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Governana e Accountability - Algumas Notas Introdutrias PDF
Governana e Accountability - Algumas Notas Introdutrias PDF
O termo accountability encontra-se entre os mais utilizados na literatura recente, sendo central
para análise do tema da governança. Este trabalho pretende discutir, ainda que não
exaustivamente, esses dois conceitos, analisando de que forma a perspectiva da accountability
é imprescindível para a compreensão da prática da boa governança. O objetivo principal do
trabalho é, contudo, estabelecer um diálogo entre alguns autores e perspectivas distintas que
se dedicam ao exame desse amplo conjunto de questões.
Definindo accountability
Andréas Schedler, em um texto muito didático, “disseca”, por assim dizer, o conceito de
accountability, identificando suas dimensões e distintos significados e ênfases. Inicialmente o
autor distingue as duas conotações básicas que o termo accountability política suscita: a) a
capacidade de resposta dos governos (answerability), ou seja, a obrigação dos oficiais
públicos informarem e explicarem seus atos e b) a capacidade (enforcement) das agências de
accountability (accounting agencies) de impor sanções e perda de poder para aqueles que
violaram os deveres públicos. A noção de accountability, é basicamente, bidimensional:
envolve capacidade de resposta e capacidade de punição (answerability e enforcement).
A dimensão da answerability, aqui traduzida como capacidade de resposta, englobaria por sua
vez dois tipos de questões: uma dimensão relativa à informação das decisões e outra
condizente com a necessidade dos governantes explicarem tais decisões. Isso configuraria
uma dimensão informacional e outra argumentativa, estando ambas presente na concepção de
accountability.
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Trabalho realizado para a disciplina “Governança, Accountability e Democracia” , com a Professora Maria
Fatima Anastasia, no segundo semestre de 2000.
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Entretanto, além de informar e justificar, accountability envolve ainda uma terceira dimensão,
relativa aos elementos que obrigam ao cumprimento da lei, através de sanções, inclusive
legais2. Estas três dimensões da accountability – informação, justificação, punição – podem
ou não estar juntas para que existam atos de accountability. Nas palavras do autor,
O autor, dentro de uma perspectiva sensata e realista, enfatiza que um cenário de perfeito
controle do poder é fictício, uma vez que este nunca pode ser totalmente controlado em um
sentido estrito. A demanda por accountability se origina da opacidade do poder, de um
contexto de informação imperfeita, e tem como eixo básico o princípio da publicização. O
exercício da accountability só tem sentido se remete ao espaço público, de forma a preservar
as suas três dimensões: informação, justificação, punição.
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O arcabouço de sanções é variado, e envolve destruição da reputação, através da publicização, a perda de
cargos (demissões) e ainda o exercício dos poderes e dispositivos legais.
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horizontal da accountability, os agentes da sociedade civil. Alguns autores (o autor cita
Roberto Pastor) identificam uma terceira posição na dicotomia vertical e horizontal,
construída em torno da distinção entre estado e sociedade civil. Retornaremos a esse ponto
adiante, quando introduzirmos a questão da governança e da legitimidade democrática,
afirmando que ambos os termos demandam a dimensão da accountability societal para que
possam fazer algum sentido.
Começaremos pela concepção de O´Donnell sobre accountability. A análise deste autor sobre
as várias accountabilities tem como matriz básica as três correntes clássicas do pensamento
político: democracia, liberalismo e republicanismo. Tendo como ponto de partida que as
poliarquias incorporam elementos das três tradições, o autor identifica os componentes
liberais, republicanos e democráticos no exercício da accountability.
