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Comunidade imaginada: por quem?

Partha Chatterjee

Apresentação

Em 1983 apareceu, em inglês, o livro de Benedict Anderson sobre o nacionalismo, onde ele
planta sua polêmica tese: as nações correspondem à uma construção 2. O resultado do livro de
Anderson foi a proliferação de trabalhos sobre a temática nacionalista. Só em língua inglesa, até a
segunda edição em inglês, em 1991, de onde foi traduzida a primeira versão em espanhol 3, dois
anos mais tarde apareceram Nations Before Nationalism (1982), de J. A. Armtrong; NationalRevival
in Europe (1985), de Miroslav Hrocha; The Etnic Origins of Nations (1986), de Anthony Smith;
Nationalist Thoughy and the Colonial World (1986), de P. Chatterjee, e Nations and Nationalism
since 1780 (1990), de Eric Hobsbawn – para mencionais apenas alguns dos textos chaves que por
seu alcance e poder teórico, têm feito caducar grande parte da bibliografia tradicional sobre o tema.
Em parte, com base nestas obras, uma extraordinário proliferação de estudos históricos, literários,
antropológicos, sociológicos, feministas e outros surgiram, unindo os objetos destes campos de
pesquisa com o nacionalismo e a nação.
Pouquíssimos fenômenos políticos provaram ser tão confusos e difíceis de compreender como
o nacionalismo. Não existe um consenso estabelecido sobre sua identidade, origem ou futuro.
Encontramo-nos, por exemplo, no processo de voltar ao século XIX cheio de grandes forças
competitivas e agressivas e cheios de nacionalismos difusos. Será que o estado-nação perdeu sua
pertinência e esgotou seu papel progressista e emancipatório? Ou será que o nacionalismo tem sido
visto sempre envolto em uma lógica militarista e em uma função étnica exclusivista?

.....

I
Novamente o tema do nacionalismo aparece na agenda de todos os assuntos mundiais. Quase
que diariamente, os estadistas e os politólogos dos países ocidentais afirmam que com a queda do
comunismo (provavelmente querem dizer colapso do socialismo soviético), o maior perigo para a
paz mundial é o re-surgimento do nacionalismo em alguns países do mundo. Como atualmente
qualquer fenômeno tem que ser primeiramente reconhecido como “problema” antes de chamar a
atenção dos encarregados em decidir sobre o que deve interessar ao público, o nacionalismo parece

