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Análise de obras literárias

estrela da manhã

Manuel bandeira filho

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SumÁrio

1. Contexto social e HISTÓRICO..................................................... 7

2. Estilo literário da época............................................................ 9

3. O AUTOR.................................................................................................. 12

4. A OBRA..................................................................................................... 14

5. Exercícios............................................................................................ 37
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estrela da manhã

Manuel bandeira filho


Estrela da manhã

1. Contexto social e HISTÓRICO

Na História do Brasil, o período compreendido entre os anos de 1894 e 1930,


aproximadamente, é chamado de República Velha, “a política do café com leite”,
porque ocupava a Presidência da República ora um governo mineiro, ora um
paulista, o que revela a importância dada à lavoura cafeeira somada à pecuária.
A manutenção desse regime dependia, sobretudo, do equilíbrio entre a produção
e a exportação de café. A elite agropecuária brasileira delegava ao Estado o papel
de comprador dos excedentes para garantir o preço em face das oscilações de
mercado. Exemplo típico dessa política foi o chamado acordo de Taubaté, em 1906,
segundo o qual São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais se comprometiam a retirar
do mercado os excedentes da produção cafeeira para garantir o nível dos preços.
A sociedade brasileira, no início do século XX, sofre transformações graças
ao processo de urbanização e à vinda dos imigrantes europeus para a região
centro-sul do país. Entretanto, ao mesmo tempo em que principia o processo de
industrialização na região sudeste, a mão de obra desqualificada dos ex-escravos
é marginalizada, deslocando-se para a periferia e para os morros; a cultura ca-
navieira do Nordeste entra em declínio, pois ela não tinha como competir com
o apoio dado pelo governo federal à “política do café com leite”.
No final do século XIX e início do século XX, duas realidades coexistem no
Brasil: de um lado a urbanização da região Centro-Sul, com sua consequente indus-
trialização e, de outro, o atraso das regiões Norte e Nordeste. E um terceiro fator,
ainda mais grave, soma-se a este quadro: as oligarquias rurais com seus arranjos
políticos não representam os novos extratos socioeconômicos. O resultado será o
surgimento de um quadro caótico que terá seu término com a chamada Revolução
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de 30 e o Estado Novo de Getúlio Vargas.


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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

Na Bahia, teremos a chamada Guerra de Canudos; em Juazeiro, no Ceará, o


fenômeno do jagunço e o caso do Padre Cícero; os movimentos operários em São
Paulo; a criação do Partido Comunista; o Tenentismo, que teve seu ápice na Colu-
na Prestes, combatida por Arthur Bernardes e Washington Luís. É claro que esses
conflitos ocorreram em tempos e locais diversos, entre 1894 e 1930, parecendo
exprimir, às vezes, problemas bem localizados. Entretanto, no conjunto, revelam
a realidade de um país que se desenvolvia à custa de graves desequilíbrios. O
estouro da Bolsa de Nova York em 1929 e o Movimento Tenentista colocam fim
à República Velha com a vitória na chamada Revolução de 30, dando início ao
chamado Estado Novo ou Era Vargas.
Os intelectuais brasileiros da década de 20 não ficaram alheios a essas trans-
formações. Em São Paulo e Rio de Janeiro, sobretudo, artistas e intelectuais em
contato com as novas tendências do pensamento europeu, como o futurismo , o
surrealismo, o dadaísmo, o expressionismo e o cubismo preparam um evento, a
chamada Semana e Arte Moderna, com o intuito de romper com a mentalidade
conservadora, representada na literatura pelos poetas parnasianos e na política
pelas oligarquias rurais.
De modo geral, a maneira encontrada pelos artistas da década de 20 para
combater o formalismo parnasiano e a mentalidade acadêmica será a valoriza-
ção do irracionalismo. Mário de Andrade, com a sua poética do “desvairismo”
publicada no Prefácio Interessantíssimo de Paulicéia desvairada, Manuel Bandeira,
com sua teoria do “alumbramento” – a poesia vista como revelação, isto é, como
epifania, e toda a obra de Oswald de Andrade são três bons exemplos de atitude
artística e intelectual que procura subverter a ordem existente.
Manuel Bandeira publica em 1930 seu quarto livro de poesia, cujo título
revela o intuito de romper definitivamente com a norma poética: Libertinagem.
A década de 30 marca a ascensão dos grandes ditadores da primeira metade
do século: Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália e, no Brasil, Getúlio Vargas.
Em literatura, o período entre 1930 e 1945 é o momento do posicionamento
ideológico, político e social dos intelectuais brasileiros. A rebeldia estética da
primeira fase modernista cede lugar à literatura socialmente comprometida,
sobretudo no que diz respeito à prosa de ficção. É o momento do romance re-
gionalista de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e da poesia que
se ergue para defender a dignidade humana, como é o caso de A rosa do povo, de
Carlos Drummond de Andrade, publicada em 1945.

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Estrela da manhã

2. Estilo literário da época


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O movimento modernista brasileiro tem como marco inicial a Semana de


Arte Moderna de 1922. Em fevereiro desse ano, por sugestão do pintor Di Caval-
canti, um grupo paulista, formado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Paulo Prado, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e outros, juntamente
com escritores mais jovens do Rio de Janeiro, como Ronald de Carvalho, Renato
de Almeida e alguns mais, promoveram no Teatro Municipal de São Paulo a
chamada Semana de Arte Moderna, com exposição de pintura e escultura, con-
certos, conferências e declamações.
O modernismo brasileiro começou pelas artes plásticas. Em janeiro de 1917,
a pintora paulista Anita Malfatti realizou em São Paulo uma exposição de pintura,
na qual, além dos seus quadros, marcados por influências do expressionismo
alemão, apresentava também alguns quadros cubistas de pintores estrangeiros.
A exposição criou polêmica, ganhando a simpatia de uns e a antipatia de outros.
Monteiro Lobato escreveu um artigo cujo título era Paranóia ou Mistificação?,
negando valor artístico aos quadros. A exposição, entretanto, agradou a Mário
de Andrade e Oswald de Andrade.
Em 1920, Oswald de Andrade conheceu o escultor Brecheret, cuja arte re-
fletia a influência dos movimentos da vanguarda europeia e, em novembro desse
ano, publicou um artigo intitulado O meu poeta futurista, citando versos de Mário
de Andrade do livro Pauliceia desvairada, que só viria a ser publicado em 1922.
Em geral, a literatura dos modernistas, na chamada fase heroica do movi-
mento ou Primeira Fase Modernista, entre 1922 e 1930, provocou a subversão dos
gêneros literários. A poesia aproximou-se da prosa e esta adotou processos de
elaboração da linguagem poética. Houve uma aproximação dos diversos ismos
europeus, movimentos de vanguarda que procuravam romper com as normas
acadêmicas, como o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o futurismo e o
surrealismo.
A poesia abandonou as formas poéticas consagradas, como o verso metri-
ficado e rimado, exageradamente praticado pelos poetas parnasianos. Aderiu à
linguagem coloquial, ao verso livre, aos temas do cotidiano, ao humor e à ironia.
Os modernistas desejavam provar que a poesia estava na essência do que é dito e
na sugestão ou no choque das palavras escolhidas, e não nos recursos formais.
Na fase mais combativa do Modernismo Brasileiro, de 1922 a 1930, a prosa
sofreu transformações significativas. Os períodos tornaram-se curtos, fragmen-
tados, com espaços brancos na composição tipográfica e na própria sequência
do discurso, apresentando a realidade dividida em blocos sugestivos, cuja unifi-
cação exige do leitor adequação aos novos processos construtivos, uma vez que
dispensa a concatenação lógica. A aliteração (repetição dos sons das consoantes)
e a criação de neologismos passam a integrar a linguagem da prosa. O melhor
exemplo dessa técnica encontra-se em Memórias sentimentais de João Miramar, de
Oswald de Andrade.
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Estrela da manhã