O componente liberal das poliarquias modernas aponta para a existência de direitos que não
devem ser usurpados por nenhum poder, incluindo o estado. O componente republicano
salienta o cumprimento do dever público, a busca incessante do melhor interesse público
como sua marca distintiva. Ambas as tradições pressupõem uma divisão clara entre o privado
e o público, embora com conseqüências e de forma diferenciada. Para a tradição liberal, o
locus do valor está no espaço privado, na esfera do mercado. Para a tradição republicana, o
espaço público é o lugar das virtudes, do processamento do bem público. O´Donnell enfatiza
que essa divergência leva a implicações distintas quanto aos “direitos e deveres políticos,a
participação política, o caráter da cidadania e da sociedade civil e de outros temas que
constituem a substancia mesma do debate político” (O´Donnell, 1998, p 32). No sentido de
uma distinção entre o privado e o público, a tradição democrática é monista, por não
pressupor tal distinção como constitutiva e nem pressupor uma elite virtuosa, aceitando que
todos são qualificados para o exercicio da política, para participação no demos. O demos pode
deliberar sobre qualquer questão e tem como suposto a igualdade dos cidadãos em seu direito
positivo de participação na decisão do demos (O´Donnell, 1998, pp 30-33).
A noção de accountability horizontal aponta para a existência de “agências estatais que têm o
direito e o poder legal e que estão de fato dispostas e capacitadas para realizar ações, que
vão desde a supervisão de rotina a sanções legais ou até o impeachment contra ações ou
emissões de outros agentes ou agências do Estado que possam ser qualificadas como
delituosas” (O´Donnell, 1998, p 40).
O que se argumenta aqui é que a noção de accountability horizontal, embora necessária para o
tema da governança democrática, é insuficiente para garantir a legitimidade necessária para o
exercício da democracia. O conceito de soberania popular implicíto na concepção da
democracia exige uma base de legitimidade que vai além da existencia de mecanismos de
checks and balances entre os órgãos do governo e também dos tradicionais mecanismos de
controle através das eleições.
Entretanto, ao irem especificando esse conceito, os autores acabam por limitá-lo em demasia,
ao afirmar que a accountability societal é ativada sob demanda e dirigida para questões
singulares, podendo vigiar ações governamentais (como accountability horizontal) mas não
necessitando de titulações constitucionais. Resta saber se aqueles mecanismos dotados de
titulação jurídica e constitucional podem ainda ser considerados elementos de societal
accountability, ou se essa característica os excluem dessa categoria, como é o caso dos
conselhos.
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Os conselhos constituem espaços públicos (não estatais), que acenam para a possibilidade de representação de
interesses coletivos na cena e na agenda pública. Mas se distinguem de movimentos e de manifestações estritas
da sociedade civil, uma vez que sua estrutura é legalmente definida e institucionalizada e que sua razão de ser
reside na ação conjunta com o aparato estatal na elaboração e gestão de políticas sociais. Têm poder de agenda e
podem interferir, de forma central, nas ações e metas dos governos e em seus sistemas administrativos.
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O orçamento participativo é citado pelos autores como um exemplo de espaço institucional
dentro da estrutura do Estado, no qual organizações não governamentais participam para
deliberar e monitorar sobre políticas públicas específicas. Entretanto, os conselhos locais,
estaduais e nacionais constituem experiências de inovação institucional que acenam para
ampliação dos espaços de deliberação pública que vão muito mais além do que a atuação do
orçamento participativo, uma vez que são estruturas jurídico-constitucionais, de caráter
permanente, com representação paritária entre Estado e sociedade civil e com amplos poderes
de controle sobre a política. Portanto, mais do que expressão e mecanismo de mobilização
social, os conselhos apontam para uma nova forma de atuação de instrumentos de
accountability societal, uma vez que apresentam a capacidade de colocar tópicos na agenda
pública, de controlar seu desenvolvimento e de monitorar processos de implementação de
políticas e direitos, através de uma institucionalidade híbrida, composta de representantes do
governo e da sociedade civil.
A noção de controle social fornecida por Nuria Cunill aponta que a influência direta da
sociedade sobre o Estado pode se dar através da inclusão de novos atores nas instâncias de
decisão ou de criação de instâncias institucionalizadas de mediação estado-sociedade. Nesse
ponto, avança em relação à delimitação de accountability dos autores acima citados. Em
contraposição ao modelo convencional de participação, sustentado pelo pluralismo, que
enfatiza a colaboração funcional mais do que influência e controle sobre o exercício da
política, e também além de um modelo alternativo de participação cidadã que envolve o
reconhecimento básico da autonomia política da esfera social em relação ao estado, a autora
pergunta se é possível desenhar outros recursos que possam ser usados diretamente pela
sociedade para sancionar ou forçar a administração publica a reagir como resultado do
exercício do controle social. Parece que a autora questiona que estruturas associativas da
sociedade civil sejam os únicos agentes da prática argumentativa e autônoma, questionando a
definição de accountability societal dos autores acima citados.
