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MfMÓRIA e SOClfDADf NIKLAS LUHMANN

Nascido em 1927, Niklas Luhmann ensina Sociologia iB


na Universidade de Bielefeld. Formado em Direito, •......•
iniciou a sua carreira universitária em 1961, tendo
rapidamente assumido uma posição de relevo na :i
{I
renovação das ciências sociais, como atestam os debates
teóricos travados com Talcott Parsons e Jürgen
Habermas. A sua vasta obra, construída essencialmente
no âmbito da teoria geral da sociologia, sociologia
do Direito e sociologia das organizações, tem abordado
temas muito diversificados que vão da religião
--
() AMOR COMO PAIXAJ
à ciência, do poder ao amor, da verdade ao dinheiro,
da' confiança ao tempo. Entre os títulos publicados , PARA A CODIFICAÇÃO DA INTIMIDADE
destaca-se Soziologische Aufklãrung (1970),
Rechtssoziologie (1972), Macht (1975) e Soziale System
(1984). Liebe als Passion, o livro agora traduzido,
permite o acesso aos desenvolvimentos recentes'
do programa de pesquisa do autor, a partir
de um objecto que está no centro do nosso quotidiano:
a codificação da intimidade.

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Colecção coordenada por Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto

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NIKLAS LUHMANN

o AMOR COMO PAIXÃO


PARA A CODIFICAÇÃO
DA INTIMIDADE

Tradução
de
FERNANDO RIBEIRO

Memória e Sociedade

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Ld.
NOTA DE APRESENTAÇÃO
Título original: Liebe aIs Passion
© Surhkamp Verlag Frankfurt am Main 1982

Todos os direitos para publicação desta obra na língua portuguesa


reservados por:
A obra de Niklas Luhmann, construída essencialmente em torno
-JE.!f.d~'~ Lisbo.
Ldo da teoria geral da sociologia, sociologia do Direito e sociologia das
organizações, tem abrangido uma enorme quantidade de temas,
DIFEL 82 - Difusão Editorial, Lda.
Rua D. Estefânia, 46.B que vão da religião à intimidade e à ideologia, da ciência ao poder
1000 LISBOA e à confiança, da verdade ao dinheiro e ao amor. O seu percurso
Telefs.: 537677 .545839.3252310 profissional - licenciatura em Direito pela Universidade de Frei-
Telex: 64030 DIFEL P burg em 1949, exercício da advocacia, funções administrativas no
Telefax: (01) 545886
governo da Baixa Saxónia até 1960, estágio em sociologia e admi-
Capital social· 60 000 000$00 (sessenta milhões de escudos)
Contribuinte n.? 501378537
nistração pública na Universidade de Harvard em 1960-61, início
Matrícula n. o 3007 . Conservatória do Registo Comercial de Lisboa
da carreira universitária em Speyer, ensino e investigação em
Dortmund e Münster em 1966-68, passagem para a Universidade
Todos os direitos de comercialização no mercado brasileiro reservados à: de Bielefeld neste último ano -, embora nos elucide sobre algu-

a
EDITORA BERTRAND BRASIL, S.A.
Avenida Rio Branco, 99.20. o
mas áreas de interesse, deixa na sombra uma sólida formação fi-
losófica, cultural e científica, que lhe permite movimentar-se com
o mesmo à-vontade entre os textos de Aristóteles, dos teólogos me-
dievais e dos juristas modernos, entre a fenomenologia de Husserl
e o funcionalismo de Talcott Parsons, entre as monografias er-
20040 . Rio de Janeiro· RJ nográficas e os relatórios de experiências psicofisiológicas, entre o
Te!.: (021) 2632082 Telex: (21) 33798 Fax: (021) 2636112 sistema jurídico coreano e o direito comunitário. A sua vasta eru-
dição tem sido mobilizada pelo processo de construção de uma
Memória e Sociedade
teoria social geral, onde as noções de sistema, função, sentido e
Colecção coordenada por Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto complexidade desempenham um papel primordial.
Capa: Emílio Távora Vilar A evolução da teoria sociológica, segundo o autor, é definida
Revisão: Femando Milheiro e Frederico Sequeira como a passagem da teoria dos factores para a teoria dos sistemas.
Composição: Maria Esther - Gab. Fotocomposição Nesta perspectiva, nenhuma causa é considerada suficiente para
Impressão e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu, 1991 produzir um dado efeito, pois diferentes causas podem produzir o
Depósito Legal nO 43938/91
mesmo efeito e as mesmas causas efeitos diversos. Daí a ruptura
ISBN 972·29.0051.X com o conceito tradicional de função como relação de invariância
entre causas específicas e efeitos específicos, sendo a noção reelabo-
Proibida a reprodução total ou parcial sem prévia autorização do Editor rada em termos não causais. O objectivo desta postura epistemológica
VIII AMOR COMO PAIXÃO IX
NOTA DE APRESENTAÇÃO

não é a explicação das relações necessárias ou prováveis entre causas das respectivas interacções, contrapondo uma abordagem «holistax
e efeitos, mas a determinação das relações de equivalência funcio- que valoriza a funcionalidade dos subsistemas e as possibilidades de
nal entre «várias causas possíveis com vista a um efeito problemático» acção definidas no seu quadro (diluindo-se os interesses específicos
(Soziologische Aufklãrurig). Assim, o significado da análise fun- dos agentes sociais nas estruturas de actuação, entendidas como
cional está na pesquisa comparada que relaciona entre si várias mecanismos de pré-selecção das alternativas possíveis de comporta-
causas possíveis de um mesmo efeito ou vários efeitos possíveis de mente). Assim, enquanto para Pierre Bourdieu a noção de campo
uma mesma causa, descobrindo novas possibilidades na relação entre permite caracterizar a dinâmica de relações entre os diferentes grupos
fenómenos sociais e tratando causas e efeitos como simples variáveis de agentes que detêm posições e objectivos próprios, definindo-se
intermutáveis, não como estruturas «ontológicas». as fronteiras do campo em função da zona de influência resultante
O método comparado subjacente a esta noção, que abstrai de das interacções entre os agentes envolvidos, para Niklas Luhmann
um campo de fenómenos um problema de referência relacionando-o a noção de sistema decorre dos processos de interacção social que
com um conjunto de soluções alternativas, só se torna operacio- se defrontam com o excedente de possibilidades oferecidas pelo
nal no quadro da sua abordagem do sistema social, visto como meio ambiente, resultando daí a intensificação da complexidade so-
«conexão dotada de sentido de acções que se referem umas às outras cial, o desenvolvimento da diferenciação externa dos subsistemas
e que são delimitáveis no confronto com um ambiente» (Religion). sociais e a multiplicação das interdependências sistérnicas. Na sua
Elemento central desta perspectiva, a ideia de que o carácter fun- perspectiva, nenhum sistema, nem mesmo os mais significativos
damental do mundo reside na sua complexidade (e contingência), socialmente, pode adquirir um papel decisivo no processo social.
carácter decorrente da desproporção entre o sucesso de possibilida- Da mesma maneira, nenhum grupo pode determinar esse processo
des oferecidas pelo ambiente e a capacidade de acruação do sistema. na base dos seus interesses específicos. A sua abordagem, como ve-
Aliás, convém falar de sistemas no plural, pois para Luhmann o rificamos, desvaloriza a dinâmica de conflito e de tensão entre grupos
jogo das interacções sociais produz um conjunto de sistemas e sub- de agentes, acentundo a diferenciação funcional, entendida como
sistemas mais ou menos articulados e estruturados ao nível interno, processo incessante de produção de novas estruturas capazes de de-
que geram um património de expectativas de conduta, de juízos de finir as acções admitidas e excluídas.
valor e de soluções alternativas tendentes a reduzir a complexidade Neste quadro, a noção de sentido adquire uma importante função
do mundo (entendido como horizonte de experiências). analítica, pois permite a intensificação dos sistemas sociais através
A relação do sistema com o ambiente em torno é assim acen- das selecções produzidas, selecções que têm em vista a compreensão
ruada sem prejuízo da análise interna que caracteriza a abordagem das possibilidades de experiência e a redução da complexidade do
sistémica comum. Nesta linha, Luhmann mantém uma postura meio. Numa palavra, a estruturação dos sistemas é vista como um
crítica em relação à abordagem «individualista» de Max Weber, processo intersubjectivo de constituição de sentido e de construção
que valoriza os conflitos de interesse dos agentes colectivos na análise do mundo. Daí a importância estratégica, no seu programa de
x AMOR COMO PAIXÃO NOTA DE APRESENTAÇÃO XI

pesquisa, da análise do subsistema político - estruturado pela sistema, pelo que qualquer alteração só pode influir na sua distri-
solução dos problemas de dissensão, pela escolha entre valores buição interna. Na abordagem de Luhmann, pelo contrário, o poder
heterogéneos e pela regulação dos conflitos (inpur), bem como pela é produzido pelo efeito do sistema, dependendo a quantidade de
produção de decisões vinculativas e pela distribuição nominativa de poder activada e mobilizada das condições ambientais e das estru-
valores (outpur) -, que podemos confrontar com a análise dos turas geradas num dado sistema, tendo em vista a selecção de
meios de comunicação (poder, dinheiro, verdade, amor), através dos possibilidades e a transmissão de princípios de decisão.
quais se elaboram códigos simbólicos e processos de decisão regu- Neste seu livro, Luhmann considera o amor também como um
ladores da acção social. Contudo, a elaboração destas estruturas, meio de comunicação simbólica. Este meio aumenta a disposição
tendente à compreensão e simplificação do mundo, conduz muitas para receber comunicações e assegura a interacção entre o «alter-
vezes ao crescimento da complexidade. A sua análise da confiança e o «ego», dois actores que de outro modo não poderiam jogar um
é reveladora deste processo: onde existe confiança (meio fundamen- determinado jogo amoroso. O código do «amor como paixão», que
tal de redução da complexidade social), verifica-se um incremento começa por surgir em França no século XVII e sofre diversas trans-
das possibilidades de experiência e de acção que acaba por aumen- formações até aos nossos dias, constitui-se em objecto de uma
tar a complexidade do sistema social, dado o aumento do número sociologia histórica luhmanniana. Sobre as ruínas do código do
de intercâmbios (Vertrauen). amor cortês, que concebia a união mundana como metáfora do
A sua análise do poder (Match) é igualmente significativa do amor de Deus, e simultaneamente à formação de outros códigos da
processo de raciocínio do autor. O poder, em primeiro lugar, é visto intimidade (o da vida doméstica, em Inglaterra, e o da valorização
como um conjunto de esttuturas, ou seja, de meios de comunica- do indivíduo, na Alemanha), o «amor paixão» reivindica a liber-
ção, organizados de maneira a neurralizar os problemas, transfor- dade na escolha amorosa e encontra-se em parte na origem do amor
mando temas potencialmente conflituosos em temas compatíveis romântico. O casamento deixa de ser prova de amor e, por isso, é
com a estabilidade do sistema. Nesta perspectiva, a produção de necessário encontrar novas formas de comunicação do sentimento.
novas formas de antagonismo conduz à produção de novas fontes de Produto, antes de mais, de uma elite, a nova ética amorosa encon-
poder (enquanto coerção e formação de consenso). Esta visão inova- tra na comunicação de salão e na difusão dos textos impressos um
dora pressupõe duas críticas: a primeira ao modelo estático de estrutura dos seus principais registos. Donde a importância da literatura
hierárquica de poder (substituído por um modelo circular de neste estudo, já que para o autor o romance fixa e codifica compor-
comunicação de poder no âmbito de um sistema diferenciado por tamentos que se encontram já em acção na sociedade. Mas a elabo-
funções); a segunda à noção tradicional do poder como um bem a ração deste novo código não pode deixar de ser considerada para-
que se pode ter acesso (noção que se encontra desde os autores doxal relativamente a uma cultura apostada na racionalidade. Com
clássicos, como Maquiavel, a Ta1cott Parsons). Esta última noção efeito, é no quadro desta cultura que a codificação da intimidade
pressupõe como constante a soma de poder presente num dado pretende libertar o indivíduo, nas suas escolhas ou negações, da
XII AMOR COMO PAIXÃO

PREFÁCIO

As investigações aqui apresentadas sobre a semântica do amor


combinam dois contextos teóricos diferentes. Por um lado, situam-
-se no âmbito de trabalhos da sociologia do conhecimento que se
responsabilidade ligada à moral e à sociedade. Resultado: o que
ocupam da transição de formas de sociedade tradicional para a
é considerado até então como uma anomalia torna-se um facto
normal. moderna. Outros trabalhos sobre este tema foram publicados sob o
título Gesellschaftsstruiuur und Semantik (2 vols., Francoforte, 1980,
1981), tendo-se em vista a continuação de tais investigações. Par-
Memória e Sociedade - os coordenadores
tem da seguinte tese: a reestruturação do sistema de sociedade, em
que a diferenciação do seu sistema transita do estratificado para o
funcional, produz modificações profundas no ideário da semântica
com o qual é possível à sociedade a continuidade da sua própria
reprodução, isto é, o encadear das acções. Em transformações evo-
lutivas deste género podem o discurso camuflado, o estilo ornamen-
tado, o saber popular e os postulados da experiência ser transmiti-
dos pela tradição, mas modificarão o seu sentido, a sua selectividade
e a sua capacidade de captar experiências e abrir novas perspec-
tivas. Verifica-se assim uma deslocação do centro de gravidade, a
partir do qual complexos de sentido orientam operações, podendo
deste modo o ideário, quando suficientemente rico, preparar, acom-
panhar e com rapidez tornar plausíveis modificações profundas nas
estruturas sociais. Graças a esta aj uda podem suceder-se com rela-
tiva rapidez, e frequentemente de um modo quase revolucionário,
transformações estruturais, sem que se tenham de gerar de uma só
vez todos os pressupostos.
Entramos no segundo contexto com as bases de uma teoria
global dos meios de comunicação simbolicamente generalizados.
Assim sendo, o amor não será aqui tratado como um sentimento
nem mesmo apenas como um seu reflexo, mas antes como um
código simbólico que informa sobre o modo como se pode comu-
nicar com êxito, mesmo nos casos em que tal poderia parecer
impossível. O código encoraja a formação de sentimentos corres-
pondentes. Sem ele, a maioria, segundo La Rochefoucauld, jamais
8 o AMOR COMO PAIXÃO PREFÁCIO 9