De 1930, data da publicação de Alguma poesia, de Carlos Drummond de


Andrade, a 1945, ano de morte de Mário de Andrade, temos o que se convencio-
nou chamar de a segunda fase do Modernismo. As grandes experiências técnicas
com a linguagem cederam importância aos temas sociais. Surge uma literatura
que procura denunciar certos aspectos da realidade brasileira, sobretudo na
prosa. Aí se encontram os romances de Graciliano Ramos, como Vida secas (1938)
S. Bernardo (1934), Jorge Amado, Capitães da Areia (1937), Terras do Sem-Fim (1942),
entre outros.
De 1945 em diante, temos a chamada terceira fase do Modernismo. Alguns
estudiosos delimitam esta fase entre 1945, ano da morte de Mário de Andrade,
e 1964, ano do Golpe Militar. A linguagem é empregada como instrumento
da busca do ser, sobretudo em João Guimarães Rosa, Sagarana (1946), e Cla-
rice Lispector, Perto do coração selvagem (1944), A paixão segundo G.H. (1964) e
A hora da estrela (1977).
É importante ressaltar que a obra poética de Manuel Bandeira atravessa
as três fases do Modernismo brasileiro.
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

3. O AUTOR
Manuel Bandeira
Provinciano que nunca soube
Escolher direito uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação do espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.

O autoretrato é de 1948. Ele nos apresenta de forma direta alguns dos prin-
cipais traços do autor: ironia desencantada, sentimento de frustração e morbidez
profissional. Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu no Recife, em
Pernambuco e passou a infância na casa de seu avô Costa Ribeiro, que ficava na
rua da União. As experiências vivenciadas nesse período marcarão para sempre
a sensibilidade do poeta.
Aos dez anos de idade veio com a família para o Rio de Janeiro, onde fez
os estudos secundários, permanecendo até os dezessete anos. Aos dezoito anos
seguiu para São Paulo, com o intuito de cursar Arquitetura na Escola Politécnica
de São Paulo, curso que precisou abandonar ao término do primeiro ano, pois
havia contraído tuberculose.
Naquela época, por volta de 1904, o diagnóstico de tuberculose anunciava
morte próxima.
À procura de um clima adequado ao seu estado de saúde, esteve em vá-
rios lugares, inclusive em um sanatório na Suíça, onde entrou em contato com
o jovem poeta Paul Éluard, que viria a ser um dos principais representantes do
surrealismo francês.
A Primeira Guerra Mundial (1914) obrigou-o a voltar para o Brasil e, entre
1914 e 1922, perdeu toda a família. Sua saúde fez com que, até a maturidade,
tivesse vida cautelosa, concentrando-se na poesia e nos estudos.
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Estrela da manhã

Morou treze anos no morro do Curvelo, seguindo depois para o bairro da


Lapa, que era o principal ponto da vida boêmia do Rio de Janeiro.
Publicou seu primeiro livro em 1917, intitulado Cinza das horas seguido dois
anos depois por Carnaval, ambos ainda sob a influência da estética simbolista.
Desde 1912 vinha fazendo experiências com o verso livre e, em 1922, se integrou-se
ao movimento modernista, dando continuidade aos experimentos. Ritmo dissoluto,
de 1924, foi o seu primeiro livro integrado à nova estética modernista. Daí até
1930 produziria uma série de versos dedicados à ruptura do metro tradicional,
reunindo-os em um livro intitulado Libertinagem.
Em 1935, com a saúde melhor, foi nomeado inspetor de ensino secundário.
Em 1936, por ocasião dos seus cinquenta anos, os principais escritores brasileiros
deram testemunhos da importância da obra do poeta numa publicação intitulada
Homenagem a Manuel Bandeira. Nesse mesmo ano, surgiu Estrela da manhã, marcado
simultaneamente pela diversificação de temas e pela recuperação de técnicas,
ambas filtradas pela serenidade e pela ternura. Em 1938, foi nomeado professor
de literatura do Colégio Pedro II; em 1940 foi eleito para a Academia Brasileira de
Letras e, em 1944, trocou as aulas do colégio pelas de literatura hispano-americana
na Universidade do Brasil, cargo no qual se aposentou em 1956.
Manuel Bandeira faleceu no Rio de Janeiro em 1968, aos 82 anos de idade.
Para quem esperava morrer aos vinte anos, a vida lhe reservou grandes surpresas,
as quais se converteram em aprendizagem, pois a poesia do poeta é um retrato
de sua vida, uma descoberta permanente do milagre de existir.

Poesia de Manuel Bandeira


Cronologia
1917 – Cinza das horas
1919 – Carnaval
1924 – Poesias (os anteriores mais Ritmo dissoluto)
1930 – Libertinagem
1936 – Estrela da manhã
1948 – Mafuá do malungo
1952 – Opus 10
Poesias escolhidas – 1937, 1948, 1955, 1961
Poesias completas – (1940, 1944), contendo a Lira dos cinquent’anos (1948), Belo,
Belo (1951, 1954), Opus 10 (1955, 1958), Estrela da tarde
1955 – 50 poemas escolhidos pelo autor
1961 – Antologia poética
1963 – Estrela da tarde
1966 – Estrela da vida inteira
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1966 – Meus poemas preferidos


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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

4. A OBRA

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Estrela da manhã

Publicado em 1936, Estrela da manhã é o quinto livro de Manuel Bandeira;


contém 28 poemas, sendo 9 em versos livres, 16 metrificados (1 em francês) e 3
poemas em prosa. Diz o próprio autor que Em 1936, aos cinquent´anos de idade,
pois não tinha ainda público que me proporcionasse editor para os meus versos, A Estrela
da manhã saiu a lume em papel doado por meu amigo Luís Camilo de Oliveira Neto, e a
sua impressão foi custeada por subscritores. Declarou-se uma tiragem de 57 exemplares,
mas a verdade é que o papel só deu para 50.
Sobre o título do livro, o poeta nos informa em seu Itinerário de Pasárgada:
Em 1926 passei duas semanas num sítio distante de Mangaratiba umas duas horas de
canoa. A ida para lá, noite fechada ainda, foi a viagem mais bonita que fiz na minha vida.
Vênus luzia sobre nós tão grande, tão intensa, tão bela, que chegava a parecer escandalosa e
dava vontade de morrer (daquela hora é que iria sair o título do meu livro seguinte: Estrela
da manhã).
Estrela da manhã apresenta os temas centrais da poesia do autor, como
a morte, o cotidiano, o amor, a frustração decorrente dos desejos não realiza-
dos, a ironia e apresenta também os temas sociais e puros exercícios poéticos,
como a Balada das três mulheres do sabonete Araxá. Os versos livres convivem
harmoniosamente com os versos metrificados. Em ambos, imperam o ritmo
popular, o vocabulário leve e cotidiano, a linguagem em tom confessional, tão
típica do autor.
A metáfora da estrela é recorrente na obra de Bandeira. Além de aparecer
em outros poemas, ela aparece no título de três obras capitais do autor: Estrela da
manhã, Estrela da tarde e Estrela da vida inteira. Esta última vem a ser uma edição
publicada em 1966, contendo a obra poética completa do autor, com exceção das
traduções das peças teatrais.
O poema que abre o livro Estrela da manhã é homônimo do título da obra.