Seu texto problematiza a ação dos mecanismos de controle institucionalizados, uma vez que
guardam a necessidade de autonomia em relação às instâncias estatais, mas paradoxalmente
dependem do Estado para se efetivarem. A prática do controle institucionalizado mostra que o
caráter dos recursos disponíveis é de importância fundamental para a accountability e esses
recursos são, em grande parte, fornecidos pelo Estado. De acordo com a autora, toda vez que
se pretende institucionalizar o controle público através da criação de órgãos especiais se faz
diretamente dependente da própria eficiência do controle exercido pelo próprio Estado (Grau,
2000, p 19). A eficácia de novas institucionalidades, independentes de seu poder de
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mobilização, dependem das oportunidades de participação e deliberação abertas pelo Estado,
da transparência e compromisso deste com princípios democráticos e participativos e com a
criação de mecanismos institucionais adequados para o exercício da accountability.
Voltando a O´Donnell, cabe ressaltar que este autor reconhece a pertinência da distinção feita
por Smulovitz e Peruzzotti, entre a accountability vertical eleitoral, a accountability societal
vertical e a accountability horizontal, reconhecendo que estas três dimensões estão
intimamente relacionadas. Aponta a originalidade da perspectiva societária, uma vez que os
agentes da accountability societal não podem ser analisados sob a perspectiva de grupos de
pressão e grupos de interesse, e que a orientação principal desses atores não reside na
satisfação imediata de interesses materiais. Além disso, as demandas da accountability
societal só podem ser formuladas utilizando-se da linguagem dos direitos e da legalidade
(O´Donnell, 2000, pp 5, 6). Além disso O´Donnell identifica a centralidade da noção de voice
na perspectiva da accountability societal, o que aproximaria esta de uma trajetória
horizontalizada, na medida em que representa uma voz que espera e demanda ser ouvida pelas
agências estatais (O´Donnell, 2000, p 7). Entretanto, este autor não reconhece uma dimensão
propria da accountability societal, colocando-a como um subtipo de accountability vertical, o
que minimiza sua especificidade. As eleições são mecanismos formais de participação na vida
publica e, como mecanismos de controle, apresentam sérias e irreparáveis limitaçoes4. Os
processos e mecanismos de accountability societal, por outro lado, sao informais em sua
maioria, e assentam-se em pressupostos distintos, valorizando a distinção entre a lógica
sistemica e a lógica interativa e uma visao distinta da participaçao e da legitimidade política.
Este último ponto nos remete ao tema da governança democrática, ao centro mesmo da
discussão sobre as bases de legitimidade e eficácia social da ação governamental.
Governança, em uma definição sumária, refere-se à capacidade de gestão, sendo um atributo
do estado. Em uma dimensão, refere-se às condições do aparato adminsitrativo, tais como
profissionalização da burocracia estratégica, fortalecimento dos instrumentos gerenciais e
melhoria do desempenho. Em outra perspectiva, aponta para o coração mesmo da democracia,
a partir da noção de accountability, ou responsabilização. A efetivação dos principios
democráticos, cujos pontos básicos residem na soberania popular e controle dos governantes
pelos governados, coloca a questão da responsabilização como um meta valor dos governos
democráticos. A responsabilização depende, entretanto, de uma dupla condição: capacidade
dos cidadãos atuarem (virtude cívica e capital social) e mecanismos institucionais que
viabilizam o controle sobre as ações do governo.
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Para uma problematização desse ponto, ver Manin, Przeworski e Stokes, 1997.
