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Escola de Governo da Fundação João Pinheiro

TEXTO PARA DISCUSSÃO No 13

GOVERNANÇA E ACCOUNTABILITY: ALGUMAS NOTAS INTRODUTÓRIAS

Carla Bronzo Ladeira Carneiro

Belo Horizonte, agosto de 2004


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GOVERNANÇA E ACCOUNTABILITY: ALGUMAS NOTAS INTRODUTÓRIAS
Carla Bronzo Ladeira Carneiro1

O termo accountability encontra-se entre os mais utilizados na literatura recente, sendo central
para análise do tema da governança. Este trabalho pretende discutir, ainda que não
exaustivamente, esses dois conceitos, analisando de que forma a perspectiva da accountability
é imprescindível para a compreensão da prática da boa governança. O objetivo principal do
trabalho é, contudo, estabelecer um diálogo entre alguns autores e perspectivas distintas que
se dedicam ao exame desse amplo conjunto de questões.

Definindo accountability

Andréas Schedler, em um texto muito didático, “disseca”, por assim dizer, o conceito de
accountability, identificando suas dimensões e distintos significados e ênfases. Inicialmente o
autor distingue as duas conotações básicas que o termo accountability política suscita: a) a
capacidade de resposta dos governos (answerability), ou seja, a obrigação dos oficiais
públicos informarem e explicarem seus atos e b) a capacidade (enforcement) das agências de
accountability (accounting agencies) de impor sanções e perda de poder para aqueles que
violaram os deveres públicos. A noção de accountability, é basicamente, bidimensional:
envolve capacidade de resposta e capacidade de punição (answerability e enforcement).

A noção de accountability política pressupõe a existência do poder e a necessidade de que este


seja controlado. Isso constitui sua razão de ser. O autor, delineando uma concepção radial da
noção de accountability, identifica três formas básicas pelas quais pode-se prevenir do abuso
do poder: a) sujeitar o poder ao exercício das sanções; b) obrigar que este poder seja exercido
de forma transparente e c) forçar que os atos dos governantes sejam justificados. A primeira
dimensão remete à capacidade de enforcement e as duas outras têm a ver com a capacidade de
resposta dos oficiais públicos (Schedler, p 14).

A dimensão da answerability, aqui traduzida como capacidade de resposta, englobaria por sua
vez dois tipos de questões: uma dimensão relativa à informação das decisões e outra
condizente com a necessidade dos governantes explicarem tais decisões. Isso configuraria
uma dimensão informacional e outra argumentativa, estando ambas presente na concepção de
accountability.

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Trabalho realizado para a disciplina “Governança, Accountability e Democracia” , com a Professora Maria
Fatima Anastasia, no segundo semestre de 2000.
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Entretanto, além de informar e justificar, accountability envolve ainda uma terceira dimensão,
relativa aos elementos que obrigam ao cumprimento da lei, através de sanções, inclusive
legais2. Estas três dimensões da accountability – informação, justificação, punição – podem
ou não estar juntas para que existam atos de accountability. Nas palavras do autor,

“ I conclude accordingly that accountability does not represent a classical


concept displaying a hard core of invariable basic characteristics. Instead, it
must be regarded as a radial concept whose subtypes or secondary expressions
do not share a common core but lack one or more elements that characterize
the prototypical primary category” (Schedler, p 18).

O autor, dentro de uma perspectiva sensata e realista, enfatiza que um cenário de perfeito
controle do poder é fictício, uma vez que este nunca pode ser totalmente controlado em um
sentido estrito. A demanda por accountability se origina da opacidade do poder, de um
contexto de informação imperfeita, e tem como eixo básico o princípio da publicização. O
exercício da accountability só tem sentido se remete ao espaço público, de forma a preservar
as suas três dimensões: informação, justificação, punição.

Após identificar os elementos constituintes do conceito, o autor analisa os diferentes tipos de


accountability e constrói tipologias a partir dos alvos do exercício da accountability política.
Esta pode se situar em termo das políticas públicas implementadas, de questões
administrativas, profissionais, financeiras, morais, legais e constitucionais. Cada uma desses
campos da accountability apresenta diferentes mecanismos e objetivos específicos para o
controle do poder. Em outra ponta, o autor adota a perspectiva não dos que são alvos da
accountability, mas sim focando quem são os agentes de accountability.