1 Texto retirado de Gopal Balakrishnan (Editor), Mapping the nation, (introdução de Benedict Anderson), Verso,
Londres, 1996, pp. 214-225.
2 Benedict Anderson, Imagined Communities; Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, London, 1983.
3 Anderson, B. Comunidades imaginadas, Reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. Fondo de Cultura
Económica, México. 1993.
ter recuperado notoriedade suficiente para se livrar das práticas arcaicas dos “especialistas da área”
e se converter novamente em um tema de debate geral.
Contudo, considero que esta maneira de voltar à agenda política mundial tem
desafortunadamente descriminado a discussão a respeito. Nos anos 1960 e 1970, todavia se
considerava o nacionalismo como um estandarte das lutas anti-colonialistas na Ásia e na África.
Mas simultaneamente, na medida em que as novas práticas institucionais políticas e econômicas nos
estados pós-coloniais se normalizaram e se regularam sob as rubricas conceituais da
“modernização” e do “desenvolvimento”, o nacionalismo foi relegado ao campo de histórias
específicas deste e de outro império. E nessas histórias especializadas definidas pelos conteúdos
pouco agradáveis dos arquivos coloniais, os fatores emancipatórios do nacionalismo se viram
diminuídos pelas inumeráveis revelações sobre acordos tácitos, manipulações e sobre os propósitos
perversos de alguns interesses privados. Nos anos 1970, o nacionalismo se converteu em tema de
política racial, um das razões pelas quais as pessoas do terceiro mundo se matavam entre si.
Algumas vezes em guerras entre exércitos regulares, outras vezes lamentavelmente em cruéis
guerras promovidas por exércitos civis e parece que, constantemente, por atos de terrorismo
tecnologicamente sofisticados e virtualmente inevitáveis. Os líderes das lutas africanas contra o
colonialismo e o racismo têm visto suas imagens serem deterioradas ao se converterem em
corruptos, divisionistas e amiúde partidários de regimes brutais. Gandhi tem sido tachado por seu
culto marginal ao pacifismo e ao vegetarianismo. Ho Chi Minh, em seus melhores momentos, se viu
preso nas irrefutáveis polarizações da guerra fria. Parecia que não tinha ficado nada do
nacionalismo que fez o Ocidente se sentir bem.
Esta recente genealogia sobre o tema explica por que o nacionalismo é considerado como uma
força obscura, simples e imprevisível que ameaça a sossegada ordem da vida civilizada. O que
alguma vez tinha sido adequadamente relegado às periferias, agora é visto como se houvesse
retornado até a Europa por meio das largamente esquecidas regiões dos habsburgos, dos czaristas e
dos impérios otomanos. Como as drogas, o terrorismo e a imigração ilegal são outros dos produtos
do terceiro mundo que o Ocidente rechaça, mas que se sente impotente para proibi-los.
À luz das discussões atuais nos meios de comunicação, é surpreendente observar que há
poucos anos se considerava o nacionalismo como um dos presentes mais significativos da Europa
para o resto do mundo. Tampouco se recorda a miúde que as duas grandes guerras do século XX,
que envolveram quase todo o globo, foram ocasionadas pela incapacidade da Europa em manejar
seus próprios nacionalismos raciais. Uma grande variedade do nacionalismo “mal” foi
completamente um produto da história política da Europa. Apesar da celebração das diversas
tendências unificadoras atuais na Europa, existe na recente amnésia sobre as origens do
nacionalismo mais do que uma amostra da ansiedade em estabelecer se o seu lugar de nascimento
tem sido bem evitado.
Em todo este tempo, “os especialistas”, os historiadores do mundo colonial, realizando seu
trabalho nos arquivos administrativos e na correspondência oficial dos arquivos coloniais em
Londres, Paris ou Amsterdam, não se esquecem obviamente como chegou o nacionalismo nas
colonias. Todos concordam que se trata de um importação da Europa. Os debates dos anos 1960 e
1970 nas historiografias da Índia, África ou Indonésia são do mesmo teor e têm claro quem são os
responsáveis. Estes debates entre uma geração nova de historiadores nacionalistas e aqueles que
apelidavam de “colonialistas” eram fortes e, a miúde, quentes, mas foram se relegando com o tempo
a espaços especializados de algumas “áreas de estudo” e as pessoas os foi esquecendo. Faz dez
anos, um desses especialistas da área foi quem uma vez mais formulou a pergunta sobre a origem e
a expansão do nacionalismo dentro da estrutura de uma história universal. Benedict Anderson
mostrou com muita originalidade e sutileza que as nações não eram o produto de condições
sociológicas dadas como a língua, a raça ou a religião. Foram na Europa, como em todas as partes,
imaginadas em sua existência.4 Ele também descreveu alguns dos principais formatos institucionais
por meio dos quais estas comunidades imaginadas adquiriram uma forma concreta, especialmente
essas instituições que engenhosamente se denominou “capitalismo impresso”. Também afirmou que
a experiência histórica do nacionalismo na Europa ocidental, na América e na Rússia proporcionou
aos posteriores nacionalismos um conjunto de formatos modulares dos quais as elites africanas e
asiáticas escolheram os que preferiram.
Considero que o trabalho de Anderson é o mais influente nos últimos anos para gerar novas
bases teóricas sobre o nacionalismo, uma influcencia que obviamente pertence quase
exclusivamente aos trabalhos acadêmicos. Contrário à desinformação quase exótica sobre o
nacionalismo no Ocidente, nos meios de comunicação, a tendência teórica de Anderson trata com
toda segurança de abordar o fenômeno como parte da história universal do mundo moderno.
Mas tenho uma objeção a fazer a Anderson: se os nacionalismos no resto do mundo tinham
que escolher sua comunidade imaginada entre certos formatos modulares que Europa e América
lhes proporcionavam, então o que eles faziam de sua imaginação? Parece que a historia já tinha
estabelecido que nós, no mundo pós-colonialista, somos meramente uns consumidores perpétuos da
modernidade. Europa e América, o únicos sujeitos verdadeiros da história, têm elaborado já em
nosso nome, não só o roteiro da ilustração e da exploração colonial, mas também o da nossa miséria
e resistência anti-colonialista. Parece que nossa imaginação também deve permanecer colonizada
para sempre.
Objeto esta proposta não por razões sentimentais. O faço porque não posso reconciliá-lo com
a evidência de um nacionalismo anti-colonial. O mais poderoso e também o mais criativo acontece