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Governança democrática e accountability
O autor parte dos mesmos argumentos anteriores de Manin, Stokes e Przeworski, de que
existem dificuldades para a efetivação da accountability dentro das instituições democráticas,
embora seu ponto seja enfatizar a relação entre accountability e autoridade e não salientar a
insuficiencia dos mecanismos verticais de accountability, eixo do texto dos autores acima
citados.
O autor reconhece a origem do modelo de agencia nos escritos federalistas e reconhece que tal
perspectiva tem dominado o pensamento recente sobre accountability democrática. O suposto
básico do autor é que a competição entre os agentes podem induzi-los a agir de forma ótima
sob a perspectiva dos principais, funcionando com anteparo aos mecanismos de rent seeking,
estratégia de privatização do espaço e dos recursos públicos. Analisando empiricamente as
reformas adotadas na burocracia federal americana a partir da década de 70, orientadas para
abertura dos processos políticos e administrativos ao público (Ferejohn, p. 10), o autor se
pergunta porque os agentes tornam suas açoes mais monitoráveis, mais sujeitas ao escrutinio
público; qual pode ser a explicação para esse comportamento aparentemente irracional. O
argumento do autor é que o grau de accountability de um agente pode aumentar seu grau de
poder e esse é o incentivo que faz com que os agentes se tornem mais e mais accountables ao
publico (Ferejohn, p 12). Embora seu argumento utilize-se de fórmulas matemáticas
sofisticadas, é possivel nos atermos ao central de suas formulações: existem incentivos para
que os agentes ajam no sentido de tornar mais controláveis suas ações e esses incentivos
relacionam-se com o aumento da autoridade e recursos.
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Nas palavras do autor,
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Não fica muito claro, com relação à concepção de governabildiade, tal como tratada pelos autores do CLAD,
como esta se distingue da concepção de governança, entendida como capacidade de governo e eficácia estatal,
tal como tratada por Eli Diniz (1997). A concepção de Governance envolve três dimensões: uma relativa à
capacidade de comando e de direção do Estado; outra relativa à capacidade de coordenação das várias políticas e
interesses em jogo e uma terceira é relativa à capacidade de implementação de políticas públicas. Nesse ponto, a
perspectiva da sustentação política das decisões governamentais é fundamental, salientando a centralidade da
abertura de canais de comunicação entre Estado e sociedade (Diniz, p.42).
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identificam e sistematizam tipos distintos de exercício da accountability, afirmando que esta
tem por objetivo republicanizar o sistema politico, combatendo padrões clientelistas e
patrimonialistas da gestao governamental, viabilizando eficiencia estal e democratização das
relaçoes entre Estado e sociedade.
Entretanto, os autores apontam, com lucidez, os desafios para o êxito desses mecanismos de
responsabilização societária. Um primeiro desafio é relativo à articulação necessária com
instituiçoes da democracia representativa, evitando uma contraposição desnecessária. Um
segundo tem a ver com o necessário fortalecimento do aparato estatal, com a capacidade
institucional do Estado, comprometida com a eficiência e a equidade na provisão de bens e
serviços públicos, sob pena de reforçar o poder de grupos mais organizados e com mais
recursos e capacidade de vocalização. Um terceiro desafio refere-se ao redesenho do Estado,
de forma a torná-lo mais permeável às novas demandas de participação. Além disso, e esse é
o quarto desafio, tem-se que garantir a produção e a difusão de informações, para que a
accountability societal tenha exito. Sem publicização não há possibilidade de efetivar essa
forma de controle. Um desafio de outra natureza refere-se à necessidade de superar a
“privatização da sociabilidade”, reforçando valores democráticos e republicanos, que
motivem os cidadãos a atuarem mais ativamente na vida e nos espaços públicos. Um
importante constrangimento para a efetividade da responsabilização social refere-se ao
impacto das desigualdades sócio-econômicas nos processos de participação. Neste sentido
cabe salientar a afirmação de Przeworski, sobre os limites colocados pela desigualdade sócio-
econômica para a efetivação das reformas do estado e do princípio básico da igualdade
política, apesar mesmo da existência de mecanismos de accountability, verticais ou
horizontais (Pzerworski, 1998).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS