linhas entre os atos auto e os
heterorreferentes, e salientou a recusa de muitos em aceitá-la: “Muitos se recusarão a admitir a distinção
aqui assinalada entre a parte da vida da pessoa que diz respeito apenas a ela mesma e a que diz respeito a
outras. Perguntarão: como uma parte qualquer da conduta de um membro da sociedade pode ser
indiferente a outros? Ninguém é um ser inteiramente isolado; é impossível que um homem provoque dano
a si mesmo de modo sério ou permanente, sem que o mal atinja pelo menos algumas de suas relações
mais íntimas, e muitas vezes vai além destas. [...] Finalmente, poderiam dizer, se um homem não provoca
dano direto a outros por seus vícios e tolices, é contudo ofensivo por seu exemplo e deveria ser compelido
a se controlar, pelo bem daqueles a quem a visão ou conhecimento dessa sua conduta poderia corromper
ou desencaminhar. [...] Admito plenamente que o dano provocado por uma pessoa sobre si mesma possa
afetar seriamente, tanto por suas simpatias como por seus interesses, os que se relacionam a ela de modo
próximo e, em menor grau, a sociedade como um todo”. Em que pese esta admissão final, Mill apenas
considera que o princípio do dano será aplicável se houver rompimento com obrigações e deveres para
com terceiros, ou seja, se os direitos de terceiros forem indevidamente afetados.
117
dificuldade não se pode inferir a impossibilidade. Se assim fosse, seriam vãs as
tentativas de proteção do chamado direito de privacidade e de certas liberdades pessoais
que protegem modos e estilos de vida diferentes do mainstream, bem como aquelas que
dizem respeito ao reconhecimento das minorias. Então, ainda que difícil de delinear em
certos casos, pelo aparente entrelaçamento entre aquilo que condiz exclusivamente ao
indivíduo e aquilo que afeta, na forma de dano, aos demais, não se pode desistir da
tarefa, por mais árdua que seja. Para os efeitos desta pesquisa, não se faz necessário
abordar de forma geral este ponto.
229
FEINBERG, Harm to others..., p.31-36. Alemany sumaria com muita propriedade a discussão do
conceito de dano trabalhado por Feinberg: “El concepto de daño de Joel Feinberg es básico para
comprender su respuesta a la pregunta de qué conductas puede el Estado legítimamente criminalizar e,
igualmente, es la base de la distinción conceptual entre los diferentes principios limitativos de la
libertad. Sostiene Joel Feinberg que el término daño (estado dañado o condición dañada) tiene tres
sentidos principales. En primer lugar, se usa “daño” en un sentido derivado o extendido, como cuando
se dice que la ventana ha sido dañada o, en general, siempre que se habla de daño a las cosas. En todos
estos casos, de una forma elíptica, lo que se quiere expresar es que el dueño de la cosa (o quien pudiera
tener interés en ella) ha sido dañado. En este contexto, parece que se usa con mayor propiedad el
término ‘daño’ cuando nos referimos al estado o la condición de cosas complejas que desarrollan cierta
función y con partes diferenciadas también funcionalmente: por ejemplo, cuando se dice que un motor
está dañado. En segundo lugar, en su sentido genuino, daño significa la frustración (setting back) de un
interés. En esta definición, el término ‘interés’ se usa en el sentido en que se dice que ‘una persona tiene
un interés en una compañía cuando es propietario de algunas de sus acciones’. Quien tiene un interés en
algo, entonces apuesta por ese algo. En este sentido, los intereses son un tipo de riesgo. ‘En general, –
dice Joel Feinberg – una persona apuesta por X (ya sea X una compañía, una carrera o algún tipo de
‘resultado’o acontecimiento) cuando acepta ganar o perder dependiendo de la naturaleza o condición de
X’. Los intereses (en plural) de un sujeto se componen de todas las cosas sobre las que el sujeto tiene una
apuesta, mientras que el interés (en singular) de un sujeto reside en avanzar armoniosamente todos sus
intereses en plural. Nuestros intereses, o las cosas sobre las que tenemos un interés, son ‘componentes
distinguibles del bienestar de una persona’. El Derecho está principalmente dirigido a evitar aquellos
daños que son originados por la acción de otros individuos o por el propio sujeto dañado, aunque
nuestros intereses puedan ser dañados, y con frecuencia lo son, por la mala suerte, la enfermedad o las
catástrofes naturales. En tercer lugar, se usa ‘daño’ en un sentido normativo (el término usado por Joel
Feinberg es wrong, que traduciré como ‘agravio’). ‘Una persona agravia a otra – explica Joel Feinberg
– cuando su indefendible (injustificable e inexcusable) conducta viola los derechos de otro y, salvo
ciertos casos muy especiales, tal conducta invadirá también los intereses de otro y así será dañosa en el
sentido ya explicado’. Dado que continua e inevitablemente los individuos se dañan unos a otros, el
Derecho debe seleccionar de entre los diferentes intereses aquellos que son dignos de protección jurídica
y cuya frustración constituye, en consecuencia, un agravio”. ALEMANY, Macario García. El concepto
y la justificación del paternalismo. Tesis (Doctorado em Filosofia del Derecho). Alicante: 2005, p.160-
161. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/ FichaObra.html?Ref=14591&ext=pdf&portal=0.
118
Assume-se a posição, aqui, de que a definição de dano é normativa. Como diz Ernesto
Garzón Valdés, “o conceito de ‘dano’ é um conceito com carga moral que pressupõe a
determinação do que deve ser valioso e digno de proteção”230. Nesta etapa da tese, a
definição do dano ficará em aberto, expondo-se apenas a carga moral que possui.
2.3.1.1 Volenti non fit injuria, o princípio liberal do dano e disponibilidade dos
direitos
Oriundo do antigo Direito Romano, o brocardo volenti non fit injuria significa,
em um primeiro olhar, que àquele que consente, nenhuma injúria é cometida231. Resta
depurar o que se pretende dizer com a palavra injúria. Os estudiosos apontam duas
interpretações possíveis. A primeira sustenta que injúria equivale, na frase, a dano. Ou
seja, quando houver o consentimento, não haverá dano. Assim, em uma relação jurídica,
se um dos polos consentiu com o comportamento (ativo ou omissivo) alheio, não poderá
pleitear o dano sofrido, uma vez que ele simplesmente não ocorre quando houver
consentimento. Na segunda linha interpretativa, reputada a mais adequada, o brocardo
não se refere ao dano. O dano pode ocorrer mesmo nas relações em que houve
consentimento genuíno. O que não haverá, quando existir consentimento, é o wrong232,
ou seja, a intrusão indevida no(s) direito(s) do consentente. Embora sejam raros os
casos nos quais há wrong sem que haja dano, tais hipóteses existem, mas são
normalmente definidas ponderativamente (on balance), ou justamente em razão da
presença do consentimento genuíno233.
230
VALDÉS, Ernesto Garzón. ¿És eticamente justificable el paternalismo jurídico? Doxa: Cuadernos de
Filosofía del Derecho, n.5, 1988, p.171. “El concepto de ‘daño’ es un concepto con carga moral que
presupone la determinación previa de lo que debe ser considerado valioso y digno de protección”.
231
FEINBERG, Legal..., p.4 e ss.; McCONNELL, Op. cit., p.31.
232
O termo wrong poderia ser traduzido como injustiça. Porém, o sentido que lhe é conferido é o de
intrusão indevida e injustificada nos direitos alheios. Ver: FEINBERG, Harm to others…, p.33-34;
MCCONNELL, Op. cit., p.32; ALEMANY, Op. cit., p.166 e ss.
233
FEINBERG, Harm to others…, p.34-35. “One person wrongs another when his indefensible
(unjustifiable and inexcusable) conduct violates the other’s right, and in all but in certain very special
cases such conduct will also invade the other’s interest and then be harmful in the sense already
explained. […] One class of harms (in the sense of set-back interests) must certainly be excluded from
119
Joel Feinberg acredita que a interpretação mais correta do princípio liberal do
dano é a que o elabora mediado pelo brocardo volenti non fit injuria no segundo
sentido. Em assim sendo, pode haver dano mesmo que exista consentimento, porém,
não haverá intrusão indevida no(s) direito(s) daquele que consentiu. O princípio do dano
não atua sobre estas situações, de modo que a ausência de wrong afasta a sua incidência:
“O princípio do dano não justificará a proibição de atividades consensuais mesmo
quando elas tendam a causar dano a interesses das partes que consentiram; seu objetivo
é prevenir apenas aqueles danos que são wrongs”234. Estudando detidamente J.S. Mill,
conclui-se que a leitura de Feinberg soa bastante condizente com o princípio liberal do
dano e com as aplicações feitas por Mill. Por isso, será aceita, nesta tese, a interpretação
do princípio do dano mediado pela máxima volenti non fit injuria, sendo injúria a
invasão indevida de direitos alheios (wrong).
Ressalte-se, então, que o princípio do dano mediado pelo brocardo volenti non fit
injuria parece dizer muito a respeito da disponibilidade dos direitos. Uma vez que ele
não incide nos casos em que houve consentimento dos envolvidos, os direitos seriam, ao
seu ensejo, disponíveis, pois não se justificaria uma proibição estatal na relação jurídica
em seu nome. Porém, McConnell demonstra com clareza que essa conclusão absoluta
acerca do princípio do dano mediado pelo brocardo volenti non fit injuria e a
disponibilidade dos direitos é apressada. Pode perfeitamente não ocorrer a intrusão
indevida (wrong) de direitos entre as partes que consentiram, mas, ao mesmo tempo, a
relação pode repercutir em direitos de terceiros, caracterizando uma intrusão indevida
(wrong). Ou seja, por vezes, mesmo em relações nas quais há consentimento, pode
haver terceiros que tenham seus direitos injustificadamente impactados, abrindo
margem para a atuação do princípio do dano mediado pelo brocardo volenti non fit
injuria. É bem formulada por McConnell a noção de que não há relação necessária e
direta entre o mencionado brocardo e a disponibilidade dos direitos, pois pode ser que
ao titular do direito nada seja causado, mas a terceiros, sim235.
those that are properly called wrongs, namely those to which the victim consented. These include harms
voluntarily inflicted by the actor upon himself, or the risk which the actor freely assumed, and harms
inflicted upon him by the actions of others to which he has freely consented”. [sem grifos no original].
Apesar de Feinberg mencionar o risco e o dano autoinfligido, cabe recordar que ele considera que o
consentimento somente pode ser estendido a tais situações como uma metáfora. FEINBERG, Legal..., p.4.
234
FEINBERG, Harm to others…, p.35-36. “The harm principle will not justify the prohibition of
consensual activities even when they are likely to harm the interests of the consenting parties; its aim is to
prevent only those harms that are wrongs”.
235
McConnell não está trabalhando de modo direto com o princípio do dano mediado pelo brocardo
volenti, mas com o brocardo isoladamente. Porém, suas afirmações e conclusões podem ser transladadas,
120
2.3.2 O paternalismo jurídico
sem maiores problemas teóricos, para o princípio do dano mediado pelo brocardo volenti.
McCONNELL, Op. cit., p.31 e ss.
236
Embora J. S. Mill seja a referência mais empregada acerca das origens do paternalismo, é preciso não
esquecer que Kant mostrou-se um importante opositor do paternalismo estatal. Na Doutrina do direito,
essa postura kantiana é explicitada na máxima que rege o direito “o conjunto das condições sob as quais
o arbítrio de um pode ser reunido ao arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade”. Neste
rumo, os limites à atuação estatal e jurídica estão na heteronomia (nos atos que envolvem o encontro de
dois arbítrios) e não na autonomia (do sujeito para consigo ou do sujeito para com outros enquanto os
outros não são arbítrios naquela relação, como ocorre na Doutrina da virtude). Também Humboldt,
citado por Mill, adotou uma postura antipaternalista. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes,
passim; MILL, John Stuart. A liberdade..., passim; RAWLS, John. História da filosofia moral. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p.165-375; A respeito das origens do paternalismo: ALEMANY, Op. cit.,
p.11 e ss.
237
DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.24. “1. Since restraint is an evil, the burden of proof is on those
who propose such restraint. 2. Since the conduct that is being considered is purely self-regarding, the
normal appeal to the protection of interests of others is not available. 3. Therefore, we have to consider
whether reasons involving reference to the individual’s own good, happiness, welfare, or interests are
sufficient to overcome the burden of justification. 4. Either we cannot advance the interests of the
individual by compulsion, or the attempt to do so involves evil that out-weights the good done. 5. Hence,
121
Na afirmação 4, intitulada por Gerald Dworkin de “premissa operativa”,
distinguem-se as duas ordens de argumentos usados por Mill para combater o
paternalismo. A primeira é utilitarista, e, como tal, está fundada em um cálculo relativo
às consequências, no caso, um de dano/benefício. Segundo Mill, a coerção, quando
destinada aos atos autorreferentes, é sempre mais danosa do que a preservação da
liberdade. A segunda ordem de argumentos, e mais forte, é a preservação do indivíduo
como um agente, ou seja, como alguém hábil a empreender escolhas com liberdade e
responsabilidade238. Este argumento está presente em todo o texto de On Liberty, com
tanta intensidade que as ideias de agência individual e de transparência do sujeito para si
mesmo aproximam Mill de uma doutrina moral abrangente liberal239. Nesse sentido,
para Mill, o indivíduo é o melhor juiz de si mesmo; assim, o modo próprio de uma
pessoa moldar sua existência será o melhor, não por ser o melhor em si mesmo, mas por
ser o seu próprio modo240. O uso da coerção estatal, justificada pelo paternalismo,
desrespeita essa premissa por não levar em consideração a decisão atual de uma pessoa
e é, portanto, inaceitável na maciça parcela dos casos.
the promotion of the individuals own interests does not provide a sufficient warrant for the use of
compulsion”.
238
No Capítulo 3, ao tratar da genuinidade do consentimento, será detalhado o que se entende por agente.
239
John Rawls denomina o liberalismo de Mill de “liberalismo abrangente”, uma vez que Mill acredita
que as pessoas devem ser educadas para serem livres e assume a liberdade como um modo de vida, de
certa forma, superior aos demais. Ver: RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p.221; MILL, John Stuart. A liberdade..., p.86-88; p.166 e ss.
240
MILL, John Stuart. On Liberty, p.63. As expressões usadas aproximam-se do original, mas não são,
propriamente, uma tradução: “There is no reason that all human existence should be constructed on some
one or some small number of patterns. If a person possesses any tolerable amount of common sense and
experience, his own mode of laying out his existence is the best, not because it is the best in itself, but
because it is his own mode”.
122
informa-se a pessoa sobre os riscos que corre. A informação, para Mill, não seria
paternalismo (nem social, nem jurídico). Todavia, a proibição da conduta, caso, depois
de informada do risco, a pessoa persistisse em seu intuito, configuraria paternalismo241.
Por fim, Mill transmuda seu argumento quando atinge um caso-limite do paternalismo
jurídico: os contratos de autoescravidão. Como diz Feinberg, se Mill seguisse sua
premissa antipaternalista de modo absoluto, teria de aceitar tais contratos, mas isso seria
“demais para Mill digerir”242. Mill argumenta que tais contratos não devem ser
permitidos, pois a premissa forte da denegação do paternalismo é a proteção da
liberdade e um contrato de autoescravidão aniquila toda a liberdade futura de uma
pessoa. Destarte, a proteção da liberdade futura de uma pessoa escapa à refutação do
paternalismo.
Para sumariar, pode-se dizer que diversas correntes liberais aceitam o princípio
liberal do dano como justificação para a coerção estatal; algumas o veem como a única
possível, outras, como uma das principais. O princípio liberal do dano, mediado pelo
brocardo volenti non fit injuria, determina que poderá ser justificada a coerção estatal
quando os atos heterorreferentes causarem ou ensejarem risco real de dano a terceiros,
241
Mill presume que ninguém deseja cair no rio. Por isso, admite o emprego da força se não houver
tempo de informar. Segundo Mill: “A despeito disso, quando não existe, não a certeza, mas o perigo do
dano, ninguém, além da própria pessoa, pode julgar a suficiência dos motivos que o podem levar a se
expor ao risco; nesse caso, portanto (a menos que se trate de uma criança, de um desvairado, ou de
alguém que esteja num estado de excitação ou absorção incompatível com o pleno uso da faculdade
reflexiva), ela deveria, segundo penso, ser apenas advertida do perigo, e não impedida à força a se
expor a isso”. MILL, John Stuart. A liberdade..., p.146-147 [sem grifos no original].
242
FEINBERG, Joel. Legal..., p.12-13. “Mill’s earlier argument, if I understand it correctly, implies that
people should be permitted to mutilate their bodies, take harmful drugs, or commit suicide, provided that
the decision to these things is voluntary and no other person will be directly and seriously harmed. But
voluntarily acceding to slavery is too much for Mill to stomach”.
243
FEINBERG, Joel. Legal..., p.13-14. O autor sugere os seguintes argumentos alternativos: (a) o padrão
da voluntariedade; (b) questões pragmáticas e custos envolvidos na verificação da voluntariedade da
conduta, além dos efeitos perversos do erro na verificação; (c) o argumento da exploração, válido em
casos extremos; (d) dignidade humana (na fórmula do fim em si); (e) o ônus público (um argumento que
é, para Feinberg, apenas um pouco paternalista).
123
entendendo-se dano como a intrusão indevida em direitos alheios (wrong). Sob esta
ótica, o princípio liberal do dano poderá ser aplicado em casos de disposição de direitos,
desde que o ato de disposição impacte indevidamente direitos de terceiros estranhos à
relação de disposição244. Sucintamente entendido o princípio liberal do dano e sua
relação contingente com a disposição de direitos, passar-se-á ao estudo mais detalhado
do paternalismo jurídico.
244
Essa alternativa pode soar, para alguns, demasiadamente egoísta e individualista. Entrementes, adiante
se perceberá que tal crítica não pode ser formulada a priori, uma vez que as aplicações do princípio
liberal do dano não excluem, de pronto, outros princípios limitadores da liberdade e há, na atualidade,
outros eixos que devem ser pensados ao seu lado, como a dignidade humana. Ademais, há outros meios
alternativos de promoção do bem alheio, como o incentivo e a educação. Mesmo Mill já chamou atenção
para este fato: “Seria um grande equívoco supor que essa doutrina defenda uma indiferença egoísta,
pretendendo que os seres humanos não tenham direito de interferir na maneira como os outros se
comportam, e que não deveriam se preocupar com a boa-conduta e o bem-estar dos outros, a menos que
seu próprio interesse esteja em jogo. Em vez de uma diminuição, há necessidade de maior aumento do
esforço desinteressado para promover o bem alheio. Mas a benevolência desinteressada é capaz de
encontrar outros meios de persuasão que não a chibata e o açoite, quer em sentido literal ou metafórico.
Eu seria a última pessoa a subestimar o valor das virtudes pessoais; somente ficam atrás, se é que ficam,
das virtudes sociais. É tarefa da educação cultivá-las igualmente”. MILL, John Stuart. A liberdade...,
p.116-117.
124
liberdade constrito, ou seja, o que justifica a ablação é a proteção do indivíduo em
relação a seus próprios comportamentos; (c) não se confunde com o princípio liberal do
dano mediado pelo brocardo volenti non fit injuria, pois os comportamentos que o
justificam são autorreferentes ou remota e indiretamente heterorreferentes245.
245
Confiram-se alguns conceitos de paternalismo. Joel Feinberg define: “The principle of legal
paternalism justifies state coercion to protect individuals from self-inflicted harm or, in its extreme
version, to guide them, whether they like it or not, toward their own good”. Em Gerald Dworkin há duas
definições, sendo a segunda uma revisão da primeira. O autor define tanto o paternalismo jurídico quanto
o social: “By paternalism I shall understand roughly the interference with a person’s liberty of action
referring exclusively to the welfare, good, happiness, needs, interests, or values of the person being
coerced”. Conforme Gerald Dworkin, o paternalismo sempre envolverá limitações nas liberdades de
alguns indivíduos em nome de seus próprios interesses, mas pode estender-se às liberdades de partes
cujos interesses não estão em questão. É distintivo do paternalismo que, no momento em que ele é
aplicado, a pessoa não reconhece a proteção nem o benefício da medida. Em seu primeiro conceito,
Gerald Dworkin associou o paternalismo a intervenções coercitivas. Devido às críticas que recebeu,
modificou seu posicionamento e passou a aceitar como paternalistas algumas medidas promocionais e de
dificultação de acesso a comportamentos ou produtos, bem como a omissão de informações importantes
que impedem o conhecimento, pelo sujeito que sofre a medida paternalista, sobre a sua ocorrência. Eis
seu segundo conceito: “There must be a violation of a person’s autonomy (which I conceive as a distinct
notion from that of liberty) for one to treat another paternalistically. There must be a usurpation of
decision-making, either by preventing people from doing what they have decided or by interfering in the
way in which they arrive at their decisions”. Ernesto Garzón Valdés liga paternalismo e coerção: “La
intervención coactiva en el comportamiento de una persona a fin de evitar que se dañe a sí mesma es
generalmente llamada ‘paternalismo’ […] El paternalismo jurídico sostiene que siempre hay una buena
razón a favor de una prohibición o de un mandato jurídico, impuesto también en contra de la voluntad
del destinatário de esta prohibición o mandato, cuando ello es necesario para evitar un daño (físico,
psíquico o económico) a la persona a quien se impone esta medida”. Manuel Atienza define o
paternalismo de modo amplo, mas, como será estudado, aceita-o como justificado estreitamente: “Una
conducta (o una norma) es paternalista si y sólo si se realiza (o establece): a) con el fin de obtener un
bien para una persona o personas afectadas (es decir, de los presuntos beneficiarlos de la realización de
la conducta o de la aplicación de la norma”. Paulette Dierlen adere ao conceito de Van de Veer, cujos
elementos são o cuidado com alguém (o motivo benevolente ou bem-intencionado) e o controle (a ação
contrária à vontade do sujeito). Dan Brock expressa um conceito que considera impreciso, mas que atende
aos seus propósitos em um dos seus trabalhos:“Paternalism is action by one person for another’s good,
but contrary to their present wishes or desires, and not justified by the other’s past or present consent”.
H.L.A. Hart considera que o paternalismo é “the protection of people against themselves”. Ele o aceita
em larga medida, revisitando criticamente o pensamento de Mill. Todavia, Hart se opõe ao moralismo
legal, que significa o uso da coerção para impedir atos intrinsecamente imorais, à luz da moralidade
positiva. Ronald Dworkin trabalha a temática do paternalismo jurídico na obra A virtude soberana.
Segundo Ronald Dworkin, o paternalismo não se confunde com o majoritarianismo, pois não tem assento
na sobreposição da vontade da maioria sobre a da minoria, mas na ideia de que as pessoas que vivem em
uma comunidade política possuem responsabilidade umas com as outras. O emprego coercitivo do direito
para a promoção do bem-estar alheio caracteriza o paternalismo. FEINBERG, Joel. Legal..., p.3;
DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.20; DWORKIN, Gerald. Paternalism: some…, p.105-106; BROCK,
Dan. Paternalism and promoting the good. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota:
Minnesota University, 1987, p.238 e p.258, nota n.5; VALDÉS, Op.cit., p.155-156. ATIENZA, Manuel.
Discutamos sobre paternalismo. Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.5, p.203, 1988;
DIETERLEN, Paulette. Paternalismo y estado de bienestar. Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho,
n.5, p.185, 1988; HART, Law…, p.31-33; p.25 e ss.; DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a
teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.298-299.
125
quanto à amplitude do direito subjetivo à liberdade. A adoção da tese de um direito
geral de liberdade ou da tese das liberdades básicas refletir-se-á diretamente quando o
assunto for o paternalismo jurídico. Assim, seguida a tese do direito geral de liberdade,
qualquer interferência constritiva na liberdade jurídica deverá suprir o ônus
argumentativo. Por outro lado, seguida a tese das liberdades básicas, apenas se elas
forem atingidas é que se poderá falar, propriamente, em constrição de direito estrito. Se
uma liberdade básica não se fizer presente, haverá uma mera configuração de
privilégios, os quais, como sabido, não envolvem, necessariamente, um dever correlato
de não-intervenção (tampouco será um caso de imunidade ou de não-competência). Em
sendo assim, algumas medidas que seriam reputadas de paternalismo jurídico na
primeira ótica (direito geral de liberdade) poderiam não sê-lo na segunda, uma vez que
seriam configurações triviais de privilégios246. Nesta tese, por razões já elencadas,
aderiu-se à noção de um direito geral de liberdade e, por isso, qualquer interferência
com a liberdade jurídica carece de argumentação suficiente. Portanto, o desafio será
saber se e quando o paternalismo jurídico preenche essa exigência.
246
Presuma-se que a obrigatoriedade do uso de cintos de segurança seja uma medida justificada pelo
paternalismo jurídico. Para aqueles que adotam a tese do direito geral de liberdade, será necessário
demonstrar, argumentativamente, que se trata de um caso justificado de paternalismo jurídico, ou que há
outro princípio justificador da medida. Já para quem adota a tese das liberdades básicas, pode-se entender
que o uso de um automóvel sem cinto de segurança não é uma liberdade básica, não havendo, pois,
necessidade de se discutir o paternalismo jurídico. O exemplo dos cintos de segurança é de Gerald
Dworkin. Aliás, a posição dele contribui para tornar o ponto mais claro. Em seu primeiro artigo sobre o
paternalismo, G. Dworkin labutou com um conceito amplo de liberdade e enfrentou dificuldades
argumentativas importantes. Em artigo posterior, ele reviu seu posicionamento e elaborou uma distinção
entre liberdade (privilégio) e autonomia, entendendo que o paternalismo somente se faria presente se
houvesse interferência na autonomia, e não na liberdade (no sentido de privilégio). E assim ele descarta
diversas hipóteses, por considerá-las interferências triviais na liberdade. Frisa-se, porém, que a diferença
feita entre liberdade e autonomia não é idêntica a que existe entre o direito geral de liberdade e as
liberdades básicas. Ver: DWORKIN, Gerald, Paternalism, passim; DWORKIN, Gerald, Paternalism:
some…, passim. Para a compreensão das nuances sobre autonomia e liberdade em G. Dworkin, ver:
ALEMANY, Op. cit., p.111 e ss.
126
proibição e, em menor monta, no não-reconhecimento jurídico de condutas247. Neste
rumo, medidas de tributação, de regulação, de dificultação de acesso, de
desencorajamento, de promoção e de educação quanto a comportamentos
autorreferentes não seriam, propriamente, ablações na liberdade jurídica, e, portanto,
não precisariam justificação e não abririam o caminho para o paternalismo jurídico. No
entanto, Daniel Wikler chama a atenção para a delicadeza da diferença entre medidas de
coerção, proibição, não-reconhecimento jurídico e as demais. Com exemplos, o autor
demonstra que muitas medidas de promoção podem também ser vistas como
coercitivas, tornando simplesmente semântica uma diferença real. A advertência de
Wikler é de se levar a sério, pois a ausência de cuidado com a distinção poderia
significar um cheque em branco para certas atividades estatais apresentadas como não
coercitivas. A proposta é, pois, um detalhado estudo caso a caso, para que se perceba
toda e qualquer ablação do direito de liberdade, mesmo por medidas tarjadas de
simplesmente promocionais248. A preocupação de Wikler com o tipo de ablação da
liberdade relaciona-se com a amplitude do direito de liberdade, mencionada no
parágrafo anterior.
Mais uma vez, como a opção desta tese foi a de arcar com o ônus argumentativo
à luz de um direito geral de liberdade, em cada situação haverá necessidade de
perscrutar se medidas chamadas de não-coercitivas e de não-proibitivas podem
efetivamente ser vistas somente deste ângulo, ou se interferem com o direito geral de
liberdade ou outras liberdades. Quando do estudo do consentimento, no Capítulo 3,
alguns pontos da questão serão retomados.
247
O não-reconhecimento jurídico de algumas condutas pode ensejar a ausência de liberdade jurídica para
a sua realização. Isso se dá, muitas vezes, pela negação da competência jurídica para determinados atos.
Porém, em situações como essa, a liberdade fática pode ainda ter espaço, mas não contará com o aparato
estatal – especialmente o jurisdicional – para o seu apoio. Sobre a ligação entre liberdade jurídica e
competência, ver item 1.2.3.2.1.4, no Capítulo 1. A respeito, consultar também: ALEMANY, Op. cit.,
p.122-124.
248
Nas palavras do autor: “Some of the most difficult problems addressed in the philosophical literature
arise in the present context: What is the difference between persuasion and manipulation? Can offers and
incentives be coercive, or is coerciveness a property only of threats? And can one party be said to have
coerced another even if the latter manages to accomplish that which the first part have tried to prevent?”.
Segundo Wikler, medidas de incentivo e de promoção pretendem, ao fundo, modificar comportamentos, e
se torna difícil saber até que ponto a movimentação está no campo da informação ou da manipulação.
Para ele, porém, é possível investigar, em cada situação, o que está em jogo. WIKLER, Daniel.
Persuasion and coercion for health. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota: Minnesota
University, 1987, p.52-53.
127
informação ou manipulação de informação, bem como de atos indiretos, que dificultam
excessivamente o acesso a certos comportamentos e produtos, a ponto de torná-los
impraticáveis249. Em linha de princípio, a informação, a persuasão, os programas
educativos e promocionais não configuram paternalismo jurídico. Porém, cada um deles
deverá ser avaliado cautelosamente, para que sejam evitadas proibições travestidas de
mera promoção.
249
Vale salientar que Ronald Dworkin, quando trabalha diretamente com o paternalismo jurídico, está se
referindo aos limites morais do direito penal. Portanto, suas definições, seus argumentos e suas
conclusões estão ligadas à coercitividade estatal em sua mais forte manifestação. Também Feinberg, em
muitas ocasiões, está interessado no exame do direito penal. Gerald Dworkin, por sua vez, amplia a
análise e não se atém prioritariamente no direito penal. Ver: FEINBERG, Joel. Harm to others..., p.3;
DWORKIN, Ronald, A virtude..., p.290-291; DWORKIN, Gerald, Paternalism: some..., passim.
250
Optou-se por não empregar a palavra bem-estar no contexto do paternalismo, uma vez que ela pode ser
objeto de incompreensões e ambiguidades. Muito do atual cunho pejorativo da expressão paternalismo
jurídico advém de críticas feitas por aqueles que Valdés denominou de neoconservadores, que se opõem
ao Estado de Bem-Estar Social e também aos direitos sociais, por considerá-los frutos de injustificáveis
medidas paternalistas. Nesta tese, que versa prioritariamente sobre direitos individuais, não cabe penetrar
no intrincado debate acerca da justificação dos direitos sociais, da extensão de sua jusfundamentalidade,
tampouco de sua justiciabilidade. Mas é de extrema relevância desnudar alguns elementos quanto ao
paternalismo e os direitos sociais. Em primeiro plano, as medidas de proteção aos direitos sociais não são
desenhadas para proteger um grupo contra si mesmo contra a sua vontade. Em geral, são medidas
endossadas pelo grupo que tem o seu bem-estar protegido, representando conquistas históricas de tais
grupos em face de outros. Nesse particular, a história dos direitos sociais é muito diferente daquela dos
direitos individuais, e a interpretação deve atentar também a esses elementos históricos. Além disso,
como bem anota Gerald Dworkin, a estratégia de grupo é muitas vezes necessária para que se possa
angariar o que se pretende. E isso seria uma característica dos chamados direitos sociais (o autor usa a
ideia dos contratos de Ulisses, nos quais o próprio indivíduo ou grupo pretende sua autocontenção).
Paulette Dieterlen crê ser necessário manter a atenção à diferença entre políticas paternalistas e políticas
de justiça distributiva, tanto quanto entre integração cultural e desenvolvimento social. Ver: DWORKIN,
128
Em quarto lugar, o paternalismo jurídico serviria como justificação a constrições
de posições subjetivas do direito geral de liberdade em sentido estrito em casos nos
quais o princípio liberal do dano, mediado pelo brocardo volenti non fit injuria, não
incidir. Fica marcado, então, que não há justificação na proteção de intrusões
injustificadas em direitos de terceiros (ou risco de intrusão). Se essa justificação existir,
não se está diante do paternalismo jurídico, mesmo que se trate de condutas
autorreferentes.
Gerald, Paternalism: some…, p.109-111; DIETERLEN, Paulette. Paternalismo..., passim; VALDÉS, Op.
cit., p.155-156. Em sentido oposto: NOZICK, Op. cit., passim.
251
É muito controversa a questão do endosso ou do consentimento a posteriori. Na tentativa de justificar
o paternalismo jurídico, poder-se-ia recorrer à ideia de um consentimento ou endosso hipotético ou
posterior da pessoa ou do grupo sobre quem o paternalismo é empregado. A via é bastante tortuosa, pois
parte do pressuposto de que o indivíduo não compreende o bem que lhe é feito, mas compreenderá no
futuro. Tal premissa é, em si mesma, frágil, pois desconsidera a habilidade de compreensão e de escolha
de indivíduos ou grupos. Além disso, pode ser que tal consentimento ou endosso jamais se apresente, ou
ainda que seja manipulado pela eliminação de alternativas. Aqui, Ronald Dworkin, com propriedade,
afirma que devem existir restrições ao endosso, senão o paternalismo poderia se justificar até mesmo por
lavagem cerebral ou por processos químicos. Afirma o jusfilósofo: “Não melhoraríamos a vida de
ninguém, mesmo que a pessoa endossasse a mudança que realizamos, se os mecanismos empregados
diminuíssem sua capacidade de analisar os méritos críticos da mudança de modo reflexivo”. Porém, em
situações bem específicas, e por curto intervalo, seria uma hipótese aceitável – paternalismo cirúrgico
(e.g., casos de drogadição). Ver DWORKIN, Ronald, A virtude..., p.299 e ss. (especialmente os
Capítulos 5 e 6, intitulados A comunidade liberal e A igualdade e a vida boa, respectivamente). Sobre o
tema, Infra, Capítulo 3, item 3.2.2.3.
129
aplicado a indivíduos ou grupos que, uma vez informados, são considerados
hábeis a tomar decisões252.
(b) Paternalismo duro e débil: o paternalismo débil refere-se à
interferência com os meios disponíveis para que um indivíduo atinja seus
fins, se for provável que certos meios distanciem-no de seus fins. Já o
paternalismo duro movimenta os fins selecionados pelos indivíduos,
entendendo que eles podem estar confusos ou enganados quanto a seus
próprios fins253.
(c) Paternalismo puro e impuro: O paternalismo puro ocorre quando o
indivíduo ou grupo que tem sua liberdade constrita é o mesmo cujo bem é
pretendido. Já no paternalismo impuro, os indivíduos ou grupos que têm sua
liberdade constrita não se identificam exatamente com aqueles cujo bem se
promove pela medida – os protegidos podem incluir o grupo, mas não
constituem sua totalidade254.
Essa tipologia conduziu a um consenso bastante significativo no que toca à
aceitação do paternalismo fraco, dada a sua aplicação a indivíduos cuja habilidade para
tomar decisões – as habilidades da agência -, é (ou está), por razões plausíveis,
diminuída ou até ausente. Entretanto, o paternalismo forte já não encontra aceitação,
salvo em casos excepcionais, como será visto nos tópicos que seguem. Quanto ao
paternalismo débil e duro, há debates acerca da sua possibilidade quando se leva em
conta erros de fato cometidos pelos indivíduos (e.g., acreditar que o tabaco não faz mal
à saúde por conhecer alguns fumantes longevos). Da mesma forma, debate-se sua
impraticabilidade quando se consideram questões valorativas (e.g., conhecer os
malefícios causados pelo tabaco, mas adotar uma atitude hedonista por convicção)255.
252
Essa classificação é atribuída a Joel Feinberg. FEINBERG, Legal..., p.17. Ver também: DWORKIN,
Gerald, Paternalism: some..., p.107-108.
253
No caso do paternalismo débil, verifica-se o que um indivíduo prefere. Se ele efetivamente prefere a
segurança à conveniência, pode ser compelido a usar o cinto de segurança, pois o cinto é o meio mais
adequado para angariar o fim realmente pretendido. Porém, se um indivíduo prefere a sensação de
liberdade proporcionada por usar uma motocicleta sem capacete à segurança, e mesmo assim é obrigado a
usar, tratar-se-ia de paternalismo duro. Gerald Dworkin menciona que existe uma diferença entre o que
denomina um erro de fato e um erro quanto a valores, oferecendo o exemplo nozickiano de uma pessoa
que decide pular de uma janela. Se ela o faz porque pensa que assim irá voar, há um erro de fato. Se ela o
faz por convicção (e.g., por um ideal), há valores em jogo. DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.30-31.
254
Um exemplo de paternalismo impuro seria a proibição de produção, venda e comercialização de
tabaco. DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.22. Tasmbém no contexto da morte com intervenção ele pode
se apresentar nas duas formas, caso a proibição da limitação consentida de tratamento, da eutanásia e do
suicídio assistido seja justificada somente em argumentos paternalistas. Aos pacientes, seria o
paternalismo puro. Aos médicos e demais profissinais da saúde, impuro.
255
No número da Revista Doxa dedicado ao paternalismo, Ernesto Garzón Valdés, um fumante,
considerava um inaceitável ato de paternalismo a proibição do tabaco, ao passo que os outros estudiosos
assumiram uma opção mais cautelosa a respeito, mencionando, inclusive, que a posição de Valdés devia-
se ao fato de ser ele um fumante convicto.
130
importante acerca da aceitação do paternalismo fraco. Expostos os tipos de
paternalismo, passa-se à descrição dos argumentos contrários e favoráveis à aceitação
do paternalismo forte, débil, duro, puro e impuro.
2.3.2.1.2 Os argumentos
131
constitucional contemporânea há um intenso debate entre os chamados liberais e os
comunitaristas256. O paternalismo jurídico situa-se no arco liberal, não no comunitarista,
pois a “unidade de agência”, no paternalismo jurídico, está com os indivíduos, ao passo
que no comunitarismo essa “unidade de agência” se dilui e passa a ser a comunidade. O
comunitarismo parte de outro pressuposto de sujeito moral, que torna supérfluos muitos
debates acerca do paternalismo jurídico257. A distinção é relevante do ponto de vista
teórico, dadas as concepções de sujeito que lhe são subjacentes e as construções
argumentativas de cada uma. Porém, do ponto de vista prático, do resultado a que
chegam, elas podem confundir-se.
256
Na filosofia constitucional contemporânea, são identificáveis diversos marcos teóricos relevantes,
entre eles, o libertarianismo, situado em um extremo do espectro liberal, os liberais, os liberais
igualitários (que podem figurar no outro extremo do espectro liberal), as teses do reconhecimento (que
podem ser conciliáveis com o marco liberal ou não), o utilitarismo, o republicanismo cívico, a democracia
radical e o comunitarismo, o qual, assim como o marco liberal, também possui variações, podendo ser
mais ou menos intenso. Existem os marcos discursivos, em diversas ocasiões conciliáveis com algumas
versões liberais moderadas e com teses de reconhecimento. Há também as teses feministas e a chamada
ética da virtude. Muitos desses marcos deitam raízes em fontes filosóficas não novas, relidas e
remoldadas, como o pensar kantiano, o aristotélico-tomista, o benthaminiano e o hegeliano. Para uma
visão panorâmica sobre o assunto: KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma
introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
257
A diferenciação entre níveis de integração comunitária, unidade de agência, regra da maioria,
paternalismo jurídico, republicanismo cívico e comunitarismo está muito bem explicitada em:
DWORKIN, Ronald, A virtude..., p.292 e ss.
258
Na sua famosa contenda com Lord Devlin, Hart critica a psicologia milliana, qualificando-a de
ultrapassada. Esse entendimento leva-o a aceitar o paternalismo jurídico – por ele concebido como a
“proteção das pessoas contra si mesmas” – como uma “perfectly coherent public policy”. Porém, o
conceito de Hart confina-se a questões físicas (e.g., saúde), econômicas (e.g., questões redistributivas) ou
mesmo psicológicas (e.g., uso de entorpecentes), passíveis de comprovação. Hart diferencia o
paternalismo jurídico do moralismo jurídico, que seria imposição da moralidade como tal, isto é, o
emprego do aparato estatal para combater a imoralidade em si, com apoio na moralidade positiva (em
detrimento da moralidade crítica). Em sendo assim, não haveria justificação para o moralismo jurídico, ao
passo que haveria para o paternalismo jurídico. HART, Law..., p.25-34.
259
Ver, por exemplo: FEINBERG, Legal..., p.13; DWORKIN, Ronald, A virtude…, p.332-333
132
A crítica do isolamento egoísta é incrementada quando se acreditar que é
possível identificar um caráter objetivo no bem (ou, pelo menos, quanto a algumas de
suas parcelas). Ora, se a sociedade política conhece os malefícios de certos
comportamentos, ainda que autorreferentes ou remota e indiretamente heterorreferentes,
consentidos ou autoinfligidos, por que não proteger os indivíduos, ainda que
coercitivamente? Se for possível auxiliar os indivíduos a serem mais felizes ou a
atingirem os seus reais interesses, por que não empregar o aparato jurídico coercitivo
para tanto? Não seria exatamente uma ação ordenada para sociedade política agir no
sentido de criar laços de solidariedade entre os indivíduos? Em um patamar menos
elevado, a pergunta também poderá ser a seguinte: Por que permitir que certas pessoas
se comportem de forma a causar ônus futuros para os demais? Parece que isso exigiria
que, quando o ônus efetivamente surgisse, os demais teriam que optar pela indiferença,
no sentido da expressão: “ele fez a sua própria cama”.260
260
FEINBERG, Legal..., p.13.
261
Ao comparar esse argumento com aquele forjado por Mill, vê-se que, atualmente, a admissibilidade do
paternalismo é que é sustentada por utilitaristas. Dan Brock manifesta com clareza que, quanto ao
paternalismo, uma vez que questões de fato são postas à parte, “we encounter old familiar antagonists:
on the one side, those who appeal to a cost/benefit, or general consequentialist calculus in support of the
interference, and, on the other, those who resist the interference with an appeal to a general right to
liberty, self-determination or autonomy. And this in turn suggests that the dispute can be finally settled
only by settling the adequacy of a general consequentialist moral theory in comparison with theories that
hold that persons have basic moral rights that consequentialist considerations do not, at least sometimes,
justify infringing”. As palavras de Brock podem parecer confusas, pois um dos argumentos de Mill contra
o paternalismo era justamente o utilitarismo. Entretanto, os estudiosos mais recentes do tema do
paternalismo convergem bastante quanto ao equívoco do pensar milliano neste aspecto, ou seja, os
cálculos de utilidade podem se mostrar favoráveis ao paternalismo jurídico. Ver: BROCK, Paternalism...,
p.237. Sobre o argumento utilitarista de Mill, ver: VALDÉS, Op.cit., p.158-159.
133
paternalismo jurídico, embora formulado por razões benevolentes, desconsidera a
habilidade dos indivíduos de assumirem o seu próprio destino e de fazerem as suas
escolhas de vida, de sorte que impede ou dificulta, sob o marco da coercibilidade
jurídica, o exercício de poisções subjetivas de direitos em nome da proteção dos
próprios titulares. A tutela jurídica das liberdades (seja o direito geral ou outros direitos
específicos de liberdade) possui, é fato, como premissa a unidade de agência individual.
Mas isso não significa, segundo muitos argumentos antipaternalistas fundados na
liberdade, que a sociedade política não possa, por outros meios, prevenir determinados
comportamentos autorreferentes. Ou seja, não se presume um descaso nem a quebra de
laços de solidariedade que podem unir os indivíduos, tampouco o marco liberal é
incapaz de admitir que os indivíduos sejam “todos, evidente e profundamente, criações
da comunidade”262. Destarte, o argumento não precisa ir tão longe a ponto de sustentar o
descaso para com os demais membros de uma sociedade política. Ele apenas nega que o
direito geral de liberdade (ou outros direitos específicos de liberdade) possam ser
constritos coercitivamente em nome do paternalismo jurídico. Aliada a esta linha de
pensar, tem-se a noção de que indivíduos tutelados paternalisticamente aderem a
determinados comportamentos por ausência de alternativa ou por temor à sanção, o que
os tornaria menos preparados para o exercício da liberdade e da moralidade crítica263.
262
Dworkin, Ronald, A virtude..., p.305. Também John Rawls, que concebe o sujeito como capaz de
fazer as suas próprias escolhas de bem, admitiu sua inserção na sociedade e na comunidade. RAWLS,
Justiça como..., p.26 e ss.
263
Feinberg desenvolve este argumento. A terminologia “moralidade positive” e “moralidade crítica” foi
tomada de empréstimo de H.L.A. Hart: “To make this point clear, I would revive the terminology much
favoured by the Utilitarians of the last century, which distinguished ‘positive morality’, the morality
actually accepted and shared by a given social group, from the general moral principles used in the
criticism of actual social institutions including positive morality. We may call such general principles
‘critical morality’ […]”. HART, Law..., p.20.
264
Gerald Dworkin discute a temática do conhecimento científico e da autonomia. Para alguns estudiosos,
se existir comprovação científica de um fato ou grupo de fatos (nas ciências ditas duras), não haveria
espaço para o exercício da moralidade a seu respeito. Gerald Dworkin enfrenta com seriedade essa
premissa, apresentando razões deveras convincentes sobre suas falhas. Muitas comprovações científicas
são valoradas pelas pessoas, que refletem e agem moralmente quanto a elas. Em um exemplo extremo
(que não é do autor), pode-se dizer que o estado da arte científico comprova a impossibilidade de
ressurreição, mas milhões de cristãos seguem crendo que ela ocorreu. Ver: DWORKIN, Gerald. The
134
sentido, o paternalismo jurídico poderia conduzir à padronização, à domesticação de
corpos e de mentes, convertendo políticas estatais em doutrinas morais abrangentes, que
se irradiariam a todos os espaços da vida do indivíduo ou grupo e minariam o
pluralismo, além de impactar estilos de vida minoritários265.
theory and practice of autonomy. Cambridge: Cambridge University, 2001, p.48 e ss. (capítulo
intitulado Autonomy, science and morality).
265
Poderia acontecer, então, não apenas um controle dos modos de pensar, mas também um controle do
corpo, especialmente em um período de grande expansão e influência das ciências médicas, tão intenso
que recebeu o título de medicalização da vida. Não é apenas o marco liberal, adotado nesta tese, que
discute essas questões. Muitos estudos calcados em Michel Foucault labutam com a noção de biopolítica
e de biopoder e buscam compreender a nova ortopedia social, construída a partir do corpo e da saúde.
Sobre o tema, consultar: ORTEGA, F. Biopolíticas da saúde: reflexões a partir de Michel Foucault, Agnes
Heller e Hannah Arendt. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v.8, n.14, p.9-20, set.2003-
fev.2004; SCHRAMM, Fermin Roland. A saúde é um direito ou um dever? Autocrítica da saúde pública.
Revista brasileira de bioética, v.2, n.2, p.187-200, 2006. A expressão medicalização da vida, hoje
muito referida, foi cunhado na década de 1970, por ILLICH, Ivan. The medicalization of life. Journal of
medical ethics. 1975, I, 73-77. Disponível em: http://www.pubmedcentral.nih.gov/picrender.
fcgi?artid=1154458&blobtype=pdf.
135
sentissem livres para adotar outras condutas que não adotariam caso se mantivessem
sedentários, como alterar, para pior, seus hábitos alimentares266.
266
O exemplo é de Gerald Dworkin.
267
As comparações foram formuladas com apoio em casos reais e em exemplos utilizados por diversos
autores, que serão trabalhados nos itens e capítulos que se seguem.
268
A concepção de endosso é elaborada por Ronald Dworkin, para quem a ideia de uma vida boa pode ser
trabalhada a partir de dois prismas, o cumulativo e o constitutivo. No primeiro, existem alguns elementos
que tornam uma vida boa. Uma vez que possua tais componentes, a vida será boa, quer a pessoa
considere-a boa ou não. Se considerar (criticamente), tanto melhor. Então, o endosso do indivíduo sobre o
caráter da sua vida é, nesse modelo, “o glacê do bolo”. No modelo constitutivo, não há componente que
possa contribuir para uma vida boa se o indivíduo não endossar. O endosso não é qualquer aceitação, mas
uma aceitação crítica, fundada na análise dos méritos críticos e de modo reflexivo. Com isso, Dworkin
não quer dizer que a perspectiva constitutiva seja “a cética, de que a vida de alguém só é boa ou ruim no
sentido crítico quando e porque essa pessoa acha que é boa ou ruim. A perspectiva constitutiva nega
apenas que algum evento possa tornar melhor a vida de uma pessoa contra sua própria opinião contrária”.
Essa concepção foi mais tarde ligada, por Dworkin, ao conceito de dignidade humana, na abertura de sua
obra Is democracy possible here?. A dignidade ganhou conotação do sentido constitutivo. Aproxima-se,
de certa, ao que nesta tese se denomina dignidade como autonomia (Infra, neste Capítulo). DWORKIN,
Ronald, A virtude..., p.301; p.348. DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? Princeton e
Oxford: Princeton University Press. 2006, p.9 e ss.
136
Além disso, Feinberg lembra que ninguém é integralmente racional o tempo
todo e em todos os campos da vida. Isso traz à baila o problema ad infinitum do
argumento em prol do paternalismo jurídico. Seu efeito cascata é muito provável, pois,
uma vez que sejam proibidas certas atividades e produtos, o uso do álcool (na medida
em que se mostra autorreferente) e do tabaco, por exemplo, por que não proibir o fast
food, as frituras, os refrigerantes, o banho de sol em horários nocivos e muitos esportes
radicais?269 O efeito dominó traz em si o problema do desvio e da possibilidade de
abuso do argumento paternalista como justificação para a ablação de direitos, tanto
quanto a possibilidade de seu emprego ser discriminatório.
269
FEINBERG, Legal…, p.3-4; DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.19-35.
270
Sobre o argumento da igualdade: VALDÉS, Op. cit., p.161 e ss.
137
premissas argumentativas adotadas para a sua justificação. Existem propostas diversas
para a justificação do paternalismo jurídico entre os liberais moderados, muitas delas
ancoradas em elementos comuns271.
271
Para esclarecer, algumas proposições serão sumariadas. Gerald Dworkin entende que o paternalismo
jurídico será justificado em dois grupos de condições: (a) condições cujo foco é o agente: (a.1) quando
estiverem ausentes as habilidades cognitivas ou emocionais exigidas para fazer uma escolha racional
(e.g., crianças); (a.2) exame da genuinidade do consentimento quando se tratar de indivíduos hábeis a
fazer escolhas (existe aqui certa semelhança ao padrão de voluntariedade de Feinberg); (a.3) os contratos
de Ulisses, nos quais as pessoas pretendem autolimitar-se para seu próprio bem e para atingir seus
próprios objetivos; (a.4) ausência ou deficiência de informação; (a.5) sopesamento errôneo de fatos, não
extensível ao sopesamento errôneo de valores; (b) condições cujo foco é o caráter da decisão: devem
ser ponderados a reversibilidade da decisão, seu impacto futuro e a natureza e duração da privação da
liberdade. Nessa ponderação, o ônus deve ser forte e incumbe a quem pretende impor a medida
paternalista. Além disso, o ônus é bifurcado; atua sobre os meios que podem ser usados e exige a escolha
do meio menos lesivo. Em seu texto de reformulação, Gerald Dworkin não trabalha com uma ideia ampla
de liberdade, mas com a autonomia, o que reduz os casos que precisam de justificação. Sua solução é uma
espécie de balancing of interests para que se encontre a justificação do paternalismo nos três grupos de
casos que expõe (casos de segurança; casos de decisão coletiva e casos de escravidão). Ernesto Garzón
Valdés, por seu turno, considera que, uma vez que as medidas paternalistas envolvem uma desigualdade,
elas somente se justificam se atuarem para diminuir tal desigualdade. Após aderir à distinção de Gerald
Dworkin entre o sopesamento de fatos e o sopesamento de valores, Valdés segue a proposta de Wickler,
segundo a qual há competências básicas (Cb), para vida cotidiana, e competências específicas (Cr), para
atos especiais e mais complexos. A ausência ou a deficiência em Cb justificam o paternalismo jurídico
pelo menos nos casos seguintes: (a) quando os elementos relevantes da situação são ignorados ou
desconhecidos; (b) quando a força de vontade está tão afetada que oblitera a habilidade para decidir (e.g.
drogadição); (c) quando as faculdades mentais estão reduzidas por alguma razão; (d) quando se está sob
coação ou ameaça; e) quando se estima um determinado bem, não se deseja colocá-lo em perigo, mas se
nega os meios para isso. Nessas hipóteses, o indivíduo estaria em situação de incompetência básica (Ib), o
que o coloca numa igualdade negativa, que pode ser temporária ou permanente, setorial ou total. Para que
se determine uma Ib deve existir um fundamento objetivo, calcado em relações causais seguras. Além da
existência de uma Ib, o paternalismo somente será justificado se o intuito for benevolente e destinado a
superá-la, na medida do possível. Há, pois, duas premissas, uma empírica – determinação da Ib – e outra
normativa, o caráter benevolente. Ver: DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.28 e ss.; DWORKIN, Gerald,
Paternalism: some..., p.107 e ss.; VALDÉS, Op. cit., passim. Dan Brock, em que pese adotar, de modo
geral, uma teoria moral baseada em direitos, entende que o paternalismo jurídico justificado pode ser
guiado por premissas consequencialistas, sem que se plante uma contradição. BROCK, Paternalism...,
p.238 e ss. Para Manuel Atienza, o paternalismo jurídico será justificado se e somente se: a) existir uma
incompetência básica; b) a medida buscar um benefício; c) for racional presumir que o indivíduo
consentirá com a medida quando estiver em condições de fazê-lo. ATIENZA, Op. cit., p.203.
138
da verificação da capacidade de “deliberação” (agência) de um indivíduo ou grupo
quando escolhem condutas autorreferentes que, aprioristicamente, seriam autolesivas.
Não se trata de um julgamento valorativo da decisão tomada nem dos meios escolhidos
para persegui-la, mas de um exame não circular de aferição da habilidade de agência –
compreensão do que está a fazer e das consequências desses comportamentos – e da
maturidade da escolha272.
272
Para Feinberg, a voluntariedade não é uma mera escolha. A plena voluntariedade refletirá os valores
do indivíduo; trata-se de deliberação. O autor explicita que a voluntariedade é uma questão de grau,
variável entre a plena voluntariedade a plena involuntariedade. Grande parte das decisões situa-se,
segundo Feinberg, em uma zona cinzenta entre um e outro extremo. FEINBERG, Legal..., p.7.
273
Como tese de aplicação, Infra, Capítulo 3, item 3.2.1, acerca do consentimento e o abortamento na
experiência constitucional estadunidense.
274
É que o dispõe a Resolução CFM nº1.652/2002. BRASIL. CFM. Resolução nº1.652/2002. Op.cit.
275
FEINBERG, Legal…, p.9. No original: “The greater the presumption to be overridden, the more
elaborate and fastidious should be the legal paraphernalia required, and the stricter the standards of
evidence. […] The point of the procedure would not be the wisdom or worthiness of a person’s choice,
but rather to determine whether the choice really is his”.
139
ela for substancialmente involuntária ou quando a intervenção temporária for necessária
para que se possa estabelecer se ela é voluntária ou não276.
276
FEINBERG, Legal..., p.9-10. Ao longo do seu texto, Feinberg discute diversas dificuldades que
podem aparecer na aplicação do padrão de voluntariedade, que ele intitula hard cases. Além do padrão de
voluntariedade, Feinberg adota outros pontos que justificariam medidas paternalistas. Ressalta-se que
Feinberg suavizou sua concepção do padrão de voluntariedade. No seu primeiro artigo sobre o
paternalismo jurídico, o padrão era demasiadamente forte e exigente. Nas obras seguintes, o padrão sofreu
atenuações.
140
2.3.2.2 Paternalismo jurídico e institutos afins
277
FEINBERG, Harm to others..., p.26-27.
278
Feinberg diferencia o paternalismo jurídico (legal paternalism) do paternalismo que confere benefício
à pessoa paternalizada (benefit-conferring paternalism). Nesta tese, os dois conceitos de Feinberg são
tratados apenas como paternalismo jurídico (seja para evitar o dano, seja para promover um benefício).
279
Para o autor, o princípio do dano, mediado pela máxima volenti, e o princípio da ofensa, devidamente
qualificado e detalhado, constituem a justificação liberal para o emprego da coercibilidade pela via do
Direito Penal. FEINBERG, Harm to others..., p.26.
141
pelo paternalismo, para evitar o dano consentido – quer físico, psicológico ou
econômico; pelo moralismo jurídico – a prostituição seria um ato imoral em si; ou pelo
perfeccionismo – prostituir-se ou contratar com alguém que se prostitui demonstraria
um caráter moralmente não elevado. Panoramicamente, pode-se dizer que os liberais
moderados recusam as justificações calcadas no moralismo e no perfeccionismo, por
razões análogas às apresentadas ao paternalismo e também por outras mais fortes, pois o
conceito de dano é aceitável, mas a ideia de elevação do caráter moral alheio e a
classificação de atos como inerentemente imorais são muito mais fortes do que o
paternalismo. Então, diversamente do paternalismo, os liberais moderados em geral não
procuram eixos para o moralismo e o perfeccionismo jurídicos justificados.
280
DWORKIN, Gerald. Moral paternalism. Law and philosophy, v.24, p.305-319, 2005.
142
sensu, a rejeição do paternalismo tem o condão de levar à aceitabilidade da disposição
em muitos casos.
281
A distinção entre as categorias eutanásia, suicídio assistido e ortotanásia encontram-se no Capítulo 4.
143
E o cônjuge que resolve trair o outro. É livre?
Após consumada a traição tem como voltar atrás? [...]
Será que um doente em situação de terminalidade de vida tem
condições de manifestar validamente a vontade? Mesmo depois de
chegar o médico, aquele cara que sabe tudo e tá ali para salvar, dizer
que não tem mais jeito? Que a medicina, para o caso dele, lava as
mãos? Que agora, só milagre?
Será que o doente pode livremente, validamente, escolher que se
suspenda o tratamento ou que se desliguem os aparelhos para morrer
em paz?
E os parentes?
A esposa, o marido, a mãe, o pai, a filha, o filho, vendo o ente querido
suportar as mais terríveis dores, os mais atrozes sofrimentos, após o
médico dizer que para a medicina não tem mais jeito, será que alguém
seria livre, poderia manifestar livre e validamente a vontade de
autorizar a que se suspendam os tratamentos e deixe morrer em paz,
ou em casa? [...]
Respondo peremptoriamente que NÃO. [...]
Cito de memória um trecho, de quando estudava bioética na
Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande, Mato Grosso
do Sul:
Somente é livre aquele que escolhe o bem, pois o que não o
escolhe, o bem, está antes dominado por paixões vícios, depressão
ou influído por algo que lhe turve a visão do que é liberdade.
Não há liberdade quando não se escolhe algo que não seja o bem.
Não eram livres os que escolheram se drogar pela primeira vez e
viciaram-se, os que resolveram fumar pela primeira vez e viciaram-se;
os que resolveram beber pela primeira vez e não conseguiram mais
parar.
Todos esses viram sua pseudoliberdade transmudar-se em uma prisão,
pelas paixões, pelos vícios.
MAS TIVERAM UMA SEGUNDA CHANCE, uma possibilidade de
reconhecer que a escolha foi errônea, pois não-livre?
E os demais?
Não eram livres os pais testemunhas de Jeová. Eram dominados por
um sentimento religioso errôneo, que coloca o bem maior, a vida,
a serviço de interpretações outras da bíblia.
Era livre a garota canadense? Não! Definitivamente não! Tinha a
liberdade turvada, da mesma forma, por um entendimento errôneo
do que poderia ser o próprio corpo, sagrado.
JAMAIS serão livres os pacientes, sob as torturas de dores
lancinantes, sofrimentos atrozes, depressões, pânicos. É mais fácil,
muito mais fácil, fugir. Optar por morrer.
JAMAIS serão livres os parentes dessas pessoas doentes, vendo os
entes queridos padecerem as mais terríveis dores, ou ligados a
aparelhos pelo resto de suas vidas. Incentivados pelos médicos, sem
dúvida, irão pelo caminho mais fácil: LIVRAR-SE DO PARENTE-
PROBLEMA, pois é isto que o ente querido se torna. [...]
NÃO HÁ LIBERDADE QUANDO NÃO SE ESCOLHE O BEM.
144
E quem escolhe morrer jamais escolherá o bem282.
Na extensa peça exordial, o Procurador finaliza sustentando a incapacidade do
doente terminal para tomar decisões, bem como de seus familiares. Assinala que se faz
necessária a chancela do Ministério Público e do Poder Judiciário para que decisões de
final de vida possam ser tomadas, ou seja, é preciso tutelar o doente terminal e sua
família para seu próprio bem. A linha-mestra do argumento está no lema jacobino de
que a liberdade consiste em escolher o bem. O problema, como já foi exposto, está na
definição do bem e na desconsideração da liberdade individual, do pluralismo e da
igualdade. No trecho narrado, há valorações substantivas acerca de escolhas de estilos
de vida e paira a crença de que é viável ao Estado, pela via coercitiva, impedir que esses
caminhos sejam trilhados. O Procurador considera límpido que impedir os indivíduos de
escolher o mal (heteronomamente definido) pela coercitividade estatal liberta-os, ou
seja, autentica medidas estatais paternalistas, com vistas ao bem do próprio indivíduo
coagido, pressupondo, para tanto, que existe incapacidade (no sentido civilista
brasileiro) quando a escolha não é a acertada. É prioritário perceber que não se trata de
uma avaliação da habilidade decisória, mas do pedido de incapacidade pelo resultado da
escolha que os indivíduos fazem, isto é, não se está diante de algo similar ao padrão de
voluntariedade de Feinberg.
É perceptível que a ideia de liberdade foi totalmente confinada à de bem; que ser
livre significa, exclusivamente, optar pelo bem, e que esse bem possui um caráter
determinável objetivamente e de modo externo ao indivíduo que decide. Em assim
sendo, o uso do álcool, do tabaco, de drogas, o exercício de uma vida sexual desregrada
e da traição conjugal são comportamentos não-livres, pois não traduzem a escolha do
bem. Quem os escolhe, está sob o influxo de visões turvadas. E o argumento segue,
sustentando, inclusive, que há pessoas que possuem concepções incorretas sobre seu
próprio corpo e sobre a interpretação de textos religiosos, como a Bíblia. Nesta etapa,
clara é a confluência do argumento paternalista com o moralismo jurídico, já que alguns
comportamentos são tarjados, a priori, como inerentemente imorais. Os exemplos dados
na peça também mostram uma das críticas ao paternalismo jurídico – seu cunho ad
infintum. É incrível a facilidade com que se menciona o tabaco, o álcool, a vida sexual,
a traição conjugal, a percepção do próprio corpo e a leitura equivocada da Bíblia como
282
BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. ACP nº2007.34.00.014809-3. Petição Inicial
(Wellington Divino Marques de Oliveira – Procurador Regional dos Direitos do Cidadão/1ª Região).
Disponível em: http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/pdfs/ACP%20Ortotanasia.pdf. Os textos
em caixa alta são do original. Os grifos não constam do original.
145
atividades condenáveis. E o salto de um para o outro é natural, a narrativa simplesmente
prossegue entre um e outro caso como se fossem análogos e indenes à controvérsia. A
pergunta que fica é: se há uma leitura equivocada da Bíblia, que o Estado pode (e sabe)
determinar, não haverá uma leitura equivocada de textos políticos? O que é uma vida
sexual desregrada – a prostituição, o sadomasoquismo, a homossexualidade? Por que a
traição conjugal representa um ato de não-liberdade ou de pseudoliberdade?283
283
Não se está a sustentar, em hipótese alguma, que todos esses comportamentos sejam ideais e
desejáveis do ponto de vista exclusivamente moral. Sabidamente, muitas teorias morais, como a
deontologia kantiana, a ética da virtude, o utilitarismo, não aceitariam tais comportamentos – quer pelo
ato em si, quer pelo agente, quer por suas consequências. O que se está a indagar é o uso da coercitividade
– em sentido amplo – para desencorajá-los e proibi-los em sociedades democráticas e pluralistas.
284
BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Recomendação nº01/2006 – WD – PRDC.
(Wellington Divino Marques de Oliveira – Procurador Regional dos Direitos do Cidadão/1ª Região).
Disponível em: http://prdc.prdf.mpf.gov.br/legis/docs/exfile.2006-11-21.7242563592/attach/REC%2001-
2006%20CFM.pdf.
146
direito à vida é, em linha de princípio, indisponível. Para fazer essa sustentação, porém,
serão evitados os argumentos paternalistas, moralistas e perfeccionistas. Na vertente de
McConnell, serão tecidos argumentos em prol da indisponibilidade – em linha de
princípio – combinados ao direito geral de liberdade. Se, por ventura, o argumento
paternalista for inescapável, sua adoção se dará mediante criterioso exame de sua
admissibilidade no marco teórico adotado – o liberalismo moderado.
285
Para uma revisão profunda do tema, inclusive quanto a documentos anteriores à Declaração Universal
de Direitos Humanos de 1948, consultar: McCRUDDEN, Christopher. Human dignity and judicial
interpretation of human rights. The European Journal of International Law, v.19, n.4, p.664-671,
2008. O autor destaca que, em documentos mais atuais, não apenas a expressão dignidade humana passou
a figurar nos preâmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos, como também foi
introduzida na parte substantiva dos textos. Outrossim aponta que, nos documentos regionais, a expressão
figura nos preâmbulos dos principais instrumentos inter-americanos, árabes, africanos e alguns europeus.
O autor afirma: “[…] thus appearing to demonstrate a remarkable degree of convergence on dignity as a
central organizing principle”.
286
Ver: SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma
compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).
Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005, p.16 e SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos
147
se espera, nem se deseja, que ela seja um dia reduzida a um conceito fechado e
plenamente determinado, mas assume-se que em muitas órbitas “é em seu nome que
alguns reivindicam hoje a legitimidade de comportamentos que outros recusam devido à
intangível dignidade”287.
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6.ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008, p.27.
287
MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga
incompleta em torno de um tema central. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade:
ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.61-
62.
288
MILLNS, Op.cit.: “More particularly, it appears that the elasticity of dignity discourse with its
capacity to pull in many directions means it can be invoked by all protagonists (the elderly and infirm,
their families, the medical team, the state) to justify all outcomes (preserving life and seeking death). Its
duplicitous nature, therefore, when combined with the claims and counter-claims which infuse rights
discourse, appears ultimately to undermine the cause of those who try to use it to assert their right to die
with dignity”.