Utilizando-se da definição seminal de O´Donnell, enfatiza que a noção de accountability


vertical pressupõe uma ação entre desiguais, seja sob a forma do mecanismo do voto (controle
de baixo para cima) ou sob a forma do controle burocrático (de cima para baixo). A noção de
accountability horizontal, contudo, pressupõe uma relação entre iguais, através do mecanismo
de checks and balances, da mútua vigilância entre os três poderes, autônomos, do estado.
Entretanto, de acordo com o autor, a concepção de O´Donnell apresenta dificuldades, ao
contemplar no campo da accountability horizontal somente os atos por parte de agentes do
estado independentes entre si. Definir accountability horizontal tendo como base a autonomia
dos poderes não é suficiente. É preciso esclarecer como se situam, nas dimensoes vertical ou

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O arcabouço de sanções é variado, e envolve destruição da reputação, através da publicização, a perda de
cargos (demissões) e ainda o exercício dos poderes e dispositivos legais.
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horizontal da accountability, os agentes da sociedade civil. Alguns autores (o autor cita
Roberto Pastor) identificam uma terceira posição na dicotomia vertical e horizontal,
construída em torno da distinção entre estado e sociedade civil. Retornaremos a esse ponto
adiante, quando introduzirmos a questão da governança e da legitimidade democrática,
afirmando que ambos os termos demandam a dimensão da accountability societal para que
possam fazer algum sentido.

Accountability vertical e horizontal

Começaremos pela concepção de O´Donnell sobre accountability. A análise deste autor sobre
as várias accountabilities tem como matriz básica as três correntes clássicas do pensamento
político: democracia, liberalismo e republicanismo. Tendo como ponto de partida que as
poliarquias incorporam elementos das três tradições, o autor identifica os componentes
liberais, republicanos e democráticos no exercício da accountability.

O componente liberal das poliarquias modernas aponta para a existência de direitos que não
devem ser usurpados por nenhum poder, incluindo o estado. O componente republicano
salienta o cumprimento do dever público, a busca incessante do melhor interesse público
como sua marca distintiva. Ambas as tradições pressupõem uma divisão clara entre o privado
e o público, embora com conseqüências e de forma diferenciada. Para a tradição liberal, o
locus do valor está no espaço privado, na esfera do mercado. Para a tradição republicana, o
espaço público é o lugar das virtudes, do processamento do bem público. O´Donnell enfatiza
que essa divergência leva a implicações distintas quanto aos “direitos e deveres políticos,a
participação política, o caráter da cidadania e da sociedade civil e de outros temas que
constituem a substancia mesma do debate político” (O´Donnell, 1998, p 32). No sentido de
uma distinção entre o privado e o público, a tradição democrática é monista, por não
pressupor tal distinção como constitutiva e nem pressupor uma elite virtuosa, aceitando que
todos são qualificados para o exercicio da política, para participação no demos. O demos pode
deliberar sobre qualquer questão e tem como suposto a igualdade dos cidadãos em seu direito
positivo de participação na decisão do demos (O´Donnell, 1998, pp 30-33).

Sinteticamente, o argumento do autor é o seguinte: nas poliarquias modernas, a dimensão


democrática da accountability é assegurada pelo exercício da accountability vertical,
principalmente através dos mecanismos das eleições e do voto. Estes, entretanto, são
insuficientes para o controle da ação governamental. Vários autores, entre eles e
especialmente, Przerworsky, Manin e Stokes, apontam esta insuficiência.