4 ANDERSON, Benedict. Imagined Communities; Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, London, 1983.
com o fato de que a imaginação nacionalista na Ásia e na África fixa não somente em uma
identidade, mas em uma diferença com os formatos modulares das sociedades nacionais propagadas
pelo Ocidente moderno. Como podemos ignorar isto sem reduzir a experiência do anti-colonialismo
a uma caricatura de si mesma?
Para ser justo com Anderson, ele não é o único que tem culpa. O problema reside, estou
convencido agora, em que temos tomado a bandeira do nacionalismo como movimento político
demasiado literalmente e demasiado sério.
Na Índia, por exemplo. A história normatizada nacionalista começou em 1885 com a
formação do congresso nacional hindu. Poderia-se inferir que a década precedente foi um período
de preparação, quando se instituíram várias associações políticas regionais. Anteriormente, dos anos
1820 aos 1870, existiu um período de “reforma social” quando a ilustração colonial começou a
“modernizar” os costumes e instituições de uma sociedade tradicional, e o espírito político era de
muita colaboração com o regime colonial; quer dizer, o nacionalismo ainda não havia aparecido.
Esta história, quando se submete à uma análise sociológica sofisticada não pode concordar
com as explicações de Anderson. Em realidade, como busca imitar sua própria história, a história do
estado moderno na Europa, a representação do nacionalismo inevitavelmente reafirmará a
decodificação de Anderson do mito do nacionalismo. Penso, contudo, que como história, a
autobiografia do nacionalismo se encontra fundamentalmente debilitada.
Segundo minha leitura, o anti-colonialismo forja seu próprio espaço de soberania dentro da
sociedade colonial, muito antes de iniciar sua batalha política dentro do poder imperial. O faz
dividindo o mundo das instituições e das práticas sociais em dois campos: o material e o espiritual.
O material é o campo do “exterior”, da economia e do estatal, da ciência e da economia; um campo
no qual o Ocidente tem ratificado sua superioridade e onde o Oriente tem sucumbido. Então, neste
campo, a superioridade ocidental tem sido reconhecida e suas conquistas cuidadosamente imitadas.
Por outro lado, o espiritual é um campo “interior” que aponta aos aspectos essenciais da identidade
cultural. Se há algo de triunfo em imitar as conquistas ocidentais no campo material, maior é então
a necessidade de preservar as características da própria cultura espiritual. Considero que a formula
se converte em um dos fatores básicos dos nacionalismos anti-coloniais na Ásia e na África.5
Existem diversas implicações. Primeiramente, o nacionalismo declara ao campo do espiritual
o seu território soberano e se nega a aceitar que o poder colonial intervenha nesse campo.
Retomando o exemplo hindu, o período “das reformas sociais” esteve conformado por duas fases.
Na primeira, os reformadores hindus buscaram por meio da ação estatal que as autoridades
coloniais reformaram as instituições e costumes tradicionais. Na segundo, ainda que não se discutia
a necessidade de mudança, se apresentou uma forte resistência que não permitiu que o estado
5 Este é o argumento central do meu livro Nationalist Thought and the Colonial World: A Derivative Discourse?
London, 1986.
colonial intervisse em assuntos que afetavam “a cultura nacional”. A segunda fase, segundo mia
arguição, já constituía a parte do período nacionalista.
Em outras palavras, o estado colonial se mantem fora do campo “interior” da cultura nacional,
mas isso não quer dizer que o chamado campo espiritual permaneça inalterável. De fato, a partir
daqui o nacionalismo lança seu projeto mais poderoso, criativo e historicamente significativo:
modelar uma cultura “moderna” nacional que não é de nenhuma maneira ocidental. Se a nação é
uma comunidade imaginada, é aqui aonde começa a apresentar uma razão de ser. Este é seu
verdadeiro e básico espaço, a nação já é soberana ainda quando o estado continua em mãos do
poder colonial. A dinâmica deste projeto histórico é completamente esquecida nas histórias
convencionais nas quais “o conto” do nacionalismo começa pela conquista do poder político.
Desejo ressaltar vários aspectos dentro do chamado campo espiritual que o nacionalismo
transforma no transcurso deste périplo. Me remeterei às minhas ilustrações de Bengala, cuja história
me é mais familiar.
O primeiro destes aspectos é a língua. Anderson acerta ao afirmar que é o “capitalismo
impresso” o que provê o novo espaço institucional para o desenvolvimento da nova língua
“moderna”6. Contudo, as peculiaridades da situação colonial não permitem uma transposição tão
simples dos padrões europeus de desenvolvimento. Em Bengala, por exemplo, por iniciativa da East
India Company e dos missionários europeus se editaram os primeiros livros no final do século
XVIII e publicaram as primeiras prosas narrativas em começos do século XIX. Ao mesmo tempo,
na primeira metade deste século, o inglês desloca o persa como língua da burocracia e se mostra
como o meio mais poderoso de influência intelectual sobre a nova elite bengalês. Apesar disso, o
momento crucial no desenvolvimento da língua bengali moderna é a metade do século, quando a
elite bilíngue desenha um projeto cultural para proporcionar a língua nativa o aparato linguístico
necessário para se converter no idioma apropriado da cultua “moderna”. Em meio a este projeto é
gerado toda uma rede institucional de imprensa, editoras, jornais, revistas e grupos literários, por
fora da responsabilidade e da autorização do estado e dos missionários europeus, através dos quais,
a nova, modernizada e padronizada vai tomando forma, a intelligentsia bilíngue começa a assumir
sua língua com um sentido de pertencia dentro do campo da identidade cultural e de modo a manter
separada do colonizador intruso. Por consequência, a língua se converte em um espaço sobre o qual
a nação tem primeiramente que reafirmar sua soberania para então a transformar e a adaptá-la ao
mundo moderno.
Aqui as influências formais das línguas e das literaturas europeias modernas não produziram
efeitos similares. Por exemplo, no caso dos novos gêneros literários e das convenções estéticas nos
quais as influências europeias delineavam indubitavelmente o discurso explícito crítico, também se