289
NOVAIS, Renúncia..., p.327-328.
290
MAURER, Op. cit., p.62.
148
seja um mero axioma que oblitera debates, sem que se possa perscrutar quais os
conteúdos que a ele são conferidos.
291
A expressão refere-se à contribuição de Ingo Sarlet, para quem a dignidade possui dimensões: (a)
ontológica; (b) relacional e comunicativa; (c) de limite e de tarefa; (d) histórico-cultural. SARLET, As
dimensões..., p.13-43.
292
A expressão refere-se à contribuição de Maria Celina Bodin de Moraes, para quem a dignidade
envolve quatro elementos: (a) a liberdade; (b) a integridade psico-física; (c) a igualdade; (d) a
solidariedade. MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico
e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e
direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.105-147.
293
MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p.109. Virgílio Afonso da Silva refere a “banalização do
uso da garantia da dignidade da pessoa humana”. SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo essencial...,
p.254. Roberto Andorno menciona que há denúncias de um uso inflacionário e meramente retórico da
expressão dignidade humana, especialmente quanto às práticas biomédicas. ANDORNO, Roberto. The
paradoxical notion of human dignity. Persona – Revista Electrónica de Derechos Existenciales, n.9,
set. 2002. Disponível em: http://www.revistapersona.com.ar/Persona09/9Andorno.htm.
294
A principal base teórica adotada foi a obra BEYLEVELD, Deryck; BROWNSWORD, Roger. Human
dignity in bioethics and biolaw. Oxford: Oxford University Press, 2004.
149
problemas práticos que envolvem a bioética, como a morte com intervenção e a
reprodução assistida295. Da indefinição, tem-se o apelo à expressão como um mero
slogan, o que, aos olhos da autora, retira a objetividade do debate e pouco acrescenta à
solução de desacordos e dilemas morais.
Por um prisma, parece difícil negar que Macklin tenha razão. O conceito possui,
efetivamente, uma intensa pluralidade semântica e é, no mais das vezes, empregado no
discurso como se seu conteúdo fosse autoevidente. Além disso, há, atualmente, certo
abuso em seu emprego. Haveria, portanto, maior objetividade se a locução fosse um
último recurso, após o esgotamento de argumentos mais densos semanticamente.
Entretanto, os críticos de Macklin – e não foram poucos – contra-argumentaram
295
Ao fazer um mapeamento histórico do conceito de dignidade humana, Rieke Van der Graaf e Johannes
J. M. Van Delden demonstram que uma das acepções atuais é justamente a denegação da utilidade do
conceito, citando, além dos de Macklin, os estudos de Helga Kuhse. Ver: GRAAF, Rieke Van Der;
DELDEN, Johannes J. M. Van. Clarifying appeals to dignity in medical ethics from an historical
perspective. Bioethics, v. 23, n.3, p.151-160, Mar.2009.
296
Também informam a origem religiosa do conceito: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human
dignity..., p.10.
297
Ver: MACKLIN, Ruth. Dignity is a useless concept. British Medical Journal, v.327, p.1419-1420,
2003. Na mesma linha, a autora expressou seu pensar na obra sobre o duplo padrão na pesquisa
biomédica: “Who could be opposed to respect of dignity? No one is likely to content that human beings
should not be treated with respect for their dignity. However, the concept is so vague it is nearly devoid
of meaning without further elucidation. That makes appeals to human dignity specially problematic in the
context of understanding and applying claims that invoke human dignity as a basis for actions or policies
of various sorts. Neither scholars nor drafters of national, regional or international guidelines or
declarations appear to have analyzed the concept of human dignity in a way that yields clear criteria for
its application. Yet much discourse from the United Nations organization and European bodies relies on
the vague and imprecise notion of human dignity in formulating guidelines and declarations. ‘Respect for
human dignity’ has in some contexts become a mere slogan, as in the case that cloning is ‘contrary to
human dignity and even ‘a violation of the dignity of the human species’ […]. When challenged to explain
precisely how producing a child by means of nuclear transplantation constitutes a violation of human
dignity, those who make use of this claim turn on the challengers and accuse them of some sort of moral
blindness in failing to recognize the dignity inherent in all human beings”. MACKLIN, Ruth. Double
standards in medical research in developing countries. Cambridge: Cambridge, 2004, p.196-197. É
imperioso salientar que a autora não nega a ideia de que se deve respeitar os seres humanos e a sua
autonomia. Tudo que ela questiona é a ambivalência, as origens religiosas e o uso tão indiscriminado e
acriterioso da expressão dignidade humana, de um modo que conduziu o conceito à inutilidade.
150
salientando que da dificuldade de determinar um conceito não se pode extrair a
impossibilidade. Além disso, sustentaram que a locução dignidade humana possui um
apelo sentimental que poucas outras expressões possuem. O apelo é relevante e não
deve ser descartado por seu cunho sentimental, pois é justamente ele que poderia
conduzir a um sério diálogo a partir da ideia de dignidade, ainda que vaga298. Por fim,
cabe destacar que Macklin parece referir-se a um contexto aplicativo e não a um de
justificação. Ou seja, seu descarte da dignidade como um conceito inútil é o do seu uso
como critério de solução de conflitos e não como elemento de justificação.
298
Vários textos buscaram discutir, relativizar ou negar a posição de Macklin, dentre eles, ANDORNO,
Roberto. La notion de dignité humaine est-elle superflue en bioéthique ? Contrepoint Philosophique.
Mars 2005. Disponível em : www.contrepointphilosophique.ch; ANDORNO, Roberto. Dignity of the
person in the light of international biomedical law. Medicina e Morale. Rivista Internazionale
bimestrale di Bioetica, Deontologia e Morale Medica, v.1, p.91-104, 2005. ASHCROFT, Richard E.
Making sense of dignity. Journal of Medical Ethics, v.31, p. 679-682, 2005. ANJOS, Márcio Fabri dos.
Dignidade humana em debate. Bioética, Brasília: Conselho Federal de Medicina. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/revista/bio12v1/seccoes/seccao04.pdf.
151
elementos. Seu reconhecimento varia em extensão e em relação a seus fundamentos – se
instrumental ao exercício de outros direitos ou se jusfundamental por si. O mínimo
denominador comum parece estar nas teses que advogam a correlação entre a dignidade
humana e o mínimo existencial, isto é, as condições materiais mínimas à existência
humana.
299
A respeito do aspecto material da dignidade humana e seu elo com o mínimo existencial, consultar,
sobre todos: TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. RDA, n.177,
1989, p.20 e ss.; TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na Era dos Direitos. In:
TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999,
p.239 e ss.; BARCELLOS, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da
dignidade da pessoa humana. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008; RAWLS, John. Uma
teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Ingo Sarlet, com justificação diferente daquela de
Ricardo Lobo Torres e assumindo concepção mais ampla da dimensão material, liga a dignidade ao
mínimo existencial, pois implica: “[…] um complexo de direitos e deveres fundamentais que
assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a
lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos
demais seres humanos”. SARLET, Dignidade da pessoa humana e direitos..., p.63 [sem grifos no
original]. Luís Roberto Barroso também alia a dignidade humana ao mínimo existencial: “Dignidade da
pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da
humanidade. O conteúdo jurídico do princípio vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo
aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do
mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência
física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja
sobrevivência, não há dignidade. O elenco de prestações que compõem o mínimo existencial comporta
variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que
inclui: renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um elemento instrumental, que é o
acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos”. BARROSO, Fundamentos
teóricos..., Em uma intensa pesquisa sobre o conteúdo da expressão dignidade humana em decisões de
cortes internacionais e estrangeiras, Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existência
de consenso justaposto no uso da locução. Um dos elementos muito frequentes é exatamente a associação
entre dignidade e as condições materiais mínimas à existência humana. McCRUDDEN, Op. cit., p. 692 e
ss.
152
Em uma tese sobre disposição de direitos fundamentais, pressupor a concretização do
mínimo existencial seria tomar uma via muito fácil e enganosa, semelhante à construção
de castelos na areia. Isto se dá porque, em um país como o Brasil, marcado que é pelas
intensas desigualdades sociais, culturais, econômicas e educacionais, tratar a
disponibilidade sem levar tais diferenças em consideração conduziria à negligência de
aspectos importantes da genuinidade do consentimento, que são essenciais e devem
sempre ser pensados, como será mais bem detalhado no Capítulo 3.
300
Ver: McCRUDDEN, Op. cit., p.656-659; ULLRICH, Dierk. Concurring visions: human dignity in the
Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany.
Global Jurist Frontiers, v.3, n.1, p.4-6, 2003; WALDRON, Jeremy. Dignity and rank. European
Journal of Sociology, v.48, n,2, p.201-237, Aug. 2007; MIGUEL, Carlos Ruiz. Human dignity: history
of an idea. In: HABERLE, Peter (Org). Jahrbuch des öffentlichen Rechts der Gegenwart. Mohr
Siebeck, v.50, p.281-299, 2002 (artigo posteriormente disponibilizado na rede mundial de computadores,
na página pessoal do autor: MIGUEL, Carlos Ruiz. Human dignity: history of an Idea, p.2-4. Disponível
em: http://web.usc.es/~ruizmi/pdf/dignity.pdf); BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity...,
p.51 e ss.
301
Para uma primeira abordagem da ética da virtude, ver: PELLEGRINO, Edmund. Hacia uma ética
normativa para las profesiones sanitárias basada en la virtud. Kennedy Institute of Ethics Journal, v.5,
n.3, p.253-277.
153
da sua ação ou da sua omissão. De maneira simplificada, haveria modelos de caráter a
serem seguidos, de indivíduos que marcaram sua existência pelo agir moral virtuoso,
como Sócrates, Cristo, Gandhi, Mandela, Buda. Cada sociedade ou cultura, segundo os
seus valores compartilhados, expressa os traços de caráter a serem desenvolvidos e
cultivados, para que a dignidade possa florescer. Neste ponto, aparecem os problemas
práticos de conceber a dignidade como virtude. Quanto menos densos forem os valores
compartilhados de uma sociedade, ou quanto mais plurais, mais indeterminado será o
conceito de dignidade. Além disso, há duas constatações de monta: (a) nas sociedades
plurais e livres, a imposição de modelos de caráter ao agente moral de modo
generalizado pode ter uma conotação perfeccionista e mostrar-se inaceitável diante do
pluralismo; (b) ao seguir um ideal de sujeito moral, a dignidade pode mostrar-se um
atributo para poucos, ou ainda um atributo que pode ser perdido302.
302
Deryck Beyleveld e Roger Brownsword esboçam esta concepção de dignidade humana aliada à ética
da virtude. Todavia, a discussão que fazem da dignidade como virtude dá-se em outros termos:
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.58-64.
303
Eles expressam uma complexa compreensão da dignidade humana, partindo dos estudos de A.
Gerwith, cotejados com os labores kantianos. Embora não seja a tese aqui seguida, vale conferi-la na obra
Human dignityin bioethics and biolaw (BEYLEVELD; BROWNSWORD).
304
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.10 e ss.
154
A compreensão da dignidade humana como autonomia está aliada à ideia da
dignidade como fundamento e justificação dos direitos fundamentais e dos direitos
humanos. Ou seja: os direitos fundamentais e os direitos humanos existem e são
protegidos e promovidos em função da e para a dignidade humana, que acaba por
conferir-lhes unidade. Observam-se quatro elementos relevantes para o conceito de
dignidade como autonomia: (a) a capacidade de autodeterminação; (b) as condições e as
circunstâncias para florescimento da capacidade de autodeterminação; (c) a
universalidade; (d) a inerência da dignidade ao ser humano.
305
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.14-15.
306
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.14-15. No mesmo sentido: PIOVESAN,
Flávia. Declaração Universal de Direitos Humanos: desafios e perspectivas. In: MARTEL, Letícia de
Campos Velho (Org.). Estudos contemporâneos de direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2009, p.339; GRAAF; DELDEN, Op. cit., s/p.
155
que um indivíduo fira a dignidade ou os direitos alheios, seguirá portador da sua
dignidade, que deverá ser respeitada. Percebe-se, pois, que o terceiro e o quarto
elementos funcionam juntos, a universalidade está umbilicalmente ligada à inerência da
dignidade.
(a) um direito de ser respeitado como alguém que pertence à classe dos seres
humanos, isto é, como alguém que possui as capacidades distintivas de ser
humano;
(b) um direito (negativo) contra intervenções alheias indesejadas que são danosas
às condições ou às circunstâncias que são essenciais para que alguém floresça
como um humano; e
(c) um direito (positivo) a auxílio e assistência para assegurar as circunstâncias e as
condições para que alguém floresça como um humano309.
O aspecto substantivo mencionado pelos autores será tratado adiante, pois é ao
seu sabor que eles traçam críticas e demonstram inconsistências teóricas e práticas na
concepção de dignidade como autonomia. Por ora, serão revisitados estudos nacionais e
307
A expressão dignidade humana incondicionada é utilizada no estudo de corte histórico de Rieke Van
Der Graaf e Johannes J. M. Van Delden, significando que a “dignity is embedded in the nature of all
human beings, regardless of their achievements or the condition they are in”. GRAAF; DELDEN, Op.
cit., p.5. A expressão família humana foi empregada na Declaração Universal de Direitos Humanos de
1948, verbis: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família
humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo
[...]”. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Resolução 217 A
(III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.
308
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.15.
309
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.15. No original: “[…] is articulated as the
general right, held by each human being, to respect (for one’s dignity) by other humans. This right (not to
be treated as one who has no worth ) may then be cashed more specifically as: (a) a right to be respected
as one who belongs to the class of human beings, that is, as one who has the distinctive capacities of
being human; (b) a (negative) right against unwilled interventions by others that are damaging to the
circumstances or conditions that are essential if one is to flourish as a human; and (c) a (positive) right
to support and assistance to secure circumstances or conditions that are essential if one is to flourish as
a human”. Utilizou-se o itálico para a expressão ser humano na alínea (a) porque os autores não
empregam a expressão human being, mas being human.
156
decisões judiciais, nacionais e estrangeiras, que se coadunam com a perspectiva de
dignidade como autonomia descrita por Deryck Beyleveld e Roger Brownsword.
310
Na doutrina pátria, Flávia Piovesan afirma: “O valor da dignidade humana, incorporado pela
Declaração Universal de 1948, constitui o norte e o lastro ético dos demais instrumentos internacionais de
proteção aos direitos humanos”. PIOVESAN, Op. cit., p.342. Daniel Sarmento considerou que “Só no
regime democrático ganha concretude o princípio da dignidade da pessoa – epicentro axiológico de
qualquer ordenamento constitucional humanitário [...]”. SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda
constitucional, democracia e justiça social. Mundo Jurídico, Disponível em: http://www.mundojuridico.
adv.br. Sobre a relação entre a dignidade humana e os direitos da personalidade, diz Luís Roberto
Barroso: “A doutrina civilista contemporânea inclui a proteção da imagem das pessoas na categoria dos
direitos da personalidade – expressão da dignidade da pessoa humana – que podem ser qualificados, de
maneira sumária, como a projeção dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas”.
BARROSO, O direito individual..., p.3. Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk afirmam:
“A tutela e a promoção da dignidade da pessoa humana são fundamentos de toda a ordem jurídica – não
só do Direito Público – sendo, pois, deveres atribuídos a todos, não apenas ao Estado”. FACHIN, Luís
Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo
Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfganfg (Org.). Constituição, direitos
157
dignidade humana como fundamento e justificação dos direitos fundamentais, seja
diretamente nestes termos, seja mediante manifestações análogas e de efeito
demasiadamente similar.
fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.98-99. Ingo Sarlet
também reconhece um dos papéis da dignidade é conferir unidade e legitimidade a uma ordem
constitucional, buscando em Jorge Miranda a noção de que os direitos, sua unidade e legitimidade
repousam sobre a dignidade: “Que uma das funções exercidas pelo princípio fundamental da dignidade da
pessoa humana reside justamente no fato de ser, simultaneamente, elemento que confere unidade de
sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional, constituindo-se [...] no ‘ponto de
Arquimedes do estado constitucional’, embora amplamente reconhecido, há de ser exaustivamente
enfatizado. Como bem o lembrou Jorge Miranda, representando expressiva parcela da doutrina
constitucional contemporânea, a Constituição, a despeito de seu caráter compromissário, confere uma
unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, que, por sua
vez, repousa na dignidade da pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da
sociedade e do Estado, razão pela qual se chegou a afirmar que o princípio da dignidade humana atua
como uma espécie de ‘alfa e ômega’ do sistema dos direitos fundamentais”. SARLET, Ingo Wolfgang.
Dignidade da pessoa humana e “novos” direitos na Constituição Federal de 1988: algumas aproximações.
In: MARTEL, Letícia de Campos Velho. Estudos contemporâneos de direitos fundamentais (vol. II).
Rio de Janeiro/Criciúma: Lumen Juris/UNESC, 2009, p.103. Atenta aos enunciados constitucionais
brasileiros, Ana Paula de Barcellos menciona que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos
da República Federativa do Brasil. Para a autora, “parte do crescimento dos temas materialmente
constitucionais” – aí incluída a dignidade da pessoa humana – “pode ser debitado à conta da migração dos
antigos pressupostos axiológicos para o texto positivo [...]”. E, mais adiante, a jurista apresenta o elo
direto da dignidade como base dos direitos fundamentais: “Isto é: terá respeitada a sua dignidade o
indivíduo cujos direitos fundamentais forem observados e realizados, ainda que a dignidade não se esgote
neles”. BARCELLOS, A eficácia jurídica..., p.128. Maria Celina Bodin de Moraes reconhece na
dignidade humana o fundamento do Estado Brasileiro e admite que ela é o substrato de alguns direitos
fundamentais, porém não de todos: “Uma vez que a noção é ampliada pelas infinitas conotações que
enseja, corre-se o risco de generalização absoluta, indicando-a como ratio jurídica de todo e qualquer
direito fundamental”. A expressão da autora torna claro que muitos estudiosos consideram a dignidade a
razão de ser de todos os direitos fundamentais, apesar de esta não ser a sua posição. MORAES, Maria
Celina Bodin de. Op.cit., p.116-117. Na doutrina portuguesa, Jorge Miranda considera que a dignidade da
pessoa humana é a base de todos os direitos fundamentais: “Quanto fica dito demonstra que a
Constituição, a despeito do seu caráter compromissório, confere uma unidade de sentido, de valor e de
concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana,
proclamada no art.1º, ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do
Estado. Pelo menos, de modo direto e evidente, os direitos, as liberdades e garantias pessoais e os direitos
econômicos sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas”.
MIRANDA, Op.cit., p.180-181. Também José Carlos Vieira de Andrade: “Neste contexto se deve
entender o princípio da dignidade da pessoa humana – consagrado o artigo 1º como o primeiro princípio
fundamental da Constituição – como princípio de valor que está na base do estatuto jurídico dos
indivíduos e confere unidade de sentido enquanto ordem que manifesta o respeito pela unidade existencial
do sentido que cada homem é para além de seus actos e atributos”. [...] Realmente, o princípio da
dignidade da pessoa humana está na base de todos os direitos constitucionalmente consagrados, quer dos
direitos e liberdades tradicionais, quer dos direitos dos trabalhadores e dos direitos a prestações sociais.
[...] Pode ser diferente o grau de vinculação dos direitos àquele princípio. Assim, alguns direitos
constituem explicitações de primeiro grau da ideia de dignidade, que modela o conteúdo deles [...].
Outros direitos decorrem desse conjunto de direitos fundamentalíssimos [...]”. ANDRADE, Os direitos
fundamentais..., p.101-102.
311
Roberto Andorno intitula de Standard Attitude (atitude-padrão) a aceitação da universalidade da
dignidade humana, bem como de sua função de justificação e de fundação dos direitos fundamentais e dos
158
dignidade humana, embora muitos estudiosos, em que pese manterem-se universalistas,
venham admitindo alguns temperamentos312.
direitos humanos. ANDORNO, The paradoxical..., s/p. Exemplos da aceitação do cunho ontológico: “[...]
sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando
o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como
valor intrínseco à condição humana. Isto porque todo o ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente,
sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano”. PIOVESAN, Op.
cit., p.342. Em sentido semelhante, embora utilizando o termo pessoa, Luís Roberto Barroso afirma: “O
princípio da dignidade da pessoa identifica um espaço moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua
só existência no mundo”. BARROSO, Fundamentos teóricos e filosóficos..., p.26. Ana Paula de
Barcellos reconhece o viés ontológico da dignidade humana ao explicar: “A saber: as pessoas têm uma
dignidade ontológica e devem ter condições de existência compatíveis com essa dignidade [...]”. Nota-se
que a autora também emprega o termo pessoa e não ser humano. Entretanto, não fica nítido em sua obra
se ela faz uma diferenciação relevante entre um e outro conceito, uma vez que, páginas depois, ela refere:
“É importante observar que, filosoficamente, a dignidade é uma característica inerente ao homem que a
norma não concede, mas apenas reconhece; [...] A importância dessa observação está em que o indivíduo
continua sendo digno nada obstante a violação das normas que pretendem assegurar condições de
dignidade. Nessas hipóteses, a pessoa estará sendo submetida à uma situação indigna e incompatível com
sua dignidade essencial”. BARCELLOS, A eficácia jurídica..., p.126, nota n.213. Ingo Sarlet, embora
aponte alguns problemas e contestações sobre a inerência da dignidade ao ser humano, reafirma que a
dignidade humana possui uma dimensão ontológica, empregando expressões como “qualidade intrínseca
da pessoa humana”, “qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana”, “existe [...] em
cada ser humano como algo que lhe inerente” e “inerente a toda e qualquer pessoa humana” ao adjetivar a
dignidade. SARLET, As dimensões..., p.19-20. José Carlos Viera de Andrade também se aproxima da
vertente que reputa a dignidade como ontológica ao ser humano, ao escrever que a dignidade faz com que
a ordem constitucional respeite a “unidade existencial do sentido que cada homem é para além de seus
actos e atributos”. ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.101-102.
312
Nesse sentido, Flávia Piovesan, referindo-se à Declaração Universal de Direitos Humanos aponta:
“Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a
condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como
um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à
condição humana”. No entender da autora, “[p]ara os universalistas, os direitos humanos decorrem da
dignidade humana, enquanto valor intrínseco à condição humana”. É mister destacar que, atualmente,
Flávia Piovesan adere a um universalismo de confluência, calcado em um diálogo intercultural.
PIOVESAN, Op. cit., p.346 e ss. Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiana,
ver também: MARTINS-COSTA, Judith. Bioética e dignidade da pessoa humana: rumo à construção do
biodireito. Bioética y Bioderecho, Rosário, v.5, p.40, 2000.
159
significado da própria dignidade”313. Ela sustenta com ênfase o caráter primacialmente
autonomista da dignidade humana:
313
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos da personalidade e autonomia privada. 2. ed. rev.
São Paulo: Saraiva: 2007, p.135.
314
BORGES, Direitos..., p.146-147 [sem grifos no original].
315
CUNHA, A normatividade..., passim.
316
Sobre o assunto, ver: BROWN, David M. ‘Human dignity’: human rights and the end of life: the north
wind blowing from Canada. Ver ainda: CANADÁ. Rodriguez v. British Columbia (Attorney
General)... Op.cit.
317
Em Casey, foi discutida a constitucionalidade de uma lei da Pensilvânia que regulamentava
intensamente a realização de aborto. USA. Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v.
Casey, Op.cit. Já em Lawrence, tratava-se de rediscutir uma decisão da década de 1980, na qual foi
considerada constitucional lei que criminalizava as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O caso
160
Colômbia adotou um conceito de dignidade como autonomia quando decidiu pela
inconstitucionalidade da proibição da eutanásia, em termos tão expressivos que
merecem transcrição:
Lawrence reverteu a decisão anterior. USA. Lawrence v. Texas. 000 U.S. 02-102 (2003). Embora as
menções à dignidade humana não sejam tão frequentes nas manifestações da Suprema Corte dos Estados
Unidos, há outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de dignidade como autonomia: (a)
Thornburgh v. American College of Obstetricians and Gynecologists. 476 U.S. 747. (1986), na
discussão sobre o aborto, no voto do Justice Blackmun; (b) Roper v. Simons, a respeito da proibição da
pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos. Ver: McCrudden, Op. cit., p.688 e 695.
318
É preciso salientar que tal foi o posicionamento majoritário da Corte. Nos votos de dissidência a
proposta de entender a dignidade humana como autonomia foi muito criticada. Ao defender a posição
majoritária, foram mencionados julgados anteriores da Corte, nos quais a dignidade como autonomia foi a
concepção prevalente. COLOMBIA. Sentencia C-239/97. Demanda de Inconstitucionalid contra el
artículo 326 del decreto 100 de 1980 – Código Penal. Magistrado Ponente: dr. Carlos Gaiviria Diaz. 20
de mayo de 1997. Disponível em: http://www.ramajudicial.gov.co/csj_portal/jsp/frames/index.jsp?
idsitio=6&ruta=../jurisprudencia/consulta.jsp.
319
“Modern bioethics has its origins in the Code of Nuremberg of 1947 and gathers pace with the
Declaration of Helsinki in 1964. Central to these development is the idea that human beings should not
be subjected to scientific and medical research without their free and informed consent. To the extent that
human dignity has a role to play in such thinking, it is as the foundation for human rights, specifically the
right of human beings to decide whether or not they will be subject themselves to medical trials or
treatments”. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Roger. Human dignity..., p.29.
161
condições e as circunstâncias para florescimento da capacidade de autodeterminação;
(c) a universalidade; (d) a inerência da dignidade ao ser humano. Como salientado, tais
elementos permeiam o discurso jurídico sobre a dignidade humana também no Brasil.
Porém, apesar de a dignidade ser tomada como universal (por vezes com
temperamentos), inerente, como o fundamento e a justificação dos direitos fundamentais
e dos direitos humanos, como possuidora de um aspecto material, a ligação direta do
conceito exclusivamente com a autonomia/liberdade não traduz o pensamento
dominante na doutrina e na jurisprudência nacionais. Muitos são os que associam a
dignidade à autonomia/liberdade, todavia, poucos são os que confinam o conceito a este
característico.
Ainda que não seja a vertente única na cena jurídica brasileira, é conveniente
apreciar dois pontos sobre a dignidade como autonomia. Em primeiro lugar, sabe-se que
um dos mais importantes marcos filosóficos acerca da dignidade humana encontra-se
nos escritos de Immanuel Kant. São frequentes, no Brasil e alhures, as reconduções à
obra kantiana, inclusive no discurso jurídico320. Então, acredita-se que sua obra e as
releituras merecem apreço em função do conceito de dignidade como autonomia. Em
segundo lugar, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, além de descortinarem a
articulação teórico-prática da dignidade como autonomia, demonstraram as
inconsistências, tanto no âmbito epistemológico quanto no prático, do conceito.
Compreender tais inconsistências muito auxilia a tomada de posição sobre o assunto.
Por isso, a elas será concedido um breve espaço.
320
Conforme Sarlet: “É justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva –
nacional e alienígena – ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa
forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa humana”. SARLET, Dignidade da pessoa..., p.34.
Christopher McCrudden menciona que a concepção kantiana de dignidade é a mais citada dentre as não-
religiosas, a ponto de ser o autor cognominado de “o pai do conceito moderno de dignidade”.
McCRUDDEN, Op. cit., p.659.
162
pretende, modestamente, é apresentar como é possível enlaçar argumentos kantianos
e/ou argumentos de Kant com a noção de dignidade como autonomia. Para tanto, serão
fonte de estudo dois textos de Kant, a Metafísica dos Costumes e a Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, além das obras de alguns comentadores, em especial Otfried
Höffe321.
321
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003 (Série Clássicos EDIPRO);
KANT. Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: 70, 2007; HÖFFE, Otfried.
Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
322
KANT, A metafísica..., p.63; BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel
Kant. 4.ed. Brasília: UNB, 1997, p.50.
323
Kant assim define: “A liberdade (a independência de ser constrangido pela escolha alheia), na medida
em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo com uma lei universal, é o único
direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes.” A liberdade implica a
igualdade inata. Kant atinge essa constatação partindo de um procedimento que ele denomina puramente
racional, ou seja, formulações pragmáticas, empíricas ou utilitaristas não fazem parte do caminho que
trilhou para concluir que a liberdade é o único direito inato. A liberdade inata é a chamada liberdade
externa, que não é ilimitada e que pode ser, segundo Höffe, “entendida como independência do arbítrio
coercitivo dos outros […]”. Já a liberdade interna, típica da doutrina da virtude, requer “duas coisas: ser
o seu próprio senhor num dado caso (animus sui compos) e regrar a si mesmo (imperium in semetipsum),
ou seja, submeter os próprios afetos e governar as próprias paixões”. KANT, A metafísica..., p.250; 83-
84; HÖFFE, Op. cit., p.239.
324
Consoante Höffe: “entendida como independência do arbítrio coercitivo dos outros, a liberdade
externa em comunidade só é possível sem contradição se ela se restringe às condições da sua
concordância estritamente universal com a liberdade externa de todos os demais. Por conseguinte, o
163
estabelecem entre dois arbítrios. Trata-se da regulação externa de ações intersubjetivas
que devem estar em conformidade, independentemente do móbile da ação, às regras
heteronomamente postas.
Então, Kant enuncia uma máxima para a moralidade e outra máxima para o
direito. Disso, pode-se extrair que moralidade e legalidade são dois campos distintos
dos costumes, não sendo possível transladar os preceitos de um para outro sem que se
caia em contradição. Assim, por exemplo, é famosa a posição de Kant sobre a
criminalização do suicídio. Apesar de considerar o suicídio como contrário à máxima da
moralidade, uma vez que não universalizável como conduta, Kant defendeu a
inadequação da condenação jurídica do suicídio em relação à máxima do direito. O que
se poderia sustentar, a partir disso, é que, no âmbito jurídico, tudo o que extrapolar a
restrita esfera do uso da coercitividade para permitir a livre convivência entre dois
arbítrios não seria adequado em face da máxima do direito. Nestes termos, a tarefa do
direito seria tão-somente a regulação da convivência da liberdade externa, não
constituindo empreendimento legítimo usar da coercitividade (ou mesmo da promoção)
para angariar fins outros que não a preservação da liberdade externa.
Para fortalecer essa ideia, entraria em cena a noção de que Kant não formulou
uma teoria da preponderância do bem sobre o justo, mas uma teoria na qual o justo (ou
os direitos) prepondera sobre o bem. Para tanto, explicitou o procedimento para que
cada ser dotado de razão possa chegar, por si mesmo, às leis que regem sua ação. O
procedimento é realizado com base nas três formulações do Imperativo Categórico. É
nesse ponto que reside a autonomia: a capacidade de dar leis a si mesmo segundo o
Direito é, conforme seu conceito racional, ‘o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode
ser reunido ao arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade”. HÖFFE, Op. cit., p.239.
325
O enunciado corresponde ao primeiro Imperativo Categórico kantiano. Por Imperativo Categórico
entende-se, conforme Edson Bini, “imperativo no qual o comando é incondicional”. KANT, Immanuel. A
metafísica..., p.67-68; KANT, A fundamentação..., p.48 (BA 38); BINI, Edson, Glossário. In: KANT, A
metafísica..., p.32. Sobre o Imperativo Categórico conferir ainda: RAWLS, História..., p.209 e ss.;
HÖFFE, Op. cit., p.185 e ss.
164
procedimento do Imperativo Categórico. A imposição externa – qualquer que seja sua
fonte, comunitária, divina, cultural – de uma concepção pré-fixada de bem é um ato de
heteronomia326. Desta feita, se a dignidade for juridicamente compreendida como
heteronomia, ao sujeito estariam sendo impostas concepções externas do que seria o
bem, contrariando a sua habilidade racional de autolegislação e, portanto, contrariando
sua dignidade.
Uma das interpretações possíveis dessa fórmula é a que advoga que o ser
humano não pode ser instrumentalizado; i.e., não pode servir unicamente como um
objeto para fins alheios aos seus. Nesse viés, a não-instrumentalização consistiria no
respeito pela capacidade de autodeterminação de cada indivíduo, no respeito à sua
326
Assim, por exemplo, Kant considera indigno ajoelhar-se diante de uma imagem de divindade, pois
representa um servilismo. KANT, A metafísica..., p.278. Sobre o tema, ver também: RAWLS,
História..., p.213 e ss.
327
KANT, A fundamentação..., p.67-69 (BA 65, 66, 67).
165
liberdade enquanto ausência de constrangimentos externos. Tratar um indivíduo de
modo diverso ao que ele elege para obtenção de fins que são alheios torná-lo-ia um
instrumento e feriria a sua dignidade. Cada indivíduo, à luz da sua capacidade de
participar do mundo moral, por sua habilidade de empreender escolhas e por elas
assumir responsabilidade, teria na preservação da habilidade de dar leis a si mesmo e
atuar segundo tais leis a preservação da sua dignidade328.
328
“Assim, também constitui uma contradição para mim fazer da perfeição de outrem o meu fim e julgar-
me na obrigação de promover isso, pois a perfeição de outro ser humano, como pessoa, consiste
simplesmente nisto: que ele – ele próprio – é capaz de estabelecer seu fim de acordo com seus próprios
conceitos de dever; e é contraditório exigir que eu faça (tome meu dever fazer) alguma coisa que somente
o outro possa ele mesmo fazer”. KANT, A metafísica..., p.230.
329
“Esta formulación puede ser interpretada como un nuevo criterio para determinar la moralidad de las
acciones. En este caso, Kant no enfatiza el carácter universalizable de las máximas que deben regir
nuestra conducta sino la obligación de respetar a las personas. El respeto por las personas debe
entenderse en función de la noción kantiana de dignidad, propia de todo ser racional, e implica
fundamentalmente un reconocimiento de la autonomía del individuo. En la medida en que el Imperativo
Categórico emana de la razón, las personas son capaces de darse su propia ley, es decir, de auto-
legislarse en materia moral. Las personas pueden tomar decisiones racionales por sí mismas, que las
conducen a actuar de forma moralmente correcta. En este sentido, son autónomas y poseedoras de
dignidad, lo cual exige un absoluto respeto. Con esta formulación del Imperativo Categórico Kant
señala, entonces, la incorrección de utilizar a las personas meramente como medios para un fin ajeno a
ellas, lo cual equivaldría a tratarlas como una cosa y no como un agente autónomo, capaz de auto-
legislarse”. LUNA, Florencia; RIGHETTI, Natalia. Clase I. Bioética Clínica. Argentina: FLACSO,
2008. O texto base encontra-se em: SALLES, Arleen L.F. Bioética: nuevas reflexiones sobre debates
clásicos. México D.F: Fondo de Cultura Económica, 2008.
330
Necessário se faz destacar que o artigo da autora destina-se justamente a oferecer outra interpretação
da dignidade humana em Kant, próxima da ideia de dignidade como heteronomia. SHELL, Susan M.
Kant’s concept of human dignity as a resource for bioethics. In: Human dignity and bioethics: essays
commissioned by the president’s council on bioethics. Washington: Mar.2008. Disponível em:
http://www.bioethics.gov/reports/human_dignity/chapter13.html, p.336. Nas palavras da autora: “The
most clear-cut cases of Kantian ‘respect’ for humanity involve not using others in ways whose ends they
cannot formally share – i.e., by not acting on them without their own consent. The moral
166
também menciona que as formulações kantianas são, correta ou incorretamente, tratadas
como mais próximas da dignidade como autonomia, “isto é, a ideia de que tratar as
pessoas com dignidade é tratá-las como indivíduos autônomos aptos a escolher seus
destinos”331.
impermissibility of false promising (along with “assaults on the freedom and property of others”) follows
directly and unproblematically, in Kant’s view, from this formula. It is easy to see the attractiveness of
Kant, from a liberal political perspective, given the congruence between his moral thought and
traditional liberal insistence on the right to life, liberty, and the pursuit of property and/or happiness. The
peculiar force and influence of Kantian principles in contemporary arguments for patient choice and
informed consent is especially apparent” [sem grifos no original]. Em outra passagem: “As this brief and
inadequate sketch suggests, Kant’s moral anthropology, broadly construed, is well positioned to support
a regime of individual rights, or of ‘equal recognition,’ as Hegel will later call it. And this, indeed, is the
use to which Kant is most often put, as we have seen, in today’s bioethical debates”.
331
McCRUDDEN, Op. cit., p.659-660. “[…] whether rightly or wrongly, the conception of dignity most
closely associeted with Kant is the idea of dignity as autonomy; that is, the idea that to treat people with
dignity is to treat them as autonomous individuals able to choose their destiny”.
332
Nesse passo, pode-se exemplificar com o direito penal defendido por Kant. Vale lembrar que suas
ideias acerca do direito penal são, hodiernamente, consideradas arcaicas e mesmo atentatórias à dignidade
humana. O filósofo considerou indignas as funções de ressocialização e a educação por meio do direito
penal, pois elas desconsideram o sujeito como um fim em si mesmo e instrumentalizam-no. Por isso,
acreditou que as penas deveriam ser aplicadas por retribuição, modo no qual o sujeito é responsabilizado
pelo seu ato e, portanto, não tem sua dignidade lesada nem perdida. Entrementes, não é uníssona a
interpretação da dignidade como indene a graus e a condições na obra de Kant. Carlos Ruiz Miguel
mostra que, inicialmente, na Fundamentação da metafísica dos costumes, a proposta kantiana era
justamente a de que a dignidade não admitiria graus nem poderia ser perdida, mas, no escrito posterior, A
metafísica dos costumes, a noção se tornou contraditória, pois, mais do que a fórmula do fim em si
mesmo, a dignidade significaria uma elevação ético-política ou moral, existindo a possibilidade de um ser
humano tornar-se, pelo seu comportamento, sem valor (unworthy). KANT, A metafísica..., p.174-175;
MIGUEL, Human dignity..., p.281-299.
167
portanto, crianças, portadores de transtornos mentais severos, indivíduos senis, enfim,
grupos nos quais a razão é latente ou foi perdida333 –, é fato que se disseminou a noção
de que a dignidade em sentido kantiano é um atributo ontológico do ser humano.
Até o momento, mostrou-se que uma das concepções de dignidade humana que
podem ser mapeadas no discurso jurídico-moral é a de dignidade como autonomia. O
conceito é bastante trabalhado e entende-se que está subjacente às Grandes Declarações
Internacionais de Direitos Humanos do século XX, além de fazer-se presente em muitas
Constituições e permear decisões judiciais de monta. Não obstante a relevância do
discurso da dignidade como autonomia, existem problemas teóricos e práticos
importantes na adoção dessa postura. Como problemas teóricos, Deryck Beyleveld e
Roger Brownsword apontam: (a) a contingência epistemológica; (b) a contingência
contextual. Como problemas práticos, denuncia-se a excessiva atomização e
individualização que o conceito pode ensejar, além da possibilidade de ocorrer uma
banalização da humanidade e da vida humana advinda da inexistência e/ou
impossibilidade de imposição de valores externos aos sujeitos – diferentes da
preservação da liberdade de terceiros – que possam conter a sua liberdade. É por esta
333
BEYLEVELD; BROWNSWORD,Human dignity..., p.87 e ss.
168
questão prática que diversos autores mencionam que, diante da biotecnologia, adotar a
postura exclusivamente autonomista da dignidade oferece muito pouco, pois as barreiras
protetoras ficariam demasiadamente aquém do necessário.
334
“Hence, human beings are vulnerable and a regime of human rights goes someway towards shielding
them against one another (particularly against over-bearing State-organized governance). Human
dignity, thus, justifies a protective regime of human rights in a very straightforward way.”
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.22.
335
Ronald Dworkin é um autor que parece não dar grande importância à contingência epistemológica
quando expõe o direito como integridade. Toda a estrutura de pensamento está baseada na ideia de igual
respeito e consideração, que o jusfilósofo estadunidense expressa como um axioma que pressupõe que
todos aceitem. DWORKIN, Ronald, Levando..., p.419-421. Cumpre notar que atualmente o status moral
dos animais não-humanos tem sido objeto de estudos e a visão da dignidade como típica da humanidade
pela sua humanidade são, via de conseqüência, criticada por incorrer no especismo. BEYLEVELD;
BROWNSWORD, Human dignity..., p.22.
336
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.22. Os autores trazem à tona o pensamento de
Joel Feinberg: “In attributing human worth to everyone, we may be ascribing no property or set of
properties, but rather expressing an attitude – the attitude of respect – toward the humanity in each
man’s person. That attitude follows naturally from regarding everyone from ‘the human point of view’,
but it is not grounded in anything more ultimate than itself, and is not ultimately justifiable”.
169
As notas históricas que acompanham a sedimentação da dignidade humana
como justificação e fundamento dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, a
saber, a barbárie nazi-fascista e as ditaduras do século XX, não funcionam como
justificação teórica, mas apenas como apresentação dos fatos que levaram à ampla
aceitação desse papel da dignidade humana337. Em sendo assim, a dignidade como
fundamento e justificação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos só é capaz
de se manter enquanto for aceita e não entrar em competição com novos (ou velhos)
axiomas. A percepção da contingência epistemológica contida no discurso da dignidade
como autonomia é bastante grave, pois atinge o seu núcleo teórico, vertendo-a em um
conceito que carece de justificação e que depende da aceitação ou da convenção338.
337
São incontáveis os textos jurídicos que frisam o cunho ontológico da dignidade e apresentam-na como
o fundamento ou a justificação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos sem que seja
especificado o fundamento ou a justificação da dignidade. É frequente, também, a junção dessas
afirmações a questões históricas, normalmente quanto ao holocausto e às ditaduras que se alastraram
durante o século XX. A âncora da dignidade acaba sendo, portanto, as lições históricas que deveriam ser
sempre lembradas e praticadas. Embora boa parte dos autores que tomam esse caminho situe-se no marco
do pós-positivismo, parecem, nesse ponto, adotar ou (a) uma postura positivista – a dignidade está
positivada e, portanto, cabe condensá-la semanticamente e efetivá-la, sem necessidade de maiores
justificações; ou (b) aceitar como suficiente e não-contingente a afirmação de que o ser humano é digno
por ser humano, ou seja, fundar suas construções teóricas em um axioma. A primeira alternativa parece
ser produto de um texto de Norberto Bobbio que exerceu enorme influência no início da década de 1990
nas produções acadêmicas e doutrinárias sobre direitos fundamentais e direitos humanos. Segundo o
jurista italiano, os direitos humanos não mais precisariam ser fundamentados, mas efetivados. Entretanto,
o discurso dos direitos, por variadas razões, vem sofrendo ataques e, cada vez mais, juristas e filósofos
são confrontados com a premência de oferecer uma justificação epistemológica aos direitos fundamentais
e aos direitos humanos e, como consequência, à própria dignidade humana.
338
Pedro Serna, mesmo adotando a dignidade humana como um dos três elementos que formam a
estrutura genética dos direitos fundamentais, é muito claro a respeito das consequências da crítica quanto
à contingência epistêmica da dignidade humana, pois algo tão forte como os direitos fundamentais não
poderia estar nem fundado nem justificado em um conceito contingente: “En rigor, de un fundamento así
solo se puede obtener la superioridad del hombre sobre otras especies animales y sobre el resto de los
seres que publean el universo físico, pero ello no basta para justificar seriamente un respeto
incondicionado como el que parecen postular los derechos. Por el contrario, se requiere algo distinto de
las determinaciones particulares, del modo de ser propio del hombre, para justificar precisamente el
respeto incondicionado a ese modo de ser y sus despliegues dinámicos. Eso es precisamente la dignidad
del ser humano. Por todo lo dicho, puede concluir-se que los derechos se fundan en la dignidad, o
carecen por completo de fundamento alguno, debiendo entonces ser reconocidos exclusivamente como
banderas de una lucha política marcada por el signo de la arbitrariedad. Ello equivale a decir que la
suerte de los derechos, desde el punto de vista ético-axiológico, correrá paralela a la suerte de la
dignidad. Si ésta pude fundamentar-se, se habrá logrado una justificación para la obligatoriedad de los
derechos; si, por el contrario, no caber encontrar fundamento sólido para a la dignidad, los derechos
sólo podrán reivindicar-se por motivos precisamente no universalizables”. SERNA, Pedro. La dignidad
de la persona como principio del derecho público. Derechos e Libertades: Revista del Instituto
Bartolmé de Las Casas, Madrid, n.10, p.294-295.
170
que se justificar por que tais atributos confeririam dignidade. Além disso, o atrelamento
da dignidade a uma propriedade exclusiva dos seres humanos traria consigo outro tipo
de contingência incompatível com um dos elementos da dignidade como autonomia,
qual seja, a não-inclusão de alguns seres humanos no espectro de titularidade da
dignidade, pois qualquer ser humano que não possuísse o atributo, a autonomia, por
exemplo, não seria digno em si mesmo, mas apenas destinatário de proteção por aqueles
portadores do atributo339.
339
Cf. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.23. Ver também: VILHENA, Oscar
Vieira. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2006,
p.66-67.
340
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.24-25. Ver também: PIOVESAN, Op. cit.,
p.346; KYMLICKA, Will. Multiculturalismo liberal. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia;
IKAWA, Daniela (Orgs). Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008,
passim.
341
Nas palavras de Leon Kass: “The first-and perhaps best-ground remains practical and political, not
theoretical and ontological. If you or your government (or my doctor or health maintenance
171
A outra indagação relativa à dignidade como autonomia é prática. Uma vez que
se tenha a escolha individual como guia da ideia de dignidade, há inúmeros pontos
favoráveis, como a manutenção do pluralismo e da democracia e a proteção da liberdade
individual. Mas há um outro lado. No contexto atual – no qual existe um ceticismo
significativo sobre valores compartilhados, universais e, em especial, sobre aqueles que
se pretendem incondicionais – oferecer prioridade à liberdade contra desafios morais e
políticos que podem impactar o convívio social e a própria humanidade, principalmente
no campo do desenvolvimento das biotecnologias, pode representar uma barreira
insuficiente. Vista a dignidade como autonomia, qual seria a raiz dos possíveis
obstáculos a serem postos nas hipóteses de indivíduos que voluntariamente adentram
situações, posições ou relações consideradas indignas (pelos demais) ou fazem escolhas
que se reputam, externamente, indignas, ainda que autorreferentes?
organization) wants to claim that I am, for reasons of race or ethnicity or disability or dementia,
subhuman, or at least not your equal in humanity, and, further, if you mean to justify harming or
neglecting me on the basis of that claim, the assertion of universal human dignity exists to get in your
way. The burden of proof shifts to you, to show why I am not humanly speaking your equal: you must
prove why you are entitled to put a saddle and bridle on me and ride me like a horse, or to deny me the
bread that I have earned with the sweat of my brow, or to dispatch me from this world because I lead a
subhuman existence. You will, in fact, face an impossible task: you will be unable to prove that you
possess God-like knowledge of the worth of individual souls or carry the proper scale of human worth for
finding me insufficiently ‘weighty’ to deserve to continue to breathe the air. In this approach to
grounding basic human dignity, I offer not a metaphysically based proof but a rhetorically effective
demonstration-shown precisely by my asserting my equal dignity-that I, like you, am a somebody, like
you born of woman and destined to die, like you a member of the human species each of whose
members knows from the inside the goodness of his own life and liberty”. KASS, Leon R. Defending
human dignity. In: Human dignity and bioethics: essays commissioned by the president’s Council on
Bioethics. Washington: mar.2008. Disponível em: http://www.bioethics.gov/reports/human_
dignity/chapter12.html. [sem grifos no original].
172
ou comunidade segundo seus padrões civilizatórios ou seus ideais de vida boa. Assim, o
conceito funciona muito mais como uma constrição externa à liberdade individual
(entendida como ausência de constrangimentos externos) do que como um meio de
promovê-la342.
342
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.29.
343
A palavra deveres não está sendo tomada no exato sentido que lhe foi conferido no Capítulo 1, como
ficará nítido ao longo da exposição.
344
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.37.
173
preferências e escolhas individuais que discrepam no que respeita à
dignidade humana estão simplesmente fora dos limites345.
De modo resumido, pode-se dizer que os objetivos que amparam o conceito de
dignidade como heteronomia são similares aos do paternalismo, aos do moralismo
jurídico e aos do perfeccionismo, embora o ponto mais intrigante da dignidade como
heteronomia seja o que Gerald Dworkin intitulou de moralismo jurídico paternalista.
345
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.29.
346
O pensamento levaria a associar a dignidade humana como heteronomia às propostas comunitaristas, e
a dignidade como autonomia às propostas liberais. Mas, em linha de princípio, não se pode tomar uma
noção comunitarista como excludente da dignidade como autonomia, uma vez que o valor comunitário
pode ser justamente a autonomia/liberdade. Nesse sentido, ter-se-ia uma espécie de doutrina moral
abrangente liberal, ao estilo de J.S. Mill. Ver: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.63-
66.
347
O caso do anão ocorreu na França. Trata-se de uma decisão da Câmara de Contencioso Administrativo
de Estado, na qual foi mantida a proibição da “apresentação de um novo tipo de diversão pública, que se
constituía em um jogo no qual o público era convidado a atirar, utilizando-se de um canhão de pressão,
um anão à distância. Aquele que conseguisse arremessá-lo a distância maior ganhava o jogo”. CUNHA,
Dignidade..., p.249. Este acórdão gerou inúmeras discussões, tanto entre aplicadores do direto, quanto no
meio acadêmico. Ainda, as soluções que se encontram para o caso são muitas vezes divergentes daquela
adotada na França. Convém reportar que este jogo não se apresentou apenas na França. A situação
ocorreu também em Portugal, e vem se mostrando nos Estados Unidos da América. Conferir: KUFLIK,
Arthur. The inalienability of autonomy. Philosophy and public affairs, v.13, n.4, p.271-298, Autumm,
174
brincadeira de arremessar pessoas afetadas pelo nanismo, Sr. Wackenheim (a pessoa
afetada pelo nanismo envolvida no caso) e a produtora do divertimento buscaram
reverter a proibição. A Câmara de Contencioso Administrativo francesa considerou que
o arremesso de anões feria a dignidade do próprio Sr. Wackenheim, ainda que ele assim
não percebesse e consentisse com a prática. A liberdade de trabalho e a liberdade
empresarial não foram consideradas obstáculos à proibição, justamente em nome da
defesa da dignidade humana. O que se nota, de pronto, é que a dignidade não foi
entendida como a possibilidade de livre escolha do indivíduo, mas como conceito que
encampa o respeito à ordem pública e é capaz de limitar liberdades348. É um exemplar
claríssimo da dignidade como heteronomia. Ainda insatisfeito, o Sr. Wackenheim
peticionou ao Comitê de Direitos Humanos, que indeferiu o seu pedido, tendo em conta
especialmente a inexistência de uma discriminação injustificada349.
sexuais homossexuais naquela latitude. É relevante também o fato de as atividades serem conhecidas
apenas pelos participantes, pois os vídeos não se destinavam nem à venda, nem à distribuição a não-
participantes. Outro elemento que conduz à análise foi a grande exposição na mídia e a perda dos
empregos pelos réus. UNITED KINGDOM. House of Lords. R. v. Brown. [1993] All ER 75. Disponível
em: http://www.parliament.the-stationery-office.com/pa/ld199798/ldjudgmt/jd970724/brown01.htm.
351
Pode-se entrever a motivação nos termos do voto do Lord Coleridge (maioria): “Society is entitled and
bound to protect itself against a cult of violence. Pleasure derived from the infliction of pain is an evil
thing. Cruelty is uncivilised. I would answer the certified question in the negative and dismiss the appeals
of the appellants against conviction”. Ainda que os advogados dos réus sustentassem que as condutas
realizavam-se em espaços privados, por adultos consententes, que não houvera nenhuma necessidade de
recursos médicos e, especialmente, que cada pessoa pode realizar com o seu corpo o que quiser e escolher
os tipos de relações sexuais que lhe são prazerosas, Lord Coleridge expressou: “I do not consider that this
slogan provides a sufficient guide to the policy decision which must now be made. It is an offence for a
person to abuse his own body and mind by taking drugs. Although the law is often broken, the criminal
law restrains a practice which is regarded as dangerous and injurious to individuals and which if
allowed and extended is harmful to society generally. In any event the appellants in this case did not
mutilate their own bodies. They inflicted bodily harm on willing victims. […] The assertion was made on
behalf of the appellants that the sexual appetites of sadists and masochists can only be satisfied by the
infliction of bodily harm and that the law should not punish the consensual achievement of sexual
satisfaction. There was no evidence to support the assertion that sado-masochist activities are essential to
the happiness of the appellants or any other participants but the argument would be acceptable if sado-
masochism were only concerned with sex as the appellants contend. In my opinion sado-masochism is not
only concerned with sex. Sado-masochism is also concerned with violence. The evidence discloses that
the practices of the appellants were unpredictably dangerous and degrading to body and mind and were
developed with increasing barbarity and taught to persons whose consents were dubious or worthless”.
Além de considerar a violência das relações sadomasoquistas inerentemente imorais e perigosas à
sociedade como um todo, os Lordes também levaram em conta: a) a genuinidade do consentimento, que
presumiram fragilizado, muito embora nenhum dos participantes tenha se retratado ou reclamado a
posteriori; b) o uso de álcool e drogas durante os rituais sadomasoquistas; c) o risco à saúde dos
participantes, principalmente quanto ao HIV/AIDS. UNITED KINGDOM. House of Lords. R. v.
Brown..., Op.cit.
352
Lord Mustill e Lord Slynn of Hadley dissentiram. UNITED KINGDOM. House of Lords. R. v.
Brown..., Op.cit.
353
CEDH. Laskey, Jaggard and Brown v. United Kingdom. 1997. Disponível em:
http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=Laskey%2C
176
do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteção da moral pública,
relacionando-a com a dignidade humana:
%20|%20Jaggard%20|%20Brown%20|%20v.%20|%20United%20|%20Kingdom.&sessionid=26846875&
skin=hudoc-en .
354
CEDH. Laskey, Jaggard and Brown v. United Kingdom. Op.cit. Voto do Justice Petit.
355
Há que se ter atenção aos fatos deste caso, que são bastante diferentes daqueles de R. v. Brown. Na
hipótese belga, um casal, o juiz K.A. e sua esposa, e um amigo médico (A.D.) iniciaram práticas
sodomasoquistas. No começo, eram encontros mais privados e menos violentos. No entanto, eles
começaram a participar de um clube de sadomasoquismo. K.A. e A.D. utilizavam alguns instrumentos
que não eram permitidos pelas regras do clube. As filmagens também mostravam que nem sempre as
palavras de ordem utilizadas pela vítima para fazer cessar a violência eram respeitadas. Ademais, a esposa
de K.A. era levada aos clubes e funcionava como uma espécie de escrava sexual. Em alguns episódios, as
sevícias eram nela realizadas por terceiros mediante pagamento. Além da condenação, K.A. foi
definitivamente afastado de seu cargo.
356
Segundo o relato da CEDH, a Corte de Apelação belga assim se posicionou: “S’interrogeant ensuite
sur le caractère punissable des faits, au regard notamment de l’article 8 de la Convention, la cour
d’appel émit d’abord des doutes, mais sans y répondre, sur le point de savoir si les faits commis en
dehors du domicile conjugal (phases 2 à 4) pouvaient être considérés comme relevant de la « vie privée »
au sens de cette disposition. Quoi qu’il en soit, elle considéra que la morale publique et le respect de la
dignité de la personne humaine imposaient des limites qui ne sauraient être franchies en se prévalant du
« droit à disposer de soi » ou de la « sexualité consensuelle ». Même à une époque caractérisée par
l’hyper-individualisme et une tolérance morale accrue, y compris dans le domaine sexuel, les pratiques
qui s’étaient déroulées lors de la phase 4 étaient tellement graves, choquantes, violentes et cruelles
qu’elles portaient atteinte à la dignité humaine et ne sauraient en aucun cas être acceptées par la
société. Le fait que les prévenus continuaient de soutenir qu’il n’y avait ici qu’une forme d’expérience
sexuelle dans le cadre du rituel du jeu sadomasochiste entre personnes majeures consentantes et dans un
lieu fermé, n’y changeait rien”. CEDH. Affaire K.A. et A.D. c. Belgique. (Requêtes nºs 42758/98 et
45558/99). 2005, Disponível em: http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=18
&portal=hbkm&action=html&highlight=Affaire%20|%20K.A.%20|%20et%20|%20A.D.&sessionid=268
46875&skin=hudoc-en. [sem grifos no original].
357
CEDH. Affaire K.A... Op.cit..
358
Peep shows são apresentações nas quais mulheres aparecem engaioladas e sujeitam-se às vontades dos
espectadores, que podem dirigir seus movimentos e suas performances. De regra, não podem tocá-las.
177
uma pessoa submete-se, como objeto, à vontade de outra: “Aqui, a dignidade humana,
porque o seu significado vai além do indivíduo, deve ser protegida mesmo contra os
desejos da mulher envolvida cujas próprias ideias subjetivas desviam-se do valor
objetivo da dignidade humana”359. E ainda: “essa violação da dignidade humana não é
removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua em um peep show age
voluntariamente. A dignidade do homem é um valor objetivo, inalienável... o seu
respeito não pode ser renunciado pelo indivíduo”360. Dos excertos, percebe-se que a
dignidade humana foi tomada como um valor objetivo, que ultrapassa a esfera
individual e pode ser violado mesmo que o indivíduo não pense que viola a sua
dignidade. Nessa medida, “onde a dignidade humana assim concebida estiver em jogo,
a livre escolha é irrelevante”361.
359
BVerwGE 64 (1981) 274 apud BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.34.
360
Cf. ULLRICH, Concurring visions..., p.83.
361
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.34.
362
Sobre a proibição dos discursos do ódio para a proteção da dignidade humana são citadas decisões da
Corte de Israel, da Comissão Europeia de Direitos Humanos, do Canadá e também da África do Sul e da
Hungria. McCRUDDEN, Op. cit., p.684-685. No Brasil, um dos fundamentos utilizados pelo STF para a
proibição dos discursos do ódio foi justamente a dignidade humana. BRASIL. STF. HC nº 82.424/RS.
Rel. Min. Moreira Alves. 19/03/2004. Cabe lembrar que a CF/88 possui enunciado normativo específico
sobre o crime de racismo.
363
McCRUDDEN, Op. cit., p.675. “What emerges from these differences is that some jurisdictions use
dignity as the basis for (or another way of expressing) a comprehensive moral viewpoint, ‘a whole moral
world view’, which seems distinctly different from region to region. In this sense, to speak of human
178
Ao examinar detidamente alguns documentos europeus e internacionais sobre
bioética, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword concluem que está surgindo uma nova
bioética europeia, na qual a dignidade humana assume um posto muito alto. E o sentido
mais acentuado da expressão é o de dignidade como heteronomia. Segundo os autores,
o termo dignidade humana na Convenção Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina
e na Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos, da UNESCO, trata
mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados, ou seja, tende à
dignidade como heteronomia364.
dignity is a shorthand way of summing up how a complex, multi-faceted set of relationships involving
Man is, or should be, governed: relationships between man and man, man and God, man and animals,
man and the natural environment, man and the universe”.
364
Todavia, os autores reconhecem também elementos, ainda que menos fortes, da dignidade como
autonomia. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.34; 29-33; p.38-44. Conferir os
documentos e seus relatórios: CONSELHO DA EUROPA. Convenção para a proteção dos direitos do
homem e da dignidade do ser humano face às aplicações da biologia e da medicina. (04/04/1997).
Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhregionais/convbiologia
NOVO.html; COUNCIL OF EUROPE. Convention for the protection of human rights and dignity of
the human being with regard to the application of biology and medicine: convention on human
rights and biomedicine: explanatory report (17/12/1996). Disponível em:
http://conventions.coe.int/treaty/en/ Reports/Html/164.htm; UNESCO. Universal declaration on the
human genome and human rights. (11/11/1997). Disponível em: http://portal.unesco.org/en/ev.php-
URL_ID=13177&URL_DO=DO_TOPIC &URL_SECTION=201.html. Importa conferir ainda a
Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, da UNESCO. O texto é posterior aos demais e
parece ligar a dignidade humana à autonomia com mais intensidade. UNESCO. Universal declaration
on bioethics and human rights. (19/10/2005). Disponível em : http://portal.unesco.org/en/ev.php-
URL_ID=13177&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html.
179
liberdade não há problema algum. A questão é se podemos, em nome
de nossa liberdade, colocar em risco nossa dignidade. Colocada em
termos clássicos, seria válido o contrato em que permito a minha
escravidão? Da perspectiva da dignidade, certamente não365.
Então, para o autor, a dignidade é justamente o freio à liberdade. Veja-se o que
ele assevera sobre o caso de arremesso de pessoas acometidas de nanismo – é a
dignidade que obsta a escolha, há um elemento externo ao sujeito, que o ultrapassa e
que é hábil a limitar sua liberdade. A liberdade não é o componente central da
dignidade, mas é a dignidade que molda a liberdade. Para isso, duas posições básicas
são possíveis. A primeira constrói o conceito de liberdade/autonomia a partir do de
dignidade, ou seja, a liberdade possui um conteúdo substantivo que impede que ela
exista quando a escolha ou seu resultado sejam indignos. A segunda entende a liberdade
como a ausência de obstáculos exteriores e, portanto, haveria restrições à liberdade
justificadas pela dignidade humana, associada, normalmente, a valores ou objetivos
externos ao sujeito que não representem a proteção de direitos de terceiros.
365
VILHENA, Op. cit., p.67.
366
BRASIL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, ACP nº2007.34.00.014809-3, Op.cit.; BRASIL,
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, Recomendação nº01/2006 – WD – PRDC, Op. cit.
180
da liberdade individual. No mais das vezes, ela atua exatamente como um limite à
liberdade individual em nome de valores e concepções de vida compartilhados, muito
mais centrada em teorias deontológicas. Por isso, a dignidade como heteronomia é
justificada na busca do bem para o sujeito, para a preservação da sociedade ou
comunidade, para o aprimoramento moral do ser humano, dentre outros objetivos.
Ademais, diversamente da dignidade como autonomia, a dignidade como heteronomia
aceita a contingência, tanto a epistemológica quanto a contextual.
367
Sobre o dualismo entre a doutrina do direito e a doutrina da virtude, ver: KANT, A metafísica...,
p.239-241. Sobre o dualismo do ser humano, ver: SHELL, Op. cit.
368
Ver: RAWLS, História..., p.216.
181
Quanto aos deveres para consigo, Kant distingue os que tangem à animalidade
humana e os que se referem ao ser humano somente como ser moral. Os últimos
consistem:
369
Kant reconhece a existência de deveres para consigo e de deveres para com os outros. Embora Kant
perceba que existe uma contradição na ideia de deveres para consigo, pois aquele que deve é o mesmo a
quem é devido e, portanto, poderia o indivíduo liberar-se do dever, Kant demonstra que os deveres para
consigo não envolvem o mesmo sujeito, há o ser humano e a humanidade na própria pessoa. Os deveres
para consigo seriam os deveres de um ser humano para com a humanidade na sua própria pessoa. Há
deveres para consigo que se referem ao ser humano enquanto animal: “a) a preservação do indivíduo
humano; b) a preservação da espécie; c) a preservação da capacidade do indivíduo humano de desfrutar a
vida, a despeito de ainda apenas ao nível animal”. KANT, A metafísica..., p.259-262.
370
“O respeito que tenho pelos outros ou que o outro pode exigir de mim (observantia aliis prestanda) é,
portanto, o reconhecimento de uma dignidade (dignitas) em outros seres humanos, isto é, de um valor que
não tem preço, nenhum equivalente pelo qual o objeto avaliado (aestimii) poderia ser permutado. Julgar
alguma coisa como sendo destituída de valor é desprezo”. KANT, A metafísica..., p.306.
371
“Todo o ser humano tem um direito legítimo ao respeito de seus semelhantes e está, por sua vez,
obrigado a respeitar todos os demais. A humanidade ela mesma é uma dignidade, pois o ser humano não
pode ser usado meramente como um meio por qualquer ser humano (quer por outros, quer, inclusive, por
si mesmo), mas deve ser sempre ao mesmo tempo utilizado como um fim. É precisamente nisso que sua
dignidade (personalidade) consiste, pelo que ele se eleva acima de todos os outros seres do mundo que
não são humanos e, no entanto, podem ser usados, e, assim, sobre todas as coisas”. Os vícios que violam
o dever de respeito são a soberba, a detração e o escárnio. KANT, A metafísica..., p.306-308.
372
Ver: McCONNELL, Op. cit., p.40.
182
para o campo do direito. Ainda que essas não pareçam ser as palavras literais de Kant, a
interpretação é possível, mediante apropriação e releitura de conceitos abstratos, obtidos
aprioristicamente, e sua aplicação a um âmbito originariamente não pensado por Kant.
Isso se dá em função das transformações ocorridas no próprio Direito, cujo papel foi
largamente ampliado desde a concepção liberal que norteava os estudos kantianos e
desde que houve uma reaproximação do direito com a moral373. Tratar-se-ia, pois, de
uma atualização do pensar kantiano a novas realidades e exigências sociais e teóricas.
Ao estabelecer a comunicação entre a doutrina do direito e a doutrina da virtude,
alguns deveres que seriam do sujeito para consigo passam a importar também ao Direito
e podem ser impostos, ou, pelo menos, não promovidos e não chancelados pela
normatização jurídica. Então, os deveres de virtude, para consigo e para com os demais,
adentram o Direito, o que permite que enunciados e normas jurídicas sejam construídas
sob essa luz.
373
A própria inscrição da dignidade humana em textos constitucionais e em documentos jurídicos
manifestaria essa reaproximação e atuaria como uma autorização ao translado do pensamento da doutrina
da virtude para o ambiente jurídico. E não se trata apenas disso, porquanto há trechos da doutrina da
virtude, especialmente quando Kant se refere ao dever de respeito, que ele menciona que há o direito legal
de exigir o cumprimento de tal dever, descrito, inicialmente, como um dever de virtude. KANT, A
metafísica..., p.307-308.
374
McCONNELL, Op. cit., p.40-41.
375
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.55. Ver ainda: SHELL, Op. cit., p.336.