O argumento dos autores problematizam a questão da eleição (accountability vertical) e


representação, indagando sobre os limites do voto para induzir a atuação dos governantes no
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sentido do “melhor interesse do cidadão”. Dessa forma, afirmam que as eleições não
constituem o mecanismo democrático por excelência para induzir a representatividade.
Distinguindo entre governo responsivo (adota política assinaladas como preferidas pelos
cidadãos) e accountable (na medida em que os cidadãos podem discernir se os governos estao
agindo em seus interesses e podem punir apropriadamente os governos não representativos),
os autores identificam que um governo pode agir de forma representativa (agir no melhor
interesse do cidadão) porque ou é responsivo ou accountable, ou ambos. O que segue do
argumento é que um governo pode ser responsivo sem ser representativo, uma vez que pode
ter informações e condições de agir no melhor interesse do cidadão mas não o faz, embora
siga as orientações de seu mandato. Pzerworski resume apropriadamente o ponto: “ou
governantes seguem políticas que proporcionam o bem estar dos eleitores, mesmo desviando
de seus mandatos, ou eles aderem aos seus mandatos mesmo sabendo que ao implementá-los
resultados sub-ótimos para os eleitores emergirão. Se os eleitores nao estiverem certos sobre
quais políticas melhor serviriam aos seus interesses, eles não podem ter certeza se o governo
está agindo no sentido de seus melhores interesses quando o governo implementa ou trai suas
promessas. E, desde que os governos sabem que os eleitores não sabem, eles dispõem de uma
enorme janela para fazer coisas que eles, e não os eleitores, querem” (Przeworski, 1998, p.
12).

Tendo pontuado a questão da insuficiência do mecanismo do voto (accountability vertical)


para garantir representatividade e, em certa medida, a capacidade de governança do Estado,
cabe apresentar a concepção de controle mútuo dos poderes como instrumento de
responsabilização governamental.

A noção de accountability horizontal aponta para a existência de “agências estatais que têm o
direito e o poder legal e que estão de fato dispostas e capacitadas para realizar ações, que
vão desde a supervisão de rotina a sanções legais ou até o impeachment contra ações ou
emissões de outros agentes ou agências do Estado que possam ser qualificadas como
delituosas” (O´Donnell, 1998, p 40).

A accountability horizontal, entendida dessa forma, é produto de uma rede de agencias,


internas ao estado, principalmente. Entretanto, o autor reconhece a existência de outros
mecanismos de controle nas poliarquias contemporâneas, externas aos poderes executivo,
legislativo ou judiciário. O´Donnell identifica aqui as “várias agencias de supervisão, como
os ombusdmen e as instancias responsáveis pela fiscalização das prestações de contas”
(O´Donnell, 1998, p 43).
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Por fim, o autor identifica os desafios para que se efetive a accountability horizontal. Suas
conclusões apontam para os recursos institucionais necessários: a autonomia, inclusive
financeira, entre os poderes; existência de informação confiável e adequada; existência de
redes bem estruturadas nacionais e internacionais, entre outras.

O que se argumenta aqui é que a noção de accountability horizontal, embora necessária para o
tema da governança democrática, é insuficiente para garantir a legitimidade necessária para o
exercício da democracia. O conceito de soberania popular implicíto na concepção da
democracia exige uma base de legitimidade que vai além da existencia de mecanismos de
checks and balances entre os órgãos do governo e também dos tradicionais mecanismos de
controle através das eleições.

Accountability societal: um novo conceito?

Uma concepção alternativa de accountability é fornecida a partir de outros recortes e


configura o âmbito da accountability societal. Tais perspectivas partem de uma matriz teórica
que privilegia a dicotomia estado e sociedade civil, partilhando da idéia de que o controle da
sociedade sobre a ação governamental constitui uma especificidade e merece uma distinção à
parte das perspectivas de accountability vertical ou horizontal, abrindo vertentes para a
discussão da accountability societal.