Estrela da manhã

Eu quero a estrela da manhã


Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua


Desapareceu com quem?
Procurem por toda parte
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

Digam que eu sou um homem sem orgulho


Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noites


Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário

Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandros


Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras

Com os gregos e com os troianos


Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e direi


[coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás

Procurem por toda parte


Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.

O poema contém 31 versos livres, espalhados por 10 estrofes. A estrofe inicial


apresenta a ânsia do poeta em encontrar o que ele denomina “estrela da manhã”,
solicitando para tanto a ajuda dos amigos e dos inimigos. A segunda estrofe confere
um significado especial à estrela, pois ela desapareceu nua, talvez acompanhada
por alguém. Ao associar o termo nua ao termo estrela, este ganha novo sentido,
indicando a encarnação do desejo do poeta numa figura feminina.
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Estrela da manhã

Na terceira estrofe, o despojamento moral do eu lírico reforça a ideia do


seu sofrimento em função da privação da companhia desejada: “Digam que sou
um homem sem orgulho \ um homem que aceita tudo \ que me importa?”
A quarta e quinta estrofes apresentam a passagem para um estado delirante,
que principia pela autodegradação e culmina numa visão surrealista, isto é, numa
imagem que brota diretamente do inconsciente: “girafa de duas cabeças”.
A sexta e sétima estrofes revelam, pelo recurso da anáfora, isto é, da repeti-
ção do termo no início do verso, o dilaceramento do eu lírico em face do desejo,
pois ele aceita toda a degradação moral do objeto desejado. A repetição do im-
perativo “pecai” alude ao próprio desejo de pecar, o que pode ser percebido na
estrofe seguinte, composta de um único verso: “Depois comigo”. O isolamento
do verso na estrofe intensifica a ideia de solidão. A sucessão dos verbos no im-
perativo pelo verso nominal, isto é, o verso sem verbo, realça a intensidade do
desejo e a condição solitária do eu lírico.
A abertura da penúltima estrofe apresenta um verso longo, sem vírgulas:
“Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e direi coisas de /
uma ternura tão simples”. A ausência de pontuação reforça a amplitude do de-
sejo. Mafuás são feiras ou parque de diversões; novena é o período de nove dias
dedicado a orações; cavalhadas é um folguedo, uma festa popular; a diversão
(mafuás, cavalhadas) e a devoção (novenas) fundem-se numa mesma perspec-
tiva, que é a busca da realização do desejo do eu lírico, e a imagem da mulher
desejada torna-se simultaneamente sagrada e profana. O desejo é tão intenso que
chega ao limiar da loucura “comerei terra” para, em seguida, converter-se em
sublime ternura na construção de um discurso “e direi coisas de uma ternura
tão simples” capaz de levar o objeto do seu desejo, no verso seguinte, à perda
da consciência: “Que tu desfalecerás”.
Na última estrofe, o eu lírico invoca o auxílio de todos em busca da “estrela
da manhã”: “Procurem por toda parte”. E a estrela parece assumir o significa-
do do desejo amoroso atormentado, pois é desejada “Pura ou degradada até a
última baixeza”.
O tema da frustração é constante na obra de Manuel Bandeira e aparece
muitas vezes ligado à imagem da estrela. A estrela que o poeta pode apenas
contemplar, sem jamais tocar, simboliza a impossibilidade da realização de uma
vida desejada. Na abertura de Estrela da vida inteira, o poeta escreveu: “Estrela da
vida inteira / da vida inteira que poderia ter sido / e que não foi. / Poesia, minha
vida verdadeira”.
Em Estrela da manhã, a imagem da estrela está relacionada ao desejo amo-
roso, mas ao desejo amoroso frustrado. O poeta procura pela estrela, mas não
consegue encontrá-la nem tocá-la
Curiosamente, o poema de abertura do livro e o de fechamento mantêm
entre si uma estreita relação, porque o último poema também apresenta a ima-
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gem da estrela:
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

A estrela e o anjo
Vésper caiu cheia de pudor na minha cama
Vésper em cuja ardência não havia a menor parcela de sensualidade
Enquanto eu gritava o seu nome três vezes
Dois grandes botões de rosa murcharam
E o meu anjo da guarda quedou-se de mãos postas no desejo insatisfeito de Deus
A imagem da estrela aparece agora na variante Vésper, que “caiu cheia de
pudor” na cama do poeta. A queda da estrela permite agora não apenas a con-
templação, mas a realização do desejo tão ardentemente manifestado no primeiro
poema. A imagem da estrela liga-se agora à imagem da flor, a “dois grandes
botões de rosa”. A realização do amor físico, entretanto, desperta a insatisfação
de Deus, já que o desejo de Deus é o de que os homens não cometam pecados.
A realização do desejo do eu lírico provoca a frustração do desejo de Deus:
“E o meu anjo da guarda quedou-se de mãos postas no desejo insatisfeito de
Deus”. Quando a estrela está próxima do desejo do poeta, ela está longe do desejo
de Deus, o que reforça a ideia de sua associação com a frustração.

O tema da frustração aparece de forma indireta no segundo poema do livro,


Canção das duas índias, composto em versos redondilhos maiores (sete sílabas
métricas):

Entre estas Índias de leste


E as Índias ocidentais
Meus Deus que distância enorme
Quantos oceanos pacíficos
Quantos bancos de corais
Quantas frias latitudes!
Ilhas que a tormenta arrasa
Que os terremotos subvertem
Desoladas Marambaias
Sirtes sereias Medeias
Púbis a não poder mais
Altos como a estrela d´alva
Longínquos como oceanias
– Brancas, sobrenaturais –
Oh inacessíveis praias!...

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Estrela da manhã

Os três versos iniciais do poema constatam que a distância entre as Índias


de leste e as Índias ocidentais é muito grande. Do quarto ao décimo terceiro
verso temos uma relação dos elementos que se interpõem entre as duas Índias:
oceanos, bancos de corais, ilhas, tormentas, terremotos, sirtes, sereias, medeias
(figuras mitológicas). Esses elementos configuram-se em obstáculos e dificulda-
des para a passagem de um ponto geográfico a outro, e o último verso confirma
tal impossibilidade “Oh inacessíveis praias!...”
O poema apresenta como ponto central a divisão entre dois espaços: de
um lado as Índias de leste e de outro as Índias ocidentais; entre os dois espaços,
a constatação da dificuldade em interligá-los.
Sabemos, por intermédio dos historiadores, que os descobridores ansiavam
por chegar às Índias Ocidentais, mas por engano ou acaso chegaram à América,
imaginando tratar-se das Índias de Leste (devemos a este engano, inclusive, o
fato de terem sido chamados de índios os habitantes do Brasil).
No poema, as expressões “Índias de leste” e “Índias ocidentais” convertem-
se em metáforas, porque, ao referir-se a elas, o autor alude à sua vida, ao proble-
ma de saúde (a tuberculose contraída na juventude) que o impossibilitou de ter
uma vida normal e de chegar aonde desejava. Assim, as metáforas simbolizam
a frustração, pois o poeta ambicionava chegar a um lugar e acaba chegando a
outro, constatando que o lugar realmente desejado é inacessível.
A frustração aparece no poema de forma indireta porque o seu enunciado
associa termos desconexos, como lugares geográficos (as Índias), seres mitoló-
gicos (sirtes, sereias, medeias), acidentes meteorológicos (tormenta, terremoto),
parte do corpo feminino (púbis). Esta associação, aliás, aproxima o poema da
estética surrealista, pois, no surrealismo, a associação desconexa de imagens que
brotam do inconsciente constitui o ponto central da criação artística.
O aspecto surrealista do poema (já que as imagens parecem brotar do
inconsciente) liga-se a uma atmosfera de sonho. Daí viabiliza-se uma possível
associação entre as imagens do poema e as imagens de um sonho ou pesadelo,
pois se todo sonho, como quer Freud, é a representação de um desejo oculto, as
imagens do poema representam a frustração e a angústia do eu lírico por não
conseguir atingir o que desejava. “Oh inacessíveis praias!...” parece simbolizar
no poema a “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.
O terceiro poema do livro é um dístico (poema com dois versos):