183
No trecho já citado de Oscar Vieira Vilhena, sobre a dignidade como
heteronomia ao sabor do pensamento kantiano, o autor entende que a liberdade, quando
relativa à dignidade, não é a liberdade em face de obstáculos externos, mas o limite
àquilo que se pode ou não fazer, qual seja, qualquer comportamento que deixe de tomar
os indivíduos simultaneamente como fins em si mesmos. Ele deixa claro que, da
perspectiva da liberdade, esses comportamentos seriam aceitáveis, porém, recusa-os em
função da dignidade. Ainda que a dignidade contenha um elemento de liberdade, trata-
se de uma liberdade diferente, de uma liberdade moldada pelo seguir do Imperativo
Categórico. Usar da liberdade não seria dar a si mesmo qualquer lei, mas estar
constrangido pela moralidade, ou seja, dar a si mesmo leis segundo o procedimento do
Imperativo Categórico376.
376
VILHENA, Op. cit., p.67. Ver ainda: SHELL, Op. cit., p.336.
377
SHELL, Op. cit., p.335; 339. “But ‘humanity’, I am claiming, means more for Kant than the reciprocal
freedom of consenting adults (or those who might become or might once have been so); it also imposes
limits on the uses to which one may put one’s own capacities”.
184
Ao se buscar, aqui, mostrar que o clássico texto – tal qual tantos clássicos –
enseja outras possibilidades interpretativas, apontou-se a possibilidade de visualizar a
dignidade humana em Kant como dignidade como heteronomia. Partindo da noção de
que a teoria kantiana é uma teoria deontológica, ressaltam-se os deveres dos indivíduos
para consigo e para com os demais, fazendo uma ponte entre o que estaria na doutrina
do direito e o que estaria na doutrina da virtude. A dignidade implicaria tanto alguns
deveres para consigo quanto alguns deveres para com os outros, especialmente o
respeito pela humanidade na própria pessoa e na alheia. Nessa trilha, a dignidade limita
absolutamente o comportamento. Livre é a ação ou omissão que segue o procedimento
do Imperativo Categórico e atende ao fim objetivo da humanidade, não constituindo a
liberdade apenas o fazer ou deixar de fazer o que se quer. É no fim objetivo humanidade
que se compreende a dignidade como um limite ao indivíduo, como o que aqui se
denomina dignidade como heteronomia. Plausível é, pois, empregar argumentos
kantianos para sustentar algumas formas de dignidade como heteronomia.
185
deveres para consigo, em si mesmos e na sua extensão; (e) problemas práticos e
institucionais na definição dos valores compartilhados por uma comunidade ou
sociedade política.
186
são, tecnicamente falando, direitos, sobreponham-se aos direitos fundamentais,
quebrando a barreira corta-fogo que eles deveriam representar378.
Outra crítica lançada à dignidade como heteronomia é a perda de duas das forças
retóricas e políticas da expressão dignidade humana. Tanto o elemento ontológico da
dignidade quanto a universalidade podem ser muito enfraquecidos. Nenhum deles é
378
A expressão barreira corta-fogos foi tomada de empréstimo do texto de Habermas, aplicada a
contexto diverso. HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el estado
democrático de derecho em términos de teoria del discurso. Madrid: Trotta, 1998, p.327. Ver, no
tema: RAO, Neomi. On the use and abuse of dignity in constitutional law. Columbia Law Journal of
European Law, v.14, n.2, p.201-256, Spring 2008, (George Mason Law & Economics Research Paper
nº08-34).
379
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity…, p.45. A proposta dialógica é identificada pelos
autores como uma forma de dignidade como heteronomia.
187
necessário ao conceito; se estiverem presentes, serão meras contingências,
assumidamente. Ora, uma das maiores forças políticas do discurso da dignidade – ainda
que o termo seja acusado de amorfo – é fornecer a poderosa e pervasiva noção de que
todos os seres humanos são dotados de igual e intrínseca dignidade, carregando em si
mesma a noção de igualdade. Esse elemento pode ser corroído quando se assume a
contingência da dignidade como heteronomia380. Além da força política, a dignidade
como autonomia, ainda que frágil sob certos aspectos filosóficos de justificação, é
dotada também de força jurídico-moral ao traçar a igualdade dos seres humanos.
Por fim, a dignidade como heteronomia conduz ao problema dos deveres para
consigo. Ainda que do ponto de vista estritamente moral seja possível argumentar a
favor dos deveres para consigo, no plano dos direitos jurídicos apresenta-se um
problema lógico, pois os deveres se estabelecem no âmbito das relações intersubjetivas.
Há contradição lógica em sustentar que um indivíduo é titular de um dever jurídico para
consigo, pois a execução de tal dever caberia exclusivamente ao próprio sujeito. A ideia
apenas ganha concretude ao se entender que pode haver deveres sem direitos
correspondentes, ou se for assumido que o dever não é para consigo, mas para com uma
sociedade política que substitui o titular de um direito (não seria uma ação ordenada,
mas efetivamente um dever, relativo a um direito da comunidade). O modo como a
dignidade como heteronomia se apresenta é justamente o segundo, ou seja, há uma
unidade de agência coletiva que tem interesses e também direitos. Nesse rumo, recai-se
em um modelo comunitário: uma unidade de agência coletiva que pode requerer do
indivíduo que dela participa certos padrões de comportamento, como se titularizasse um
direito381.
380
A expressão amorfa para designar a locução dignidade humana foi empregada por PRITCHARD,
Michael S. Human dignity and justice. Ethics, v. 82, n,4, jul. p.299, 1972.
381
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity…, p.64 e ss.
188
autonomia traduz as demandas pela manutenção e pela ampliação da liberdade humana
– desde que respeitados os direitos de terceiros e presentes as circunstâncias e as
condições da liberdade. A dignidade como heteronomia, por sua vez, preocupa-se com
o bem do próprio indivíduo ou com a promoção de certos valores societários. Quando se
dá prevalência à primeira, a liberdade, o consentimento, as escolhas de vida e a
pluralidade recebem amplo espaço. Quando se dá prevalência à segunda, o paternalismo
e seus institutos afins e os valores compartilhados por uma sociedade mostram-se hábeis
a limitar a liberdade e as escolhas individuais ou de grupos, mesmo que elas não
interfiram com direitos propriamente ditos de terceiros382.
382
Nas palavras de Deryck Beyleveld e Roger Brownsword: “[…] we will find that the tension between
the two conceptions of human dignity mirrors a familiar tension between the claims of autonomy (human
dignity as empowerment) and the claims of other social values (human dignity as constraint). Where the
tension is most acute, individual choice is either given free rein (the preferences of others
notwithstanding), or is restricted (paternalistically, in the interest of the individual, or defensively for the
sake of collective values). So far as bioethics is concerned, these tensions translate in a striking fashion.
Where human dignity as empowerment holds court, and autonomy is prioritized, bioethics is organized
largely around the notion of informed consent. On the other hand, where human dignity as constraint
rules, and either paternalism or social defence prevails, consent (now matter how free or informed) is no
longer decisive”. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity…, p.11.
383
Porém, consoante dito anteriormente, existe possibilidade teórica de a dignidade como heteronomia
representar uma doutrina liberal abrangente, caso em que sua relação com a disposição seria diversa. Esse
viés não será trabalhado aqui, pois o emprego da dignidade como heteronomia no contexto jurídico não
está assumindo essa roupagem atualmente.
189
Para que se possa manifestar a posição que será assumida nesta tese a respeito da
tensão entre as duas versões da dignidade humana e a disposição de posições jurídico-
subjetivas de direitos fundamentais, é necessário, primeiro, verificar como a doutrina e a
jurisprudência brasileiras estão tratando o assunto. A seguir, serão tecidos argumentos
no marco teórico da tese – o liberalismo igualitário – e indicados os passos que serão
seguidos no próximo Capítulo.
384
SARLET, Dignidade da pessoa..., p.63 [itálicos do original].
190
Sarlet não deixou de notar a tensão que pode se estabelecer entre o que ele denomina as
dimensões da dignidade.
Vê-se, portanto, que ambos os autores – Ingo Sarlet e Maria Celina Bodin de
Moraes – admitem que o conceito de dignidade humana é composto de dimensões ou de
componentes, o que lhe confere um caráter não unívoco. Partindo deste ponto, a questão
está em como equacionar, em face de casos difíceis, tais dimensões e componentes.
Maria Celina acredita que a correta ponderação entre os componentes conduz à
dignidade, sem referir, no entanto, o procedimento de tal ponderação. Ingo Sarlet, por
seu turno, parece adotar uma postura mais casuísta (no sentido de pesarem os elementos
de cada caso, havendo linha de princípio entre eles), sempre atento à prática jurídica
nacional e comparada.
A par das soluções dos autores, propor-se-á um modelo de exame para a tensão
entre a dignidade como autonomia e como heteronomia, sempre no marco teórico
adotado na tese.
385
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito
Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.105-147.
191
três pontos que precisam ser destacados. Primeiro, o marco teórico adotado não se
confunde com o libertarianismo, nem com uma doutrina moral abrangente liberal, de
sorte que não é, em si mesmo e aprioristicamente, refratário à possibilidade de restrição
da liberdade em virtude de certos padrões morais compartilhados. Isto é, a preferência e
o ponto de partida estão com a liberdade tal como é compreendida na dignidade como
autonomia, mas, excepcionalmente, certos traços da dignidade como heteronomia
podem se fazer presentes e obter espaço. Então, no marco liberal igualitário, há
precedência para a dignidade como autonomia, sem exclusão total da dignidade como
heteronomia386.
Segundo, nesta tese, por razões já elencadas, optou-se por argumentar à luz de
um direito geral de liberdade e não dos direitos de liberdade (ou liberdades básicas). Ao
adotar o direito geral de liberdade, diminui-se, prima facie, a margem de atuação da
dignidade como heteronomia. Todavia, a diminuição é apenas prima facie, pois,
argumentativamente, os valores que ela representa podem sobrepor-se ao direito geral
de liberdade, ou seja, o ônus argumentativo fica com quem pretende implementar a
dignidade como heteronomia.
386
No marco do liberalismo igualitário, pode-se exemplificar com Ronald Dworkin, pois, ao discutir o
tema do aborto, o autor reconhece a existência da tradição de proteção da liberdade individual, mas
visualiza, simultaneamente, a tradição de proteção de um espaço moral público, responsável pela
preservação de certos valores (in casu, o valor intrínseco da vida humana). Embora o jusfilósofo não
trabalhe com os conceitos ora em exame, é possível conciliar seu pensamento à tensão que entre eles se
apresenta: “Assim, se nos termos da melhor compreensão dos dispositivos abstratos da Constituição os
estados norte-americanos carecem de poder de proibir o aborto, isso provavelmente se deve a algo de
específico sobre o aborto ou a reprodução e não ao fato de que os estados não possam legislar para
proteger os valores intrínsecos. […] Assim descrita, a questão fica na convergência de duas tradições às
vezes antagônicas, ambas fazendo parte da herança política norte-americana. A primeira é a tradição da
liberdade pessoal. A segunda atribui ao governo a responsabilidade de proteger o espaço moral público
em que vivem todos os cidadãos. Boa parte do direito constitucional consiste em conciliar essas duas
ideias. Qual é o equilíbrio apropriado no caso do aborto?”. DWORKIN, Ronald, Domínio..., p.209.
192
para trazer à tona tradição jurídica que se forma no Brasil sobre a dignidade humana e
também a sua leitura crítica387. A reconstrução assim feita possibilitará verificar a
existência de pontos que, entrelaçados, formem um mínimo consenso sobreposto acerca
do conceito de dignidade humana, hábil a auxiliar na solução de problemas práticos.
Então, ao invés de partir de um conceito teoricamente acabado de dignidade, a
metodologia será inversa: tomar-se-ão os conceitos competidores da dignidade, sem
exclusão inicial de qualquer deles da prática jurídica brasileira, e tratá-los à luz das
possibilidades interpretativas reconstrutivamente388.
387
Fica exposto aqui o método dworkiniano da integridade. Quando explica o que é o direito, Dworkin
demonstra que o direito é interpretativo. Em assim sendo, para compreender e atuar em um sistema
jurídico é necessário adotar a atitude interpretativa. Segundo o autor, há quatro virtudes políticas: (a) a
integridade; (b) a imparcialidade; (c) o devido processo e (d) a justiça. A integridade é o elemento
primordial, que nunca se pode perder de vista. Significa a leitura do sistema jurídico de uma forma
coerente, ou seja, incumbe ao intérprete reconstruir interpretativamente o sistema buscando o fio de
coerência, o fio de integridade, que se apresenta como uma teia, da qual podem ser extraídos os princípios
e as notas basilares do sistema. A integridade leva em consideração a coerência do sistema como um
todo, desde sua Constituição, leis, decisões judiciais até atos administrativos. Envolve um método
complexo que não apenas reproduz a tradição, mas, a partir dela, permite a proposição. Em síntese, o
método da integridade compõe-se de dois elementos, avaliação da adequação às práticas jurídicas de uma
comunidade e da sua justificação. Na primeira, lida-se com o ajustamento de uma interpretação e dos
princípios jurídicos a ela subjacentes às práticas jurídicas e sociais de uma comunidade de princípios. Na
segunda, põe-se em questão se tal interpretação honra as práticas, quando vistas sob sua melhor luz, isto
é, sob uma coerência de princípios, que leva em conta decisões passadas e imprime importância aos
princípios adotados, assumindo-os como relevantes para desafios futuros que se apresentem ao sistema.
DWORKIN, Ronald, O império..., passim. ARANGO, Op. cit., passim. OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de,
Moralidade..., p.231 e ss.
388
Martha Nussbaum, por exemplo, emprega as ideias de “consenso justaposto” e de “equilíbrio
reflexivo” de John Rawls como métodos para traçar o seu conceito de dignidade humana e de angariar
conclusões sobre as políticas públicas (sem prejuízo da adoção de conceitos estoicos e aristotélicos).
NUSSBAUM, Martha. Human Dignity and political entitlements. In: Human dignity and bioethics:
essays commissioned by the president’s council on bioethics. Washington: Mar. 2008. Disponível em:
http://www.bioethics.gov/reports/human_dignity/chapter14.html, p.358 e 360. Christopher McCrudden,
ao avaliar, comparativamente, diversos sistemas judiciais e suas compreensões da dignidade humana,
utiliza-se da noção de consenso justaposto quando procura um núcleo mínimo comum sobre a dignidade
humana. McCRUDDEN, Op. cit., p.675.
389
A expressão novo começo (new beginning) é de Bruce Ackerman e designa a Constituição que emerge
“as a symbolic marker of a great transition in the political life of a nation”. Já a ideia de reconstrução
democrática do direito remete ao título da obra organizada por Luís Roberto Barroso. ACKERMAN,
Bruce. The rise of world constitucionalism. Yale Law School occasional papers. Second series, n.3,
1997. BARROSO, Luís Roberto (Org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio
de Janeiro: Renovar, 2007.
193
extenso rol de direitos individuais, no qual figuram diversas liberdades pessoais e
garantias procedimentais, além de sedimentar direitos sociais, demonstrando sua
preocupação com a justiça distributiva e social, não recaindo, portanto, nem no
libertarianismo, nem no organicismo, tampouco no liberalismo390. Mas seria um texto
comunitarista? Se for, amplo será o espectro de atuação da dignidade como
heteronomia, seja pela aceitação do paternalismo e seus institutos afins, seja pela
promoção de interesses e valores coletivos que transpõem o indivíduo.
390
A respeito, ver: SARMENTO, Daniel. Interesses públicos v. interesses privados na perspectiva da
teoria e da filosofia constitucional. In: SARMENTO, Daniel (Org.) Interesses públicos versus
interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, p.29-79.
391
Na Constituição de 1967, as locuções bons costumes e ordem pública foram utilizadas uma vez para
autorizar expressamente a restrição da liberdade de culto (art.150, §5º). Na Constituição de 1946, há
dispositivo análogo ao mencionado, e, duas vezes, a ordem pública é o autorizador expresso para restrição
de direitos, a reunião pacífica e a permanência de estrangeiro no território nacional (art.141, §7º e § 11
respectivamente). A Constituição de 1937, por seu turno, foi mais pródiga na utilização dos termos moral
pública, moralidade pública, bons costumes e ordem pública, para autorizar a restrição expressa de
direitos, como: (a) liberdade de manifestação do pensamento (art.15, b); (b) a liberdade de culto (art.122,
4º); (c) o direito de manifestação dos parlamentares (art.43) e d) como justificadores da instituição, por
lei, da censura prévia (art.15, a) e da condução dos rumos da educação (art.132). Do exposto, percebe-se
que a Constituição de 1988 efetivamente consagrou o não-uso de tais conceitos indeterminados (ou
similares) para autorizar expressamente a restrição de Direitos Fundamentais.
194
específica. Na tábua formal de direitos, em momento algum tais locuções são utilizadas
como hipóteses de restrição de Direitos Fundamentais expressamente previstas392. A
palavra moral, ao ser enunciada na Constituição, junge-se mais ao indivíduo do que
apresenta elo com ideais coletivos ou comunitários393.
392
A expressão ordem pública é utilizada nos artigos referentes à segurança pública e às Forças Armadas
(arts.142 e 144) e também no sistema constitucional das crises (art. 34; 136). Imperioso notar que a
ameaça à ordem pública, nas hipóteses do Estado de Defesa ou do Estado de Sítio, há de ser institucional.
A locução interesse público é associada à colaboração entre agremiações religiosas e o poder público
(art.19); aos motivos do veto de ato legislativo pelo Executivo (art.66, §1º); à convocação extraordinária
do Congresso Nacional (art.57, § 6º, II); à contratação excepcional e temporária pela administração
pública (art.37, IX); à autorização expressa de restrição de garantias de servidores públicos e agentes
públicos inseridos em relações especiais de poder (arts. 93, VIII e IX; art.95, II; art.128, b). A hipótese de
emprego do interesse público para restrição de direitos encontra-se expressa apenas no art.114, §3º,
quanto à greve em atividades essenciais. BRASIL, Constituição ..., Op. cit.
393
Exemplificativamente, o dano moral e o uso da locução idoneidade moral para a ocupação de certos
cargos públicos. Não há referência à moral em sentido coletivo, como houve nos Atos Institucionais nº1 e
nº5, de 1964 e de 1968, respectivamente: “CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março
de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que
visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político,
assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa
humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra
a corrupção, buscando, deste modo, “os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica,
financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os
graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional
da nossa pátria”. BRASIL. Ato Institucional nº5, de 13 de dezembro de 1968. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm. [sem grifos no original]. Note-se que a
dignidade humana foi mencionada em contexto muito próximo da manutenção das tradições do nosso
povo, o que lhe confere uma larga tendência heterônoma.
394
A Constituição de 1988 possui diversos elementos substantivos deste naipe, como a proibição absoluta
da escravidão, dos trabalhos forçados, das penas cruéis, de morte (ressalva feita à guerra), perpétuas, da
tortura e da imposição de tratamento desumano ou degradante, bem como a proibição da comercialização
de órgãos e tecidos do corpo humano e a proibição do racismo. Cf. BRASIL, Constituição..., art. 5º, III e
XLVII.
195
formação de uma comunidade política de princípios, cuja unidade de agência segue
sendo o indivíduo, porquanto mantenha laços morais em comunidade395.
Todo o dito leva a crer que é o conceito de dignidade como autonomia o que
melhor se acomoda ao texto constitucional, com poucas exceções, muitas já firmadas
pelo próprio constituinte, e, no caso de serem construídos consensos mínimos ali não
expressos, há permeabilidade à dignidade como heteronomia, desde que se mostre
argumentativamente superior à dignidade como autonomia. E, nos dizeres de Daniel
Sarmento, o delineamento da fina sintonia entre um e outro há de ficar com os fóruns
públicos de tomada de decisão, em especial o Legislativo e o Judiciário398. Portanto,
para reconstruir o conteúdo da dignidade humana, não basta apenas o texto
constitucional e as opções do constituinte originário. É tarefa perscrutar o sistema como
395
As expressões acidente geográfico, comunidade de princípios e unidade de agência foram tomadas de
empréstimo de Ronald Dworkin e assumem aqui conteúdo análogo ao que contam nas obras do
jusfilósofo. DWORKIN, Ronald, O império..., passim.
396
Sobre o assunto, é relevante consultar na íntegra o artigo Interesses públicos v. interesses privados na
perspectiva da teoria e da filosofia constitucional, no qual Sarmento define a Constituição como
personalista, “[…] que continua vendo na pessoa humana e não no Estado a ‘medida de todas as coisas’
[…]”. SARMENTO, Interesses públicos..., p.72-79. Acredita-se que a expressão perfeccionismo moral
usada por Sarmento assume a conotação do aqui se denominou paternalismo jurídico, perfeccionismo e
moralismo jurídico.
397
Escreveu Luís Roberto Barroso sobre as uniões homoafetivas no Brasil: “Ocorre, porém, que o não-
reconhecimento das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo não promove nenhum bem jurídico que
mereça proteção em um ambiente republicano. Ao contrário, atende apenas a uma determinada concepção
moral, que pode até contar com muitos adeptos, mas que não se impõe como juridicamente vinculante em
uma sociedade democrática e pluralista, regida por uma Constituição que condena toda e qualquer forma
de preconceito. Esta seria uma forma de perfeccionismo ou autoritarismo moral, próprio dos regimes
totalitários, que não se limitam a organizar e promover a convivência pacífica, tendo a pretensão de
moldar indivíduos adequados. Em suma, o que se perde em liberdade não reverte em favor de qualquer
outro princípio constitucionalmente protegido”. BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o
reconhecimento das relações homoafetivas no Brasil. RDE. Rio de Janeiro: Renovar, v.5, 2007. Para ter
claro o pensamento do autor sobre o tema, conferir também: BARROSO, Luís Roberto. A defesa da
constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias. Observatório da Jurisdição
Constitucional, Brasília: ano 1, maio 2008. Disponível em: http://www.idp.org.br/index.php?op=
stub&id=9&sc_1=60.
398
Cf. SARMENTO, Interesses públicos..., p.73-79 O posicionamento mostra-se conforme, também, ao
conceito dialógico da dignidade.
196
um todo, tanto os enunciados infraconstitucionais vigentes e válidos, quanto as decisões
judiciais, máxime as do Supremo Tribunal Federal.
399
Quanto à dignidade como autonomia, especialmente: (a) a discussão sobre a recepção de artigos da Lei
de Imprensa na ordem constitucional pós-88. Nos votos, demarcado está o cunho pluralista e protetor das
liberdades. A correlação direta com a dignidade está no voto do Min. Relator e, indiretamente, perpassa
todo o decisum; (b) a discussão da constitucionalidade da proibição de progressão de regime nos crimes
hediondos. Note-se, todavia, que há insinuação de um elemento da dignidade como heteronomia em
alguns votos desse acórdão, dado o modo de compreender a ressocialização dos condenados
criminalmente. Porém, impera a vertente autonomista, como atesta longo trecho da lavra do Min. Cezar
Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade, o crime e o pecado. A laicidade e a pluralidade
são consideradas limites ao jus puniendi, o que está de todo associado à dignidade como autonomia; (c) o
elo entre dignidade e as condições mínimas de vida. Quanto à dignidade como heteronomia, o caso
paradigmático é, sem dúvida, o chamado caso Ellwanger, acerca dos discursos do ódio. Entretanto, é bom
trazer à tona que a CF/88 contém dispositivo específico sobre o crime de racismo (art. 5º, XLII).
BRASIL. STF. ADPF nº130-7/DF – MC. Rel. Min. Carlos Britto. 07/11/2008. Disponível em:
www.stf.jus.br. BRASIL. STF. HC nº82.959-7/SP. Rel. Min. Marco Aurélio. 01/09/2006. Disponível
em: www.stf.jus.br. BRASIL, STF. HC nº82.424/RS, Op.cit.
400
A fórmula do homem-objeto, oriunda do direito germânico, tem por base os trabalhos de Dürig, que,
por sua vez, partiu de premissas kantianas. Como exemplo, vários julgados tornaram cediço que o
indivíduo não pode, a pretexto de manutenção da ordem e da segurança públicas: (a) ter sua liberdade
cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos, se
não deu causa à mora processual, ou se, ressalvados outros fatos muito relevantes, exauriu-se a
justificativa para mantê-lo preso; (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em
razão da gravidade ou da repercussão do crime, ainda que hediondo, tampouco por fundamentos
decisórios genéricos; (c) ter o seu silêncio, na persecução penal, interpretado em seu desfavor; (d) não ser
devidamente citado em processo penal. Na linha de casos, a motivação é a de que o indivíduo não pode
ser mais uma engrenagem do processo penal, ou seja, não pode ser instrumentalizado para o efetivo
funcionamento da máquina persecutória estatal, impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as
garantias constitucionais da liberdade. Ademais, por insistência do Min. Gilmar Mendes, a prisão
instrumental à extradição está sendo revisitada, pois, como entende o Ministro, o extraditando torna-se
um instrumento ante objetivos estatais. A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acórdão que
discutiu a competência para o julgamento de crimes de redução de pessoas à condição análoga à de
escravo. Embora o conteúdo da dignidade seja passível de leitura como heteronomia, pois a escravidão é
considerada um mal em si, o seu conteúdo é fortemente relacionado à preservação da liberdade humana e
de suas pré-condições. Cf. BRASIL. STF. HC nº92.604-5/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJ de
197
dos indivíduos401; (c) proibição da tortura, da imposição de tratamento desumano ou
degradante e da crueldade402.
25/04/2008; BRASIL. STF. HC nº88.548-9/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJ de 26/09/2008; BRASIL.
STF. HC nº91.657-1/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes; DJ de 28/03/2008. BRASIL. STF. HC nº91.414-
4/BA. Rel. Min. Gilmar Mendes; DJ de 25/04/2008. BRASIL. STF. HC nº91.121-8/MS. Rel. Min.
Gilmar Mendes. DJ de 28/03/2008; BRASIL. STF. HC nº91.524-8/BA. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJ de
25/04/2008; BRASIL. STF. HC nº91.662/PR. Rel. Min. Celso de Melo. DJ de 04/04/2008 (neste
acórdão, o ponto principal da motivação é o due processo f law); BRASIL. STF. HC nº92.842/MT. Rel.
Min. Gilmar Mendes. DJ de 25/04/2008; BRASIL. STF. RE 398.041-6/PA. Rel. Min. Joaquim Barbosa.
DJ de 19/12/2008.
401
O leading case quanto à integridade física parece ser o que versou sobre a possibilidade de realização
compulsória de exame de DNA para fins de comprovação de paternidade. Mesmo que deveras relevante o
interesse do outro polo da relação processual, o STF considerou que a realização forçada de exames
invade a privacidade, a intimidade e a integridade física individuais, protegidas pela dignidade. Mais
recente foi a discussão sobre o uso de algemas, que culminou, inclusive, na edição da Súmula Vinculante
nº11. O uso acriterioso de algemas e a divulgação abusiva de imagens de indivíduos nessa condição
foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos. BRASIL. STF. HC nº71.373-4/RS.
22/11/1996. Disponível em: www.stf.jus.br; BRASIL. STF. HC nº89.429-1/RO. 02/02/2007. Disponível
em: www.stf.jus.br.
402
É importante referir os acórdãos e a Súmula sobre o uso de algemas, bem como a decisão acerca do
crime de tortura perpetrado contra crianças e adolescentes. BRASIL. STF. HC nº70.389-5/SP.
10/08/2001. Disponível em: www.stf.jus.br. Na doutrina estrangeira, é interessantíssima a produção de
Waldron sobre o tema: WALDRON, Jeremy. Inhuman and degrading treatment: a non-realist view. NYU
Public Law Colloquium, April, 23 (second draft).
403
Consenso sobreposto é uma expressão cunhada por John Rawls. Ao elaborar sua célebre teoria da
justiça, tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo, assumindo que é um traço permanente da
cultura política de uma democracia a convivência de diversas crenças religiosas, filosóficas, políticas e
morais. Para que seja possível a construção de uma sociedade política, faz-se necessária a adesão razoável
de todos a princípios básicos de justiça. A partir dessa adesão primeira, formam-se, mediante emprego do
procedimento da razão pública, outros pontos de consenso político, justamente aqueles que podem ser
razoavelmente aceitos por indivíduos ou grupos que não compartilham as mesmas crenças. Tais pontos
são o chamado consenso justaposto. RAWLS. Justiça como..., Op. cit.,p.44-53.
404
Coaduna-se esse consenso com o identificado por McCrudden no direito comparado e internacional,
muito embora o autor advirta sobre o caráter fluído de um núcleo comum do conceito de dignidade:
McCRUDDEN, Op. cit., p.679. No mesmo ensejo, decisões das Cortes Constitucionais alemã e
canadense exibem consenso mínimo muito semelhante ao do STF nos pontos ressaltados. Cf. ULLRICH,
Op. cit.
198
Aduza-se a isso a longa linha de precedentes do Superior Tribunal de Justiça
sobre o dano moral, que considera a dor, o sofrimento e a humilhação elementos
caracterizadores da referida modalidade de dano, cuja ocorrência avilta também a
dignidade humana405. É certo que aí não fica estipulado se se trata de dignidade como
autonomia ou de dignidade como heteronomia, o que permite dizer que a imposição de
dor, sofrimento e humilhação afronta a dignidade, seja o conceito entendido quer como
autonomia quer como heteronomia.
405
É longa a linha de precedentes. Como ilustração, destacam-se: BRASIL. STJ. REsp.910.794/RJ. Rel.
Min. Denise Arruda. 04/12/2008. Disponível em: http://www.stj.gov.br; BRASIL. STJ.
REsp.802.435/PE. Rel. Min. Luiz Fux. 30/10/2006. http://www.stj.gov.br/. Do último, vale destacar um
trecho: “10. Deveras, a dignidade humana retrata-se, na visão Kantiana, na autodeterminação; na
vontade livre daqueles que usufruem de uma vivência sadia. É de se indagar, qual a aptidão de um
cidadão para o exercício de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi uma 'morte em vida', que se
caracterizou pela supressão ilegítima de sua liberdade, de sua integridade moral e física e de sua inteireza
humana?”.
406
A confirmar a assertiva: (a) a legislação vigente sobre transplantes de órgãos inter vivos e post
mortem, fulcrada no consentimento. Tanta é a relevância do consentimento que o sistema de doação
presumida inicialmente instituído foi alvo de intensa polêmica, o que gerou alteração no texto legal. A
nova forma, que deixa ao encargo do consentimento dos familiares, também causa dissenso, havendo
sustentações bastante razoáveis no sentido de que a decisão do provável doador, se formulada, deveria
prevalecer sobre a da família; (b) a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, cujo paradigma de
proteção dos sujeitos de pesquisa está centrado no consentimento livre e esclarecido; (c) a
regulamentação das técnicas de reprodução assistida adota por princípio o consentimento informado de
pacientes e doadores; (d) a regulamentação da gestação por substituição (hipótese de reprodução
assistida) determina que, uma vez seguidos certos padrões, há de prevalecer o consentimento da gestante
por substituição e dos pais biológicos; (e) a regulamentação da cirurgia de transgenitalização é
orientada pela manifestação do desejo expresso; (f) a necessidade de consentimento dos genitores para
uso de células tronco embrionárias em pesquisa ou processo terapêutico, prevista pela Lei de
Biossegurança e reafirmada pelo STF. Conferir: BRASIL. Lei nº11.105/2005. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm; BRASIL. Lei nº9.434/1997.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm; BRASIL. Lei nº10.211/2001.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10211.htm; BRASIL.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. CNS. Resolução 196/1996. Disponível em:
http://conselho.saude.gov.br/comissao/conep/resolucao.html; BRASIL. CFM. Resolução nº1.652/2002.
Op.cit., BRASIL. CFM. Resolução nº1.358/1992. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1992/1358_1992.htm .
199
dialógicos da dignidade e, de modo menos intenso, pela dignidade como heteronomia.
A conclusão, porém, não oferece a resposta para a suficiência do consentimento para a
disposição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, pois será preciso
perceber, em cada caso, peculiaridades acerca da dignidade como autonomia e se haverá
espaço para a dignidade como heteronomia. Assim, embora exista tendência à
dignidade como autonomia, havendo tendência à possibilidade de disposição, a própria
dignidade como autonomia exige certos padrões e limites, pois é bom lembrar que a
dignidade como autonomia não é sinônimo de liberdade desenfreada, nem de uma
liberdade esvaziada. Ela apenas se mostra em sua inteireza quando estiverem presentes
as circunstâncias e as condições da liberdade. A questão é nuclear para o assunto em
pauta. É preciso que existam condições materiais para a tomada de decisão, e, como a
disposição pode envolver decisões de marcantes impactos fáticos e jurídicos, as
precauções com o consentimento são relevantes. Assegurar a genuinidade do
consentimento é tarefa imperiosa para a manutenção da dignidade como autonomia.
200
3 (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UM
INVENTÁRIO DAS TESES DE APLICAÇÃO
407
VERÍSSIMO, Erico. Viagem à aurora do mundo. 16. ed. São Paulo: Globo, 1996.
408
PESSOA, Fernando. O cancioneiro. Ciberperfil Literatura Digital, p.60.
201
No Capítulo anterior, foram inventariadas as razões acerca da admissibilidade da
disposição de posições subjetivas de direito fundamental; teses que lidam com o
consentimento ou que refletem a sua suficiência. Seguindo os conceitos talhados no
Capítulo 1, apresentaram-se as teses acerca (a) das concepções de direito subjetivo; (b)
da extensão do direito de liberdade; (c) do paternalismo jurídico e seus institutos afins;
(d) da dignidade humana. Cada uma foi relacionada à (in)disponibilidade das posições
subjetivas de direitos fundamentais. Percebeu-se que as teses tratam das razões para que
se permita ou proíba a disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Por
vezes, um mesmo argumento pode servir aos dois propósitos, a depender do conteúdo e
do viés teórico atribuído.
202
descartadas de plano, merecendo espaço e atenção, especialmente no que diz respeito à
dialogicidade.
409
Como exemplo, o Enunciado 4 da Jornada STJ, apresentado no Capítulo 1.
203
também a proposta de que a disposição seja admissível quando se tratar do objeto do
direito e inadmissível quando se tratar do direito em si410.
410
No âmbito do direito penal, os autores trabalham, em geral, com os chamados bens disponíveis e bens
indisponíveis, apresentando, portanto, outro critério. Ver: PIERANGELI, Op.cit., p.107 e ss.
411
McCONNELL, Op. cit., p.10.
204
A delimitação quanto ao objeto da disposição conduz à distinção entre a parcial
e a total. A disposição parcial refere-se a uma ou a algumas posições jurídicas subjetivas
de um direito fundamental. A total refere-se ao feixe de posições jurídicas subjetivas de
um direito fundamental. Aqui já se firma um ponto. Se o conceito de disposição total
confundir-se com direito fundamental como um todo, de regra será inadmissível a
disposição. Lembra-se, todavia, ser não apenas difícil, mas rara a possibilidade de
disposição do direito fundamental como um todo, em virtude de facetas da dimensão
objetiva. Assim, o critério torna-se de pouca utilidade prática. Mas, se compreendida
como a disposição de todo o feixe de posições subjetivas de um direito fundamental,
talvez seja a classificação mais útil à verificação da admissibilidade da disposição.
412
Cf. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.221 e ss.
205
intersubjetiva, ela será geral quando atingir todos os sujeitos passivos da posição
jurídica subjetiva. Será específica quando se destinar a um ou a alguns sujeitos passivos
determinados, sem englobar sua totalidade413.
413
McCONNELL, Op. cit., p.10.
414
A doação de órgãos inter vivos é regida, no Brasil, pela Lei nº9.434/1997, com as alterações
introduzidas pela Lei nº10.211/2001, que estipula critérios para a doação e prevê a revogabilidade
expressamente: “§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer
momento antes de sua concretização”. BRASIL, Lei nº9.434/1997, com as alterações introduzidas pela
Lei nº10.211/2001, Op. cit.
415
Sobre a transgenitalização, ver: BRASIL. CFM. Resolução nº1.652/2002, Op. cit. Sobre a doação de
sangue, ver: BRASIL. Lei nº10.205/2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/leis_2001/l10205.htm. A Lei institui o SINASAN, órgão responsável também pela
regulação da coleta e estímulo à doação de sangue.
206
Suponha-se, agora, que um indivíduo A consinta genuinamente que policiais
efetuem uma busca e apreensão em seu domicílio sem a devida autorização judicial.
Inicialmente, parece ser uma disposição parcial, revogável, temporária, específica e que
não afeta a titularidade do direito. Mas, se forem encontrados armamentos e drogas
ilícitos na residência? Poderá o morador revogar o consentimento? O problema aparece
com clareza. A disposição somente seria parcial por restar ao morador a possibilidade
de exercer uma posição, a de retirar a autorização para que os policiais permaneçam em
seu domicílio. Ao serem encontradas provas, não poderá mais o morador revogar seu
consentimento; disso se extrai que se tratou de disposição total, irrevogável, temporária
e específica, que afetou, além do direito à inviolabilidade do domicílio, garantias
processuais416. Em sentido similar, se um indivíduo, em uma ação de investigação de
paternidade, consente genuinamente em realizar um exame de DNA, dispõe de posições
subjetivas do direito fundamental à integridade física, à privacidade e, também, de
posições relativas a garantias processuais. Feito o exame e confirmada a paternidade,
não poderia mais o indivíduo revogar seu consentimento, nem evitar o uso da prova em
juízo.
416
Há julgados do STJ sobre a matéria. Se houve consentimento genuíno, o Tribunal não considera as
provas obtidas por meios ilícitos, tampouco considera que haveria invasão de domicílio: “I. Não há
ilegalidade na entrada em domicílio, ainda que sem mandado, se evidenciado o efetivo consentimento da
moradora do imóvel”. BRASIL. STJ. RHC nº12.280/RJ. Rel. Min. Gilson Dipp. DJ de 04/12/2000.
Conferir também: BRASIL. STJ. RHC nº43-737/SP. Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa. DJ de
03/10/2005; BRASIL. STJ. RHC nº4.225-7/MS. Rel. Min. Assis Toledo. DJ de 06/03/1995; BRASIL.
STJ. RHC nº12.674/SP. Rel. Min. Gilson Dipp. DJ de 05/08/2002. Trabalhando com exemplo
semelhante, Jorge Reis Novais menciona: “Diferente seria, todavia, a situação em caso de renúncia à
própria titularidade do direito, caso em que – caso se considerasse admissível – a renúncia produziria
também a perda definitiva ou temporária do direito, consoante o sentido temporal da renúncia, o que
inibiria, igualmente, a possibilidade de sua revogação a qualquer momento por parte do titular do direito.
Assim, quando um indivíduo consente, sem estar obrigado, que a polícia proceda a uma busca em seu
domicílio, deve entender-se que, antes de esta ser iniciada, pode revogar a decisão de consentimento; mas,
pela própria razão de ser do instituto, quando iniciada a busca, não poderá o cidadão fazê-la cessar a seu
bel-prazer, por exemplo, quando estivesse iminente a descoberta de objectos comprometedores; deve aí
entender-se que, iniciada a busca, ele perde, pelo menos temporariamente, a titularidade da garantia da
inviolabilidade de domicílio, não sendo então admitida a possibilidade de revogar a declaração de
renúncia (consentimento). NOVAIS, Renúncia..., p.277, nota nº22 [sem grifos no original].
207
é uma disposição geral ou específica, o que pode ensejar dúvidas sobre a parcialidade,
pois em uma relação específica poderia haver disposição total, mas o titular manteria
nas mãos as posições quanto aos demais sujeitos que não pertencem à relação de
disposição. Eis o problema: está-se diante de uma disposição total ou parcial? Da
titularidade ou do exercício? O que exatamente deve ser levado em consideração? A
relação específica de disposição ou a totalidade de relações para que seja formulada a
classificação?
Então, em segundo lugar, percebe-se que as modalidades não são tão límpidas
quanto parecem. O ato de dispor parcial, específica, temporária e revogavelmente do
exercício de posições jurídicas de direitos fundamentais pode ser muito semelhante ao
de dispor da titularidade da posição na relação específica de disposição, principalmente
se decorrerem consequências negativas da revogação. Veja-se que Reis Novais chegou
até a mencionar que o consentimento para entrada de policiais para efetuar uma busca
em um domicílio configura disposição da titularidade da posição jurídica subjetiva. A
conclusão do autor lança os problemas à mesa. O sujeito dispôs da titularidade da
posição ao consentir? Se levada em consideração a relação específica, poder-se-ia
sustentar que sim, pois os policiais passaram a ter imunidade (ou direito estrito, a
depender da interpretação) quanto à permanência no domicílio417. Mas e se outro
indivíduo – um vizinho curioso – pretendesse adentrar no domicílio, o morador poderia
não consentir, ou, quanto a esta pessoa, retirar o consentimento a qualquer tempo, o que
demonstra que, não obstante o consentimento dado aos policiais, A ainda titulariza uma
posição, do contrário não poderia invocá-la. Destarte, é preciso saber se a classificação
se formula para a relação específica ou não. Ou se poderia existir uma disposição
temporária de titularidade.
417
Ou seja, que a extinção da nova relação criada pelo ato de disposição ocorra sem a necessidade de
concorrência do consentimento dos demais sujeitos da relação. Na hipótese o que se tem é direito estrito
do morador a que a polícia não entre em seu domicílio (DaE¬G). Quando consente, o morador cria uma
nova relação, que, a depender do sistema, poderá ser DEaG ou SaEG.
208
premente saber se a classificação é formulada em vista de todos os possíveis impactos
jurídicos futuros.
418
Supra, Capítulo 1, item 1.2.4.
419
Cf. NOVAIS, Renúncia..., p.279.
420
Reis Novais ilustra indagando de que vale titularizar posições jurídicas subjetivas do direito de greve
se houver (em um sistema jurídico que aceite a situação) um contrato no qual o titular se compromete a
não exercer as posições por um período específico. Cf. NOVAIS, Renúncia...,.
209
sujeito mantém a titularidade, em princípio haverá revogabilidade, ainda que dela
decorram consequências negativas421.
Nesse tema, Jorge Reis Novais prima pela clareza. Do ponto de vista material,
pode ser que a diferença não apareça. Mas, do ponto de vista analítico das posições
jurídicas de direito fundamental, a diferença existe. Intuitivamente, indaga-se a
pertinência e a utilidade da distinção quanto a aspectos substantivos e funcionais dos
direitos fundamentais. Isto é, qual é a valia em pautar um critério em uma diferença
dogmático-estrutural que não repercute em diferenças significativas no que toca à
substância e à função das posições subjetivas de direitos fundamentais? Voltar-se-á ao
ponto adiante.
421
Embora a conclusão deste tópico conduza à revisão do critério como um todo, a revogabilidade sem
consequências negativas é muito importante quando se tem em mente posições subjetivas de direito
fundamental indisponíveis. A revogabilidade se faz presente quando o consentimento enseja uma
modificação da posição gerando um privilégio. Ver supra, Capítulo 1, item 1.3.3. Ver infra, item 3.2.2.3.
210
diverso lidar com a disposição de posições subjetivas do direito à vida e do direito à
liberdade de expressão. Ou do direito à liberdade de expressão e do direito à
privacidade. É notória a diferença entre a realização de uma pequena tatuagem no corpo
e a doação de órgãos inter vivos, embora essa diferença não se mostre se os olhos
estiverem voltados apenas às modalidades de disposição das posições jurídicas
subjetivas em cada caso.
211
finalmente, a renúncia a este exercício é temporária e qual sua
extensão422.
Portanto, o escrutínio das modalidades de disposição funciona como um primeiro passo
no exame de uma disposição de posições subjetivas de direito fundamental, munindo o
intérprete com clareza analítica a respeito da disposição, permitindo-lhe delimitar seu
alcance e visualizar impactos jurídicos e fáticos. A falha está em tratar uma combinação
de modalidades como um critério determinante e generalizável, pois seu cunho
eminentemente formal não abraça elementos substantivos, fáticos e funcionais que
precisam se fazer presentes, tampouco dá conta da coerência interna de um sistema
jurídico. Pesem embora as deficiências do critério, o exame das modalidades é relevante
para a percepção da extensão de enfraquecimento de posições jurídicas subjetivas de
direito fundamental. Sendo assim, esse exame, aliado a outros critérios, há de ser o
início do processo.
422
NOVAIS, Renúncia..., p. 284-285.
212
vítima de regra não possui valor jurídico, há estudos e práticas sobre o consentimento,
suas características e seu alcance423.
423
Aliás, há que se reconhecer que a propagação da ideia de o consentimento do ofendido ser irrelevante
para efeitos penais é um mito, pois o próprio Código Penal, com os tipos que institui, faz uso do
consentimento, expressa ou implicitamente. Por exemplo, o crime de estupro está intimamente
relacionado ao consentimento, assim como a invasão do domicílio. É o consentimento que faz toda a
diferença entre ser o ato lícito ou não. Também no abortamento, há diferente trato para a sua realização
com ou sem o consentimento da gestante. Diversos crimes supõem a inexistência de consentimento, ou
seja, o dissenso, como o furto, a violação de direitos autorais, a apropriação indébita, o dano, a usurpação,
a violação de correspondência, a violação dos segredos, dentre outros. Sobre o tema: PIERANGELI, Op.
cit., p.107 e ss. GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: RT,
2004 (Ciência do direito penal contemporâneo; v.7), p.90 e ss. BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei
nº2.848, de 7 de dezembro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-
Lei/Del2848.htm
424
Em uma análise estritamente positivista, seriam vistos apenas os enunciados normativos vigentes sobre
consentimento. No marco desta tese, a análise é diferente. Trata-se de diretrizes do consentimento.
213
direito endossar o abuso sistemático ou a má-compreensão do
consentimento na prática (seja por hiper ou por hipo dependência), e é
muito fácil criticar o direito por tomar posições aparentemente
arbitrárias (por exemplo, em relação à exigência de que o
consentimento deve ser livre e esclarecido), ou por adotar doutrinas
que são hiper ou hipo protetoras das partes “consententes”. Modernas
comunidades de direitos, que são ao mesmo tempo comunidades do
consentimento, merecem algo melhor do que isso.
[…] O consentimento, em princípio, é uma justificação procedimental
distintiva e elegante, todavia, a própria familiaridade com o
consentimento na prática, e particularmente com o consentimento no
direito, engendra confusão e desdém, bagunça e trapalhada425.
A ideia é dar vazão prática à importância do consentimento, mormente na
disposição, situação na qual ele é condição necessária e suficiente à modificação,
criação e extinção de relações jurídicas de direitos fundamentais, possuindo a
capacidade de retirar um sujeito do polo dominante da relação e exercendo o papel de
justificação procedimental. Em assim sendo, a grande questão sobre o consentimento é
tratá-lo em conexão com os direitos fundamentais e com a própria noção de dignidade
humana. Em suma, o consentimento precisa trazer à tona a ligação com as teses de
justificação apresentadas no Capítulo anterior.
425
O projeto desta tese foi apresentando em 2005, para ingresso no doutoramento em 2006. A seguir,
foram iniciados os estudos sobre o consentimento. No curso das pesquisas, no início de 2008, esta
pesquisadora teve acesso à obra de Beyleveld e Brownsword sobre o consentimento. Muito do caminho
que já havia sido trilhado aqui constava na obra dos autores, em uma convergência espontânea. O mesmo
ocorreu quanto a alguns casos estudados. Neste trecho do capítulo, a influência da obra é direta e
constante. Os autores tornaram-se a principal fonte de referência. Cabe ressaltar, todavia, que muitos
casos já haviam sido estudados e mesmo citados em publicações anteriores desta doutoranda. A inserção
do pensamento dos autores no Capítulo 1 aconteceu apenas na revisão do Capítulo. BEYLEVELD;
BROWNSWORD, Consent…, p.333 “At the outset, we remarked that, notwithstanding its familiarity,
there is a great deal to understand about the idea of consent, without such an understanding, it is too
easy for the law to endorse the systematic abuse or misuse of consent in practice (whether by over – or
under-reliance), and it is too easy to criticise the law for taking up seemingly arbitrary positions (for
example, in relation to the requirement that consent should be free and informed) or for adopting
doctrines that are over – or under-protective of the ‘consenting’ parties. Modern communities of rights,
which at the same time are communities of consent, deserve better than this. Having sharpened our
appreciation of consent, we better placed to cut our way through a range of abusive, opportunistic, or
misguided practices that variously undervalue or overvalue consent, that fictionalise it or that are fixate
by it, and that treat it to causally or too cautiously. Consent, in principle, is a distinctive and elegant
procedural justification; however, the very familiarity of consent in practice, and particularly consent in
the law, engenders confusion and contempt, mess and muddle”.
214
pessoas, eutanásia, suicídio assistido, relações homoafetivas...), para não rejeitá-los de
plano em nome do consentimento; isto é, ao invés de discutir a substância dos assuntos,
lançar dúvidas e recusar a própria possibilidade do consentimento:
426
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.136. “If we are to maintain the integrity of consent,
the lesson is this: where we are in favour of a transaction, it is tempting to assert that it is authorised by
consent, but where we are opposed to a transaction, it is equally tempting to deny that it is authorised by
consent. In both cases, there is an element of disingenuousness that should be discouraged”.
427
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.225-226. Um exemplo típico de recusa que causa
estranheza refere-se a tratamentos médicos, especialmente quando eles são capazes de curar e de reverter
o quadro clínico do enfermo. É o que acontece com os membros de denominações religiosas que não
aceitam certas terapias, como a transfusão sanguínea, a doação de órgãos inter vivos ou post mortem e,
em certos casos, a hemodiálise. É corriqueiro, no Brasil e mesmo alhures, dizer-se que a escolha é
equivocada, que a leitura religiosa é errônea e que haveria um modo correto de se comportar em situações
como essa. A petição inicial da ACP da ortotanásia é enfática, empregando, inclusive, situações extremas,
envolvendo crianças e adolescentes: “Era livre a garota canadense quando afirmou sentir-se violada
como se fosse um estupro ao receber transfusão de sangue decretada pela Suprema Corte Canadense?
Respondo peremptoriamente que NÃO.
NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO
.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃ
O.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.N
ÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.
NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO. Não eram livres os pais testemunhas de Jeová. Eram dominados por um
sentimento religioso errôneo, que coloca o bem maior, a vida, a serviço de interpretações outras da
bíblia. Era livre a garota canadense? Não! Definitivamente não! Tinha a liberdade turvada, da mesma
forma, por um entendimento errôneo do que poderia ser o próprio corpo, o sagrado. Era livre a garota
canadense? Não! Definitivamente não! Tinha a liberdade turvada, da mesma forma, por um
entendimento errôneo do que poderia ser o próprio corpo, o sagrado. [...]
215
Ademais, não são apenas as questões referentes à existência e à validade do
consentimento que se destacam. A interpretação do consentimento é muito valorosa.
Como um mecanismo de comunicação humana, o consentimento está sujeito a leituras
diversas, especialmente pelos envolvidos, pois há a decisão daquele que consente e a
expectativa daquele que recebe o consentimento. Então, além do exame da existência e
da validade do consentimento, importa muito haver diretrizes claras sobre a sua
interpretação, tanto em nome da segurança jurídica quanto dos interesses dos dois lados
que se apresentam nessas situações: (a) fidelidade à vontade do consentente; (b) as
expectativas justificadas do outro polo da relação428.
429
A locução “sujeito do consentimento” é de BEYLEVELD e BROWNSWORD, Consent..., p.93 e ss.
430
Art. 213 c/c 224 do CP. Cf. BRASIL. Código Penal. Op.cit. Ver, ainda, decisão do STF que
reconheceu em menina de 12 anos a habilidade (jurídica) para consentir com relações sexuais, afastando,
portanto, a presunção de violência no estupro: BRASIL. STF. HC nº73.662-9/MG. Segunda Turma. Rel.
Min. Marco Aurélio. DJ de 20/09/2006. Em sentido oposto: BRASIL. STJ. REsp.nº332.138/MG. Rel.
Min. Felix Fisher. DJ de 11/04/2005. Perceba-se que não se está a defender, nesta tese, que adolescentes
com menos de 14 anos são aptas a consentir com relações sexuais, nem se aprecia criticamente a decisão
do STF na matéria. Tão-somente constata-se que a idade do consentimento é inferior àquela prevista para
a capacidade civil plena. Para exame crítico da decisão do STF: OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de.
Moralidade..., p.293 e ss.
217
Desse modo, tem-se que o sujeito do consentimento não se confunde com o
civilmente capaz. O que é, então, um sujeito do consentimento? Quem é um sujeito do
consentimento? Deryck Beyleveld e Roger Brownsword definiram com precisão um
sujeito do consentimento:
431
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.13-14. No original: “If the conditions for an
authentic consent are that it is given freely and on an informed basis (however these conditions are
interpreted), then the logic is that the specification of a ‘subject of consent’ – that is, one having the
relevant capacity (or competence) to consent – will reflect these conditions. This means, first, that a
person with capacity to consent will be capable of forming own judgments and making their own
decisions free from the influence or opinion of others; and secondly, that such a person will be able to
understand and apply the information that is material to their decision”.
432
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.98-101.
433
Notadamente, o segundo elemento já levanta questões acerca da validade do consentimento – como o
acesso às informações necessárias para a tomada de decisão e a ausência de pressões fáticas e jurídicas
relevantes. Infra, item 3.2.2.1 e 3.2.2.2.
218
presentes no momento relevante para o consentimento. Com isso, evita-se considerar
que sujeitos em estados psíquicos alterados sejam reputados sujeitos ideais do
consentimento, como acontece com adictos, alcoolistas, portadores de transtornos
mentais, pessoas sob efeito de anestésicos, inconscientes, etc.
434
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent...,.
435
No direito civil brasileiro há uma situação que demonstra o aspecto com clareza ímpar. Ao tratar do
casamento, o Código Civil estipula que o regime de bens a ser adotado quando um dos nubentes contar
com mais de 60 anos há de ser o da separação de bens. Ora, por que uma pessoa com 60 anos é tratada
como inapta para escolher o regime de bens que adotará em seu casamento? As justificações apresentadas
para o enunciado são, usualmente: (a) evitar que pessoas com mais de 60 anos sejam vítimas do popular
golpe do baú; (b) proteger o patrimônio conquistado para os herdeiros já existentes. A primeira é
nitidamente paternalista e parte do pressuposto de que uma pessoa com mais de 60 anos deve ser
protegida contra suas próprias escolhas. A segunda retira do indivíduo o uso, gozo, fruição e disposição
de seus bens materiais, que ainda não são dos herdeiros, se é que eles existem. É, sem dúvida, uma
violação da liberdade dos indivíduos, por supô-los incapazes de serem sujeitos do consentimento. Além
disso, a proibição não guarda qualquer coerência com o ordenamento brasileiro como um todo, pois
pessoas com 60 anos podem ocupar os mais diversos cargos, até mesmo a Presidência da República. Por
que alguém que é capaz para tanto não o é para escolher o regime de bens do seu casamento? Ainda antes
do novo Código Civil, já havia decisões judiciais considerando não recepcionados pela CF/88 dispositivo
análogo do Código de 1916: “CASAMENTO. Regime de bens. Separação legal obrigatória. Nubente
sexagenário. Doação à consorte. Validez. Inaplicabilidade do art. 258, § Único, II do Código Civil, que
não foi recepcionado pela ordem jurídica atual. Norma jurídica incompatível com os arts. 1°, III, e 5°, I,
X e LIV, da CF em vigor. Improvimentos aos recursos. É válida toda doação feita do outro pelo cônjuge
que se casou sexagenário, porque, senão incompatível com as cláusulas constitucionais de tutela da
dignidade da pessoa humana, da igualdade jurídica e da intimidade, bem como com a garantia do justo
processo da lei, tomado na acepção substantiva (substantive due process of law), já não vige a restrição
constante do art. 258, § Único, II, do Código Civil”. SÃO PAULO. TJSP. Apelação Cível nº007.512-4-
2. Rel. Des. Cézar Peluso. 18/08/1998.
219
justificação procedimental. Existe, portanto, uma tensão a reclamar princípios
norteadores que indiquem como proceder diante dos casos de penumbra.
Porém, há uma zona de penumbra, composta por casos nos quais ou a agência
não se mostra plenamente presente, ou não há meios de determinar se ela efetivamente
existe ou, ainda, ela é meramente potencial. Nesta tese, não serão trabalhadas todas as
categorias. Restringir-se-á a descrição às que interessam diretamente à discussão do
Capítulo 4, que são: (a) agentes intermitentes; (b) agentes ostensivos pretéritos; (c)
agentes ostensivos futuros. Por agentes intermitentes, entendem-se aqueles que ora
apresentam as qualidades da agência, ora não, como pessoas em recuperação, portadoras
de alguns transtornos mentais, adolescentes, etc. Por agentes ostensivos pretéritos,
entendem-se aqueles que já apresentaram as qualidades da agência e que, por alguma
razão, perderam-na, como ocorre com pessoas em estado vegetativo persistente e com
436
Resumida e superficialmente, pode-se dizer que a agência traduz-se nas habilidades de: (a) formular
julgamentos desenvolvidos e emiti-los; (b) agir de modo livre e com intencionalidade. No tema, a
precaução assim se manifesta: “Se não há modo de saber se X possui ou não a qualidade P, então, tanto
quanto possível, deve-se presumir que X tem a qualidade P, se as consequências do erro na presunção de
que X não possui a qualidade P forem piores do que aquelas advindas do erro na presunção de que X
possui P (e deve-se presumir que X não possui P se as consequências do erro na presunção de que X
possui P forem piores do que aquelas advindas da presunção de que X não possui P)”. BEYLEVELD;
BROWNSWORD, Human dignity… p.122. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.101 e ss.
220
as falecidas. Por agentes ostensivos futuros, entendem-se aqueles cuja linha de
desenvolvimento geralmente leva-os à agência ostensiva437.
437
A respeito: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.99-114.
438
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent....
439
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.114 e ss. GARNER, Bryan A. (editor in Chief).
Black’s Law Dictionary. Eighth Edition, Thomson West, 2004. Vocábulo substituted judgement.
440
Nancy Cruzan sofreu um acidente automobilístico e, como consequência, ficou em estado vegetativo
persistente. Ela assim permaneceu sete anos sem reflexos motores e sem função cognitiva, mas viva, pois
seu organismo mantinha a respiração e a circulação autonomamente. Ela era alimentada e hidratada
artificialmente. Consoante pareceres médicos, não havia chance de reversibilidade de seu quadro, mas, se
fossem mantidas a hidratação e a nutrição artificiais, ela poderia viver por mais trinta anos. Os pais de
Nancy solicitaram aos médicos e funcionários do hospital a suspensão da nutrição e da hidratação
artificiais. Como Nancy faleceria, os funcionários e médicos se recusaram a suspender o suporte, a menos
que houvesse uma ordem judicial autorizando. Os pais recorreram ao Judiciário. A Suprema Corte
221
EUA e a Câmara dos Lordes do Reino Unido, respectivamente, empregaram o
julgamento por substituição, procurando reconstruir o estilo de vida, os valores e as
preferências de agentes ostensivos pretéritos, a fim de tomar a decisão sobre a retirada
de sistemas de suporte vital. No caso Cruzan, exigiu-se um rigoroso padrão de prova
sobre as suas preferências e manifestações pretéritas. Já em Bland, a reconstrução do
seu perfil pautou-se em elementos menos exigentes. Nos dois casos, era viável a
tentativa de moldar o caráter dos enfermos e pressupor qual decisão tomariam. Porém,
em um terceiro caso, Strunk Case, o julgamento por substituição mostrou sua
potencialidade para desvios, pois decidiu-se que Jerry Strunk consentiria, se estivesse
apto a fazê-lo. Mas não havia, no caso, elementos para a reconstrução da personalidade,
preferências e valores de Jerry Strunk, uma vez que ele jamais apresentara um nível de
desenvolvimento intelectual e psíquico suficiente para ser caracterizado como um
agente ostensivo, dirá como um sujeito do consentimento442.
O ponto traz à tona a segunda e a terceira críticas, uma vez que, sem apoio nas
características de um agente ostensivo pretérito, decide-se não como certa pessoa
estadual não concedeu a autorização, pois não entendeu que o casal houvesse suprido a prova exigida pela
lei do Missouri. A lei, intitulada Living Will Statute, exigia, para a situação, uma prova clara e
convincente da manifestação de vontade da pessoa, quando capaz, de não ser mantida viva em
determinadas condições. USA. Cruzan v. Director, Missouri Department of Health, Op. cit. Sobre o
tema, ver também: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.115. MARTEL, Devido processo...,
p.284-287.
441
Anthony Bland estava em estado vegetativo persistente em virtude de um desastre em um estádio de
futebol, quando ele tinha apenas dezessete anos. Após três anos nessas condições, seus pais e os médicos
responsáveis decidiram que o melhor seria suspender a oferta de nutrição e de hidratação artificiais.
Inseguro quanto à legalidade da decisão, o estabelecimento de saúde buscou a tutela jurisdicional
preventivamente. Em razão da juventude de Bland à época do desastre e de sua inconsciência durante
todo o tratamento, sua vontade não era conhecida. Em assim sendo, a limitação de tratamento deixaria de
ser uma conduta de respeito à autonomia do paciente, tornando nebulosa a sua intencionalidade. Para os
casos em que não pode haver consentimento, em razão da ausência de capacidade ou de impossibilidade
fática de fornecê-lo, como em Bland, a Câmara dos Lordes considerou viável a suspensão dos sistemas de
nutrição e de hidratação, desde que seguidos certos princípios, dentre eles a avaliação dos melhores
interesses do paciente, bem como com a reconstrução daquilo que ele haveria decidido. UNITED
KINGDOM. Airedale N.H.S. Trust v. Bland. House of Lords. 4 february, 1993. Disponível em:
http://www.swarb.co.uk/c/hl/1993airedale_bland.html. Ver também: BEYLEVELD; BROWNSWORD,
Consent…, p.115. MARTEL, Limitação de tratamento...
442
A indicação do caso está em BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent.... Jerry Strunk era portador
de um transtorno que afetava muito sua capacidade intelectiva. Seu irmão, mentalmente saudável,
precisava de um transplante renal para permanecer vivo. Vários parentes foram testados, porém, a
compatibilidade efetiva apenas ocorria se fosse transplantado um dos rins de Jerry. Os pais de Jerry
entenderam que o melhor seria autorizar a doação. A instituição na qual Jerry se encontrava internado foi
da mesma opinião, em razão dos seus melhores interesses. Inicialmente, o caso foi decidido tendo em
vista os melhores interesses de Jerry, que residiriam na manutenção do seu convívio com o irmão, por
quem Jerry possuía afeição. Todavia, a Corte de Apelação inseriu a noção de julgamento por substituição
na decisão final, invocando precedentes. Strunk Case. 445 S W 2d 145. Court of Appeals of Kentucky.
Jerry STRUNK, An Incompetent by and through Morris E. Burton His Guardian Ad Litem,
Appellant, v. Ava STRUNK, Committee for Jerry Strunk, Incompetent, et al., Appellees. Sept. 26,
1969. Disponível em: http://faculty.law.miami.edu/mcoombs/documents/strunk.doc
222
decidiria, mas com base em um padrão, algo semelhante à noção de homem médio ou
pessoa razoável. E aí está a ficção do consentimento. Ora, como alguém que nunca
possuiu as características comumente atribuídas a essas figuras decidiria do mesmo
modo que elas? É uma ficção sustentar que há consentimento do titular e, mais grave,
que ele seja a justificação procedimental de atos como a doação de um órgão em vida.
Nesse caso, necessária seria outra justificação, de cunho substantivo, ou até
procedimental, sustentada em consentimento alheio443.
443
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.114-117. No caso Strunk, os autores acreditam que o
direito à vida do irmão poderia ser uma linha de motivação adequada.
444
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.116-117.
445
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.117. Sobre esse tema, no direito pátrio, é impreterível
consultar: PEREIRA, Tânia da Silva (Coord.). O melhor interesse da criança: um debate
interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
223
quem deveria consentir, assumindo-se tanto o bem-estar quanto o benefício em sentido
amplo, conglobando aspectos físicos, econômicos, sociais e psíquicos.
446
Se o caso Strunk for analisado sob a ótica dos melhores interesses, é realmente duvidoso que os
melhores interesses de Jerry estivessem em fazer a doação de um rim em vida para seu irmão. Para um
indivíduo absolutamente incapaz, internado, seria efetivamente em seu melhor interesse submeter-se à
cirurgia de extração do órgão? Certamente, como informam os pareceres do caso, ele sentiria a falta do
irmão, com quem mantinha uma relação de admiração e afeto, mas não conseguiria associar a causa da
morte do irmão à não-doação do órgão. A manutenção do convívio com o irmão foi entendida como os
melhores interesses de Jerry, inclusive para seu tratamento. É de se indagar, como foi feito no voto
minoritário, se o interesse efetivamente levado em conta foi o de Jerry ou de seu irmão e parentes. Cf.
Strunk Case. Cit. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.114-117.
447
Da leitura do julgado, percebe-se que a personalidade de Anthony Bland foi tomada em consideração,
mas vê-se também a referência aos melhores interesses. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword expõem
o caso como um exemplo de julgamento por substituição. Ronald Dworkin, por seu turno, comenta que a
maioria dos votos tendia aos melhores interesses, e não ao resgate da autonomia pretérita. Na opinião do
jusfilósofo estadunidense, mesmo em estado vegetativo persistente, Bland possuía interesses, e o modo de
decidir deveria pautar-se na sua agência pretérita. DWORKIN, Ronald, O domínio..., p.294-296.
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.115 e 118. UNITED KINGDOM. Airedale N.H.S.
Trust v. Bland…, Op.cit.
224
sem o status de sujeito do consentimento, ela parecia bem. A questão é saber se o
consentimento pretérito, emitido quando ela era um sujeito ideal-típico do
consentimento, assume relevância ou se é mais adequado adotar a técnica dos melhores
interesses atuais, aparentemente diversos dos que manifestara. O julgamento por
substituição conduziria, por evidente, ao respeito do consentimento pretérito. Já os
melhores interesses poderiam conduzir ao resultado oposto. É perceptível que os
critérios podem levar a resultados conflitantes, tanto mais quando for necessário definir
os melhores interesses em um espaço temporal que envolve presente, passado e futuro,
uma vez que o passado assume importância significativa para aqueles que deixaram de
ser agentes ostensivos448.
448
A respeito, ver: DWORKIN, Ronald, Domínio..., p.310 e ss. BEYLEVELD; BROWNSWORD,
Consent..., p.118.
449
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.118. Note-se que este é o exato sistema adotado pelo
ECA, no art.142 e pelo CC, art.5º. Ver: BRASIL, ECA, Op.cit., e BRASIL, Código Civil, Op.cit.