poderia ter acesso a tais sentimentos. E as inglesas, que procuram gente; tem todavia poucas possibilidades de excluir outras combi-
orientar-se por romances pré-vitorianos, têm até de esperar por nações, consideradas menos boas ou menos prováveis. Na reflexão
sinais visíveis de amor disposto para o matrimónio, antes de pode- histórica tornam-se mais evidentes as afinidades, pois reconhece-se
rem descobrir conscientemente o que é o amor. Não se trata assim como um sistema existente ou uma semântica já formulada anteci-
da pura invenção de uma teoria sociológica, mas de um quadro de pa um juízo sobre o seu próprio futuro (que todavia tem de ser
circunstâncias há muito reflecrido na semântica do amor. Com a pensado, em princípio, como indeterminado). Este sistema mani-
teoria apenas se ganha em abstracção, possibilitando-se a compara- festa-se talvez na história da ciência: não será mera coincidência
ção com Outros quadros de circunstâncias, por exemplo com o poderem-se estimular descobertas que em consequência disto aca-
poder, com o dinheiro, com a verdade; com isso, ela ganha em bam por se afirmar. A verdade surge ao longo do processo.
conhecimentos, revelando que o amor não é apenas uma anomalia, Isto poderá ser provavelmente generalizado de modo a transfor-
mas antes uma improbabilidade absolutamente normal. mar-se num argumento de ordenação por excelência. Apresentamos
A intensificação da probabilidade do improvável _ eis a um breve esboço de um exemplo extraído das investigações seguin-
fórmula que une a teoria da sociedade, teoria evolucionista e teoria tes: a teoria sociológica postula em abstracto uma relação entre a
dos meios de comunicação. A normalização de estruturas sociais diferenciação plena dos meios de comunicação simbolicamente
mais improváveis coloca maiores exigências aos meios de comuni- generalizados e a regulação dos seus real assets (Parsons), dos seus
cação, reflecte-se na sua semântica, sendo o conceito de evolução mecanismos simbióticos. Tal pode ser tornado plausível através de
aquele que deve esclarecer como pode acontecer algo de seme- uma comparação entre os contextos verdade/percepção, amor/sexua-
lhante.
lidade, dinheiro/necessidades elementares, poder/violência física.
Os estudos históricos sobre a semântica do amor inserem-se A investigação histórica mostra complementarmente, com base
neste contexto teórico. Não podem naturalmente pretender validar nesta teoria, que as diferenças entre o complexo amour passion dos
uma teoria evolucionista num sentido metodicamente rigoroso. franceses e o casamento/companionship típico dos puritanos afirma-
Trouxeram todavia, no que diz respeito a questões de método, dois ram, especialmente a este respeito, pressupostos de contacto distin-
tipos de experiências de trabalho que coabitam em complementa- tos: apenas a semântica do amour passion foi, como mostraremos
ridade. Uma afirma que apenas as teorias sociológicas de construção mais pormonorizadamente, suficientemente complexa para poder
muito absrracra e complexa podem dar voz ao material histórico. absorver a valorização da sexualidade no século XVIII; embora
O caminho para o concreto exige o desvio que passa pela abstrac- tenham contribuído mais para a valorização do amor e do casamen-
ção. A sociologia é ainda hoje pouco teórica e absrracra, o que to, só conseguiram criar, nas mesmas condições, o monstro da
impede o sucesso da investigação histórica. A outra experiência moral sexual vitoriana. Nesta sequência histórica surge, precisa-
afirma que sequências temporais possuem uma singular capacidade mente na diferença de reacção perante o mesmo problema, um con-
demonstrativa dos contextos de circunstâncias, capacidade essa texto de circunstâncias - reconheço que metodologicamente insu-
ainda não suficientemente esclareci da do ponto de vista metodo- ficientemente esclarecido, apesar de Weber.
lógico.
Não necessito de me debruçar neste momento sobre quadros
Em Parsons aparece já, aqui e ali, a ideia de que um sistema de circunstâncias e resultados; os contextos são de qualquer modo
diferenciado só o é pelo facto de resultar da diferenciação. Ao longo demasiado complexos para uma síntese breve. A apresentação da
da investigação sobre a semântica histórica, reforçam-se impressões matéria na sequência dos capítulos deste livro acabou também por
deste tipo. A evolução faz, aparentemente, experiências com a se tornar, a este respeito, um compromisso. Dada a interdependên-
capacidade de estabelecer conracros. Na observação sincrónica de cia entre contextos de circunstâncias, modificações históricas e
quadros de circunstâncias altamente complexos, o encadeamento diferenças regionais, a estruturação não podia orientar-se por ne-
torna-se convincente, podendo na verdade ser considerado contin- nhum destes pontos de vista isoladamente. A literatura em que me
10 o AMOR COMO PAIXÃO

baseei é dada a conhecer nas notas de rodapé. Recorri, numa exten-


são considerável, a romances dos séculos XVII e XVIII, com a im-
pressão primeira de uma forte e depois decrescente interdepen-
dência com a literatura sentenciosa e a literatura tratadística. Neste
sentido, surgiram dificuldades de selecção do material. Por muito CAPÍTULO I
que se saiba que o romance se constitui desde o século XVII em
factor didáctico e orientador nas questões de amor não deixa de Sociedade e indivíduos:
se tornar difícil condensar tal ponto de vista em teses singulares, Relações pessoais e impessoais
conceitos, postulados ou normas de comportamento. Podemos
apenas verificar que as personagens dos romances se comportam
segundo um código; tendem mais a dar-lhe do que a acrescentar- Caracterizar sempre a sociedade moderna como uma impessoal
-lhe algo de novo. Perante casos importantes, como a Princesse de sociedade de massas é, sem dúvida, um falso juízo. Tal interpre-
Clêues e a plêiade de romances de renúncia que se lhe seguiu, é fácil tação provém em parte de uma classificação demasiado teórica do
reconhecer as excepções. Foi conscientemente que procurei litera- conceito de sociedade, em parte de uma ilusão óptica. Quem com-
tura de segunda e terceira ordem, como foi também consciente- preender a sociedade prioritariamente através de categorias econó-
mente que deixei prevalecer um princípio subjectivo na escolha das micas, quem a compreender partindo do seu sistema económico,
citações; mais precisamente o da elegância línguística na formula- terá obrigatoriamente de reconhecer a preponderância das relações
ção. Deve atribuir-se ainda à minha paixão pelo assunto o não ter impessoais, pois na realidade tal é válido para o sistema económico.
sido capaz de me decidir a traduzir citações de línguas europeias Mas a economia é apenas um factor entre outros na vida da socie-
conhecidas.
dade. Mesmo quando se assume este ponto de vista do indivíduo
isoladamente, é natural reconhecer-se que aquele só possa estabe-
lecer relações impessoais com as outras pessoas. Neste sentido, a
Bielefeld, Maio, 1982.
sociedade - isto é, a totalidade de relações possíveis - surge
como predominantemente impessoal. De igual modo, também se
Niklas Luhmann reconhece ao indivíduo isolado a possibilidade de em certos casos
intensificar as relações pessoais e de comunicar aos outros, por ver
nestes confirmado, muito do que entende como o seu mais íntimo.
Esta possibilidade encontra-se também com frequência, caso a con-
sideremos verificável em qualquer um, entendida e realizada por
muitos; é também característico da sociedade moderna o fácil
acesso a essa possibilidade, sendo pouco agravada pela necessidade
de considerar outras relações.
Por isso, partiremos seguidamente do princípio segundo o qual
a sociedade moderna, comparativamente a formações sociais mais
antigas, se distingue por uma intensificação de dupla natureza:
através de um maior número de possibilidades para estabelecer
relações pessoais e através de relações pessoais mais intensivas. Esta
dupla possibilidade pode ser construída porque a sociedade é no seu
todo mais complexa, porque pode regular melhor as interdepen-
CAPÍTULO I 13
12 SOCIEDADE E INDIVÍDUOS

dências entre os diferentes tipos de relação pessoal, porque pode resposta quaisquer perguntas, também sobretudo quando estas se
filtrar melhor estas inrerdependências. referem a algo pessoal. Enquanto a interpenetração inter-humana pode
Pode-se falar do aumento da possibilidade de estabelecer rela- ser factual e continuadamente aumentada - desde que a sociedade
ções impessoais, porque é possível comunicar com sucesso num lhe conceda espaço para tal e se abstraia das interferências -, a mo-
vasto leque de situações, mesmo quando não se conhecem os inter- bilização de uma tal possibilidade terá de ser fixada descontinuada-
locutores pessoalmente e quando se conseguem avaliar apenas mente, ao nível das regulações comunicativas. Elaborar-se-á um tipo
algumas características de fácil apreensão, inerentes ao papel de- de sistema para relações íntimas, no qual não se permitirá subtrair
sempenhado (polícia, empregada de balcão, central telefónica). os traços pessoais à comunicação. Daquilo que sociologicamente sa-
Além disso, porque cada operação singular depende de inúmeras bemos e pressupomos sobre a génese da individualidade pessoal I,
outras, cujas respectivas garantias de função não se encontram nas não podemos partir do facto que a necessidade de uma individua-
características da personalidade que podem ser conhecidas daquele lidade pessoal e a possibilidade de se definir singularmente a si
que nelas confia. Existem traços fidedignos improváveis, contin- próprio e aos outros podem ser esclarecidas por constantes antro-
gentes, não interpretáveis como naturais e jamais verificáveis em pológicas; pelo contrário, esta necessidade e respectiva possibili-
qualquer outra sociedade anterior, que não podem ser abrangidos dade de encontrar expressão e reconhecimento nas relações comu-
pelos conhecimentos pessoais. nicativas correspondem às condições socioestruturais e sobretudo
O alargamento das possibilidades de estabelecer relações pes- à complexidade, ao quadro típico das diferenciações do sistema
soais não pode ser entendido de igual modo como uma mera exten- social 2. Não exploramos aqui completamente este tema da sociogé-
são, como um aumento do número e da diversidade das relações de nese da individualidade e da semântica respectiva, limitamo-nos
comunicação desenvolvidas com sucesso. Uma tal extensão iria antes a uma questão parcial, mas importante neste contexto: a
rapidamente chocar, em cada indivíduo, com uma barreira de
exigências. Na relação social, o factor social não pode existir pela I Comparar, por exemplo, com a célebre formulação final de Émile Durk-
extensão, mas pela intensificação. Por outras palavras, serão pos- heim em De Ia division C/U trauai! social. Paris, 1893, citado da tradução alemã
síveis relações sociais nas quais um maior número de caracterís- Über die Teilung der sozialen Arbeit. Frankfurt, 1977, p. 443 e segs.; e também
do mesmo autor, Leçons de sociologie: physiq/le des moem» e d« droit, Paris, 1950,
ticas individuais e particulares da pessoa ou em princípio todas as
p.68 e segs.; Georg Simmel, Gmnd/ragen der Soziologie (l ndioidtaau und Gesel-
características de uma pessoa individual sejam significativas. Desig- lsrha/t). Berlim-Leipzig, 1917, p. 71 e segs.; Louis Durnont, Honio bierarchicus:
naremos tais relações através do conceito: interpeneiraçâo inter-buma- lhe caste s)'stelll and its illlplications. Londres, 1970 (ed. original, Honio bierarchiats:
na. No mesmo sentido pode-se falar também de relações íntimas. le systéllle des castes et ses illlpliceltions, Paris, Gallimard, 1967, reed. aumentada,
O conceito tem um carácter gradual. Parte do princípio que a colecção «'Tel», 1979). Para o muito discutido e paralelo desenvolvimento
semântico comparar também com Norman Nelson, Inc/ivielllalislll as a criterton
totalidade do que concretamente compõe uma pessoa individual, as
0/ tbe Renaissance. «)ournal of English and Germanic Philosophy», 32 (1933),
suas recordações, as suas atitudes, jamais pode ser acessível a ou- pp. 316-334; Angel Sanchez de Ia Torre, Los anuienzos ele 10 SIIbjedivislllo jll/'ic/iw
tros; não porque tal totalidade seja inacessível a si próprio (como se en Ia mlt/lrel europea. Madrid, 1958; Colin Morris, The discouery 0/ lhe indioidn«l
pode depreender das tentativas de Tristam Shandy para escrever a 1050-]200. Londres, 1972).
sua biografia). Mas existe naturalmente «mais ou menos» algo que 2 Uma outra questão que não deve ser aqui confundida, diz respeito à ex-
alguém pode saber acerca do outro e a que pode atender. Ora, ao tensão das ligações e controles sociais que são impostos às pessoas. Em relação
a isto existe, em muitos sistemas sociais, um elevado grau de liberdade, sem que
nível da comunicação, existem sobretudo regras e códigos segundo
isso possa ser interprerado como reconhecimento social ou mesmo como exigên-
os quais em princípio, em determinadas relações sociais se deve cia da individualidade. Comparar em especial )ohn F. Embree, «Thailand - a
estar aberto a tudo o que diga respeito ao outro, não devendo loosely structured social system», Arnerican Anthropologist, 52, (1950), pp. 81-
manifestar-se desinteresse algum pelo que seja pessoalmente im- -193, e ainda retomando este tema, Hans Dierer Ever (ed.) Loosely st1'lldJlreel social
portante para o outro, o qual por seu lado não deve deixar sem s)'stell/: Thailanel in compewative perspective. New Haven, 1969.
14 SOCIEDADE E INDIVÍDUOS CAPÍTULO I 15

questão da génese de um meio de comunicação simbolicamente ge- cer deve-se ao facto de a pessoa individual, desde que numa dife-
neralizado, cuja função específica que lhe é atribuída consiste em renciação funcional, deixar de poder cristalizar-se num e só num
possibilitar, cuidar e fomentar o tratamento comunicativo da indi- dos subsistemas da sociedade, devendo antes pressupor-se social-
vidualidade. mente insituável '.
Naturalmente que teremos de partir do princípio que a indivi- Isto não só quer dizer que as próprias pessoas se distinguem
dualidade do ser humano é uma experiência reconhecida por todas agora por uma maior diversidade das suas características (do que
as sociedades quer no sentido de uma unidade psicofísica, quer no podemos muito bem duvidar), como também que, para a referência
de uma anatomia de movimentos, quer sobretudo no da morte sistérnica dos sistemas pessoais, existe uma diferenciação mais forte
própria de cada um. Também a indestrutibilidade cristã da alma e do respectivo relacionamento entre sistema/meio, de tal modo que
a ideia da sua salvação como um destino (eternamente individual, deve ser tratado como uma casualidade (e não como característico
jamais predeterminado pela estratificação social, pela família ou da espécie) quando várias pessoas apresentam, apesar de tudo,
pelas circunstâncias da morte), o individualismo polémico da característlcas iguais.
Renascença, a individualização da orientação do afecto e da racio- Esta tendência diferenciadora, facilmente apreensível por meio
nalidade natural (segundo Vives) e ainda o individualismo auro- da teoria dos sistemas, permite cada vez mais à pessoa individual
-afirmativo do Barroco não transpõem no essencial esta factualidade interpretar com base no próprio indivíduo a distinção face ao meio
antropológica, fortalecem apenas a sua legitimidade social face às (e quanto à dimensão temporal: a história e o futuro desta distin-
dificuldades crescentes para fixar a pessoa individual à estrutura ção), através do que o Eu se tornará no foco da vivência e o meio
social. Nem tão pouco é definida a pessoa pelo seu estatuto social, se tornará relativamente informe. Tornou-se insuficiente ao conhe-
isto é, pela sua situação no sistema de estratificação; mas ao mesmo cimento da existência do próprio organismo possuir um nome com
tempo flexibilizar-se-ão os posicionamentos assim pretendidos, nas vista à auto-identificação baseada no viver e agir próprios e ser-se
esferas funcionais da política, da economia, da religião, da erudição. catalogado através de categorias sociais gerais como idade, sexo,
Tudo isto não começou por conduzir à desagregação ou modificação estatuto social e profissão. Pelo contrário, o indivíduo isolado pre-
- no caso do ser humano - do velho conceito de indivíduo, pre- cisa de encontrar confirmação ao nível do sistema da sua personali-
cisamente a sua definição através dos conceitos de delimitação e dade, isto é, na distinção face ao seu meio e no modo peculiar como
indivisi bilidade'. executa tal distinção. De igual modo tornar-se-ão muito mais com-
O desenvolvimento que conduziu ao mundo contemporâneo, plexas e impenetráveis quer a sociedade quer as alternativas de
desagregador do velho conceito de indivíduo e que investe o termo mundo, constituídas por aquela. Daqui resulta a necessidade de um
com um novo sentido, comporta vários aspectos, uma vez que não ainda adoptável mundo próximo, ainda inteligível, fiável, familiar
só objectivarnenre significam algo de diferente como também se (de resto próximo do sentido clássico do termo grego philos).
problematizam reciprocamente. Em primeiro lugar atinge-se, du- Individualização da pessoa e necessidade de um mundo pró-
rante a transição de uma diferenciação social estratificadora para
, Para o conceito de indivíduo, tal significa entre outras coisas que a velha
uma funcional, uma mais forte diferenciação dos sistemas pessoais
tendência de especificação: ser vivo > ser humano > membro de uma camada
e sociais (o que quer precisamente dizer: das distinções sistema/ social --> habitante de uma cidade ou país > membro de um grupo profis-
/meio, visando os sistemas pessoal/social). A razão de assim aconte- sional --> membro de uma família > indivíduo, perde o seu sentido e justa-
mente a individualidade; anteriormente o que de mais concreto existia, acrual-
.\ Cf por exemplo François de Caillêres, La logiqlle eles amam 011 tall/ol/r mente o que de mais vulgar exisre no homem. Por consequência, também o que
logicien. Paris, 1668, p. 118: «L'individu esr proprement un sujer separé de tout anteriormente era válido como altamente contingente passou a ser visto como
autre, er qui ne se peut diviser sans estre destruir» «<o indivíduo é exacramente necessário e caracterizado por uma referência ao mundo. Por outro lado, esta
um sujeito separado de qualquer outro e que não pode ser dividido sem ser nova versão - esta definição do indivíduo através de uma co/lStitl/içéio stt] genel'iJ
destruído» ). do !ll/flU/O - suprime a concepção do indivíduo enquanto natureza.
CAPÍTULO I 17
16 SOCIEDADE E INDIVÍDUOS