6 Anderson, Imagined Communities, pp.17-49.


considerava que as convenções europeias não era as adequadas para avaliar a produção literária em
bengali. Até hoje ainda existem alguns vazios evidentes entre os termos da crítica acadêmica e os do
exercício literário. Para dar um exemplo, analisarei um grama bengali.
O drama constitui o gênero literário moderno menos elogiado no campo estético pelos críticos
da literatura bengali, ainda que é o gênero com maior audiência dentro da elite bilíngue. Quando
apareceu em sua forma moderna em meados do século XIX, o drama bengali possuía dois modelos:
o drama moderno europeu como o desenvolvido de Shakespeare até Moliere, e o virtualmente
esquecido corpus do drama sânscrito, o qual tem recuperado atualmente sua excelência clássica
devido aos elogios dos estudiosos orientalistas europeus. Os critérios literários que
presumivelmente incluíram o novo drama dentro do domínio privilegiado da cultura nacional
moderna era, por tanto, delineados pelos formatos modulares provenientes da Europa. Mas as
práticas representativas de uma nova instituição como o público teatral não permitiram que esses
critérios se aplicassem para obras escritas para o teatro. As convenções que permitiriam que um
drama triunfasse nos cenários de Calcutá eram muito diferentes das aprovadas pelos críticos
segundo as tradições do drama europeu. Até hoje essas tensões não foram resolvidas. O que exerce
como a corrente teatral pública em Bengala Ocidental ou em Bangladesh é o teatro urbano
moderno, nacional e claramente diferenciável do teatro “popular”. O primeiro é produzido e
consistentemente patrocinado pelos literatos urbanos da classe média. Ainda assim, suas
convenções estéticas não cumprem com os padrões estabelecidos pelos formatos literários adotados
da Europa.
Ainda com a novela, esse famoso artifício nacionalista dentro do qual a comunidade está feita
para viver e amar dentro de um tempo “homogêneo” 7, os formatos modulares tampouco passam
bem. A novela foi o principal gênero por meio do qual a elite bilíngue bengali criou uma nova prosa
narrativa. Era óbvia a influência no desenho desta prosa dos modelos do inglês moderno e do
Sânscrito clássico. Também, na medida em que o gênero tem ganhado popularidade, é de se
observar a frequência com que os novelistas bengalês tem mudado das formas convencionais
autorais até o uso do discurso corrente em suas obras. Ao ler a alguns dos novelistas de Bengala, a
miúde é difícil determinar se se está lendo uma novela ou um drama. Tendo criada uma linguagem
moderna para sua prosa de acordo com os formatos modulares convencionais, os autores, na busca
pela verdade artística, evidentemente se viram na necessidade de se separar, na medida do possível,
da rigidez dessa prosa.
O desejo de construir uma forma estética moderna e nacional, e que as vezes se diferenciava
da ocidental, se viu refletida nas formas um pouco exageradas e sofisticadas do começo do século
XX, na chamada Escola de Arte de Bengala. A partir destas iniciativas se criou, na primeira