Impreterível consultar a obra organizada por Tânia da Silva Pereira, na qual são expostos mecanismos
mais acurados de definição dos melhores interesses de crianças e adolescentes, mediante atuação de
equipes inter e multidisciplinares, com a participação de psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras, etc.
PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor..., passim.
225
responsáveis tem, no consentimento, uma justificação procedimental. Todavia, este
consentimento não se identifica com o do titular e nem o substitui. É outro
consentimento, hábil a justificar procedimentalmente condutas de terceiros, porque
formulado por quem de direito e nos melhores interesses do titular. O consentimento do
titular e o consentimento ou a decisão com apoio nos melhores interesses são, portanto,
justificações distintas450. Na disposição de posições subjetivas de direito fundamental, é
necessário que o consentimento seja do titular, ou quando muito, seja efetivamente
reconduzível ao titular. O consentimento de terceiros com base nos melhores interesses
não configura disposição, mas, se impactar negativamente posições subjetivas de
direitos fundamentais, será ablação heterônoma.
3.2.1.3 A representação
450
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.118. Interpreta-se que Jorge Reis Novais subscreve
este modo de pensar quanto à disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais, pois considera
que ela somente ocorre quando houver consentimento do titular. NOVAIS, Renúncia..., p.267.
451
No Brasil, a figura é genericamente tratada no Código Civil, nos Arts.115 a 120. BRASIL, Código
Civil, Op.cit.
452
A diferença entre os melhores interesses e os interesses é que o primeiro refere-se a uma pessoa
determinada em situação específica, com escasso recurso a padrões externos, ao passo que, no segundo, a
referência é justamente o padrão médio de conduta, mais usual quando em jogo questões patrimoniais.
226
atos de terceiros, mas sem ser justificação procedimental por consentimento do titular -
autolimitação.
453
Adiante, o tema será explorado no caso Terri Schiavo.
227
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Embora doente, ele é um sujeito ideal-
típico do consentimento454.
Imagine-se agora que José não mais está consciente. De pronto, abrem-se duas
possibilidades: (a) José indicou um representante; (b) José não indicou um
representante. Ao indicar um representante, José teria duas alternativas: (a.1) expor,
com bastante detalhamento, a condução do seu tratamento médico, de forma que os atos
do representante ficam vinculados à manifestação prévia de José; (a.2) apenas indicar o
representante, oferecendo-lhe uma ampla margem para decidir. Em ambos, o
consentimento do representante é facilmente reconduzível ao de José. Se José não
indicou um representante, será representado por quem a legislação determina. Como ele
já foi um agente ostensivo e também um sujeito do consentimento, as seguintes
possibilidades se manifestam: (b.1) José documentou, previamente e enquanto sujeito
do consentimento, suas preferências e como decidiria na situação; (b.2) José não indicou
como decidiria, mas sua biografia permite concluir como faria; (b.3) não há elementos
para reconstituir o rumo decisório que José teria na situação, o que conduz à adoção dos
melhores interesses. Nas duas primeiras possibilidades, há recondução ao
consentimento de José; na terceira, não.
E se José fosse uma criança de três anos de idade? Claro é que restaria tão só a
representação e a decisão pelos melhores interesses, ocasionalmente com presença de
curador especial. Idêntico raciocínio se aplicaria se José fosse adulto, mas sempre
absolutamente incapaz. E se José fosse um adolescente de 16 anos? Conforme as regras
vigentes no direito pátrio, José poderia discutir o tratamento, as decisões, mas
incumbiria aos seus assistentes legais suprir seu consentimento. Nas três ilustrações, não
há justificação procedimental por consentimento do titular, mas por consentimento de
terceiro, fundado nos melhores interesses. Se houvesse ablação de posições jurídicas
subjetivas de direito fundamental, seria heterônoma.
454
Nesta etapa do trabalho, não se discute a aceitação da conduta no direito brasileiro; apenas
exemplifica-se o conceito de sujeito do consentimento.
228
debatidas nos dias de hoje, principalmente no que toca a tratamentos de saúde. Acirra-se
a discussão porque a legislação usualmente opta por padrões gerais quanto à idade
necessária para que alguém se torne um sujeito do consentimento ideal-típico455.
Ademais, os limites de idade podem variar, segundo a atividade. No sistema jurídico
brasileiro, um adolescente pode votar aos 16 anos, bem como consentir quanto a
relações sexuais. Por que, então, não poderia tomar decisões quanto aos seus
tratamentos médicos? Entende-se que, se o adolescente se mostrar maduro, isto é,
apresentar qualidades da agência ostensiva e habilidade para comunicar-se no momento
relevante para o consentimento, ele pode ser hábil a decidir sobre o curso de seus
tratamentos médicos, desde que existam precauções em um método caso-a-caso456. Não
se trata apenas de ouvi-lo e permitir que ele participe das decisões tomadas por
terceiros, mas que ele decida. Se assim for, pode-se falar em disposição de posições
jurídicas subjetivas de direito fundamental, pois o consentimento será emitido pelo
titular457.
455
Páginas atrás, viu-se que a capacidade civil nem sempre é determinante para que alguém seja
considerado um sujeito do consentimento. Efetivamente, a depender das circunstâncias, do ramo do
direito, e até mesmo de cada indivíduo, a idade para que alguém seja um sujeito do consentimento pode
variar em decisões autorreferentes. Tal é comum com os agentes intermitentes, como são os
adolescentes. Eles não serão sujeitos ideais-típicos do consentimento, mas poderão situar-se em uma área
muito próxima do tipo-ideal, sendo não somente cabível reconhecer-lhes como sujeitos do consentimento,
mas também recomendável, para que não se excluam indivíduos injustificadamente do exercício dos
direitos atrelados ao ato de consentir ou de recusar. O melhor seria a aferição das habilidades necessárias
a um sujeito do consentimento caso a caso, a partir do momento em que se percebe haver maturidade para
cada ato da vida. Contudo, a individuação pessoal e para atos apresenta uma série de inconvenientes que
acabam por justificar a adoção de idades-padrão sem que isso configure, a priori, uma violação de
direitos. A respeito: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.111-114.
456
Diversos sistemas jurídicos acatam esta tese, intitulada menor maduro. Dada a conotação negativa que
o termo menor assumiu no direito nacional, utilizar-se-á a tese do adolescente maduro. Embora ela não
encontre ampla guarida jurídica no Brasil, pode ser adotada, uma vez que a CF/88 reconhece que crianças
e adolescentes são titulares de direitos, inclusive de liberdade e de dignidade. Se, em um caso concreto,
relativo a intervenções médicas, um adolescente maduro, que apresenta as características de um sujeito do
consentimento, não puder aceitar ou recusar o tratamento, poderá haver violação de seus direitos
fundamentais. Ainda que não se aceite essa posição, é, pelo menos, preciso adotá-la com moderações,
para que a criança ou o adolescente possam manifestar seus pensamentos e os tenham valorados pelos
representantes ou na determinação dos seus melhores interesses. No tema: BRUSSA, M. “Igual podría
no estar aquí contándolo” - Percepción del proceso de información de adolescentes con câncer.
Madrid: Tesis doctoral. (Departamento de Medicina Preventiva, Salud Pública e Historia de la Ciencia) ,
Universidad Complutense de Madrid, 2005. COHEN, D. Quién decide? El adolescente como agente
moral. Perspectivas Bioéticas, n.8, p.55-67, 2003. GRACIA, D.; JARABO,Y.; MARTÍN E.N.; RÍOS, J.
Toma de decisones en el paciente menor de edad. Medicina Clinica, n.117, p.179-190, 2001. SOCIETY
FOR ADOLESCENT MEDICINE. Guidelines paper of the society for Adolescent Medicine. A position
paper of the society for Adolescent Medicine. Journal of Adolescent Medicine Health, n.33, p.396-
409, 2001.
457
Recentemente, um caso do Reino Unido trouxe a questão dos adolescentes maduros à baila. Aos cinco
anos de idade, Hannah foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia, e, desde então, sua vida passou
a envolver frequentes internações hospitalares. O tratamento para sua doença acabou causando fortes
danos ao seu coração. Sua única chance seria, então, um transplante cardíaco, que oferecia vários riscos,
em razão do estado de saúde de Hannah. Mas a menina de treze anos recusou o tratamento, afirmando que
229
Por fim, no tema da representação, é importante destinar alguns parágrafos a um
dos casos mais rumorosos dos últimos anos: Terri Schiavo. A simples menção do nome
já traz à memória as circunstâncias básicas, em vista da imensa projeção midiática. A
Sra. Theresa Marie Schindler-Schiavo entrou em estado vegetativo persistente no início
de 1990, após um processo de ressuscitação. O seu marido, Michael Schiavo, foi
indicado seu representante, por ordem judicial, em junho de 1990. À época, ninguém se
opôs. A seguir, os médicos que atenderam Terri foram condenados por erro médico,
com dever de indenizar Michael Schiavo e também de formar um fundo para os
cuidados da enferma458. Pouco depois, o Sr. Schiavo queixou-se de que os pais de Terri
(os Schindlers) reclamavam parcela do fundo. Em 1993, os Schindlers ajuizaram uma
ação tentando destituir Michael da representação. No curso do processo, foi nomeado
um curador ad litem, que se posicionou favoravelmente a Michael, parecer que
correspondeu à decisão proferida. Em maio de 1998, os problemas começaram, pois
Michael solicitou, judicialmente, autorização para a retirada dos sistemas de hidratação
e de nutrição artificiais que mantinham Terri. Novo curador ad litem foi apontado, que,
mais uma vez, posicionou-se como Michael. O juízo ordenou a retirada dos sistemas, o
que foi feito459. Dias após, os sistemas foram reinseridos, pois os Schindlers obtiveram
êxito em um de seus pleitos, no qual alegaram que Michael havia mentido acerca da
personalidade e da linha provável de ação que Terri tomaria se pudesse decidir por si
mesma. Os fatos ocorreram em abril de 2001. Desta data até março de 2005, contam-se
já sofrera traumas demais e não queria passar por nova cirurgia – preferia morrer com dignidade, em sua
casa. Inicialmente, seus pais discordaram da sua decisão, mas, ao perceber que Hannah compreendia as
consequências da decisão, e que havia se pautado em importantes elementos para tomá-la, aceitaram-na.
A equipe médica, percebendo a maturidade de Hannah, também aceitou sua decisão. Todavia, o hospital
buscou o Judiciário, que decidiu que Hannah era madura o suficiente para fazer sua escolha.
Posteriormente, Hannah reviu sua decisão e aceitou o transplante. No direito estrangeiro, há julgados
determinantes no ponto: (a) Gillick v West Norfolk and Wisbech Area Health Authority and another
(House of Lords,1986), no Reino Unido; (b) A.C. v. Manitoba (Director of Child and Family Services),
decidido pela Suprema Corte do Canadá em 2009; (c) Secretary, Department of Health and Community
Services v. J.W.B. (Marion’s Case), na Austrália, em 1992; (d) nos Estados Unidos da América, a linha
decisória não é tão firme na adoção da tese quanto no Canadá, no Reino Unido e na Austrália, mas há
precedentes importantes, dentre os quais: Planned Parenthood of Central Missouri v. Danforth, de 1976,
e Bellotti v. Baird, de 1979. PERCIVAL, Jenny. Teenager who won right to die: 'I have had too much
trauma', Guardian.co.uk Disponível em: http://www.guardian.co.uk/society/2008/nov/11/child-
protection-health-hannah-jones.
458
O fundo possuía o valor de US$750.000,00 e a indenização do esposo foi de US$300.000,00. Cf.
BARIE, Philip S. The arrogance of power unchecked: the terrible, grotesque tragedy of the case of Terri
Schiavo. Surgical Onfections, v.6, n.1, p.01-05, 2005.
459
A Suprema Corte dos EUA não se manifestou no pleito, havendo apenas a decisão do Associate
Justice Anthony Kennedy. Posteriormente, a Corte recusou-se a decidir o pleito final para evitar a retirada
dos sistemas, o que é compreensível à luz do precedente Cruzan, no qual a Corte deixara expresso que a
Constituição assegura “a competent person a constitionally protected right to refuse life-saving
hydratation and nutrition”, bem como afirmara que incumbe aos estados traçar os padrões para o
exercício deste direito em nome de incapazes. Cf. BARIE, Op. cit., p.04.
230
dezenas de ações e recursos judiciais, uma lei estadual destinada ao caso (Terri’s Law),
manifestações do Senado e atuações dos executivos estadual e federal. Nesta saga, há
vários elementos de relevo: (a) alegação de que a vontade pretérita de Terri não seria
respeitada, especialmente após o posicionamento da Igreja Católica, religião praticada
pela enferma; (b) acusações de maus-tratos pelo curador; (c) tentativa – sem sucesso –
de obtenção de um divórcio, pelos pais de Terri, pois Michael seria adúltero; (d)
indicação de três curadores ad litem; (e) declaração de inconstitucionalidade da Terri’s
Law; (f) atuação do Governador da Flórida e do Presidente dos EUA para impedir a
retirada dos sistemas de suporte vital; (g) atuação do Senado, que chegou a convocar
Terri a lá comparecer quando fora exarada, pela terceira vez, uma ordem judicial de
retirada dos sistemas; (h) três retiradas dos sistemas e duas resinserções, todas por
decisão estatal; (i) necessidade de aparato policial no ambiente hospitalar; (j)
participação dos movimentos pró-vida e pró-escolha; (l) diversos médicos, alguns sem
qualquer acesso à doente, opinaram publicamente sobre seu estado, inclusive com
demonstrações de curas milagrosas; (m) alegações de que Terri sofreria de fome e de
sede, embora os profissionais da saúde afirmassem que ela estava cercada de cuidados e
que, em seu estado, não era capaz de ter essas sensações. Ao final, depois de mais de
sete anos de contenda judicial e quinze de enfermidade, a decisão autorizando a retirada
dos sistemas foi cumprida e Terri faleceu460.
A inteira trama iniciou-se, como agora admitido pelos litigantes, por dinheiro. A
personalidade pretérita de Terri e os seus melhores interesses foram o campo de batalha
entre seus pais e seu marido. Como pano de fundo, o intenso conflito de interesses entre
os pais e seu representante, inflamado por dois antagonistas da política estadunidense,
os grupos pró-vida e pró-escolha461. O caso traz à superfície todas as críticas e
problemas ligados à representação de um agente ostensivo pretérito, ao julgamento por
substituição, e à definição dos melhores interesses, além, é claro, da intensa politização
e exposição midiática do assunto morte com intervenção, dois elementos que serão
tratados à frente, no Capítulo 4.
460
Cf. BARIE, Op. cit., passim.
461
Cf. BARIE, Op. cit., passim.
231
fundamentais. Para que esteja, é preciso que seja um sujeito do consentimento, isto é,
que apresente as características da agência ostensiva no momento relevante para o
consentimento. Há uma miríade de casos duvidosos, para os quais os sistemas jurídicos
estipulam estratégias para que o consentimento seja suprido ou verificado. Dentre as
estratégias, somente funcionarão como justificação procedimental pelo consentimento
do titular aquelas que forem efetivamente reconduzíveis ao consentimento do titular. É
o que acontece no julgamento por substituição, se bem demarcados seus limites, e na
representação segundo as instruções do representado. Nas outras estratégias, o que se
tem é justificação pelo consentimento de terceiros ou justificação substantiva,
modalidades estranhas à disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais462.
462
Acredita-se que em situações exclusivamente patrimoniais, poder-se-ia indagar se as estratégias
funcionam como o consentimento do titular. Esta é a inclinação do Código Civil brasileiro. Entretanto, a
discussão escapa do tema da tese, que lida com a feição pessoal dos direitos.
463
A referência aqui é, genericamente, à coação, ao estado de perigo e à lesão, tratados pelo Código Civil
por defeitos do negócio jurídico, nos arts.121 a 157. Convém lembrar que, para esta tese, interessam os
princípios norteadores do consentimento, pois podem ocorrer diferenças no modo como são tratadas as
condições do consentimento em num e noutro ramo do direito. Desnecessário referir que a coação é
tratada em vários diplomas legais, o Código penal inclusive. BRASIL, Código Civil, Op.cit.
232
uma decisão informada, isto é, se o consentente conhecia adequadamente o alcance e os
efeitos do seu ato; é preciso certificar-se de que seu consentimento não tenha sido
baseado em erro ou ignorância, e também que não tenha sido dolosamente induzido465.
Logo, além do requisito sujeito do consentimento, há duas diretrizes nucleares para um
consentimento genuíno, sobre as quais se edificam os demais requisitos, a liberdade de
escolha e a escolha informada. Antes de adentrar no exame das diretrizes, informa-se
que as condições do consentimento refletem a sua validade e são diferentes da
interpretação, do alcance e da eficácia jurídica do instituto466.
464
A força, a pressão ou a influência podem ser ilegítimas ou legítimas. Neste estudo, opta-se por
empregar a palavra indevida para caracterizar a força ou pressão externa, sem a análise da sua
legitimidade, pois a última pode dar ensejo ao entendimento de que, se legítima a força ou pressão, válido
o consentimento. Contudo, é deveras discutível a afirmação, pois pode haver invalidade do consentimento
por força ou pressão externas quando é apropriado considerá-las legitimadas, como a que ocorre quando
alguém tenta reaver um bem ou equacionar uma relação anterior por meio da força ou da pressão. O ato é
justificável e até legítimo, mas o consentimento daí surgido não o será. Para maiores esclarecimentos:
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.132 e ss.
465
O Código Civil também lida com a questão, nas hipóteses de erro ou ignorância e dolo. Há, ainda, a
simulação, que pode afetar o consentimento. BRASIL. Código Civil. Op.cit.
466
No direito brasileiro, ver, sobre todos: AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico:
existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, passim.
467
Ruth Faden e Tom Beauchamp denominam a linha de espectro de autonomia. FADEN, Ruth.
BEAUCHAMP, Tom L. A history and theory of informed consent. Oxford: Oxford University, 1986.
Comentam e empregam a posição dos autores, BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.129 e ss.
233
3.2.2.1 A liberdade de escolha
O que caracteriza uma escolha forçada? Sugere-se que uma escolha será forçada
na presença de duas condições: (a) a intervenção de um agente tentando impactar os
interesses do pretenso consentente, que apreende a tentativa; (b) a força ou a pressão
exercidas são determinantes para o consentimento468.
A ameaça deve ser vista de que ângulo? De quem a impõe ou de quem a recebe?
Por vezes, um indivíduo que efetua uma ameaça não a percebe como tal. O alvo da
ameaça pode também não a distinguir. É por esta razão que Deryck Beyleveld e Roger
Brownsword defendem que a força ou a pressão externas são mais bem avaliadas se
levados em consideração os dois ângulos. Serão caracterizadas como força ou pressão
externas se houver a tentativa de sua imposição combinada à apreensão pelo indivíduo
que é alvo469. Na escolha forçada, é relevante a existência de nexo causal entre a força
ou pressão externa e a decisão tomada. Ausente o nexo, ausente a escolha forçada470.
468
As condições são inspiradas nas expostas por Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, sem refleti-las
em sua integralidade. Para eles, as condições são três. A terceira é a legitimidade da relação de base.
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.138; 127.
469
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.137. Nitidamente, há variações no sujeito alvo da
pressão ou força externas que influem na sua caracterização, como a idade, o sexo, as circunstâncias,
principalmente a hipossuficiência e a vulnerabilidade em suas diversas manifestações. No Brasil, essas
variações são levadas em consideração em muitos ramos do direito. Por exemplo, no Código Civil: “Art.
152. No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do
paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela”. BRASIL, Código
Civil, Op.cit.
470
Ilustrativamente, o nexo de causalidade pode ser quebrado pelo que se denomina alvo robusto, um
indivíduo que resiste à força ou pressão externa com maior facilidade que os demais. Cf. BEYLEVELD;
BROWNSWORD, Consent..., p.136-138. Terrance McConnell narra um caso que, embora não seja
exatamente força ou pressão indevidas, tendendo à influência indevida, caracteriza bem o alvo robusto.
Um enfermo necessitava de um transplante inter vivos. Vários membros de sua família foram testados. Os
exames preliminares indicaram que somente um dos seus primos era compatível. O primo, adulto e capaz,
recusou-se a prosseguir com os testes e a ser doador. A família tentou convencê-lo. Não conseguindo,
buscou suprir seu consentimento judicialmente, sem êxito. Na decisão, considerou-se que ninguém
234
É de se indagar se a pressão ou a força externas positivas caracterizam a escolha
forçada. Serão positivas se ampliarem o âmbito de escolha do indivíduo, mediante
ofertas. É usual não vislumbrá-las como elementos que invalidam o consentimento,
exatamente em virtude da ampliação do ambiente de escolha. Porém, há ofertas que
podem atuar sobre a habilidade de agência do consentente. Muitas vezes é o que ocorre
quando a relação de base é assimétrica ou ilegítima, abrindo margem para a exploração
das vulnerabilidades e da hipossuficiência471. Como diz Cass Sunstein, nem sempre uma
maior gama de escolha significa maior liberdade472.
poderia ser compelido a ser um doador em vida, ainda que os riscos não fossem de morte para o doador,
mas fossem para o receptor. McCONNELL, Op. cit., p.79 e ss.
471
Nestes termos, não se adere à proposta de Deryck Beyleveld e Roger Brownsword. Para os autores, a
força ou pressão externas positivas estão, de regra, excluídas da escolha forçada. Com isso não querem
dizer que toda e qualquer oferta conduzirá a um consentimento válido, mas que, aprioristicamente, a
oferta não caracteriza a escolha forçada do mesmo modo que a ameaça, submetendo-se a regimes menos
estreitos de exame. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.137 e ss.
472
SUNSTEIN, Cass R. One case at a time: judicial minimalism on the Supreme Court.
Massachusetts: Harvard University, 1999.
473
Já se mencionou que o comércio de órgãos e tecidos no Brasil é constitucionalmente vedado. Porém, a
discussão é acirrada em muitos países, tanto naqueles cuja população costuma ser compradora, quanto
naqueles cuja população usualmente situa-se no outro polo. Para uma interessante leitura, que não traduz
o ponto de vista desta doutoranda, ver: RADCLIFFE-RICHARDS, J. et al. The case for allowing kidney
sales. The Lancelot, n.352, p.1950-1952, 1998 (Apresentado no International Forum for Transplant
Ethics). E também: MCCONNELL, Op. cit., p.117-134.
235
vez que era bastante ordinária na região474. Na mesma senda, tem-se as ofertas
destinadas a pessoas portadoras do HIV sem acesso à proteção e recuperação da saúde
para serem sujeitos de pesquisa em novos fármacos para a doença475. Acredita-se que
todos os casos são bastante discutíveis. Por conseguinte, a liberdade de escolha, em
razão da oferta, precisa ser cuidadosamente verificada à luz dos elementos de cada um.
Por isso, nesta tese, entende-se que as ofertas podem, sim, ser elementos que
invalidam o consentimento, por enquadrarem-se na escolha forçada. Em primeiro lugar,
porque há situações nas quais é difícil distinguir uma ameaça de uma oferta. Feinberg
oferece alguns exemplos. Para o autor, uma oferta não ameaça dano diferente do que
ocorreria e isso a diferencia das ameaças, que trazem novas possibilidades de dano. Mas
ele sustenta que há ofertas coercitivas, como no caso de um homem que oferece pagar o
tratamento caríssimo de uma criança muito enferma, desde que a mãe, que não tem
meios de arcar com o tratamento, mantenha relações sexuais com ele por um
determinado período, ou que se case com ele. É uma oferta que explora o poder de
alguém e a necessidade desesperada da vítima476. Um exemplo real é bem vindo.
Na década de 1970, a Suprema Corte dos EUA deparou-se com uma interessante
indagação a respeito da matéria. O Sr. Alford foi acusado por homicídio qualificado,
crime cuja pena era a de morte. As provas contra o Sr. Alford eram fortes, mas ele
insistia em declarar-se inocente. A promotoria ofereceu-lhe a possibilidade de declarar-
se culpado e desqualificar o crime, para homicídio simples, cuja pena variava entre 2 e
30 anos de prisão. O Sr. Alford, com advogado indicado pelo Estado, aceitou a
474
Cf. WOLTMANN, Angelita. Comitês de ética em pesquisa no âmbito latino-americano (Brasil-
Argentina): transdisciplinaridade em prol da dignidade. Santa Maria, 2006. Dissertação (Mestrado
em Direito) – UFSM. FIGUEIREDO, Talita. Malária. Fiocruz vê falha em tradução. Pesquisa omitiu
o uso de “iscas humanas”. Folha de São Paulo, 22 de dezembro de 2005, Cotidiano.
475
O assunto é objeto de intensa contenta entre os estudiosos da bioética e veio à tona em virtude de uma
pesquisa realizada com gestantes da Tailândia e de países da África, regiões de endemia de HIV, que não
ofereciam às enfermas fármacos para a prevenção da transmissão vertical do vírus. A pesquisa separou as
gestantes em dois grupos: um recebeu placebo e o outro, o antiretroviral mais eficaz conhecido. No grupo
que recebeu o placebo, o índice de transmissão foi previsivelmente alto. Ora, sem qualquer acesso à
proteção da sua saúde e dos fetos, as gestantes arriscaram a sorte ao consentir participar da pesquisa.
Porém, é nítido que o fizeram por causa da vulnerabilidade. Dificilmente uma gestante com pleno acesso
à saúde consentiria. Ainda que consentisse validamente, o cuidado com o feto poderia impedir a pesquisa,
atacando a sua eticidade. Ou seja, a própria pesquisa seria inviável nos países chamados desenvolvidos. A
justificação da pesquisa ocorreu em padrões utilitaristas, sob a alegação de que, sem ela, todas as
gestantes ficariam sem a medicação e o índice total de transmissão seria muito mais alto. Sobre o tema,
ver: MACKLIN, Double Standards... . Com argumentos favoráveis à realização da pesquisa: LACKEY,
Douglas P. Clinical research in developing countries: recent moral arguments (Pesquisa clínica nos países
em desenvolvimento: argumentos morais recentes). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, n.18,
v.5 p.1455, set./out., 2002.
476
FEINBERG, Joel. Noncoercitive Exploitation. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota:
Minnesota University, 1987. p.207-208.
236
transação, dispondo de posições subjetivas de direito fundamental, dentre elas o
julgamento pelo júri e seu pleito de inocência. Declarou-se culpado e foi condenado a
trinta anos de prisão. Após a condenação, ele interpôs vários recursos, alegando que seu
consentimento fora viciado, um produto do medo da pena de morte, o que equivaleria a
uma coação. Uma das Cortes de Apelação não considerou livre o consentimento de
Alford, uma vez que seu móbile fora o temor da pena de morte. A Suprema Corte, no
entanto, reverteu essa decisão, pois uma “escolha voluntária e inteligente entre as
alternativas disponíveis ao acusado, especialmente um representado por advogado
competente, não é coagida à luz do significado da Quinta Emenda porque foi feita para
evitar a possibilidade da pena de morte”477. Nos votos de dissidência, a oferta foi
denominada ameaça, pois pesava sobre o acusado uma eventual condenação à morte478.
Em terceiro lugar, deve-se considerar que excluir a priori a oferta como um dos
elementos que tem o condão de caracterizar a escolha forçada pode gerar muito espaço
para justificar procedimentalmente pelo consentimento algumas condutas, quando, na
realidade, o consentimento é fruto de escolha forçada por condições adversas. A
477
USA. North Carolina v. Alford, 400 U.S. 25 (1970). Disponível em:
http://caselaw.lp.findlaw.com/cgi-bin/getcase.pl?court=US&vol=400&invol=25 . O julgado é comentado
e discutido por BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.140-142.
478
USA, North Carolina v. Alford, Op. cit. Voto dissidente dos Justices Brennan, Douglas e Marshall.
Necessário referir que o esquema legislativo do estado já havia sido discutido na Suprema Corte, sob a
alegação de que utilizava a pena de morte como elemento para angariar transações. Um dos Justices que
concorreu com o resultado em Alford mencionou expressamente que discordava da linha decisória
adotada no caso anterior.
237
margem para o emprego do consentimento como justificação procedimental não pode
ser excessivamente ampla, pois poderá dar azo à justificação de inúmeras relações a
situações de ou análogas à exploração não-coercitiva 479.
Com isso, atinge-se outro assunto de muito préstimo. A liberdade de escolha não
precisa, para ser atendida, que as alternativas sejam ideais ou, em linguagem comum,
479
A expressão é de Joel Feinberg. O autor publicou um estudo sobre a exploração não-coercitiva,
conceituando-a e apreciando-a no ambiente moral e jurídico. No segundo, Feinberg é cauteloso sobre o
papel do direito na exploração não-coercitiva não coberta princípio dano (validamente consentida), pois
sua justificação é, muitas das vezes, paternalista ou jurídico-moralista. Porém, conclui que o direito, o
penal em muito menor intensidade, deve evitar a exploração não-coercitiva, mesmo a validamente
consentida, se e quando houver ganho indevido, semelhante ao enriquecimento sem causa, oriundo da
exploração das fraquezas – de caráter (virtudes ou defeitos) –, das vulnerabilidades socioeconômicas e
educacionais, da credulidade, do desespero e das tragédias alheias. Cabe explicitar um pouco mais o
pensamento de Feinberg: A exploração acontece quando um indivíduo tira vantagem de outro,
manipulando (play on) as características ou situações enfrentadas. O conceito é composto por três
elementos: (a) o ganho e a perda; (b) circunstâncias ou características (e.g., miséria e credulidade); (c) a
distribuição de ganhos e perdas. Ao avaliar a exploração e a coação, Feinberg elabora um esquema de
quatro combinações: (a) exploração e coerção, como no caso do homem que propõe pagar o tratamento da
criança doente, desde que a mãe mantenha com ele relações sexuais; (b) exploração e não-coerção, como
no caso da venda de um produto não reconhecido para a cura de uma doença fatal; (c) não-exploração e
coerção, como no caso de um policial que rende, em flagrante, um indivíduo que proferiu dois tiros em
outro (esta é uma situação de coerção legítima); (d) não-exploração e não-coerção, como acontece em
diversos casos nos quais uma pessoa tira vantagem de outra no campo do negócio jurídico. Como
menciona o autor, é preciso ter atenção a isso, pois, em sociedades capitalistas, é comum e lícito muitos
tipos de vantagens desse porte. FEINBERG, Noncoercitive..., passim.
238
boas. Há momentos nos quais as alternativas são drásticas, mas ainda são alternativas e
permitem a liberdade de escolha. Normalmente, o que as diferencia de uma oferta apta a
invalidar o consentimento é a ausência de componentes típicos da escolha forçada, ou a
atenuação da assimetria da relação ex ante, ou ainda, o fato de as alternativas serem
derivadas de algo inevitável, diversamente do que ocorre quando se está diante de
vulnerabilidades econômicas, sociais e culturais.
480
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.165.
481
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.167-170. A posição dos autores é mais estreita do
que a adotada nesta tese.
482
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.167-168. O CDC elenca a possibilidade de inversão
do ônus da prova como um direito básico do consumidor, em seu art.6º, VIII. BRASIL. Código de
239
exemplificar, suponha-se que em uma clínica de ginecologia e obstetrícia conveniada ao
SUS, uma médica depare-se com uma adolescente de 17 anos, cuja gestação era
comprovadamente oriunda de violência sexual. Após prestar todas as informações
técnicas e legais pertinentes, conforme a boa técnica, a médica, adepta do espiritismo,
percebe que a mãe e a filha tendem a decidir pelo abortamento legal. Então, sozinha
com a adolescente, a médica menciona que havia vida desde a concepção, que talvez
fosse missão da adolescente cuidar do espírito, enfim, instrui-a conforme a sua crença
privada. Nesse sentido, exerce influência indevida.
De tudo se conclui que, para ser válido o consentimento, há de ser livre, isto é,
produto de escolha não-forçada, que se caracteriza pela ausência de pressão ou força
externas indevidas – sejam ameaças ou ofertas coercitivas e, em menor medida, ofertas
não-coercitivas, bem como pela ausência de influência indevida. Como dito, para
adjetivar a pressão, força ou influência de indevidas, haverá de se ter em consideração
uma gama de fatores, tais quais as circunstâncias, a (as)simetria da relação de base, os
sujeitos envolvidos, o tipo de relação jurídica, as posições jurídicas subjetivas de direito
fundamental em jogo, os impactos fáticos e jurídicos na relação de consentimento e nos
direitos de terceiros. É, portanto, uma tarefa interpretativa, que, embora não seja rígida e
hermética, exige do intérprete e do sistema jurídico delineamentos que ofereçam aos
sujeitos das diferentes relações ambientes de segurança jurídica, para que possam
exercer os direitos aliados ao consentimento e também apoiar-se na justificação
procedimental dele advinda sem assumir riscos desnecessários, produtos de falhas ou
dissensos excessivos do sistema jurídico.
483
Basta lembrar os casos estudados no Capítulo anterior, como o arremesso de pessoas portadoras de
nanismo, os adeptos do sadomasoquismo, bem como os dos fiéis religiosos que recusam tratamentos
médicos ordinários e, até mesmo, o caso do canibalismo ocorrido na Alemanha.
484
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.145-146. “If this is our model, we will conceive of an
agent’s ‘understanding’ as ‘the meaning attached by an agent to data within its informational field’; and
we will conceive of an agent’s ‘knowledge’ as ‘the beliefs formed by an agent by reference to the data
within its informational field and the understanding that it has of such data’”.
485
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.146.
241
impedir a relevante distinção entre as hipóteses básicas de simetria e de assimetria
informativa486.
486
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.146.
487
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.147. Os autores apresentam três situações. Aqui serão
trabalhadas apenas as duas primeiras. No original: “(i) A gives a consent (to B) that does not satisfy the
requirements of relevant knowledge and understanding; but A’s lack of knowledge and understanding is
not atributable to any blameworthy act or omission by B or C; (ii) because of fraud or non-disclousure,
or the like by B, A gives a consent (to B) that does not satisfy the requirement of relevant knowledge and
understanding”.
242
omissivos ou comissivos de B ou C, mas B ou C não serão responsabilizados, em nome
de outras justificações, de cunho substantivo488.
488
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.150-152. Apesar de sugerirem essa solução, eles
lembram que, em casos difíceis, é sempre bom manter o espírito do livre pensamento aberto e não ter
certeza demasiada de que se está com a razão. Modo geral, o Código Civil adotou essa linha quanto ao
erro ou à ignorância: “Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade
emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das
circunstâncias do negócio”. BRASIL, Código Civil, Op.cit. [sem grifos no original].
489
Nesse sentido, observe-se decisão da Primeira Câmara Cível do TJRJ, quanto a contratos de consumo:
“Na verdade, o consentimento é um processo e não uma forma, razão pela qual tem que ser obtido ao
final de um indispensável diálogo, através do qual as partes trocam informações e se interrogam
reciprocamente, culminando com a formalização da aderência aos termos e condições pelo fornecedor
propostas. O consentimento informado, ou consentimento esclarecido, não pode ser visto, pois, como
uma simples formalidade. É, sem maiores digressões, o resultado de um diálogo em que fornecedor e
consumidor que, imbuídos da mais estrita boa-fé, buscam esclarecer dúvidas, e que não se encerra com o
simples lançamento da assinatura do aderente no espaço pelo fornecedor no contrato reservado”. RIO
DE JANEIRO. TJRJ. Apelação Cível nº13.481/2009. Primeira Turma. Des. Maldonado de Carvalho.
06/07/2009.
243
informar sobre diversos elementos, com clareza, veracidade, objetividade, adequação e
até completude. Geral, quando a relação de base não for embebida por elementos
diferenciais. Específico, quando a relação de base contiver especificidades que exijam
que a informação verse exatamente sobre elas, como se dá na relação médico-paciente.
490
A cláusula geral da boa-fé passou por um redimensionamento no direito brasileiro nos últimos anos.
Trata-se agora não apenas da boa fé subjetiva, mas também da objetiva, a permear as relações contratuais
do início ao final, incluindo a denominada fase pré-contratual. Para compreensão de seus contornos, as
palavras de Judith Martins-Costa: “Muito embora ambas as expressões encontrem unidade no princípio
geral da confiança que domina todo o ordenamento, cada um desempenha, dogmaticamente, distintos
papéis. A boa-fé subjetiva traduz a ideia naturalista de boa-fé, aquela que por antinomia, é conotada á
má-fé. Diz-se subjetiva a boa-fé compreendida como estado psicológico, estado de consciência
caracterizado pela ignorância de se estar a lesar direitos ou interesses alheios, tendo forte atuação nos
direitos reais, notadamente no direito possessório, o que vai justificar, por exemplo, uma das formas de
usucapião. Diferentemente, a expressão boa-fé objetiva designa seja um critério de interpretação dos
negócios jurídicos, seja uma norma de conduta que impõe aos participantes da relação obrigacional um
agir pautado pela lealdade, pela colaboração intersubjetiva no tráfico negocial, pela consideração dos
legítimos interesses da contraparte. Nas relações contratuais, o que se exige é uma atitude positiva de
cooperação, e, assim sendo, o princípio é a fonte normativa impositiva de comportamentos que se devem
pautar por um específico standard ou arquétipo, qual seja, a conduta segundo a boa fé”. MARTINS-
COSTA, Mercado e ..., p.612.
491
O ponto merece a busca de equilíbrio, exigindo-se que as diferentes intensidades sejam justificáveis.
Se o ônus recair excessivamente sobre uma das partes apenas, impondo-lhe deveres dos quais é muito
difícil desonerar-se ou comprovar que o fez, pode-se simplesmente impedir relações, prioritariamente
aquelas sobre as quais pairam, em realidade, debates de fundo substantivo.
244
adotando-se, até mesmo, a inversão do ônus da prova em relações especiais e
assimétricas492.
492
A respeito da discussão constitucionalizada do direito privado e da chamada constitucionalização do
direito, impreterível consultar: MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil.
Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, v.17, n.17, p. 79-89, 1999. Sobre a
importância da leitura constitucionalizada do direito privado após o advento do novo Código Civil:
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do ordenamento. In:
SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de (Coords.) A constitucionalização do direito:
fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007. p.309-320.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil). In: SARMENTO, Daniel. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de (Coords.)
A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro,
Lumen Juris, 2007, p.203-249.
493
O exemplo é empregado por BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.150-152; e também por
GRECO, Op. cit., p.125. As conclusões da autora são diversas das aqui sugeridas.
245
perscrutados. O primeiro é a substancialidade da informação para a escolha. O segundo,
a responsabilidade do consentente por seu próprio campo de informação. O terceiro, a
distinção entre fatos e valores. Sustenta-se que unicamente a quebra do dever de
informar não enseja a invalidade, porque é espinhoso saber como o consentente teria
decidido se recebesse a informação. Prefigurar sobre como teria decidido o marido da
mulher contaminada com o vírus HIV se soubesse não é fácil. Seguiria ele mantendo
relações sexuais desprotegidas, consentindo em autocolocar-se em risco? Manteria
relações sexuais protegidas? Não mais manteria relações sexuais com a esposa?494
494
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.150 e ss.
495
O elemento de subjetivismo é considerável. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.149-150.
“Nevertheless, we suggest that the ideal-typical case here treats materiality in the weakest sense as
sufficient. In other words (and now the strong subjectivism becomes apparent), in the ideal-typical case, a
consenting agent acts without relevant knowledge or understanding if that agent would judge (sincerely)
to be material in the sense that it at least raises a consideration that it would have wished to consider
before making a decision as to consent”. A diretriz geral do Código Civil, bem como da jurisprudência
brasileira, ou seja, o erro há de ser substancial e escusável, e aceita-se uma margem de subjetividade
quando há quebra do dever de informar.
496
Da jurisprudência pátria, colhem-se alguns julgados muito pertinentes aos temas que agora se
analisam. No STJ, foi reconhecido um “erro essencial na manifestação de vontade” de uma servidora
pública municipal que requereu sua exoneração, apontando expressamente o motivo, sua nomeação, já
formalizada, para o serviço público estadual, uma vez que aprovada em certame. Ocorre que a nomeação
foi depois tornada sem efeito. Ela requereu seu retorno ao serviço público municipal, alegando o erro
substancial. O TJRS negou seu pedido, empregando fundamentalmente conceitos atinentes ao ato
administrativo e à sua validade, além de ter considerado que sua escolha fora livre e informada. O STJ
reverteu, julgando que se tratava de erro substancial, causa determinante do pedido de exoneração e hábil
a viciar sua manifestação de vontade. Aqui se nota a dificuldade de estabelecer a substancialidade da falta
de informação. No TJRS, o ato foi considerado válido, nos seguintes termos: “É que tais vícios devem ser
concomitantes à manifestação de vontade do agente, de modo que não conduzem à anulabilidade do ato
jurídico a coação, o dolo ou o erro resultantes de atos posteriores àquele emanado de vontade livre e
consciente, como foi, no caso, o requerimento de exoneração da demandante. Vale dizer, a propósito: se
fatos ou circunstâncias posteriores à manifestação da vontade do agente ocasionarem um descompasso
com a vontade livremente manifestada em momento antecedente, tal não configura erro, sob o prisma do
direito civil. O erro, para conduzir a invalidação do ato praticado sob sua influência, há de resultar de
uma falsa representação da realidade pelo agente, que, se a conhecesse, não praticaria o ato jurídico.
Ora, no momento em que a autora formalizou o seu requerimento de exoneração do cargo de magistério
municipal que ocupava, o ato de nomeação para o cargo similar estadual havia sido publicado no Diário
246
Ademais, se o dever de informar varia em profundidade e extensão, o
consentente detém, correlativamente, responsabilidade sobre seu campo de informação
e pela diligência nas suas escolhas. Ainda que haja quebra do dever de informar, não
desaparecem a responsabilidade e a necessária diligência do consentente. Assim, a
quebra do dever de informar não será a causa do consentimento quando o consentente
agir com negligência, impulsividade, representando a realidade a seu próprio modo,
fazendo a contraparte supor que ele possuía conhecimentos e dados que na realidade
não detinha. Também não o será quando quem consente estiver em um tipo de relação
que exija background informativo especializado ou, ainda, se estiver assessorado –
levando aquele que deveria informar a desonerar-se de certos pontos – , mas não seguir
o assessoramento, escolhendo precipitadamente. Desonerar completamente o
consentente de responsabilidades – salvo exceções especialíssimas, nas quais estão em
causa direitos bastante sensíveis ou assimetrias intensas – significa uma clareira ao
simples arrependimento, ao desejo de voltar atrás497.
Oficial, existia e produzia efeitos jurídicos. O ato do Governador do Estado que tornou sem efeito a
nomeação da autora para o segundo cargo de magistério a que se habilitara não tem o condão de viciar
manifestação de vontade realizada anteriormente.” As diretrizes trabalhadas nesta tese levam a
concordar com a decisão final, uma vez que a ausência de dados (ainda que por atos administrativos
posteriores e de terceiros) era forte, ou seja, a servidora não pediria a sua exoneração se soubesse que não
seria nomeada para o serviço público estadual. Seu erro foi substancial e ela atuou com tanta diligência
que apontou em seu pedido de exoneração, inclusive, o ato administrativo que a nomeava para o serviço
público estadual. Todavia, e.g, se a servidora municipal houvesse solicitado sua exoneração apenas ao ser
aprovada em outro concurso público, sua margem jurídica para voltar atrás por invalidade do
consentimento seria nitidamente ínfima, pois o ato que tornou sem efeito sua nomeação não teria sido
substancial para sua escolha de exonerar-se. BRASIL. STJ. Resp. nº840.841/RS. Rel. Min. Maria
Thereza de Assis Moura. DJ de 25/05/2009.
497
Em tópico posterior será examinada a hipótese de consentimento revogável, assaz relevante na
disposição de posições subjetivas de direito fundamental de cunho marcadamente pessoal. Desde já
anota-se que a invalidade do consentimento é diferente do consentimento revogável. Infra, item 3.2.2.3.
247
conhecimentos sobre contracepção e negligenciou exatamente a informação que
recebera498.
498
O caso apresenta também a ocultação por parte da paciente, que faltou com a verdade ao não revelar
que estava grávida, havendo concorrência de culpas, ou culpa exclusiva da vítima, a depender da
interpretação.
499
A ideia foi inspirada em um julgado do TJRS, que considerou válida uma doação feita por portadora
do vírus, uma vez que não houve prova de promessa de cura e ela possuía boa condição econômica, social
e educacional. Veja-se que, se houvesse promessa de cura e recomendação de abandonar a medicina
alopática, a decisão poderia ser diversa, haja vista a exploração não-coercitiva, diante do desespero da
mulher, à época, com 39 anos e com diagnóstico positivo para o HIV. RIO GRANDE DO SUL. TJRS.
Apelação Cível nº70000993303. 15ª Câmara Cível. Rel. Des. Otávio Augusto de Freitas Barcellos.
Disponível em: http://www.tjrs.jus.br.
248
que a médica desonerou-se de seu dever de informar, pois emitiu todas as informações
técnicas necessárias. Mas ela foi além, embutindo na informação elementos não-
comprováveis, frutos do seu credo. Seu agir não maculou apenas a liberdade de escolha
por influência indevida, mas também seu dever de informar, uma vez que houve contra-
informações que, como vetores, poderiam anular a força da informação técnica.
Aliás, os olhos não devem voltar-se apenas a quem informa, mas também às
diretrizes institucionais e políticas públicas. O caminho percorrido pela Suprema Corte
dos EUA a respeito do aborto e do consentimento informado auxiliam no
esclarecimento. Após a decisão de Roe v. Wade, alguns estados, cujas legislaturas
mostravam-se avessas à legalização do aborto, instituíram regras e roteiros acerca das
informações que deveriam ser prestadas pelos profissionais da saúde. Foram impressos
panfletos, inclusive. Ao avaliar as regras, a Corte denominou-as a antítese do
consentimento informado, uma vez que seu conteúdo era alarmista, tendencioso e não
primava pela técnica. Ou seja, o conteúdo da informação visava a dificultar a escolha
pelo abortamento, mediante informações valorativas e imprecisas501. Raciocínio
análogo perpassa as diretrizes institucionais. Imagine-se que um hospital brasileiro,
confessional, desvinculado do SUS, instrua seus profissionais da saúde a ocultar
informações sobre o abortamento legal, as técnicas, os recursos disponíveis, os riscos,
etc. Ou, diversamente, que os instrua a incutir os valores da confissão religiosa em
pacientes que façam jus ao abortamento legal, ou a enfatizar os riscos físicos e
psicológicos. A liberdade religiosa, a diretriz institucional e o fato de a paciente ter
procurado exatamente a instituição confessional não eximem os profissionais da
500
RIO DE JANEIRO. TJRJ. Apelação Cível nº53.284/2009. 13ª Câmara Cível. Rel. Des. Sergio
Cavalieri Filho. DE de 06/11/2009 [sem grifos no original].
501
USA.Akron v. Akron Center for Reproductive Health. 462 U.S. 416. (1983). Disponível em:
http://case law.1p.findlaw.com/scripts/getcase.p1.court=us&vol=462&invol=416. USA. Thornburgh v.
American College of Obstetricians and Gynecologists. 476 U.S. 747. (1986). Disponível em:
http://caselaw.1p.findlaw.com/scripts/getcase.p1. court=us&vol=428&invol=52. Conferir, ainda:
MARTEL, Devido processo..., p.265 e ss.
249
informação objetiva, clara e correta. O dever de informar é aquele condizente com a
relação médico-paciente, segundo a boa-técnica, não o da confissão religiosa. O que
pode ocorrer é a recusa da Instituição ou dos profissionais em realizar o abortamento ou
até o atendimento, encaminhando a paciente para outro serviço de saúde502.
Por fim, há que se referir hipóteses nas quais o consentimento é inválido e não
funciona como justificação procedimental em virtude da quebra do dever de informar,
havendo, porém, justificação substantiva para a ação ou omissão. Esses casos são
importantíssimos, uma vez que neles não se utiliza um consentimento hipotético, ou
uma interpretação muito expandida do consentimento como justificação, ou seja, não se
enfraquece o consentimento e seu potencial de justificação procedimental. Um julgado
do TJRS tratou de tópico semelhante com propriedade. Uma adolescente foi submetida
a uma cirurgia para a extração de uma hérnia inguinal esquerda, mediante
consentimento de sua mãe e representante legal. No momento da intervenção, o médico
percebeu outra hérnia, do lado direito, maior e mais grave. Por critérios técnicos,
decidiu extrair a hérnia direita. A responsável não fora informada sobre esse risco.
Alegou que não consentira com o procedimento de extração da hérnia direita e que não
fora devidamente informada. No acórdão, foi reconhecida a falha na informação, mas
ponderou-se que a intervenção não fora realizada sob dissenso da genitora. O argumento
502
Nos EUA, os casos de Helga Wanglie e Paul Brophy introduziram algumas luzes no assunto, no que
toca à morte com intervenção, embora não digam respeito ao dever de informar. Helga Wanglie, uma
senhora octogenária, entrou em estado vegetativo persistente em razão de complicações oriundas de uma
fratura do quadril. Após meses de uso de sistemas de suporte vital, a equipe de saúde considerou que seu
tratamento era fútil e informou o representante sobre a retirada do suporte vital. Seu marido e
representante recusou, alegando que Helga gostaria de ser mantida até o fim. A Instituição hospitalar
ajuizou uma ação tentando substituir o representante, pois não havia certeza de que aquele seria mesmo o
desejo de Helga e, no entendimento médico, o mais adequado seria a suspensão do suporte vital. Não
havia questões econômicas envolvidas, pois Wanglie possuía um plano de saúde que cobria seus gastos.
A decisão judicial não viu motivos para substituir o representante e o suporte vital foi mantido, a despeito
da compreensão técnica da equipe de saúde. Na situação descrita, percebe-se que os profissionais foram
compelidos a dar continuidade a um tratamento com o qual não concordavam, respeitando a recusa do
representante de Helga. A discussão sobre a liberdade de consciência não foi o mote do caso e não houve
maiores debates a respeito, pois Helga faleceu poucos dias após a decisão. Já no caso de Paul Brophy, a
decisão judicial tentou equacionar os direitos do paciente e os dos profissionais da saúde. A esposa de
Paul, sabendo que ele manifestara em família que não gostaria de ser mantido em estado vegetativo
persistente e com sistemas de suporte vital, solicitou a suspensão do tratamento. Foi uma decisão difícil
para ela, católica, mas ela respeitou a autonomia pretérita do marido. A Instituição hospitalar, no entanto,
recusou-se a retirar o sistema de suporte vital, considerando a conduta antiética. No Judiciário, decidiu-se
que o suporte vital deveria ser retirado, mas que o paciente poderia ser transferido para outro local, a fim
de não violar a liberdade de consciência dos profissionais. Observe-se, portanto, que a divergência entre
os representantes e as instituições e equipes de saúde não foram produto da falta ou da lacuna
informativa. Ainda que discordem da escolha feita, cabe aos profissionais da saúde prestar as informações
adequadas e corretas, demonstrando as alternativas. Rememora-se que nos EUA é reconhecido o direito
dos pacientes de recusar tratamentos médicos, ainda que sejam de manutenção de vida. Cf.
McCONNELL, Op. cit., p.59-61.
250
final é o que realmente interessa, qual seja, a gravidade da hérnia extraída, ainda que
mediante um consentimento inválido ou ausência de autorização, justifica a decisão e o
método cirúrgico. Trata-se de uma justificação substantiva503.
503
RIO GRANDE DO SUL. TJRS. Apelação Cível nº70024182974. 9ª Câmara Cível. Rel. Des. Tasso
Caubi Soares Delabary. DE de 24/09/2008.
504
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.182-183.
251
3.2.2.3 A manifestação e a interpretação do consentimento
505
Não se está a negar que a expressão do consentimento seja em si mesma interpretativa, isto é, há
comportamentos que significam consentimento e existe o consentimento tácito. Porém, o consentimento
hipotético, aquele que se presume que um sujeito razoável emitiria ou emitirá, se estivesse ou quando
estiver em condições, não se confunde com tais figuras, aproximando-se muito mais de ficções jurídicas.
506
“Consent (as the basis for a procedural justification) assumes significance in the context of a
transaction between agents. In such context, by consenting, agent A essentially signals one of two things:
either a willingness in the part of A to modify its position in relation to the particular background scheme
of rights and duties, permissions and immunities, and the like, that regulates the relationship between A
and fellow agent B (the recipient of consent); or a willingness on the part of A to put in place a new
relationship with B, this might be by virtue of some simple dynamic (such as the giving of a promise or
agreement to extend of goods) or it might be by virtue of more complex institutional set (as is the case, for
example, if A invokes the law of contract or the law of marriage) or regulated scheme (such as those
licensing assisted-conception) or physician assisted suicide). Where A thus signals consent, and where
that consent satisfies the criteria of validity, thus A is precluded from asserting that B may not justifiable
rely on, or hold A to, the agreed change of position on the terms of the new relationship. None of this,
however gets to the first base unless A has actually signaled consent”. BEYLEVELD;
BROWNSWORD, Consent..., p.189 [sem grifos no original].
252
expressão do consentimento. Quanto mais fortes os primeiros, mais salvaguardas à
manifestação do consentimento507.
507
Em realidade, os sistemas jurídicos adotam técnicas deste tipo em uma plêiade de relações permeadas
pelo consentimento. Basta ver que para o casamento, os testamentos, a doação de órgãos inter vivos, os
padrão exigidos para a manifestação do consentimento são reconhecidamente fortes, assim como o são
naqueles países que aceitam a ortotanásia. Já para relações menos impactantes, como a compra e venda de
alimentos, o transporte de pessoas, os padrões são nítida (e adequadamente) bem menos exigentes. Mais à
frente tratar-se-á do tópico. Tangenciando o assunto: FEINBERG, Joel. Legal..., p.9 e ss. Supra, Capítulo
2, item 2.3.2.1.3.
508
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.187-196. No Brasil, são conhecidas as teses
voluntaristas (pela gênese) e as objetivas (pela função) do negócio jurídico. Ambas são alvo de críticas.
Cf. AZEVEDO, Op. cit., p.4-15.
253
de A; (b) os elementos subjetivos da conduta de B, fator crítico para solucionar
divergências interpretativas509.
509
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.189.
510
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.189. No original : “Agent A, subjectively intending to
consent to X, personally, distinctly and definitely, and unequivocally, signals ex ante (ie prior) consent to
X; and, where there is a delay between A consenting to X and X being done, then A subjectively maintains
the intention to consent to X”.
511
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.189-191.
254
B(vi): B acredita honesta e razoavelmente que A expressou o
consentimento512.
Quanto ao agente A:
512
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.190. No original: “B(i): B does not honestly believes
that A has signalled consent; B(ii): honestly believe that A has signalled consent; B(iii): B does not
reasonably believes that A has signalled consent; B(iv): B reasonably believes that A has signalled
consent; B(v): B does not honestly and reasonably believes that A has signalled consent; B(vi): B
honestly and reasonably believes that A has signalled consent”.
513
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.193-194. No original: “A(i): A intends that others
should think (incorrectly) that he intends to consent; or A is reckless in the sense that he is indifferent
whether other agents form the correct or incorrect impression; A(ii) A fails to take reasonable care to
avoid other agents forming the incorrect impression as to his intention to consent; and A(iii) A takes
reasonable care to avoid other agents forming the incorrect impression as to his intention to consent”.
514
Ilustração singela é a de um médico que trata um paciente acreditando, honesta e razoavelmente, que o
paciente não pretendia consentir. Seu ato até pode ser justificado, mas a justificação não estará no
consentimento do paciente. Cf. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.191.
255
são hábeis a afastar o tipo-ideal. Cada característica é necessária para o afastamento,
mas isoladas são insuficientes, chegando-se a B(vi), que precisa ser combinado ao
comportamento de A.
515
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.189-195.
516
Com as inversões lógicas, claro. Por exemplo, se uma paciente pretende fazer dois procedimentos
cirúrgicos estéticos de uma vez (não havendo contra-indicações) e o médico compreende honesta e
razoavelmente que deveria realizar um procedimento por vez, haveria a necessidade de duas intervenções
cirúrgicas. Para que o intérprete se aparte do tipo-ideal, seria preciso a combinação de B(v) ou B(i)com
A(i) ou A(ii). BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.195.
256
O ideal é o consentimento pessoal. Na disposição, é condição necessária que
seja pessoal ou, pelo menos, reconduzível claramente ao titular, mediante representação
convencional ou mediante linhas bem definidas de julgamento por substituição. Não
sendo assim, a justificação não será procedimental por consentimento do titular, de sorte
que ou não haverá justificação, ou ela será substantiva ou procedimental por
consentimento alheio, descaracterizando a disposição. Ao que foi escrito acerca da
recondução ao consentimento do titular, acrescenta-se que acontecem situações
problemáticas de manifestação, dentre as quais se destacam: (a) quando o representante
é aparente, ou seja, quem recebe o consentimento acredita honesta e razoavelmente que
se trata de um representante convencional de A, sem que isso seja a realidade; (b)
quando B é induzido, dolosa ou culposamente, pelo representante convencional, a
apoiar-se no consentimento. Em ambas, a conduta de B poderá ser procedimentalmente
justificada pelo consentimento. Em outras situações de representação convencional ou
de julgamento por substituição, emprega-se a mesma linha de interpretação
suprarreferida, fundada no tipo-ideal517.
517
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.198-199. No Código Civil brasileiro, a regra geral é:
“Art. 118. O representante é obrigado a provar às pessoas, com quem tratar em nome do representado, a
sua qualidade e a extensão de seus poderes, sob pena de, não o fazendo, responder pelos atos que a estes
excederem. Art. 119. É anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o
representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou”.
518
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.199-200.
519
Durante o doutoramento, fiz a disciplina de civil-constitucional, sob supervisão da Profª. Maria Celina
Bodin de Moraes. No artigo de conclusão, posteriormente publicado, sustentei a necessidade de um
consentimento formal para a disposição de posições subjetivas de direito fundamental. Após o estudo da
estrutura das posições, percebi o equívoco, pois os exemplos de disposição tornaram-se mais claros.
257
sexual é um momento em que há disposição de posições subjetivas de direito
fundamental. Seria exigível um consentimento expresso e formal? Desnecessário
responder. Entretanto, padrões para a manifestação do consentimento no contexto da
disposição merecem consideração, pois enlaçam nitidamente a justificação e a
aplicação.
MARTEL, Letícia de Campos Velho. Sujeitos de pesquisa no ordenamento jurídico brasileiro: um exame
civil-constitucional da autolimitração de direitos fundamentais. In: CUSTÓDIO, André Viana.
CAMARGO, Monica Ovinski de (orgs.). Estudos contemporâneos de direitos fundamentais (v.1,
visões interdisciplinares). Curitiba/Criciúma: Mutideia/UNESC, 2008, p.229-230.
258
instituição – quando jusfundamentalmente protegida – e ao controle de eventuais
excessos que se manifestem como violações de direitos520.
Diante disso, uma das propostas que se faz a respeito é unir o critério formal da
modalidade de disposição às exigências quanto à manifestação do consentimento,
sempre com o olhar voltado ao tipo de relação e suas características fáticas e jurídicas,
além das circunstâncias e da posição subjetiva e dos sujeitos das relações
especificamente considerados.
520
Supra, Capítulo 1, item 1.2.3.2.1.3.
521
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.200.
522
Para os autores, ao Estado não deveria ser permitido utilizar o consentimento como justificação nos
esquemas de dissenso. A distância do tipo-ideal de consentimento é muito grande, e o Estado deve
enfrentar o ônus argumentativo por outros caminhos, mormente substantivos. Salientam que tais
esquemas acontecem para a doação de órgãos post mortem, doações de sangue e também para o serviço
militar. Em cada caso, justificações substantivas existem e são mais adequadas do que um consentimento
ficto. Para aprofundar a discussão: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.200-205.
OLIVEIRA, Nuno Manoel de. O direito geral de personalidade e a ‘solução do dissentimento’: ensaio
sobre um caso de ‘constitucionalização’ do direito civil. Coimbra: Coimbra, 2002.
259
cunho pessoal, há termos de adesão. É o que se dá, por exemplo, na internação
hospitalar, momento em que o enfermo ou seus familiares assinam termos pré-prontos
de consentimento. Frequentemente, os termos são lacunosos, genéricos e autorizam um
sem número de procedimentos. Também nos termos de consentimento hospitalares, é
comum considerar o primeiro consentimento justificação procedimental para toda a
extensão do internamento. Em assim sendo, um consentimento inicial de adesão é
perpetuado e estendido, justificando comportamentos futuros e distintos. Nesses
moldes, a recusa se torna mais difícil, surgindo notas de semelhança aos esquemas de
dissenso. O melhor seria, além de evitar termos genéricos, renovar o consentimento
quanto a atos hospitalares não corriqueiros, evitando-se, assim, consentimentos e
justificações procedimentais fictas e genéricas523.
523
No consentimento em relações contínuas e sujeitas a alterações fáticas, a informação e o dever de
informar ganham corpo. O ponto é importantíssimo para as conclusões do Capítulo 4. Interessante
discussão jurídica no tema da continuidade de um primeiro consentimento está nas chamadas relações
especiais de poder ou de sujeição. Sobre o assunto: PEREIRA, Jane Reis. Op. cit., p.385-430.
ANDRADE, Os direitos fundamentais ..., p.303 e ss. NOVAIS, As restrições..., p.510 e ss.
260
consentimento, os comportamentos hão de ser inequívocos, além de não ser
recomendável que o Estado escore-se apenas nessa justificação procedimental, sendo
mais adequado fazê-lo arcar com ônus substantivos de argumentação para a
interferência nas posições subjetivas de direito fundamental524.
524
A revelia é uma ilustração. O não-comparecimento do réu pode significar um consentimento que
justifica procedimentalmente fragilizações em posições subjetivas do devido processo legal? Em diversos
sistemas jurídicos, sim. Ainda que seja essa a justificação, há diferenças significativas nos efeitos da
revelia ao ensejo dos direitos em questão e também do tipo de processo – se penal ou não. É o que se vê
no processo civil brasileiro, que estipula que os efeitos da revelia não se produzem quando os direitos em
causa forem indisponíveis, assim como há substancial diferença no trato da revelia pelo processo penal.
Mesmo que se entenda que o comportamento atua como consentimento, é importante perceber que não é
a única justificação, uma vez que ao seu lado estão os direitos do outro litigante e o dever estatal de
fornecer a prestação jurisdicional, pontos substantivos que se agregam ao não-comparecimento do réu.
Ademais, é bastante assentado e nítido o comportamento omissivo que dá ensanchas à revelia. No tema:
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.200-205.
525
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.207 e ss.
526
Supra, Capítulo 2, item 2.3.2.1.1.
261
curativas ou estéticas...), de modo que o consentimento ex post é muito inseguro, tanto
no que concerne à fidelidade à vontade do consentente, quanto às expectativas de quem
o recebe. As lições sobre o consentimento ex post na disposição de posições subjetivas
de cunho pessoal são quatro: (a) elo com a modalidade de disposição, seus efeitos
fáticos e jurídicos, assim como os direitos em jogo e as circunstâncias; (b) análise da
reversibilidade da situação; (c) atenção ao paternalismo e institutos afins injustificados;
(d) atenção à ficção sobre a fidelidade à vontade do consentente e às expectativas
justificadas da contraparte.
527
Sobre as condições e termos, arts.121 e ss. do Código Civil Brasileiro. BRASIL, Código Civil, Op.cit.
528
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.208 e ss. Consoante os autores, os filósofos já
agonizaram nessa questão, tratando do agente que não quer ser libertado da sua vontade anterior,
independentemente da sua vontade atual. Entende-se que se trata dos contratos de Ulisses, que põem os
sistemas jurídicos em face da embaraçosa decisão de respeitar uma vontade pretérita ou uma vontade
atual. Deixando de lado o debate de filosofia política e constitucional a que o tema conduz, os autores
sugerem que os sistemas jurídicos responderam ao problema melhor do que os filósofos, ao mostrarem-se
muito resistentes a tais contratos ou termos, ressalvando parcas exceções. ELSTER, John. Ulysses
unbound – studies in rationality, precommitment, and constrains. Cambridge: Cambridge University,
2000, p.especialmente o Capítulo 1, p.1-87.
529
Por diretrizes antecipadas, compreende-se o documento jurídico pessoal, formal, em que um sujeito do
consentimento expressa a quais tratamentos, intervenções médicas e situações pretende ou não ser
submetido na assistência e, eventualmente, na pesquisa em saúde, para o caso de inconsciência ou de
incapacidade futura. Isto é, enquanto sujeito do consentimento ele expressa seu consentimento, para a
eventualidade de perder o status. Quando empregadas em situações cujo prognóstico é de
irreversibilidade, usa-se intitulá-las testamento vital. As diretrizes antecipadas podem ser também o
documento jurídico-formal no qual o sujeito do consentimento indica uma ou mais pessoas como
responsáveis para tomar decisões acerca da assistência médica, para o caso de inconsciência ou
incapacidade futura, ou seja, institui um representante convencional, oferecendo-lhe linhas de atuação
mais ou menos delimitadas, ou simplesmente deixando em suas mãos as decisões. Na definição
estadunidense: “advance directive. 1. a document that takes effect upon one’s incompetence and
designates a surrogate decision-maker for healthcare matters (…). 2. a legal document explaining one’s
262
representante convencional são feitas para o futuro, sujeitas a condições resolutivas.
Dois problemas há: (a) o alcance e a interpretação dos testamentos vitais e das
diretrizes; (b) o quanto de confiança se pode depositar nos instrumentos, pois é
discutível até que ponto eles ainda traduzem a vontade do consentente, um agente
ostensivo pretérito. Se houver prognóstico de terminalidade ou o indivíduo estiver em
estado vegetativo persistente, o conflito parece diminuir, mas, se a questão girar em
torno de adversidades como a dependência física sem possibilidade de comunicação ou
sem integridade psíquica, a síndrome do encarceramento, as doenças mentais
degenerativas, o percurso fica mais íngreme. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword
demonstram que os ordenamentos jurídicos são tensos a respeito. Por um lado, se não
admitirem os testamentos vitais e as diretrizes antecipadas, negarão competências tidas
por jusfundamentalmente protegidas em diversos países (quais sejam, as decisões sobre
os tratamentos médicos, mesmo os de prolongamento ou de manutenção de vida) dos
agentes enquanto ostensivos (i.e., sujeitos do consentimento). Por outro lado, ao aceitar
os institutos, adentram no desconhecido, uma vez que não se sabe, ao certo, se há ou
qual é a vontade atual do agente pretérito, após o advento das condições530.