ximo não correm absolutamente lado a lado; tendem na verdade A diferenciação deste meio específico e a solidez da sua semân-
para a contradição, pois o mundo íntimo possibilita precisamente tica face à problemática que lhe subjaz constituem o nosso tema.
Na segunda metade do século XVIII, a diferenciação plena ganha
ao indivíduo um espaço de desenvolvimento menor que os consig-
nados macromecanismos do género impessoal como sejam o contornos mais nítidos. Ela pôde apoiar-se então na já reconhecida
jurídico, o monetário, o político ou o científico. Por esta razão, valorização própria da individualidade e nas tarefas colocadas ao
«a crescente individualização das pessoas» não pode dar forma a indivíduo enquanto indivíduo, como sejam o autodomínio e o
um conceito suficientemente abrangente dos problemas que o in- controlo dos afectos; mas não podia partir do princípio que os
divíduo dos tempos modernos tem de resolver. Não nos podemos indivíduos se orientam pela diferença entre interacção pessoal e im-
pessoal, procurando um campo para uma comunicação altamente
recolher simplesmente na autonomia própria e na capacidade de
pessoal e íntima-confidencial. Ainda no plano da comunicação
adequação respectivamente implícita. Também é possível, mas
vinculada a estratos sociais, o que faltava então completamente era
acresce que a pessoa individual carece da distinção entre mundo
próximo e mundo distante, da diferença estabelecida entre as expe- a necessidade de projecção interpretativa de um mundo próximo no
riências, valorações, modos de reacção com valor exclusivamente mundo. Como foi então possível o desenvolvimento de um meio de
comunicação específico, destinado ao foro íntimo Antes de entrar-
pessoal e o mundo constituído anonimamente, igualmente válido '
mos no estudo histórico deve em primeiro lugar ser explorada esta
para todos, de modo a interceptar a imensa complexidade e contin-
questão com recurso a uma teoria geral dos meios de comunicação
gência de tudo o que se evidenciar como possível. O indivíduo
isolado tem de poder utilizar esta distinção a fim de canalizar simbolicamente generalizados.
ganhos da informação; o que só é possível quando também, para
um tratamento de vivências e predisposição para a acção, altamente
personalizadas, se dispõe de garantias sociais e formas socialmente
reconhecidas para se atingir estas garantias. O indivíduo isolado
deve ser capaz de encontrar ressonância não só no que ele próprio
é como no que ele próprio vê.
Deve-se formular a situação tão complicadamente que se possa
perceber que toda a comunicação diz respeito, em situações de
relevância altamente pessoal, a este aspecto duplo do ser-próprio e
do projecro de mundo e que aquele que toma parte nisto como
alter-ego se empenha duplamente: consigo mesmo e com os outros.
Assim, é condição para a diferenciação plena de uma esfera privada
comum que cada qual possa trazer consigo o mundo do outro
(embora ele próprio viva de um modo altamente individual), por-
que ele próprio se encontra numa posição especial nesta situação:
porque neste mundo do outro ele surge em primeiro plano como o
que é amado. Apesar de todas as discrepâncias destacáveis e pos-
síveis entre uma individualização crescente e a necessidade de um
mundo próximo - pense-se apenas nos sentimentos de amizade e
solidão do século XVIII -, desenvolveu-se por isso um meio de
comunicação comum a ambos os problemas e na realidade à luz
da utilização do campo semântico da amizade e do amor.
CAPÍTULO II

Amor como meio de comunicação


simbolicamente generalizado

Quando se fala de meios de comunicação simbolicamente gene-


ralizados, está-se a referir de um modo geral os dispositivos semân-
ticos que por si só proporcionam, apesar de tudo, o sucesso às
comunicações improváveis 1. «Proporcionar sucesso» significa estar
disposto a admitir o incremento da comunicação de tal modo que
esta possa ser fomentada sem que, de antemão e sem esperança, seja
abandonada. É por isso importante que se franqueie o limiar desta
improbabilidade, pois de outro modo não se poderá atingir a for-
mação de sistemas sociais, uma vez que os sistemas sociais só se
tornam realidade através da comunicação. As improbabilidades
marcam, por outras palavras, limiares de inibição e, se atentarmos
ao aspecto evolutivo, limiares da eliminação sucessiva de variações.
Caso se possa protelar tais limiares, aumentarão sobretudo as pos-
sibilidades de constituição de um sistema no seio da sociedade bem
como o número de temas capazes de provocar a comunicação,
crescendo internamente o grau de liberdade da comunicação e
externamente a capacidade de adaptação do sistema; com tudo isto
verificar-se-é um aumento da probabilidade da evolução 2.
Poder-se-à supor que as exigências inerentes a todos os meios
de comunicação aumentarão com o decorrer da evolução social.

1 Cf. ainda Niklas Luhmann, Einführende Bemerkungen zu einer Theorie symbo-


lisch generalisierter Komunikationsmedien, in, do mesmo autor, Soziologische Aufkld-
rung, 2 vols., Opladen, 1975, pp. 170-192; do mesmo autor, Macht, Estugarda,
1975; do mesmo autor, Die Unwahrscheinlichkeit der Komunikation, in Soziologische
Aufklárung, vol. IlI, Opladen, 1981, pp. 25-34.
2 Todas estas formulações têm naturalmente de ser tomadas sob reserva de
uma intensificação do possível de um modo bastante específico, sem que se
exclua de algum modo que o possível se torna impossível por outras razões, ou
que a evolução colapse por outras razões.
CAPiTULO II 21
20 AMOR COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO

Quando o sistema social e o correspondente meio se tornam mais prios meios de comunicação não se identificam com estes quadros de
complexos, verifica-se uma maior selectividade de todas as normas circunstâncias, sendo antes indicações à comunicação que podem
estabelecidas. Tudo o que se tenha de comunicar será objecto de ser manipuladas com uma autonomia relativa face aos quadros de
escolha de uma entre muitas outras possibilidades. A motivação circunstância, quer estes existam ou não 4. Por isso, as funções e os
para transmitir e aceitar os esforços de selecção torna-se assim mais efeitos dos meios de comunicação não se deixam apreender também
improvável. Será portanto mais difícil motivar a aceitação através a este nível das qualidades, sentimentos, causalidades factualmente
do modo de seleccionar. Todavia é precisamente esta a função dos localizadas, sendo antes constante e socialmente reproduzidos por si
meios de comunicação. A teoria da evolução social e a tese segundo mesmos, através de um entendimento acerca das possibilidades de
a qual a complexidade dos meios de comunicação social sobe em comunicação.
flecha devido às modificações do tipo de diferenciação da sociedade, Neste sentido, o meio de comunicação amor não é um senti-
permitem consequentemente supor que os processos de comunica- mento em si mesmo, mas antes um código de comunicação cujas
ção da sociedade seguem uma evolução semelhante e que procura- regras determinarão a expressão, a formação, a simulação, a atribui-
rão um outro nível, simultaneamente geral e particular de combi- ção indevida aos outros e a negação de sentimentos, bem como a
nação entre a selecção e a motivação. Em oposição, por exemplo, a assunção das consequências inerentes, sempre que tiver lugar uma
toda a tradição que sempre recorre ao amor enquanto solidariedade comunicação deste género. Como demonstraremos nos capítulos
social por excelência, ele é agora declarado como infundamentável seguintes, já no século XVII, e apesar de todo o ênfase posto no
e pessoal: «par ce que c'estoit luy; par ce que c'estoit moy», tal reza amor como paixão, tem-se plena consciência de que se trata de um
a famosa frase de Montaigne 3. modelo de comportamento simulável e que se nos depara antes de
Nada permite admitir que a procura de novas formas e de novas embarcarmos na demanda do amor; modelo de comportamento que
soluções tenha de ter sucesso e que se possa interceptar ilimitada- está disponível enquanto orientação e como consciência do respec-
mente o aumento da complexidade em todos os campos funcionais tivo alcance, antes de acontecer o encontro com o outro, tornando
da sociedade. Temos por isso de funcionar simultaneamente com também notória a falta deste, o que por sua vez se pode transfor-
análises factuais, históricas, socioestruturais e do âmbito da história mar mesmo num destino 5. O amor poderá então movimentar-se
das ideias, caso queiramos esclarecer em que medida a sociedade
4 Assim também, Talcotr Parsons, «Religion in postindustrial America: rhe
suporta a sua própria evolução, em que medida ela dá forma nova problem of secularization», Social Research, 41 (974), pp. 193-225, 214 e segs.
e adequada ao seu potencial comunicativo, em que medida não se Afecro ou amor «in my present sense is a medium of interchange and not the
verifica progressão em certos campos funcionais, de tal modo que primary bond of solidarity itself». Outros sociólogos tratam a semântica do amor
se tenha de contar com as respectivas deformações. como «cultural imperative» ou como prescrição ideológica, vide Willard Wallerl
Os meios de comunicação simbolicamente generalizados que Reuben Hill, The family: a dynamic interpretation, 2." ed., Nova Iorque, 1951,
p. 113; William J. Goode, Soziologie der Familie, trad. al., Munique, 1967,
têm de solucionar tais questões inerentes à combinação entre selec-
p.8I.
ção e motivação, utilizam uma semântica ancorada na realidade: 5 «Il y a des gens qui n'auraient jamais été amoureux s'ils n'avaienr entendu
verdade, amor, dinheiro, poder, etc. Estas terminologias designam parler d'amour- «<Existem pessoas que nunca teriam estado apaixonadas, se não
características, postulados, sentimentos, meios de troca, meios de tivessem ouvido falar de arnor»), afirma-se em La Rochefoucauld, Réflexions ou
ameaça e quejandos, sendo através destas referências orientadas sentences et maximes morales, n.? 136, citado das Oeuvres Completes, Paris, Pléiade,
para quadros de circunstâncias que se opera a aplicação dos meios. 1964, p.42I.
O século XVIII mantém ainda vivo, apesar da marca mais pessoal da ética
É aos quadros de circunstâncias que se submeterá a causalidade. Os amorosa, precisamente o momento da aprendizagem prévia e lúdica do amor. A
participantes afirmam-no, têm tal sentido em mente. Todavia os pró- experiência da descoberta do outro, enquanto jogo num mundo em transforma-
ção, surge clara em Klopsrock, por exemplo: Der Verwandelte «<p'ra r'encontrar/
l Michel de Montaigne, Essais, I, 28, Paris, Éd. de Ia Pléiade, 1950, p. 224. Ia til aprendi o arnor») citado de Ausgewiihlte Werke, Munique, 1962, pp. 66-68;
CAPiTULO II 23
22 AMOR COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO

do, tanto mais improvável será obter o consenso e o interesse dos


em primeiro lugar e em certa medida numa zona indefinida 6 e ser
outros. Não se trata aqui apenas de qualidades que um indivíduo
orientado para um modelo prospectivo generalizado que facilite a
enquanto tal possui ou que se atribui a si próprio (como a beleza
selecção capaz, porém, de perturbar também uma realização emo-
e a virtude do sujeito), factores que desempenham o papel decisivo
cionalmente aprofundada. Trata-se de uma significação do signi-
na literatura amorosa dos séculos XVII e XVIII. As qualidades pes-
ficado, enraizada no código que proporciona a aprendizagem do
soais poderiam ser tomadas, admiradas até ou mesmo toleradas en-
amor, a interpretação dos indícios e a transmissão de pequenos sinais
quanto factos. É a relação do indivíduo enquanto pessoa com o
para exprimir grandes sentimentos; é o código que permite a expe-
mundo o que está para além disto tudo e que apenas surge com
riência da diferença bem como o destaque dado à ausência de
clareza em finais do século XVIII. Caso esta relação com o mundo
realização.
seja co-individualizada, deixará de ser possível tornar a conhecer na
As reflexões seguintes são a verificação da tese segundo a qual
pessoa do outro um facto agradável, útil, ainda aceitável ou de
as representações literárias, idealizantes e mitificantes do amor não
algum modo dotado de um determinado valor. Caso o outro apare-
escolhem ao acaso os seus temas e pensamentos directores, reagindo
ça como individualidade constituinte do mundo, então todo aquele
antes deste modo à sociedade e respectivas tendências de mudança;
que é interpelado está desde sempre inserido neste mundo, ficando
reflectindo, não de uma forma absoluta, os quadros de circunstân-
assim perante a inevitável alternativa de confirmar ou recusar o projecto
cias reais do amor, ainda que apresentados sob forma descritiva,
egocêntrico de mundo que o outro faz do mundo. Atribui-se a alguém este
resolvendo contudo problemas a aparecer, apresentando precisa-
papel complementar de confirmação do mundo, embora se pressu-
mente necessidades funcionais do sistema social sob uma forma
ponha que esse tal projecto de mundo seja ímpar, logo particular
utilizável pela tradição. A semântica diversificada do amor pode-
e assim singularmente não consensual. O que quer dizer também:
-nos assim franquear o acesso ao entendimento das relações entre o
pressupõe-se que o sujeito confirme através do seu comportamento
meio de comunicação e a estrutura da sociedade.
a incapacidade de firmar contactos com o exterior, o que não pode
Cada meio de comunicação simbolicamente generalizado pode
ser defensável noutro plano. Pressionado deste modo, todo o desti-
ser plenamente diferenciado em função da especificidade do limiar.
natário sensato assumirá a fuga ou tentará ignorar as insinuantes
Para o meio de comunicação amor este problema reside na própria
relações pessoais da comunicação, conduzindo-se diplomaticamente
comunicação altamente personalizada. Por comunicação altamente
para o território impessoal do mundo «anónimo» constituído.
personalizada entendemos uma comunicação através da qual o fa-
Assim sendo, não se trata, no que respeita ao amor, apesar de
lante procura distinguir-se dos outros. Tal pode acontecer pelo
no início assim parecer aos amantes, de uma «comunicação total» 7,
facto de o próprio sujeito se transformar em tema, ou seja, falar
nem de uma concentração temática de todas as comunicações
sobre si próprio; mas também pelo facto de, ao longo de temas
possíveis no parceiro ou no relacionamento amoroso. Não se espera
objectivos, tornar a sua relação com o assunto num aspecto crucial
totalidade, mas antes universalidade da relação no sentido de uma
da comunicação. Quanto mais individuais, idiossincráticos, extrava-
atenção constante ao parceiro em todas as situações da vida; podia
gantes forem o ponto de vista pessoal e a respectiva visão do rnun-
também afirmar-se: no sentido de um constante enriquecimento
conjunto do conteúdo da informação de todas as comunicações
ou então na carta a]. A. Schlegel, de 1/AgostoI1752: <c.. que a minha escolha,
através do aspecto «para ele». Neste sentido não se trata do nível
depois de ter aprendido a amar, durante bastante tempo, tenha de recair sobre
uma rapariga, que me consiga fazer feliz ... », citação segundo: Briefe von und an
7 Dieter Wyss constrói este conceito Lieben ais Lernprozess, Gtittingen, 1975,
Klopstock (Ed. ]. M. Lappenberg), Braunschweig, 1867, p. 108 e segs. É evi-
p. 42 e segs., p. 46, para exigir uma solução através do processo de aprendiza-
dente que não se vêem contradições entre o exercício intelectual prévio e o
gem. Também Pascal Bruckner/Alain Finkelkraut, em Le nouveau desordre
entusiasmo no compromisso.
amoureux, Paris, 1977, p. 140 e segs., apresentam o cepticismo para com os
6 Uma formulação de Georg Simmel, Über die Liebe (fragmento), in: Frag-

mente und Aufsiitze, Munique, 1923, p. 47-123 (62). amantes dos nossos dias.
24 AMOR COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO CAP[TULO II 25