7 Ibid., pp. 28-40.


instancia, um espaço institucional para os artistas profissionais modernos hindus para divulgação,
exibição e impressão das obras de arte e para a formação de um público versado nas novas normas
estéticas. Esta agenda também se viu acompanhada pela construção pela construção de um espaço
artístico modernizado impregnado de um calor ideológico e quente para uma arte que era
“indiscutivelmente” hindu e muito diferente da “ocidental”8. Ainda que o estilo peculiar
desenvolvido pela escola de Bengala para uma nova arte hindu não tardou muito, o proposto
fundamentalmente por esta iniciativa todavia tem vigência no que concerne a criar uma arte que
pudesse se considerar moderna e ao mesmo tempo se reconhecer como hindu.
Junto com as instituições do capitalismo impresso, se fundou uma rede de escolar
secundárias. Uma vez mais, o nacionalismo buscou manter sob sua tutela este espaço muito antes de
que o poder estatal tivesse se convertido em um assunto de discórdia. Em Bengala, desde a segunda
metade do século XIX, a nova elite foi a encarregada de realizar um esforço “nacional” para abrir
escolar em toda a província e criar assim uma literatura conforme. Junto com o capitalismo
impresso, as escolas secundárias provinham os espaços necessários para gerar uma literatura e uma
linguagem novas, generalizadas e normatizadas, por fora do controle estatal. Só assim, ao ase abrir
estes espaços fora do controle estatal e dos missionários europeus, foi que se permitiu às mulheres ir
à escola. Durante este período, final do século, a Universidade Calcutá também deixou de ser uma
instituição de educação colonial e se converteu em uma instituição marcadamente nacional com seu
próprio currículo, faculdade e recursos9.
A família também era outro dos espaços do campo interior na cultura nacional. O
planejamento aqui da autonomia e das diferenças era muito mais dramático. A crítica europeia que
considerava a “tradição hindu” como selvagem foi centrada durante muito tempo em suas práticas e
crenças religiosas, especialmente no que se relacionava com o tratamento às mulheres. A fase inicial
das “reformas sociais” por meio dos controles coloniais também se concentrou nesses aspectos.
Durante esta fase, este espaço foi considerado “básico” para a “tradição hindu”. O movimento
nacionalista começou a lutar pelo controle disso. Diferente dos primeiros reformadores, os
nacionalistas não estavam dispostos a permitir que o poder colonial legislasse sobre as reformas da
sociedade “tradicional”. Afirmavam que somente a nação poderia ter o direito de intervir em tais
aspectos fundamentais de sua identidade cultural.
E ocorreu que o seio familiar e o papel da mulher sofreram mudanças substanciais no
ambiente nacionalista da classe média. Indubitavelmente se formou um novo tipo de ordem
patriarcal, mas que exigia explicitamente que fosse diferente à ordem da família “ocidental”. A