Anteriormente, referiu-se que Ronald Dworkin opta pelo respeito à autonomia pretérita
como o princípio regente531. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword seguem rumo
semelhante, advertindo que, neste ponto, a tarefa regulatória estatal é de suma
wishes about medical treatment if one becomes incompetent or unable to communicate (…). 3. DO-NOT-
RESUSCITATE ORDER”. Living will: An instrument, signed with the formalities of statutory required
for a will, by which a person directs that his or her life not be artificially prolonged by extraordinary
measures when there is no reasonable expectation of recovery from extreme physical or mental
disability”. GARNER, Op.cit., vocábulos advance directive e living will. Conferir também:
BUCHANAN, Allen. Advance directives and the personal identity problem. Philosophy and public
affairs, v.17, n.4, p.277-302, Autumn, 1988; BROCK, Dan. Life and death: philosophical essays in
biomedical ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 154-155. O mais usual, no Brasil, é
entender que “os testamentos vitais são utilizados para dispor sobre a assistência médica a ser prestada ao
paciente terminal, enquanto as diretivas antecipadas são usadas para dispor sobre tratamentos médicos em
geral, dos quais o paciente pode se recuperar ou não. Há, portanto, inteira continência entre os dois
institutos, não se justificando um esforço teórico para distingui-los. Temos unificado a terminologia para
evitar dúvidas e assegurar a construção nominal do instituto em Língua Portuguesa, mantendo a cognação
com o original em inglês: advance directives”. RIBEIRO, Diaulas Costa. Um novo testamento:
testamentos vitais e diretivas avançadas antecipadas. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Família e
dignidade humana. São Paulo: IOB Thompson, 2006. Discutindo o instituto do testamento vital para os
casos de terminalidade e sua validade no Brasil: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. PENALVA,
Luciana Dadauto. Terminalidade e autonomia: uma abordagem do testamento vital no direito brasileiro.
In: PEREIRA, Tânia da Silva et al. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p.57-
82. Ver também a importante diferença acerca dos testamentos vitais (ato inter vivos) e do regime jurídico
dos testamentos (mortis causa) no Brasil: NEVARES, Ana Luiza Maia. Apontamentos sobre o direito de
testar. In: PEREIRA, Tânia da Silva et al. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010.
p.83-99.
530
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.208 e ss.
531
DWORKIN, Ronald. Domínio..., p.295 e ss.
263
proeminência. Para equilibrar o problema, o mais adequado seria um marco regulatório
estreito, que permitisse a segurança na elaboração dos testamentos vitais e das diretrizes
antecipadas e na sua aplicação futura, com limites e orientações interpretativas532. Os
autores sugerem, também, que os sistemas jurídicos criem prazos para a revalidação
desses instrumentos, de modo a ampliar a margem de segurança e manter a atualidade
de seus termos533.
532
Os termos, assim como os contratos, arriscam a apresentar ambiguidades, dúvidas de interpretação,
lacunas, etc. Daí a importância de um marco regulatório e de orientações seguras quanto às formas de
interpretação que serão empregadas. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.208 e ss.
533
Embora o problema pareça singelo, principalmente quando exposto pelos defensores mais enfáticos da
adoção das diretrizes antecipadas e dos testamentos vitais nos sistemas que não os admitem formalmente,
ele é muito denso e dele afloram indagações profundas. Como o assunto é importante para o Capítulo 4,
toma-se a liberdade de fazer uma extensa citação: “Understandably, legal regimes often display some
nervousness about recognising and enforcing advance directives. In some cases, this might result in a
legal paralysis, leaving the effect of particular advance directives to be determined informally by
particular doctors in each particular case. Or, the case-by-case approach might be slightly more
structured with it being recognised that, where there is an advance directive, doctors rightly give it some
weight in forming a judgment as to what is the patients best interests or for the purposes of making a
substituted judgment as to what the patient would have willed in the circumstances. For agents seeking
clarity and calculability, however, these legal positions are unhelpful. Such agents are deprived of the
opportunity to exercise control over their futures – or, at any rate, the state of legal uncertainty means
that such agents cannot be confident that they have their future under control. Of course, if the legal
regime repairs the uncertainty by declaring that advanced directives shall be of no legal effect in any
circumstances, agents know where they stand but those agents who would wish to assert their will by
giving an advanced directive are now altogether deprived of this option. It follows that such agents will
not be assisted unless the legal regime repairs the uncertainty by putting in place a scheme under which
advance directives will be recognized. [where an advance directive is fully recognized, those who act in
accordance with the directive will be exempt from claims for private (and public) wrongdoing, and those
who act against the terms of the directive will be open to claims for private wrong]. Where an agent
invokes such a scheme, the process should be seen as analogous to invoking the law of sucession to write
a will. In both cases, the agents who give the directives understand that their directives will be acted upon
when the time comes unless they have withdrawn the directives in the meantime; they know that they
cannot be sure when precisely (if ever, in the case of an advance directive) the directives will become
operative; and they know that they are at risk that, at the operative time, the directive might not
accurately reflect their last subjective will. So be it; this is the risk involved in this particular option; and
the initial consent invoking the option must bear the justificatory weight of applying an institutional set in
which the risk of the original signal becoming unreliable over time rests with the agent whose decision is
to invoke the set in the first place. If this seems to be too casual about possible changes of will, a legal
regime might fine-tune its schemes so that long-term directives have to be renewed periodically. Given
that periodical renewal might make more sense for some directives than others, as for some agents more
than others, a sophisticated legal regime might be able to offer agents the option of entering their
directives in a scheme that requires regular renewal of their directives”. BEYLEVELD;
BROWNSWORD, Consent…, p.210-211 (texto de nota de rodapé incluído). Ver também:
BUCHANAN, Op. cit., p.277-302.
534
Para um debate aprofundado sobre os princípios morais e jurídicos atendidos pelas diretrizes
antecipadas, ver: BUCHANAN, Op. cit., p.277-302.
264
3.2.2.3.1.1 Manifestação do consentimento e revogabilidade
Para exemplificar, os autores mencionam um sujeito (A) que permitiu que outro
(B) usasse sua vaga de garagem, sem qualquer contrapartida e sem acordar prazos ou
condições. Trata-se de um consentimento que altera posições e coloca B em posição de
privilégio536. Em se tratando de privilégio, A modificou posições sem extingui-las nem
transferi-las. Destarte, pode voltar atrás sem justificação e sem avisar previamente.
Entretanto, quando houver criação de uma nova relação, formando direitos em sentido
estrito ou imunidades e seus correlatos, os estudiosos sugerem que a linha mestra seja a
irrevogabilidade (unilateral) do consentimento, com exceções: (a) cláusula expressa a
respeito da revogação; (b) estipulação de prazo para arrependimento; (c) previsão
normativa expressa em sentido diverso para conjuntos fáticos específicos537. Ao
pensamento dos autores, acrescenta-se que os conjuntos normativos que preveem a
revogação unilateral usualmente referem-se a situações notadamente existenciais.
Notório é que a revogação unilateral, mesmo quando prevista, encontrará barreiras
fáticas, pois haverá situações em que será impossível voltar atrás.
535
Se o pêndulo estivesse apenas ao lado da fidelidade à vontade do consentente, sempre haveria
possibilidade de revogação. Estar-se-ia diante da ruína do direito contratual e do consentimento como
justificação procedimental. É o outro vetor que recebe peso, do contrário não haveria segurança negocial,
tampouco seria razoável que um sujeito pautasse seus atos no consentimento alheio. Ressalvam-se,
apenas, as cláusulas expressas a respeito da revogação unilateral sem consequências negativas para quem
retira o consentimento, ou a constituição de uma nova relação que desfaz a primeira, mediante acordo
entre as partes. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.208 e ss.
536
O exemplo é semelhante ao utilizado por Rainbolt e citado no Capítulo 1, subitem 1.2.3.2.1.
537
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.209-212; 221-225.
265
Do direito brasileiro, extraem-se duas ilustrações. Em ambas há disposição de
posições subjetivas de direito fundamental. Na doação de órgãos inter vivos, é expressa
a legislação acerca da revogação do consentimento a qualquer momento antes da
retirada do órgão. Na mesma senda, é nítida a Resolução CNS 196/96 sobre a
possibilidade de os sujeitos de pesquisa retirarem seu consentimento a qualquer
tempo538.
538
Na Lei de transplantes, art.9º, §5º, supracitado. Na Resolução 196/96: “IV.1. Exige-se que o
esclarecimento dos sujeitos se faça em linguagem acessível e que inclua necessariamente os seguintes
aspectos: […] f) a liberdade do sujeito se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer
fase da pesquisa, sem penalização alguma e sem prejuízo ao seu cuidado”. Cf. BRASIL, Lei
nº9.434/1997, Op.cit.; BRASIL, Lei nº10.211/2001, Op.cit.; BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. CNS.
Resolução 196/1996, Op.cit. Sobre os sujeitos de pesquisa, discute-se se após o fechamento da coleta dos
dados poderia o sujeito dissentir e impedir a utilização dos seus resultados. A princípio, seria adequado.
Porém, finda a coleta, se um dissenso prejudicar toda a pesquisa, causará impacto nos demais sujeitos de
pesquisa, uma vez que suas participações teriam sido inúteis. Nas pesquisas envolvendo seres humanos,
algumas retiradas de consentimento poderão ser monitoradas, em função de efeitos colaterais que a saída
da pesquisa acarreta ao sujeito.
539
No direito brasileiro, há diversos estudos de relevo. Dentre eles: MARTINS-COSTA, A
reconstrução...; MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000; ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé. São Paulo: Saraiva, 2005;
TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao novo
Código Civil. São Paulo: Método, 2005; TEPEDINO, Temas... ; SALEH, Sheila Martignago. A
dignidade da pessoa humana e contratos inter-privados: mudança de eixo interpretativo, a partir de uma
formulação civil-constitucional. Revista da ESMESC, Florianópolis, v.13, n.19, jan./dez. 2006.
266
envolvidos e mantenham a integridade do sistema540. Os vetores fidelidade à vontade e
às expectativas justificáveis dos polos necessitam prévio balanceamento e equilíbrio,
conforme as características relevantes de cada grupo de situações ou de casos
particulares, mediante atos legislativos, regulações e precedentes judiciais construídos
com o fio da integridade, sempre à luz dos princípios e das cláusulas gerais541.
Há três tipos de relação de base de disposição quanto aos sujeitos: (a) entre o
Estado e o indivíduo; (b) entre indivíduos em posição de simetria; (c) entre indivíduos
em posição de assimetria. Vieira de Andrade tratou deste assunto em termos que vale
transcrever:
540
A palavra integridade é empregada no sentido dworkiniano, explicitado no Capítulo 2, item 2.3.2.
541
Evidentemente, não se está a defender um ideal de segurança jurídica ao estilo do positivismo jurídico,
como o elemento mais relevante. Não é disso que se trata. Diz-se apenas que as cláusulas gerais não são
uma panaceia universal, a serem empregadas no ambiente jurisdicional em simples menosprezo das
diretrizes legais, nem de modo desvinculado dos precedentes e sem conteúdo, como joguetes. As notas
seguras de interpretação advêm da aplicação de princípios e de cláusulas gerais, sempre enlaçadas com os
constitucionais princípios da segurança jurídica, da democracia e da tripartição de poderes, além dos
direitos em jogo.
267
autolimitado perante outrem, que pretende, acorda ou beneficia da
limitação.
Assim, como vimos já, não estarão sujeitos às mesmas condições e
limites a renúncia, o acordo ou o consentimento de uma pessoa
perante uma autoridade dotada de poderes públicos, perante uma
entidade privada ou indivíduo que detenha um poder jurídico ou de
facto, ou numa relação entre iguais542.
Os estudiosos do tema da disposição divergem acerca da possibilidade de se
adotar critérios similares de exame para as relações do primeiro e paras as do segundo e
do terceiro tipo543. Nesta tese, compreende-se que, se a relação for entre o Estado e o
indivíduo, haverá diferenças de relevo quanto àquelas entre particulares, uma vez que a
relação entre o Estado e o indivíduo apresenta nuances próprias. De pronto, atenta-se
para o fato de o Estado não ser, via de regra, titular de direitos fundamentais
(especialmente as liberdades), mas seu destinatário. Isto faz com que muitas vezes não
esteja no exercício de posições subjetivas de direitos fundamentais ao adentrar numa
relação de disposição544. Além disso, a relação será necessariamente permeada pela
incidência direta de enunciados normativos e normas de direitos fundamentais.
542
ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.335.
543
Os padrões desenvolvidos por Novais foram formulados para uma relação do primeiro tipo. Ele
comenta que muitos deles podem ser aplicados também nas demais, com sutis distinções. Já José Carlos
Vieira de Andrade considera que haverá uma diferença significativa no exame de uma ou de outra
relação. Em essência, a dissonância está na aplicação do postulado da proporcionalidade, pois o autor
entende que ele não se coaduna integralmente quando a relação é entre particulares. A respeito, comparar:
ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.335-336 e NOVAIS, Renúncia..., p.266.
544
Não se nega que o Estado participe de relações de disposição como o titular de posições subjetivas de
direito fundamental, nem que poderá delas dispor em favor do indivíduo. Todavia, trabalha-se com as
hipóteses mais comuns, a disposição, pelo particular, em favor do Estado, de posições subjetivas de
direito fundamental.
545
Sobre a chamada eficácia horizontal, supra, item 1.3.3.
268
por consentimento do titular para a intrusão estatal em posições subjetivas de direitos
fundamentais, estabelecendo padrões mais exigentes e contínua pressão por
justificações substantivas. No entanto, a cautela é necessária, para que a disposição em
favor do Estado não seja simplesmente inviabilizada, porquanto haverá situações em
que a única justificação será efetivamente a procedimental por consentimento do titular,
e sua proibição acriteriosa ensejaria violação de direitos fundamentais.
546
O termo juridicidade é de Gustavo Binenbojm. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito
administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
547
Sobre o assunto, NOVAIS, Renúncia..., p.310-320.
269
adequadamente se a possibilidade de disposição de direitos for previamente estipulada
em enunciado normativo de caráter geral. A presumida assimetria e o princípio da
igualdade constituem, então, razões para a exigência de enunciado normativo geral e
abstrato para a disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais em face do
Estado548. Soma-se a isso o dever de o Estado arcar com o ônus argumentativo para
desobrigar-se quanto a posições subjetivas de direitos fundamentais. Ao exigir
enunciado ou norma anteriores à intrusão, compele-se o Estado a formular com
transparência os motivos que o conduzem a admitir ou a restringir a disposição em seu
favor, tornando mais controlável sua atuação, assim como mais nítidos os padrões de
justificação e de aplicação.
548
É dispensável referir que o enunciado normativo ora mencionado é aquele geral, abstrato e adequado à
Constituição Federal.
549
É necessário explicitar que o autor divide em dois momentos o que denomina renúncia a posições
subjetivas de direitos fundamentais quando se está diante dos poderes públicos. O momento em que o
sujeito consente e dispõe da posição e o momento em que os poderes públicos, em razão do
consentimento, efetivamente operam a intrusão no âmbito da posição subjetiva de direito fundamental. É
por isso que ele menciona verdadeira restrição heterônoma, por se referir ao segundo momento.
NOVAIS, Renúncia..., p.318. [sem grifos no original].
270
razão de ser. Se não as atenderem, ou no grau em que forem enfraquecendo, desaparece
ou diminui a exigência de enunciado normativo autorizador e regulador. Portanto, em
um tipo-ideal, trabalha-se com a necessidade de enunciado normativo prévio; mas
haverá hipóteses nas quais tal enunciado será a posteriori, ou a densidade normativa
(enunciado ou norma em sentido amplo e material) será menor, ou, ainda, que o
enunciado será desnecessário.
550
É efetivamente discutível a aceitação do consentimento na situação. Teria o morador sido
adequadamente informado? Como garantir que o foi? Saberia o morador das consequências jurídicas do
consentimento? Foi efetivamente livre ao consentir? As indagações são levantadas pelos problemas
típicos do consentimento, além da margem de abuso por parte dos agentes do Estado e, até mesmo, da
segurança das provas obtidas. Repisa-se o ponto: quanto ao Estado, o tipo-ideal recomenda a existência
de enunciado normativo e prefere justificações de outro molde (que aqui estariam na motivação de ordem
judicial).
551
No artigo publicado por esta doutoranda, acerca dos sujeitos de pesquisa no ordenamento jurídico
brasileiro, o ponto de partida foi a indisponibilidade a priori de posições subjetivas de direito
271
No palco das relações privadas, há a relação simétrica e aquela que se processa
entre pessoas em posição de assimetria. Como pincelado antes, a assimetria há de
guardar conexão e relevância para a disposição especificamente considerada, isto é, ao
se falar em simetria, em sociedades capitalistas e plurais, o que se tem em mente não é
uma absoluta e linear simetria, uma identidade paritária, mas a ausência de assimetrias
com significado para o ato de disposição que se analisa.
fundamental, em respeito ao art.11 do Código Civil Brasileiro. Aqui, a adesão ao direito geral de
liberdade impede que este seja o ponto de partida nas relações entre particulares. No Capítulo 4, será
comentada a questão à luz do direito fundamental estudado na tese, o direito à vida. Conferir: MARTEL,
Sujeitos de pesquisa..., p.222-227.
272
de paternalismo e institutos afins injustificados, ou lesando a dignidade como
autonomia dos sujeitos para protegê-los de si mesmos. É preciso, portanto, ajustar a fina
sintonia entre proteção dos hipossuficientes e a sua condição de agentes e de sujeitos do
consentimento.
273
restritiva e a priori tendente a um dos polos, a estipulação de critérios formais mais
refinados para a validade do consentimento (e por consequência da disposição) e
também afeta o desenho das possibilidades de disposição, prioritariamente quando há
possibilidade de pressão ou influência indevidas ou de exploração não-coercitiva.
552
Supra, itens 3.2.2.1; 3.2.2.3; 3.2.2.3.
274
mas entre opções drásticas. Sendo fenomenicamente inevitável a condição, incumbe aos
sistemas jurídicos traçar anteparos específicos para a proteção dos vulneráveis, tendo
sempre em mente que a vulnerabilidade não é em si uma razão para ablações ainda
maiores de direitos e que, infelizmente, o curso da vida pode confrontar os sujeitos com
opções duras, não evitáveis pela mão do ser humano.
553
Para conceituar suporte fático, entende-se, com apoio no escólio de Virgílio Afonso da Silva, que são
necessárias respostas a quatro questões: “(1) O que é protegido? (2) Contra o quê? (3) Qual a
consequência jurídica que poderá ocorrer? (4) O que é necessário ocorrer para que a consequência possa
também ocorrer?” A resposta inclui não apenas o âmbito de proteção (primeira pergunta), mas também
um “segundo elemento – e aqui entra parte contra-intuitiva: a intervenção estatal. Tanto aquilo que é
protegido (âmbito de proteção), como aquilo contra o qual é protegido (intervenção, em geral estatal)
fazem parte do suporte fático dos direitos fundamentais. Isso porque a consequência jurídica – em geral a
exigência de cessação de uma intervenção – somente pode ocorrer se houver uma intervenção nesse
âmbito.” A opção terminológica por suporte fático está em consonância com o já tradicional no direito
brasileiro, que, como bem lembra Virgílio Afonso da Silva, foi consagrada nos escritos de Pontes de
Miranda, em sua minuciosa explanação do processo de juridicização. Virgílio Afonso da Silva entende
que o suporte fático dos direitos fundamentais deve ser assim expresso: APx e não-FC(IEx) então CJx.
onde, AP refere-se ao âmbito de proteção, x à ação, FC à fundamentação constitucional para a
intervenção e IE a intervenção estatal. Borowski apresenta formulação distinta, embora os resultados
práticos da diferença não sejam deveras significativos: se (APx e IEx) e não-FC, então CJx. É necessário
atentar para as diferenças quanto aos direitos a prestações, que não serão aqui trabalhadas. Sobre o tema,
ver: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.132-215; SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo
essencial..., p.85-92; BOROWSKI, Op. cit., p.29-59.
554
A lógica faz pensar que o suporte fático amplo combina-se à teoria externa dos Direitos Fundamentais.
Nesta tese, trabalha-se com a teoria externa por dois motivos: (a) a necessidade de arcar com o ônus
argumentativo para a exclusão de comportamentos do âmbito de proteção e do suporte fático dos direitos
fundamentais, especialmente em um país de recente tradição na defesa, promoção e proteção dos direitos
fundamentais; (b) em virtude do que Judith Jarvis Thomson denomina resíduo moral, que pode ser
convertido para resíduo jurídico. Feinberg trouxe a questão à tona em seu famoso exemplo da cabana.
Um alpinista se vê em forte risco em uma nevasca. Temendo perecer, invade uma cabana nas montanhas,
quebrando a janela. No período que ali permanece, utiliza a lenha e os alimentos enlatados que encontra.
Ao final, é resgatado em segurança. Se empregada a teoria interna, dir-se-ia que o direito de propriedade
não abarca a situação, tutelada pelos direitos do alpinista. Se empregada a teoria externa, dir-se-ia que as
posições subjetivas do direito de propriedade incidem, mas cedem, pois sua ablação é justificada por
outras posições concorrentes, como as do direito à vida e à integridade do alpinista. É no momento em
que o alpinista retorna em segurança que os resíduos aparecem. Não deveria ele indenizar o proprietário?
Restituir-lhe os valores correspondentes à lenha, aos alimentos, à janela? Em inúmeros sistemas jurídicos
(o brasileiro inclusive) a resposta é afirmativa. Pois bem, se as posições subjetivas do direito de
propriedade não incidem na situação, como sustenta a teoria interna, qual a explicação para o resíduo
indenizatório? Ele advém exatamente de posições do direito de propriedade, que incidiu; apenas cedeu em
momento específico, enquanto em risco outras posições que obtiveram maior peso. Passado o perigo, os
mesmos fatos são protegidos pelo direito de propriedade, de modo que se torna difícil asseverar que o
direito de propriedade não incide. Ele incide, mas é justificadamente infringido até um ponto
determinado. A combinação dos artigos 188 e 929 do Código Civil conduz a esta interpretação. Também
em prol da teoria externa há o argumento de McConnell. Para o autor, a teoria interna torna mais difícil
conhecer os contornos de um direito, gerando insegurança, enquanto a teoria externa, com o tempo, vai
oferecendo linhas mais certeiras sobre quais direitos precedem e em quais situações. Sobre o tema, ver:
275
será também amplo, conglobando o de configuração do direito, segundo indicado no
Capítulo 1 (item 1.4.2). Nesta trilha, as posições subjetivas de direito fundamental são
prima facie disponíveis, de modo que a sua proibição ou o estabelecimento de
regulações, critérios e salvaguardas caracterizam intervenções, que poderão ser
conformes à Constituição (restrições) ou não (violações). Ao ampliar o âmbito de
proteção e o suporte fático, ficam também mais extensas, a priori, as posições
subjetivas para a instituição de competências, quando elas forem necessárias à
disposição.
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.132-215. SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo
essencial..., p.163-240. FEINBERG, Joel. Voluntary euthanasia and the inalienable right to life. In:
FEIBERG, Joel. Rights, justice and the bounds of liberty. (Essays in Social Philosophy). New Jersey:
Princenton, 1980, p.229-231. THOMSON, Op. cit.; McCONNELL, Op. cit., p.7. BRASIL, Código Civil,
Op. cit., arts.188; 929; 930.
555
Emprega-se a terminologia de Humberto Ávila. Para o autor, postulados normativos “são deveres
estruturantes da aplicação de outras normas”, isto é, “funcionam como estrutura para a aplicação de outras
normas”. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
São Paulo: Malheiros, 2003, p.80 e ss. É farta a literatura nacional e estrangeira sobre o assunto. Como
feito no Capítulo 2, item 2.2.4, a principal base teórica serão os estudos de Robert Alexy, com algumas
alterações em função de releituras de outros autores. Sobre o tema, dentre diversos outros, consultar:
DANTAS, Op.cit., p. 21-31; CASTRO, Op. cit.; BARROSO, Interpretação..., p.303 e ss.; GUERRA
FILHO, Princípio da proporcionalidade..., p.255-269; SARMENTO, Ponderação de interesses ...;
MARTEL, Devido processo legal ..., passim; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., passim;
BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005; ALEXY, Robert. Constitutional rights, balancing and rationality. Ratio Juris, v.16, n.2,
p.131-140, jun. 2003; ALEXY, Robert. On balancing and subsumption: a structural comparison. Ratio
Juris, v. 16, n.4, p.433-449, Dec. 2003; ALEXY, Teoria de los...; ALEXY, Robert. Colisão de direitos
fundamentais e a realização de direitos fundamentais no Estado Democrático. Revista de Direito
Administrativo, n.217, p.67-79,1999; SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo essencial..., p.49-78;
Silva, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 798, p. 23-50, 2002.
BOROWSKI, Op. cit., p.29-59. ÁVILA, A distinção...; ÁVILA, Teoria dos princípios...; PULIDO,
Carlos Bernal. The rationality of balancing. Archives fuer Rechts-und Sozialpholosphie. v.92, n.2,
p.195-208, April, 2006. TSAKYRAKIS, Stavros. The balance method on the balance: human rights
limitations in the ECHR. (apresentado no Global Fellow Forum, Activities of the Jean Monnet for
International and Regional Economic Law and Justice, Fall, 2007). Disponível em:
http://centers.law.nyu.edu/jeanmonnet/fellowsforum/forumtsakyrakis0708.html. ALEINIKOFF, Thomas
Alexander. Constitutional Law in the Age of Balancing, Yale Law Journal, v.96, 1987, p.943-1005;
SANDULLI, Aldo. Eccesso di potere e controllo di proporzionalità. Profili comparati. Rivista
trimmestrale di diritto pubblico, n.2, p. 329-370,1992; NOVAIS, As restrições....
276
direitos fundamentais, seja por colisão de direitos entre si, seja por colisão de direitos e
finalidades públicas constitucionalmente legítimas556.
A ponderação é regida por três leis: (a) a lei de colisão: “Las condiciones bajo
las cuales un principio precede a otro constituen el supuesto de hecho de una regla que
556
No Capítulo 2, mencionou-se que a proposta alexyana é objeto de importantes críticas, muitas
endereçadas à proporcionalidade. Delas, destacam-se: (a) a diminuição do espaço dos fóruns majoritários
de tomada de decisão, especialmente do legislativo, afetando negativamente o princípio democrático; (b)
o intuicionismo moral ensejado pela ponderação; (c) a ausência de racionalidade no método; (d) a
fragilização dos Direitos Fundamentais, que passariam a competir com metas coletivas, havendo quebra
da barreira corta-fogos que eles deveriam representar; (e) o caráter exclusivamente formal do método; (f)
a excessiva margem de atuação do Poder Judiciário. Apesar das críticas, há que se ter em conta que o
método é muito utilizado no Brasil e alhures, em Cortes estrangeiras e internacionais, obtendo um espaço
quase hegemônico. É este o móbile que leva a trabalhar a metodologia no inventário das teses de
justificação. É importante trazer à tona, também, que alguns elementos objeto de crítica não fazem parte
de sua concepção teórica, mas são produto de empregos exagerados, acriteriosos e, até mesmo, de
banalização e mau uso do postulado. Sobre as críticas: CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição
constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de.
Moralidade..., p.185-224. Sobre o uso excessivo, ver principalmente: SARMENTO, Daniel. Ubiquidade
Constitucional: os dois lados da moeda. Mímeo. Texto posteriormente publicado na Revista de Direito
do Estado, n.2.
277
expresa las consecuencia juridica del principio precedente”; (b) as duas leis da
ponderação: (b.1.) primeira lei da ponderação (substantiva): “Cuanto mayor es el grado
de la no satisfación o de afectación de uno de los princípios, tanto mayor debe ser la
importancia de la satisfación del otro”; (b.2.) segunda lei da ponderação (epistêmica):
“the more heavily an interference with a constitutional right weights, the greater must
be the certainty of its underlying premisses”557.
[…] exige que toda a restrição aos direitos fundamentais seja idônea
para o atendimento de um fim constitucionalmente legítimo. É
imperioso, assim, que a restrição ao direito atenda a dois requisitos:
em primeiro lugar, que vise a atingir um fim constitucionalmente
legítimo; e, em segundo lugar, que consubstancie um meio
instrumentalmente adequado à obtenção desse fim558.
557
Cf. ALEXY, Teoria de los..., p.94 e 161. ALEXY, On balancing…, p.433-449. ALEXY, Robert.
Constitutional rights, balancing and rationality. Ratio Juris, v.16, n.2, p.131-140, June 2003; ALEXY,
Robert. Epílogo a la teoria de los derechos fundamentales. Revista Española de Derechos
Fundamentales, Madrid, n.66, p.13-64, 2002.
558
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.324-325. A autora sumaria o pensamento de vários
estudiosos sobre a extensão do exame, tanto da legitimidade constitucional dos fins quanto da adequação
qualitativa e quantitativa do meio para angariar o fim a que se propõe. Ela afirma que a maior parte da
doutrina adere a uma concepção negativa da legitimidade dos fins (i.e, confere aos poderes públicos,
muito especialmente ao legislador, uma margem de conformação dentro do constitucionalmente não
vedado, ao invés de dentro do constitucionalmente exigido ou determinado) e a uma concepção débil do
exame do meio. A discussão é muito relevante, pois há momentos em que um fim é constitucionalmente
possível, como a proteção dos idosos ou a promoção da dignidade humana, mas é de se indagar se não se
trata de uma proteção paternalista injustificada ou de uma versão inadmissível da dignidade humana.
278
Feita a análise da adequação, passa-se à necessidade, que
Nesta tese, adota-se a versão débil da adequação, mas, como fazem alguns autores, externa e
paralelamente à proporcionalidade, avaliam-se alguns elementos substantivos. Ou seja, à
proporcionalidade reserva-se um papel mais formal, costeada por questões substantivas. Para uma
explanação do debate, com excelente coleta bibliográfica, ver: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit.,
p.324-336 e, também, ÁVILA, Teoria dos princípios....
559
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op.cit., p.337.
560
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op.cit., p.346.
561
Conforme Alexy: “If one considers the possible permutations in the triadic model, there are three
circumstances in which the interference with Pi is more intensive than that with Pj: (1) Ii: s, Ij: l; (2) Ii: s,
Ij: m; (3) Ii: m, Ij: l. In these cases Pi precedes Pj. These three cases of the precedence of Pi are matched
279
No Capítulo 2 (item 2.2.2), foram trabalhados os exemplos AB e CD, acerca da
proibição do homicídio consentido, ou seja, do estabelecimento geral da
indisponibilidade do direito à vida, mediante enunciado normativo criminalizador do
homicídio. Empregando a ponderação e a proporcionalidade aos casos, em AB seria
preciso verificar a existência de uma colisão entre princípios, para então estabelecer a
precedência condicionada. O que primeiro deve ser verificado é se há dois ou mais
princípios em rota de colisão horizontal (P1, P2, Pn...). No caso, pode-se perceber a
colisão entre posições subjetivas do direito geral de liberdade (P1) e os princípios que se
tenta promover com a proibição do homicídio consentido, como o direito subjetivo à
vida e, também, a dimensão objetiva do mesmo direito (P2 e P3). A partir da
identificação do cerceamento de P1 em função da promoção de P2 e P3, analisa-se o
cumprimento das exigências da adequação e da necessidade. Nitidamente, a
criminalização do homicídio consentido atende a princípios e a metas
constitucionalmente legítimas, inclusive ordenadas, como a preservação e a promoção
do direito à vida (P2 e P3), existindo nexo de causalidade entre a proibição e a
tipificação do ato de matar e a promoção dos princípios (P2 e P3)562. O meio também se
mostra necessário, pois de um lado está o delicado direito à vida, a exigir zelo intenso,
que é atendido pela proibição do ato de matar e de consentir em ser morto por motivos
banais, ou seja, pela ablação de posições subjetivas do direito geral de liberdade (P1). A
proporcionalidade em sentido estrito leva a considerar intensa a promoção de P2 e P3 e
leve ou, quando muito, moderada a ablação em P1. Há que se ter em mente que o peso
abstrato do direito à vida é mais elevado, isto é, ab initio pesa mais na escala e por isso
exige que os princípios que com ele concorrem horizontalmente assumam,
by three cases of the precedence of Pj: (4) Ii: l, Ij: s (5) Ii: m, Ij: s (6) Ii: l, Ij: m. In addition to these six
cases, which can be decided on the base of the triadic scale, there are three stalemate situations: (7) Ii: l,
Ij: l; (8) Ii: m, Ij: m; (9) Ii: s, Ij: s. In case of a stalemate balancing does not determine a result. This is a
case of discretion in balancing that is of the greatest importance for the delimitation of the competences
of that part of the judiciary that executes constitutional review on the one hand, and those of the
legislator on the other hand. But this cannot be discussed here”. A fórmula completa do peso leva em
consideração o peso abstrato de cada princípio (W), a intervenção (I) e seus graus (na promoção de um
princípio e na ablação do outro), e a intensidade epistêmica (R): Wi,j = Wi.Ii.Ri/Wj.Ij.Rj. Se o peso
abstrato for o mesmo, não é necessário utilizá-lo, simplicando-se a fórmula para: Wi,j =.Ii.Ri/Ij.Rj. Caso a
margem epistêmica também seja a mesma, a fórmula mais simples, e mais empregada, será: Wi,j = Ii /Ij.
Com tais fórmulas, obtém-se o peso definitivo e concreto (C). ALEXY, On balancing..., p.443-447. Para
maiores explanações e leitura crítica, em vernáculo, voltada ao direito brasileiro e com apoio na melhor
literatura, ver: OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. Moralidade..., p.197 e ss.
562
A análise aqui feita é meramente exemplificativa e bastante simplificada. No próximo Capítulo será
elaborada a proporcionalidade a respeito da indisponibilidade de posições subjetivas do direito à vida na
terminalidade da vida.
280
efetivamente, um alto peso concreto. Assim, a medida mostra-se constitucional e há
uma restrição de posições subjetivas de direito fundamental563.
563
Alexy expressamente assume que o direito subjetivo à vida possui um peso abstrato (W) mais
elevado. ALEXY, On balancing…, passim. ALEXY, Constitutional rights…, passim.
564
O raciocínio é inspirado em Terrance McConnell. McCONNELL, Op. cit.
281
qualidade do consentimento, tampouco à segurança das gestantes. No fundo, tentavam
dissuadir e dificultar a decisão pelo abortamento. Aplicando o devido processo legal
substantivo, a Suprema Corte dos EUA considerou que tais requisitos eram violações às
posições subjetivas de direitos fundamentais das gestantes, declarando-os
inconstitucionais, principalmente por não haver nexo de causalidade entre o meio
empregado e o fim perseguido565. Nota-se que não havia proibição direta, mas um
engendramento de condições que dificultava excessivamente o exercício de posições
subjetivas de direitos fundamentais reputadas constitucionalmente protegidas naquele
país, violando-as566.
565
Ver supra, item 3.2.2.2. Consultar: USA, Akron v. Akron Center for Reproductive Health, Op.cit.;
USA.Thornburgh v. American College of Obstetricians and Gynecologists Op.cit., e MARTEL,
Devido processo legal ..., p.265 e ss.
566
Esclarece-se que, como outros atos cirúrgicos, o abortamento envolve disposição de posições
subjetivas de direito fundamental por parte da gestante. Todavia, nesta tese, não se discute se há direitos
do embrião ou feto envolvidos. Para aqueles que entendem que há direitos do embrião e do feto, quanto a
eles o abortamento é uma ablação heterônoma, que não afeta a existência de uma disposição por parte da
gestante quanto ao ato cirúrgico, cuja justificação está, exatamente, em seu consentimento.
567
O modelo material-procedimental de Constituição leva em consideração tanto os princípios
substantivos quanto os formais, como a tripartição de poderes e o princípio democrático. Os outros dois
modelos são: (a) Modelo puramente material: acepção na qual se compreende que a atividade dos poderes
constituídos consiste estritamente em dar vazão ao que está ordenado no texto constitucional e atender às
suas proibições. A margem de atuação do legislador é muito reduzida, pois se compreende que a
Constituição carrega em si respostas e projetos que precisam ser executados. Uma crítica ao modelo o
esclarece: a Constituição seria um “ovo jurídico originário”. (b) Modelo puramente procedimental: a
282
A margem de ação epistêmica ou cognitiva é um limite importantíssimo ao
controle jurisdicional das medidas ablativas de posições subjetivas de direito
fundamental. A margem de ação epistêmica será empírica ou normativa. Empírica, se
versar sobre fatos que não foram comprovados nem testados, sobre os quais pairam
dúvidas razoáveis acerca da eficácia dos meios, da própria existência de um fenômeno,
ou de comparação entre abordagens diversas. Em suma, não há dados comprováveis
suficientes para orientar a decisão mais acertada. Normativa, se versar sobre pontos
morais altamente controversos, sobre os quais não há margem de consenso moral
razoável, não há diretriz constitucional determinante, tampouco existe possibilidade
(pelo menos em época determinada) de comprovação do tipo empírico. Como exemplo,
Alexy menciona o caso Cannabis, no qual foi mantida a proibição do uso recreativo da
maconha, pois a Corte entendeu serem insuficientes os dados sobre as consequências da
permissão da maconha quanto à proteção da saúde pública568. No Brasil, recentemente o
STF enfrentou a constitucionalidade de um artigo da Lei de Biossegurança, versando
sobre as células-tronco embrionárias e seu emprego em pesquisas científicas. À luz da
teoria alexyana, o julgado recairia na margem de atuação epistêmica, tanto empírica
quanto normativa, pois havia dois elementos de incerteza: (a) a incerteza empírica sobre
tais células, ou seja, sobre quando, científica e biologicamente, a vida humana tem seu
início; (b) a forte incerteza sobre o status moral e jurídico de células embrionárias não-
implantadas569. As margens estrutural e cognitiva conferem os limites à atuação
jurisdicional na ponderação.
margem de atuação do legislador é deveras ampla, pois a Constituição conteria poucas proibições
substantivas. A preocupação estaria direcionada aos vieses procedimentais de tomada de decisão e aos
elementos substantivos que a ele se conectam diretamente. ALEXY, Epílogo..., p.13-64.
568
ALEXY, On balancing…, p.447-448.
569
A linha decisória do STF não foi esta, mas o resultado – a manutenção do enunciado normativo –
coaduna-se com a metodologia das margens de atuação epistêmica. Sobre o tema: BRASIL. ADI
nº3.510/DF. Rel. Min. Carlos Ayres de Britto. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal
/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2299631; BARROSO, A defesa da
constitucionalidade...; OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. “Direito como integridade” e “ativismo judicial”:
algumas considerações a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. In: MARTEL, Letícia de
Campos Velho. Estudos contemporâneos de direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
p.237-266.
283
prevendo expressamente a autolimitação. Recorde-se o julgado do STF acerca da Lei de
arbitragem. A dicção do enunciado normativo e sua história assumiram papéis
importantes no deslinde da questão constitucional. Em muitos países, é acirrada a
discussão sobre o comércio de órgãos e de tecidos humanos. No Brasil, há vedação
constitucional expressa a respeito, de modo que sequer é ventilada a aplicação de
postulados normativos aplicativos em eventuais proibições (ou permissões)
infraconstitucionais570.
570
Supra, item 2.1.2 e 3.4.6.
284
Nesta variável, o princípio da proporcionalidade supõe também
interpretar os direitos fundamentais de proteção como princípios e
aceitar que deles se deriva a pretensão prima facie de que o legislador
os garanta na maior medida possível, tendo em vista as possibilidades
jurídicas e fáticas. Isso quer dizer que esses direitos impõem prima
facie ao legislador o desenvolvimento de todas as ações (não
redundantes) que favoreçam a proteção de seu objeto normativo, e que
não impliquem a vulneração [Esta vulneração se produz quando as
medidas de proteção representam intervenções desproporcionais nos
princípios que atuam em sentido contrário] de outros direitos e
princípios que atuem em sentido contrário. O caráter prima facie
destes direitos implica que as intervenções do legislador de que sejam
objeto somente possam ser constitucionalmente admissíveis e válidas
de maneira definitiva se observarem as exigências do princípio da
proporcionalidade571.
Assim como na proporcionalidade pela intrusão indevida em posições subjetivas
de direitos fundamentais, a proibição da proteção deficiente também se processa em três
etapas, no exame da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido
estrito572. Considera-se de relevo destacar que a proibição da proteção deficiente não
significa que ao Estado esteja ordenado criminalizar condutas, em uma linha penal
maximalista, típica dos movimentos de lei e ordem. Em primeiro lugar, porque há
outros mecanismos de proteção e promoção tão ou mais eficazes do que o direito penal.
Em segundo lugar, porque a tipificação de condutas atende ao princípio da legalidade
estrita, indicando uma ampla margem de atuação do legislador para definir se a
criminalização é o instrumento mais acertado. Em terceiro lugar, porque, apesar de o
direito penal apresentar-se, em seu discurso simbólico, como um instrumento de
proteção dos direitos fundamentais, ele é usualmente bastante agressivo a outras
posições subjetivas de direitos fundamentais, o que recomenda seu emprego
parcimonioso. Em quarto lugar, porque o direito penal é, no sistema brasileiro,
reconhecidamente a ultima ratio573.
571
PULIDO, Carlos Bernal. O princípio da proporcionalidade da legislação penal. In: SOUZA NETO,
Cláudio Pereira de. SARMENTO, Daniel (Coords.). A constitucionalização do direito: fundamentos
teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007, p.826-827. Consultar também:
SARLET, Ingo. Direitos Fundamentais e Proporcionalidade: notas a respeito dos limites e possibilidades
da aplicação das categorias da proibição de excesso e de insuficiência em matéria criminal. Revista da
Ajuris, v. 109, p. 139-162, 2008. SARLET, Ingo. Direitos Fundamentais e Direito Penal: breves notas a
respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição de excesso e de insuficiência
em matéria criminal – necessária e permanente busca da superação dos 'fundamentalismos'
hermenêuticos. Revista da ESMESC, v. 15, p. 37-74, 2009.
572
A respeito, ver: PULIDO, O princípio da..., p.827-828.
573
São as seguintes as linhas de política criminal: (a) Movimento de Lei e Ordem: Identificado com os
movimentos Law and Order estadunidenses, propõe como resposta ao problema criminal o aumento e o
enrijecimento das penas privativas de liberdade, resultando na maximização do Sistema Penal. Para tanto,
é favorável às medidas de limitação e flexibilização dos direitos fundamentais das pessoas acusadas e
condenadas criminalmente; incremento da inflação legislativa penal; legalização da pena de morte e de
285
Na Colômbia, há um caso paradigmático a respeito, versando sobre a eutanásia.
Um cidadão colombiano ajuizou uma ação visando à declaração abstrata de
inconstitucionalidade do enunciado normativo penal que criminalizava o homicídio
piedoso. Seu objetivo não era o de permitir o homicídio piedoso; ao contrário, ele
sustentava que o abrandamento da pena nesses casos não estava em conformidade com
a Constituição colombiana. No seu rumo de raciocínio, o homicídio piedoso constituiria
um ataque ao direito à vida com efeitos idênticos aos do homicídio simples. Desse
modo, o abrandamento da pena não seria justificável. Em seu entender, o Estado
colombiano despendia proteção deficiente ao direito à vida ao tratar com menos rigor o
homicídio piedoso, conceito que pode abarcar o homicídio consentido ou a pedido
(disposição de posições subjetivas do direito à vida)574. Se a situação não fosse tão séria,
dir-se-ia que, por ironia, o resultado obtido pela Corte Constitucional colombiana foi
exatamente o oposto, uma desproporção por violação de posições subjetivas de direitos
prisão perpétua. Uma das características principais desse movimento é a demonização do criminoso, visto
como um inimigo da sociedade, que deve ser aniquilado ou neutralizado. (b) Minimalismo Penal ou
Direito Penal Mínimo: O Direito Penal Mínimo parte da constatação dos efeitos custosos e prejudiciais
do Sistema Penal e da ineficiência das penas privativas de liberdade para cumprir suas funções
declaradas. Por isso, este movimento pretende a minimização do alcance desse Sistema, a partir de uma
ampla descriminalização das condutas atualmente puníveis, permanecendo como crime apenas as
condutas altamente lesivas a bens jurídicos fundamentais. Além dessa medida, o Minimalismo prevê a
maximização dos direitos humanos e fundamentais das pessoas acusadas e condenadas, o que serve como
limite ao poder de persecução penal do Estado. (c) Abolicionismo Penal: É um movimento alternativo de
política criminal, de viés crítico, que apresenta as disfunções e irracionalidades do Sistema Penal,
apontando sua ilegitimidade. Propõe a abolição do Sistema e a adoção de outros modelos para
compreender o conflito criminal e para construir respostas mais participativas e comunitárias para esse
conflito, com a colaboração da vítima e do transgressor. Entre as medidas de caráter abolicionista, cita-se:
compensação financeira para a vítima, de caráter indenizatório ou compensatório, seja por parte do
transgressor ou do Estado; a mediação; a conciliação; a arbitragem; a terapia; a educação; a aplicação de
medidas de outros ramos jurídicos, como o administrativo ou o cível. O movimento abolicionista não
compactua com a criação de penas alternativas ou substitutos penais, porque acredita que estes reforçam e
procuram legitimar a estrutura violenta do Sistema Penal. PULIDO, O princípio da..., p.827-829.
FELDENS, Luciano. A conformação constitucional do direito penal: realidades e perspectivas. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. SARMENTO, Daniel (Coords.). A constitucionalização do direito.
Fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007. p.831-855.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à
violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. BARATTA, Alessandro.
Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3.ed.
Tradução e prefácio Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia,
2002.
574
O enunciado do Código Penal possuía a seguinte redação: “Homicídio por piedad. El que matare a
otro por piedad, para poner fin a intensos sufrimientos provenientes de lesión corporal o enfermedad
grave o incurable, incurrirá en prisión de seis meses a tres años.” Cf. COLOMBIA, Sentencia C-239/97,
Op. cit. No Brasil, o Código Penal não prevê especificamente a figura do homicídio piedoso, mas a
doutrina entende que o ato de matar alguém que está em intenso sofrimento, ainda que exclusivamente
por piedade, conforma-se com homicídio privilegiado, ou seja, encaixa-se em um caso especial de
diminuição de pena: “Art 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. Caso de diminuição
de pena. § 1o Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob
o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a
pena de um sexto a um terço”. BRASIL, Código Penal, Op. cit.
286
fundamentais pela criminalização da eutanásia. Ou seja, a Corte descartou os
argumentos do peticionário, com fulcro em princípios constitucionais e em teorias da
pena e do delito, lançando mão da proporcionalidade. A maioria, contudo, foi mais
além. Operou uma interpretação conforme a Constituição, impedindo a aplicação do
enunciado normativo em casos de eutanásia voluntária (ativa e devidamente
consentida), em pacientes terminais capazes, realizada por médico. A descriminalização
da eutanásia deu-se, pois, por decisão judicial, que considerou excessiva a ablação de
posições subjetivas de direitos fundamentais por medidas proibidoras da disposição de
posições subjetivas do direito à vida por indivíduos em situação irrecuperável,
irreversível, em sofrida terminalidade da vida575.
575
A decisão será objeto de exame no Capítulo 4.
576
COLOMBIA, Sentencia C-239/97, Op. cit.
577
CANADÁ, Rodriguez v. British Columbia (Attorney General), Op.cit.
578
O não-reconhecimento da competência trazia consigo dúvidas sobre a qualidade criminosa da cirurgia,
já que, em não havendo instrumento jurídico seguro a garantir as partes, especialmente os profissionais da
287
reconhece-se a competência para a disposição, com critérios prévios e bem delineados a
respeito579.
saúde, corriam eles o risco não só da anulação do ato, mas de recair em comportamento civil e
criminalmente ilícito. A respeito, ver o relato de Pierangeli sobre a condenação pelo juízo singular, e
posterior absolvição por maioria, de um médico que realizou a cirurgia, com consentimento do paciente,
no início da década de 1970. Na mesma década, a cirurgia foi considerada mutiladora pelos profissionais
ligados à medicina forense. Apenas em 1997 o CFM reconheceu a cirurgia como pesquisa e estabeleceu
seus requisitos e critérios. PIERANGELI, Op. cit., p.255-260. BRASIL, CFM, Resolução nº1.482/1997,
Op.cit. Em 2002, a cirurgia passou ao plano da assistência em saúde, deixando de ser considerada
pesquisa. BRASIL, CFM, Resolução nº1.652/2002, Op. cit.
579
Além da Resolução do CFM na matéria, há decisões judiciais favoráveis. Já se reconheceu, inclusive,
o direito a realizar a cirurgia pelo SUS. BRASIL. TRF4. Apelação Cível nº2001.71.00.026279-9/RS.
Rel. Juiz Federal Roger Raupp Rios. Terceira Turma. DE de 22/08/2007.
580
A opção não exclui de plano o emprego do método dworkiniano. Como esclarecimento, ver:
MARTEL, São os direitos como trunfos..., passim.
288
3.5 O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e disposição: o
limite dos limites?
Outra tese de aplicação sugerida para o exame da disposição de posições
subjetivas de direito fundamental é a atenção ao conteúdo essencial dos direitos
fundamentais581. A orientação seria a de que o conteúdo essencial dos direitos
fundamentais é o limite último e intransponível à disposição, de sorte que é dever ou
ação ordenada do Estado impedir atos de disposição que afetem o conteúdo essencial
dos direitos fundamentais. Desde já salienta-se que a proibição de afetação do conteúdo
essencial dos direitos fundamentais não é a única barreira, mas a derradeira. Portanto, é
perfeitamente admissível a proibição de disposições que não afetem o conteúdo
essencial, desde que se mostrem condizentes ao postulado da proporcionalidade582.
581
SARMENTO, A vinculação dos particulares..., Op. cit.
582
É muito importante manter a clareza nesta questão. Reis Novais explicita bem o tópico, pois, se o
conteúdo essencial for confundido com a única proibição de interferência, ele acaba por diminuir a
proteção aos direitos fundamentais, uma vez que tudo o que não compuser o conteúdo essencial será
restringível (ou autolimitável): “Nas decisões de não-provimento de inconstitucionalidade, o Tribunal
Constitucional faz ou uma utilização retórica da garantia do conteúdo essencial (mesmo que se tratasse de
limitação não constitucionalmente consentida não haveria inconstitucionalidade porque não há violação
do conteúdo essencial) ou, e já com consequências nefastas, uma utilização marcadamente relativizadora
da garantia proporcionada pela norma de direito fundamental (como não afectou o conteúdo essencial,
não há verdadeira restrição ou, a existir, ela não será inconstitucional, como se só esse núcleo
beneficiasse da proteção reforçada que, todavia, é conferida a todo o âmbito de protecção do direito
fundamental através do valor formalmente constitucional da norma que o garante), ao mesmo tempo que
se sugere uma adesão indiferenciada à teoria absoluta ou à relativa.”. NOVAIS, As restrições..., p.796-
797.
583
Na Constituição alemã: “Artículo 19. [Restricción de los derechos fundamentales]. (1) Cuando de
acuerdo con la presente Ley Fundamental un derecho fundamental pueda ser restringido por ley o en
virtud de una ley, ésta deberá tener carácter general y no estar limitada al caso individual. Además, la
ley deberá mencionar el derecho fundamental indicando el artículo correspondiente. (2) En ningún caso
un derecho fundamental podrá ser afectado en su contenido esencial. (3) Los derechos fundamentales
rigen también para las personas jurídicas con sede en el país, en tanto por su propia naturaleza sean
aplicables a las mismas. (4) Toda persona cuyos derechos sean vulnerados por el poder público, podrá
recurrir a la vía judicial. Si no hubiese otra jurisdicción competente para conocer el recurso, la vía será
la de los tribunales ordinarios. No queda afectado el artículo 10, apartado 2, segunda frase”. Na
portuguesa, “Artigo 18.º Força jurídica. 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos,
liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2. A lei só
pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição,
devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir
carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do
conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”. Na espanhola: “Artículo 53. 1. Los derechos y
libertades reconocidos en el Capítulo segundo del presente Título vinculan a todos los poderes públicos.
Sólo por ley, que en todo caso deberá respetar su contenido esencial, podrá regularse el ejercicio de
289
doutrinadores brasileiros adotam o conteúdo essencial como o limite dos limites às
interferências com os direitos fundamentais e há algumas manifestações
584
jurisprudenciais a respeito . Apesar da adoção da ideia “pelas jurisprudências
constitucionais nas mais diferentes latitudes”585, existe muita controvérsia sobre seu
significado, alcance e até mesmo utilidade. Nas palavras de Novais:
tales derechos y libertades, que se tutelarán de acuerdo con lo previsto en el artículo 161.1 a”.
PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. Disponível em:
http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx. ALEMANHA, Lei
Fundamental..., Op. cit. Para comentários sobre as diferenças textuais e interpretativas entre a versão
portuguesa e a espanhola, ver NOVAIS, As restrições..., p.790, nota nº1437.
584
No tema: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.366 e ss. SILVA, Virgílio Afonso da, O
conteúdo..., p.241 e ss. Os autores referem julgados nacionais no assunto.
585
NOVAIS, As restrições..., p.782.
586
A tese do conteúdo essencial relaciona-se mais facilmente à teoria externa dos direitos fundamentais.
Como exposto, é a teoria externa que se está a empregar na tese. Cf. ALEXY, Teoria de los..., p.287 e
SS; NOVAIS, As restrições..., p.782; ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.303 e ss;
290
Porém, são diversos os problemas trazidos pela tese do conteúdo essencial. Entre
eles, destacam-se: (a) a dificuldade em determinar o que, exatamente, ele protege, em
dois sentidos: (a.1) definir se ele se reporta à dimensão subjetiva ou se à dimensão
objetiva dos direitos fundamentais; (a.2) definir qual é o conteúdo que efetivamente o
compõe e quais os critérios empregados para tanto; (b) a dificuldade de lançar a tese em
prática, uma vez que a dinâmica dos direitos fundamentais deixa perceber, sob certas
circunstâncias, diversas interferências na inteireza de alguns direitos fundamentais587.
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.366 e ss; SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.241 e
ss.
587
Para aprofundamento: ALEXY, Teoria de los..., p.287 e ss; NOVAIS, As restrições..., p.782;
ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.303 e ss; PEREIRA Jane Reis Gonçalves, Op.cit., p.366 e ss,
SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.241 e ss.
588
Escreveu Jane Reis: “De tais divergências resultaram, fundamentalmente, quatro formulações teóricas
principais, denominadas teoria objetiva, teoria subjetiva, teoria absoluta e teoria relativa. Tais teorias
são também objeto de distintas combinações entre si, das quais resultam as variantes mistas”. PEREIRA,
Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.368. Ver também: SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.241 e
ss. NOVAIS, As restrições..., p.782 e ss.
589
SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.243.
590
SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.244.
291
entende que essa proteção já está incluída, na Constituição brasileira, na proteção
expressa dos direitos e garantias individuais contra propostas de Emendas tendentes a
aboli-los, ou seja, as cláusulas pétreas591.
591
SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.244. Paulo Ricardo Schier defende a proposta de a
proteção ao conteúdo essencial encontrar seu fundamento na sistemática das cláusulas pétreas, aderindo a
uma postura objetiva. Jane Reis é contundente na exposição das críticas à teoria objetiva, pois a tese
retiraria do conteúdo essencial sua utilidade, “porquanto impede que esta opere como garantia da
finalidade basilar dos direitos fundamentais, que é precisamente proteger as pessoas especificamente
consideradas”. SCHIER, Paulo Ricardo. Fundamentação da preservação do núcleo essencial na
Constituição de 1988. CONPEDI, 2007. Belo Horizonte. Anais do CONPEDI, p.7077-7090. Disponível
em: http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/bh/paulo_ricardo_schier.pdf. PEREIRA, Jane Reis
Gonçalves, Op. cit., p.369.
592
SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.245. Dos diversos autores consultados sobre a proposta
de conteúdo essencial, não restou de todo claro, ao combinar a posição teórica aos exemplos oferecidos,
se a tese subjetiva refere-se à proteção de um núcleo de todo o feixe de posições subjetivas de um direito
fundamental, ou se a cada uma das posições analisadas individualmente atribuir-se-ia um conteúdo
essencial. Pensa-se, então, que a lógica está em lidar com as posições individualmente consideradas, tal
qual foi proposto para o exame da modalidade de disposição (item 3.1), pois, a se considerar todo o feixe
de posições subjetivas, a garantia do conteúdo essencial perde muito de substância, tornando-se aplicável
somente a algumas ablações mais seletas e mais drásticas.
593
ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.304.
292
fundamental, ou seja, adota-se uma “perspectiva ontológico-substancialista”594. Virgílio
Afonso da Silva aponta que as teses absolutas podem ser (a) estática ou (b) dinâmica.
Será estática quando conceber “o conteúdo essencial dos direitos fundamentais não
apenas como absolutos em sentido espacial, mas também como absoluto em sentido
material-temporal […], ou seja, não é somente intangível […] mas também
imutável”595. Será dinâmica quando o conteúdo essencial for concebido como
modificável “com a passagem do tempo”596. Entre os que aderem à tese absoluta, são
diversos os critérios adotados e os conteúdos dados ao conteúdo essencial, e haverá
também variações conforme seja ela aliada à tese subjetiva ou à objetiva. É daí que
surgem as críticas às teses absolutas: afinal, como se determina o conteúdo absoluto de
cada direito fundamental? E persiste ainda o forte argumento dos relativistas, qual seja,
como explicar que, em algumas condições, nada ou muito pouco restará de um direito
fundamental quando a ele forem apostas restrições597.
594
NOVAIS, As restrições..., p.782.
595
SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.248.
596
SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.248.
597
Alguns autores encontram o conteúdo essencial na dignidade humana; outros defendem que cada
direito deve ser analisado individualmente e, dessa forma, apresentará notas distintivas essenciais que
constituirão seu conteúdo essencial. Para exemplos, ver: NOVAIS, As restrições..., p.789 e SILVA,
Virgílio Afonso da. O conteúdo..., p.249-259. José Carlos Vieira de Andrade, por sua vez, assume uma
posição mista (absoluta-objetiva), que entende estar o conteúdo essencial na dignidade humana.
ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.307.
293
que, se o prognóstico for a morte do paciente, o exercício de posições subjetivas da
liberdade religiosa conduzirá a um enfraquecimento muito intenso do direito à vida,
pois o perecimento do bem protegido reflete-se em todo o feixe de posições subjetivas
do direito à vida, de modo a também atingir-lhe o conteúdo essencial. Nítido é que a
tese absoluta-subjetiva pouco auxilia no deslinde do caso, pois qualquer que seja o
posicionamento estatal, deixará de proteger o conteúdo essencial de um ou de alguns
direitos (por excesso ou deficiência)598. Tendo em conta teses objetivas, nem a
permissão, nem a proibição parecem revelar um esvaziamento dos direitos em causa
para o sistema como um todo.
598
Poder-se-ia argumentar que a permissão seria o ideal, pois caberia ao indivíduo escolher pelo risco às
posições subjetivas do direito à vida. Mas se esse for o argumento, não está em questão o conteúdo
essencial (na versão absoluta e subjetiva) dos direitos fundamentais como limite dos limites à disposição.
599
SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.258.
600
SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.259 e ss.
294
proporcionalidade, o que tornaria o conteúdo essencial uma garantia vazia e
redundante601.
601
A respeito, ver: NOVAIS, As restrições..., p.782 e ss; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op. cit.,
p.373.
602
ÁVILA, Teoria dos princípios..., p.80; 120. Em artigo publicado sobre o tema da tese, adotei a linha
de pensamento de Humberto Ávila, pois à época entendi ser possível determinar de pronto se algumas
interferências são ou não excessivas, por atingirem a integralidade de posições subjetivas de direito
fundamental. Após o estudo da obra de Virgílio Afonso da Silva e releitura dos textos de Alexy, conclui
que o caminho percorrido é efetivamente inseguro, por serem abertos demais os critérios para determinar
o excesso, bem como por existirem contra-exemplos relevantes. MARTEL, Limitação....
603
Há também a possibilidade de inserir a proibição do excesso no exame da proporcionalidade, situação
em que o primeiro postulado parece diluir-se no segundo. A respeito, ver: NOVAIS, As restrições...,
p.781 e SILVA, Virgílio Afonso da, Conteúdo..., p.259 e ss.
604
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op. cit., p.373.
295
Alexy605. Esses autores aderem a uma concepção primariamente subjetiva,
complementada pela objetiva, e relativa, sendo o critério de definição do conteúdo
essencial a proporcionalidade. O conteúdo essencial guarda uma função no discurso
sobre as restrições de posições subjetivas de direitos fundamentais, qual seja, a de
rememorar ao intérprete a cautela e o rigor exigidos pelos direitos fundamentais,
especialmente quando as interferências são intensas. Em sendo assim, o conteúdo
essencial não se afigura como sendo uma barreira autônoma e externa à
proporcionalidade, mas atua discursivamente, reforçando a necessidade de suprir o ônus
argumentativo com mais intensidade quando as interferências com os direitos
fundamentais forem intensas.
605
As posições não são idênticas entre si, mas em substância. Assim, no que aqui se tem por relevante
para o tema da disposição, elas podem ser aglutinadas.
296
4 (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: O DIREITO À VIDA NO
CONTEXTO DA MORTE COM INTERVENÇÃO
“Os últimos dias606 de outros virem depois, de todos sermos irmãos,
no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime
Que a terra há de comer. cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.
Mas não coma já.
O tempo de despedir-me e contar
Ainda se mova,
Para o ofício e a posse. que não espero outra luz além daquela que nos
envolveu
E veja alguns sítios, dia após dia, noite em seguida a noite, fraco
Antigos, outros inéditos. pavio
pequena ampola fulgurante, facho lanterna,
Sinta frio, calor, cansaço, faísca,
Pare um momento: continue. estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o
Descubra em seu movimento tempo
Forças não sabidas, contatos. é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.
299
favor. Todavia, optou-se por trabalhar com o direito geral de liberdade, precipuamente
em função da necessidade de arcar com o ônus de argumentação. A opção revela uma
importante premissa operativa: a ideia de que as posições subjetivas de direito
fundamental são prima facie disponíveis.
300
à premissa operativa da disponibilidade prima facie das posições subjetivas de direitos
fundamentais, à negação do paternalismo e de seus institutos afins injustificados e à
prevalência da dignidade como autonomia, é a preocupação com a genuinidade do
consentimento, levada a cabo por engenhos jurídicos relativos à liberdade de escolha e à
escolha informada, cujos desenhos refletem a modalidade de disposição, os sujeitos da
relação de disposição, o ramo do direito e as posições subjetivas especificamente
consideradas. Ainda no terceiro Capítulo, adotou-se a ponderação e a proporcionalidade
(por excesso e por deficiência) como critérios que, conjugados aos demais, auxiliam na
aferição da proibição, permissão e da estipulação de requisitos à disposição. Foi aceita a
noção de conteúdo essencial dos direitos fundamentais, de modo bastante leve, como
um reforço argumentativo na ponderação.
Para cumprir a tarefa a que se propõe, o Capítulo inicia com um sucinto exame
do direito fundamental à vida, com especial enfoque para suas posições subjetivas. A
seguir, defender-se-á que há ordens de razões suficientes para que as posições subjetivas
do direito à vida sejam reputadas indisponíveis, sem que se recorra a argumentos
301
paternalistas fortes ou a seus institutos afins. Neste ponto, sustentar-se-á que a
dignidade como heteronomia ganha espaço quando se trata do direito à vida. Então, o
Capítulo terá, assumidamente, certa circularidade. Primeiro, a argumentação de que as
posições subjetivas do direito fundamental à vida são (normativamente) indisponíveis,
ou seja, que o consentimento genuíno do titular sozinho não é suficiente para
enfraquecer as posições perante terceiros e nem para gerar obrigações de mesmo
conteúdo para o titular. Cumprida esta tarefa, passar-se-á à análise de algumas
circunstâncias específicas, cognominadas morte com intervenção, para as quais se
questionam se as razões da indisponibilidade das posições subjetivas do direito à vida
seguem com a mesma intensidade.
302
análise e na uniformização da terminologia utilizada em relação à morte com
intervenção. Na seqüência, busca-se uma releitura dos enunciados normativos vigentes
sobre a limitação consentida de tratamento e os cuidados paliativos, seguidos pela
proposição de alguns pontos no tema.
O diálogo aqui travado não será bicolor, pois não visualiza a morte com
intervenção, especialmente a eutanásia e o suicídio assistido, como condutas que são ou
devem ser aprioristicamente proibidas ou permitidas. Ao contrário, o enfoque está no
longo e sofrido processo de morrer, potencializado pela medicalização da vida, e as
possibilidades que o ordenamento jurídico brasileiro pode oferecer para tornar o
processo moralmente mais humano. Faz-se mister referir que há uma clivagem quanto
às hipóteses. Analisa-se a morte com intervenção, com a atenção voltada tão-só aos
casos de pacientes terminais, portadores de doenças reputadas incuráveis segundo o
estado da arte em saúde e que causem sofrimentos psicofísicos intensos ou pacientes em
estado vegetativo persistente e a limitação consentida de tratamento e os cuidados
paliativos.
303
muitas mais607. Em virtude da sua época e modos de afirmação, o direito é exposto, pela
doutrina, como de primeira geração ou de primeira dimensão, ao lado das liberdades, da
segurança individual e da propriedade608. Nas décadas que se seguiram às chamadas
declarações e constituições burguesas, houve sérios trabalhos sobre o direito à vida,
especialmente, de início, acerca da pena de morte e da punição civil e criminal do
suicídio, na pessoa do suicida (se tentado) ou de seus familiares609.
607
The Virginia Declaration of Rights. 1776. The Virginia Declaration of Rights. 1776. Disponível em:
http://www.archives.gov/national-archives-experience/charters/virginia_declaration_of_rights.html USA.