Poema do beco
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
– O que eu vejo é o beco.
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

O eu lírico expõe o seu dilema: o que importa toda a beleza existente, se o


que ele vê é o beco? Como sabemos que beco é uma rua estreita, quase sempre
sem saída, podemos perceber aqui o seu significado metafórico: ele representa
o estreitamento da vida, a limitação imposta ao poeta pela doença. A organiza-
ção do espaço reforça esse sentido, porque temos de um lado espaços amplos
e belos (a vida desejada pelo poeta) e de outro uma rua estreita e sem saída (a
vida imposta pela doença).
Sobre o poema, disse Manuel Bandeira: Da janela do meu quarto em Mo-
rais e Vale podia eu contemplar a paisagem, não como fazia do morro do Curvelo,
sobranceiramente, mas como que de dentro dela: as copas das árvores do Passeio
Público, os pátios do Convento do Carmo, a baía, a capelinha da Glória do Outeiro...
No entanto e quando chegava à janela, o que me retinha os olhos, e a meditação, não
era nada disso: era o becozinho sujo, embaixo, onde vivia tanta gente pobre – lava-
deiras e costureiras, fotógrafos do Passeio Público, garçons de cafés. Esse sentimento
de solidariedade com a miséria é que tentei pôr no ‘Poema do Beco’ com a mesma
ingenuidade com que mais tarde escrevi um poema sobre o boi morto que vi passar
numa cheia do Capibaribe. Fiquei, pois, surpreendido ao ver que faziam de um e de
outro poema pedras de escândalo.
O quarto poema é um trabalho de colagem ou justaposição de versos:

Balada das três mulheres do sabonete Araxá


As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me boulevesam,
[me hipnotizam
Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Que outros, não eu, a pedra cortem


Para brutais vos adorarem,
Ó brancaranas azedas,
Mulatas cor da lua vêm saindo cor de prata
Ou celestes africanas:
Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete
[Araxá
São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete
[Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?
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Estrela da manhã

Meu Deus, serão as três Marias?

A mais nua é doirada borboleta.


Se a segunda se casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e
[nunca mais telefonava.
Mas se a terceira morresse... oh, então, nunca mais a minha vida
[outrora teria sido um festim!

Se me perguntassem: Queres ser estrela? queres ser rei? queres uma


[ilha no Pacífico? um bangalô em Copacabana?
Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as três
[mulheres do sabonete Araxá:
O meu reino pela três mulheres do sabonete Araxá!

Sabemos, por intermédio do autor, que o poema foi elaborado por meio
da colagem de fragmentos de versos e de versos inteiros de autores como Olavo
Bilac, Oscar Wilde, Castro Alves, Shakespeare e Luís Delfino. Os trechos escolhi-
dos eram os mais conhecidos e repetidos pelos leitores medianos da época e, por
isso mesmo, haviam perdido a força poética de origem. Escolhendo justamente
os clichês poéticos da época (as frases feitas) e juntando-lhes o anúncio de um
sabonete barato, Manuel Bandeira revitaliza os antigos versos, insuflando-lhes
vida nova. Resgatados do universo das frases feitas e associados à imagem de
um sabonete, ironicamente os versos ganham nova carga poética, porque surgem
num contexto novo, que lembra as estéticas das vanguardas europeias, como
o cubismo e o surrealismo, que juntavam perspectivas diversas e imagens do
inconsciente, respectivamente, na composição artística.
O poema seguinte, intitulado O amor, a poesia, as viagens, é um jogo sonoro:
Atirei um céu aberto
Na janela do meu bem:
Caí na Lapa – um deserto...
– Pará, capital Belém!...

Os versos redondilhos (sete sílabas métricas), e as rimas em erto e a vogal


aberta e conferem musicalidade à estrofe. Sobre o poema, diz o autor em seu
Itinerário de Pasárgada: “Em março de 1933, me vi forçado a abandonar o meu
apartamento do Curvelo (soube que lá morou depois Rachel de Queirós); hoje a
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casa não existe mais, foi demolida). Passei a residir em Morais e Vale, uma rua em
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

cotovelo, no coração da Lapa. A tristeza dessa mudança exprimi-a numa quadra


sibilina intitulada O amor, a poesia, as viagens. É um poema ininteligível nos seus
elementos, porque só eu possuo a chave que o explica; mas que a explicação não
é necessária para que as pessoas dotadas de sensibilidade poética penetrem a
intenção essencial dos versos se prova pelo comentário da nossa grande Cecília
Meireles, que os qualificou de ‘pura lágrima’. Aproveito a ocasião para jurar
que jamais fiz um poema ou verso ininteligível para me fingir de profundo sob
a especiosa capa de hermetismo. Só não fui claro quando não pude – fosse por
deficiência ou impropriedade, fosse por discrição”.
O sétimo poema O desmemoriado do Vigário Geral, bem como o vigésimo
segundo Tragédia brasileira, e o vigésimo terceiro, Conto cruel, são poemas em
prosa. Vejamos o mais conhecido deles,