O artigo de Peruzzotti e Smulovitz (2000) enfatiza formas não tradicionais de controle e o


foco nos mecanismos societais de accountability. Os autores partem da distinção de
O´Donnell entre a dimensão liberal e democrática do conceito de accountability. Se a liberal
centra-se na perspectiva da accountability horizontal, com foco nas dimensões de adesão do
governo aos procedimentos legais e constitucionais, relacionada, portanto, com sistema de
checks and balances, a democrática enfatiza os mecanismos usados pelos cidadãos para
controlar resultados no processo governamental, configurando processos de accountability
vertical, cujo instrumento principal são as eleições. Nesse último tipo, governos são
accountables não apenas quando seguem procedimentos constitucionais, mas também quando
agem de acordo com a preferência dos cidadãos. Os autores claramente compartilham do
consenso de que na América Latina esses mecanismos, tanto horizontais quanto verticais, são
precários. As experiências de democracias delegativas e a excessiva discricionariedade
presidencial minam mecanismos de check and balances entre os poderes, enfraquecendo o
exercício da accountability horizontal.

Apresentando a noção de accountability societal, os autores a definem como um mecanismo


de controle não eleitoral, que emprega ferramentas institucionais e não institucionais (ações
legais, participação em instâncias de monitoramento, denúncias na mídia etc), que se baseia
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na ação de múltiplas associações de cidadãos, movimentos, ou mídia, objetivando expor erros
e falhas do governo, trazer novas questões para a agenda pública ou influenciar decisões
políticas a serem implementadas pelos órgãos públicos (Smulovitz e Peruzzotti, 2000 p 7). O
“piecemeal approach” dos mecanismos societais de controle permite que esses mecanismos
sejam acionados para avaliar políticas, procedimentos e os burocratas, que podem ser
controlados por esses mecanismos de accountability (diferenciando-se dos mecanismos
verticais de accountability, que avaliam plataformas e resultados de políticas e são incapazes
de atingir funcionários específicos).

Entretanto, ao irem especificando esse conceito, os autores acabam por limitá-lo em demasia,
ao afirmar que a accountability societal é ativada sob demanda e dirigida para questões
singulares, podendo vigiar ações governamentais (como accountability horizontal) mas não
necessitando de titulações constitucionais. Resta saber se aqueles mecanismos dotados de
titulação jurídica e constitucional podem ainda ser considerados elementos de societal
accountability, ou se essa característica os excluem dessa categoria, como é o caso dos
conselhos.

Um segundo fator reducionista da delimitação conceitual feita pelos autores refere-se à


questão de quem são os atores capazes de utilizar esses mecanismos. A noção de
accountability societal incorpora novos atores, tais como associações, ONGs, movimentos
sociais, mídia. Diferentemente da accountability horizontal e vertical, os agentes da
accountability societal apresentam diferenças quanto aos recursos que dispõem, uma vez que
não possuem, segundo essa definição, mandato para sanções legais, mas apenas simbólicas,
ainda que algumas ações dessa forma de controle possam gerar sanções legais. Essa limitação
da qualidade do constrangimento a ser exercido pelos mecanismos de accountability societal,
retirando daí a capacidade de ação direta desses mecanismos na gestão governamental
constitui, a meu ver, uma limitação para a compreensão dos conselhos, por exemplo, como
instrumentos de uma accountability ampliada3. Para que a noção de accountability societal
possa abranger os conselhos, torna-se necessário reconsiderar essa definição, incorporando
nesse âmbito mecanismos que apresentem uma configuração jurídico-institucional, e que não
sejam apenas mobilizadores de sanções simbólicas.

3
Os conselhos constituem espaços públicos (não estatais), que acenam para a possibilidade de representação de
interesses coletivos na cena e na agenda pública. Mas se distinguem de movimentos e de manifestações estritas
da sociedade civil, uma vez que sua estrutura é legalmente definida e institucionalizada e que sua razão de ser
reside na ação conjunta com o aparato estatal na elaboração e gestão de políticas sociais. Têm poder de agenda e
podem interferir, de forma central, nas ações e metas dos governos e em seus sistemas administrativos.
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O orçamento participativo é citado pelos autores como um exemplo de espaço institucional
dentro da estrutura do Estado, no qual organizações não governamentais participam para
deliberar e monitorar sobre políticas públicas específicas. Entretanto, os conselhos locais,
estaduais e nacionais constituem experiências de inovação institucional que acenam para
ampliação dos espaços de deliberação pública que vão muito mais além do que a atuação do
orçamento participativo, uma vez que são estruturas jurídico-constitucionais, de caráter
permanente, com representação paritária entre Estado e sociedade civil e com amplos poderes
de controle sobre a política. Portanto, mais do que expressão e mecanismo de mobilização
social, os conselhos apontam para uma nova forma de atuação de instrumentos de
accountability societal, uma vez que apresentam a capacidade de colocar tópicos na agenda
pública, de controlar seu desenvolvimento e de monitorar processos de implementação de
políticas e direitos, através de uma institucionalidade híbrida, composta de representantes do
governo e da sociedade civil.