8 A história deste movimento artístico tem sido estudado recentemente em detalhe por Tapati Guha-Thalkurta, The
Making of a New “Indian” Art: Artists, Aesthetics and Nationalism in Bengal, 1850-1920, Cambridge 1992.
9 Ver Anilchandra Banerjee, ‘Years of Consolidation: 1883-1904’; Tripurari Chakravarti, ‘The University and the
Goverment: 1904-24’, and Pramathanath Banerjee ‘Reform and Reorganization: 1904-24’, in Niharranjan Ray and
Pratulchandra Gupta, (eds.) Hundred Years of the University of Calcutta, Calcutta 1957, pp. 129-78, 179-210 e 211-318.
“nova mulher” tinha que ser moderna, mas mantendo todos os caracteres da tradição nacional e, por
tanto, ser diferente da mulher “ocidental”.
A história do nacionalismo como movimento político tendeu a se centrar principalmente na
luta pelo domínio do exterior, no domínio material do estado. Isto é algo diferente do que tenho
sublinhado. É também uma história na qual o nacionalismo não tinha outra opção se não escolher
um formato da galeria dos “modelos” apresentados pelos estados-nação europeus e americanos. Por
consequência, a “diferença” aqui não constitui um critério válido no domínio do material.
No campo material, o nacionalismo iniciou seu percurso (recordemos que já tinha proclamado
sua soberania no campo espiritual) se inserindo em uma nova esfera pública conformada pelos
processos e formas do estado moderno (neste caso colonial). No começo, a tarefa do nacionalismo
consistia em vencer a insubordinação das classes médias colonizadas, isto é, desafiar as normas das
“diferenças coloniais” no âmbito do estado. Devemos recordar que o estado colonial não foi a
instituição que ativou os formatos modulares do estado moderno nas colonias; melhor seria dizer
que se encarregou de nos permitir a “normalização” dos propósitos do estado moderno já que uma
de suas premissas de controle consistia em manter as normas da diferença colonial; em outras
palavras, preservar a alienação dos grupos de controle.
Como as instituições do estado moderno foram desenhadas durante a colonia, especialmente
na segunda metade do século XIX, a classe dominante europeia achou necessário estabelecer – por
meio da promulgação de leis, da burocracia, da administração da justiça e do reconhecimento pelo
estado de um espaço legítimo da opinião pública – as precisas diferenças entre governantes e
governados. Se iria permitir os hindus legislar, poderiam eles julgar os europeus? Era bom o fato
dos hindus ingressarem no serviço civil aprovando os mesmos exames que os britânicos graduados?
Se os periódicos europeus na Índia possuíam liberdade de imprensa, poderia se aplicar o mesmo aos
periódicos locais? Ironicamente, se converteu em uma tarefa histórica do nacionalismo, apesar de
insistir em suas próprias marcas distintivas no cultural com respeito ao Ocidente, exigir que não
podiam existir regras diferenciadoras no controle do estado.
Eventualmente, com acrescente influência dos políticos nacionalistas, este controle se tornou
mais extensivo e internamente diferenciado, finalmente assumindo as características formais de um
estado nacional, pós-colonial. Os fatores predominantes desta autodefinição, pelo menos na Índia
pós-colonial, provem da ideologia do estado moderno liberal e democrático.
De acordo com esta ideologia liberal, agora o público se distinguía do privado. Se era exigido
ao estado que protegesse a inviolabilidade de sua própria idiossincrasia com respeito às
características dos demais, a legitimidade do estado ao desempenhar estas funções tinham que
versar garantida por sua neutralidade em estabelecer diferenças pessoais, raciais, de língua,