The Bill of Rights. 1791. Disponível em: www.nara.gov COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação
histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, passim. SCHWARTZ, Bernard. Os
grandes direitos da humanidade: the Bill of Rights. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1979,
passim. Nem todos os estudiodos concordam com esta perspectiva. Para os que discordam, o direito à
vida ganhou alçada constitucional relevante apenas após a Segunda Guerra Mundial, muito em função da
permissão da pena de morte. Todavia, entende-se inegável que as primeiras declarações de direitos da
modernidade, cuja origem remota está na Magna Carta inglesa de 1215, já traziam o direito à vida, assim
como a teoria de base, os jusnaturalistas do século XVIII, valoravam-no e assumiam a sua importância,
daí a famosa tríade lockeana, vida, propriedade e liberdade. Nas Constituições brasileiras, as de 1824 e
de 1891 não enunciaram expressamente o direito à vida, embora a última tenha abolido a pena de morte
em tempos de paz. No mesmo sentido da Constituição de 1891, a de 1934. A Carta de 1937 também não
previu expressamente o direito e alargou hipóteses de instituição de pena de morte em tempos de paz
(art.122, 13). A Constituição de 1946 foi a primeira a positivar o direito à vida, no caput do art.141: “Art
141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos
direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes
[…]”, dicção que foi reproduzida na Carta de 1967 e se assemelha ao caput do art.5º da Constituição
vigente. Cf. CHUECA, Ricardo Rodríguez. El marco constitucional del final de la própria vida. Revista
Española de Derecho Constitucional, n.85, p.99-123, enero-abril 2009.. BRASIL. Constituição
Política do Império do Brasil (de 25 de março de 1824). BRASIL. Constituição da República dos
Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891). BRASIL. Constituição da República dos
Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do
Brasil (de 10 de novembro de 1937). BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de
setembro de 1946). BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (complementada com
Atos Institucionais e Emendas). BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (de 05 de
outubro de 1988). Os textos constitucionais, com exceção do de 1988, foram pesquisados em:
Constituições brasileiras. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de
Estudos Estratégicos, 2001 (Coleção, Constituições Brasileiras, vols. 1 a 7, incluindo 6a). PACHECO,
Cláudio. Tratado das Constituições brasileiras. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958-1965.
608
MARSHALL, T.H. Classe, cidadania e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. BOBBIO, Norberto. A
Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. SARLET, A eficácia..., p.38 e ss. Ao mencionar que o
direito é exposto como de primeira dimensão, não se afirma que seja exclusivamente um direito de defesa
ou negativo, tampouco adere-se à ideia de que os direitos de primeira dimensão são os que demandam
exclusivamente uma omissão estatal. A noção de primeira dimensão aqui expressa refere-se muito mais
ao momento de reconhecimento jurídico e às necessidades às quais tal reconhecimento pretendeu atender
inicialmente. Nesse sentido, tem-se em mente a releitura de HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R.
The Cost of Rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Nortton & Company, 2000, p.13-
48.
609
Sobre o tema: DOWBIGGIN, Ian Robert. A concise history of euthanasia: life, death, god and
medicine. Lanham: Rowman & Littlefield, 2005, p.30 e ss.
304
conceitos heterônomos de vidas indignas de serem vividas e a emergência dos
totalitarismos e das ditaduras610. A proteção e a valorização da vida humana tornaram-se
ainda mais proeminentes, levando o direito à vida (em sentido amplo) a assumir uma
relevância ímpar nas sociedades políticas ocidentais. Tanto é que se defende o princípio
jurídico-moral da sacralidade da vida, reputada um bem de valor intrínseco, ou seja,
ontologicamente valioso. A noção, por evidente, translada-se para o ambiente jurídico,
traduzindo-se na intensa proteção, defesa e promoção do direito à vida como um todo,
tanto em seus feixes de posições subjetivas, como em sua dimensão objetiva611.
Adiante, ao tratar da dignidade humana, no tema da morte com intervenção, sustentar-
se-á que uma das manifestações da dignidade como heteronomia é exatamente a
valorização da vida humana e do direito à vida como algo valioso em si mesmo.
Para além do valor intrínseco, o bem vida e o direito à vida como um todo
possuem um caráter instrumental sui generis. A própria titularidade dos direitos
fundamentais e também da dignidade humana depende do bem vida e do direito à vida.
Ao perecer ou não estar presente a vida, ausente estará a titularidade dos demais
direitos612. Nesse mesmo sentido, o enfraquecimento de posições subjetivas e também
610
Como exemplo, o Art. III da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito à
vida, à liberdade e à segurança pessoal”. E o art.6º do Pacto dos Direitos Civis e Políticos: “Art.6º. 1. O
direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deve ser protegido pela lei: ninguém pode ser
arbitrariamente privado da vida”. Anote-se que o Pacto repudia a pena de morte, sem proibi-la. ONU,
Declaração Universal dos Direitos Humanos, Op.cit. UN, Eveyone’s United Nations: a handbook on
the work of United Nations, Op. cit. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional
internacional. 7. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p.154 e ss; p.356-372.
611
Sobre o valor intrínseco da vida humana, mesmo a par da dificuldade em sustentar que algo possui
valor intrínseco nas sociedades atuais, DWORKIN, Ronald. O domínio..., p.95-140. Segundo Dworkin, a
sacralidade da vida manifesta-se em pelo menos dois prismas: (a) um bastante amplo, relativo à
experiência humana no planeta, ou seja, ao milagre da existência do ser humano (problema que envolve a
justiça entre gerações); (b) a vida humana individualizada e subjetivamente valorada por cada ser
humano (valor pessoal). Também mencionam a sacralidade da vida, de modo diverso de Dworkin e
referindo que o direito à vida é o mais fundamental dentre os fundamentais, BEYLEVELD;
BROWNSWORD, Consent..., p.285. Referências à sacralidade da vida podem ser encontradas nos casos
Bland, Diane Pretty, Sue Rodriguez e Glucksberg. Noutro enfoque, Hannah Arendt explicita a
importância que assumiu a vida humana no sentido que aqui se emprega o termo, resgatando as origens
deste pensar e fazendo uma leitura diferenciada: ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2004, p.326-333.
612
Traduzem esse pensar, no Brasil, a dicção dos enunciados constitucionais e também do Código Civil.
A Constituição da República assim se refere ao tratar dos titulares dos direitos fundamentais: “Art. 5º
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade […]”. É de lembrar que a Constituição, em seu art.12, considera brasileiros os
nascidos e fixa, por inferência, a necessidade de nascimento para a naturalização. O art.2º do Código
Civil reconhece que a personalidade civil inicia-se a partir do nascimento com vida, protegendo os
direitos do nascituro desde a concepção. O ponto sobre o início da vida humana, de sua proteção jurídica
e a titularidade de direitos antes do nascimento com vida é intrincado e dá azo a discussões extremamente
relevantes. Porém, como dito, o debate não entra em pauta em uma tese sobre disposição de posições
subjetivas do direito fundamental, pois, ainda que se reconheça que embriões – implantados ou não – ,
305
da dimensão objetiva do direito à vida ocasiona densos reflexos em todas as posições
subjetivas de direitos fundamentais, levando-as, não raras vezes, à extinção613.
conceptos e fetos sejam titulares de posições subjetivas do direito à vida na mesma medida em que são os
nascidos com vida, seguramente eles não se enquadram na categoria sujeitos do consentimento, por não
ostentarem as características da agência necessárias ao conceito. Em assim sendo, são inaptos para dispor.
Se reconhecida a titularidade de posições subjetivas do direito à vida aos referidos entes, eventuais
interferências serão heterônomas. BRASIL, Constituição da república Federativa do Brasil de 1988.
Op.cit.; BRASIL, Código Civil, Op.cit. Importante consultar também a já referida ADI sobre a
constitucionalidade do art.5º da Lei de Biossegurança e seus comentadores.
613
Também é o Código Civil que determina que cessa com a morte a existência da pessoa natural,
cessando, assim, a titularidade de direitos. Não cabe discutir nesta tese se os mortos seguem titulares de
direitos ou de dignidade, tampouco as razões pelas quais são instituídos enunciados normativos no tocante
aos já falecidos. BRASIL, Código Civil, Op.cit.
614
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.285. No caso Pretty, a CEDH foi muito clara sobre a
proeminência do direito à vida: “The Court's case-law accords pre-eminence to Article 2 as one of the
most fundamental provisions of the Convention (see McCann and Others v. the United Kingdom,
judgment of 27 September 1995, Series A no. 324, pp. 45-46, §§ 146-47). It safeguards the right to life,
without which enjoyment of any of the other rights and freedoms in the Convention is rendered nugatory.
It sets out the limited circumstances when deprivation of life may be justified and the Court has applied a
strict scrutiny when those exceptions have been relied on by the respondent States (ibid., p. 46, §§ 149-
50)”. Na doutrina brasileira, Uadi Lammêgo Bulos refere: “O direito à vida é o mais importante dos
direitos”. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 4ª ed. ref. atual. São Paulo: Saraiva,
2009, p.442. Também o Ministro Marco Aurélio, em voto proferido na década de 1990, acerca da
competência em atos considerados genocídio de populações indígenas: “Não há, no dispositivo, qualquer
restrição a estes últimos, a envolver, sem dúvida alguma, o bem maior, que é a própria vida”. BRASIL.
STF. RE no.179.485/AM. Segunda Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Mello. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=224535&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor
%20RE%20/%20179485.
306
restrições e que não há ponderação hábil a justificar interferências. Levada em
consideração ao ensejo da teoria interna dos direitos fundamentais, a afirmação guarda
sentido e razão de ser. Entretanto, ao adotar a teoria externa combinada ao suporte fático
amplo dos direitos fundamentais, a afirmação contradiz um ponto básico da teoria: os
direitos fundamentais, como princípios, são prima facie restringíveis. Teoricamente,
portanto, todos, ou pelo menos quase todos, os direitos fundamentais são restringíveis.
615
Nesse sentido, asseveram Mendes, Coelho e Branco: “Tornou-se voz corrente na nossa família do
Direito admitir que os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos.
Tornou-se pacífico que os direitos fundamentais podem sofrer limitações, quando enfrentam outros
valores de ordem constitucional, inclusive outros direitos fundamentais. Prieto Sanchis noticia que a
afirmação de que ‘não existem direitos ilimitados se converteu quase em uma cláusula de estilo na
jurisprudência de todos os tribunais competentes em matéria de direitos humanos”. MENDES, Gilmar
Ferreira et al. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo/Brasília: Saraiva/IDP, 2008, p.240. No
Supremo Tribunal Federal, a título exemplificativo: Na ementa de um Mandado de Segurança, decidido
pelo Tribunal Pleno no final da década de 1990, lê-se: “OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias
que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências
derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção,
por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que
respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades
públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as
informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger
a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois
nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos
direitos e garantias de terceiros”. BRASIL. STF. MS no.23.452/RJ. Rel. Min. Celso de Mello.
16/09/1999. Em decisão mais recente, as afirmações dos Ministros Peluso e Celso de Mello,
respectivamente: “Todos os direitos o são, essa é a verdade. Não há nenhum de caráter absoluto”. “É
certo que o direito de crítica não asssume caráter absoluto, eis que inexistem, em nosso sistema
constitucional, como reiteradamente proclamado por esta Suprema Corte (RTJ 173/805-810 807-808,
v.g), direitos e garantias revestidos de natureza absoluta”. BRASIL, STF, ADPF nº130-7/DF/MC,
Op.cit. Especificamente sobre não ser o direito à vida absoluto, ver: BRASIL, STJ. HC nº56.572/SP. Rel.
Min. Arnaldo Esteves de Lima. Quinta Turma. DJ 15/05/2006.
616
Porém, muitas referências soam como simples dicta, um reforço argumentativo que convive com
manifestações, dos mesmos Tribunais, Turmas e até julgadores, de que não há direitos absolutos.
Ilustrativamente: RIO GRANDE DO SUL. TJRS. ADI nº70010129690. Rel. Des. Araken de Assis.
18/04/2005. Disponível em: www.tj.rs.gov.br.; RIO GRANDE DO SUL. TJRS. AgI nº70000411686.
Primeira Câmara Cível. Rel. Fabianne Breton Baisch. Julgado em 07/08/2000; BRASIL. STJ. REsp. nº
937.310/SP. Rel. Min. Luiz Fux. Primeira Turma. Data do Julgamento 09/12/2008. DJe 19/02/2009.
307
em caso de guerra declarada617. E também em enunciados normativos
infraconstitucionais encontra-se a moderada admissão de intervenções com o direito à
vida, em suas posições subjetivas, dada a aceitação da legítima defesa e do estado de
necessidade. São exemplos de intervenções não expressamente autorizadas pela
Constituição, mas reputadas plausíveis e cuja constitucionalidade ou recepção não foi
alvo de contendas. Poder-se-ia objetar dizendo que tanto na legítima defesa quanto no
estado de necessidade estariam em causa posições subjetivas do direito à vida. Ora,
ainda que sejam as mesmas posições, do argumento não se deduz que o direito à vida
seja absoluto; ao contrário, ele demonstra que, em concorrendo as mesmas posições
subjetivas do direito à vida de diferentes titulares, o legislador ponderou e conferiu
maior peso a uma delas, tornando permissível a interferência com a outra. Acresça-se
que a legítima defesa e o estado de necessidade não se aplicam apenas aos casos em que
estão em liça posições subjetivas do direito à vida. Suponha-se que uma mulher, ao ser
estuprada e agredida, sem ser ameaçada de morte e sob a promessa de que não será
morta, reaja e acabe por matar o agressor. É perfeitamente possível que o ato de matar
tenha acontecido em legítima defesa (desde que presentes seus requisitos) e constitua
comportamento escusável. Aqui, tem-se uma ponderação legislativa e/ou judicial que
torna permissível uma agressão a posições subjetivas do direito à vida em nome de
posições subjetivas de outros direitos618.
617
É a interpretação combinada dos arts.5º, XLVII, a e 84, XIX, ambos da Constituição Federal.
BRASIL, Constituição da República..., Op.cit.
618
Sobre a questão, Reis Novais afirma: “Mesmo o direito à vida – tão frequente quanto inadequadamente
invocado como paradigma de valor constitucional supremo e, por isso, insusceptível de qualquer restrição
ou ponderação – não escapa a idênticas dificuldades inviabilizadoras de uma aplicação eventualmente
esquemática e independente das circunstâncias da sua concretização. Desde logo porque pode haver
colisão entre o mesmo direito à vida de diferentes titulares. Mas também porque o contexto em que o
conflito deva ser resolvido pode ser tão imprevisto quanto decisivamente marcado pelas aflorações
concretas dos direitos em questão”. Como faz o autor, cabe lembrar os polêmicos casos sobre a separação
cirúrgica de gêmeos coligados, quando há alto risco ou até certeza de que um deles irá perecer. Para um
debate sobre os casos, ver: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.298 e ss. e BEYLEVELD;
BROWNSWORD, Human Dignity…, p.254 e ss. E ainda o número especial da Medical Law Review
destinado unicamente ao assunto: MEDICAL LAW REVIEW, n.9, Autumm, 2001, p.201-298. Acerca
das discussões sobre o caráter absoluto do direito à vida, é importante consultar os experimentos mentais
de J.J. Thomson, um deles o já mencionado caso do paciente do quarto 306. THOMSON, The realm...,
p.135 e ss. e NOVAIS, As restrições..., p.715 e ss.
308
e de muita cautela quando se trata de discutir o enfraquecimento da sua força jurídica e
moral. Qualquer ablação, heterônoma ou autônoma, é delicada. Qualquer desprezo pela
vida humana e pelo direito que a protege, mesmo nas circunstâncias mais adversas, é
suspeito e, como será argumentado adiante, o direito liga-se peculiarmente à dignidade
humana. Mas isso não é sinônimo de entender que o direito à vida seja absoluto,
tampouco que não existam outros direitos que a ele se sobreponham sob certas
condicionantes, muito menos que a dignidade humana comporte exclusivamente a
proteção e a promoção do direito à vida. Retomando a integridade do sistema jurídico
brasileiro, percebem-se outros elementos que indicam que tais sustentações não são
compossíveis. Fosse absoluto o direito à vida, prevalecesse sempre, não haveria
justificação para a política brasileira de transplantes de órgãos, pois ela situa a escolha
do indivíduo e de sua família acima do direito à vida daqueles que carecem de órgãos619.
Fosse absoluto o direito à vida, seria ação estatal ordenada ordenar salvamentos,
mesmo em circunstâncias que demandassem heroísmo e comportamentos
superrogatórios da generalidade dos indivíduos, usualmente negados pelos e aos
sistemas jurídicos620.
Em segundo lugar, atente-se para a afirmação de que o direito à vida conta com
hierarquia normativa superior em relação aos demais enunciados normativos
constitucionais, quer de direitos fundamentais, quer de metas coletivas. Sugerir um
posto hierárquico cimeiro para o direito à vida é distinto de asseverar que ele conta com
um peso abstrato maior, ou com uma posição preferencial. Tanto a noção de um peso
abstrato maior quanto a doutrina da posição preferencial são ajustáveis à ponderação e
levam à admissão de restrições ao direito, desde que existam argumentos muito
619
O argumento será mais desenvolvido adiante, quando do estudo da estrutura e das posições subjetivas
do direito à vida. No Brasil, adota-se um modelo de “consentimento explícito universal restringido” para
os transplantes post mortem. Caso fosse absoluto o direito à vida, dever-se-ia adotar um modelo
obrigatório ou, pelo menos, um modelo de “consentimento tácito universal absoluto” (esquema jurídico
de dissenso). Na legislação nacional, chegou a viger um modelo de dissentimento, mas a polêmica foi tão
intensa que o modelo foi revogado em prol do consentimento expresso. A simples existência do debate
público demonstra a importância oferecida ao consentimento no tema, ainda que em jogo o direito à vida.
Já os transplantes inter vivos seguem regras estritas, baseadas no consentimento genuíno do doador. Fosse
absoluto o direito à vida, ter-se-ia que discutir seriamente os limites do dever de salvar a vida alheia,
podendo-se, então, cogitar a doação e a transplantação compulsórias de órgãos, nos casos em que os
riscos para o doador não fossem de vida. Sobre o tema, ver: LÓPEZ, Eduardo Rivera. Ética y trasplantes
de órganos. México: UNAM/FCE, 2001; BRASIL, Lei nº9.434/1997, Op.cit.; BRASIL. Lei
nº10.211/2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10211.htm. A
respeito do dever de salvar e a extensão do direito à vida, ver: McCONNELL, Op.cit., p.79 e ss.
620
Por superrogatórios: “Supererogation is the technical term for the class of actions that go “beyond the
call of duty.” Roughly speaking, supererogatory acts are morally good although not (strictly) required”.
Para uma discussão inicial sobre a categoria: SUPEREROGATION. In: STANFORD Encyclopedia of
Philosophy. Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/supererogation/ .
309
cogentes, com peso suficiente a justificar a ablação, diante de um escrutínio mais
rigoroso621. Ou seja, nem o maior peso abstrato, nem a posição preferencial significam,
tecnicamente, maior hierarquia. A maior hierarquia é estanque, quer dizer, qualquer
enunciado ou norma que se contraponha a outro de superior hierarquia sucumbe.
621
Sobre os pesos abstratos diferenciados, ver Capítulo 3, item 3.4. Sobre a posição preferencial:
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op. cit., p.234 e ss.; SCHREIBER, Simone. Publicidade opressiva de
julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.69 e ss.; MARTEL, Letícia de Campos Velho.
Hierarquização de direitos fundamentais: a doutrina da posição preferencial na jurisprudência da Suprema
Corte norte-americana. Sequência, Florianópolis, v. 48, n. XXV, p. 91-117, 2004.
622
SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos
fundamentales: una alternativa a los conflictos de derechos. Buenos Aires: La Ley, 2000, p.7.
Convém aclarar que os autores não adotam a ponderação e a proporcionalidade.
623
Diz-se insinua, porque é possível construir o método sem que ele implique a aceitação de enunciados
normativos constitucionais originários inconstitucionais. Cabe lembrar que o STF adequadamente
rechaçou a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de enunciados normativos constitucionais
originários. BRASIL. STF. ADI no.815-3/DF. Rel. Min. Moreira Alves. DJ 10/05/1996. A respeito, ver
também: SARMENTO, Daniel. A ponderação..., p.37 e ss. Com posicionamento distinto, ver:
PEREIRA, Jane Reis. Op. cit., p.246. Sobre as normas constitucionais inconstitucionais, ver: BACHOFF,
Otto Von. Normas constitucionais inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994 e BARROSO,
Interpretação..., p.304-209. Ressalta-se que a autora desta tese não subscreve a pena de morte, nem em
caso de guerra declarada, mas compreende que, no sistema constitucional brasileiro, a plena abolição da
pena de morte depende da aprovação de uma (bem-vinda) Emenda ao texto constitucional.
624
Para explicitação e discussão da unidade da Constituição, conferir: BARROSO, Interpretação...,
p.196-218; BERCOVICCI, Gilberto. O princípio da unidade da constituição. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, a.37, n.145, p.95-99, jan./abr. 2000.
310
aceitação jurisprudencial e doutrinária no Brasil, como apontado na parte final do
Capítulo 3.
311
um direito a condições de trabalho decentes, um direito à alimentação,
ao vestuário, à moradia, à educação e assim por diante625.
Assim, para apreciar a estrutura do direito à vida, ele será isolado dos demais
direitos. Não se nega outros direitos ao adotar esta linha de raciocínio. O direito à vida é
instrumental e está associado, de modo mais ou menos direto, a todos os direitos
fundamentais. Ampliar o direito à vida concebendo-o como direito à vida digna, ou à
qualidade de vida ou ainda à vida decente, retira a clareza e pouco acrescenta ao debate,
especialmente no Brasil, cuja Constituição analítica expressa uma plêiade de direitos
sociais, econômicos e culturais, além de trazer em seu bojo menção à dignidade
humana626. Compreender a estrutura do direito à vida em separado não leva à afirmação
de que sua atuação e interpretação são insulares. Por evidente, em muitas situações,
outros direitos também estarão em cena. Mas são outros direitos. Corroboram com esta
linha de pensar dois cânones de interpretação da Constituição, a noção de que o
constituinte não emprega palavras de modo inútil (o que aconteceria se o direito à vida
encampasse outros direitos e princípios expressos, como a saúde, a dignidade e as
condições de trabalho) e também a impossibilidade de se interpretar o texto de modo
desintegrado e hiperintegrado627.
625
FEINBERG, Voluntary euthanasia…, p.224. “Just what kind of right is “the right to life”? Numerous
distinctions can be made, of course, among the many types and categories of rights. While it is impossible
here to work our way completely through the conceptual maze, it will be useful to clarify the right to life
by placing it in relation to some of the more important of these distinctions. This will be in part a matter
of stipulation, for the right to life is interpreted in different ways by different writers, and where there is
disagreement or confusion, I can only try to make persuasive suggestions that one or another
interpretation is more standard, useful, or important. I propose, first of all, to interpret “the right to life”
in a relatively narrow way, so that it refers to “the right not to be killed” and “the right to be rescued
from impending death,” but not to the broader conception, favored by many manifesto writers, of a “right
to live decently.” To be sure, as Hugo Bedau put it “(...)the life to which we now think men are entitled as
of right is not [merely] a right at the barest level sufficient to stave off an untimely death; rather it is a
life sufficient for self-respect, relief from needless drudgery, and opportunity for the release of productive
energy. However, we can refer separately to the components of a right to live decently: a right to decent
working conditions, a right to food, to clothing, to housing, to education, and so on”.
626
Frisa-se que o direito à vida, como os demais direitos fundamentais, tem a marca da historicidade e,
como princípio, da plasticidade. É por isso que se usou a palavra básicas para designar as posições
subjetivas que agora estão sendo trabalhadas. Para o tema em debate aqui, as posições básicas são
suficientes. Porém, não estão excluídas novas posições, que sejam acrescidas para responder a novos
problemas ou concepções, elemento comum na interpretação e aplicação dos direitos fundamentais. Por
exemplo, em questões envolvendo o desenvolvimento científico sobre manipulação genética, diagnósticos
embrionários, clonagem, outras posições poderão ser aventadas e aceitas, inclusive sob um enfoque
menos individual. Sobre a historicidade, ver: BOBBIO, A era... . Sobre a plasticidade, CANOTILHO,
Direito..., p.1087.
627
As formulações desintegrada e hiperintegrada são empregadas por Tribe para cognominar dois modos
de não ler uma Constituição, já que aquela conduz à impressão de um sentido unívoco e imutável da
Constituição e esta conduz à ampliação exacerbada de um princípio, subsumindo todo o texto
constitucional a ele. TRIBE, Laurence H.; DORF, Michael C. On reading the Constitution. Cambridge:
Harvard University, 1991, p.19 e ss.
312
Quais posições subjetivas possui o direito à vida? Terrance McConnell indica
que há pelo menos duas interpretações competidoras sobre as posições subjetivas do
direito à vida, uma que ele denomina interpretação negativa e a outra, interpretação
positiva. Na primeira, inclui-se no direito à vida apenas as posições subjetivas que
impõem o dever de não matar (correlato ao direito estrito de não ser morto). Na
segunda, além das posições reconhecidas pela primeira, posições que impõem deveres
de salvar os titulares da morte e de não abandoná-los à morte (correlatos ao direito
estrito de ser salvo de morte iminente)628. Feinberg é enfático ao afirmar que se trata de
um direito estrito (claim-right), com, no mínimo, duas posições, a de não ser morto e a
de não ser abandonado à morte629. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword estruturam
as posições subjetivas do direito à vida também como direitos estritos, esmiuçando-as
adequadamente:
628
McCONNELL, Op.cit., p.79-80.
629
FEINBERG, Voluntary euthanasia…, p.224-225. Robert Alexy situa como posição subjetiva do
direito à vida, a de não ser morto arbitrariamente. Anota-se que esta é a redação do Pacto de Direitos
Civis e Políticos, supratranscrita. Aristóteles Atheniense narra que os Ministros Cezar Peluso e Gilmar
Mendes afirmaram “ser o direito à vida inerente à pessoa humana, devendo ser protegido por lei e que
ninguém poderá ser arbitrariamente privado dele. ‘Enfatizando-se: ninguém pode ser privado da vida
arbitrariamente. Em consequência, havendo justo motivo ou razões fundadas, não há como deixar de
afastar a tipicidade material do fato (por se trará de resultado jurídico não desvalioso). Essa conclusão nos
parece válida, seja para a ortotanásia, seja para a morte assistida, seja, enfim, para o aborto anencefálico.
Em todas essas situações, desde que presentes algumas sérias, razoáveis e comprovadas condições, não se
dá uma morte arbitrária ou abusiva ou homicida (isto é, criminosa)’”. ATHENIENSE, Aristóteles.
Enfoque jurídico da ortotanásia. In: PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachel Aisengart;
BARBOZA, Heloísa Helena. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p.114.
ALEXY, Teoria de los..., Op. cit., p.187-188.
630
Neste ponto acrescenta-se a noção do direito estrito à não-eliminação da situação jurídica de estar vivo
por parte do Estado. Ver supra, Capítulo 2, item 2.2.3.2.
631
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.274. “RL(a): a negative claim-right that other
agents do not act in ways that are intended to terminate one’s life (ie the basic right, possibly extended to
cover reckless and careless conduct); RL(b): a negative claim-right that others agents do not take steps to
assist others to terminate one’s life or to assist one to terminate one’s life; RL(c): a positive claim-right
that other agents act in ways that are designed to save or sustain one’s life; RL(d): a positive claim-right
that other agents act in such a way as to assist in saving or sustaining one’s life”.
313
Acertadamente os autores mostram que a cada posição corresponde um dever
(em sentido estrito), seja o de não realizar o ato de matar ou de abster-se de auxiliar
alguém a morrer, seja o de salvar ou de auxiliar no salvamento de alguém. Nas posições
mencionadas, o sujeito passivo poderá ser tanto o Estado (em sentido amplo), quanto os
particulares. Tomado em sua estrutura de direito fundamental, o direito à vida traz
consigo ainda outras posições subjetivas endereçadas somente ao Estado, a saber: (a)
DV(e): direito à não-eliminação das posições jurídicas do direito à vida, que se
manifesta como imunidade com a correlata não-competência; (b) DV(f) direito estrito a
ações positivas fáticas; (c) DV(g) direito estrito a ações positivas normativas632.
632
Supra, Capítulo 1, item 1.2.3.2.1. As duas últimas posições estão intimamente relacionadas à
deficiência da proteção, supra, Capítulo 3 item 3.4.
633
No mesmo rumo: McCONNELL, Op.cit., p.79.
314
4.1.2.1 Anotações inconclusas sobre o direito estrito de ser salvo: intensidade e
extensão dos deveres correlatos
634
Para um aprofundamento, ver:THOMSON, The realm..., especialmente os Capítulos 6 e 7, p.149-202,
e FEINBERG, Harm to others..., p.126-186.
635
A informação e a denominação são empregadas por FEINBERG,. Harm to others..., p.126 e ss. No
Brasil, um exemplo claro é a tipificação da omissão de socorro: “Omissão de socorro. Art. 135 – Deixar
de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou
à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o
socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único – A pena é
aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a
morte”. BRASIL, Código Penal, Op.cit.
315
ou grupos que adentram em relações ou situações especiais, como bombeiros, policiais
e profissionais da saúde. Alguns exemplos auxiliarão no desenvolvimento
argumentativo.
Suponha-se agora que A solicite ao jovem a doação do rim inter vivos, e o jovem
recuse plenamente. Seria o jovem compelido a ser o doador e a salvar a vida de A? Nos
ditames da legislação vigente no Brasil, não. Nem sequer se o jovem morresse sem a
interferência de A, a doação seria compulsória. Seria preciso o consentimento pretérito
do jovem, enquanto sujeito do consentimento, ou de sua família, após o óbito.
316
óssea para outra pessoa”636. O segundo caso envolvia crianças, irmãos por parte de pai.
A mãe dos possíveis doadores recusou a doação da medula óssea para o outro irmão,
que não era seu filho. O pai buscou suprir o consentimento judicialmente, sem sucesso.
A Corte decidiu favoravelmente à mãe, cuja recusa seria desconsiderada apenas se não
atendesse aos melhores interesses dos seus filhos637.
636
McCONNELL, Op.cit., p.80-81. Comentando McFall v. Shimp, nº78-17711 In Equity (C.P.
Allegheny County, Pennsylvania, July, 26, 1978). No original: “Judge Flaherty said that although
Shimp’s refusal to donate was morally indefensible, nevertheless, there is no legal duty to take action to
save another’s life and certainly no duty to serve as a bone marrow donor for another”.
637
McCONNELL, Op.cit., p.80-81. Comentando Curran v. Bosze, 41 Illinois 2nd 473, 153 III., Dec.
213, 566 N.E. 2nd 1319 (1990).
638
Esta tese não é o local apropriado para debater a política brasileira de transplantes. Porém, não há
como furtar-se à indagação a respeito da fácil admissão dos denominados aventureiros morais, ou seja,
aqueles grupos que querem para si as benesses do comportamento moral alheio, mas se recusam a assumir
e a viver os ônus de tais comportamentos. Ou seja, a legislação brasileira favorece tais aventureiros, na
medida em que quem se declara não doador, é receptor. A expressão aventureiros morais é usada por
LÓPEZ, Ética…, e LÓPEZ, Eduardo Rivera. Classe. Estudios Superiores en Bioética. Argentina:
FLACSO, 2009.
317
salvamento. Na parte mais central, estariam as posições subjetivas de não ser morto e os
correlatos deveres de não matar639. Como asseverado, todas as posições teriam muito
peso abstrato, porém a parte central teria ainda mais.
639
No Brasil, há uma importante discussão que se atrela a esta quanto às políticas públicas de saúde. Não
apenas o direito à vida é instrumental. Outros direitos, como promoção, recuperação e proteção da saúde,
podem ser instrumentais ao direito à vida, normalmente na perspectiva dos deveres de salvamento. O
debate que atualmente se instaura sobre o papel do Poder Judiciário na concessão de medicamentos,
tratamentos e intervenções de saúde tem como pano de fundo a extensão e a intensidade do dever estatal
de salvamento de vidas especificamente consideradas em um quadro de escassez de recursos e de
necessidade de universalização de acesso ao sistema de saúde. Muitos se manifestam sobre a questão,
demonstrando o quão relevante e problemática é a definição da extensão e da intensidade dos deveres de
salvamento quando a figura do Estado está em causa. No tema, um ponto é certo: os custos jamais
justificam matar alguém. Porém discute-se se a distribuição, alocação e planejamento de recursos podem
justificar não tratar alguém, ou seja, não arcar com o dever de salvamento em relação específica. A
última conclusão foi muito bem exposta por Baruch Brody, para quem os deveres de salvamento são
menos densos jurídica e moralmente do que os deveres de não matar, especialmente na assistência em
saúde. BRODY, Baruch. Withdrawal of treatment versus killing of patients. In: BEAUCHAMP, Tom L.
(ed.) Intending death: the ethics of assisted suicide and euthanasia. New Jersey: Prentice Hall, 1996,
p.90-103. Na mesma obra, ver ainda: DANIELS, Norman, In permitting death in order to conserve
resources, p.208-215 e GILLON, Raanan, Intending or permitting death in order to conserve resources,
p.199-207. É farta a literatura e a jurisprudência no tema. Para uma análise atual e com bom referencial
teórico-jurisprudencial e legal-regulatório, ver: BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à
judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a
atuação judicial. In: MARTEL, Letícia de Campos Velho. Estudos Contemporâneos de Direitos
Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.309-335.
640
Sobre os exemplos e sua discussão, ver: RACHELS, James. Active and passive euthanasia. New
England Journal of Medicine. Jan., 1975, n.292(2), p.78-80. E ainda diversos capítulos da coletânea:
BEAUCHAMP, Tom L. (Ed.). Intending death: the ethics of assisted suicide and euthanasia. New
Jersey: Prentice Hall, 1996, especialmente os textos de Tom L. Beauchamp, Allen Buchanan, Ruth
Macklin, Baruch Brody, Judith Jarvis Thomson, Dan W. Brock.
318
As indagações conduzem a um ponto crucial, muito bem lembrado por Judith
Jarvis Thomson. O resultado fenomênico final será o mesmo: a morte de um ser
humano. Todavia, o complexo fático, as circunstâncias, fazem muita diferença.
Considerar isoladamente a reprovação moral ou jurídica de um comportamento é muito
diferente de apreciá-lo dinamicamente, tomando em conta as circunstâncias, o contexto,
as alternativas, as decisões, os sujeitos, as intenções, as causas, entre outras variáveis
relevantes. A discussão não está no vácuo. Está embebida em condicionantes. Então,
pode-se afirmar, em forte linha de princípio, que matar alguém é um ato moral e
juridicamente muito condenável; deixar de salvar a vida de alguém também o é. A
intensidade dos deveres de não matar e de abster-se em salvar a vida de alguém é muito
forte. Como premissa, os primeiros mais ainda que os segundos. Mas a premissa
sujeita-se a variações em função de uma série de condicionantes, que precisam ser
detalhadas, contexto a contexto, caso a caso, sem que se perca de vista a relevância
única do direito à vida641.
Nos países que aceitam a recusa de intervenções médicas, mesmo aquelas hábeis
a salvar ou a prolongar a vida dos pacientes, a discussão sobre a intensidade e a
extensão dos deveres jurídicos de salvamento diminuiu significativamente em anos
recentes642. Para intervenções médicas, é preciso a justificação procedimental pelo
consentimento, ressalvadas algumas situações específicas, substantivamente
justificadas. Não é o caso do sistema jurídico brasileiro. Embora a doutrina esteja
valorizando cada vez mais o consentimento, é ampla a abertura para a justificação
substantiva segundo enunciados normativos infraconstitucionais quando em jogo a vida
641
THOMSON, The realm…, p.135 e ss. THOMSON, Killing and letting die: some comments. In:
BEAUCHAMP, Tom L. (ed.) Intending death: the ethics of assisted suicide and euthanasia. New
Jersey: Prentice Hall, 1996, p.104-108.
642
Por todos, McConnell: “Cases like these [casos de recusa em ser doador] present some difficulties for
defenders of the positive interpretation of the right to life. It appears that this account implies a duty
(moral or legal) the existence of which most people would deny. In reply, it seems that defenders of the
positive account must argue for one of two claims: either there is after all a (moral) duty to serve as a
donor in cases like this, or contrary to appearances the positive interpretation does not entail such duties.
What is common to the positive and negative interpretations of the right to life is that such a right
imposes a duty on others not to kill the possessor. That provides one reason for restricting ourselves to
the negative account when we ask whether the right to life is alienable; for it endorses only what is
common to both. But there is a second reason. It is well established that competent individuals have the
legal and moral right to refuse medical treatment, including life-saving interventions. This is an
extension of the right to self determination, and the consensus is that this is both a moral and a legal
right. This right imposes obligations on others: any medical intervention must be withheld or withdrawn
if the individual for whom the intervention is intended is competent and so requests”. Ver também:
BEAUCHAMP, Tom L. (ed.) Introduction. In: Intending death: the ethics of assisted suicide and
euthanasia. New Jersey: Prentice Hall, 1996, p.1-22.
319
do enfermo643. É exatamente neste particular que se pretende traçar a principal rota da
tese, o que será formulado nos próximos tópicos.
643
Segundo diversos enunciados normativos infraconstitucionais, quando há risco de vida para o paciente,
é ordenado aos médicos intervir, mesmo sem o consentimento. Infra, item 4.4.
644
A expressão não é empregada apenas pelos ativistas, em situações não-técnicas. Filósofos do quilate
de Hans Jonas sustentam um direito de morrer. Como exemplo, JONAS, Hans. The right to die. The
hasting Center Report, v.8, n.4, p.31-36, Aug. 1978. Na literatura jurídica nacional, conferir: SÁ, Maria
de Fátima Freire de; PONTES, Maíla Mello Campolina. Autonomia Privada e Biodireito: Podemos,
legitimamente, pensar em um direito de morrer? Revista Jurídica UNIJUS, v. 11, p. 177-192, 2008; SÁ,
Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia e suicídio assistido. Belo Horizonte: Del Rey,
2001. Também Débora Diniz menciona um direito de morrer. Todavia, não se conseguiu precisar se a
autora, antropóloga, emprega a expressão em um sentido técnico-jurídico, com as consequências que isso
acarreta. Dentre vários outros textos da autora, DINIZ, Débora. Quando a morte é um ato de cuidado:
obstinação terapêutica em crianças. Cadernos de Saúde Pública, v.22, n.8, p.1741-1748, ago. 2006.
645
Sobre o caso, supra, Capítulo 2, item 2.2.3; infra, item 4.3.1.2.4.
320
DM(c): um direito estrito negativo de que outros indivíduos não ajam
segundo as formas designadas para salvar ou manter a vida de alguém
(incluindo um direito estrito a que outros não interfiram com a
tentativa de suicídio de alguém);
DM(d) um direito estrito negativo de que outros indivíduos não ajam
de forma a auxiliar ou manter a vida de alguém646.
Até o momento, nenhum problema. É possível desenhar a estrutura do direito de
morrer e estabelecer os deveres que lhe são correlatos: os deveres de matar e os deveres
de não salvar outros seres humanos de uma morte iminente. Nenhum problema? Quem
titulariza as posições subjetivas do direito? A quem são destinados esses deveres?
Aparentemente, tal qual o direito à vida, a todos os seres humanos vivos. Qual é o bem
jurídico tutelado? A morte. Aqui entra em cena o que foi escrito no Capítulo 1 e no
início do Capítulo 2. A estrutura dos direitos, principalmente dos direitos fundamentais,
carece de anima, de substância. Trabalhar apenas no patamar estrutural-analítico
permite aceitar qualquer posição jurídica. E os direitos, tanto mais os fundamentais, não
são meras estruturas relacionais. Traduzem valores de uma sociedade política, estão
abraçados por um inegável substrato axiológico. Ao supor a estrutura de um direito de
morrer, torna-se nítido o quão estranho é, de um ponto de vista substantivo, defender a
sua existência.
Em primeiro lugar, como sustentar que cada ser humano é titular do direito de
morrer? Todos os seres humanos irão morrer. A morte é o inexorável destino humano. É
o fenômeno que desafia a humanidade há séculos, quiçá milênios, e que, em larga
escala, não está sob o controle humano. Haveria direito estrito a um fenômeno natural,
inevitável e ainda largamente imprevisível? Poder-se-ia argumentar que a vida, assim
como a saúde, também é um fenômeno, um desafio... A diferença é que é viável
juridicamente e em caráter geral promover e proteger a vida e a saúde em relação a
comportamentos que contra elas atentem. Quanto à morte, um contingente
demasiadamente significativo de casos fica absolutamente fora da possibilidade jurídica
de proteção. Os direitos resguardam o bem. Protegem-no. É de fato possível resguardar
a morte, protegê-la, promovê-la de modo geral, como se faz com os demais bens? Se a
resposta for afirmativa, novas indagações647. Que sociedade é essa?
646
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.277.
647
Uma das maneiras de responder afirmativamente é asseverar que o direito de morrer não é
diametralmente oposto ao direito à vida, tampouco seu direito-antítese. O substrato da afirmação está em
considerar que a morte é um evento, ao passo que morrer é um processo. Enquanto a morte e a vida não
coexistem, a vida e o processo de morrer coexistem. Assim, o direito de morrer seria o direito ao processo
de morrer, e não o direito à morte, sendo possível afirmar a sua existência simultânea ao direito à vida.
321
Então, em segundo lugar, o direito de morrer teria espaço se as sociedades
contemporâneas fossem “clubes de suicidas” ou de “gladiadores”648. Perceba-se que as
posições subjetivas do suposto direito contradizem valores arraigados nas sociedades
ocidentais contemporâneas que prezam pelos direitos fundamentais. Elas lançam sobre
os indivíduos não apenas o direito estrito de ser morto e de não ser salvo da morte, mas
especialmente introduzem a ideia de um dever (em sentido estrito) de matar outros seres
humanos ou de nada fazer para salvá-los649. O evento morte, sempre lamentável,
deixaria de sê-lo? Como situar as políticas públicas de prevenção ao suicídio? Como
manter o rechaço da guerra, da violência, do homicídio? Por que traçar políticas
públicas para aprimorar a expectativa de vida de uma sociedade que reclama para si o
direito de ser morto e de impor sobre os demais o dever de matar? Vale perguntar
novamente: Que sociedade é essa?650
Contra essa posição, dois elementos básicos: (a) o resultado, qualquer que sejam as palavras, é a morte,
embora o bem protegido não seja a morte, mas o processo de morrer; (b) uma vez que se compreenda o
morrer como um processo, existe uma dificuldade em traçar a linha demarcatória que define quem está
nesse processo e quem não está. Uma indagação é: uma vez vivos, não estão todos os seres humanos em
um contínuo processo de morrer? A respeito, consultar: COGGON, John. Could the right to die with
dignity represent a new right to die in English law? Medical Law Review, n.14, p.223-226, Summer
2006.
648
As expressões são empregadas por BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.277, verbis:
“First, while such a rights regime (or some part of this regime) might make some sense for members of a
suicide club, or for gladiators, or the like, it makes little or no sense for members of societies of the kind
that we are presupposing”.
649
Conforme Leon Kass: “Taken literally, a right to die would denote merely a right to the inevitable; the
certainty of death for all lives is the touchstone of fated inevitability. Why claim a right to what is not only
unavoidable, but is even, generally speaking, an evil? Is death in danger of losing its inevitability? Are
we in danger of bodily immortality? Has death, for us, become a good to be claimed rather than an evil to
be shunned or conquered?”. KASS, Leon R. Is there a right to die? The Hastings Center Report, v.23,
[s/p], Jan./Feb. 1993.
650
Nas palavras de Deryck Beyleveld e Roger Brownsword: “Taking stock, we suggest that an axiomatic
right to die is not the obverse of an axiomatic right to die. Even with a will theory of rights, a community
that is orientated towards the former is a very different community to one orientated to the latter; and no
community can be sensibly orientated towards both axiomatic rights at the same time”.
BEYLEVELD;BROWNSWORD, Consent..., p.279.
322
extrato de pessoas cujo prognóstico é nefasto. A afirmação de um direito de morrer está
em um contexto determinado e representa dizer não à imposição de um específico
modelo biomédico em face da morte. Situa-se no ambiente da assistência em saúde, da
clínica médica651. É característico do discurso dos direitos o reconhecimento e a
incorporação de novos direitos à medida do surgimento de novos desafios. É
característica das Constituições e das Declarações de Direitos a capacidade de abrigar
novos direitos, sua abertura e seu caráter de living instruments652. É tão denso o
discurso dos direitos nas sociedades políticas ocidentais, que quem se recusa a aceitar
um molde pré-concebido e correto do morrer e a imposição de um modelo de
assistência em saúde, apropria-se da linguagem dos direitos para ter ouvidas e atendidas
suas demandas. É interessante perceber que o direito de morrer é reclamado em estatura
constitucional e até fundamental, dadas as consequências que se pretende dele extrair
diante dos sistemas jurídicos653.
651
Cf. KASS, Is there a right…, [s/p].
652
Os argumentos são usuais em muitas linhas da teoria constitucional, dos direitos fundamentais e dos
direitos humanos. Na Constituição brasileira, o reconhecimento de novos direitos encontra sustentáculo
na chamada cláusula de abertura, presente em todas as Constituições republicanas do país, cuja origem
remota está na Nona Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América. No tópico do direito de
morrer, articularam e comentam tais argumentos, sem que a conclusão necessária seja reconhecer um
direito de morrer, a Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso Pretty, e COGGON, Could the right…,
passim. KEOWN, John. European Court of Human Rights: Death in Strasburg – assisted suicide, the
Pretty case, and the European Convention on Human Rights. International Journal of Constitutional
Law, n.1, 2003, p.724. A denominação cláusula de abertura é de HÄBERLE, Peter. La liberdad
fundamental en el Estado constitucional. Peru: Fondo Editorial de la Pontifícia Universidad Católica
del Perú, 1997, p.127-128.
653
Não apenas constitucional, mas também internacional, como demonstra o caso Pretty.
654
De modo geral, os argumentos da ladeira escorregadia são frágeis e não tão difíceis de rebater. Porém,
quando se emprega o discurso dos direitos para defender um direito de morrer, há riscos sérios, que
precisam ser bem dosados sem qualquer ingenuidade. Leon Kass expôs que a conquista de um direito de
morrer pode mascarar pautas político-morais que não seriam sequer verbalizadas diretamente, como
conceitos de vidas inúteis. Para o desenvolvimento argumentativo, KASS, Is there a right..., [s/p].
323
Continua-se, então, o exercício para pôr em prática as posições subjetivas do
direito de morrer. Se há dever de matar e de não salvar, em atenção ao direito de morrer
e de não ser salvo, invertem-se premissas habituais do raciocínio jurídico e há
conclusões de longo alcance. De pronto, percebe-se que o ônus argumentativo para a
restrição de posições subjetivas de direitos fundamentais está com quem pretende
restringi-lo. Um direito de morrer põe o ônus argumentativo naqueles que pretendem
viver, salvar ou manter vivos os demais seres humanos. Um direito de morrer, se
jusfundamental ou constitucional, retira do Estado a necessidade de arcar com o ônus
argumentativo de não prestar assistência àqueles cuja vida está em risco, de matar
alguém, ou, para suavizar o argumento, retira do Estado a necessidade de justificar (o
que nesta tese já se considerou injustificável) o ato de matar seres humanos para conter
custos ou alocar “melhor” recursos em saúde. Um direito de morrer fragiliza
imunidades diante do Estado, ou seja, ameniza a não-competência estatal quanto à não-
eliminação de situações e de posições jurídicas subjetivas. Pode afetar a engrenagem da
dimensão objetiva do direito à vida e do direito à saúde. E mais, como ele se amolda à
noção de suporte fático amplo?
655
Nesse sentido argumentam BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.277.
656
Entende-se que Ronald Dworkin não abaliza um direito de morrer, mesmo que conclua
favoravelmente à legalização de muitas práticas de morte com intervenção. Para o jusfilósofo, está em
324
conforme ao sistema jurídico brasileiro e de outras democracias ocidentais afirmar que
“nós todos concordamos que é geralmente injusto matar pessoas. Ainda que possamos
divergir sobre exceções, e sobre quais seres qualificam-se como pessoas, o julgamento
de que é injusto, tudo o mais sendo igual, matar intencionalmente pessoas
paradigmáticas representa um substrato moral comum”657. Como será estudado adiante,
é razoável levantar a tese de que uma das faces da dignidade humana como heteronomia
é justamente a proteção, a promoção e a defesa da vida humana.
Todo o exposto pode dar a entender que pleitos para a recusa de intervenções
médicas de prolongamento e de manutenção da vida, para o consentimento destinado à
retirada ou suspensão de suporte vital, ou até para o suicídio assistido e a eutanásia são
inadmissíveis, uma vez que recaem no ora atacado direito de morrer. Compreender
assim é um non sequitur. Negar o direito de morrer não é sinônimo de negar outros
direitos fundamentais enraizados, como a privacidade, a liberdade de consciência, a
proibição de imposição de tratamentos desumanos e degradantes. Negar o direito de
morrer não é sinônimo de negar a necessidade de justificar atos de paternalismo e de
perfeccionismo jurídicos. Negar o direito de morrer significa, somente, indicar sua
inutilidade e seus riscos no mundo dos direitos fundamentais. Significa dizer que a
linguagem dos direitos é vigorosa e pervasiva, e o modo como são estruturados os
argumentos faz toda a diferença. Para proteger indivíduos contra as mazelas advindas
do progresso científico, para humanizar a morte e o processo de morrer, não é preciso ir
tão longe a ponto de reclamar um perigoso e escorregadio direito de morrer658. Sugerir o
direito de morrer é cruzar o Rubicão sem um exército, pois há uma enorme diferença
argumentativa e técnico-jurídica que não pode passar despercebida. Afirmar que há
direito estrito de morrer e de não ser salvo, com seus deveres correlatos, é
absolutamente diferente de afirmar que em bem demarcadas ocasiões há um privilégio
de não salvar ou até de matar alguém, e que a imunidade está com o titular do direito à
vida e dos demais direitos em causa. Portanto, nas bem demarcadas hipóteses forma-se
uma não-competência estatal para proibir ou impedir que o titular modifique posições
subjetivas do direito à vida, saindo do binômio direito estrito/dever e adentrando no
binômio privilégio/não direito, ou até no binômio invertido de direito estrito/dever.
causa o direito à vida e uma liberdade básica, que ele reputa congênere à liberdade religiosa e traduz o
modo como a santidade da vida deve ser respeitada. DWORKIN, Ronald. O domínio..., p.255 e ss.
657
DeGRAZIA, David. Identity, killing and the boundaries of our existence. Philosophy and Public
Affairs, v.31, n.4, p.413, 2003.
658
Em conclusão semelhante, porém em outras linhas argumentativas: KASS, Is there a right…, [s/p] e
BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.274 e ss.
325
4.2 Da indisponibilidade do direito à vida
Nos Capítulos iniciais da tese, sustentou-se que a indisponibilidade das posições
subjetivas de direitos fundamentais é normativa, isto é, não integra, ontologicamente, a
estrutura das posições. É na justificação para se ter e exercer direitos que se encontra a
raiz da disponibilidade ou indisponibilidade. Além disso, optou-se por trabalhar com a
noção de um direito geral de liberdade. Uma das consequências da opção é exatamente
a consideração das posições subjetivas de direito fundamental como prima facie
disponíveis, cabendo, àqueles que pretendem sustentar a sua indisponibilidade, arcar
com o ônus argumentativo.
659
McCONNELL, Inalienable…, Op. cit., p.79. “Whenever lists of putative inalienable rights are
composed, the right to life usually is at the top”.
660
É o caso de Diana T. Meyers. Para a autora, que adota um conceito amplo de indisponibilidade, para
que um direito seja indisponível, deve atender a dois critérios: (a) são direitos cujo bem protegido jamais
pode ser sacrificado mediante obrigação, ainda que possa ser sacrificado altruisticamente; (b) direitos que
protegem bens necessários à condição de agente moral do titular, ou seja, protegem a capacidade de
escolher um código de conduta sensível aos interesses alheios. Conforme a autora, quatro direitos, pelo
menos, satisfazem os critérios de indisponibilidade: “1 the right to life, i.e., the rights not to be killed;
2. the right to personal liberty, i.e., the right not to be forced to execute another person’s dictates; 3. the
right to benign treatment, i.e., the right not to suffer gratuitous acute pain; 4. the right to satisfaction
of basic needs, i.e., the right to adequate food, water, clothing, shelter, and medical treatment for
survival.” MEYERS, Inalienable rights…, Op. cit.,p.52-53 [sem grifos no original].
661
É o caso, por exemplo, de Vieira de Andrade, que cinge a autolimitação do conteúdo essencial do
direito fundamental, exemplificando com o direito à vida: “Será, por exemplo, nulo o consentimento
(negocial) na lesão do bem vida”. Também Canotilho, ao expor seus critérios para a admissão da
disposição torna bastante difícil a possibilidade quanto às posições do direito à vida. Porém, a posição de
Canotilho não é indene a modulações, pois ele assume que soluções diferenciadas podem acontecer,
desde que levados em consideração “o direito fundamental concreto e o fim da renúncia”. CANOTILHO,
Direito..., Op. cit., p.1031 e ss. ANDRADE, Os direitos, as liberdades e garantias... Op. cit., p.293.
326
justificação, serão trabalhadas três linhas argumentativas: (a) a proteção de direitos de
terceiros, fundamentalmente os não-consententes; (b) a manutenção de níveis adequados
dos deveres e ações ordenadas estatais de promoção e de proteção do direito à vida
(dimensão objetiva); (c) a dignidade humana como heteronomia.
Convém enfrentar o ponto. Ao motivar sua postura, McConnell refere dois casos
ocorridos nos Estados Unidos. Em um deles, uma mulher consentiu em ser morta
durante uma relação sexual, deixando uma carta que comprovava seu consentimento,
além de existirem correspondências eletrônicas que ofereciam indícios da sua
aquiescência. Noutro, uma mulher que sofria de muitas dores e estava perdendo sua
independência em razão do tratamento de uma doença contratou um rapaz que vivia nos
arredores de sua casa para matá-la662. Há também um caso ocorrido na Alemanha, que
ganhou as manchetes no mundo, no qual dois homens, após encontros virtuais,
combinaram encontrar-se, para que um matasse e o outro e o canibalizasse, a fim de
obterem prazer sexual663. Em Portugal, em meio a uma brincadeira, um jovem colocou
uma garrafa na boca e, diante de testemunhas, permitiu que seu amigo atirasse na
garrafa. O jovem morreu664.
662
McCONNELL, Op. cit, p.9-10; 81-85.
663
O caso ocorreu em 2002 e recebeu ampla cobertura na mídia. Uma das defesas foi justamente o
consentimento. Para a promotoria, as provas quanto ao consentimento somente demonstravam
premeditação. Recentemente, um filme sobre o caso não pode ser exibido em virtude de decisão judicial.
Notícias obtidas em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/4769884.stm Ver também: ESPOSITO, Antonio
K.; SAFFERLING, Christoph J. M. Report – Recent Case Law of the Bundesgerichtshof (Federal Court
of Justice) in Strafsachen (Criminal Law). German Law Journal. v.09, n.5, 2008, 684-687.
664
LUÍSA NETO. O direito fundamental à disposição sobre o próprio corpo (a relevância da
vontade na sua configuração). Coimbra: Coimbra (Serie Teses e Monografias), 2004.
327
não estaria sob coação, se estaria no gozo de suas faculdades mentais, etc.665. Ou seja,
como foi mencionado no Capítulo 2, o princípio liberal do dano mediado pela máxima
volenti ainda pode ser empregado quanto a atos autorreferentes se eles impactarem ou
colocarem em sério risco direitos de terceiros não-consententes.
665
McCONNELL, Op. cit, p.9-10; 81-85.
666
Convém esclarecer que os autores estão arrolando os argumentos de interesse público que os Estados
podem empregar para a proibição do suicídio assistido por médico. BEYLEVELD, Deryck,
BROWNSWORD, Roger. Consent..., Op. Cit., p.283.
667
Nesse sentido: BEYLEVELD, Deryck, BROWNSWORD, Roger. Consent..., Op. Cit., p.283.
328
direito à vida, mediante políticas repressivas e preventivas bem construídas, inclusive
no âmbito do direito processual. Acresça-se que o direito à vida assume um peso
abstrato mais intenso na ponderação.
329
McConnell reforça a conclusão, lembrando que “as leis são parte da política
social”. Se um comportamento é legalmente permitido, não significa que a sociedade e
o direito estão comprometidos em promovê-lo e dar-lhe guarida. Mas “em nossa
sociedade, se um comportamento não é legalmente proibido, então presumivelmente as
pessoas não serão forçosamente prevenidas de engajar-se em tal conduta. Nesse
(limitado) sentido, um comportamento legalmente permitido tem a etiqueta da
aprovação social”. Uma vez que se admita, prima facie, que as pessoas estão livres para
solicitar que outras a matem por qualquer motivo, arrisca-se uma banalização das
relações de vida e morte. E aumentam as chances de dano a pessoas que não
consentiram668. O autor traz à tona um dos pensamentos de Dworkin no ponto, ao qual
acrescenta-se outro. Decisões de vida ou morte são decisões sérias, exigem também
responsabilidade669. Então, parece justificável ao Estado recusar-se pôr em
funcionamento um esquema para contratos de morte, é justificável que se recuse, em
nome do direito geral de liberdade, a abalizar a conduta. Assim, mantém-se a proibição
geral.
668
McConnell, Inalienable..., Op. cit., p.83.
669
DWORKIN, Ronald. O domínio..., Op. cit., passim.
330
disposição de posições subjetivas do direito à vida como linha de princípio. Portanto,
considera-se que é justificável ao Estado reputar, como linha de princípio, insuficiente o
consentimento para a disposição de posições subjetivas do direito à vida, quando em
cena o direito geral de liberdade. McConnell lembra que a restrição da liberdade na
hipótese é ínfima670.
Diante dos casos que atualmente geram debate sobre a disposição de posições
subjetivas do direito à vida, situados basicamente na terminalidade da vida e na recusa
de intervenções médicas por grupos que ou expressam pontos de vista religiosos ou
estão em situações de intenso sofrimento sem possibilidade de reversão do quadro
clínico, nota-se que há outros direitos em cena. Em sendo assim, poderá haver
circunstâncias nas quais a proibição geral da disposição de posições subjetivas do
direito fundamental à vida impacte adversamente outros direitos fundamentais, além do
670
McConnell, Inalienable..., Op. cit., p.83. O autor chama atenção, corretamente, para o fato de o
suicídio não ser criminalizado. É conduta permitida, sem que o Estado a promova e sem que o Estado
permita a participação de terceiros.
671
Infra, Capítulo 2, item 2.3.2.
331
direito geral de liberdade. A expressão impacto adverso é ora empregada em um sentido
bastante específico, como uma doutrina “utilizada para impugnar medidas públicas ou
privadas aparentemente neutras (...), mas cuja aplicação concreta resulte, de forma
intencional ou não, a manifesto prejuízo a minorias estigmatizadas”672. Da doutrina em
si não se retira que alguns direitos ou posições subjetivas jusfundamentais de minorias
preponderem, mas ela oferece motivos para aproximar-se do caso com um olhar
ciumento, assegurando-se de que o impacto sobre os interesses da minoria não se dá
exclusivamente em função de um interesse administrativo secundário ou de direitos de
terceiros que poderiam ser salvaguardados de outros modos em hipóteses restritas.
Trata-se de proporcionar a grupos excluídos uma arena de participação, apta a
desobstruir canais democráticos e a evitar que pré-concepções compartilhadas atinjam
núcleos vitais da dignidade como autonomia e da construção da identidade dos
membros de uma sociedade democrática.
672
Apoiadas na doutrina, as Cortes invalidam ou excepcionam leis e atos da administração, criando uma
barreira ao prejuízo oblíquo ensejado para as minorias. Consoante Daniel Sarmento, a doutrina ainda não
ganhou adesão explícita dos Tribunais nacionais, mas já se pode perceber certa permeabilidade aos seus
ditames. SARMENTO, Daniel. A igualdade étnico-racial no direito constitucional brasileiro:
discriminação ‘de facto’, teoria do impacto desproporcional e ação afirmativa. In: CAMARGO, Marcelo
Novelino (org.). Leituras complementares de direito constitucional - Direitos Fundamentais.
Salvador: JusPODIVM, 2006, p.125. Ver também: GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação
Afirmativa & Princípio constitucional da igualdade. O direito como instrumento de transformação
social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 23 e ss. BLACK’S LAW
DICTIONARY. Op. Cit. Vocábulo: disparate impact. p. 504.
332
sentido, ainda que seja admitida a disposição de posições subjetivas de direito
fundamental, entende-se que é inviável que a disposição chegue ao ponto de ensejar ao
titular do direito um dever de ser morto e ao destinatário do consentimento o correlato
direito estrito de matar.
4.3.1 Morte com intervenção: um diálogo sobre novos conceitos e seus reflexos
jurídicos
Nos últimos anos, tem se realizado uma determinação léxica de alguns conceitos
relacionados ao debate sobre o final da vida. Nesta linha, muitos fenômenos que eram
englobados pela mesma insígnia passaram a receber nova denominação. Trata-se de
uma limpeza conceitual forjada diante da necessidade de combater a intensa polissemia
de alguns termos e de contribuir para a racionalização e objetivação do debate,
buscando denominar e tratar de forma distinta situações que guardam, entre si, variações
fáticas, éticas e morais importantes.
673
Nesta tese, considera-se equivocado referir “a bioética” ou a “comunidade bioética” ou os
“bioeticistas” para demonstrar conceitos unívocos ou até como um argumento de autoridade, advindo do
reconhecimento de uma elite epistemológica. O ramo do saber denominado bioética, neologismo surgido
na década de 1970, cuja paternidade é normalmente atribuída a Potter, é parte da filosofia moral e possui
laços com a ética aplicada. Em sua origem, foi vislumbrada como uma ponte (daí o título do texto de
Potter) entre as ciências duras, dentre elas as biológicas e da saúde, e as ciências humanas e sociais. Conta
com marcos teóricos distintos. É por esta razão que Engelhardt afirmou que bioética é um “substantivo
plural”, que conta com marcos e linhas bastante diferenciadas entre si, cujos enfoques, bases, estruturas
de pensamento e de argumentação e, principalmente, os resultados a que chegam são diferentes,
antagônicos e até irreconciliáveis. Em assim sendo, trabalha-se aqui com o atual marco hegemônico da
bioética, sem que se utilize a bioética, ou a comunidade bioética como um grupo coeso e unívoco de
pensamento. Com isso não se quer dizer, de modo algum, que se adote um intenso relativismo moral
quanto aos estudos da bioética, tampouco que alguns consensos não possam ser obtidos. O que se faz,
apenas, é negar que se possa encampar em um único conceito e em uma única linha “a comunidade
bioética”. ENGELHARDT, H. Tristan, Jr. Fundamentos da bioética. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2000.
POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1971.
LUNA, Florência; SALLES, Arleen L. F. Bioética: nuevas reflexiones sobre debates clásicos. México
D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2008.
333
prática clínica, que permearam múltiplos sistemas jurídicos674. Apesar disso, a discussão
persiste, sendo a ela subjacente aspectos éticos das profissões da saúde, a extensão dos
deveres de salvamento (correlatos a posições do direito estrito à vida e também como
ações ordenadas), o reconhecimento dos pacientes como sujeitos morais plenos (e
sujeitos do consentimento) e a viragem da relação médico-paciente, que sai de modelos
sacerdotais e paternalistas.
674
Como exemplos paradigmáticos do debate: RACHELS, Op cit. e a já mencionada coletânea
BEAUCHAMP, Intending death... .
675
Com muita pertinência no ponto: BRODY, Withdrawal of…, p.90-103.
676
BEECHER, Henry K. et al. A definition of irreversible coma. Report of the Ad Hoc Committee of the
Harvard Medical School to examine the definition of brain death. JAMA, v.205, n.6, p.85-88 (337-340),
Aug 5, 1968. Para uma explanação e discussão: GHERARDI, Carlos R. La muerte intervenida: uma visón
comprensiva desde la acción sobre el soporte vital. Perspectivas Bioéticas, v.11, n.20, p.102-121, 2006.
334
prol de novos critérios, como a irreversibilidade da perda da consciência, pessoas em
estado vegetativo persistente, hoje reputadas vivas, estariam mortas677.
677
A respeito das novas discussões: GHERARDI, Op. cit., passim; DeGRAZIA, Op. cit., p.413-442;
USA. President's Commission for the Study of Ethical Problems in Medicine and Biomedical and
Behavioral Research. Defining Death. A Report on the Medical, Legal and Ethical Issues in the
Determination of Death. July 1981. Disponível em:
http://www.bioethics.gov/reports/past_commissions/ defining_death.pdf; USA. The President’s Council
on Bioethics. Controversies in the determination of death. A white paper by the president’s council
on bioethics. Disponível em: http://www.bioethics.gov.
678
Entende-se que o marco teórico hegemônico da bioética é o principialismo, proposto por Beauchamp e
Childress a partir das noções de obrigações prima facie de Ross. Segundo Florência Luna e Arleen L. F.
Salles, o principialismo situa-se na primeira onda de reflexão sobre a bioética, assim como os estudos
kantianos e o utilitarismo. Além dos marcos teóricos da primeira onda, há os da segunda, que apresentam
diversos enfoques para o exame dos problemas morais complexos que exsurgem no cenário da bioética,
como a ética da virtude, o comunitarismo, o feminismo e a casuística. LUNA; SALLES, Bioética:
nuevas reflexiones...; BEAUCHAMP, Tom L. CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica.
4.ed. Barcelona: Masson S.A., 1999.
679
Os conceitos apresentados a seguir são, com sutis alterações, revisões e aprofundamentos, os expostos
em: BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é: dignidade e
autonomia no final da vida. In: PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachel Aisengart; BARBOZA,
Heloísa Helena. Vida, morte, dignidade humana (Coords.). Rio de Janeiro: GZ, p.175 e ss.; MARTEL,
Limitação de tratamento...
680
Além dos já mencionados autores, consultar sobre a elaboração, discussão e crítica dos conceitos:
PESSINI, Leo. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Editora do Centro Universitário
São Camilo: Loyola, 2001 (Coleção Bioética em Perspectiva, 2). MARTIN, Leonard M. Eutanásia e
distanásia. In: GARRAFA, Volnei (Org.). Iniciação à bioética. Brasília: CFM, p.171-192. SIQUEIRA-
BATISTA, Rodrigo; SCHRAMM, Fermin Roland. Eutanásia: pelas veredas da morte e da autonomia.