A noção de controle social fornecida por Nuria Cunill aponta que a influência direta da
sociedade sobre o Estado pode se dar através da inclusão de novos atores nas instâncias de
decisão ou de criação de instâncias institucionalizadas de mediação estado-sociedade. Nesse
ponto, avança em relação à delimitação de accountability dos autores acima citados. Em
contraposição ao modelo convencional de participação, sustentado pelo pluralismo, que
enfatiza a colaboração funcional mais do que influência e controle sobre o exercício da
política, e também além de um modelo alternativo de participação cidadã que envolve o
reconhecimento básico da autonomia política da esfera social em relação ao estado, a autora
pergunta se é possível desenhar outros recursos que possam ser usados diretamente pela
sociedade para sancionar ou forçar a administração publica a reagir como resultado do
exercício do controle social. Parece que a autora questiona que estruturas associativas da
sociedade civil sejam os únicos agentes da prática argumentativa e autônoma, questionando a
definição de accountability societal dos autores acima citados.

Seu texto problematiza a ação dos mecanismos de controle institucionalizados, uma vez que
guardam a necessidade de autonomia em relação às instâncias estatais, mas paradoxalmente
dependem do Estado para se efetivarem. A prática do controle institucionalizado mostra que o
caráter dos recursos disponíveis é de importância fundamental para a accountability e esses
recursos são, em grande parte, fornecidos pelo Estado. De acordo com a autora, toda vez que
se pretende institucionalizar o controle público através da criação de órgãos especiais se faz
diretamente dependente da própria eficiência do controle exercido pelo próprio Estado (Grau,
2000, p 19). A eficácia de novas institucionalidades, independentes de seu poder de
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mobilização, dependem das oportunidades de participação e deliberação abertas pelo Estado,
da transparência e compromisso deste com princípios democráticos e participativos e com a
criação de mecanismos institucionais adequados para o exercício da accountability.

Voltando a O´Donnell, cabe ressaltar que este autor reconhece a pertinência da distinção feita
por Smulovitz e Peruzzotti, entre a accountability vertical eleitoral, a accountability societal
vertical e a accountability horizontal, reconhecendo que estas três dimensões estão
intimamente relacionadas. Aponta a originalidade da perspectiva societária, uma vez que os
agentes da accountability societal não podem ser analisados sob a perspectiva de grupos de
pressão e grupos de interesse, e que a orientação principal desses atores não reside na
satisfação imediata de interesses materiais. Além disso, as demandas da accountability
societal só podem ser formuladas utilizando-se da linguagem dos direitos e da legalidade
(O´Donnell, 2000, pp 5, 6). Além disso O´Donnell identifica a centralidade da noção de voice
na perspectiva da accountability societal, o que aproximaria esta de uma trajetória
horizontalizada, na medida em que representa uma voz que espera e demanda ser ouvida pelas
agências estatais (O´Donnell, 2000, p 7). Entretanto, este autor não reconhece uma dimensão
propria da accountability societal, colocando-a como um subtipo de accountability vertical, o
que minimiza sua especificidade. As eleições são mecanismos formais de participação na vida
publica e, como mecanismos de controle, apresentam sérias e irreparáveis limitaçoes4. Os
processos e mecanismos de accountability societal, por outro lado, sao informais em sua
maioria, e assentam-se em pressupostos distintos, valorizando a distinção entre a lógica
sistemica e a lógica interativa e uma visao distinta da participaçao e da legitimidade política.