religiosas, de classe, de casta, etc.
O problema estava no fato de que a liderança moral e intelectual da elite nacionalista operava
no campo constituído por um conjunto bastante específico de diferenças: entre o espiritual e o
material, o interior e o exterior, o básico e o superficial. Esse espaço tão controvertido onde o
nacionalismo tinha proclamado sua soberania e dentro do qual tinha imaginado sua verdadeira
comunidade, não era coextensivo nem coincidente com o espaço construído pela distinção entre o
público e o privado. No primeiro campo, o projeto hegemônico do nacionalismo à duras penas
podia fazer das diferenças de língua, religião, classe ou casta um assunto de imparcialidade em si
mesmo. O projeto era de que uma “normatização” cultural, como Anderson explicava; projetos
hegemônicos em toda parte, mas com uma grande diferença: tinha que escolher seu espaço de
autonomia a partir de uma posição de subordinação à um regime colonial que tinha de seu lado
recursos justificatórios mais universais gerados pelo pensamento social posterior à Ilustração.
O resultado destes formatos autônomos da imaginação da comunidade foi, e continua sento,
absorvido pela história do estado pós-colonial. Neste radicam as causas de nossa miséria pós-
colonial: não é nossa incapacidade para desenhar novos formatos de comunidade moderna, senão
nossa submissão ante as novas formas de estado moderno. Se a nação é uma comunidade
imaginada e se as nações devem assumir os papéis de um estado, então nosso aparato retórico nos
deve permitir falar de comunidade e de estado ao mesmo tempo. Mas considero que nosso aparato
teórico atual não nos permite.
Um pouco antes de sua morte, Bipinchandra Pal (1858-1932), o grande líder do movimento
Swadeshi em Bengala e protagonista do congresso pré-gandiano, descreveu a residência onde se
alojavam os estudantes em Calcutá durante sua juventude:
As residencias dos estudantes em Calcutá, nos meus tempos de estudante que faz
cinquenta ou sessenta anos, eram como pequenas repúblicas e se manejavam com
normas notadamente democráticas. Tudo era decidido pelo voto da maioria.
Mensalmente se elegia o diretor para todo “o méson” e ele se encarregava de
tramitar todos os deveres dos residentes junto com a administração dos alimentos e
dos utensílios da residência... Com frequência se rogava à um bom administrador
que aceitasse sua re-eleição, enquanto que os bagunceiros tinham que pagar do seu
próprio bolso por uma má administração, então evitavam ocupar esta posição
honrosa.
… qualquer disputa entre os membros era resolvida por uma “Corte de residentes”
e nos sentávamos, lembro, noite atrás de noite para analisar ocaso. E nunca a
decisão desta “corte” se viu desobedecida ou questionada. E todos faziam cumprir
a decisão ao residente culpado. Todos ameaçavam esse membro com a expulsão e
se ele se negasse, o faziam pagar com toda a mesada... E tal era a força da decisão
do grupo que soube de casos de castigo a um residente que depois de uma semana
de ter sido expulso, seu semblante parecia como se estivesse recuperado de uma
grave enfermidade...
O grupo de residentes estava composto dos chamados ortodoxos, os brâmanes, e
outros heterodoxos comprometidos com a nossa “república”. Se fosse estabelecido
uma norma que proibisse trazer alimentos à residência, os membros da ortodoxia
hindu cumpriam, ainda que ficava muito claro que fora da residência se podia
comer e fazer qualquer coisa. Assim nos sentíamos livres ainda para ir ao Great
Eadtern Hotel, aonde muitos de nós começamos a frequentar. 10