Ciência e saúde coletiva, v.9, n.1, p.33 e ss., 2004. McCONNELL, Op.cit., p.88. RIBEIRO, Diaulas
Costa. Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte. Cadernos de Saúde Pública, Rio de
Janeiro, v. 22, n.8, p. 1749-1754, ago. 2006. ROXIN, Claus. A apreciação jurídico-penal da eutanásia.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 8, n. 32, p.9-32,
out./dez. de 2000. Para relevantes visões críticas: COHEN-ALMAGOR, Raphael. Language and reality in
the end-of-life. The Journal of law, medicine & ethics, v. 28, n.3, p.267-278, Fall, 2000; BROCK, Life
and death…, p.169-172.
335
O termo eutanásia já foi objeto de diferentes conceituações, muitas bastante
amplas, que abraçavam formas ativas e omissivas em sujeitos passivos em condições
muito diferenciadas. Atualmente, o conceito tem sido confinado a uma acepção bastante
estreita, que admite apenas a forma ativa aplicada por médicos a doentes terminais cuja
morte é inevitável em um curto lapso ou a pessoas acometidas de enfermidades
irreversíveis e altamente debilitantes. Compreende-se que a eutanásia é a ação médica
intencional de provocar a morte – com exclusiva finalidade benevolente – de pessoa que
se encontre em situação considerada irreversível e incurável, consoante os padrões
médico-científicos vigentes, e que padeça de intensos sofrimentos físicos e psíquicos.
Do conceito estão excluídas a assim chamada eutanásia passiva, ocasionada por
omissão, bem como a indireta, ocasionada por ação desprovida da intenção de provocar
a morte. Não se confunde, também, com o homicídio piedoso, conceito mais amplo que
contém o de eutanásia.
681
Informa McConnel que os casos de eutanásia não-voluntária são os que envolvem pacientes incapazes.
Cf. McCONNELL, Op. cit., p.89. Ver também supra, Capítulo 3, item 3.2.1, a discussão sobre o
consentimento do titular, o consentimento reconduzível ao do titular e outras justificações,
procedimentais (consentimento de terceiros), ou substantivas, baseados nos melhores interesses do
paciente. É de salientar que a involuntária não encontra justificação procedimental, nem substantiva.
682
Este conceito foi extraído do voto do magistrado colombiano Vladimiro Naranjo Mesa, com sutis
alterações em seu texto. COLOMBIA. Sentencia C-239/97. Disponível em:
http://web.minjusticis.gov.co/jusrisprudencia. Sobre a distanásia, é muito relevante consultar PESSINI,
Op. cit.
336
saúde segundo o estado da arte da ciência da saúde, mediante conduta na qual “não se
prolonga a vida propriamente dita, mas o processo de morrer”683.
683
Cf. PESSINI, Op. cit., p.30.
684
SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, Op. cit., p.33. A expressão cura da morte foi cunhada por Leo
Pessini. Cf. PESSINI, Op. cit., p.331 e ss.
685
O conceito de futilidade terapêutica e de intervenções desproporcionais é muito discutido e ainda
aberto. Existem situações em que um tratamento básico, de rotina, pode se mostrar fútil em um caso
clínico, de modo a esfumaçar as diferenças entre o que é rotina terapêutica e o que é futilidade. Na Itália,
os casos de Piergiorgio Welby e de Eluana Englaro mostraram o ponto, pois no primeiro foi debatido se
o uso de respirador artificial constituía ou não tratamento fútil, ao passo que no segundo discutiu-se se a
alimentação e a hidratação artificiais eram tratamentos fúteis. À primeira vista, e com razão, poder-se-ia
sustentar que as intervenções e práticas fúteis precisam ser determinadas caso-a-caso, à luz das condições
clínicas do paciente. Porém, há um entrave, pois em alguns países o emprego das intervenções fúteis ou
desproporcionais é discutido no sentido de não as ofertar ou suspender à revelia da manifestação do
paciente ou de seus representantes, como uma decisão médica que envolve, ao fundo, a contenção dos
custos em saúde. Nesta tese, não se empregam os termos nesse último sentido. Sobre o tema, ver:
PESSINI, Op.cit., especialmente as páginas 163 e ss. Sobre os casos Welby e Eluana Englaro, ver:
MORATTI, Sofia. Italy. In: GRIFFITHS, John; MEYERS, Hellen; ADAMS, Maurice. Euthanasia and
law in Europe. Oxford: Hart Publishing, 2008, p.399 e ss.
686
PESSINI, Op. cit., p.31.
337
psíquico687. É uma forma de atender o paciente desenganado e sua família, que
reconhece que o enfermo é incurável e dedica toda a sua atenção a aliviar seu
padecimento com uso de recursos apropriados para tratar os sintomas, como a dor e a
depressão688.
687
Cf. PESSINI, Op. cit., p.203 e ss.
688
Este conceito foi extraído do voto do magistrado colombiano Vladimiro Naranjo Mesa, com sutis
alterações em seu texto. COLOMBIA. Sentencia C-239/97, Op. cit.
689
Cf. PESSINI, Op.cit., p.213; COLOMBIA. Sentencia C-239/97, Op.cit., voto do magistrado
Vladimiro Naranjo Mesa; QUILL, T. E. et al. Palliative treatments of last resort: choosing the least
harmful alternative. Annals of Internal Medicine, v.132, n.6, p.488-493, March 2000. Disponível em:
www.annals.org/cgi/content/. MORAES E SOUZA, Maria Teresa de; LEMONICA, Lino. Paciente
terminal e médico capacitado: parceria pela qualidade de vida. Bioética, Conselho Federal de Medicina.
v.11, n.1, p.83-100, 2003; COHEN-ALMAGOR, Op.cit.
690
O TCLE é a ata, o registro, do processo de informação estabelecido na relação entre os profissionais
da saúde, mormente médicos, e o paciente ou seus representantes. É hoje amplamente aceito, tanto
juridicamente quanto na deontologia médica, que os médicos estão sob um dever especial de informar os
pacientes sobre seu diagnóstico, prognóstico, alternativas de tratamento, os riscos, os benefícios, os
sintomas, etc. O processo informativo precisa ser permeado pela objetividade, veracidade, completude,
honestidade. Além disso, a relação entre os profissionais da saúde, especialmente médico-paciente, é de
assimetria informativa, revelando a necessidade de maior atenção ao padrão de adequação das
informações, não no sentido de omissão de pontos, mas de adaptação do linguajar técnico à capacidade de
entendimento do paciente ou dos seus representantes. Grosso modo, incumbe ao profissional fazer-se
compreender. Existem exceções ao dever de informar, abrigadas na insígnia privilégio terapêutico, que
entra em cena quando a informação pode acarretar maiores lesões ao estado de saúde do paciente. É,
porém, hipótese restrita. Sobre o processo de informação, supra, Capítulo 3, item 3.2.2.2. Sobre o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido, ou Consentimento Informado, ver: CLOTET, Joaquim; GOLDIM,
José Roberto; FRANCISCONI, Carlos Fernando (Orgs.). Consentimento informado e sua prática na
assistência e pesquisa no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; MUÑOZ, Daniel Romero; FORTES,
Paulo Antônio Carvalho. O princípio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido. In: GARRAFA,
Volnei (Org.). Iniciação à bioética. Brasília: CFM, 1999, p.53-70; ENGELHARDT, Op.cit., p.345-440;
PESSINI, Leo; GARRAFA, Volnei (Orgs.). Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p.469
e ss. (especialmente a parte IV).
338
impossibilidade de recuperação ou reversão do quadro clínico com a intervenção. A
última hipótese, referida por alguns como limitação consentida de tratamento (LCT, ou
também suspensão de esforço terapêutico – SET), possui laços com a ortotanásia. A
recusa ampla é ainda alvo de muitos debates, ao passo que existe certo consenso no
marco teórico hegemônico da bioética quanto à possibilidade de recusa em sentido
estrito (LCT).
691
Cf. KIPPER, Délio José. Medicina e os cuidados de final da vida: uma perspectiva brasileira e latino-
americana. In: PESSINI, Leo; GARRAFA, Volnei (Orgs). Bioética, poder e injustiça. São Paulo:
Loyola, 2033, p.413-414. Consultar, ainda: PESSINI, Op. cit., passim; MORAES E SOUZA;
LEMONICA, Op. cit.
692
Registra-se mais uma vez que há debates sobre a necessidade de consentimento para a suspensão de
intervenções reputadas fúteis ou extraordinárias. A linha de princípio adotada nesta tese é a de que o
consentimento é necessário. Adiante, cada uma das figuras ora explanadas serão apreciadas à luz da
disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais, recorte do tema de tese.
339
assistida em seu suicídio. O suicídio assistido por médico é espécie do gênero suicídio
assistido.
693 WORLD MEDICAL ASSOCIATION (WMA). The World Medical Association Resolution on
Euthanasia. WMA General Assembly, Washington, 2002. Disponível em
http://www.wma.net/e/policy/e13.htm. No original: “Euthanasia, that is the act of deliberately ending the
life of a patient, even at the patient's own request or at the request of close relatives, is unethical. This
does not prevent the physician from respecting the desire of a patient to allow the natural process of
death to follow its course in the terminal phase of sickness. [...] Physician-assisted suicide, like
euthanasia, is unethical and must be condemned by the medical profession. Where the assistance of the
physician is intentionally and deliberately directed at enabling an individual to end his or her own life,
the physician acts unethically. However the right to decline medical treatment is a basic right of the
patient and the physician does not act unethically even if respecting such a wish results in the death of the
patient”. Consultar também: The World Medical Association Declaration on Euthanasia. Adopted by
the 39th World Medical Assembly, Madrid, Spain, October 1987, and reaffirmed at the 170th Council
Session, Divonne-les-Bains, France, May 2005. Disponível em http://www.wma.net/e/policy/e13.htm. No
mesmo endereço eletrônico, o The World Medical Association Statement on Physician-Assisted
Suicide. Adopted by the 44th World Medical Assembly, Marbella, Spain, September 1992 and editorially
revised at the 170th Council Session, Divonne-les-Bains, France, May 2005.
694
CANADIAN MEDICAL ASSOCIATION. CMA Code of ethics. Disponível em:
http://policybase.cma.ca/PolicyPDF/PD04-06.pdf.. AMERICAN MEDICAL ASSOCIATION. Code of
medical ethics. Disponível em: http://www.ama-assn.org/ama/pub/physician-resources/medical-
ethics/code-medical-ethics.shtml. As demais informações encontram-se em: GRIFFITHS, John;
MEYERS, Hellen; ADAMS, Maurice. Euthanasia and law in Europe. Oxford: Hart Publishing, 2008,
passim.
341
conseqüências importantes. Cabe então indagar se, do ponto de vista estritamente
jurídico, tais conceitos possuem reflexos relevantes que os fazem merecedores de
valorações constitucionais e/ou legais diferenciadas. Em muitos países e organismos
internacionais a resposta foi positiva, e as diferenças ensejaram posturas jurídicas
moduladas para cada conceito, como será visto no item subseqüente.
Ressalta-se que os casos que serão descritos não são os únicos. Ao contrário, há
vários outros, decididos em sistemas jurídicos bastante distintos. Os casos a seguir
narrados foram selecionados em função da densidade argumentativa, bem como do
impacto gerado e seus reflexos em casos futuros, tanto nos sistemas em que foram
decididos, como além de suas fronteiras.
Releva-se, desde já, que em nenhum dos seis casos a seguir descritos as posições
subjetivas do direito à vida foram consideradas absolutas. Em todos eles, os magistrados
frisaram que o direito à vida deve receber uma proteção bastante forte, mas admitiram
que, em certas situações excepcionalíssimas, ele pode ceder frente a outros direitos e
princípios com guarida constitucional.
342
buscou obter judicialmente uma autorização para realização de suicídio assistido por seu
médico. Sua intenção declarada era a de viver o máximo possível, enquanto
considerasse sua situação suportável e pudesse aproveitar a companhia de seu filho e de
seu marido. Porém, não desejava enfrentar os sofrimentos gerados pela fase derradeira
de sua doença. Por isso, ela não poderia suicidar-se sem assistência, pois, quando
chegasse o momento, ela não mais possuiria condições físicas de realizar o ato. Desta
feita, seu pleito destinava-se a controlar o modo e o momento da própria morte, com
assistência de profissional da medicina habilitado695.
695
CANADÁ. Rodriguez v. British Columbia (Attorney General), [1993] 3 S.C.R 519. Op.cit.
696
Dispõe o Código Penal canadense: “241. Every one who (a) counsels a person to commit suicide, or
(b) aids or abets a person to commit suicide, whether suicide ensures or not, is guilty of an indictable
offence and liable to imprisonment for a term not exceeding fourteen years”. Apud CANADÁ, Rodriguez
v. British Columbia, Op.cit. Dispõe o Código Penal Brasileiro: “Induzimento, instigação ou auxílio a
suicídio. Art. 122 – Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena
– reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa
de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Parágrafo único – A pena é duplicada: Aumento de
pena. I - se o crime é praticado por motivo egoístico; II – se a vítima é menor ou tem diminuída, por
qualquer causa, a capacidade de resistência”. BRASIL, Código Penal, Op.cit.
697
A vida, a liberdade e a segurança pessoal constam da seção 7 da Carta: “7. Everyone has the right to
life, liberty and security of the person and the right not to be deprived thereof except in accordance with
the principles of fundamental justice”. A proibição de tratamentos ou de penas cruéis e não usuais estão
na seção 12: “12. Everyone has the right not to be subjected to any cruel and unusual treatment or
punishment”. A igualdade, na 15: “15. (1) Every individual is equal before and under the law and has the
right to the equal protection and equal benefit of the law without discrimination and, in particular,
without discrimination based on race, national or ethnic origin, colour, religion, sex, age or mental or
physical disability. (2) Subsection (1) does not preclude any law, program or activity that has as its
object the amelioration of conditions of disadvantaged individuals or groups including those that are
disadvantaged because of race, national or ethnic origin, colour, religion, sex, age or mental or physical
disability”. Cf. CANADÁ, Canadian Charter of Rights and Freedoms, Op.cit.
698
Também em virtude da divergência, o caso canadense é riquíssimo do ponto de vista da argumentação
jurídica, da teoria constitucional e dos direitos fundamentais, além de tratar das fronteiras do controle
jurisdicional de constitucionalidade. Cf. CANADÁ, Rodriguez v. British Columbia, Op.cit. A despeito
da decisão, pouco tempo depois Sue Rodriguez suicidou-se com auxílio de seu médico.
343
reconhecida como um direito estrito correlato ao dever de abstenção por parte do
médico. Em contrapartida, tratar forçosamente é um ato ilícito. Foi aduzido que “a
existência deste direito foi especificamente reconhecida mesmo que a suspensão ou a
recusa do tratamento possam resultar na morte”699.
699
CANADÁ, Rodriguez v. British Columbia, Op.cit., p.94. No original: “This right has been
specifically recognized to exist even if the withdrawal from or refusal of treatment may result in death”.
700
CANADÁ. Rodriguez v. British Columbia. Op.cit., p.102. No original: “What the preceding review
demonstrates is that Canada and other Western democracies recognize and apply the principle of the
sanctity of life as a general principle which is subject to limited and narrow exceptions in situations in
which notions of personal autonomy and dignity must prevail. However, these same societies continue to
draw distinctions between passive and active forms of intervention in the dying process, and with very
few exceptions, prohibit assisted suicide in situations akin to that of the appellant. The task then becomes
to identify the rationales upon which these distinctions are based and to determine whether they are
constitutionally supportable”.
701
Cf. CANADÁ, Rodriguez v. British Columbia, Op.cit., p.104.
702
Cf. CANADÁ, Rodriguez v. British Columbia, Op.cit., p.104 e ss.
344
ética médica foram elementos da decisão da Corte, que os considerou condizentes à
omissão que respeita a autonomia do paciente e não prolonga a sua vida contra a sua
vontade, nem ministra tratamentos forçados e incompatíveis com o ato comissivo e
intencional de causar ou auxiliar a morte alheia.
703
Segundo a legislação de Washington, a promoção de uma tentativa de suicídio constitui crime grave.
Ocorre quando uma pessoa conscientemente causa ou auxilia o suicídio alheio. É punível com até cinco
anos e multa não superior a dez mil dólares. USA. Washington v. Glucksberg et al. 521 U.S. 702.
Disponível em: http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?court=us&navby=title&v1=Glucksberg.
Acesso em: mar. 2005.
345
Corte dos Estados Unidos, um relativo ao aborto e o outro, à retirada de suporte vital.
Todavia, a Corte Suprema reverteu, indeferindo o pedido704.
No caso Vacco v. Quill, ajuizado por três médicos praticantes e três pacientes
terminais do estado de Nova Iorque, discutiu-se a constitucionalidade da lei nova-
iorquina que criminaliza o suicídio assistido em face da cláusula da igual proteção da
Décima Quarta Emenda. Segundo os autores, o tipo penal violaria o princípio da
igualdade, uma vez que o suicídio não é crime, e, no estado de Nova Iorque, a recusa de
tratamento médico em sentido amplo – mesmo daquele capaz de salvar a vida do
paciente – é reconhecida como direito estrito. Em assim sendo, o estado dispensaria um
tratamento distinto para situações semelhantes, pois um paciente não pode
autoadministrar-se drogas letais, enquanto outro pode requerer a retirada de suporte
vital705. Na primeira instância, o pedido foi indeferido. Na segunda, deferido apenas
quanto aos casos de pacientes terminais e capazes. A Suprema Corte reverteu essa
decisão706.
Nos dois casos, a Corte manifestou com firmeza as diferenças entre a limitação
de tratamento, o cuidado paliativo, a eutanásia e o suicídio assistido. As irradiações
jurídicas das distinções foram formuladas com base na intencionalidade e na
causalidade, princípios gerais largamente aceitos em direito, especialmente no ramo
penal, ou seja, residiram na presença ou não da intenção primária de causar a morte e
no evento causador do passamento.
704
Cf. USA, Washington v. Glucksberg et al., Op.cit. Os precedentes utilizados pelas Cortes inferiores
foram os casos Casey, acerca do aborto e Cruzan, acerca da limitação de tratamento em pacientes
inconscientes. USA. Cruzan v. Director, Missouri Department of Health, Op.cit.; USA, Planned
Parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Casey, Op.cit. Para uma discussão dos casos:
DWORKIN, Ronald. O domínio..., Op. cit. passim. DWORKIN, Freedom’s law..., (especialmente os
artigos intitulados Roe in danger; Roe was salved e Do we have a right to die?). Para uma descrição dos
casos e sua metodologia decisória: MARTEL, Devido processo..., p.265-278; 284-287.
705
Para uma publicação nacional sobre o trato do princípio da igualdade pela Suprema Corte dos EUA:
RIOS, Roger Raupp. Princípio da igualdade e discriminação por orientação sexual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002, 192p.
706
USA. Vacco v. Quill. 521 US 793 (1997). Disponível em: http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/
getcase.pl?court=us&vol=000&invol=95-1858.
346
pretendido, mas uma decorrência colateral. De outro lado, o auxílio ao suicídio e a
eutanásia estão escorados na intenção primária de ocasionar a morte707.
707
USA, Vacco v. Quill, Op.cit.
708
USA, Vacco v. Quill, Op.cit.
709
USA, Vacco v. Quill, Op.cit.
347
É mister informar que as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos ora
mencionadas não impedem um estado de adotar leis que permitam o suicídio assistido
ou a eutanásia, como é o caso, e.g., do Oregon. A Corte apenas não considerou que a
tipificação penal do suicídio assistido viola a Constituição, mas deixou espaço para o
debate legislativo sobre modos diferenciados de regrar o tema710.
710
Em 2005, a Suprema Corte deslindou o caso Gonzalez, Attorney General, et al. v. Oregon et al., no
qual foi discutida a constitucionalidade de uma delegação feita pela lei federal de Controle de
Substâncias, que permitia ao Advogado Geral adicionar, remover, ou reestruturar a listagem das
substâncias proibidas. O Advogado Geral editou norma regulatória que, por via oblíqua, visava a impedir
a realização de suicídios assistidos no Estado do Oregon, tal como admitidos pela lei estadual de Morte
Digna. Segundo a regulação, o ato médico de prescrever ou fornecer drogas letais para o suicídio de
pacientes não é admissível e, por isso, proibiram-se a prescrição e o fornecimento das substâncias, sendo,
ainda, previstas penalidades para os médicos que descumprissem tal proibição. Em autêntica decisão
minimalista, a Corte expressamente esquivou-se de analisar a constitucionalidade da lei estadual,
avaliando apenas a constitucionalidade da delegação, segundo padrões largamente utilizados nos julgados
da Corte. Houve menção, também, ao problema federativo na regulação da atividade médica. Cf. USA.
Gonzalez, Attorney General, et al. v. Oregon et al., 200 US 321 (2006) Disponível em:
http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?court=us&vol=000&invo l=04-623. Acesso em: ago.
2006. Sobre o minimalismo judicial, SUNSTEIN, Cass R. One Case At A Time: Judicial Minimalism
on the Supreme Court. Massachusetts: Harvard University, 1999. SUNSTEIN, Cass R. Beyond Judicial
Minimalism. Preliminary draft, 2008. Disponível em:
http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1274200&rec=1&srcabs=1084585
711
A decisão causou impacto na Colômbia não apenas em virtude do polêmico assunto, mas também
porque houve uma discussão acerca do conteúdo da decisão publicada e os debates ocorridos na Sala
Plena. O magistrado Eduardo Cifuentes Muñoz, então vice-presidente da Corte, votara com a maioria na
Sala Plena (gerando uma maioria de 6 a 3). Após a publicação, fez um voto especial dizendo que a
348
Nos votos parcialmente vencidos, um dos tópicos trabalhados para refutar a
decisão da maioria da Corte colombiana foi exatamente a distinção entre a eutanásia e
outras figuras712. Cada um dos magistrados que compuseram a minoria distinguiu
categorias, como eutanásia, distanásia e cuidado paliativo, afirmando a proibição da
distanásia e resguardando a constitucionalidade do cuidado paliativo de duplo efeito.
Em que pese o fato de os magistrados da minoria terem chamado a atenção para a
indisponibilidade dos direitos fundamentais, para os problemas da validade do
consentimento e para a não-suficiência do consentimento para desobrigar terceiros em
matéria penal, bem como para a necessária autocontenção das Cortes Judiciais,
sustentaram que a limitação consentida de tratamento e o cuidado paliativo, mesmo o de
duplo efeito, devem ser admitidos pela legislação713.
decisão final não se coadunava com a discussão, pois a maioria votara apenas impedindo que o artigo
discutido fosse aplicado aos casos de cuidado paliativo de duplo efeito, a fim de evitar a condenação de
médicos que o utilizassem com consentimento dos pacientes. Como ele mesmo disse, sua posição tornou-
se paradoxal, era uma minoria dentro da maioria (o que conduziria a uma maioria de 5 a 4). O incidente
fez com que ele confirmasse sua renúncia ao cargo de vice-presidente. Em razão desses fatos, foi
ajuizado, pelo Arcebispo da Colômbia, um pedido de declaração de nulidade da sentença, que não foi
acatado. Cf. COLOMBIA, Sentencia C-239/97, Op.cit. Sobre o caso, bem como acerca dos
desdobramentos legislativos posteriores, consultar: VILLEGAS, Germán Lozano. La eutanasia activa
en Colombia: algunas reflexiones sobre la jurisprudencia constitucional. 2002. Disponível em:
www.bibliojuridica.org/libros/1/172/9.pdf .
712
Nesses votos, a maioria foi acusada de ter manifestado uma decisão para além dos seus argumentos,
pois a interpretação de que a criminalização da eutanásia é inconstitucional deveria perpassar pela
discussão de alguns temas, como a indisponibilidade dos direitos fundamentais, a genuinidade do
consentimento e sua suficiência quanto a enunciados normativos penais, assuntos sequer ventilados no
voto majoritário. Ademais, em alguns dos votos de salvamento e no de aclaração especial levantou-se a
hipótese de a Corte estar invadindo a esfera legislativa de atuação, carecendo, pois, de legitimidade para
tomar a decisão que tomou. Cf. COLOMBIA, Sentencia C-239/97, Op. cit, p.28-80.
713
Cf. COLOMBIA, Sentencia C-239/97, Op.cit.
714
COLOMBIA, Sentencia C-239/97, Op.cit., p.33. No original: “No puedo admitir la eutanasia,
entendida como conducta positivamente encaminada a producir la muerte de la persona, en ninguna de
sus hipótesis, y menos todavía en la del consentimiento del sujeto pasivo de ella. Situación distinta se
tiene en la llamada distanasia, no prevista en la norma bajo examen. Respecto de ella, estimo que nadie
349
O magistrado Vladimiro Naranjo Lins demonstrou que o constitucionalismo
colombiano aceitava as premissas de indisponibilidade dos direitos fundamentais e a
inviolabilidade do conteúdo essencial de cada um deles. Mesmo assim, apontou a
diferença entre a eutanásia e a distanásia, que, segundo ele, reside na intencionalidade
da conduta:
está obligado a prolongar artificialmente, por días o semanas, la vida de quien ya, frente a la ciencia, no
tiene posibilidades reales de salvarse”.
715
COLOMBIA, Sentencia C-239/97, Op.cit., p.39. “Siendo la muerte un hecho natural con el cual
culmina necesariamente toda vida humana, dilatarlo a toda costa y por cualquier medio, aún a costa del
sufrimiento de quien va morir, ineludiblemente, constituye una acción reprochable, porque atenta contra
la dignidad de aquel a quien se le practica, e incluso contra su integridad personal en ciertos casos. Por
ello, evitar la distanasia es un deber social que debe ser cumplido en salvaguardia de los derechos
fundamentales del moribundo. Aunque el lindero entre la conducta que consiste en evitar una acción
distanásica y la que consiste en practicar la eutanasia puede aparecer en ciertos casos difícil de
precisar, existe de todos modos una diferencia substancial que radica en la intencionalidad del agente:
en efecto, en la conducta eutanásica hay intención de matar, aunque sea por piedad, y en la conducta
evitativa de la distanasia no existe tal intención; es ésta la clave del asunto”.
716
Cf. COLOMBIA, Sentencia C-239/97, Op.cit., p.39-40.
350
posturas juridicamente adequadas. Porém, cumpre ressaltar que as definições
terminológicas por ele formuladas são distintas das até aqui apresentadas, na medida em
que a eutanásia é conceituada amplamente, admitindo tanto a forma passiva como a
ativa, configurando-se a última quando há intenção de causar o evento morte.
719
Antes da Recomendação 1.418, já havia sido aprovada a Convention for the Protection of Human
Rights and Dignity of the Human Being with regard to the Application of Biology and Medicine:
Convention on Human Rights and Biomedicine, conhecida como Convenção de Oviedo, que assegurou o
consentimento informado e mencionou que as diretrizes avançadas devem ser levadas em consideração.
Parliamentary Assembly. COUNCIL OF EUROPE. Parliamentary Assembly. Recommendation 1418
(1999). Protection of the human rights and dignity of the terminally ill and the dying. Disponível
em: http://assembly.coe.int//main.asp?link=http://assembly.coe.int/documents/adoptedtext/ta99/
erec1418.htm#1. COUNCIL OF EUROPE. Parliamentary Assembly. Convention for the Protection of
Human Rights and Dignity…, Op.cit.
720
COUNCIL OF EUROPE, Parliamentary Assembly, Recommendation 1.418 (1999), Op.cit.
352
cautelas para evitar decisões tomadas sob pressão (psicológica, familiar, social ou
econômica) ou sob influência de terceiros. Determinou, ademais, que os Estados-
membros devem respeitar e normatizar os testamentos de vida e as diretrizes
antecipadas721. Por fim, instituiu como eixo interpretativo que, em caso de dúvida
quanto à decisão do paciente, deve-se optar pela manutenção da vida722.
721
COUNCIL OF EUROPE, Parliamentary Assembly, Recommendation 1.418 (1999), Op.cit.
722
COUNCIL OF EUROPE, Parliamentary Assembly, Recommendation 1.418 (1999), Op.cit.
353
se723. Não obteve êxito. Alegou, então, a incompatibilidade tanto da recusa
administrativa como do enunciado normativo penal que tipifica a assistência ao suicídio
com a Convenção Europeia de Direitos Humanos, em razão da garantia do direito à
vida, à privacidade, à liberdade de consciência e do princípio da igualdade724. A Câmara
dos Lordes rejeitou seus argumentos. Após esgotar as vias domésticas sem êxito, ela
endereçou petição individual para a CEDH, que indeferiu seu pedido por
unanimidade725.
723
Inicialmente, a Sra. Pretty solicitou ao Diretor da Promotoria uma decisão de não denunciar seu
marido caso ele a auxiliasse em um suicídio. Diante da Corte inicial, os pedidos da Sra. Pretty foram: (a)
uma ordem cassando a decisão denegatória do Diretor da Promotoria; (b) uma declaração de que a
decisão foi ilegal e que o Diretor da Promotoria não estaria a agir ilegalmente caso concedesse seu
pedido; (c) uma ordem obrigando Diretor da Promotoria a conceder seu pedido, ou, alternativamente; (d)
a declaração de incompatibilidade da Lei do Suicídio de 1961 com os artigos 2 (direito à vida), 3
(proibição da tortura e do tratamento cruel e desumano), 8 (privacidade), 9 (liberdade de pensamento,
consciência e religião) e 14 (igualdade) da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Cf. UNITED
KINGDOM, The Queen on the Application of Mrs. Dianne Pretty…, Op.cit.
724
O Suicide Act de 1961, na seção 2(1), é muito parecido com a norma canadense arguida em Rodriguez.
“A person who aids, abets, counsels or procures the suicide of another, or an attempt by another to
commit suicide, shall be liable on conviction on indictment to imprisonment for a term not exceeding
fourteen years”. ECHR, Pretty v. United Kingdom, Op.cit.
725
ECHR, Pretty v. United Kingdom, Op.cit. Sobre o caso, consultar: WADA, A pretty picture... e,
sobre a CEDH e os padrões decisórios que utiliza, ver: ALSTON; STEINER, International Human
Rights… .
726
A construção argumentativa é interessantíssima e merece leitura acurada. A decisão é muito rica na
menção a casos estrangeiros e internacionais, nos quais figuram, dentre vários, o de Sue Rodriguez,
Ramón Sampedro e Nancy Cruzan. A respeito do conhecido caso Ramón Sampedro, ver:
NOWENSTEIN, Graciela. Spain. In: GRIFFITHS, John; MEYERS, Hellen; ADAMS, Maurice.
Euthanasia and law in Europe. Oxford: Hart Publishing, 2008, p.453-455.
354
mesmo que sua vontade não fosse conhecida mediante diretrizes antecipadas ou
testamentos vitais727.
Para recusar o pedido da Sra. Pretty, fazia-se mister diferenciar a conduta que ela
e seu marido pretendiam realizar daquelas já permitidas pelo direito inglês. Além de
rebaterem um a um os argumentos que a Sra. Pretty construíra à luz da Convenção
Europeia de Direitos Humanos, os Lordes, cada qual em seu voto, remarcaram a
diferença entre o suicídio assistido e a eutanásia, de uma banda, e a limitação de
tratamento (a consentida e a justificada pelos melhores interesses), o suicídio e o
cuidado paliativo, de outra. Em primeiro lugar, no que toca ao suicídio e ao suicídio
assistido, os Lordes lembraram que a descriminalização de uma conduta não cria, por si
só, o direito à proteção estatal para a sua realização. Outrossim, o Estado não possui o
dever de tutelar o suicídio (ou seja, embora o suicídio seja permitido, não há direito
estrito à instituição de competências ou à proteção estatal) tampouco a assistência no
ato; antes, ao contrário, a ação ordenada ao Estado continua sendo a de desestimular e
de prevenir sua ocorrência. Ademais, a assistência ao suicídio traz consigo o
envolvimento de um terceiro na morte alheia, cuja conduta não pode ser desconsiderada
como crime pelo simples fato de a vítima ter consentido, pois o consentimento não é
capaz de gerar justificação ou defesa para a ação intencional de causar a morte
727
O caso Bland, sobre limitação de tratamento a paciente em estado vegetativo persistente exerceu
influência deveras importante em Pretty. Em Bland, com a articulação de diversos argumentos, quatro
dos cinco Lordes que decidiram o caso, cada qual a seu modo, concordaram que a principal diferença
entre a eutanásia, auxílio ao suicídio e a limitação de tratamento reside no característico omissivo ou
comissivo das condutas. Para eles, a limitação de tratamento é uma omissão, e a eutanásia e o auxílio ao
suicídio, ação. A omissão, para o direito penal, somente será relevante na medida em que houver um
dever (ação ordenada) de agir. O ponto nodal, então, repousa em definir qual é a extensão do dever dos
médicos e dos hospitais na manutenção de tratamentos e intervenções. Para os casos nos quais há recusa
do paciente, o dever cessa e a omissão torna-se penalmente desimportante, ao passo que nos casos de
eutanásia ou de suicídio assistido, por exigirem ação, o consentimento não é suficiente para elidir o dever
médico de abster-se da conduta. Para os casos em que não pode haver consentimento, em razão da
ausência de capacidade ou de impossibilidade fática de fornecê-lo, como em Bland, a Câmara dos Lordes
considerou viável a omissão, desde que seguidos certos princípios, especialmente a avaliação dos
melhores interesses do paciente e o resgate da sua autonomia pretérita. As condutas comissivas, ao
contrário, foram reputadas ilegais e ilícitas, e somente o legislador poderia inovar nessa seara. Ao longo
dos votos, percebe-se também que foi salvaguardada a possibilidade de emprego de cuidado paliativo de
duplo efeito, pois, apesar de ser comportamento comissivo, não é a causa primária da morte, é desprovido
da intenção de matar e atende aos melhores interesses dos pacientes. UNITED KINGDOM, Airedale
N.H.S. Trust v. Bland. Op.cit.
355
alheia728. Aqui, a participação de terceiro na conduta comissiva, intencional e
primariamente causadora da morte fez toda a diferença729.
728
Cf. Voto do Lorde Hobhouse of Woodborough. UNITED KINGDOM, The Queen..., Op.cit.
729
Cf. UNITED KINGDOM, The Queen..., Op.cit. Neste caso, influiu o fato de a assistência pretendida
ser de pessoa tecnicamente desqualificada e não a de um profissional da medicina. De qualquer forma, a
conclusão para qualquer das hipóteses foi a mesma.
730
Cf. UNITED KINGDOM, The Queen...., Op.cit.
731
Cf. UNITED KINGDOM, The Queen..., Op.cit. Voto do Lorde Bingham of Cornhill. Ao mencionar
“proibição negativa absoluta” o Lorde está fazendo menção à inteligência que a CEDH firmou sobre o
art.3 da Convenção, pois considera que há um direito absoluto, o de não ser submetido a tratamento
desumano e degradante e, por conseguinte, à tortura.
356
tratamento e o cuidado paliativo, de um lado, e, de outro, os atos cujo único propósito é
destruir a vida”. Ele concluiu que o cerceamento da liberdade ocasionado pela proibição
do suicídio assistido é dotado de proporcionalidade em razão da Convenção Europeia de
Direitos Humanos732.
Na CEDH, uma das defesas do Governo do Reino Unido foi a racionalidade das
diferenças estabelecidas, consideradas conformes a princípios profundamente arraigados
no direito da terra (law of the land) e aos enunciados da Convenção Europeia de
Direitos Humanos. A CEDH não apreciou a distinção em pormenores, tampouco
expressou conclusão peremptória acerca do assunto. Ressalvou, apenas, a diferença
entre o suicídio e o suicídio assistido, uma vez que os juízes não consideraram que o
Reino Unido estivesse oferecendo um tratamento discriminatório injustificável ao não
tipificar criminalmente o suicídio e ao proibir, mesmo para pessoas inábeis fisicamente
de pôr termo à própria vida sem ajuda, o auxílio ao suicídio. Segundo a decisão, o trato
dessas matérias está dentro da margem de apreciação de cada Estado, não existindo
uma ação ordenada nem um dever de os Estados permitirem o auxílio ao suicídio, ainda
que em condições como as da Sra. Pretty733.
732
A aplicação do postulado referiu-se aos arts. 3 e 9 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Cf.
UNITED KINGDOM, The Queen..., Op.cit. Voto do Lorde Hope of Craighead.
733
A CEDH expressamente esquivou-se de decidir sobre o caso holandês, pois ele não estava em pauta
(cases and controversies). Convém frisar que, na Holanda, mesmo a permissão da eutanásia e do suicídio
assistido não fez ruir as distinções aqui reportadas. A respeito, ver: GRIFFITHS; MEYERS;ADAMS,
Op.cit., p.13-255. Sobre a margem de apreciação, ver: ALSTON; STEINER, Op. cit., p.938 e ss.;
DELMAS-MARTY, Mireille. Le pluralisme ordonné. Paris: Seuil, 2006.
357
tratamento particular poderia, inevitavelmente, levar a um resultado
fatal, não obstante, a imposição de tratamento médico, sem o
consentimento de um paciente adulto e mentalmente capaz,
interferiria com a integridade física de uma pessoa de uma
maneira hábil a comprometer os direitos protegidos pelo art. 8o, §
1o, da Convenção. Como reconhecido na jurisprudência doméstica,
uma pessoa pode exigir exercer a escolha de morrer mediante recusa
em consentir com tratamentos que poderiam ter o efeito de prolongar
a sua vida734.
Do exposto, depreende-se que no Reino Unido vigora notória distinção entre os
institutos ora estudados, cada qual recebendo tratamento jurídico diferenciado. A
posição adotada é semelhante à recomendada pelo Conselho Europeu, à da Suprema
Corte do Canadá, dos EUA e à propugnada por uma significativa gama de bioeticistas e
pela AMM. Compreende-se ainda que a CEDH não objetou a diferenciação. Por fim,
destaca-se que a Câmara dos Lordes referiu expressamente que a descriminalização da
eutanásia ou do suicídio assistido dependeria de atuação do legislativo, ou seja, caberia
ao órgão diretamente responsivo democraticamente legalizar ou não tais práticas.
734
ECHR, Pretty v. United Kingdom, Op.cit. No original: “The extent to which a State can use
compulsory powers or the criminal law to protect people from the consequences of their chosen lifestyle
has long been a topic of moral and jurisprudential discussion, the fact that the interference is often
viewed as trespassing on the private and personal sphere adding to the vigour of the debate. However,
even where the conduct poses a danger to health or, arguably, where it is of a life-threatening nature, the
case-law of the Convention institutions has regarded the State's imposition of compulsory or criminal
measures as impinging on the private life of the applicant within the meaning of Article 8 § 1 and
requiring justification in terms of the second paragraph. 63. While it might be pointed out that death was
not the intended consequence of the applicants’ conduct in the above situations, the Court does not
consider that this can be a decisive factor. In the sphere of medical treatment, the refusal to accept a
particular treatment might, inevitably, lead to a fatal outcome, yet the imposition of medical treatment,
without the consent of a mentally competent adult patient, would interfere with a person's physical
integrity in a manner capable of engaging the rights protected under Article 8 § 1 of the Convention. As
recognized in domestic case-law, a person may claim to exercise a choice to die by declining to consent
to treatment which might have the effect of prolonging his life (see paragraphs 17-18 above. 64. E
prosseguiu: In the present case, although medical treatment is not an issue, the applicant is suffering from
the devastating effects of a degenerative disease which will cause her condition to deteriorate further and
increase her physical and mental suffering. She wishes to mitigate that suffering by exercising a choice to
end her life with the assistance of her husband. As stated by Lord Hope, the way she chooses to pass the
closing moments of her life is part of the act of living, and she has a right to ask that this too must be
respected (see paragraph 15 above)”.
358
é espontânea ou induzida; pode-se, contudo, afirmar que ela foi aceita nos ambientes
jurídicos relatados735.
735
Os conceitos de convergência espontânea e induzida foram tomados de empréstimo de SANDULLI,
Op.cit.
736
Ressalta-se que os argumentos não foram unicamente a semelhança das figuras.
737
Quanto à Holanda e à Bélgica, a informação é segura. Não se pode afirmar o mesmo da Colômbia,
pois houve aprovação de novo Código Penal contrariando as disposições da Corte Suprema. Luxemburgo,
por sua vez, legalizou a eutanásia e o suicídio assistido em lei provisória em 19 de fevereiro de 2008
(proposition de loi sur le droit de mourir em dignité, nº4909), cujas disposições eram debatidas desde
1999. A lei foi confirmada em março de 2009. Todavia, não foram encontrados dados sistematizados
sobre a efetiva situação em Luxemburgo, afora o texto normativo, que não apenas legaliza a eutanásia e o
suicídio assistido, como os regula e cria mecanismos de fiscalização. LUXEMBURGO. Loi du 16 mars
2009 relative aux soins palliatifs, à la directive anticipée et à l’accompagnement en fin de vie. Memorial.
Journal Officiel du Grand-Duché de Luxembourg. Disponível em: http://www.legilux.public.lu/leg/
a/archives/2009/0046/a046.pdf#page=7.
359
participação de diversos segmentos sociais, incluindo expertos em várias disciplinas
para debater o tema e traçar conclusões, de per se já dignas de nota).
738
É neste último que se situam as hipóteses de paternalismo jurídico justificado quanto a intervenções
pontuais em indivíduos cuja agência não é plena, como os alcoolistas, adictos, etc.
360
(DV(a)), saindo o sujeito da posição de direito estrito e os destinatários do
consentimento da posição de dever. Havendo a modificação, qual a nova estrutura
relacional? Três alternativas se mostram: (a) passam os destinatários à posição de
titulares de um direito estrito de comportar-se de forma direcionada a pôr fim à vida do
consentente, que ficará na correlata posição do dever de ser morto; (b) passam os
destinatários à posição de privilégio, sendo permitido comportar-se de forma
direcionada a pôr fim à vida do consentente, que ficará na correlata posição de não-
direito; (c) passam os destinatários à posição de dever e o consentente à de direito
estrito. A vantagem de se optar por (b) está na revogabilidade do consentimento a
qualquer tempo, vantagem que também se apresenta em (c) mediante manifestação
unilateral. Se o consentente desistir, quaisquer que sejam os seus motivos, modificará
novamente as posições mediante manifestação. Porém, a alternativa (a) também
apresenta a possibilidade de revogação, mediante cláusula expressa. Acredita-se, pela
peculiaridade do bem tutelado, que o mais adequado seria a alternativa (b), ou, no
máximo, a alternativa (c), pois não haveria possibilidade de criação de deveres para o
consentente, estando, assim, a possibilidade de um dever de ser morto (a) de plano
excluída.
361
se confundir, pois a chave para sua estruturação está unicamente no consentimento
genuíno do titular do direito à vida ou a ele reconduzível, não havendo outras
justificações substantivas para a formação da posição, tampouco é ela obtenível por
outras justificações. Então, a posição formar-se-ia se e somente se houvesse
consentimento genuíno do titular. Além do mais, a posição não se estende para cobrir
condutas negligentes e imprudentes ameaçadoras da vida.
362
prolongamento e de manutenção de vida, ou seja, o titular não dispõe das posições
subjetivas de direito fundamental em jogo ou dispõe limitada e seletivamente quanto a
intervenções médicas (integridade física, privacidade, liberdades). Já a disposição
acontece quanto a posições subjetivas do direito à vida, pois o indivíduo deixa as
posições de direito estrito positivo a que outros indivíduos comportem-se de forma
designada a salvar-lhe ou manter-lhe a vida e de forma que auxiliem a salvar-lhe ou
manter-lhe a vida (DV(c) e DV(e)). Nesse caso, as alternativas que se formam são as
seguintes: (a) direito estrito para o destinatário do consentimento e dever para o
consentente; (b) privilégio para o destinatário do consentimento e não-direito para o
consentente; (c) direito estrito para o consentente e dever para o destinatário do
consentimento (posição análoga à DM(c), excluídas as condutas negligentes e
imprudentes). Na recusa de tratamento em sentido amplo, assim como na RSV, na NSV
e na ONR, tem-se as mesmas disposições (estruturalmente) que na LCT. Mais uma vez,
reputa-se inadequada a alternativa (a), pois cria novos deveres para o titular, não se
conformando ao direito à vida. A posição (c) é criada se e somente se houver
consentimento genuíno do titular ou a ele reconduzível.
É preciso ter em conta que a aceitação jurídica de cada uma das práticas é
diversa e depende de diferentes fatores, como asseverado anteriormente. Todavia, em
qualquer delas, se reconhecida a possibilidade de disposição das posições subjetivas do
direito à vida, haverá implicações diante do Estado. Em primeiro lugar, os indivíduos a
quem for reconhecida a possibilidade poderão ser titulares do direito estrito à
instituição de competências, pois elas se mostram necessárias para a modificação de
posições jurídicas subjetivas do direito à vida, ou seja, sua institucionalização é
condição sine qua non. Em segundo lugar, poderão decorrer direitos a ações positivas
normativas e fáticas por parte do Estado, com vistas a assegurar as possibilidades de
disposição. Em terceiro lugar, poderá haver imunidades diante do Estado, que se
encontra na posição de não-competência para interferir em determinadas posições e
suas modificações.
363
Feito um breve mapeamento da disposição de posições subjetivas de direitos
fundamentais no contexto da morte com intervenção, passa-se ao estudo específico do
tema no ordenamento jurídico brasileiro. Como foi adiantado, sustentar-se-á que a LCT
é justificável diante da ordem constitucional vigente, cabendo o reconhecimento das
disposições de posições subjetivas do direito à vida que ela acarreta.
364
com uma causa especial de diminuição de pena (privilegiadora)739. São distintos, tão-
somente, do auxílio ao suicídio, também conduta criminosa.
739
Sobre a doutrina tradicional, a título exemplificativo, citam-se palavras de Mirabete: “A motivação do
crime de homicídio pode fazer com que se caracterize o homicídio privilegiado. Atuando o agente
motivado por relevante valor social, que diz respeito aos interesses ou fins da vida coletiva (humanitários,
patrióticos etc.), ou moral, que se refere aos interesses particulares do agente (compaixão, piedade, etc.)
praticará um homicídio privilegiado. A eutanásia (ação ou omissão que causa a morte, com a finalidade
de evitar a dor) e a ortotanásia (em que se ministram remédios paliativos e se prevê acompanhamento
médico, presença amiga e conforto espiritual até o óbito) têm sido reconhecidas como homicídio
praticado por relevante valor moral, já tendo sido considerada lícita, em certas circunstâncias, p.ex., na
Corte Constitucional da Colômbia”. Essa visão foi corroborada na Recomendação 01/2006, da lavra do
Procurador da República Wellington Divino Marques de Oliveira, que considerou a normativa do CFM
apologia ao crime e recomendou sua não-publicação. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código Penal
Interpretado. 4. ed. São Paulo, Atlas, 2003. E também: CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal.
Parte Especial. v.2. São Paulo: Saraiva, 2003, p.34. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito
Penal. Parte Especial. v.2. São Paulo: Saraiva, 2003, p.58. Sobre as privilegiadoras e qualificadoras,
SANTOS, Juarez Cirino. A moderna teoria do fato punível. 4. ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005. Mencionando a posição tradicional, sem a ela aderir: DODGE, Raquel Elias Ferreira.
Eutanásia: aspectos jurídicos. Bioética, Brasília: Conselho Federal de Medicina. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/revista/ bio1v7/eutaspectos.htm. BRASIL, Ministério Público Federal,
Recomendação 01/2006 - WD – PRDC, Op.cit.
740
Constrangimento ilegal: “Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou
depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei
permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa. […] § 3º –
Não se compreendem na disposição deste artigo: I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o
consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;
II – a coação exercida para impedir suicídio”. BRASIL, Código Penal, Op.cit. [sem grifos no
original].
365
profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condição de sujeito, em
especial de sujeito do consentimento, do enfermo. Ainda que os médicos não mais
estejam vinculados deontologicamente a esse vetusto modelo de relação com o enfermo,
o espectro da sanção pode levá-los a adotá-lo. Não apenas manterão ou iniciarão
intervenções recusadas, geradoras de muita agonia e padecimento como, por vezes,
adotarão algumas não recomendadas pela boa técnica, por sua desproporcionalidade ou
extraordinariedade. A arte de curar e de evitar o sofrimento se transmuda, então, na arte
de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condições. Não são apenas as
posições subjetivas de direitos fundamentais do paciente que são agredidas. Posições
subjetivas da liberdade de consciência e de atuação profissional dos profissionais da
saúde podem também estar em xeque.
Quanto ao cuidado paliativo de duplo efeito, a situação é ainda pior, por razões
notórias. Se um médico for autorizado pelo enfermo, mediante consentimento genuíno,
a lançar mão dessa técnica, poderá abreviar seu tempo de vida. Se o mundo jurídico não
oferecer amparo seguro a essa ação, o temor de cometer um crime pode ensejar o uso de
dosagens medicamentosas menores do que o necessário para aplacar o imenso
sofrimento físico e psicológico daqueles que estão no leito de morte.
366
último posicionamento, contudo, às vezes é acompanhado da ressalva quanto ao perigo
de vida, aceitando-se a recusa de intervenções médicas apenas quando ela não implicar
risco à vida do paciente. Esta posição ganha escora em uma das leituras do Código de
Ética Médica ainda vigente: o art.56 é interpretado no sentido de impedir a limitação
consentida de tratamento, pois ela acarretaria perigo de vida741.
741
Eis o texto do Código de Ética Médica vigente: “É direito do médico: Art. 28 – Recusar a realização
de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”. E
ainda: “É vedado ao médico: Art. 45 – Deixar de cumprir, sem justificativa, as normas emanadas dos
Conselhos Federal e Regionais de Medicina e de atender às suas requisições administrativas, intimações
ou notificações, no prazo determinado. [...] “Art. 56 – Desrespeitar o direito do paciente de decidir
livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de
vida”. O texto recebe duas interpretações opostas. Por um prisma, sustenta-se que o art.28 oferece guarida
ao médico que, por dever de consciência, respeita a autonomia do paciente e não ministra tratamentos
desproporcionais, extraordinários ou contrários à boa técnica. Na mesma esteira, a expressão iminente
perigo de vida, presente no art.56, é tomada como aplicável aos casos emergenciais e não aos casos de
prolongamento da vida sem consentimento do enfermo. Por outro prisma, diz-se que o art.56 impede a
limitação de tratamento, pois ela acarretaria perigo de vida. Nos temas: NERY; NERY, Op. cit., p.160.
RIBEIRO, Autonomia..., p.1750. TEPEDINO, Código Civil interpretado..., p.40-43. BRASIL. CFM.
Código de Ética Médica. Resolução CFM no 1.246/88, de 08/01/1988. (atualizada). Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br /index.asp?opcao=codigoetica&portal.
742
No Estado de São Paulo, vigora a Lei Covas (assim intitulada em razão do ex-Governador Mário
Covas, que afirmou sancioná-la como Governador e como paciente): “Artigo 2o – São direitos dos
usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo: VII – consentir ou recusar de forma livre,
voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem
nele realizados; XXIII – recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida;
XXIV – optar pelo local de morte”. Com redação análoga, existem as seguintes leis estaduais: a Lei no
3.613/2001, do Estado do Rio de Janeiro, a Lei no 12.770/2005, do Estado de Pernambuco, a Lei
no2.804/2001, do Distrito Federal. No Paraná, o texto legal (Lei no 14.254/2003) é ainda mais explícito
e tem a virtude de excepcionar as situações de emergência e de proteger os usuários contra termos de
consentimento abrangentes: “São direitos dos usuários: XII – consentir ou recusar procedimentos
diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados e deve consentir de forma livre, voluntária,
esclarecida com adequada informação e, quando ocorrerem alterações significantes no estado de saúde
inicial ou da causa pela qual o consentimento foi dado, este deverá ser renovado, com exceção dos casos
de emergência médica; XIV – revogar o consentimento anterior, a qualquer instante, por decisão livre,
consciente e esclarecida, sem que lhe sejam imputadas sanções morais ou legais; XXIX – recusar
tratamento doloroso ou extraordinário para tentar prolongar a vida; XXX – a ter uma morte digna e
serena, podendo ele próprio (desde que lúcido) ou a família ou o responsável, optar pelo local de morte”.
O enunciado normativo mineiro (Lei no 16.279/2006) é mais restritivo e não menciona a opção pelo local
da morte, mas ainda pode ser interpretado no sentido de permitir a limitação consentida de tratamento, em
virtude da menção à recusa de tratamentos extraordinários ou dolorosos: “VII - consentir ou recusar, de
forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, ser submetido a procedimentos
diagnósticos ou terapêuticos, salvo em caso de iminente perigo de vida; XX - recusar tratamento
doloroso ou extraordinário”.
367
Os enunciados normativos antagônicos criam um terreno arenoso, um ambiente
de insegurança jurídica, tanto para os profissionais e estabelecimentos de saúde como
para os pacientes e familiares. Há um autêntico emaranhado normativo, cujas cores
kafkianas são acentuadas pelas interpretações drasticamente divergentes, tanto do
sistema como de cada grupo de enunciados normativos. O resultado é um cenário de
absoluta insegurança e de incerteza jurídicas.
743
BRASIL. CFM. Resolução no1.805/2006. D.O.U., 28 nov. 2006, Seção I, p. 169.
368
nunca lhe pertenceu”. O Procurador afirmou a indisponibilidade do direito à vida, e
também entendeu que os pacientes terminais e seus responsáveis estariam em uma
situação de tamanha hipossuficiência que caberia, inclusive, retirar-lhes a capacidade
civil para tomar decisões quanto às intervenções médicas. Ele rejeitou, portanto, a
pacientes muito enfermos, cujo prognóstico é a morte, e a seus familiares, a condição de
sujeitos do consentimento:
369
quando trata dos absolutamente incapazes, no estatuto do idoso, na lei
de proteção aos deficientes744.
Adiante as premissas e os argumentos serão discutidos. Por ora, no entanto, faz-
se o registro de que a Resolução CFM nº1.805/2006 foi suspensa por decisão judicial.
Na decisão que acolheu o pedido de antecipação de tutela, entendeu o juiz de primeiro
grau pela existência de “aparente conflito entre a resolução questionada e o Código
Penal”745. A decisão marca o encontro, no Brasil, de dois fenômenos dos tempos atuais:
a medicalização e a judicialização746 da vida. Ambos potencializados por um terceiro
fenômeno: a sociedade espetáculo, em que os meios de comunicação transmitem, em
tempo real, ao vivo e em cores, dramas como os de Terri Schiavo, Hannah Jones,
Ramon Sampedro, Sue Rodriguez, Piergiorgio Welby, Eluana Englaro747.
744
BRASIL, MPF, ACP nº2007.34.00.014809-3, Op.cit.; BRASIL, MPF, Recomendação nº01/2006 –
WD – PRDC, Op.cit.
745
Inteiro teor da decisão em BRASIL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, ACP
nº2007.34.00.014809-3, disponível em: www.df.trf1.gov.br/.../2007.34.00.014809-3_decisao_23-10-
2007.doc.
746
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de
Direito do Estado, Rio de Janeiro, n. 13, 2009.
747
Nos dois últimos casos, houve sérias manifestações de conselhos de médicos e de comitês de bioética
acerca da excessiva publicidade e exposição dos pacientes. Cf. MORATTI, Op.cit., p.404; 411-413.
370
paliativos, com efeitos semelhantes aos da Resolução nº1.805/2006, porém com termos
e critérios diferenciados748.
748
O novo Código de Ética Médica, no segundo considerando, torna manifesta a noção de valorizar a
autonomia do paciente: “CONSIDERANDO a busca de melhor relacionamento com o paciente e a
garantia de maior autonomia à sua vontade”. O texto reafirma a possibilidade de limitação consentida de
tratamento, mas em termos diferentes da Resolução CFM 1.805/2006: “XXI – No processo de tomada de
decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará
as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos,
desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. XXII – Nas situações clínicas irreversíveis
e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos
desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos
apropriados”. Apesar de o considerando referir-se à valorização da autonomia do paciente, percebe-se
que, quanto à recusa de tratamento em sentido amplo, ela foi tratada em plano quase secundário, uma vez
que a palavra é aceitará e uma das ressalvas é bastante ampla, pois, provavelmente, caberá ao médico
decidir quais escolhas são “adequadas ao caso”. Além disso, na terminalidade da vida, a decisão saiu das
mãos dos pacientes e representantes e passou aos médicos, pois eles terão de evitar procedimentos
desnecessários. Colabora para a ambiguidade do texto a redação do art.14, que torna vedado, de modo
genérico, realização de procedimentos desnecessários. Ademais, o art.22 exige consentimento informado,
ressalvando o risco iminente de morte. Já o art.24 veda ao médico “deixar de garantir ao paciente o
exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua
autoridade para limitá-lo”. Para retocar o quadro, há o art.41, que veda ao médico “abreviar a vida do
paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo Único. Nos casos de doença
terminal e incurável, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender
ações diagnósticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do
paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. A princípio, o que se pode dizer é
que o novo CEM não tornou mais clara a situação da limitação consentida de tratamento, pois admite
divergências interpretativas similares às do Código anterior. Além disso, não valorou a decisão dos
pacientes e representantes em situações de irreversibilidade e de terminalidade. Parece que o novo CEM
brasileiro incorreu em dois pontos muito criticados na literatura estrangeira, especialmente sobre a
legislação francesa: ao tratar do final da vida, empoderou os médicos, permitindo-lhes decidir o que “é
melhor para o caso”, o que é “inútil” e o que é “desnecessário”. Outrossim, fez uso da expressão levando
sempre em consideração a vontade expressa do paciente. Ora, levar em consideração não é o mesmo que
estar na posição de obedecer à manifestação do paciente, ressalvadas hipóteses justificadas. Por
enquanto, o novo CEM não aprimora a situação jurídica do final de vida, precipuamente quanto aos
direitos dos pacientes. BRASIL. CFM. Código de Ética Médica. Resolução nº1.931/2009. Disponível
em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2009/1931_2009.htm. Sobre a legislação
estrangeira, GRIFFITHS; MEYERS; ADAMS, Op.cit., especialmente o Capítulo sobre a França, p.371-
394.
371
Sabe-se que muitos países estão estudando com seriedade a construção de políticas
públicas sobre a eutanásia e o suicídio assistido. Porém, tal é, em geral, a agenda dos
chamados países do hemisfério norte, compreendidos aí a América do Norte e aqueles
que compõem a União Europeia. É significativo que em boa parte desses países as
práticas de LCT e de cuidados paliativos já estejam em grande medida assentadas,
restando apenas alguma margem para a discussão de seus contornos exatos e de quais
condutas fazem parte de cada um desses institutos. Dada a admissão das práticas, o
reconhecimento e a recomendação dos cuidados paliativos, inclusive os de duplo efeito,
há políticas públicas assaz desenvolvidas no tema. Sobretudo, há um manancial
sistematizado de dados empíricos nacionais e regionais (sistema europeu) sobre a LCT e
os cuidados paliativos, que permeiam desde o mapeamento da opinião pública, de
categorias de profissionais da saúde, pacientes e cuidadores, como também os tipos de
LCT, suas formas jurídicas, o papel desempenhado pelos testamentos vitais e pelas
diretrizes antecipadas. Há, ainda, um contínuo aprimoramento regulatório, angariado
mediante grupos de trabalho interdisciplinares nos mais diversos ramos governamentais
e também mediante exames comparativos. Considerando a sedimentação das práticas e
os níveis de informação, a discussão sobre a admissibilidade jurídica da eutanásia e do
suicídio assistido é realizada com mais propriedade e segurança. Há maior certeza
quanto a pontos relevantes para que as condutas possam, eventualmente, ser postas em
prática, como: (a) a oferta de bons sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor e
da depressão; (b) a educação dos profissionais da saúde; (c) a informação do público;
(d) a operacionalização e a fiscalização das salvaguardas do consentimento; (e) a
regulamentação e o papel dos testamentos vitais e diretrizes antecipadas, dentre outros
fatores relevantes749.
Poder-se-ia dizer que os dados empíricos lá obtidos são de valia para o caso
brasileiro. Os empíricos, só em termos de comparação. Os dados sobre a morte, o
morrer e a morte com intervenção dependem de diversas variáveis, como: (a) a cultura
subjacente às práticas médicas; (b) os sistemas de prestação de serviços de saúde
adotados; (b) as causas mais frequentes de morte; (c) os números reais de mortes
postergadas; (d) as características da população em termos de envelhecimento, dentre
749
Para uma abordagem profunda e abrangente sobre dados europeus no tema morte com intervenção,
GRIFFITHS; MEYERS; ADAMS, Op.cit. São também relevantes os dados colhidos e analisados em
iniciativas do Conselho Europeu, particularmente os Relatórios preparados por Roberto Andorno e pelo
Dr. Hacpille. Disponíveis em: http://www.coe.int/t/dg3/healthbioethic/Activities/09_Euthanasia_en/
default_en.asp
372
outros750. Já os elementos jurídicos, o percurso regulatório, os erros e acertos, podem ser
potentes auxiliares na construção de políticas públicas brasileiras, sem mimetismo, é
claro.
750
Por exemplo, um dado que demonstre que um alto percentual de mortes ocorre em ambiente hospitalar
não significa que tenham sido mortes postergadas em atos de distanásia. É preciso separar o contingente
de mortes advindas de situações abruptas daquelas prolongadas. No Brasil, o DATASUS contém dados
relevantes sobre a mortalidade e a morbidade, sem contar com dados sobre a limitação consentida de
tratamento e os cuidados paliativos. Além disso, há pesquisas realizadas em alguns hospitais ou setores
que ofertam um panorama da LCT e dos cuidados paliativos naquele local, sem que se possa generalizar
os resultados obtidos para todo o país. Anota-se que muitas pesquisas, do DATASUS inclusive, são feitas
com apoio primário nos prontuários médicos. Em sendo a limitação consentida de tratamento e os
cuidados paliativos condutas cuja licitude é duvidosa, pode ser duvidoso também seus registros em
prontuários.
751
KELSEN, Teoria Pura..., Op. cit., p.366 e ss.
373
típico; (a.5) a posição de garantidor de quem se omite; (b) tipo subjetivo: (b.1.) dolo;
(b.2) imprudência752.
752
SANTOS, Op. cit., p.131-132. Texto reproduzido quase integralmente, com leves alterações.
753
SANTOS, Op. cit., p.132 e ss.
754
Sobre o critério da causalidade e suas controvérsias, ver SANTOS, Op.cit., p.126-127. No âmbito
filosófico, quem traz à tona a discussão com propriedade é BRODY, Withdrawal of …, p.90-103.
374
bem-estar do enfermo. Porém, na omissão imprópria, a doutrina tem se posicionado do
seguinte modo:
755
SANTOS, Op. cit., p.139-140.
756
BRASIL, Código Penal, Op.cit., Art. 13, §2o.
757
BRASIL. Lei no 3.268, de 30 de setembro de 1957 e BRASIL. Lei nº11.000, de 15 de dezembro de
2004. Disponíveis em: www.senado.gov.br.
375
menos seu direito, manter ou iniciar tratamentos dessa índole compulsoriamente. Não se
trata, sobremaneira, de oferecer o direito aos membros da equipe de saúde de decidirem
manter ou não um tratamento, mas de instituir o dever de salvaguardar a decisão
(consentimento/recusa genuínos) dos pacientes e responsáveis.
758
Sobre a interpretação conforme a Constituição, sua aplicação, possibilidades e limites no Direito
brasileiro, BARROSO, Luís Roberto, Interpretação e aplicação..., p.188-196.
376
cuidados paliativos759. Para tanto, serão empregadas as teses de aplicação expostas no
Capítulo 3, costeadas pelas teses de justificação apresentadas no Capítulo 2.
Inicialmente, é necessário verificar qual é o bem jurídico que a lei penal protege.
No caso em tela, obviamente, trata-se da vida humana. O legislador lança mão do seu
dever de proteção das posições subjetivas do direito à vida criminalizando as condutas
que conduzem à morte alheia, de modo consumado ou tentado (art.121 e ss. do C.P.)760.
A ninguém ocorre sugerir que tais textos legais não tenham sido recepcionados pela
Constituição de 1988. Páginas atrás, sustentou-se, como linha de princípio, a
justificação da indisponibilidade de posições subjetivas do direito à vida, ou seja, a
insuficiência do consentimento genuíno para afastar os enunciados normativos penais
cunhados no intuito de proteger o direito à vida.
759
Sobre a expressão filtragem constitucional e o sentido de sua aplicação, ver: SCHIER, Filtragem
constitucional..., e SCHIER, Novos desafios... .
760
Sobre as funções do direito penal na proteção dos direitos fundamentais, ver: PULIDO, O princípio
da..., p.815 e ss.
761
Nesse sentido, ver HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional (selección). Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1983 (Coleção “Estudos Constitucionales”), p.43 e ss.
377
geral – indisponibilidade das posições subjetivas do direito à vida –, quando aplicada a
um sem-número de casos distintos, atinge resultados plausíveis e acordes com a
proteção dos direitos fundamentais e da vivência social, quando aposta neste outro
extremo, composto por um grupo bem seleto de casos, torna-se perversa. Começam a
adquirir grande peso outros direitos e metas sociais, como a liberdade (livre
desenvolvimento da personalidade), a privacidade, a integridade física, a prevenção do
sofrimento, o bloqueio de tratamentos desumanos ou degradantes, a dignidade como
autonomia e a memória póstuma. Os direitos dos profissionais da saúde também
assumem maior peso nessa situação-limite.
762
O exercício ponderativo ora realizado toma por base os enunciados normativos da CF/88, muitos
argumentos expostos em textos pró e contra a LCT e, principalmente, os casos acima expostos.
378
crenças e opiniões, desenvolvendo livremente a sua personalidade, sem a intrusão
indevida do Estado. Um paciente, quando consente genuinamente na limitação de
tratamento, exerce sua liberdade e recusa dispor de posições subjetivas usuais nas
intervenções médicas. Se optar pelo tratamento pleno, também exerce sua liberdade.