temático do processo de comunicação, mas antes da codificação respec- escolha; o amado, pelo contrário, viveu e esperou pela identificação
tiva do ponto fulcral, do qual se parte para entender o amor e para com a sua vivência. Um tem de se empenhar, o outro (aquele que
o realizar. nunca se desligou do seu projecto de mundo) apenas se projectou.
Constitui-se um «código» especial para o amor, quando todas O fluxo de informação, a transferência da selectividade do alter
as informações são duplicadas com vista ao significado que detêm (amado) para o ego (amante) transfere portanto o viver para o agir.
quer para o mundo geral, anonimamente constituído, quer para ti, O inédito (se quisermos: o trágico) radica-se nesta assimetria e na
para nós e para o nosso mundo. A distinção não pode ser tratada necessidade de responder ao viver com o agir, ao já-estar-ligado
de modo a que uma informação permaneça única, pertencendo quer com o ligar-se 9. Por outro lado e para aquele que ama (que é ego)
a um quer a outro mundo, pois é natural que cada mundo privado só se produzem estímulos para a acção, porque o agir do amado
projecte os seus próprios infinitos no horizonte total do mundo, que simula as reduções. O tema da infinitude que surge continuamente
é igual para todos. Mas a informação tem antes de ser duplicada, na semântica do amor significa também que não existem limites
para se poder superar qualquer prova e manter a validade em para a acção do próprio, dentro do mundo de vivências do outro;
qualquer dos mundos (de acordo com as necessidades do momento). sobretudo para aquele que ingressa neste mundo como igualmente
E assim, tal como acontece na escrita, verificar-se-á uma duplicação amado. A assimetria entre o viver e o agir comporta então a opor-
aquando da utilização para fins especiais, o que não significa que tunidade de antecipação: podemo-nos orientar pela vivência do outro,
a unidade subjacente seja posta em causa. mesmo que não tenha agido conforme se esperava, mesmo que não
Ir-se-a tornando mais claro o facto de a comunicação eficaz tenha expresso qualquer desejo, nem tenha assumido qualquer das
aumentar em improbabilidade sob estas condições de individuali- atribuições que lhe são próprias. Tal está subentendido, quando a
zação crescente das relações com o mundo - durante a manuten- semântica do amor exige que se ultrapassem os deveres da galan-
ção do mundo constituído anonimamente - sempre que se tiver teria ou quando se reporta aos acordos «tácitos», o que é possível
em atenção a que situações se atribui a selecção no viver e no agir de acontecer sempre que os amantes não necessitam de qualquer
dos participantes 8. Um indivíduo não consegue (desde que não procedimento para estarem de acordo, a fim de conseguirem agir
tenha lido Fichte) entender a sua relação com o mundo como uma em conformidade perante um terceiro. Ao verificar-se que o amor
acção própria. É impossível que se atribua a si próprio como acção, é dirigido a uma pessoa isolada, ao «indivíduo» e que abrange o
o que experimenta como selecção, Regista o aglomerado das selec- amado na sua integridade plena, não se está assim a caracterizar
ções, por mais idiossincraticamente que elas se refiram a expecta-
tivas, se perfilem e sejam avaliadas em contraste com distinções, na 9 A fim de facilitar a comparação com outras constelações mediáticas, repro-
qualidade de selecções do próprio mundo. Um outro indivíduo que duzimos aqui uma tabela em forma de quadro aplicado que projecta também
seja compelido a desempenhar o papel daquele que confirma o a dupla possibilidade de atribuição enquanto viver ou agir nas posições de alter
mundo tem, pelo contrário, de agir, pois teria de esclarecer a razão e ego, pelo que é o ego a quem cabe de cada vez aceitar ou recusar uma selecção
porque não participa de certos pontos de vista. Através do limiar comunicativa.
do problema e da improbabilidade da comunicação altamente Ego experimenta Ego age
pessoal, a distribuição das atribuições é ordenada como sendo assi-
métrica. O amante, aquele que deve confirmar as selecções idios- Alter Alt. exp. -> Eg. exp. Alt. exp. -> Eg. age
sincráticas, tem de agir, pois encontra-se confrontado com uma experimenta Verdade Amor
Relações de valor

8 Com vista a uma base conceptual cf. Niklas Luhmann, Erleben und Handeln Alter Alt. age -> Eg. exp. Alt. age -> Eg. age
e Schematismen der lnteraktion, in (do mesmo autor) Soziologische Aufklà"rung, age Propriedade/dinheiro Poder/direito
vol. III, Opladen, 1981, pp. 67-80, 81-100. Arte

~.
26 AMOR COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO CAPÍTULO II 27

suficientemente este meio de comunicação. O outro é deste modo reproduzi-Ia adequadamente, a fim de conseguir «entender» como
constantemente entendido como um objecto e tal é apenas desmen- actua nele o input enquanto informação e como reintegra o seu
tido, não substituído todavia por outras concepções, quando esse output (aquilo que afirma, por exemplo), no tratamento próprio da
outro for referido como «sujeito». Só através da correspondência informação.
recíproca entre teoria do sistema e teoria da comunicação se con- É uma função do meio de comunicação amor possibilitar esta
seguirá progredir decisivamente face a esta situação em que a inves- improbabilidade. Tal é cifrado pela linguagem do quotidiano como
tigação se encontra. «entender», expresso como desejo de entender, extrapolado como
O que é descrito como «vivência» pode continuar a ser desco- queixa acerca da compreensão deficiente dos limites do tecnica-
dificado em duas direcções, originando-se em ambas as direcções mente possível. Quando se pretende ultrapassar o que é observável,
exigências limite quanto à observação e à acção em correspondên- compreende-se a razão pela qual se excluem finalmente todos os
cia. Estamos agora a pensar em alter como sistema psíquico. Viver indicadores objectivos e genéricos do amor, como sejam o mérito,
significa que o sistema se reporta ao seu meio, atribuindo-lhe um a beleza, a virtude; e o prindpio que permite o improvável torna-
inventário de factos e acontecimentos. Torna-se extraordinariamente -se cada vez mais pessoal. O meio serve-se da pessoa. Tem de se
difícil a um observador incluir o meio do sistema observado na sua conhecê-Ia o melhor possível a fim de se conseguir compreender ou
própria observação; pois por um lado isto significa que tem de pressentir o que para si funciona como meio e o que em si funciona
apreender a vivência não como facto, mas como relacionamento se- como esquema comparativo. Por isso, há que ter também em conta
lectivo de um outro sistema com o seu meio (e as relações não se que no século XVIII o conceito de sujeito fica despojado da sua
deixam observar, antes e apenas deduzir); e, além disso, ele próprio substância, pois na realidade depende de se reduzir o outro às
é (quando em todo o caso se trata do amor) peça, e frequentemente relações com o meio actuante e às relações consigo próprio, deixan-
peça importante, deste meio. Portanto, ele não só embate nas do de o compreender à luz de qualidades, para o fazer segundo
fronteiras do seu próprio sistema, como também por assim dizer, modos de funcionamento. O apoio indispensável a um tal entendi-
em pleno mundo, nas compulsivas auto-referências a si próprio 10. mento só é finalmente ganho através da própria pessoa - e jamais
Uma segunda reflexão prende-se com o conceito de informação. quer através da sua natureza quer através da sua moral. Quando se
De um modo geral, só podemos observar input e output em outros aceita o que teve origem no acaso e quando se renuncia a todos os
sistemas. Vemos que o outro ouve, vê, lê algo e reage a esse algo. suportes exteriores na avaliação e estimativa de valores, é natural
Mas com isto ainda não fica abrangida a respectiva informação e a que se tenha progredido um pouco na tentativa de adaptação àquilo
subsequente assimilação da mesma. A informação é um manusea- que, para quem se ama, significa meio e informação, àquilo que é
mento selectivo das distinções; consiste no facto de o sujeito da quase compulsão e ao que é liberdade e contra cujos horizontes
vivência projectar acontecimentos contra um horizonte de outras actuantes sobressai aquilo que determina a sua vivência e acção.
possibilidades e fixar a situação do seu próprio sistema através da Todavia, um amor compreensivo é cognitivamente tão desgastante
experiência de «isto e não aquilo». É por isso de difícil verificação que o que é mais natural é ficarmo-nos pelo sentimento, confor-
externa quais as outras possibilidadas e em que momento actuam mando-nos com a sua instabilidade. Todavia, esta saída bloqueia,
no outro como sistema de comparação; e se não se conseguir abran- tal como mostraremos pormenorizadamente, uma solução institu-
ger conjuntamente este horizonte de selecção, não se conseguirá cional para a relação entre o amor e o casamento.
observar a informação. Seria preciso realizar concomitantemente o Através disto, torna-se igualmente compreensível que o amor
respectivo tratamento auto-referencial da informação ou então poder resolva de um modo peculiar os problemas de comunicação que se
lhe apresentem; ele pode - segundo uma formulação paradoxal -
10 A fim de se distinguir das auto-referências no seio da pessoa amada, intensificar a comunicação, baseando-se numa contínua renúncia à
observada, a que retomaremos de imediato. comunicação. Ele serve-se amplamente de uma comunicação indi-
AMOR COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO CAPiTULO II 29
28

recta, assentando na antecipação e na compreensão prévia; através pública, mas descreve-se o amor através de símbolos, que mostram
de uma comunicação explícita utilizando pergunta e resposta, ele que isto acontece quando se ama. O símbolo dominante que orga-
pode ser aflorado de um modo francamente negativo, pois deste niza a estrutura temática do meio de comunicação amor designa-
modo adquire expressão que por si só não é compreensível. Portan- -se sobretudo por «paixão» e paixão significa que se sofre de alguma
to, pertence também ao código clássico a «linguagem do olhar», coisa que não se consegue modificar em nada e da qual não se pode
bem como a comprovação: os amantes conseguem manter entre si dar contas. Outras imagens, com uma tradição antiquíssima, pos-
um diálogo interminável, sem ter de proferir qualquer palavra 11. suem o mesmo valor simbólico -'- assim quando dizemos o amor
Dito de outro modo, não há necessidade de uma qualquer acção é uma espécie de doença; o amor é uma loucura, folie à deux 12; o
comunicativa, de uma qualquer pergunta ou pedido por parte do amor cativa. Em outras expressões dir-se-ã: o amor é um mistério,
amado, para que o amante concorde com ele; a vivência do amado um milagre, não se deixa esclarecer nem fundamentar, etc. 13. Tudo
deve despoletar o mais directamente possível a acção do amante. isto remete para uma fuga ao controlo social normal, fuga essa que
Segundo tudo isto, o amor não seria entendido apropriada- tem todavia de ser tolerada pela sociedade como se fosse doença.
mente se o quiséssemos conceber como uma simples reciprocidade Sendo-lhe atribuído um lugar de honra pelo papel especial que
de acções de mútuo contentamento ou como predisposição para sa- desempenha 14.
tisfazer desejos. O amor tinge sobretudo a vivência das vivências e 12 É natural que se tenha sempre tratado de analogias ou metáforas. Só a
modifica com isso o mundo, enquanto horizonte do viver e do agir. Idade Média ou a segunda metade do século XIX possuíam ingenuidade e
Ele é interiorização da relação subjectivamente sistematizada com confiança na ciência, o suficiente para presumir factos patológicos de natureza
o mundo de um outro. Com isto ele confere àquilo que o outro vive física e psíquica. Cf. criticamente a este respeito, Gaston Danville, «L'amour esr
il un érar parhologique?», Revue Philosophique, 18 (1893), pp. 261-283; do
ou poderia viver um poder persuasivo especial, patente nas próprias
mesmo autor, La psychologie de l'amour, Paris, 1894, p. 107 e segs. Até mesmo
coisas e acontecimentos. E só numa segunda fase é que ele motiva hoje em dia existe investigação empírica que se debruça sobre a reiteração ou
uma acção que é seleccionada, não em virtude do seu resultado a refutação de contextos formados por exemplo pelo amor romântico e pela
concreto, mas por causa do seu significado simbolicamente expres- imaturidade psíquica. Cf. Dwight G. Dean, «Romanricism and emotional rnatu-
sivo, sintomático do amor, ou se insinua como consumação da rity: a preliminary study», Marriage and Family Living, 23 (1961), pp. 298-303;
William M. Kephart, The «disfunaional» theory of romantic love: a researcb report ;
especificidade daquele mundo em que vigora a união com o amado
«Journal of Comparative Family Srudies», I (1970), pp. 26-36.
(e com mais ninguém): o mundo dos gostos comuns, da história 13 Vide as ideias do século XVIII resumidas em: Robert Mauzi, L'idée du
comum, dos desígnios comuns, dos temas falados e dos aconteci- bonheur dans Ia littérature et Ia pensée française au XVIII' sciêle, Paris, 1960,4." ed.,
mentos valorados. O que apela à acção não é um benefício ambi- 1969, p. 466: «L'arnour est un mysrêre, le plus irrationnel des mouvements de
cionado, mas a disponibilidade de um projecto de mundo, determi- l'âme, devam lequel l'esprit demeure désarrné; il est une mystification ou l'irna-
nado totalmente pela individualidade de uma pessoa e que existe gination ne cesse d'escamorer er de metamorphoser Ia nature; il est une aliéna-
rion, qui sépare l'homme de Iui-rnêrne er le voue à toutes les tortures; enfin
apenas nessa qualidade. No que diz respeito ao «dar», o amor afir- l'amour ne suffit jamais à Iui-rnêrne.» (,<O amor é um mistério, o mais irracional
ma, por isso: permitir a realização do outro, dar-lhe algo de modo dos movimentos da alma, frente ao qual o espíriro fica desarmado; ele é uma
a que ele seja como é. mistificação, onde a imaginação não pára de escamotear e de metamorfosear a
Na semântica do meio de comunicação amor não se encontra natureza; ele é uma alienação, que separa o homem de si mesmo e o consagra
formulada essa questão, mas simbolizada. Não está prescrito que a todas as torturas; enfim, o amor nunca se basta a si próprio»). Para o nosso
tema, mas de um ponto de vista mais actual: Francis E. Merry, Courtship and
como amante se tenha de atestar um mundo privado face à opinião
marriage: a study in social relationsbips, Nova Iorque, 1949, p. 23 e segs.; Wallerl
/Hill,op. cit., p. 113 e segs.; Vilhelm Auberr, A note on loue, in, do mesmo autor,
11 «O amor é de todos os sentimentos o mais loquaz; sendo em grande me- The hidden society, Totowa, N. J., 1965, pp. 201-235.
dida constituído pela loquacidade», anota também Roberr Musil, Der Mann ohne 14 Cf. a interpretação do poder do paciente e respectiva insrirucionalização
Eigenscbaften (Gespràcbe über Liebe), Hamburgo, 1952, reimpressão, 1968, p. 1130. em Talcott Parsons, The social system, Glencoe III, 1951, em especial p. 428 e segs.
30 AMOR COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO CAPiTULO II 31