Tragédia brasileira
Misael, funcionário da fazenda, com 63 anos de idade.
Conheceu Maria Elvira na Lapa, – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma
aliança empenhada e os dentes em petição de miséria
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou
médico, dentista, manicura...Dava tudo quanto ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez
nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ra-
mos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp,
outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligên-
cia, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida
de organdi azul.
O poema narra uma história com desfecho trágico, aparentemente comum
na sociedade brasileira , daí o título “Tragédia brasileira”.
Como o texto apresenta uma narração, temos os personagens centrais: Mi-
sael e Maria Elvira. Misael é um funcionário público, com 63 anos de idade, que
se apaixona por uma prostituta. Maria Elvira é a prostituta marcada por doenças
e por uma situação financeira precária: “uma aliança empenhada”.
O espaço é a cidade do Rio de Janeiro, a referência aos bairros típicos
permite a identificação do local. O tempo decorrente da ação é de três anos:
“Viveram três anos assim”.
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Estrela da manhã
O enredo consiste na relação dos amantes: Misael cuida de Maria Elvira;
esta, ao sentir-se melhor, volta a ter outros amantes. A multiplicidade dos amantes
é indicada pela referência aos bairros em que eles residiam. O desfecho trágico
ocorre na Rua da Constituição, onde, “privado de sentidos e de inteligência”,
Misael a matou com seis tiros.
O que confere ao texto uma carga poética é a forma como o autor o trata.
Ao apresentar a narração de um fato ocorrido na cidade do Rio de Janeiro sem
nenhuma dramaticidade e intitulá-la exatamente “Tragédia brasileira”, o autor
cria um aparente paradoxo. Se a história é tão corriqueira, sem ênfase na carga
emotiva, apresentada em linguagem simples, com personagens simplórios, o
que a torna uma tragédia?
Por ser um acontecimento simples, tratado de forma quase banal, o texto
explode em sua significação poética. Na sociedade fluminense, por extensão,
na sociedade brasileira, os crimes passionais têm se tornado banais e cotidia-
nos, vistos como acontecimentos sem importância, dada sua frequência. Ao
transportá-los para um livro de poesia, Manuel Bandeira revitaliza sua signi-
ficação, despertando o leitor para um fato trágico: é a banalização de um crime
como este que o torna ainda mais trágico. A ocorrência de delitos passionais no
cotidiano da sociedade brasileira é uma tragédia que não pode ser ignorada.
Ao reportar-se a ela de forma simples, o autor desperta nossa atenção para o
fato, fazendo-nos ver aquilo que o cotidiano, por força da repetição, acaba por
nos cegar, porque atrás da suposta banalidade está a tragédia. A simplicidade
estilística revela então o impacto da tragédia, porque a linguagem poética
mantém vivo, em sua atemporalidade, um acontecimento que passaria des-
percebido ao olhar cotidiano.
O oitavo poema sugere uma tonalidade erótica.

A filha do rei
Aquela cor de cabelos
que eu vi na filha do rei
– Mas vi tão subitamente –
Será a mesma cor da axila,
Do maravilhoso pente?
Como agora o saberei?
Vi-a tão subitamente!
Ela passou como um raio:
Só vi a cor dos cabelos.
Mas o corpo, a luz do corpo?...
Como seria o seu corpo?...
Jamais o saberei!
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

Nos doze versos redondilhos, o eu lírico revela o apelo erótico suscitado


pela visão de uma mulher. Nos três versos iniciais, a visão de relance de uma
mulher “Aquela cor de cabelos” o leva a uma série de questionamentos, como
a querer saber a cor da axila, do pente, ou seja, do púbis (do sexo feminino). A
imaginação, por força da indagação, faz vibrar as lacunas do desejo, pois o que
não foi visto é imaginado. As reticências no antepenúltimo e penúltimo versos
reforçam o sentido de permanência da dúvida na imaginação erótica do eu lírico,
como se o questionamento prosseguisse sem fim: ele deseja saber como é o corpo
da mulher. O último verso, entretanto, insere uma certeza: a de que ele jamais
saberá como é de fato o corpo dessa mulher.
O título “A filha do rei” sugere que a figura feminina é uma mulher especial,
uma princesa, porque vê-la de relance foi o suficiente para despertar no eu lírico
o desejo erótico. Assim como na Canção das duas Índias, o poema termina com a
certeza da frustração: “Jamais o saberei”.
O poema seguinte apresenta o erotismo de forma bastante suave.

Cantiga
Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.

Nas ondas da praia


Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d´alva
Rainha do mar.

Quero ser feliz


Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.

Nessa redondilha menor (cinco sílabas métricas), o balanço das ondas do


mar pela sua constância parece sugerir a permanência de determinados dese-
jos. “Quem vem me beijar” indaga o eu lírico para, em seguida, manifestar seu
desejo pela estrela-d’ alva: “Quero a estrela-d´alva” . Na ausência do beijo e da
estrela-d´alva, a cadência sonora das ondas do mar parece confortar o eu lírico.
Daí o título “Cantiga”, pois o termo, além de designar certa composição poética,
alude também ao som desencadeado pelas ondas do mar.

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Estrela da manhã

O nono poema é também uma redondilha menor:

Marinheiro triste
Marinheiro triste
Que voltas para bordo
Que pensamento são
Esses que te ocupam?

Alguma mulher
Amante de passagem
Que deixaste longe
Num porto de escala?
Ou tua amargura
Tem outras raízes
Largas fraternais
Mais nobres mais fundas?
Marinheiro triste
De um país distante
Passaste por mim
Tão alheio de tudo
Que nem pressentiste
Marinheiro triste
A onda viril
De fraterno afeto
Em que te envolvi.

Ias triste e lúcido


Antes melhor fora
Que voltasses bêbedo
Marinheiro triste!

E eu que para casa


Vou como tu vais
Para o teu navio,
Feroz casco sujo
Amarrado ao cais,
Também como tu
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

Marinheiro triste
Vou lúcido e triste.
Amanhã terás
Depois de partires
O vento do largo
O horizonte imenso
O sal do mar alto!
Mas eu,marinheiro?

– Antes melhor fora


Que voltasse bêbedo.

No poema acima, o poeta estabelece uma comparação entre a própria tris-


teza e a tristeza de um marinheiro. Um marinheiro estava tão mergulhado na
própria tristeza que não percebeu a identificação que o poeta estabeleceu com
ele: “Passaste por mim / tão alheio a tudo / que nem pressentiste / Marinheiro
triste /a onda viril de afeto / em que te envolvi”. A solidariedade do poeta com
o marinheiro emerge de um sentimento comum a ambos: a tristeza. Ambos
voltam lúcidos e tristes para o lar, não lhes restando sequer o conforto imediato
que o álcool traz: “Ias triste e lúcido /antes melhor fora / que voltasse bêbedo”.
Enquanto para o marinheiro haverá algum conforto na distância a que o barco
o conduzirá: “Amanhã terás / depois que partires /o vento do largo /o horizonte
imenso / o sal do mar alto!” , ao poeta restará apenas o mesmo roteiro, ou seja, o
mesmo caminho sem novidade nem conforto, por isso conclui: “ – Antes melhor
fora / que voltasse bêbedo”.
O poema seguinte, Boca de forno, e o décimo nono, Trem de ferro, exploram
ostensivamente a camada sonora do texto, tornando-a essencial para a compre-
ensão do poema. Vejamos o mais conhecido deles.

Trem de ferro
Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
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Estrela da manhã

Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
de cantar!

Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...