Querer viver os momentos finais da existência naturalmente, na companhia dos seus,
em um estabelecimento de saúde ou em seu lar é certamente um exercício de posições
subjetivas de direitos de liberdade garantidos constitucionalmente. Ser tratado
compulsoriamente, sem chances de cura, com geração de intenso sofrimento, significa
interferência intensa em posições subjetivas dos direitos de liberdade do sujeito. Deve-
se lembrar que a internação compulsória interfere com a liberdade de ir e vir. (a.2) Dos
médicos e profissionais da saúde. Ao adentrar em uma determinada carreira, adere-se
a um conjunto deontológico típico, especialmente em profissões como a medicina, a
enfermagem, a psicologia. O profissional não perde a sua liberdade de consciência, mas
a tem diminuída em muitos aspectos, pois deve comportar-se segundo o codex da
profissão. Em momentos específicos, pode recusar-se, por imperativo de consciência, a
realizar ou a omitir ações, desde que os direitos do paciente mantenham-se
assegurados763. Uma das regras de ouro das profissões da saúde, nacional e
internacionalmente reconhecida, é o respeito às decisões do paciente (no jargão mais
empregado, a autonomia). Outros princípios são a não-maleficência e a atenção aos
melhores interesses do enfermo. Obrigar um indivíduo a receber tratamento (em alguns
casos, com uso da força física) que não apresenta possibilidades de curar, causa mais
malefícios do que benefícios e duvidosamente atende aos seus melhores interesses. Tal
763
Os profissionais da saúde podem recusar-se a realizar ou a omitir certos comportamentos, por
imperativos de consciência. Tanto o CEM vigente como o novo CEM garantem a objeção de consciência
(que pode ser de cunho religioso, político, ideológico...). A CF/88 assegura a objeção de consciência em
seu art.5º, VIII. Entende-se que o dispositivo abrange os profissionais da saúde com aplicação direta e
imediata, embora existam interpretações restritivas no sentido de ser necessária lei traçando as prestações
alternativas, indicando, também, que categorias profissionais estariam excluídas, uma vez que a redação é
“obrigação a todos imposta”. Entende-se, ainda, que somente poderão os profissionais ser compelidos a
atuar contra os ditames de suas consciências se não houver outro modo de atender ao paciente. Os direitos
do paciente revelam-se de maior peso nesses casos, uma vez que médicos e profissionais da saúde
aderem, por consentimento, a um regramento profissional específico, especialmente quando forem
servidores públicos ou atuarem no SUS. No âmbito do SUS, crê-se que se trata de questão administrativa
assegurar que existam membros do corpo clínico que realizem (ou omitam) práticas permitidas e
asseguradas pelo sistema. A discussão do assunto, no Brasil, ocorre quanto ao aborto legal. A respeito,
ver: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op. cit., p.385-429. ANDALAFT NETO, Jorge. Objeção de
consciência: Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia. Violência sexual e
interrupção da gestação prevista em lei: manual de orientação. São Paulo: Ponto, 2004. BRASIL.
Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas.
Área Técnica de Saúde da Mulher. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência
sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 2. ed. atual. e ampl. Brasília: Ministério da
Saúde, 2005.
379
atitude atinge em cheio a liberdade de consciência dos profissionais da saúde, pois eles
são compelidos a desgarrar-se da deontologia profissional, muitas vezes à revelia dos
ditames das suas consciências. Aqui a interferência também é intensa.
380
intrusão não consentida em corpo alheio, muitas vezes mediante procedimentos
dolorosos. A intervenção forçada representa a imposição de passar por situações
degradantes e desumanas não decorrentes diretamente da enfermidade ou lesão, mas do
alongamento do processo de morrer. Mais uma vez, a interferência é intensa.
382
de profundidade, pois ela se mostra elementar em muitas construções argumentativas
contrárias à LCT, à eutanásia e ao suicídio assistido. Segundo John Griffiths, Hellen
Meyers e Maurice Adams, o argumento possui duas versões: (d.1) conceitual, que
supõe que ao se permitir uma conduta cujo princípio justificador também justifique
outra conduta, a força da lógica exigirá a permissão da segunda. Para os autores, a
noção parece refletir a falácia “one law, one principle”764, quando aplicada à LCT e à
eutanásia, uma vez que a primeira é justificada pela combinação da autonomia com a
beneficência e a segunda pela autonomia; (d.2) empírico: o argumento da ladeira
escorregadia apoia-se em dados empíricos generalizáveis. Há dois tipos: (d.2.1)
variantes de controle jurídico: a conduta que se quer evitada não poderá, por
problemas práticos – empiricamente comprovados –, ser evitada se a outra conduta for
permitida; (d.2.2) variante de modificação legal e moral: com a permissão de uma das
condutas, cedo ou tarde mudará a aceitação da outra, ou seja, modifica-se um arcabouço
moral765.
764
GRIFFITHS; MEYERS; ADAMS, Op. cit., p. 513-520.
765
GRIFFITHS; MEYERS; ADAMS, Op. cit., p.518. Como afirmam os autores, não se trata de sustentar
que as pessoas serão inábeis a distinguir comportamentos, mas que elas de fato simplesmente não o farão.
383
Outro ângulo do mesmo fim é o dever estatal de proteção do direito à vida. Em
qualquer sistema jurídico encontram-se esquemas institucionais engendrados para a
proteção do direito à vida, quer mediante controles preventivos e promocionais, quer
repressivos. Em sendo um direito delicado, os esquemas protetores não podem ser
frágeis nem correr o risco de virem a ser muito fragilizados. Assim, preservar os
sistemas estatais de proteção ao direito à vida é muito relevante, admitindo-se a
proibição de matar e a insuficiência do consentimento de uma vítima de homicídio.
Porém, na LCT, os médicos não matam, nem os pacientes suicidam-se, nem são
auxiliados a suicidar-se. Simplesmente permite-se que o inevitável processo de morrer
siga seu curso, em situações bastante insulares, que admitem fiscalização e controle. Se
o temor é que a abertura venha a quebrantar a rigidez do esquema, está-se em face de
outros dois fins elencados: a proteção dos vulneráveis e hipossuficientes, sobretudo os
não-consententes (proteção de direitos de terceiros), e o perigo da ladeira escorregadia,
que serão examinados logo adiante.
384
normalmente existe entre os profissionais da saúde e os enfermos e, muitas vezes, de
assimetrias sociais, econômicas e culturais. Ser hipossuficiente significa realmente ser
destinatário de maior proteção. Entrementes, ser destinatário de maior proteção não
pode ser sinônimo de ter seus próprios direitos aniquilados ou muito constritos. O meio
que as interpretações proibitivas da LCT preconizam para a proteção dos direitos dos
vulneráveis dá-se à custa da quase-total supressão desses mesmos direitos, das
ampliações do sofrimento e da própria condição de vulnerabilidade. Ainda que se
entenda que há nexo de causalidade entre tutelar os vulneráveis e o meio que os priva de
seus direitos, como forma de proteger os não-consententes, esse nexo justificaria a
medida adotada apenas na séria impossibilidade de adotar-se outro meio menos lesivo.
385
hipossuficiência, como se passa com pessoas com deficiências físicas, alguns
transtornos mentais, idosos, pessoas em situação de miserabilidade, economicamente
frágil, grupos discriminados, etc. Em parcos casos, a vulnerabilidade é razão de se
comprimir intensamente posições subjetivas de direitos fundamentais dos próprios
vulneráveis ou de retirar-lhes o status de agentes ostensivos e de sujeitos do
consentimento. Usualmente, é apenas nos casos em que as habilidades da agência estão
ausentes é que há razões para excluir indivíduos adultos da categoria sujeitos do
consentimento. Presentes as habilidades da agência, a questão central para a proteção
dos vulneráveis e hipossuficientes é: há mecanismos viáveis para salvaguardar a
genuinidade do consentimento, garantindo que a escolha que fazem é livre e informada?
No capítulo anterior, buscou-se demonstrar que critérios e padrões podem e são
estabelecidos nos mais variados ramos jurídicos, segundo as consequências da escolha,
os sujeitos da relação de base, os níveis de assimetria informativa, as possíveis pressões
ou influência externas.
Meios menos lesivos existem e podem mostrar-se inclusive mais eficazes. Para
proteger os pacientes em estado terminal contra ingerências médicas ou familiares
indesejadas, pode-se adotar padrões de salvaguarda específicos. Um regramento
detalhado das condutas a serem seguidas por equipes de saúde, instituições hospitalares,
familiares e cuidadores caso o paciente ou seu representante manifeste-se no sentido de
não iniciar ou de não persistir em determinadas intervenções pode assegurar os direitos
tanto dos que escolhem consentir, como dos que não consentem. Na mesma trilha, os
padrões de conduta podem gerar incremento do bem-estar do paciente, do cuidado
médico e, até mesmo, a desistência da recusa em tratar-se.
766
Neste particular reside a falha da Resolução CFM 1.805/2006. A única salvaguarda prevista pelo texto
é a formalização da conduta no prontuário médico. Crê-se que sejam necessários elementos mais
específicos, como o processo de informação, a verificação das condições de saúde e dos tratamentos que
estão sendo ministrados, a avaliação psicológico-psiquiátrica certificadora da liberdade e das habilidades
386
Por tais motivos, afigura-se excessivo simplesmente excluir de plano os
enfermos e seus representantes da categoria de sujeitos do consentimento. Nesse
sentido, dois elementos chamam muita a atenção na ACP. Em primeiro lugar, o
Procurador lançou mão de argumentos paternalistas, perfeccionistas e jurídico-
moralistas quanto à morte com intervenção767. Não é incomum que se tente retirar
agentes ostensivos da categoria de sujeitos do consentimento em nome de argumentos
paternalistas, perfeccionistas e jurídico-moralistas. A partir do conteúdo da escolha
feita, e sem enfrentar substantivamente as razões pelas quais um sistema jurídico
poderia legitimamente proibi-las ou excluí-las, ataca-se a habilidade da agência daquele
que fez a escolha. Em segundo lugar, no trecho acima transcrito, o Procurador, apesar
de pleitear a incapacidade civil dos enfermos terminais conscientes e dos seus
representantes, menciona que “sem uma equipe multidisciplinar a amparar o paciente
[...] IMPRESCINDÍVEL a presença e oitiva prévia do Ministério Público e anuência do
Juízo competente”. Aqui, parece haver duas medidas: (a) com o amparo de uma equipe
multidisciplinar, o paciente consciente voltaria a ser um sujeito do consentimento; (b)
com a supervisão do Ministério Público e do Judiciário, o paciente e/ou seus
representantes legais ou convencionais voltariam a ser sujeitos do consentimento768.
Nota-se que, apesar de sustentar a incapacidade civil dos enfermos e dos seus
representantes no contexto da morte com intervenção, as alternativas que o Procurador
elencou são, justamente, mecanismos de salvaguarda do consentimento, seja por
equipes multidisciplinares (Comitês de Bioética), seja pela judicialização e
ministerialização. Adiante se retornará ao ponto. Por enquanto, retorna-se às finalidades
angariadas pela proibição da LCT.
da agência, a determinação de quem é o representante legal, as formalidades dos testamentos vitais e das
diretrizes antecipadas, além de seu papel quanto à equipe de saúde, dentre outras. Posicionou-se
publicamente nesse sentido o bioeticista brasileiro José Roberto Goldim. À frente o tema voltará à pauta.
767
Supra, Capítulo 2, item 2.3.2.1.
768
Embora seja possível interpretar que não se trata de supervisão da genuinidade do consentimento pelo
MP e pelo Poder Judiciário, mas de decisão pelo órgão judicante, com a participação do MP, segundo os
melhores interesses dos envolvidos, não parece ser este o principal sentido que o Procurador conferiu.
Deixar-se-á esta alternativa de lado, pois ela é admissível, mas, quando for, não se tratará de disposição
de posições subjetivas do direito fundamental à vida.
387
conceito de ética preconizado é o paternalista, que coloca o profissional da saúde em
posição de superioridade em relação ao paciente, permitindo-lhe desconsiderá-lo como
um ser humano completo, como sujeito de direitos e como um sujeito do consentimento.
A medicina e as práticas em saúde visualizadas pertencem ao modelo cartesiano,
calcado na metáfora do relógio, na qual o ser humano é comparado a uma máquina que
deve ser mantida em funcionamento, sem preocupação com seus aspectos pessoais e
psicológicos. Sua função única seria manter a vida, curar a morte, uma medicina de alta
tecnologia que ignora a cultura, a história de vida, as crenças, as convicções e a
liberdade dos pacientes, assim como o próprio sofrimento físico e psíquico ensejado769.
Uma medicina onipotente que está autorizada a atuar a despeito dos direitos
fundamentais.
Por todas essas razões, esse modelo ético é recusado por várias correntes da
bioética, por diversas Associações Médicas e por Organizações de Saúde, nacional e
internacionalmente. O padrão de ética médica hodiernamente veiculado pelos setores
especializados tem por fundamento a dialogicidade da convivência entre os pacientes e
as equipes de saúde, instituindo uma relação fundada na informação, na igualdade, no
respeito pelos direitos do paciente (crenças, tradições, cultura, direitos). O paciente é
visto integralmente, não apenas em seu viés biológico, de corpo-máquina, mas também
na plenitude de sua (finita) condição humana770.
769
A expressão cura da morte é usada por PESSINI, Op.cit. Já as informações sobre o modelo biomédico
estão em: CAMPOS VELHO, Maria Teresa Aquino de. Gestação na adolescência: um marco na
construção de vida do ser-mulher. Florianópolis, UFSC, Tese de Doutorado. 2003.
770
Sobre os modelos básicos de relação médico-paciente, GOLDIM, José Roberto; FRANCISCONI,
Carlos Fernando. Relação Médico-Paciente. Bioética. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/bioetica/relacao.htm.
771
BRASIL, CFM, Resolução 1.805/2006, Op.cit.
388
Então, o que se tem, em primeiro lugar, é um fim estatal altamente questionável
quanto à legitimidade e à possibilidade constitucionais. Abstratamente considerada, a
promoção dos padrões ético-profissionais é um fim constitucionalmente possível.
Porém, há que se ter em conta que para a análise da possibilidade de um fim é preciso
determiná-lo; não se pode lidar apenas com a invocação retórica da ética médica e das
profissões em saúde. A investigação do preenchimento da expressão pela postura
criminalizadora da limitação consentida de tratamento desnuda a opção pelo modelo
paternalista e cartesiano, posição que, senão impossível constitucionalmente, dada a
desconsideração de direitos que acarreta, é dificilmente justificável.
772
Este estilo Espada de Dâmocles de fomentar a eticidade nas relações médico/paciente foi considerado
pobre e deplorável em decisões judiciais do Reino Unido e dos EUA, respectivamente: “Seria, em minha
opinião, um deplorável estado de coisas se nenhum guia autoritativo pudesse ser dado à profissão médica
em um caso como o presente, de modo que um médico fosse compelido ou a agir contra os princípios da
ética médica estabelecidos pelo Conselho Profissional ou a arriscar um processo por homicídio”. E, no
caso californiano, “um processo por homicídio é uma maneira pobre de desenhar um código ético e
moral para médicos que estão encarando decisões concernentes ao uso de equipamentos de ‘manutenção
da vida’ custosos e extraordinários”. UNITED KINGDOM, Airedale N.H.S. Trust v Bland..., Op.cit.
389
da ladeira escorregadia são, no mais das vezes, muito frágeis, haja vista que, ao invés de
criar mecanismos adequados de proteção, simplesmente proíbem uma conduta mediante
compressão de direitos fundamentais. Como afirma Dworkin, o argumento pode levar à
aceitação de um mal conhecido para a prevenção de outro que sequer pode ser real773. A
fragilidade do fim aumenta ao examinar-se o meio escolhido, a criminalização da LCT.
A sustentação de que uma conduta deve ser considerada um injusto penal pela
hipotética e remota possibilidade de conduzir a outras ou de ser desrespeitada carrega
em si dois pontos de contradição: (a) Não se trata de um tipo de mero perigo, como o
porte de arma de fogo, mas de um tipo de resultado. Se existe risco, é de ocorrência da
conduta sem o consentimento, ou com um consentimento não-genuíno, do paciente ou
da presença de eutanásia ou suicídio assistido, condutas que, além de distintas da
limitação consentida de tratamento e sem qualquer elo causal com ela, constituem um
injusto penal autonomamente. Se o médico praticá-las, cometerá um crime774. (b) Se a
criminalização da LCT tem a finalidade de evitar a ladeira escorregadia, é porque parte
do pressuposto de que os médicos e profissionais da saúde tendencialmente
descumprem os enunciados penais e a deontologia profissional. Se as demais condutas
constituem injusto penal e são antiéticas, não se pode pressupor, sem dados, sem
pesquisas empíricas, que os médicos aventurar-se-ão a cometê-las por estarem
autorizados a praticar limitação consentida de tratamento775.
773
Na compreensão de Ronald Dworkin, os argumentos da ladeira escorregadia são péssimos argumentos,
pois a proibição genérica é igualmente tão perigosa, e, além disso, lesa direitos. Para o autor, ninguém
discorda do valor da vida humana, nem aqueles que defendem a eutanásia e o aborto, nem aqueles que
condenam estas práticas. A diferença, segundo Dworkin, está na compreensão diferenciada do que é
respeitar a vida: “No set of regulations can be perfect. But it would be perverse force competent people to
die in great pain or drugged stupor for that reason, accepting a great and known evil to avoid the risk of
a speculative one. In the Cruzan decision discussed above, the Supreme Court held that states must
respect some form of ‘living will’ that allows people to specify in advance that certain procedures not be
used to keep them alive, in spite of the fact that patients can also be coaxed or shamed in signing such
documents”. DWORKIN, Ronald. Freedom’s..., p.133.
774
Os estudos criminológicos têm-se dedicado muito ao direito penal do medo, que caracteriza a
sociedade do risco. Integra o fenômeno o crescimento da rede de criminalização, no quadro
contemporâneo, para proteger contra perigos cada vez mais remotos e abstratos, em uma autêntica
antecipação do momento criminalizador. Nesse clima emocional, a criminalização deixa de lidar apenas
com a afetação ou possibilidade muito próxima de afetação de bem jurídico determinado para incidir
sobre perigos distantes. O argumento do perigo da ladeira escorregadia deve, pois, ser trabalhado com
muita cautela quando se está a lidar com a criminalização de condutas de perigo remoto, sob pena de
transformar a contenção de crimes em um pretexto que conduz a um direito penal máximo. CARVALHO,
Salo de. Anti Manual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 84-93.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; SLOKAR, Alessandro; et al. Direito Penal Brasileiro I.
Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 227.
775
Algumas pesquisas demonstram que a LCT ocorre em hospitais brasileiros, às vezes às claras, com
farta documentação, noutras, às escondidas. Porém, é estranho notar que é árduo encontrar jurisprudência
criminal nos tribunais sobre o tema. Então, o argumento aqui não é a ladeira escorregadia conceitual ou
empírica, na sua variante de controle jurídico, mas a percepção de uma cifra oculta da criminalidade
390
A pesquisa acurada da legitimidade constitucional dos fins almejados e da
adequação e necessidade do meio adotado indica que a conjunção desses aspectos
apresenta-se apenas no que toca ao direito à vida (alínea (a.1), acima). A
proporcionalidade em sentido estrito há de ser operada, pondo-se de um lado o direito à
vida e, de outro, os direitos à liberdade, à privacidade, à inviolabilidade corporal e à
proibição de submissão a tratamento desumano ou degradante, todos de mesma
titularidade.
Da conclusão de que uma conduta não constitui tipo penal punível, não se segue
que seja permitida, nem que seja um direito em sentido amplo sem outras restrições. O
direito penal é a ultima ratio. Condutas não criminalizadas ainda assim podem constituir
um ilícito, ou não serem juridicamente reconhecidas (ou seja, não há instituição de
competências para sua realização, tampouco direito estrito à sua instituição). Por isso,
parte-se para o exame dos enunciados de direito civil aplicáveis à LCT.
776
BRASIL, Código Civil, Op. cit., art.11.
392
houver lei autorizadora. Comentou-se que a doutrina civilista tende a relativizar a
dicção do artigo, reclamando uma leitura constitucionalizada. Aventa-se, inclusive, o
caráter irreal do enunciado normativo e também a sua inconstitucionalidade777.
Fato é que, apesar das críticas, o enunciado normativo segue vigente e sua
inconstitucionalidade não foi declarada, tampouco foi formulada uma interpretação
conforme a constituição pelo STF até o momento. Cumpre, portanto, dedicar-se às
possibilidades interpretativas que se apresentam e, se necessário for, construir uma
proposta quanto à dicção do artigo cotejada à Constituição Federal. Cumpre, também,
analisar o artigo à luz das premissas da tese ora sustentada, cujo centro está na
disposição de posições subjetivas de direito fundamental de cunho marcadamente
pessoal.
Umas das críticas endereçadas ao artigo é a sua irrealidade. Presume-se que ela
signifique que ele não é cumprido ou que não há como cumpri-lo, dado o contingente de
disposições de posições subjetivas de direitos fundamentais de cunho marcadamente
pessoal que ocorrem sem que exista lei em sentido estrito permitindo. Mas a barreira da
realidade – a ineficácia – de um enunciado normativo não conduz à conclusão da perda
de sua vigência e validade, tampouco autoriza o intérprete a ignorá-lo778. Claro, pode
sinalizar ao legislador a necessidade de revogá-lo, alterá-lo ou até suprimi-lo. Poderia
sugerir que caiu em desuso. Porém, soa estranho argumentar desuso de um enunciado
normativo vigente há tão pouco tempo. Some-se a isso o assentando entendimento do
STJ, calçado no art.2º da LICC, de que o desuso não é causa de atipia (âmbito penal) e
de que a lei somente é revogada por outra lei (afora, por evidente, as manifestações
judiciais quanto à validade e constitucionalidade do enunciado normativo). Se o desuso
não enseja atipia, por menos razão ensejaria afastamento de enunciados civilistas779.
Destarte, passa-se ao exame do disposto no art.11 do Código Civil.
777
Supra, Capítulo 1, item 1.1.1.
778
A respeito, KELSEN, Hans. Teoria pura...
779
Assim dispõe a LICC: “Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra
a modifique ou revogue. § 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando
seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2o A lei
nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei
anterior. § 3o Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora
perdido a vigência”. Acerca do desuso na jurisprudência do STJ: BRASIL. STJ. HC nº108.891/MG
Rel. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 23/03/2009; BRASIL. STJ. REsp nº146.360/PR Rel. Min.
Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 08/11/1999; BRASIL. STJ. REsp nº20.798/RO. Rel. Min. José
Candido de Carvalho Filho. Sexta Turma. DJ de 28/09/1992. Acórdãos disponíveis em: www.stj.gov.br
BRASIL. Lei de Introdução ao Código Civil. Decreto-Lei nº4657, de 4 de setembro de 1942.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del4657.htm.
393
Embora o enunciado normativo pareça apenas protetor de direitos da
personalidade, impedindo que os indivíduos a eles renunciem, transmitam-nos, ou
deixem de exercê-los, ele é também constritivo de direitos, pois, como foi largamente
explorado, a disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais (e da
personalidade) é de mão dupla, representando exercício de posições subjetivas de
direitos fundamentais, muitas delas enfeixadas no consentimento. A constrição é
generalizante e lança em idêntica condição situações muito distintas, desde disposições
de posições relativas aos direitos ao nome, à imagem, à expressão, até a disposição de
posições referentes aos direitos à integridade física e à vida. Na valorosa e necessária
tentativa de proteger os direitos da personalidade contra abusos perpetrados nas relações
entre particulares, o texto legal tornou-se demasiadamente amplo e rigoroso780,
adentrando e interferindo na seara de proteção dos direitos fundamentais contra o
arbítrio estatal, resguardado pela Constituição da República.
Uma das razões que levou à adesão, nesta tese, à existência de um direito geral
de liberdade foi a redação do art.5º, II, da CF/88, combinada à necessidade de arcar com
o ônus argumentativo para as intervenções com posições subjetivas de direitos
fundamentais. Uma vez seguido este roteiro, concluiu-se pela disponibilidade prima
facie das posições subjetivas de direitos fundamentais. O legislador civilista inverteu as
duas premissas, tanto a constitucional, quanto a adotada nesta tese. Lógico, é
fundamentalmente a partir da primeira que o artigo precisa ser analisado.
780
Na exposição de motivos é empregada a palavra rigor acerca do Capítulo destinado aos direitos da
personalidade: “(c) Todo um capítulo novo foi dedicado aos Direitos da personalidade, visando à sua
salvaguarda, sob múltiplos aspectos, desde a proteção dispensada ao nome e à imagem até o direito de se
dispor do próprio corpo para fins científicos ou altruísticos. Tratando-se de matéria de per si complexa e
de significação ética essencial, foi preferido o enunciado de poucas normas dotadas de rigor e clareza,
cujos objetivos permitirão os naturais desenvolvimentos da doutrina e jurisprudência”. Note-se, porém,
que o art.11 refere-se expressamente à lei, diminuindo o espaço para permitir “os naturais
desenvolvimentos da doutrina e da jurisprudência”. BRASIL. Novo Código Civil: exposição de motivos
e textos sancionados. 2. ed. atual. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005.
Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/sf00019a.pdf.
394
essa “alguma coisa” que será proibida ou ordenada, retirando a alternativa de ação que o
constituinte reservou aos particulares. Ocorre que no artigo em comento, não se trata de
“alguma coisa”, mas de uma miríade de “algumas coisas”. Os direitos da personalidade
não são concebidos como um rol taxativo, mas exemplificativo. No conceito
encampam-se os mais diversos direitos, como os direitos ao próprio corpo, os sexuais e
reprodutivos, ao nome, à honra e à imagem, de e à privacidade, diversos direitos de
liberdade, como a de expressão, de consciência e de crença.
781
Utiliza-se a expressão de certa forma, porque os legisladores futuros não estarão propriamente
vinculados, pois podem revogar o dispositivo. Ao Judiciário é estranho que o legislador vincule assim,
pois diversas hipóteses de disposição podem ter assento direto na Constituição, de modo que o enunciado
não oblitera decisões judiciais que as reconheçam.
395
Em virtude do amplo leque de situações que o artigo alcança, torna-se muito
difícil identificar in abstracto exatamente em quais posições subjetivas de direitos
fundamentais ele interfere e também em qual intensidade. Pode-se afirmar, apenas, que
interfere. Por exemplo, o artigo simplesmente retira a possibilidade de os sujeitos do
consentimento decidirem, de modo livre e informado, sobre suas posições subjetivas de
direitos fundamentais, o que equivale, em termos práticos, a destituir-lhes do status de
sujeitos do consentimento em uma significativa gama de casos.
782
CUNHA, A normatividade..., passim; CUNHA, Dignidade da pessoa humana..., p.260.
783
Supra, Capítulo 3, item 3.1.
396
Em terceiro lugar, foi sustentado nesta tese que a (in)disponibilidade é normativa e que
a criação, modificação e extinção de relações e de posições jurídicas que a disposição
enseja, bem como seus reflexos e impactos, variam muito segundo as posições e o
direito envolvidos, o contexto, o ramo do direito, as possibilidades de um consentimento
genuíno, etc. Vê-se, contudo, que o art.11 é insensível a todo esse conjunto.
Destarte, embora muitos dos argumentos ora alinhavados respaldem aqueles que
cogitam a inconstitucionalidade do enunciado normativo civilista, crê-se que este
Capítulo não é o local para sustentá-la. Não é preciso ir tão longe. É preciso, apenas,
apreciá-lo ao ensejo da disposição de posições subjetivas do direito à vida no contexto
da morte com intervenção, mais precisamente quanto à LCT.
784
WALDRON, Jeremy. Inhuman and degrading treatment: a non-realist view. NYU Public Law
Colloquium, April, 23 (second draft), Destaca-se que mesmo aqueles que se opõe à aceitação da
ortotanásia admitem as agruras padecidas. Assim é que na Petição Inicial da ACP da ortotanásia o
Procurador assevera que os pacientes passam por “torturas de dores lancinantes, sofrimentos atrozes,
depressões, pânicos” e padecem “as mais terríveis dores, ou [permanecem] ligados a aparelhos pelo resto
de suas vidas”. BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. ACP nº2007.34.00.014809-3. Petição
Inicial. BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Recomendação nº01/2006 – WD – PRDC.
785
Embora existam argumentos no sentido de serem os esforços de prolongamento de vida tortura,
quando involuntários, não se adere a esse ponto de vista. Considera-se que a definição de tortura adotada
na legislação brasileira não engloba o prolongamento involuntário da vida de pacientes terminais ou em
estado irreversível, pois esta exegese preceitua uma interpretação ampliativa dos tipos penais. Cf.
398
inviolabilidade do indivíduo quanto à sua desumanização e à sua degradação
involuntárias. Ainda que seja duvidoso o papel e a extensão da dignidade como
heteronomia em relação à aquiescência do indivíduo a sujeitar-se a situações que, no
conceito alheio, são desumanas e degradantes, praticamente não resta margem de debate
sobre a imposição heterônoma da desumanidade e da degradação do outro.
399
A posição é, de fato, a mais adequada diante do sistema jurídico brasileiro
observado à ótica da integridade, vez que respeita a tendência à dignidade como
autonomia no momento em que dois vieses relevantes da dignidade como heteronomia
competem. Isto é, quando há entrechoque entre a valorização da vida humana e a
proibição de submeter indivíduos a tratamentos desumanos e degradantes, a liberdade
prevalece. Quando a hipótese é a LCT, a dignidade como heteronomia é o deus Jano,
com suas duas faces. Seu cabimento, que por si só precisa superar o ônus
argumentativo, perde a razão de ser. Fossem diversos os fatos, talvez fosse pertinente a
dignidade como heteronomia. É o que ocorre quando se trata de portadores de
transtornos mentais ou de adictos que põem em risco as próprias vidas, muitas vezes
com a agência já nebulosa. São submetidos a tratamentos e a situações que julgam
humilhantes e degradantes, mas a justificação está na temporariedade somada à
possibilidade de reversão e de recuperação. Essa alternativa não existe quando se está a
apreciar a LCT. A escolha dos enfermos restringe-se entre a aceitação da morte,
acompanhada de cuidados no processo de morrer, e ao prolongamento sofrido da vida,
no mais das vezes tão só a vida biológica.
A dignidade como autonomia é, sem razão para dúvidas, a leitura que melhor se
enquadra à hipótese. Por um lado, ela permite que as escolhas dos enfermos e de
representantes legais sejam respeitadas, quer signifiquem o que se costuma chamar de
lutar até o fim, ou seja, protelar a morte o máximo concebível, independentemente dos
custos humanos, quer signifiquem o uso de meios alternativos, que não prolongam o
processo de morrer e até mesmo aqueles que o abreviam, como o cuidado paliativo de
duplo efeito.
Noutro giro, a dignidade humana como autonomia preserva com mais adequação
os direitos dos profissionais da saúde, por três ordens de razões. Primeiro, porque não os
obriga a efetuar intervenções e tratamentos pouco frutíferos, causadores de sofrimento,
sem o consentimento dos pacientes. Quer dizer, não compele os profissionais da saúde a
submeter outros seres humanos a situações que os últimos reputam desumanas ou
degradantes, muito menos a desconsiderar os enfermos e seus familiares como seres
humanos completos, capazes de exercer a liberdade segundo o traçado valorativo que
construíram ao longo de suas vidas e de sentir dor e frustração. Segundo, porque não os
obriga a adotar condutas de ortotanásia ou distanásia sem o consentimento dos pacientes
ou de seus representantes. Terceiro, porque a dignidade como autonomia também se
estende aos profissionais da saúde, que ficam, de início, vinculados à decisão de seus
400
pacientes, mas, se acaso a escolha formulada for de encontro às suas convicções
profissionais e pessoais, eles poderão exercer a própria liberdade e optar pela objeção de
consciência.
Por todo o exposto, sustenta-se que os enunciados normativos civis e penais que
proíbem a LCT – por não reputarem suficiente o consentimento para a disposição de
posições subjetivas do direito fundamental à vida, não atendem ao postulado da
proporcionalidade e não suprem o ônus argumentativo quanto ao paternalismo jurídico e
seus institutos afins. Na mesma senda, não estão justificados pela dignidade como
heteronomia que trata a vida humana como um bem em si, pois, além de a versão
heterônoma carecer de justificação para ter espaço em face da tendência à dignidade
como autonomia, no contexto da LCT vem à tona outro conteúdo da dignidade como
heteronomia, a poderosa ideia de não submeter, forçosamente, seres humanos a
situações que, sem o seu endosso, são desumanas e degradantes.
401
4.5 Ainda é longo o caminho: ao permitir, é preciso regulamentar
Ao se concluir pela permissão da LCT e pela possibilidade de disposição de
posições subjetivas do direito diante das condicionantes fáticas e jurídicas
apresentadas na hipótese, quebra-se um tabu. A sensação inicial pode ser a de que, uma
vez permitida uma conduta, haverá uma menor quantidade de enunciados normativos e
normas a incidir no tema. John Griffiths, Hellen Meyers e Maurice Adams, na parte
final de sua obra sobre a situação jurídica européia quanto ao final da vida, em especial
a eutanásia, demonstram que o que se passa é justamente o inverso. Intitulam o Capítulo
com a expressão “o fenômeno da praia de nudismo”. A praia de nudismo sugere um
ambiente de permissividade, se comparado às praias tradicionais. Porém, ainda que
informalmente, há regras nas praias de nudismo que seriam impensáveis em praias nas
quais as pessoas usam uma ou duas tiras de pano. Regula-se o modo como as pessoas
podem se aproximar, como podem olhar para as outras e assim por diante. Ou seja, a
permissividade é uma falsa impressão, assim como a noção de diminuição do
contingente de regras788. Se fosse empregada a expressão de Cass Sunstein, dir-se-ia
que “after the rights revolution”, avoluma-se a tarefa regulatória e modificam-se,
também, cânones de interpretação789.
788
GRIFFITHS, MEYERS, ADAMS, p.502 e ss.
789
SUNTEIN, Cass R. After the rights revolution: reconceiving the regulatory state. Cambridge:
Harvard University Press, 1993. Ver também: SUNSTEIN, Cass. Designing democracy: what
constitutions do. Oxford: Oxford University, 2001, p.137-154.
402
fiscalização adequada, somente no “país das maravilhas”790 ou em ilhas de excelência
o consentimento seria efetivamente levado a sério.
790
A expressão é empregada em outro contexto por BEYLEVELD; BROWNSWORD. Consent..., p.282.
791
O Projeto foi aprovado no Senado Federal, de acordo com o art.81 do RISF, c/c art.58, §2º, I da CF/88.
Destaca-se que no dia 17 de setembro de 2009 foi realizada audiência pública sobre o texto do projeto. A
redação aprovada e enviada para a Casa Revisora foi a seguinte: “Art. 1º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte art. 136-A: ‘Art. 136-A. Não
constitui crime, no âmbito dos cuidados paliativos aplicados a paciente terminal, deixar de fazer uso de
meios desproporcionais e extraordinários, em situação de morte iminente e inevitável, desde que haja
consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente,
descendente ou irmão. § 1º A situação de morte iminente e inevitável deve ser previamente atestada por 2
(dois) médicos. § 2º A exclusão de ilicitude prevista neste artigo não se aplica em caso de omissão de uso
dos meios terapêuticos ordinários e proporcionais devidos a paciente terminal. Art. 2º Esta Lei entra em
vigor após decorridos 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial”. BRASIL. SENADO
FEDERAL. Projeto de Lei nº116/2000. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/getPDF.asp?t=71461
792
BRASIL. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº524/2009. Disponível em:
http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/70139.pdf
793
BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL nº3.002/2008. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/sileg/integras/544137.pdf BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL
nº6.544/2009. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/721742.pdf
403
Nos quatro itens que se seguem, serão brevemente descritas quatro políticas
públicas essenciais para o adequado engendramento das disposições de posições
subjetivas do direito à vida, sempre com o olhar voltado à genuinidade do
consentimento no tema da LCT.
Para regulamentar a LCT, dois fatores são conditio sine qua non, a garantia de
amplo cuidado e amparo aos pacientes que por ela optarem e aos seus familiares (infra,
item 4.5.2), assim como sérios mecanismos de controle da genuinidade do
consentimento. Foi por esta razão que no Capítulo 3 discorreu-se sobre as diretrizes do
consentimento na disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. As
características da LCT e suas repercussões recomendam muita atenção e rigor quanto
aos critérios e padrões do consentimento. Ao mesmo tempo, os critérios e padrões não
podem ser desenhados de forma a inviabilizar ou restringir excessivamente a
possibilidade de exercer a escolha794.
794
Os critérios para o consentimento que serão apresentados foram elaborados à luz de fontes diversas,
fundamentalmente os estudos de Timothy Edward Quill e de Terrrance McConnell, bem como as
normativas estrangeiras. Convém esclarecer que no voto vencido no caso Sue Rodriguez foi elaborada
404
Em primeiro lugar, sabe-se que a disposição de posições subjetivas do direito à
vida enseja impactos fáticos e jurídicos muito relevantes. Ainda que seja temporária,
revogável, especial e não envolva a titularidade da posição, a disposição conduz ao
perecimento do bem protegido, impactando as posições subjetivas do direito à vida e
também dos demais direitos, sem possibilidade de retorno ao status quo ante quando
ocorre o evento morte. Em segundo lugar, os sujeitos envolvidos na disposição estão em
posição de assimetria, tanto pela enfermidade, pela relação especial entre os
profissionais da saúde - mormente médicos, e os pacientes - como também pelo
desnível informativo. Os dois elementos indicam a necessidade de regulamentação de
uma lista de critérios a serem seguidos pela enferma e seu médico. Na sentença colombiana foi
recomendada ao legislador a elaboração de critérios para o consentimento para a eutanásia, a saber:
“Como el Estado no es indiferente a la vida humana, sino que tiene el deber de protegerla, es necesario
que se establezcan regulaciones legales muy estrictas sobre la manera como debe prestarse el
consentimiento y la ayuda a morir, para evitar que en nombre del homicidio pietístico, consentido, se
elimine a personas que quieren seguir viviendo, o que no sufren de intensos dolores producto de
enfermedad terminal. Esas regulaciones deben estar destinadas a asegurar que el consentimiento sea
genuino y no el efecto de una depresión momentánea. El Estado, por su compromiso con la vida, debe
ofrecer a los enfermos terminales que enfrentan intensos sufrimientos, todas las posibilidades para que
sigan viviendo, por lo cual es su obligación, en particular, brindarles los tratamientos paliativos del
dolor.[…]. Los puntos esenciales de esa regulación serán sin duda: 1. Verificación rigurosa, por
personas competentes, de la situación real del paciente, de la enfermedad que padece, de la madurez de
su juicio y de la voluntad inequívoca de morir; 2. Indicación clara de las personas (sujetos calificados)
que deben intervenir en el proceso; 3. Circunstancias bajo las cuales debe manifestar su consentimiento
la persona que consiente en su muerte o solicita que se ponga término a su sufrimiento: forma como debe
expresarlo, sujetos ante quienes debe expresarlo, verificación de su sano juicio por un profesional
competente, etc; 4. Medidas que deben ser usadas por el sujeto calificado para obtener el resultado
filantrópico, y 5. Incorporación al proceso educativo de temas como el valor de la vida y su relación con
la responsabilidad social, la libertad y la autonomía de la persona, de tal manera que la regulación
penal aparezca como la última instancia en un proceso que puede converger en otras soluciones”.
Também sobre os padrões para o consentimento quanto à eutanásia, é interessante sumariar o esquema
holandês: De início, foram apenas toleradas as medidas eutanásicas em condições especiais, e, mais tarde,
foi ampliada a permissão. Diante de pacientes que voluntariamente solicitarem as práticas e que estejam
acometidos de doenças que envolvam sofrimento não controlável e cujo prognóstico seja de
irreversibilidade, pode o médico, com o cuidado devido, realizá-las, efetuando o relatório. Os critérios são
aparentemente amplos, mas é necessário atentar para o conceito de cuidado devido e para o sistema de
fiscalização. Por cuidado devido entende-se que o médico que mantém relação estável com o paciente: (a)
assegure-se da ponderação e voluntariedade do consentimento; (b) ateste que o sofrimento não é
controlável e que não há prognóstico de melhora; (c) tenha provido o paciente com informações
adequadas; (d) tenha concluído, junto ao paciente, que não há alternativas viáveis; (e) tenha confirmação
de outro médico, por escrito, do diagnóstico, do prognóstico e da voluntariedade; (f) que a prática seja
efetuada com cuidado devido e atenção. Os casos de eutanásia voluntária ativa e de suicídio assistido
devem ser relatados aos Comitês Regionais, que exercerão a fiscalização. É atribuição dos comitês
elaborarem relatórios anuais e comunicar, sempre que entenderem necessário, ao Ministério Público os
casos nos quais as regras não tenham sido seguidas. Há prescrição também para a obtenção do
consentimento de crianças e de adolescentes. Discute-se se a eutanásia voluntária e o suicídio assistido
podem ser realizados por estrangeiros que se dirijam à Holanda com este intuito. COLOMBIA. Sentencia
C-239/97. Op. cit. McCONNELL, Op. cit., p.90; 97 (os critérios que o autor apresenta são para a
eutanásia e o suicídio assistido por médico). QUILL, Timothy E. Physician-Assisted Death in the United
States: Are the Existing 'Last Resorts' Enough? Hastings Center Report, v.38, n. 5, 2008. QUILL,
Timothy. Death and dignity. New York: WW Norton, 1993. IRELAND, Ian. The Netherlands
Euthanasia Legislation. Information and Research Services. Disponível em:
http://www.aph.gov.au/library/pubs/rn/2000-01/01RN31.htm Acesso em: ago. 2005.
405
condutas para o consentimento, não somente por diretrizes legais e administrativas
gerais, mas principalmente pela adoção de Protocolos Institucionais de conduta e de
Procedimentos Operacionais Padrão (POPs)795.
795
Aqui reside uma diferença significativa entre a disponibilidade de posições subjetivas do direito à vida
no contexto da morte com intervenção e da disponibilidade generalizada. A morte com intervenção
abrange um número limitado de indivíduos, muitas vezes em ambientes de internação coletiva - sejam
hospitais, sejam centros de cuidados paliativos, sob os cuidados de diversos profissionais da saúde. Não
apenas o ambiente propicia, como os profissionais são educados e treinados a seguir protocolos e
procedimentos operacionais padrão.
796
Surge aqui um ponto delicado. Poderia o paciente dispor de posições subjetivas do direito de ser
informado? Se a resposta for positiva, entende-se que a disposição precisa ser formalizada. Para uma
discussão aprofundada sobre o tema, bem como sobre a possibilidade de os pacientes “darem carta
branca” aos profissionais para a tomada de decisões: McCONNELL, Terrance. Inalienable... Op. cit.,
p.65-78 (Capítulo intitulado The right of informed consent and inalienability).
406
postura dialógica só ocorre com o enriquecimento da relação dos profissionais com os
enfermos e seus familiares, fundada no resgate das virtudes dos profissionais da saúde
(infra, item 4.5.4). Também é claro que se trata de indicar as possibilidades ao paciente,
sem induzi-lo, por influência indevida, a respeito do conteúdo de um testamento vital ou
das diretrizes antecipadas.
Uma vez que exista escolha informada para a LCT, ou manifestação de uma
tendência a escolher nesse sentido, torna-se importante verificar a origem da decisão,
para evitar a pressão e a força externa indevida e, em especial, a influência indevida. A
verificação da origem também contribui para trazer à tona e permitir o diálogo e o
cuidado acerca de sentimentos do paciente, principalmente o de ser um peso (self-
perceived burden) para seus familiares, amigos e até para a sociedade797. No ponto,
recomenda-se também a verificação de inocorrência de depressão tratável e da
adequação dos cuidados para a dor oferecidos.
797
A respeito, McPHERSON, Christine J. et. al. Feeling like a burden: exploring perspectives of patients
at the end of life. Social Science and Medicine. N.64, 2007, 417-427. PELLEGRINO, Edmund D. The
lived experience of human dignity. In: Human Dignity and Bioethics: Essays Commissioned by the
President’s Council on Bioethics. Washington: mar. 2008. Disponível em:
http://www.bioethics.gov/reports/human_dignity/chapter12.html Acesso em: dez./2008.
407
recusados, a garantia de amplo cuidado, o risco de duplo efeito, se necessário, e a
possibilidade de voltar atrás a qualquer tempo798.
Quanto aos pacientes que não são sujeitos do consentimento, há que se ter em
mente a discussão e as distinções feitas no Capítulo 3, quanto aos agentes ostensivos
pretéritos, os intermitentes e os que nunca apresentaram as habilidades da agência
ostensiva. A disposição de posições subjetivas do direito à vida apenas ocorrerá no
primeiro caso, quando houver conhecimento da decisão do titular e seu representante a
externar, ou quando houver margem segura para um julgamento por substituição. Daí a
importância ímpar dos testamentos vitais e das diretrizes antecipadas800.
No tema da morte com intervenção, Dan W. Brock sugeriu uma ordenação para
o processo decisório para adultos não mais capazes, a saber: (a) diretrizes antecipadas e
testamentos vitais; (b) julgamento por substituição: (b.1) representantes convencionais;
(b.2) representantes legais, órgãos colegiados ou decisões judiciais. Somente em último
caso é que se recorre aos melhores interesses, ou seja, a ideia de disposição, com toda a
carga de exercício de direitos fundamentais que traz consigo, assume o primeiro posto
nas decisões do final de vida801. No que toca aos agentes intermitentes, já se externou o
posicionamento de que aos adolescentes maduros deve, no mínimo, ser permitido
798
Tópicos atinentes ao plano civilista, como a exigência de TCLE, a determinação da causa da morte,
bem como a preocupação com a genuinidade do consentimento são trabalhadas no PL nº3.002/2008.
BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL nº3.002/2008.
799
Sobre os dados, sua relevância e também os mecanismos de fiscalização, principalmente nos países
que adotaram a eutanásia (Holanda e Bélgica), ver: GRIFFITHS, MEYERS, ADAMS, Op. cit., passim. O
PL nº3.002/2008 prevê o monitoramento de dados: “Art.7º Os gestores do Sistema Único de Saúde
devem tornar públicos, em relatório anual, dados estatísticos sobre a prática da ortotanásia em todo o
território nacional”. BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL nº3.002/2008.
800
Dois dos PLs estudados expressam o dever de respeitar as manifestações pretéritas do enfermo, sem,
no entanto, adentrar no tema dos testamentos vitais e das diretrizes antecipadas. BRASIL. SENADO
FEDERAL. Projeto de Lei nº524/2009. BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL nº3.002/2008.
BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL nº6.544/2009.
801
No tema, sobre todos, BROCK, Dan W. Surrogate decision making for incompetent adults: na ethical
framework. In: MAPPES, Thomas A. DeGRAZIA, David. Biomedical Ethics. Fifth Edition. New York:
McGraw-Hill, 2000, p.350-355.
408
participar dos processos informativos e da tomada de decisão, ressalvado o privilégio
terapêutico.
802
Assim, por exemplo, os projetos de lei referidos, bem como o texto aprovado no Senado Federal para a
descriminalização da ortotanásia, parecem atingir apenas os pacientes em estágio terminal, ou seja,
aqueles para os quais a morte é iminente, em curto período. Varia a literatura acerca do curto período.
Ficariam excluídos, portanto, os pacientes em estágios iniciais e intermediários de doenças cuja evolução
é a terminalidade da vida, bem como aqueles em estado vegetativo persistente. BRASIL. SENADO
FEDERAL. Projeto de Lei nº116/2000. BRASIL. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº524/2009.
BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL nº3.002/2008. BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS.
PL nº6.544/2009.
803
Por exemplo, o respirador artificial é ordinário e de rotina. Durante a recente epidemia do vírus H1N1,
seu uso fazia parte de procedimentos padrão de atendimento. Porém, para alguns pacientes em estágio
terminal e vegetativo persistente, ele poderia ser considerado desproporcional? A pergunta estende-se ao
uso dos aparelhos para reanimação cardíaca e até antibióticos, pois um paciente terminal pode ser
acometido por uma pneumonia, e a decisão pode ser exatamente limitação consentida do antibiótico. Com
a evolução natural da pneumonia, o paciente provavelmente irá a óbito. Dos Projetos mencionados que
visam à regulamentação, o PL nº524/2009 faz uma distinção entre tratamentos extraordinários, os
proporcionais e os não proporcionais. A definição de proporcionalidade está ligada a cada caso concreto.
Embora possa pairar alguma dúvida sobre a suspensão de ‘cuidados básicos’, como a alimentação e a
hidratação, entende-se que o atual texto a admitiria, sempre na terminalidade. Já o PL nº3002 refere-se
apenas aos tratamentos extraordinários, sem tratar da proporcionalidade. Do texto, percebe-se que a
abertura da LCT é bem menor – e também menos apropriada – do que a redação do PL nº524/2009.
BRASIL. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº524/2009. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL
nº3.002/2008.
409
no tema e até pareceres dos seus Comitês de Bioética sobre as definições que envolvem
a LCT e a condução bioética ideal de casos clínicos804.
804
A respeito, as experiências, pareceres e dados de dois Comitês de Bioética brasileiros: LOCH, J. A;
GAUER, G. J. C; KIPPER, D. J. Análise das consultorias realizadas ao comitê de bioética da FAMED e
HSL/PUC-RS entre janeiro de 2000 e dezembro de 2004. In: VI Congresso Brasileiro de Bioética, 2005,
Foz do Iguaçu. Anais do VI Congresso Brasileiro de Bioética, 2005. BORGES, Gustavo Silveira. Os
comitês de bioética e as vias de acesso à justiça criminal. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre:
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007, mímeo. COHEN, Cláudio. GARCIA,
Maria. Questões de bioética clínica – Pareceres da Comissão de Bioética do Hospital de Clínicas da
Faculdade do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo. São Paulo: Elsevier, 2007
(principalmente o parecer CoBi 1999 “eutanásia e meios extraordinários de prolongamento de vida”),
p.147 e ss.
410
(respiratórios, digestivos, da fadiga, da anorexia e da caquexia, da depressão, do delírio,
da angústia) e de outros problemas, sejam físicos, psicológicos, espirituais e até mesmo
jurídicos805.
805
Diz-se jurídicos porque há casos nos quais algumas angústias que acometem os enfermos podem ser
relativas a questões testamentárias, partilhas, de regularização de uniões, de reconhecimento de
paternidade, de ajuste de pensões e de benefícios (e.g., levantamento de FGTS), dentre outros. Frisa-se,
porém, que os cuidados paliativos não envolvem atividade jurídica, apenas podem auxiliar no
encaminhamento para órgãos competentes ou profissionais e serviços habilitados. Cf. CARVALHO,
Ricardo Tavares de. Legislação em cuidados paliativos. In: OLIVEIRA, Reinaldo Ayer de (org.).
Cuidado Paliativo. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo: 2008, p.613-
630.
806
A OMS assim define os cuidados paliativos: “Palliative care is an approach that improves the quality
of life of patients and their families facing the problem associated with life-threatening illness, through
the prevention and relief of suffering by means of early identification and impeccable assessment and
treatment of pain and other problems, physical, psychosocial and spiritual”. WORLD HEALTH
ORGANIZATION. Palliative Care Definition. Disponível em:
http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en/ Acesso em: mar./2009.
807
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Palliative Care Definition. Cit. O texto aproxima-se do
original, sem ser uma tradução.
808
Cf. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Palliative Care Definition. Cit.; McCOUGHLAN, Marie.
A necessidade de cuidados paliativos. Mundo da Saúde (Cuidados Paliativos). São Paulo: ano 27, v.27,
nº1, jan./mar. 2003, p.6-9.
411
particularizações dos cuidados paliativos, de acordo com a doença e as características
do paciente, havendo segmentos para neonatos, crianças, pacientes oncológicos e
doentes de HIV/AIDS809. Em matéria de custos, muitos sustentam que os cuidados
paliativos apresentam benesses, especialmente quando comparados a tratamentos
curativos de ponta para diversas enfermidades incuráveis810.
809
Cf. OLIVEIRA, Reinaldo Ayer de (org.). Cuidado Paliativo. São Paulo: Conselho Regional de
Medicina do Estado de São Paulo: 2008, passim. Ver também a definição da OMS para cuidados
paliativos para crianças: WORLD HEALTH ORGANIZATION. Palliative Care Definition. Cit.
810
A comparação entre os custos é ainda controversa, mas há dados indicando que os cuidados paliativos
mostram-se como alternativa menos custosa do que os tratamentos curativos nos últimos meses de vida.
Como exemplo, GÓMEZ-BATISTE, Xavier el al. Resource consumption and costs of palliative care
services in Spain: a multicenter prospective study. Journal of Pain and Symptom Management. v.31,
nº6, jun.2006, p.522-532.
811
Além da OMS, são exemplos a Associação Médica Mundial e a recente Resolução do Conselho
Europeu. COE. PARLIAMENTARY ASSEMBLY. Resolution 1.649 (2009), Disponível em:
http://assembly.coe.int/main.asp?Link=/documents/adoptedtext/ta09/eres1649.htm; WORLD MEDICAL
ASSOCIATION. World Medical Association Declaration on Terminal Illness. Adopted by the 35th
World Medical Assembly Venice, Italy, October 1983 and Revised by the WMA General Assembly,
Pilanesberg, South Africa, October 2006. Disponível em: http://www.wma.net/e/policy/i2.htm Acesso
em: abr./2009. O movimento para o reconhecimento dos cuidados paliativos como direito humano está
expresso na Declaração e Compromisso Conjunto sobre os Cuidados Paliativos e o Tratamento da
Dor como Direitos Humanos, apoiada por diversos setores sociais no Brasil e no mundo. Disponível em:
http://www.hospicecare.com/resources/pain_pallcare_hr/docs/jdsc_esp.pdf
812
MELO, Ana Geórgia Cavalcanti de. Cuidados paliativos no Brasil. O Mundo da Saúde. V.27, n.1,
jan./mar. 2007 (número dedicado somente ao tema cuidados paliativos), p.60.
412
Além desses, podem se fazer presentes: (a) o desconhecimento; (b) o apego à
medicina curativa; (c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em
saúde; (d) os conflitos de interesses econômicos, pelo não emprego de algumas
tecnologias altamente avançadas e da não realização de alguns procedimentos
cirúrgicos; (e) dificuldade de acesso a substâncias restritas empregadas no controle da
dor; (f) insegurança dos profissionais da saúde, mormente médicos, quanto à aceitação
legal de práticas de cuidados paliativos.
Ora, uma vez que se conclui que os cuidados paliativos e a LCT são políticas
necessárias à dignificação do processo de morrer, é premente discutir, elaborar e
813
CARVALHO, Ricardo Tavares de. Legislação em... Op. Cit. A situação conflitiva dos profissionais de
cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de
Cuidados Paliativos de 30/03/2009. Disponível em:
http://www.paliativo.org.br/Boletins.asp?BoletimAtivo=22 Acesso em: abr./2009. Todavia, é de se
destacar que a prática de sedação terminal, aceita por muitos paliativistas, é altamente polêmica. QUILL,
Timothy E. et. al. The debate over physician-assisted suicide: empirical data… Op. Cit.
814
CARVALHO, Ricardo Tavares de. Legislação em... Op. Cit. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE.
Portaria nº19/GM, de 03 de janeiro de 2002. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria
nº2.439/GM, de 08 de dezembro de 2005. BRASIL. ANVISA. Resolução da Diretoria Colegiada
nº202, de 18 de julho de 2002. Entrementes, a regulação da ANVISA é objeto de crítica por especialistas,
visto que são poucos os centros que possuem a qualificação para a dispensação dos fármacos nas formas
exigidas.
815
MELO. Cuidados paliativos no Brasil. Op. cit., p.62. Três dos PLs sobre a ortotanásia em tramitação
lidam com o tema dos cuidados paliativos, sem, todavia, tocar em elementos centrais da política:
BRASIL. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº524/2009. BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS.
PL nº3.002/2008. BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL nº6.544/2009.
413
efetivamente implementar diretrizes e planos de ação bastante claros. As fronteiras
entre as formas de LCT permitidas e as proibidas devem ser as mais nítidas possíveis, e
os critérios e modos de comunicação com o paciente e seus familiares/responsáveis bem
regrados. Mais importante, os padrões de consentimento e as garantias de acesso a
tratamentos paliativos, além dos curativos, precisam de atenção especial. No Brasil, não
apenas os pacientes estão precisando de cuidados, os cuidados paliativos também estão.
816
GRACIA, Diego. Teoria e práctica de los comités de ética. In: MARTINEZ, J.L. (ed.). Comités de
bioética. Madrid: Comillas, 2003, p.194 e ss.
817
A nomenclatura dos CBs pode variar. Fora do Brasil, usa-se Comitês de Bioética tanto para designar
os Comitês de Ética em Pesquisa (dedicados à bioética na pesquisa envolvendo seres humanos) e os
Comitês Hospitalares. Nesta tese, as atenções estão voltadas apenas para os Comitês de Bioética Clínica.
Segundo a UNESCO, um Comitê de Bioética é “a committee that systematically and continually
addresses the ethical dimensions of (a) the health sciences, (b) the life sciences and (c) innovative health
policies. The term ‘bioethics committees’ simply signals that a group – a chairperson and the members –
will meet to address issues that are not simply factual, but are profoundly normative. That is, they do not
convene to determine only what is or is not the case regarding some realm of interest. The concern of the
committee goes beyond the factual level of empirical data. It is established to answer not only the
question, ‘How should I decide and act?’ but the broader question, ‘How should we decide and act?’
This will move us from ethics – a traditional branch of philosophy – to politics: ‘How ought a government
to act?’”. UNESCO. Guia nº2 – Bioethics committees at work: procedures and policies. Guide n.2.
2005. Disponível em: http://portal.unesco.org/shs/ethics Acesso em: abr./2009. UNESCO. Educating
bioethics committees. Guide n.3. 2007. Disponível em: http://portal.unesco.org/shs/ethics Acesso em:
abr./2009. UNESCO. Guia nº1 - Establishing bioethics committees. Guide n.1. Disponível em:
http://portal.unesco.org/shs/ethics Acesso em: abr./2009. BORGES, Gustavo Silveira. Op. cit., p.50 e ss.
818
Desde 1993 a UNESCO criou o Comitê Internacional de Bioética. Alguns países contam com CBs
nacionais, dentre eles, a Bélgica, a França, a Bolívia, o México. BORGES, Gustavo Silveira. Os comitês
de bioética... Op. Cit., p.62 e ss.
414
Assumem “uma tríplice função: 1) analisar e mediar os casos concretos oriundos da área
assistencial; 2) avaliar e contribuir para as políticas institucionais; 3) educar a
comunidade interna com a finalidade de melhorar o cuidado dedicado aos pacientes,
através de uma análise ética dos problemas e da elaboração de recomendações práticas
para sua solução e manejo”819. Os CBs não prestam assistência jurídica, não substituem
a decisão do paciente, dos representantes, nem da equipe de saúde, tampouco elaboram
normas de deontologia profissional. Podem significar uma ponte entre o ambiente da
assistência em saúde e órgãos governamentais, inclusive o Judiciário, em razão dos
pareceres que elaboram. Quanto à forma de atuação, os CBs costumam atuar mediante
provocação, seja da equipe de saúde, ou de alguns membros da equipe em casos de
dissenso entre eles, seja dos pacientes e de seus familiares. Eventualmente, os debates
podem abrir-se à participação de pacientes e familiares820. Ao final dos debates, produz-
se um parecer. Incentiva-se a troca de experiências entre CBs por diversos meios, como
publicações, encontros de formação e discussão, etc.
819
BORGES, Gustavo Silveira. Os comitês de bioética... Op. Cit., p.57.
820
BORGES, Gustavo Silveira. Os comitês de bioética... Op. Cit., p.57 e ss.
821
Cf. CÔRREA, Ana Paula Reche. GARRAFA, Volnei. Conselho Nacional de Bioética – a iniciativa
brasileira. Revista Brasileira de Bioética. v.1, nº4, 2005, p.401. Aliás, segundo as diretrizes da
UNESCO, uma das pré-condições para a implementação de CBs e sua tarefa primordial é o respeito pela
dignidade humana, associada, no documento, ao consentimento informado (viés autonomista da
dignidade). Ademais, é tarefa imperiosa a educação continuada dos membros dos comitês e da
comunidade por ele abrangida. UNESCO. Educating bioethics committees. Op. cit. UNESCO. Guia
nº1 - Establishing bioethics committees. Op. cit.
415
decisões drásticas, sempre mediante procedimentos comunicativos. Ademais, posto que
não sejam instâncias de controle e de fiscalização, sua forma de atuar ajuda na garantia
da comunicação entre a equipe de saúde e o enfermo e seus familiares, bem como na
revisão dos padrões da genuinidade do consentimento. Ponto relevante é também a
iniciativa dos pacientes e familiares em chamar à atuação os CBs e de eventualmente
participarem das discussões. Ora, sabe-se que os pacientes terminais ou em estado
vegetativo persistente constituem uma população especialmente vulnerável e bastante
invisibilizada em outros âmbitos de participação democrática. Assim, os CBs podem se
mostrar como o fórum que traz à luz as demandas dessa parcela de indivíduos,
desobstruindo déficits de representação em fóruns majoritários de tomada de decisão e
de construção de políticas públicas. Destarte, atuam como uma mola propulsora da
dignidade humana nos vieses autonomista e dialógico no contexto da morte, do morrer e
até mesmo do luto.
No Brasil, ainda existe muito desconhecimento acerca dos CBs. Além de serem
relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de doze anos – ainda
é muito pequeno o número de CBs. Entretanto, há frentes pela implementação de um
Conselho Nacional de Bioética e pela difusão de CBs em ambiente hospitalar822.
Entende-se que aqui se encontra um ponto chave para o debate da terminalidade da vida
no Brasil. Acima, viu-se que na ACP da ortotanásia o Procurador sugere que decisões
de LCT devem passar pelo crivo do Ministério Público e do Poder Judiciário823. Em
algumas circunstâncias, a solução afigura-se interessante. Porém, como foi mencionado,
muitas vezes não se trata de uma decisão, mas de decisões de rumo terapêutico, que
admitem revogação unilateral e a qualquer tempo, o que dificulta a busca do MP e do
órgão judicante. Além disso, a participação direta e imediata tanto do MP quanto do
Poder Judiciário em cada decisão pode ensejar uma sensação de irrevogabilidade. Por
isso, os CBs são uma alternativa interessante, uma vez que: (a) são multidisciplinares e
se situam no ambiente da assistência; (b) atuam como auxiliares na salvaguarda da
genuinidade do consentimento; (c) auxiliam na formação de pautas e de protocolos
institucionais, favorecendo a uniformização do atendimento; (d) de regra são mais
acessíveis aos pacientes, representantes, familiares e membros da equipe de saúde; (e)
preservam a confidencialidade mais facilmente.
822
Cf. CÔRREA, Ana Paula Reche. GARRAFA, Volnei. Conselho Nacional... Op. Cit., passim.
823
É no mesmo sentido a dicção do PL nº3.002/2008. BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL
nº3.002/2008.
416
Com isso não se está a dizer que os CBs formem uma redoma que exclua o MP,
o Judiciário e a sociedade, que seus posicionamentos sejam autoritativos, terminativos
e, muito menos, “melhores” do que as decisões proferidas no ambiente judicial. Pelo
contrário, CBs, MP e Poder Judiciário podem estabelecer diálogos muito proveitosos,
auxiliando-se reciprocamente no processo consultivo dos CBs, ou, eventualmente, na
decisão pela via judicial824.
824
No tema: BORGES, Gustavo Silveira. Op. cit., passim.
417
processos de tomada de decisões morais complexas e suas matrizes. E para isso,
necessário é o aprendizado.
825
PELLEGRINO, Edmund. Hacia uma ética normativa... Op. cit., p.253-277 (versión em castellano).
826
Ver, a respeito: RITTMANN, F. C.; PIZZI, Jovino. A Bioética: um estranho conceito para a
Comunicação Social. In: VII Congresso Brasileiro de Bioética - I Congresso Mundial Extraordinário
da Sociedade Internacional de Bioética e I Congresso da Redbioética/Unesco, 2007, São Paulo/SP.
RITTMANN, F. C.; PIZZI, Jovino. Bioética e os novos desafios de uma comunicação. In: VII Congresso
Brasileiro de Bioética - I Congresso Mundial Extraordinário da Sociedade Internacional de Bioética e I
Congresso da Redbioética/Unesco, 2007, São Paulo/SP.
418
CONCLUSÕES
419
a) O levantamento doutrinário, legal e jurisprudencial demonstrou que há certo
descompasso na conceituação dos direitos fundamentais indisponíveis, tanto
pelas diferentes concepções da indisponibilidade, quanto por noções diversas
dos direitos fundamentais.
420
f) O consentimento é necessário à disposição e atua como justificação
procedimental.
421
m) O princípio liberal do dano segue sendo uma importante motivação para a
interferência com os direitos fundamentais, mesmo nas sociedades
contemporâneas. Quanto aos atos autorreferentes, quando mediados pela
máxima volenti, como regra geral são permitidos, a menos que existam
outras justificações não ancoradas no paternalismo jurídico e seus institutos
afins (como a proteção de direitos de terceiros) ou se trate de um caso de
paternalismo justificado.
422
t) O primeiro passo consiste na demarcação das características, alcance e
impactos da disposição mediante exame da modalidade de disposição, se
geral ou específica, se temporária ou perene, se da titularidade da posição, se
revogável ou irrevogável. No exame, avalia-se se houve criação,
modificação ou extinção de posições e quais posições formam-se, sempre
com atenção às combinações básicas direito estrito/dever;
competência/sujeição; privilégio/não-direito; imunidade/incompetência. O
exame também leva em consideração impactos fáticos e jurídicos sobre
outras posições subjetivas e reflexos no bem protegido.
423
justificação substantiva, modalidades estranhas à disposição de posições
subjetivas de direitos fundamentais.
424
haver justificação procedimental pelo consentimento, mas existir uma
justificação substantiva aplicável.
425
cc) A aplicação do postulado da proporcionalidade é costeada por elementos das
teses de justificação, em especial o paternalismo jurídico e seus institutos
afins e a dignidade humana. Além disso, foi cercada pela noção de
integridade do sistema jurídico.
426
manifesta como imunidade com a correlata não-competência; (b) direito
estrito a ações positivas fáticas; (c) direito estrito a ações positivas
normativas.
gg) Os deveres de não matar e de salvar a vida alheia não contam com a mesma
extensão. A intensidade dos deveres de não matar e de abster-se em salvar a
vida de alguém é muito forte. Como premissa, os primeiros mais ainda que
os segundos. Mas a premissa está sujeita a variações em função de uma série
de condicionantes, que precisam ser detalhadas, contexto a contexto, caso a
caso, sem que se perca de vista a relevância única do direito à vida.
427
kk) Houve uma reestruturação conceitual quanto à morte com intervenção, de
modo que são consideradas condutas distintas a eutanásia, a LCT, os
cuidados paliativos, o suicídio assistido e a distanásia.
429
REFERÊNCIAS
A
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