Com a diferenciação plena de um meio de comunicação simbo- diversamente uma relação específica, mas ao mesmo tempo alta-
licamente generalizado prende-se posteriormente o facto de ter de mente plástica, moldável, com processos orgânicos, e que onde quer
ser especificada a relação com a factualidade orgânica inerente à que não seja possível tal acontecer, seja a associação entre meios de
vida em comum. Não existe sistema de comunicação algum que se comunicação e sistemas funcionais a causar dificuldades 17.
abstraia completamente do facto de as pessoas participarem com o No caso da intimidade sexualmente fundada, a relação entre a
corpo e que a especialização funcional da semântica dos meios de base simbiótica e a generalização simbólica reveste-se de traços
comunicação exija uma co-simbolização desta relação física. Os especiais que se descreverão mais pormenorizadamente 18. Esta
símbolos que preenchem esta função, pretendemos designá-Ios por fundamentação de base sexual torna em primeiro lugar plausível
símbolos ou mecanismos simbióticos - «mecanismos» no sentido que os parceiros valorizem o «estar a dois», a espontaneidade e a
de estes descreverem processos orgânicos exequíveis de acordo com intimidade; e que ambos dêem preferência aos lugares nos quais se
as expectativas 15. Em compensação existem diferentes, mas de um esperam encontrar. Além disso, torna-se específico da relação sexual
modo geral, apenas poucas possibilidades, que têm de ser analisa- que esta não se realize em função de estranhos nem careça do
das, quando os meios de comunicação são colocados em contraste. assentimento de outros. Em compensação encontra o seu sentido
Percepção (inclusive percepção da percepção), sexualidade, satisfa- em si própria, podendo aperfeiçoar-se em si mesma, sem qualquer
ção de necessidades (sobretudo elementares) e vivência física são imperativo exibitório. É possível dar e tirar, recompensar e reter,
processos diferentes, a um nível plástico e fisiológico cada vez mais confirmar e corrigir, sendo difícil verificar e imputar interesses ou
elevado; influenciam-se mutuamente, podendo causar danos ou até mesmo intenções. Momentos e intenções da troca, da sanção, do
também provocar um incremento, bem como construir com rudo ensino e da aprendizagem preenchem a sua função, mas dificil-
isto, desde que estejam presentes mais participantes, uma base mente se deixam analisar, situar individualmente e expor. Inrer-
difusa para a comunicação 16. Caso se queira reservar uma siruação miscigenam-se no indistinto. Isto impede, abstraindo-nos dos casos
para um e só um meio de comunicação, devem consequentemente limite, um equilíbrio exacto entre as vantagens e as desvantagens,
debelar-se as interferências. Tal acontece através da concentração uma optimização da própria situação e uma evolução da relação
num e só num mecanismo simbiótico. Ao complexo do poder para a esfera da assimetria respeitante ao abaixamento de rendi-
corresponde a violência física, à verdade a percepção referida a mento, de estrato social ou de interesses. Relações relativamente
dados teoricamente relevantes, ao dinheiro a satisfação (cada vez desequilibradas podem também, devido a contacros sexuais difusos,
mais indirecta) de necessidades, ao amor a sexualidade. Quanto ser ainda vividas simultaneamente como algo de gratificante e
menos a comunicação for limitada (nos diversos domínios me- inédito. Em contrapartida, isto permite a articulação de um vasto
diáticos) pelo mecanismo simbiótico a ela agregado, tanto mais este campo de interesses intelectuais e espirituais sem que se verifique
mecanismo se manterá enquanto condição de diferenciação plena e uma compensação do seu valor de troca 19. Por isso, pode-se supor
de intensificação. Visto assim, não se trata de um acaso qualquer
17 Ver no que diz respeito ao sistema religioso e ao meio de comunicação
que os mais importantes meios de comunicação social escolham
«Fé», Niklas Luhmann, Funktion der Religion, Frankfurt, 1977, em especial
p. 134 e segs., e no que diz respeito à ausência de um meio de comunicação
Il Para um panorama geral ver Niklas Luhmann, Symbiotische Mechanismen, dirigido à educação, Niklas Luhmann/Karl Eberhard Schorr, Reflexionsprobleme im
in, do mesmo autor, Soziologische Aufkliirung, vol. llI, Opladen, 1981, pp. 228- Erziehungssytem, Estugarda, 1979, p. 54 e segs.
-244, especialmente no que diga respeito ao erotismo nesta função. Cf. também 18 Dissertação «Erotismo» da autoria de Simmel no fragmento, «Über die
Talcott Parsons, Societies: evolutionary and comparative perspectioes, Englewood Liebe», op. cit., remete para esra questão, sem atingir uma solução conceptual
Cliffs, N. J., 1966, p. 31 e segs. clara.
16 Também para a comunicação que se opõe às comunicações verbalmente 19 Ver também a este respeito o excurso sobre a lealdade e a gratidão in:
expressas. Referimo-nos à linguagem do olhar que surge constantemente nas Georg Simmel, Soziologie: Untersacbungen iiber die Formen der Vergesellschaftung,
representações do amor. 2.' ed., Munique-Leipzig, 1922, p. 438 e segs. (444 e segs.).
32 AMOR COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO CAPiTULO II 33

numa certa medida raramente atingível que a vivência individual valecer o direito. No que respeita à semântica do amor a exclusão
coincide com a do parceiro. de relações sexuais possíveis desempenha um papel considerável -
Tal deve-se, não em última instância, à reciprocidade do entu- do amour-lointain característico do amor cortês da Idade Média, pas-
siasmo mútuo. Na interacção dos corpos surge claro que o entusias- sando pelo demorado jogo de complicações e escondidas dos exten-
mo próprio e a respectiva satisfação suscita também o entusiasmo sos romances do século XVII e pela preservação da virtude como
do outro e através disso fica-se a saber que o outro pretende tam- táctica compulsiva para o casamento 2l, até se chegar a uma dou-
bém ser objecto de desejo. Isto exclui que se faça do «altruísmo» trina sexual positiva 22 (rejeitada oficialmente, mas desejada secre-
a base e a forma do próprio agir; pelo contrário, a pujança do tamente), gradualmente imposta a partir da Aufklá"rung (século
próprio desejo tornar-se-á o padrão do que se está em condições de XVIII), mas que todavia arnda continuava dependente do sentimen-
dar 20. A sexualidade quebra através disto tudo o esquema egoísmo/ to. A utilização da negação ainda pode surgir «ambígua» no uso
/altruísmo, bem como a hierarquização das relações humanas, se- linguístico, no âmbito do meio de comunicação. Enquanto momen-
gundo o esquema sensualidade/racionalidade. Não é em último to da estrutura semântica ela detém um sentido preciso no contexto
lugar que hisroricamente se verifica o facto de o despoletar destas da diferenciação plena e da intensificação dos modos e sucessos
distinções no âmbito da moral e da antropologia do velho conti- específicos de comunicação. A inibição do que em si é possível, é
nente europeu ser originado pela diferenciação plena das relações pressuposto para o condicionamento semântico do acesso à realiza-
íntimas baseadas na sexualidade e de acordo com o código do amor, ção plena e é sobre este condicionamento que se baseiam os níveis
tal como demonstraremos pormenorizadamente. de liberdade dos processos comunicativos 23.

Acrescente-se que também as recém-esboçadas comunicações Para além disso, e antes de entrarmos numa análise histórica,
sem palavras podem mover-se e enriquecer-se no quadro de referên- urge atender à auto-referência inerente ao meio de comunicação;
cias da sexualidade. Não que todo o já percebido tenha de ser também aqui se trata de uma exigência geral que se impõe a todos
remetido à sexualidade, mas a comunicação não verbal própria do os meios de comunicação. Com a diferenciação entre estrutura e
contacto corporal oferece um importante e não lógico horizonte de processo duplica-se também a auto-referência, de modo a termos de
interpretação às comunicações não verbais; oferece a possibilidade
de subverter e completar a linguagem verbal e de interpretar 21 Desmistificando Henry Fielding, An apology for the life of Mrs Shamela
concretamente a palavra em função daquilo que nela se evidencia Andrews, Londres, 1741, reimpressão, Folcroft Pa., 1969.
22 Jean Guitton, Essai sur l'amour humain, Paris, 1948, p. 9. Fala de «sexo-
como opiniões e intenções. Nos modos de comunicação do amor
logie posirive», referindo-se ao século XIX; para além disso, veja-se agora o
pode-se dar expressão ao indizível, sublinhar ou não o que foi dito,
minucioso trabalho de Michel Foucault, Sexualitàt und Wahrheit, vol. I, trad. al.,
vulgarizar, retirar, riscar, compensar os mal-entendidos, corrigir os Frankfurt, 1977 (ed. original, Histoire de Ia sexualité, I - La volonté de sauoir,
desvios através de uma mudança dos níveis de comunicação, poden- Paris, Gallimard, 1976). Material com origem nos EUA da autoria de Sydney
do-se também deparar com a réplica, mas também com o bloqueio Ditzion, Marriage, morais and sex in America: a bistory of ideas, 2." ed., Nova
ao longo destes meta-níveis, situados a um nível inferior ao da Iorque, 1969.
23 Um «conhecimento funcional» deste tipo não tem apenas origem no
comunicação articulada.
âmbito da investigação sociológica e da teoria da cultura. Que o adiamento do
Tal como acontece com a simbolização também aqui não é de prazer origine a intensificação da intensidade amorosa, que o amor autêntico
excluir, mas antes de aproveitar, a negação. Assim, o código-poder tenha origem na esperança de amar, tal constitui um tema tratado desde o século
baseia-se na exclusão da violência física - a não ser para fazer pre- XVIII, sem que o conhecimenro deste conhecimento contribua para a perda dos
motivos. O amor é caracterizado como algo de marginal às ideias dos amantes.
Apesar desta tomada de conhecimento dos traços ilusórios do amor, a força do
20 Ver a este respeito Rupprecht Gerds, Tabu statt Liebe, in Helmut Kentler amor é tida como muito mais forte. Os amantes amam com as suas ilusões e a
et. al., Für eine Reuision der Sexualpiidagogik, 3." ed., Munique, 1969, pp. 89-113 referência à sexualidade parece constituir a garantia secreta do respectivo funcio-
(108 e segs.). namento.
34 AMOR COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO CAPITULO II 35

distinguir entre dois níveis. No nível da estrutura semântica do to ao amor, cresce na medida em que pode encontrar o amor e se
meio de comunicação surge a auto-referência como sistematização pode satisfazer enquanto amor. Só na reciprocidade do processo (ou
dos temas. Cada ponto de vista individual que caracteriza o amor, mais exactamente: na codificação semântica do processo enquanto
entende-se enquanto associado a outros. Uma vez que isto é válido recíproco) se cumpre a diferenciação plena e a acessibilidade uni-
para cada ponto de vista, e por isso também para qualquer outro, versal do meio de comunicação; só sob esta forma se pode resolver
cada tema reencontra-se em qualquer outro enquanto outro do outro. o problema da inclusão e da «igualdade de oportunidades». En-
Através da auto-referência atinge-se assim, a nível semântico, a quanto, tratando-se do amor, se considerou em primeiro lugar as
coesão da codificação. Deste modo, são de incluir as notas sobre os qualidades raras do ou da amante, como a riqueza, a beleza, a
mecanismos simbióticos: ao falar-se de amor não se pode falar de virtude, verificou-se uma intensificação na direcção destes valores
sensualidade, tal como inversamente as alusões às relações sexuais raros, bem como a procura da confirmação daquela nestes últimos.
despoletam a questão do amor autêntico ou do amor apenas simu- Esta concepção dominante no século XVII e também e ainda no
lado 24. XVIII, uma vez levada a sério, teria obrigatoriamente conduzido a
A sistematização auto-referencial torna-se tanto mais impor- insolúveis problemas de distribuição; quem realizaria os seus inten-
tante, quanto o sucesso comunicativo for improvável, quanto mais tos se o inédito, no que respeita a qualidades, é premissa e apenas
incerta for a relação social. Quanto mais se estiver inseguro acerca muito poucas damas e cavalheiros são belos e virtuosos 25. A evo-
do modo como o outro se comportará face às expectativas, tanto lução obriga a uma neutralização crescente de todos os pressupos-
mais indispensável se tornará interpretar as afirmações do próprio tos respeitantes ao amor, que não estejam incluídos nele próprio. A
e as reacções delas resultantes no sistema, isto é, poder ler enquanto forma adequada coincide com a reciprocidade e a função com a
indicador de algo diferente do restante, esperado como certo. Tal abertura a uma acessibilidade universal com uma auto-regulação
contexto pode ser documentado claramente no século XVII: o reco- autónoma da esfera do meio de comunicação, já não pré-programa-
nhecimento da liberdade da mulher que se entrega à sistematiza- da externamente 26. As qualidades necessárias para amar e ser
ção do código do amour passion; vertendo para uma terminologia amado podem então, com base numa reciprocidade mais segura, ser
teórica: a contingência dupla é diferenciada plenamente dentro de um trivializadas e tornadas dependentes de acasos histórico-biográficos.
vector especial de interesses e daqui resulta a sistematização auto- Não é difícil descobrir paralelos no âmbito de outros meios de
-referencial de um código especial para o amor. A insegurança, que comunicação. Também na arte, objectos horríveis, triviais, e sem
surge da contingência dupla, pode tornar-se tema no seio deste preencherem de modo algum os pré-requisitos, tornam-se dignos
código - algo como alternativa entre amor verdadeiro e falso. A de representação. O direito já há muito que não é elaboração e
insegurança permanece então como condição de validade e uso da adaptação do que é o direito natural, abrangendo antes tudo o que
semântica, ganhando igualmente através desta uma forma com a segundo as regras do direito (procedimento) se tornou lei. Também
qual se pode viver. o poder político, ao submeter todo o poder a um outro poder, se
Quando uma semântica especial é ampla e plenamente diferen-
ciada em função do meio de comunicação especial, os processos 2) Mais tarde, verificaremos que a irracionalidade e a incompreensibilidade
ordenados por este meio podem também tornar-se auto-referen- da valoração atenuam um pouco (mas só um pouco) esta questão. Cf. em especial
ciais. Pretendemos designar por reciprocidade a auto-referência a Capítulo VII, nota 2.
nível destes processos comunicativos. O postulado segundo o qual 26 O facto, a não ignorar, de a universalidade também ter os seus limites e
provocar uma desigualdade de oportunidades reside todavia, segundo a diferen-
o amor só é motivado pelo amor, poder-se-ia formular na condição
ciação plena do ambiente, sobretudo nos limites da disponibilidade semântica
de ser possível delimitar este fenómeno especial: o amor diz respei- sobre a sexualidade: na autonomia relativa dos mecanismos de base. Com certeza
que a uns será mais fácil que a outros, independentemente da codificação
24 Cf. a este respeito, mais à frente, p. 116 e segs., p. 137 e segs. semântica do seu comportamento.
36 AMOR COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO CAPiTULO II 37

torna universalmente sensível a temas de todos os géneros, desde sistémicas às pressões tipicamente sociais, às ideias dominantes e
que estes se deixem politizar; o poder político torna-se acessível a padrões de expectativa. Nos primórdios da época moderna este
todo o género de pessoas, enquanto estas tomarem parte em elei- problema agudiza-se na medida em que após a invenção da impren-
ções políticas. Importantes tendências da sociedade moderna pro- sa os meios de comunicação foram objecto de exigências maiores e
movem tais contextos de universalização e especificação por meio mais improváveis. Nos códigos dos meios de comunicação surgiram
da reciprocidade e o meio específico inerente às relações íntimas símbolos que, de um modo acentuado, trouxeram consigo conota-
segue exactamente esta tendência, embora esteja baseado numa ções «associais», em todo o caso metamorais - algo como razões
particularização extrema, no que respeita aos casos individuais. de Estado no campo do poder, lucro no campo da propriedade/di-
A codificação reflecte-se na semântica do amor bastante cedo e nheiro ou paixão quase doentia no campo do amor. Assim, foi
com mais intensidade que no âmbito de um qualquer outro meio possível afirmar também que os meios, destinados todavia a formar
de comunicação e na realidade como consequência directa do livro. sistemas sociais em tais bases, não podem ser resultado da sociedade
Até mesmo a mais remota paródia sobre o próprio romance desem- em geral, da conformidade moral, nem igualmente da estandardi-
penha um papel neste contexto. Já no século XVII se toma como zação social, tendo antes de ser desenvolvidos desde o início. Isto
certo: a dama leu romances e conhece o código, o que faz aumentar acontece em alguns domínios dos meios de comunicação, através da
a sua atenção. Ela está avisada - e corre perigo por essa mesma ajuda de organizações - com a ajuda de uma forma especial de for-
razão. Anos mais tarde o homem sensível tornar-se-á também mação sistémica corporativa, desenvolvida especialmente para esse
vítima do romance 27. Leu-se do mesmo modo os ademanes e os efeito. Mas no campo da comunicação amorosa exclui-se esta pos-
trejeitos que conduziram à arte da sedução. Tem de se contar com sibilidade 28. O que a substituirá então? Em primeiro lugar e apa-
o facto de as damas saberem o que está por detrás dele e sabe-se rentemente antes de mais nada a formulação da consciência do pro-
também que apesar disso eles não perdiam o seu efeito. O código blema; mais tarde, também as exigências ao casamento. Por isso,
regulamenta não só o comportamento como abrange também o seu durante as seguintes análises históricas da semântica do amor temos
próprio reaparecimento no âmbito comportamental regulamentado de levar sempre em conta que o respectivo mundo da imaginação
por ele próprio. Nem o código do poder nem o do dinheiro pode- desempenha também funções de atribuição defensiva e que por esta
riam comportar a cada momento uma tamanha transparência. Só no razão surge frequentemente como extravagante. As redes complexas
amor é que o livro age desagregadoramente neste sentido; e é exac- de relações, bloqueadoras da auto-segregação dos indivíduos, da
tarnente aqui que por sorte se pode confiar em interesses que asse- «vida privada» e também de um retorno às relações a dois, são
guram apesar de tudo o seu funcionamento. elucidativas da vida social em sistemas sociais mais antigos e local-
Finalmente é de considerar que, em todos os meios de comu- mente mais densos. A vida deve ser partilhada com outros em
nicação simbolicamente generalizados, não seja evidente a capaci- moldes transparentes para qualquer um. A intimidade a dois é
dade respectiva para introduzir sistemas sociais especializados. Na quase impossível, não sendo em todo o caso promovida, mas antes
evolução sociocultural, os meios de comunicação têm um efeito dificultada o mais possível 29. Destacar as condições sistémicas fa-
selectivo, mas não necessariamente estabilizador. É muito típico
dos meios de comunicação terem apenas de impor as formações 28 Também outros campos de comunicação, que tendem para a comunica-
ção mais inverosímil, têm problemas idênticos. Ver, no que respeita à religião,
Niklas Luhmann, Funktion der Religion, Frankfurt, 1977; no que respeita à arte,
27 «]'avais lu quelques romans et je me crue amoureux» «<Eu tinha lido do mesmo autor, «Ist Kunst codierbar?», in, do mesmo autor, Soziologische
alguns romances e julguei-me apaixonado»), relata o herói em Charles Duelos, Aufk/iirung, voI. III, Opladen, 1981, pp. 245-266.
Les conféssions du Comte de ... , 1741, citado da edição de Lausana, 1970, p. 38. 29 No que respeita às relações em casa, cf. por exemplo Howard Gadlin,
Atente-se na precisão da formulação que alude justamente a um quadro de «Privare lives and public arder: a critical view of the history of intimare rela-
circunstâncias corrente. tions in the United States», in Georg Levinger/Harold L. Raush (ed.) Close
38 AMOR COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO

voráveis à intimidade tem por isso de começar por conseguir


impor-se às opiniões dominantes e às conjunturas sentimentais 30;
e isso tornar-se-ia tanto mais difícil quanto nem todos os grupos
etários estariam igualmente interessados nesta possibilidade 31• De
acordo com os seus próprios condicionalismos, as relações a dois, à CAPÍTULO III
margem do entendimento social, surgem como algo de extraordi-
nário e problemático. Tal como a investigação sociométrica denun- Evolução das possibilidades de comunicação
cia, o escolher-se com base numa projecção recíproca raramente
acontece, dando na maioria dos casos cobertura a uma relação
pouco durável 32. Precisamos de mais um capítulo destinado à introdução teórica
Estas condições ajudam a compreender o facto de a codificação aos esrudos históricos seguintes. Temos ainda de compreender de
da intimidade (de base sexual) ter sobrerudo início à margem da que modo as investigações evolutivas do legado cultural se trans-
ordem estabelecida e que se tenha de remir esta possibilidade formam em comunicação. Não se pode esclarecer isto suficiente-
através de «concessões» feitas à semântica - sobrerudo através do mente através da análise da história da palavra e do conceito.
reconhecimento da insensatez, da loucura, da instabilidade. Só após Torna-se também demasiado abstracra a tese socioestrutural sobre
a habituação a um tal programa se poderia iniciar com seriedade a a transição para uma diferenciação funcional 1 e sobre a diferencia-
construção de uma reciprocidade social e visar a formação sistémica ção plena dos meios de comunicação correspondentes. A tudo isto
assim estabilizada - cujo sucesso é discutido até aos dias de hoje. tem ainda de se acrescentar uma análise mais precisa do próprio
O casamento com base no amor é o resultado e o alargamento de processo de comunicação, indissociável da fundamentação da repro-
hipóteses de divórcio é o correctivo. Compete assim ao casamento dução corrente das relações íntimas.
saber se quer ou não continuar a existir. Assim, ir-nos-ernos guiar pelas duas teses seguintes: 1) En-
quanto condicionantes da comunicação íntima, os participantes
têm de estar de tal modo individualizados que o seu comportamen-
to se torne especificamente «legível» através de uma distinção,
precisamente através da distinção entre os interesses próprios e
directos ou dos hábitos próprios e aquilo que se faz a pensar no
outro ou na relação que com ele se mantém. 2) Nas relações
relationships: perspectioes on the meaning of intimacy, Amherst, 1977, pp. 33-72;
íntimas, mais do que em muitas outras relações, a distinção entre
David H. Flaherty, Privacy in colonial New England, Charlottesville Va., 1972,
em especial p. 70 e segs. o agir e o observar tem um papel a desempenhar; no que diz
30 A este respeito em especial Guy E. Swanson, «The routinization of love: respeito à distinção formulada em o ego é observado como agente de
strucrure and process in primary relarions», in Samuel Z. Klausner, The quest for altero Aqui pode tratar-se do agir realizado e previsto como comu-
the self-control: classical philosophies and scientific research, Nova lorque, 1965, nicação, mas também de outro agir e naruralmente também dos
pp. 160-209. Cf. mais adiante: William]. Goode, «The theoretical imporrance
aspectos do agir comunicativo concebidos como comunicação; tal
of love», American Review, 24 (1959), pp. 38-47; Philip E. Slarer, «On social
regression», American Sociological Review, 28 (963), pp. 339-364. como é sabido, com base na investigação empírica, essa bipolariza-
31 Sob este ponto de vista não deixa de ter importância que as relações tio- ção entre o agir e o observar tende para a divergência das atribui-
-sobrinho pertençam aos primitivos exemplos em que a ritualização era mais ções e finalmente para um conflito de atribuições: o agente vê as
marcante que a respectiva crítica ou defesa. Cf. S. N. Eisenstadt, «Ritualized
personal relations», Man, 96 (956), pp. 90-95.
32 Cf. Jean Maisonneuve, Psycho-sociologieeles aflinités, Paris, 1966, p. 322 1 Para este contexto ver N. Luhmann, Gesellschaftsstruktur und Semantik,
e segs., em especial p. 343. 2 vols., Frankfurt, 1980-1981.
40 EVOLUÇÃO DAS POSSIBILIDADES CAPiTULO III 41

causas do seu agir nas caracterísitcas da situação, o observador por mento comunicativo, em caso de dúvida, se noutras ocasiões afir-
sua vez pautua-se mais marcadamente pelas características da per- maríamos aos outros e a nós próprios com um silêncio resignado
sonalidade do agente 2. Assim sendo, os participantes começam a que não ousaríamos fazer a prova?
avaliar retrospectivamente as causas respectivas de modo diferente, Este exemplo pode ser utilizado enquanto fio condutor na
entrando por causa disso imediatamente em conflito. procura de generalizações. Ensina sobretudo que tem se se contar
Ambas as teses partem de hipóteses teorético-atributivas. Re- com um elevado grau de conhecimento e, enquanto comum, cons-
futam uma base teórica que explica o amor através da empatia, da ciente das situações; tendo afinal de se contar também com um alto
simpatia, apontando assim para uma tautologia (com uma sobrecar- grau de predeterminação cultural, o qual não tem nada a ver quer
ga descritiva) 3. A questão fundamental é: quais as verdadeiras com a individualidade quer com o amor, estando apto a perfilar as
causas a que se atribui o comportamento? E seguidamente: de que nuances do comportamento. (Ele «corta as curvas», embora saiba
modo poderá ser utilizada a observação orientada do comportamen- que eu não gosto; na auto-estrada «ela vai sempre pela faixa de
to, para que se avalie a atitude do parceiro de acordo com as normas ultrapassagem», embora saiba que eu dou demasiada importância
de um código das relações íntimas? E depois: como pode ser uti- às regras de trânsito.) Neste sentido, tomou-se em tempos idos a
lizado o que se aguarda de uma tal observação, incluindo a atribui- sociabilidade e o verniz social, até aos modos de comportamento
ção que a orienta, para adaptar antecipadamente a isso o próprio mais requintadamente estilizados, como um pressuposto ou pelo
comportamento? menos como uma oportunidade para observar e avaliar antecipada-
Os condicionalismos mencionados nas teses e globalmente con- mente os parceiros destinados a uma relação mais próxima -
siderados tornam difícil a reprodução da intimidade; inverosímil, sobretudo como condicionante da possiblidade de tornar visível e
como se chegou a afirmar frequentemente. Os casamentos são admissível as liberdades face à forma. As ocasiões festivas do
contraídos no céu, no carro verifica-se a separação, pois aquele que «grande mundo» eram a isso propícias 4.
está ao volante comporta-se de acordo com a situação e conduz - Lotte não dançava, cortava fatias de pão escuto 5. Isto pode
pensa ele - tão bem quanto sabe; mas aquele que vai ao lado e o também bastar a uma alma sensível; aliás, apenas tratando-se de
observa sente-se objecto do modo como o outro conduz, remetendo uma sensibilidade que reivindica o mundo inteiro como meio para
esse mesmo modo de conduzir para as características do condutor. experimentar o amor e o sofrimento. Isto ultrapassa todavia a
Só pode agir de uma maneira, precisamente através do comentário margem de manobra da comunicação possível. O diálogo baseado
e da crítica; e é pouco provável que ao fazê-Io obtenha o assenti- na sedução, resistência e entrega, o qual se julgava suficiente até
mento do condutor. De táxi não teríamos (salvo casos excepcionais) então, é desrruído, e a experiência amorosa autêntica - de Wer-
muitas oportunidades para conversar sobre isso. Mas nas relações ther até Lucinde - transfere-se novamente para o sujeito amoroso,
íntimas é precisamente esta a situação que se transforma na prova que deixa de poder comunicar para o outro (não podendo sobretu-
da questão: será que toma como base o meu mundo e não o seu? do fazê-lo) com bastante sucesso. Se nos voltarmos hoje a debruçar
E como seria possível abstrairmo-nos da tentativa de um esclareci- sobre a comunicação, deveríamos ter em conta o que isso significa,
o que isso implica, o modo pelo qual nos limitamos e o modo como
as «pontes» estão estreitas e perigosamente construídas.
2 Esta divergência, reconhecida em si mesma, encontra-se não só numa
conduta, especializada na observação, mas também nas relações entre parceiros, O problema da comunicação íntima permite que o circunstan-
nas quais ambos agem, observam reciprocamente. Ver, por exemplo, os resulta- ciemos com base nas teses que apresentámos. Sejam quais forem os
dos na tabela 4.2 (caregory 7) em Harold H. Kelley, Personal relationships: their
structures and processes,Nova Iorque, 1979, p. 10l. 4 Uma observação a respeiro desta função do «grande mundo» em Stendhal,
3 Ver a exposição sumária em Lauren G. Wispé, Sympathy and empathy, in De l'amour (1822), Paris, 1959, pp. 33 e segs. Ver também Christian Garve,
International Encyclopedia of tbe social sciences, Vol. 15, Nova Iorque, 1968, Über Gesellscbaft und Einsamkeit, Vol. I, Breslau, 1797, pp. 308 e segs.
pp. 441-447. 5 Die Leiden des jungen Werthers, cana de 16 de Junho.
42 EVOLUÇÃO DAS POSSIBILIDADES CAPÍTULO III 43

temas e as observações em que nos baseamos, trata-se de excessos acção e ao ser-próprio individual é a chave do problema inerente à
de sentido, dos quais se pode deduzir a continuação do amor. A individualização - e precisamente por isso só pode interessar a ge-
presença-no-mundo-do-outro-e-a-capacidade-de-agir-de-acordo- neralização objectiva e temporal, mas não a social (válida para
-com-isso deve ser constantemente actualizada. Isto exige que o todos). Isto parece bastante complicado, todavia no essencial é
agente se torne observável como sendo alguém que supera os seus ainda insuficiente. Temos de empregar a própria identidade como
hábitos e interesses. Querer isto não deve em compensação tranfor- um garante da duração, precisamente não de um modo estático mas
mar-se num hábito como o são os cumprimentos, a oferta de pre- antes dinâmico: não enquanto do-modo-como-ela-sempre-é, mas
sentes, o beijo de despedida; tem de se repetir sem que as caracte- enquanto crescendo-com-o-amor. Sobretudo o apelo à própria iden-
rísticas inerentes à repetição sejam incorporadas; ou pelo menos tidade destaca primeiro e justamente a autonomia face às influên-
tem de ser percebido com esta intenção, uma vez que acaba inevi- cias dos outros. A referência de sentido deve ser extinta, isto é,
tavelmente por falhar. A observação empenhada de cada sinal, que substituída por um conceito de identidade-em-transformação; está
o outro (com ou sem intenção) fornece como indicação sobre a pos- aqui implícito o reconhecimento do outro que se ama (e que se crê
sibilidade de receber um sinal de amor, faz parte das prescrições ele próprio permanente), o desenvolvimento do próprio eu através
mais importantes da semântica clássica do amor 6. O ponto de vista dele e do amor para com ele. A identidade tem igualmente de ser
aqui subjacente afirma que apenas uma atenção contínua e uma tratada como um conceito de estabilidade e de intensificação.
disponibilidade permanente para agir, tendo o outro sempre em Uma tal identidade tem igualmente de ser incorporada em
vista, conseguem na verdade simbolizar o amor. situações que foram assinaladas ao esboçar-se anteriormente a dis-
As atitudes que evidenciam amor têm de se expressar através da tinção entre perspectivas de acção e perspectivas de observação. De
acção, uma vez que se trata de algo mais do que meras intenções, entre as exigências especiais respeitantes às relações íntimas, esta
do que ficar emocionado: têm de ser legíveis no agir, mas não se distinção aumenta e não diminui, porque o autor, na qualidade de
devem ficar pelos próprios momentos da acção. Teóricos da atribui- observador, vai sondando o agir do ego em busca de sinais indica-
ção exigem que se conte com uma disposição estável, temporal e dores do amor, enquanto o ego é também inevitavelmente assimi-
objectivamente (mas não socialmente) generalizada 7. O momento lado pelas necessidades situacionais. A permuta constante das
da acção tem de exprimir, portanto, duração 8. E isto só acontece posições enquanto ego, isto é, enquanto alter, bem como a conden-
através do facto do agente empenhar a sua identidade, isto é, em- sação da interacção constituem uma ajuda. Por isso mesmo, estru-
penhar de tal modo o sentido do seu agir que o observador julgue turas ou situações tornam-se problema, bloqueiam tal permuta -
conseguir ver o agente «identificar-se» com a sua acção. Pondo de seja através de uma rígida diferenciação de papéis (a mulher cozi-
lado todos os matizes de humildade e desonestidade, e apesar da nha, o homem espera pelo comer), seja através de exigências técni-
frequente incapacidade de decisão exactamente quanto a esta ques- cas (condução do automóvel). A interacção dos amantes deve ser
tão sobre a honestidade, verifica-se que o contexto respeitante à plenamente diferenciada à luz de particularidades a estes favorá-
veis. O diálogo é em compensação, ao lado do contacto físico, uma
forma particularmente apropriada. A condensação torna-se aqui tão
6 «Soins» foi o terminus technicus do século XVII. Desenvolvimento seme-
lhante sofre-o de resto a arte de evitar precisamente tais oportunidades, possibi- intensa que ambos os parceiros podem agir simultaneamente a dois
litadas por tais ocasiões. Cf. por exemplo François Heledin, Abbé d'Aubignac, níveis: ao nível de ambos os indivíduos participantes e ao nível do
Les conseils d'Ariste à Celimêne sur les moyens de conserver sa réputation, Paris, 1666. sistema social constituído por ambos 9.
7 Cf. Kelley, op. cit., (979), p. 93 e segs.