O poema contém 53 versos distribuídos em 6 estrofes de tamanhos irregu-


lares, formadas de versos que variam entre 1 e 12 sílabas métricas. A extensão
dos versos e das estrofes está diretamente ligada ao sentido do poema. Os três
primeiros versos apresentam uma onomatopeia (som imitativo) que reproduz
o som de um trem de ferro que começa a se locomover .
A segunda estrofe contém um verso de doze sílabas métricas, o maior do
poema, provocando quebra no andamento sonoro do poema. A exclamação
“Virge Maria” traduz o susto provocado em alguém, razão função da mudança
repentina do movimento do trem.
A palavra “Agora” que abre a terceira estrofe anuncia que o trem retoma
o andamento normal, intensificando gradativamente a velocidade. Os versos
iniciais da terceira estrofe têm quatro sílabas métricas e, em determinado mo-
mento, passam a ter três, o que traduz o aumento da velocidade do trem. Os
versos “bota fogo / na fornalha / Que eu preciso / muita força / muita força /
muita força” indicam elevação da potência da máquina, acarretando aceleração
da velocidade.
Na quarta estrofe, o verso de abertura é mais uma onomatopeia, pois
procura reproduzir o som do apito do trem. Os versos seguintes apresentam a
sucessão vertiginosa da paisagem.
Na quinta estrofe, ocorre mudança de voz e de tema: o poema que vinha
reproduzindo a “voz” do trem passa a apresentar a fala dos passageiros que estão
no trem. Entretanto, o relato das experiências e dos cantos dos passageiros du-
rante a viagem é entrecortado pelo apito do trem “Oô...”. A fala dos passageiros

28
Estrela da manhã
que contam casos populares “Quando me prenderam “, cantarolam canções de
amor “Menina bonita / do vestido verde”, falam da saudade da terra natal “vou
mimbora vou mimbora /não gosto daqui /nasci no sertão / sou de Ouricuri” ganha
uma ortografia próxima da oralidade, o que confere ao texto forte impressão de
autenticidade da fala popular.
Na última estrofe, os versos com três sílabas métricas reproduzem nova-
mente a velocidade do trem.
O décimo primeiro poema, Oração a Nossa Senhora da Boa Morte, o décimo
segundo, Momento num café, e o décimo sexto, Jacqueline, abordam explicitamente
o tema da morte. Vejamos um dos mais conhecidos.

Momento num café


Quando o enterro passou
Os homens que estavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado


Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

O poema contém duas estrofes com versos livres: na primeira, ante a pas-
sagem de um enterro, os homens que estavam num café fizeram uma saudação
ao morto, tirando o chapéu. Entretanto, o gesto maquinal indica que eles não
estavam pensando na morte enquanto saudavam o morto e sim na vida. “Esta-
vam todos voltados para a vida”. Na segunda estrofe, um dos homens do café
descobre o sentido da vida: “Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem
finalidade / que a vida é traição”.
O poeta parece estar de fora da cena (mas também poderia ser um dos
frequentadores do café ou uma das pessoas que acompanhavam o enterro),
observando o comportamento dos homens. Percebe no olhar de um homem a
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

descoberta que este faz do sentido da vida ao ver o enterro. A perspicácia do


poeta capta o olhar do homem e o decifra e, ao decifrá-lo, faz com que o poeta
e o homem se identifiquem. O que o homem acaba de descobrir parece ser uma
verdade já conhecida do poeta.
O texto mostrado acima é um dos raros poemas de Manuel Bandeira que
contém uma visão negativa da vida.
O poema seguinte intitula-se Contrição, cujo significado, segundo o Novo
Dicionário Aurélio é “espécie de arrependimento pelas próprias culpas ou peca-
dos, motivado pela caridade sobrenatural ou pelo amor de Deus”. É bastante
significativo o fato de este poema vir imediatamente após Momento num café, que,
como foi dito, contém uma visão negativa da vida.

Contrição

Quero banhar-me nas águas límpidas


Quero banhar-me nas águas puras
Sou a mais baixa das criaturas
Me sinto sórdido

Confiei às feras as minhas lágrimas


Rolei de borco pelas calçadas
Cobri meu rosto de bofetadas
Meu Deus valei-me

Vozes da infância contai a história


Da vida boa que nunca veio
E eu caía ouvindo-a no calmo seio
Da eternidade.

O poema possui três estrofes com quatro versos, sendo os três primeiros
versos eneassílabos (nove sílabas métricas) e o último um verso com quatro síla-
bas métricas. O poeta manifesta o desejo de purificar-se, pois se sente sujo: “Sou
a mais baixa das criaturas”. Nada, entretanto, parece livrá-lo da culpa imensa
que o aflige. As lembranças da infância são solicitadas a comparecer e a contar
“a história da vida boa que nunca veio”. Tais lembranças parecem ser o único
conforto que o poeta encontra em meio ao sofrimento e, por isso, deseja levá-las
para a eternidade.
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Estrela da manhã

O décimo sétimo poema, D. Janaína, é um texto leve, bastante musical; nele,


o poeta apresenta uma entidade da religião afro-brasileira – D. Janaína, rainha
do mar, também conhecida como Iemanjá.

D. Janaína
D. Janaína
Sereia do mar
D. Janaína
De maiô encarnado
D. Janaína
Vai se banhar.

D. Janaína
Princesa do mar
D. Janaína
Tem muitos amores
É o rei do Congo
É o rei de Aloanda
É o sultão dos matos
É S. Salavá!

Saravá saravá
D. Janaína
Rainha do mar!

D. Janaína
Princesa do mar
Dai-me licença
Pra eu também brincar
No vosso reinado.

No poema, o poeta apresenta, em versos redondilhos menores (5 sílabas


métricas), uma das entidades mais conhecidas na umbanda e no candomblé, o
orixá feminino Iemanjá, que aparece como Janaína, a rainha do mar. A estrofe
inicial aproxima a entidade de uma pessoa, realçando sua sensualidade “de maiô
encarnado” (vermelho). Como na religião afro-brasileira as entidades não veem
o amor como pecado, D. Janaína tem muitos amores: “É o rei do Congo / É o rei
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de Aloanda / É S. Salavá!”
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

Na terceira estrofe, o poeta faz a saudação a D. Janaína “Saravá saravá” e


pede, na estrofe seguinte, que lhe dê licença para que ele possa brincar no seu reino.
Como o reino dela é o mar e o amor é uma dádiva que ela tem o poder de conceder
e de tirar, ao pedir licença “Pra eu também brincar / no vosso reinado” o poeta
manifesta o desejo de desfrutar da felicidade que o amor erótico pode oferecer.
Ao manifestar-se em linguagem formal, tratando a entidade por vós, o poeta
revela o respeito e a devoção que normalmente são dedicados a Iemanjá ou Janaína.
Ao tomar como tema poético uma entidade da religião afro-brasileira, o
poeta revela uma das intenções marcantes do movimento modernista: transfor-
mar em tema poético os elementos da cultura popular.
O vigésimo terceiro poema, Rondó dos cavalinhos e o vigésimo quinto, Rondó
do Palace Hotel, são composições denominadas rondó, tipo de composição de ori-
gem medieval francesa, devendo ter número fixo de versos, normalmente treze,
com um primeiro retorno obrigatório a dois deles, e, em seguida só a um, de
maneira a formar um refrão. Quanto à rima, o poema não deve ter mais de duas.
O Rondó do Palace Hotel dá um tratamento modernista ao rondó da música, tam-
bém de origem francesa e medieval, mas ligado à dança cantada ou à canção
dançada, enquanto o Rondó dos cavalinhos aproxima-se mais da forma literária.

Rondó dos cavalinhos


Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo.

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O sol tão claro lá fora,
E em minhalma – anoitecendo!

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Alfonso Reyes partindo,
E tanta gente ficando...

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...
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Estrela da manhã

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minhalma – anoitecendo!