Este último ponto nos remete ao tema da governança democrática, ao centro mesmo da
discussão sobre as bases de legitimidade e eficácia social da ação governamental.
Governança, em uma definição sumária, refere-se à capacidade de gestão, sendo um atributo
do estado. Em uma dimensão, refere-se às condições do aparato adminsitrativo, tais como
profissionalização da burocracia estratégica, fortalecimento dos instrumentos gerenciais e
melhoria do desempenho. Em outra perspectiva, aponta para o coração mesmo da democracia,
a partir da noção de accountability, ou responsabilização. A efetivação dos principios
democráticos, cujos pontos básicos residem na soberania popular e controle dos governantes
pelos governados, coloca a questão da responsabilização como um meta valor dos governos
democráticos. A responsabilização depende, entretanto, de uma dupla condição: capacidade
dos cidadãos atuarem (virtude cívica e capital social) e mecanismos institucionais que
viabilizam o controle sobre as ações do governo.

4
Para uma problematização desse ponto, ver Manin, Przeworski e Stokes, 1997.
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Governança democrática e accountability

John Ferejohn analisa a questão da accountability, relacionando ao tema da autoridade e


legitimidade política. O autor articula a questão da accountability com a questão da
responsividade do Estado, com a capacidade deste em ser responsivo às demandas e ao
controle social. Accountability, para esse autor, é a chave para a responsividade política
(Ferejohn, p 1).

O autor parte dos mesmos argumentos anteriores de Manin, Stokes e Przeworski, de que
existem dificuldades para a efetivação da accountability dentro das instituições democráticas,
embora seu ponto seja enfatizar a relação entre accountability e autoridade e não salientar a
insuficiencia dos mecanismos verticais de accountability, eixo do texto dos autores acima
citados.

Tendo como referencia o modelo da agência, o autor desenvolve uma concepção de


accountability endógena, a partir da qual os oficiais (agentes) sao induzidos a tornar suas
ações controláveis pelos seus eleitores (principais), de forma a atrair recursos e suporte, e
analisa as condições sob as quais os agentes sao mais ou menos responsivos aos interesses
públicos (Ferejohn, p 3).

O autor reconhece a origem do modelo de agencia nos escritos federalistas e reconhece que tal
perspectiva tem dominado o pensamento recente sobre accountability democrática. O suposto
básico do autor é que a competição entre os agentes podem induzi-los a agir de forma ótima
sob a perspectiva dos principais, funcionando com anteparo aos mecanismos de rent seeking,
estratégia de privatização do espaço e dos recursos públicos. Analisando empiricamente as
reformas adotadas na burocracia federal americana a partir da década de 70, orientadas para
abertura dos processos políticos e administrativos ao público (Ferejohn, p. 10), o autor se
pergunta porque os agentes tornam suas açoes mais monitoráveis, mais sujeitas ao escrutinio
público; qual pode ser a explicação para esse comportamento aparentemente irracional. O
argumento do autor é que o grau de accountability de um agente pode aumentar seu grau de
poder e esse é o incentivo que faz com que os agentes se tornem mais e mais accountables ao
publico (Ferejohn, p 12). Embora seu argumento utilize-se de fórmulas matemáticas
sofisticadas, é possivel nos atermos ao central de suas formulações: existem incentivos para
que os agentes ajam no sentido de tornar mais controláveis suas ações e esses incentivos
relacionam-se com o aumento da autoridade e recursos.
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Nas palavras do autor,

“if there are exogenous forces leading to an opening up of governmental processes,


this will permit the reformed political process to extract more wealth form
society…the increase in governmental authority has been brought about by the
provision for increased agent observability…that the authority of government has
expande in exacttly those areas that observability has increased”(Ferejohn, p 22, 23).

Seu argumento, portanto, é bastante poderoso no sentido de salientar as consequencias de


processos politicos transparentes, enfatizando as relações positivas entre aumento de
accountability e ganhos de autoridade para os agentes públicos. Entretanto, a questão da
autoridade e da legitimidade mesma do poder político nao é suficientemente trabalhada,
deixando duvidas quanto a suficiencia da perspectiva do agente-principal de dar conta de
abordar adequadamente o tema da governança democrática. A eficiencia governativa nao
envolve apenas dimensoes técnico adminsitrativas, mas tambem um componente que refere-
se, de alguma maneira, à legitimidade política.