O interessante desta descrição não é a visão exageradamente romântica de um esquema em


miniatura de autogovernar a nação, senão o uso reiterativo de expressões institucionais da cívica e
moderna Europa política (república, democracia, unanimidade, eleição, corte...) para descrever um
conjunto de atividades em aspectos materiais e a miúde incongruentes com este tipo de sociedade
civil. O tema de uma “compromisso” nos hábitos alimentícios se baseava realmente não em um
princípio de delimitação do “público com respeito ao privado”, e sim na cisão entre o “interior” e o
“exterior”; o espiritual como um espaço onde a unanimidade tinha que prevalecer, enquanto que o
exterior era só uma amostra da liberdade individual. Apesar do “voto unânime de toda a residência”,
a força que determinava a unanimidade no campo interior não era o procedimento de votação que
estabelecia que os indivíduos se comportavam como um todo, e sim o consenso de uma comunidade
– institucionalmente inovadora (porque depois de tudo, a residência de Calcutá era algo sem
precedentes na “tradição”) e internamente diferenciada e sem dúvida uma comunidade que se
impunha sobre os membros individuais.
Mas o uso de Bipinchandra dos termos parlamentares para descrever as atividades
“comunitárias” dessa residencia como se fosse uma nação, não devem se entender como uma
informalidade. Sua linguagem constitui um indicativo das implicações reais do dois discursos e dos
dois campos da política. Esta tentativa se nota na recente historiografia hindu para abordá-los como
os domínios da política de “elite” e da política dos “subordinados” 11. Mas uma das consequências
relevantes deste enfoque historiográfico tem sido precisamente a mostra de que cada domínio não
somente atuava em oposição e limitado pelo outro, e sim que através desta confrontação, também se
configurava o esquema político do outro. Por tanto, a presença do populista ou dos elementos
comunitários na ordem liberal constitucional do estado pós-colonial não se assume como um signo
da inautenticidade ou desonestidade da elite política; seria bem mais um reconhecimento por parte
da elite dominante da presença tangível de um espaço da política dos subordinados sobre a qual
devia se impor ou também negociais de acordo com suas propostas, com o fim de conseguir alguns
acordos. Alem disso, o campo da política dos subordinados se convertia com o tempo ou se
adaptava aos formatos característicos institucionais da elite dominante. Por consequência, o
relevante aqui não é a simples demarcação e identificação de dois espaços em sua própria
delimitação que é o que primeiramente se requeria para romper com os clamores totalizantes de
uma historiografia nacionalista. A tarefa agora é determinar, em suas historicidades mutuamente
condicionadas, os esquemas específicos que surgiram, por um lado, no espaço definido pelo projeto

10 Bipinchandra Pal, Memories of My Life and Times, Calcutta 1932, reprinted 1973, pp. 157-60.
11 Representado pelos vários ensaios em Ranajit Guha, ed., Subaltern Studies, vols 1-6, Delhi 1982-90. The
programmatic statement of this approach is in Ranajit Guha. ‘On Some Aspects of the Historiography of Colonial
India.’ In: Guha, (ed) Subaltrn Studies vol.1, Delhi 1982, pp. 1-8.
hegemônico a modernidade nacionalista; e por outro, nas inúmeras resistência fragmentadas até
esse projeto normalizador.
Este é o exercício que desejo realizar. Como problema poderia ser o de estabelecer limites
dessa suposta universalidade do regime moderno de controle e com as disciplinas do conhecimento
da pós-ilustração, poderia parecer que este trabalho tenta ressaltar mais uma vez um ceticismo
hindu (ou oriental). Não obstante, o propósito de meu trabalho é muito mais complexo e
consideravelmente mais ambicioso. Inclui não só a identificação dos esquemas discursivos que
tornaram possível essas teorias sobre o ceticismo hindu, e sim também uma demonstração de que as
condições apresentadas realmente implicam em alguns fatores forçadamente limitados ainda nos
formatos supostamente universais do regime moderno de poder.
Esta última demonstração nos possibilita estabelecer que os clamores universalistas da
filosofia ocidental moderna se encontram também limitadas pelas contingências do controle global.
Em outras palavras, “o universalismo Ocidental” como o mesmo “ceticismo Oriental” só podem ser
assinalados como uma forma particularmente mais rica, diversa e diferenciada da conceitualização
de uma nova ideia universal. Isto nos permite conceber não só a possibilidade de pensar em uma
forma nova de comunidade moderna, que, como expliquei, a experiência asiática e africana tem
tentado desde seu começo, mas decididamente pensar em novos formatos de um estado moderno.
O projeto então, consiste em reclamar para nós, aqueles uma vez colonizados, a liberdade de
imaginação. Clamores, como sabemos bem, só podem se fazer como resposta em um espaço de
poder. As investigações apontarão necessariamente a campos específicos disciplinários a marca de
uma pergunta não contestada. Alem disso, advogar por algo fragmentário a este respeito é também,
ainda que não surpreendente, gerar um discurso fragmentado. É redundante fazer uma apologia a
isto.

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