Segundo um importante estudioso da literatura brasileira, o professor


Antonio Candido, Este poema foi publicado no livro Estrela da manhã (1936),
com o título “Rondó do Jockey Club”. A ideia da composição veio ao poeta durante
um almoço oferecido naquele lugar ao grande escritor mexicano Alfonso Reyes em
1935, por ocasião da sua despedida do Brasil, onde era embaixador. E há mais algu-
mas informações necessárias: no mesmo ano de 1935 a Itália invadiu a Abissínia, e
a Liga das Nações tentou isolá-la, propondo contra ela sanções econômicas que não
tiveram efeito; o ditador Mussolini as desautorou e os países signatários não reagi-
ram. Naquela altura, discutia-se muito no Brasil se a poesia estava no fim, diante da
profunda transformação dos meios estéticos e do caráter pragmático da vida moder-
na. Há também no poema uma queixa relativa à politicagem nacional, então mais
movimentada e visível, pois o país tinha saído em 1934 de um período de exceção
(e iria entrar noutro, mais duro, em 1937). Fora disso, nada mais a esclarecer como
elemento de fora do poema. Com efeito, Esmeralda é criação dele, independente do
nome corresponder ou não a determinada mulher, pois está concebida como entidade
poética, podendo inclusive ser o incorpóreo “eterno-feminino”, a Mulher”.
A pontuação do texto institui o ritmo, sobretudo nos dois primeiros versos
da estrofe. O ritmo do primeiro verso de cada estrofe é suave, parece que os “ca-
valinhos” estão deslizando, enquanto, no segundo verso, os “cavalões” parecem
galopar, ruidosamente.
Ainda segundo Antonio Cândido, o poema descreve a oposição entre uma
cena vivida e as reflexões ou sentimentos que se vão desenrolando simultaneamente
no íntimo do poeta. Na tribuna de um prado de corridas (que naquela tempo era
lugar muito elegante), há um almoço em homenagem, enquanto os cavalos correm.
(...) No salão, os convidados parecem na verdade uns animais, indiferentes ao que
vai no espírito do poeta, insensíveis à beleza da tarde, inconscientes da gravidade do
mundo. O poeta divaga sobre tudo isso, mas lembra coisas frustrantes, em oposição
e contraste com o movimento externo, a euforia da corrida e da festa. Frustradoras
– sejam as de cunho pessoal (insatisfação amorosa, melancolia), sejam as de cunho
social (partida de um homem eminente, descalabro da paz no mundo, politicagem no
país). Há mistura , oposição constante entre a cena exterior e a ‘ladeira do devaneio’
(para falar como Victor Hugo). E parece que as coisas brilhantes recobrem no fundo
as coisas deprimentes. No entanto, tudo isso deve ser tomado como um grão e sal,
porque afinal a vida é assim mesmo, e nela tudo se mistura, não havendo estados
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

de pureza da percepção ou das emoções. O que não impede que o balanço, nessa
tarde de domingo festivo, seja melancólico. Uma ironia melancólica, que atenua o
patético, mas também embota a amargura e o sarcasmo.(...)
O vigésimo quinto poema recebe o título de Declaração de amor e é de fato
uma declaração de amor à cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais.

Juiz de Fora! Juiz de Fora!


Guardo entre as minhas recordações
Mais amoráveis, mais repousantes
Tuas manhãs!

Um fundo de chácara na Rua Direita


Coberto de trapuerabas...
Uma velha jabuticabeira cansada de doçura.
Tuas três horas da tarde...
Tuas noites de cineminha namorisqueiro...
Teu lindo parque senhorial mais segundo-reinado do que a própria
[Quinta da Boa Vista...
Teus bondes sem pressa dando voltas vadias...

Juiz de Fora! Juiz de Fora!


Tu tão de dentro deste Brasil!
Tão docemente provinciana...
Primeiro sorriso de Minas Gerais!

Nota: o poeta adotou aqui a ortografia popular “trapuerabas”, sendo a


norma culta “trapoeraba”. Trapoerada é o nome de uma planta medicinal.
O poema possui três estrofes, num total de quinze versos Na primeira e
última estrofes, os três primeiros versos são eneassílabos (nove sílabas métricas),
sendo o último da primeira estrofe um verso com quatro sílabas métricas e o
último da terceira estrofe um verso com onze sílabas métricas. A estrofe do meio
não possui versos regulares, sendo todos livres.
Mais importante que a métrica vem a ser a pontuação. Enquanto nas estrofes
de abertura e fechamento do poema predominam as exclamações, na intermediária
predominam as reticências. Na abertura e no fechamento do texto, temos a evocação
da cidade. O eu lírico traz à memória a cidade de Juiz de Fora, reportando-se a ela
afetivamente, afirmando (daí as exclamações) ter boas recordações do lugar. Na
estrofe intermediária, as recordações emergem, despontam e as reticências indicam
o devaneio do eu lírico ao recordar-se de determinados momentos ali passados.
34
Estrela da manhã

Na última estrofe, o eu lírico evoca a cidade nos dois primeiros versos e,


no terceiro, inicia novamente um devaneio “Tão docemente provinciana...”, mas
agora evita o mergulho nas recordações e encerra o poema com uma exclamação:
“Primeiro sorriso de Minas Gerais!”
O título do poema refere-se ao carinho do eu lírico pela cidade mineira
vizinha do estado do Rio de Janeiro.
O penúltimo poema do livro recebe o título Flores murchas; nele, o poeta
estabelece um paralelo entre a infelicidade das crianças e as suas esperanças,
comparando ambas a uma flor murcha,.
Flores murchas
Pálidas crianças
Mal desabrochadas
Na manhã da vida!
Tristes asiladas
Que pendeis cansadas
Como flores murchas!

Pálidas crianças
Que me recordais
Minhas esperanças!

Pálidas meninas
Sem amor de mãe,
Pálidas meninas
Uniformizadas,
Quem vos arrancara
Dessas vestes tristes
Onde a caridade
Vos amortalhou!

Pálidas meninas
Sem olhar de pai,
Ai quem vos dissera,
Ai quem vos gritara:
– Anjos, debandai!
Mas ninguém vos diz
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Nem ninguém vos dá


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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

Mais que o olhar de pena


Quando desfilais,
Açucenas murchas,
Procissão de sombras!

Ao cair da tarde
Vós me recordais
– Ó meninas tristes! –
Minhas esperanças!
Minhas esperanças
– Meninas cansadas,
Pálidas crianças
A quem ninguém diz:
– Anjos, debandai!...

Poema em versos em redondilha menor (cinco sílabas métricas), com seis


estrofes, num total de trinta e cinco versos. Na primeira estrofe, as crianças são
comparadas a “flores murchas” porque, assim como a flor sem cuidado perde a
beleza, as crianças sem carinho perdem a alegria da infância.
Na segunda estrofe, o eu lírico desenvolve explicitamente um paralelo entre as
crianças e as esperanças que ele teve na infância. Assim como as crianças imersas na
miséria e no abandono perdem as esperanças, ele também as perdeu ainda jovem.
Na terceira estrofe, a imagem da pobreza uniformiza as crianças, e as suas
roupas (“vestes”) são mortalhas, isto é, roupas com que se trajam defuntos, porque
a caridade alheia oferece-lhes apenas os trapos para o dia a dia, condenando-as a
uma vida sem brilho e sem alegria. Daí o desejo do eu lírico de que alguém gritasse:
: “– Anjos, debandai!”, para que as crianças não fossem mais “vidas secas”.
Mas não há o grito, há apenas o olhar de piedade das pessoas. As crianças
são, na quarta estrofe, vistas como “açucenas murchas” (o mesmo que flores
murchas) e “procissão de sombras”.
Na última estrofe, o eu lírico volta a estabelecer a comparação entre as
crianças e as suas esperanças, pois ambas murcharam ainda cedo.
Como em todos os poemas do livro, o conhecimento da biografia do autor
é essencial para o entendimento do texto. Sabemos que a relação estabelecida
pelo poeta entre as crianças e as suas esperanças deve-se ao fato de a doença tê-lo
impedido de realizar seus sonhos de menino. Assim como a doença podou cedo
as suas esperanças, a miséria social que aflige as crianças também é uma doença,
pois impossibilita-as de realizar os seus sonhos, ainda que estes sejam modestos.
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Estrela da manhã

5. Exercícios
Trem de ferro
Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
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de cantar!
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...

1.
Sobre o poema mostrado, é correto afirmar:
a) Não apresenta grande preocupação com a sonoridade, pois o objetivo maior
é narrar uma viagem feita de trem.
b) Fere os princípios da estética modernista, apresentando registros da norma
popular, como aparece em “Quando me prendero / no canaviá / cada pé de
cana / era um oficiá”.
c) Valoriza a sonoridade da linguagem poética, associando o som das vogais
e consoantes ao ritmo do trem, e aproxima a norma culta da linguagem da
variante popular, como ocorre em “menina bonita / do vestido verde / me dá
tua boca ; pra matá minha sede”.
d) Não ocorre no poema nenhuma onomatopeia (som imitativo).
e) Não ocorre associação entre o som e o sentido, assim o jogo sonoro não está
associado ao movimento do trem.
38
Estrela da manhã

Texto para as questões 2 e 3

Marinheiro triste
Marinheiro triste
Que voltas para bordo
Que pensamento são
Esses que te ocupam?
Alguma mulher
Amante de passagem
Que deixaste longe
Num porto de escala?
Ou tua amargura
Tem outras raízes
Largas fraternais
Mais nobres mais fundas?
Marinheiro triste
De um país distante
Passaste por mim
Tão alheio de tudo
Que nem pressentiste
Marinheiro triste
A onda viril
De fraterno afeto
Em que te envolvi.

Ias triste e lúcido


Antes melhor fora
Que voltasses bêbedo
Marinheiro triste!

E eu que para casa


Vou como tu vais
Para o teu navio,
feroz casco sujo
Amarrado ao cais,
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

também como tu
Marinheiro triste
Vou lúcido e triste.

Amanhã terás
Depois de partires
O vento do largo
O horizonte imenso
O sal do mar alto!
Mas eu,marinheiro?

– Antes melhor fora


Que voltasses bêbedo.

a) No texto acima, por que o poeta se compara ao marinheiro?


b) Segundo o poeta, qual dos dois tem pior destino?
3.
a) Transcreva do poema os versos em que o poeta se identifica com o marinheiro.
b) Segundo o poeta, por que seria melhor se o marinheiro voltasse bêbedo para
o navio?

Estrela da manhã
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua


Desapareceu com quem?
Procurem por toda parte

Digam que eu sou um homem sem orgulho


Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
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Estrela da manhã

Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandros


Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras

Com os gregos e com os troianos


Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e direi


[coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás

Procurem por toda parte


Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.

Texto para as questões 4 e 5


4.
Sobre o poema mostrado, que dá título ao livro de Manuel Bandeira, é correto
afirmar:
a) Os versos são todos em redondilha maior.
b) O tema central é a própria poesia, o que o caracteriza como um poema meta-
linguístico.
c) O erotismo não se faz presente, uma vez que a “estrela” liga-se exclusivamente
aos valores do cristianismo.
d) A estrela configura-se em metáfora do amor erótico e do desejo angustiado
de sua realização.
e) O enfoque central é a morte, tema recorrente em diversos poemas do autor.
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

5.
Nos versos “Virgem mal-sexuada / atribuladora dos aflitos / Girafa de duas ca-
beças / Pecai por todos pecai com todos”, percebe-se o movimento da vanguarda
européia denominado:
a) impressionismo.
b) futurismo.
c) dadaísmo.
d) surrealismo.
e) cubo-futurismo.

Texto para as questões 6 e 7

Tragédia brasileira
Misael, funcionário da fazenda, com 63 anos de idade.
Conheceu Maria Elvira na Lapa, – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma
aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado do estácio, pagou
médico, dentista, manicura...Dava tudo quanto ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez
nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos,
Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra
vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência,
matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de
organdi azul.

6.
No texto, a referência aos bairros da cidade do Rio de Janeiro tem por fina-
lidade:
a) apresentar ao leitor os principais bairros da cidade.
b) indicar a distância entre um bairro e outro.
c) sugerir que Maria Elvira tivera vários amantes.
d) sugerir que Misael morou em todos os bairros mencionados.
e) realçar a violência presente nos bairros mencionados.
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Estrela da manhã

7.
O título do texto justifica-se porque:
a) trata-se de composição para teatro, tragédia, que tem seu desfecho numa rua
da cidade do Rio de Janeiro.
b) trata-se de composição para o teatro, adaptada à realidade brasileira.
c) o texto apresenta, de forma dramática, um acontecimento raro na sociedade
fluminense e brasileira.
d) o desfecho trágico da história dos amantes é comum nas peças teatrais.
e) o poema narra história passional com desfecho trágico, bastante comum na
sociedade brasileira.
8.
Poema do beco
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
– O que eu vejo é o beco.

O texto acima pertence ao Modernismo porque:


a) os versos estão metrificados.
b) o vocabulário é erudito.
c) os versos metrificados valorizam o fazer poético, associando a forma a um
tema distante do cotidiano.
d) os versos livres e brancos apresentam um tema prosaico, comum no, cotidiano.
e) revela um gosto acentuado pelas formalidades acadêmicas.
9.
Momento num café
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado


Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho

Que a vida é traição


E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

a) Identifique, pelas características, o movimento literário a que pertence o poema


exposto.
b) Além do tema da morte, que outro tema está presente no livro Estrela da manhã?

GABARITO

1. C este voltasse bêbado para que pudesse per-


2. der a consciência (a lucidez), esquecendo-
a) O poeta se compara ao marinheiro porque se assim, ainda que temporariamente, do
ambos estão lúcidos e tristes. Embora próprio sofrimento.
desconheça as causas da tristeza do ma- 4. D 5. D 6. C
rinheiro, o poeta sente-se fraternalmente 7. E 8. D
unido a ele pelo sofrimento.
9.
b) O poeta se considera portador de um destino
a) Pela adoção do verso livre e da linguagem
pior que o do marinheiro, pois este teria
coloquial, pelas marcas da oralidade e pela
em breve o encanto da viagem: “Amanhã
ausência da pontuação convencional, o
terás / depois de partir /o vento do largo/
o horizonte imenso /o sal do mar alto”, texto pertence ao Modernismo, sobretudo
enquanto ele permaneceria fixo em sua à primeira fase.
lucidez e tristeza. b) Em Estrela da manhã, é forte a presença do
3. desejo amoroso, do erotismo, como aparece
a) “Marinheiro triste / De um país distante / pas- no poema homônimo do livro e no poema
saste por mim / Tão alheio a tudo / Que nem A estrela e o anjo.Também a ironia está pre-
pressentiste / Marinheiro triste / A onda viril sente em alguns poemas, como Balada das
/ de fraterno afeto / Em que te envolvi.” três mulheres do sabonete Araxá; os problemas
b) Para o poeta, ciente do seu sofrimento e do sociais aparecem em poemas como Tragédia
sofrimento do marinheiro, seria melhor que brasileira e Flores murchas.

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