8 Resulta daí que a literatura da segunda metade do século XVII se ativesse


à ilusão e a literatura da primeira metade do século XVIII à desonestidade,
enquanto ingredientes do amor. É neste passo do sistema que parece entrar hoje 9 Kelley, op. cit., p. 81, 84 e segs., chama a isto «double contingency» (des-
em dia a gestão dos conflitos de atribuição. Haveremos de voltar a este aspecto. viando-se do uso linguístico comum).
44 EVOLUÇÃO DAS POSSIBILIDADES CAPÍTULO III 45

Tal como acontece com exigências inverosímeis é possível o amor deixa inevitavelmente de acontecer e passa a ter de ser
acontecer uma ruptura ocasional, quando não frequente, da comu- substituído por formas moderadas de adequação recíproca do
. nicação. Tal é válido sobretudo para a divergência continuamente comportamento. Isto pode ser um ponto de vista tão antigo quanto
possível das perspectivas atributivas, referentes ao observar e agir. acertado. Mas não responde à questão: como, sabendo isto, se
A isto acrescenta-se o facto de, no que diz respeito ao amor e ao começa de facto, e como, ainda que só por algum tempo, se
comportamento do amante, se verificarem perspectivas susceptíveis embarca em tão difícil empreendimento, apesar do enorme esforço
de desapontamento. A individualidade orientadora dos aconteci- nele implíciro.
mentos da esfera atributiva passa a exigir o reconhecimento de O quadro dos motivos não tem de ser esclarecido antropologi-
concepções caprichosas do mundo e do próprio, transformando-se camente (e muito menos através da mera indicação das necessidades
assim em pretensão. Quem ama deve aceitar esta presunção, pro- de satisfação sexual). Os motivos não têm origem independente-
vocá-Ia e querer encontrar a sua felicidade na correspondência. Mas mente da semântica, que descreve a sua probabilidade e possibili-
por quanto tempo? E que soluções apresentará para os conflitos dade de realização - são por seu lado produtos da evolução dos
possíveis entre dois indivíduos? meios de comunicação simbolicamente generalizados. Eles próprios
Há muito que se verifica que o exagerado grau de individua- são um arrefacto da evolução sociocultural. A ousadia que o amor
lização das pessoas põe em perigo o casamento, submetendo de um e a respectiva orientação quotidiana complicada e rica em exigên-
modo geral as relações íntimas a exigências de difícil realização. cias constituem, acontece apenas quando é possível apoiarmo-nos
Isto é válido sobretudo porque se sugere que o meio de comunica- em tradições culturais, em modelos literários, em padrões lin-
ção orientado para o indivíduo atribui todos os conflitos ao mesmo, guísticos e em quadros de situação com poder convincente, em
não os tratando assim como conflitos naturais ao comportamento e suma: numa semântica transmitida pela tradição. Esta semântica
papéis desempenhados 10. É também precisamente através do com- tem de ter à sua disposição uma «correspondente complexidade».
portamento em casos de conflito que o amor é testado - e natu- Por outro lado, só é possível reproduzir nisso uma tal semântica em
ralmente em condições pouco favoráveis. Com a personalização das variantes sempre novas quando se pressupõe um interesse. Na
relações sociais o próprio amor deixa simultaneamente de ter o seu realidade, desde a invenção da imprensa, um interesse geral, um
valor enquanto nível de regulação dos conflitos acima das expecta- interesse de leitor. Estamos assim perante um problema de génese
tivas de comportamento e de desempenho do papel; pois ele pró- auto-referencial, perante um problema de desenvolvimento de for-
prio está atingido pelo conflito ll. mas, que se pressupõem elas próprias nos condicionalismos da sua
Face a tais reflexões e experiências podemos perguntar se a probabilidade; e a estas questões responde a teoria da evolução
semântica do amor, que estrutura a liga na esfera íntima, não fez sociocultural.
demasiadas promessas, nem se terá sugerido uma inverosirnilhança As questões colocadas pela nossa investigação associam assim as
exagerada. A resposta típica implica limitações de ordem temporal: perspectivas teóricas às históricas. Combinam pontos de partida de
teoria social, de teoria da evolução, de teoria da comunicação e de
10 Cf. para além disto Harrier B. Braiker/Harold H. Kelley, Conflict in tbe teoria da atribuição no conceito de meio de comunicação simboli-
deuelopment of close relationships, in Robert L. Burgess/Ted L. Husron (ed.), Social camente generalizado. Associam então esta base teórica a investiga-
exchange in develoPing reiationsbips, Nova Iorque, 1979, pp. 135-168. ções sobre evolução de idéias, isto é, sobre evolução no contexto
11 Subestima-se este propósito quando só se referem as funções positivas dos de uma semântica histórica, que, na praxis comunicativa, reage às
conflitos (como é vulgar há já algum tempo em sociologia). Cf. por exemplo
John Scanzoni, Sexual Bargaining: pouer politics in tbe american marriage, Engle-
experiências com o seu respectivo ideário, dependendo das possibi-
wood Cliffs N. ]., 1972, p. 61 e segs. (atendemos também à orientação para a lidades oferecidas pelo desenvolvimento estrutural da sociedade.
metáfora económica e política e à ausência de cada análise profunda da intimi-
dade nas representações «sociológicas» deste tipo),
CAPÍTULO IV

Evolução da semântica do amor

É no contexto de uma teoria geral dos meios de comunicação


simbolicamente generalizados que se verifica quais as exigências
específicas a que um meio especialmente destinado ao amor tem de
corresponder. A necessidade respectiva surge clara, quando se pode
pressupor que a distinção entre relações sociais impessoais, externa-
mente motivadas e altamente pessoais, íntimas, é consciente e fre-
quente. A experiência distintiva estabiliza a necessidade e reproduz
a procura de formas de comunicação adequadas. Enquanto vivência,
ela só é possível quando o amor surge todavia como meio de comu-
nicação, que diferencia plenamente formas específicas de comuni-
cação adequadas ao efeito. A vivência da diferença que permite a
institucionalização de um meio de comunicação só é possível atra-
vés deste. O meio diferencia plenamente os sistemas sociais, sendo
também concretizado como código destes últimos apenas quando
cede à auto-referência. Tal remete-nos para a questão sobre o modo
como se pôde formar um tal meio, quando ainda era possível
estabelecer a vivência da distinção entre relações sociais pessoais e
impessoais (que teria de acontecer em primeiro lugar). Por outras
palavras, como poderia a sincronia da auto-referência historica-
mente diacronizada ser diluída numa sequência evolutiva? Ou me-
lhor: como é possível que as formações auto-referenciais surjam
sobretudo como novas se à estrutura corresponde o facto de poderem
recrutar as suas condições de estabilização, apenas quando estas
existem de antemão?
Não é decerto possível responder a esta questão aludindo a uma
necessidade amorosa de base antropológica. Independentemente do
facto de ser praticamente impossível comprovar um tal conjunto
exterior às formas de comunicação, o nosso problema reside nas
próprias formas de comunicação. É óbvio que tem de se pressupor
um aparelho antropológico de base (como seja: a sexualidade)
48 EVOLUÇÃO DA SEMÂNTICA DO AMOR CAPiTULO IV 49
enquanto um dos pressupostos ambientais com vista à distinção das questão sobre se os trovadores podiam ou não aguardar a satisfa-
formas no seio do sistema social, mas esta alusão de pouco nos ção dos seus ensejos, diz respeito a um ptoblema absolutamente
servirá no que respeita ao nível do sistema social e respectiva secundário. Importante era: conseguir distanciar-se da satisfação
evolução. Em vez disso, procuraremos a chave para um esclareci- trivial, vulgar, imediata das necessidades sensuais no seio de uma
mento evolucionista na diferenciação daquele nível de tratamento aristocratização crescente da estrutura estratificada, existente na
semântico que designamos por «semântica cuidada». Nestes níveis Idade Média. Em tudo isto é deterrninanre a referência à estratifi-
é possível obter e reter por instantes transições evolutivas através de cação social e só excepcionalmente a referência à individualidade -
plausibilidades provisórias, mesmo que não sejam ainda utilizáveis para isso bastando que o amor se transferisse para o campo do ideal,
dentro do contexto da sua função definitiva. do inverosímil, do atingível apenas através dos méritos especiais
Esta problematização e respectivo pano de fundo evolucionista (e não através do casamento!).
tornam compreensível o facto de as épocas históricas serem delimi- É apenas na época moderna que - ao longo de uma conti-
tadas com clareza, quer quanto à realidade global quer quanto ao nuidade mais sistematizada - se desenham sobre este pano de
respectivo tratamento semântico; tal contradiz também a auto- fundo traços mais modernos. Verificamos mais pontos fulcrais de
-referência de todo o tratamento da informação visando o sentido. época na segunda metade do século XVII e por volta de 1800, esta-
Por outras palavras, não se consegue reconhecer um processo belecendo assim a diferença entre amour, passion e amor romântico;
histórico que seja classificável com base em acontecimentos novos. distinguimos quatro campos de sentido com vista a poder repre-
Até mesmo as transformações estão demasiado dependentes das sentar primária e esquernaticamente este contexto que respeita a
estruturas estáveis e do ideário tradicional. Todavia, existem dife- focalização e a transformação: 1) a forma do código, 2) a justifica-
renças claras que, uma vez estabelecidas, conferem uma nova im- ção do amor, 3) o problema ao qual reage a transformação ao
portância ao passado e tornam o presente acessível de um outro procurar abrangê-lo e 4) a antropologia que se deixa integrar no
modo. Aquilo que caracteriza uma época não necessita de ser abso- código.
lutamente «novo», no sentido de inédito. Atribuir sentido a uma A forma do código fornece o princípio à luz do qual se formula
época é algo que se pode perfeitamente realizar com figurações a unidade do seu código, para além de todas as distinções respei-
conhecidas que só a partir de agora entram no centro da determi- tantes ao seu campo ordenador. Ela é decisiva para a admissão de
nação histórica. É precisamente característico das profundas deslo- possibilidades de comunicação, por isso deterrninante também da
cações estruturais, ocorridas nos começos da época moderna, o ter- transformação destas possibilidades e através disto daquilo que
-se guarnecido com um ideário evocável de uma longa tradição. fornece a uma época o seu centro de sentido. Sem a diferenciação
Apenas aumenta a possibilidade de explorar, a capacidade de esta- plena de uma semântica destinada à codificação das relações
belecer contactos, a selectividade dos momentos de sentido. Se, à íntimas, não pode existir qualquer evolução neste campo especial.
luz desta ideia-chave, procurarmos os momentos centrais da atri- Na segunda metade do século XVII verifica-se uma mudança
buição de sentido, em vez de limiares da época, então conhecer-se- na forma do código: da idealização para a paradoxização. Tal forma
-ão, no âmbito da semântica do amor, os deslocamentos claros modifica-se novamente na transição para o amor romântico, por
destes aspectos fulcrais que se desenvolvem paralelamente a uma volta de 1800, dando lugar a uma forma de reflexão da autonomia ou
crescente diferenciação plena das relações íntimas. O interesse da auto-referência. A unidade do código é, consequentemente, sobre-
principal da lírica amorosa e especialmente do amor cortês medie- tudo um ideal, depois um paradoxo e finalmente uma função,
val parece ter residido no facto de não poder apresentar-se como nomeadamente a função de conceder autonomia à reflexão. Uma
algo de grosseiro. Daí a marginalização da referência à sensuali- vez imposta a transformação, a função do código passará a ser a
dade, daí a idealização, a sublimação, forma contida e liberdades de possibilitar uma orientação para os problemas no âmbito do quoti-
que apenas por contraste se perfilam de novo. A tão discutida diano.
50 EVOLUÇÃO DA SEMÂNTICA DO AMOR CAPITULO IV 51

De acordo com isto variam os pontos de vista através dos quais mente inevitáveis adentro do contexto dos ideais mais sublimes; e
se pode fundamentar o amor. Enquanto se tratou de um ideal, era existe pelo menos um campo altamente estilizado para o qual não é
necessário o conhecimento das qualidades do objecto 1. No âmbito da válida a distinção que habitualmente se verifica entre ratio e sen-
codificação paradoxal, o amor justifica-se através da imaginação. sualidade; e o ser humano, por seu lado, deixa de conseguir distin-
Quando a autonomia das relações íntimas é finalmente conseguida guir com segurança aquilo que o liga quer ao anjo quer ao animal.
e transformada em reflexão, o (inexplicável) facto de se amar é quanto O século XVII ultrapassa esta primeira concentração de amor e
basta à justificação. O amor justifica-se a si próprio enquanto con- sexualidade, o ideal torna-se ademane retórico. A paradoxização da
texto justificativo auto-referencial. A beleza da amada deixa por semântica do amor completa a dissipação do contraste tradicional
exemplo de ser um facto indispensável, o mesmo acontecendo com entre amor «sublime» e «sensual», dando início à integração da
a indispensável fantasia; de causa, passa a ser entendida pelos sexualidade como essencial ao amor. O isolamento de comportamen-
amantes como consequência autêntica do amor. Trata-se por fim de ro amoroso deixa que se tome consciência do código «enquanto apenas
reconhecer e solucionar conjuntamente os problemas respeitantes à código» e do amor enquanto sentimento literalmente pré-elaborado, catego-
relação íntima. Estas transformações na semântica do meio, respec- ricamente prescrito. Assim, o amor deixa de ser dirigido pelos poderes
tivo conceito de unidade e campo de fundamentação assim possibi- sociais como a família e a religião, associando-se, todavia, na sua
litado, encontram-se relacionadas com a introdução de novas questões liberdade, cada vez mais à sua própria semântica e ao seu objec-
neste código. Trata-se de questões que (ao âmbito da diferenciação tivo secreto: o prazer sensual. A consciência destes problemas está
plena de um território especial, respeitante às relações íntimas) têm patente no século ao longo de toda a literatura, bem como da
de ser associadas ao código e tratadas através dele. Na análise discussão de orientação literária. Neste momento exprime-se como
histórica salienta-se neste caso que não é exactarnente o problema suspeita, como desmascaramento, como frivolidade pura 4. Todavia,
que impõe a reorganização da semântica, sendo, antes pelo tem de aguardar pela reorganização do código, antes de se poder
contrário, as transformações evolutivas do código que se apresen- associar a uma forma nobre e respeitável. Apenas o romantismo
tam previamente, possibilitando a integração do problema ou a eli- consagra a interdependência entre sexualidade e amor, e só no
minação das respectivas discrepâncias 2.
No contexto do «amor cortês», do «[in amour», a Idade Média 4 A estrutura profunda deste contexto está por seu lado exposta a modifica-
ções, sobretudo nos últimos decénios do século XVII. A suspeita face aos motivos
tinha já introduzido um processo de sistematização e de concentra-
radicaliza-se em primeiro lugar através de meios religiosos (sobretudo sob a
ção 3. A velha distinção entre reprodução familiar e affaire amo-
acção dos jansenistas). Estabelece-se universalmente, sendo mais tarde por assim
roso exterior ao casamento não é posta de lado, mas ganha uma dizer abandonada. A técnica de desmascaramento adapta-se por conseguinte às cir-
forma superior através da ideia de um grande amor, válido para cunstâncias. Em vez do desmascaramenro da prevaricação e do egoísmo, trata-se
uma mulher e só para uma, cuja graça se tem de merecer sem a (desde La Bruyêre) de desmascarar a mediocridade do ser humano e a banalidade
força nem a violência. O erotismo será dirigido para algo que se dos seus motivos. A frivolidade, que consegue obter a sua própria segurança da
opinião segundo a qual rodos são desmascaráveis, sendo apenas sério o compor-
pode obter apenas de uma determinada mulher (e não mais ou
tamento frívolo, passa a perder o carácter de comportamento corajoso, tornando-
menos de qualquer uma). Isto obriga o cavalheiro a ajoelhar-se. -se no último reduto da banalidade. É possível escapar à banalidade ao simulá-
Nesta linha de referências, as conorações eróticas tornam-se igual- -Ia. Tudo isso apresenrar-se-á desnecessário no momento em que for possível
reconhecer abertamente o «positivisrno» da codificação cultural do comporta-
I Pormenorizadamente: Rurh Kelso, Doctrine for tbe lady of tbe Renaissance, mento (de acordo com a inclusão da religião na cultura). Aqui poder-se-ia anotar
Urbana Ill, 1956, reimpressão, 1978, p. 136 e segs. também: não é o desmascaramento dos pecados, mas antes o da mediocridade
2 É possível continuar a afirmar: o problema tem constituído a força pulsio- dos motivos próprios do ser humano que afloram a estruturação estratificadora
nal latente com vista à revisão do código. Mas continuará isso a servir de ajuda? do sistema social num ponto decisivo. O nobre ainda consegue salvar-se através
3 Maurice Valenca perfilha esta interpretação, In praise of love: an introduction da frivolidade, quando a burguesia o pretende reduzir ao denominador comum
to the love-poetry of the Renaissance, Nova lorque, 1958. da banalidade.
52 EVOLUÇÃO DA SEMÂNTICA DO AMOR CAPiTULO IV 53