O grau de governança democrática de um estado depende, diretamente, do quantum de


accountability existente na sociedade, depende da natureza e abrangência do controle público
sobre a ação governamental, porque o princípio da soberania popular, alma da democracia,
pressupõe nao apenas o governo do povo e para o povo, mas também pelo povo. Esse ponto
coloca diretamente a questão da accountability no centro mesmo da prática democrática. E
mais: não basta a existência de mecanismos de accountability vertical, tal como eleições, ou
mecanismos horizontais de controle mútuo da ação governamental. É necessário, sobretudo,
para a prática da boa governança, a vigência de mecanismos de accountability societal, que
ampliem o escopo do controle público sobre a ação governamental e dêem concretude aos
princípios básicos da regra democrática e da legitimidade política.

O tema da accountability relaciona-se, portanto, com a construção de um novo padrão de


governabilidade, que envolve a reconstrução do Estado e a consolidação da democracia. Uma
nova governabilidade dependerá do fortalecimento das capacidades institucionais do Estado,
da sua capacidade de gestão (governance), e também da recuperação das bases de
legitimidade e de eficácia social da ação governamental (CLAD, 2000p.17-19)5. Os autores

5
Não fica muito claro, com relação à concepção de governabildiade, tal como tratada pelos autores do CLAD,
como esta se distingue da concepção de governança, entendida como capacidade de governo e eficácia estatal,
tal como tratada por Eli Diniz (1997). A concepção de Governance envolve três dimensões: uma relativa à
capacidade de comando e de direção do Estado; outra relativa à capacidade de coordenação das várias políticas e
interesses em jogo e uma terceira é relativa à capacidade de implementação de políticas públicas. Nesse ponto, a
perspectiva da sustentação política das decisões governamentais é fundamental, salientando a centralidade da
abertura de canais de comunicação entre Estado e sociedade (Diniz, p.42).
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identificam e sistematizam tipos distintos de exercício da accountability, afirmando que esta
tem por objetivo republicanizar o sistema politico, combatendo padrões clientelistas e
patrimonialistas da gestao governamental, viabilizando eficiencia estal e democratização das
relaçoes entre Estado e sociedade.

O desempenho/eficiência governamental, tarefa básica da reconstrução do Estado, depende


também dos mecanismos de accountabilty, principalmente o controle pela “lógica dos
resultados” e pela “competência administrada”. O primeiro refere-se à necessidade dos
governos renderem contas à sociedade acerca da efetividade de suas políticas e programas. A
persepctiva da avaliação direta dos bens e serviços públicos, com a participação da sociedade
no controle de metas da ação governamental, encontra-se no centro da lógica dos resultados.
Esta perspectiva é fortemente comprometida com o estabelecimento de avaliaçoes de
resultados e desempenho, com o estabelecimento de metas claras e transparentes, que possam
ser fiscalizadas pela sociedade quanto ao seu cumprimento. Visam, dessa forma, romper com
a lógica auto-referenciada da burocracia, abrindo o Estado ao controle de seus atos por parte
da população.

O segundo mecanismo de controle publico vinculado ao desempenho das políticas consiste na


competência administrada, relativa ao fim do monopólio do estado na provisão dos serviços e
à formação de uma oferta plural e competitiva dos serviços, administradas por provedores
privados ou de caráter público, mas não estatal (CLAD, p.21).

Além da lógica dos resultados, e da responsabilização pela competencia adminsitrada, os


autores reconhecem os mecanismos clássicos de controles procedimentais, dirigidos para o
cumprimento dos principios de probidade e universalidade dos atos governamentais. Uma
outra forma de responsabilização (tambem horizontal), seriam os mecanismos de controle
parlamentar.

Como um quinto mecanismo de controle, o texto aponta a centralidade da participação social


na construção de uma nova governabilidade democrática, uma vez que esta confere maior
legitimidade à ação governamental e amplia o espaço público, enfatizando uma perspectiva
sócio-centrica, imprescindível na composição das bases de governabilidade.

Os autores identificam os espaços especificamente vinculados com a accountability social,


tais como: participação no estabelecimento das diretrizes de governo e no orçamento público,
na gestão direta de serviços ou participação em conselhos relativos à adminsitração de
equipamentos sociais, através da utilização de mecanismos de democracia direta ou semi-
direta (plebiscitos, referendum etc), a partir da atuação em instâncias de avaliação e
13
deliberação das políticas públicas, através da participação da população em órgaos de
vigilância e fiscalização da ação governamental, entre outras (CLAD, p.50).

Além da ampliação do espaço público, a accountability societal contribui para o


fortalecimento da consciência republicana e do capital social, e ainda pode evitar que as
reformas empreendidas nos aparatos estatais concentrem-se exclusivamente em reformas
gerenciais, unicamente comprometidas com a eficiencia economica e administrativa do setor
público. Como quarta qualidade elencada pelos autores acerca da accountability social, os
autores sustentam que esse mecanismo contribui para democratizar as relações entre estado e
sociedade, contribuindo para o fortalecimento das políticas gerenciais de modernização do
setor público (CLAD, p.51).

Entretanto, os autores apontam, com lucidez, os desafios para o êxito desses mecanismos de
responsabilização societária. Um primeiro desafio é relativo à articulação necessária com
instituiçoes da democracia representativa, evitando uma contraposição desnecessária. Um
segundo tem a ver com o necessário fortalecimento do aparato estatal, com a capacidade
institucional do Estado, comprometida com a eficiência e a equidade na provisão de bens e
serviços públicos, sob pena de reforçar o poder de grupos mais organizados e com mais
recursos e capacidade de vocalização. Um terceiro desafio refere-se ao redesenho do Estado,
de forma a torná-lo mais permeável às novas demandas de participação. Além disso, e esse é
o quarto desafio, tem-se que garantir a produção e a difusão de informações, para que a
accountability societal tenha exito. Sem publicização não há possibilidade de efetivar essa
forma de controle. Um desafio de outra natureza refere-se à necessidade de superar a
“privatização da sociabilidade”, reforçando valores democráticos e republicanos, que
motivem os cidadãos a atuarem mais ativamente na vida e nos espaços públicos. Um
importante constrangimento para a efetividade da responsabilização social refere-se ao
impacto das desigualdades sócio-econômicas nos processos de participação. Neste sentido
cabe salientar a afirmação de Przeworski, sobre os limites colocados pela desigualdade sócio-
econômica para a efetivação das reformas do estado e do princípio básico da igualdade
política, apesar mesmo da existência de mecanismos de accountability, verticais ou
horizontais (Pzerworski, 1998).

Concordando com os autores, consideramos que a accountability é um conceito


multidimensional, e isso quer dizer que a efetividade da accountability depende da
combinação das diversas formas de responsabilização, entendidas como mecanismos
complementares para o controle da ação governamental.
14
Entretanto, se focalizarmos com ênfase a temática da governança, tem-se que a dimensão da
accountability societária ganha centralidade. Isso porque embutido na concepção de
governança, tem-se, além da capacidade operacional do Estado, a perspectiva da
democratização das relações entre Estado e sociedade, o que remete diretamente ao tema da
participação social. A efetividade da accountability societal (ou responsabilização por
controle social, usando a terminologia do CLAD) requer uma sociedade civil organizada e
capaz de exercer influência sobre o sistema político e sobre as burocracias públicas,
demandando e viabilizando a dimensão associativa da cidadania e da democracia
participativa. O que está no centro da concepção de accountability é a questão da
republicanização do espaço da política, a efetivação das diretrizes democráticas de soberania
popular e controle da ação governamental.Essas diretrizes não fazem sentido se prescindirmos
de uma noção ampliada de accountability, centrada na participação popular nos processos de
deliberação pública, para além de uma perspectiva horizontal ou vertical.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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