século XIX se consuma a ideia: o amor não é mais que uma trans- código, que introduzem ou fomentam uma diferenciação plena, não
posição idealizada e uma sistematização da pulsão sexual 5. podem ser projectadas e pensadas para todos os membros da socie-
Tudo isto comporta finalmente repercussões quanto à questão: dade. Como formas superiores por excelência, elas são sobretudo re-
de que modo toma o indivíduo parte no amor? O código dos meios de servadas ao estrato social mais elevado, em primeiro lugar, afinal, à
comunicação produz uma antropologia adequada a si próprio. nobreza. Por outro lado, e aquando da transição de uma diferencia-
Enquanto o amor era um ideal, cabia à razão representar o homem. ção estratificadora para uma diferenciação funcional do sistema, a
Passion e plaisir estavam sob o seu controlo ou então eram enten- evolução global da sociedade obriga a uma inclusão mais forte, pos-
didos como distintos da razão. A paradoxização do código franqueia sivelmente mais abrangente de todos os círculos da população em
o acesso a uma antropologia, que valoriza a passion e o plaisir e que todos os campos funcionais 8. Também aqui a evolução tem igual-
assume tal distinção como dererrninante. O século XVII assume esta mente algo a ver com exigências contraditórias, às quais se admite
semântica, continuando a apresentá-Ia numa versão que destaca a um cunho semântico: por um lado, tem de se tornar viável o que
autonomia do sentimento e sublinha a distinção entre os sentimen- é especial, o que é inverosímil, por outro, é exactamente isto que
tos autênticos e gota, esprit, délicatesse enquanto pressupostos mí- tem de ser alcançável para toda a gente. Por um lado, a sociedade
nimos - respeitantes ao acesso à realização sexual, pois é sobretu- necessita da estratificação para a introdução da inverosimilhança e
do disso que se trata agora. É aqui que se verifica o choque com a para a reorganização com vista à diferenciação plena dos sistemas de
incomunicabilidade da autenticidade 6. Verifica-se novamente uma função, por outro, é precisamente tal reorganização que arruina a
perda de significado, na medida em que o romantismo transfere a necessidade e a possibilidade de estratificação. «Superar» estas con-
unidade do código para a auto-referência do próprio amor. Ora isto tradições, acentuar as exigências diversas, expô-Ias em controvérsia,
exige uma outra antropologia - uma antropologia que não conce- relacioná-Ias umas com as outras, transmiti-Ias, parece ser a missão
da mais vantagens ao amor, mas que vive tendo-o em referência. da semântica, e no nosso caso particular, da semântica do amor.
Inverte-se, por assim dizer, a relação entre variáveis independentes As necessidades de inclusão só se manifestam inteligivelmente
e dependentes. O amor surge como se tivesse origem no nada, a partir do momento em que as novas formas assumem forma
devendo a sua existência à imitação de padrões, sentimentos e escrita. Estão associadas a tendências visando o renivelamento e a
modos de existir. E é natural que no seu fracasso traga precisa- renormalização, só podendo reagir selectivamente às invovações
mente isso à consciência. Assim, a distinção é a que se manifesta culturais. À codificafão paradoxal do amour passion sucede a insistência
entre amor e discurso sobre o amor, entre amante e romancista. O qual nos sentimentos morais que pelo menos abrange e inclui a burguesia
sabe sempre aquilo de que deveras se trata 7. Finalmente, as exigên- culta. O amor é novamente recuperado para a amizade, pelo que se
cias de inclusão produzem o seu efeito. Todas as extravagâncias do mantém o requinte psicológico, desenvolvido no contexto de galan-
terias circunspectas. Aquilo que se desenvolveu como arte da obser-
vação, da sedução e da libertação sobrevive à crítica da galanteria,
5 «Une sysrernatisarion exclusive er consciente de son instinct sexuel», passando a ser utilizado com o objectivo de permitir o abandono à
assim se afirma em Gasron Danville, La psycbologie de l'amour, Paris, 1894, p. 63.
individualidade do companheiro íntimo. Uma vez formulada a
Igualmente, Th. Ribot, La psychologie des sentiments, Paris, 1896, p. 244 e segs.
«L'apparirion du choix individuel» (p. 251) constitui a viragem decisiva neste síntese de todos estes contributos enquanto amor romântico e este
processo evolutivo. enquanto pressuposto do casamento, aringir-se-ão novos esforços de
6 «Delicacy, we perceive, is like 'eggs', 'fresh eggs', and 'strictly fresh eggs>, inclusão. O código é formulado enquanto «ideologia» (Destutt de
- assim resumem esta experiência Roberr P. Urrer/Gwendolyn Needham, Tracy), enquanto sistema semiótico destinado ao governo da ima-
Pamela's daughters, Nova Iorque, 1936, reimpressão 1972, p. 47.
ginação, que por sua vez controla o processo de reprodução da
7 O facto de esta versão poder ser gradualmente conseguida roma-se per-
ceptível na evolução de gue Stendhal deu provas, desde De l'amour (1822) até aos
grandes romances dos anos tardios. 8 Cf Niklas Luhmann , Gesellscbaft und Semantik, op. cit., VoI. I, p. 31 e segs.
54 EVOLUÇÃO DA SEMÂNTICA DO AMOR

sociedade. E é isso que faz com que todos se extasiem de vez em


quando com ideais do amor e tenham uma existência de «bomme-
copie» 9, independentemente da condição e modo pelos quais alguns
eleitos vivem os altos e baixos da paixão amorosa. A versão final
afirma então que todos levam uma existência copiada, o que pres- CAPÍTULO V
supõe que as paixões podem ser conquistadas e fruídas.
Neste momento, este esquema genérico é suficiente enquanto Liberdade para o amor: do ideal ao paradoxo
exposição prévia de apresentação detalhada dos capítulos seguintes.
Visto em pormenor muita coisa aparenta ser mais complexa e
complicada do que se estivesse inserida num panorama teorica- Foi especialmente em França, século XVII, que tiveram origem
mente orientado. É em traços gerais que se mostra melhor o quanto os momentos importantes de um código especial do amor apaixo-
as transformações da semântica correspondem àquilo que seria de nado, vindo a ser conscientemente codificados na segunda metade
esperar enquanto paralelo com a crescente diferenciação plena das do século '. É natural que exista um grande número de precurso-
relações íntimas: afrouxamento da intervenção de uma moral uni- res: a lírica amorosa clássica e árabe, a lírica trovadoresca medieval,
versalmente aceite pela sociedade face àquilo que é válido nas a abundante literatura do amor da Renascença italiana. Ao procurar
relações íntimas como comportamento certo e adequado e reacção uma semântica do amor séria, respeitável, destacando-sedos conhe-
à questão daqui resultante, respeitante à autonomia, à atribuição de cimentos quotidianos, das aventuras amorosas e da sensibilidade,
sentido, às possibilidades de se ser pessoa 10. A história oferece ela esta literatura está a utilizar o meio mais simples da idealização. O
própria um quadro muito mais complexo, pois preocupa-se sempre seu código fixa ideais. O amor encontra a sua própria justificação
com a redundância, o excedente, a tradição e a variação. Todavia, na perfeição do objecto, que o atrai (do mesmo modo que, segundo a
não se perderão quer as linhas gerais de uma transformação da velha doutrina, cada ambição é determinada pelo objecto que lhe
sociedade desencadeada pela evolução quer a sua semântica; pode- era próprio) 2. O amor é consequentemente uma ideia da perfeição,
remos documentá-Ia, em suma, por uma das investigações seguin- que deriva da perfeição do seu objecto, sendo por ela praticamente
tes, doravante mais profundamente atentas ao detalhe histórico, forçado e nessa medida passion.
recorrendo a meras restrições e alargamentos, modificações e escla- Perfeição não significa exactamente: capacidade unidimensional
recimentos suplementares. de intensificação. O amor é vivido como algo de completamente

1 Um primeiro e bom panorama é proporcionado pela colecrânea de excer-


9 Esta formulação surge em Stendhal, De l'amour (Fragrnents divers n." 105),
tos organizada segundo palavras-chave e editada por Jean Corbinelli, Sentiments
citado segundo a edição de Henri Martineau, Paris, 1959, p. 276. A ideia remete
d'amour, tirez des meilleurs poêtes modernes, 2 vols., Paris, 1671; para além disso, a
para Edward Young, Conjectures on original composition, citado segundo: The com-
colectânea, algo pedante, como resposta a Charles Jaulnaj, Questions d'amour aux
plete works, Londres, 1854, Vol. lI, pp. 547-586.
conversations galantes dédiées aux belles, Paris, 1671. É justamente tal elaboração em
10 Tal como em outros âmbitos de funções também se procura apenas apa-
segunda mão que documenta o interesse pela codificação.
rentemente, se ambiciona, se luta pela autonomia. A semântica pensa deste
2 Assim sendo, as dissertações sobre o amor começam consequentemente
modo quando procura defender o amor dos ataques da razão, da religião, da
com a ideia do seu objectivo, do qual extraem o fundamento dinâmico com vista
família, dos interesses. Vista de um modo socioestrutural, a autonomia forma-
à paixão amorosa. Veja-se por exemplo Flaminio Nobili, Trattato dell'amore
-se todavia através da reestruturação do tipo de diferenciação da sociedade como
humano (1567), com notas de rodapé de Torquato Tasso, reimpressão, Roma,
uma espécie de consequência obrigatória, à qual a semântica tem de prestar
1895. Para a Idade Média que, sob este ponto de vista, não perfilha o outrora
atenção através de tentativas da determinação do sentido. Veja-se, para atender
estimado Ovídio, mas que sublinha antes a ideal idade e moralidade do amor,
à questão adjacente patente no âmbito funcional educação, Niklas Luhmann/
cf. também Egidio Gorra, La teoria dell'amore e un antico poema francese medito, e
/Karl Eberhard Schorr, Reflexionsprobleme im Erziehungssystem, Esrugarda, 1979,
do mesmo autor, Fra drammi e poemi, Milão, 1900, pp. 199-300 (223 e segs.).
p. 46 e segs.
56 LIBERDADE PARA O AMOR CAPÍTULO V 57

contraditório 3, sendo apresentado 4, especialmente nos sonetos da ção 8 e à ideia de uma ordem moral, isto é, de uma ordem que
Renascença, como amor amargo (amare amaro). Aqui existem fontes regulamenta aquilo que provoca respeito e desrespeito; não corre
importantes para o ideário, que mais tarde será reformulado num por isso nenhum risco ao nível da semântica formulada (mesmo se
paradoxo lúdico. A ideia reside na unidade ambicionada, o proble- se tiver de aceitar que o interesse pelo amor vai beber a outras
ma na distinção entre amantes, que é também vivida e sofrida fontes). A teoria do amor concorda com as ideias que os próprios
enquanto distinção física. A atitude para com o amor sensual varia amantes dele têm, ou pelo menos afirma esta concordância.
de autor para autor; todavia, como base comum da co-inclusão do Tudo isto também funcionou como modelo no século XVII.
aspecto físico, permanece a meta: encontrar a salvação em formas Pelo menos desde a poesia trovadoresca da Idade Média e parale-
elevadas do amor. O amor sexual é transformado pelo amor espiri- lamente, da tradição da amicitia e da caritas, cultivou-se também a
tual 5. Deste modo, o amor está sempre sob o signo da intensifica- ideia de que no namoro se tratava de fazer com que a amada re-
ção através dos objectos supra-terrenos. Para a grande semântica conhecesse e estimulasse a auto-estima e o autodomínio do amante.
do amor medieval a distinção entre amor a Deus e amor à amada Aqui se encontram os pontos de partida de toda a reciprocidade
consiste na diferença que surge quando em ambos os casos se anun- social da semântica do amor. Para além disso, a semântica do amor
cia a unidade mística 6. O amor elevado apresenta por isso o seu ob- apoia-se, até ao século XVII, no conceito de «serviço», no qual estão
jecto de um modo no qual estão incluídos conteúdos religiosos incluídos o dever e o entusiasmo, conceito esse que pode de um
- e não apenas como algo que, em relação ao desejo próprio e au- modo geral ser transferido a um comportamento aristocrático.
tonomamente esclarecido, estabelece a distinção entre satisfação O conceito destina-se a representar a superação da auto-referen-
e ausência de satisfação -, pressupondo um conhecimento suficiente cialidade egoísta, sendo nessa medida uma ideia moral. Todavia, no
do objecto 7. Deste modo, o seu percurso é paralelo à hierarquiza- século XVII verificou-se uma modificação pelo menos num ponto
de vista determinante: a inacessibilidade da mulher adorada reside
3 Para as civilizações da Idade Média tardia veja-se, por exemplo, William na decisão da própria mulher. Durante a Idade Média estava garan-
George Dodd, Courtly love in Cbaucer and Gower, 1913, reimpressão, Gloucester tida pelas diferenças entre os estratos sociais 9. Em Itália, podia-
Mass., 1959, em especial p. 78 e segs.
-se, pelo menos assim parece à literatura francesa do século XVII,
4 Para uma visão global sobre as fontes consideradas individualmente bas-
tante hererógeneas, cf. Luigi Tonelli, L'amore nella poesia e nel pensiero deI pressupor um controlo externo eficaz 10. Conquistar tão-somente a
Rinascimento, Florença, 1933; John Charles Nelson, Renaissance theory of love: the
context ofGiordano Bruno's Eroici Furori, Nova Iorque, 1958. A título de exemplo
8 Cf. a este respeito Ética a Nicómaco, de Aristóteles, 1158b, solução para
veja-se: Amor mi sprona in un tempo et affrena, etc., no soneto CLXXVIII de Petrar-
amplas discussões. O tipo de afecto deve ser doseado de acordo com a posição
ca, citação segundo: Le rime de Francesco Petrarca (ed. Giuseppe Salvo Cozzo), Flo-
social, também e sobretudo quando a amizade ou o amor pressupõe ou gera em
rença, 1904, p. 181 e segs. Caso se leia também as elegias de Jean de Ia Fonraine
si mesmo uma igualdade recíproca. O afecro de um é por assim dizer mais
(Oeuvre, VoI. VIII, Paris, 1892, pp. 355-376) pouco se verificará de inédito.
valioso que o do outro. E com isto se exclui também o facto de o amor ser por
S Todavia, já se encontra também aquela reconversão da escada da perfeição,

típica do século XVII, cujo cume já não reside na salvação, mas antes na satis- si só o bastante para conquistar o amor.
9 Face a este aspecto relativo ao amour-lointain, cf. Erich Kõhler, Esprit und
fação sensual do amor como demonstração da última vontade. Veja-se a este
arkadische Freibeit, Frankfurt, 1966, p. 86 e segs. E sobretudo a análise socio-
respeito Gorra, op. cit., p. 219 e segs.; Nelson, op. cit., p. 52.
lógica diferenciadora da autoria de Herbert Moller, The social causation of tbe
6 Peter Dronke vê nisso - e não nos topoi habituais do amor cortês - o que
courtly love complex, «Cornparative Studies in Society and History», I, (1959),
de autenticamente novo reside na contribuição medieval para a semântica do
amor. Cf. Medievallatin and tbe rise of european love lyric, 2 vols., 2.' ed., Oxford, pp. 137-163.
10 E os Franceses registam completamente a desvantagem desta disposição:
1968.
uma vez afastado ou iludido o controlo, já não é preciso contar com uma
7 Sob este ponto de vista, encontra-se um detalhe característico no romance
oposição interior por parte da dama. Em França, é exactarnenre isto que inte-
de Madame de La Fayetre, Princesse de Clêues. O amor começa com uma dança,
ressa. Exemplo de uma tal comparação, frequentemente realizada, veja-se por
admirada por todos os espectadores; dança essa que atinge uma harmonia
perfeita, embora os parceiros não se conheçam. exemplo Saint-Evremond, Sur les comédies, citado de Oeuores en Prose, III VoI.,
58 LIBERDADE PARA O AMOR CAP[TULO V 59

atenção da amada, encontrar-se com ela, lançar-lhe olhares é já de As filhas solteiras estão protegidas bastante eficazmente contra a
si difícil 11.Em França, pelo contrário, pugna-se por uma posição sedução. Seduzi-Ias haveria de contribuir em muito pouco para a
social da mulher mais livre e pela sua possibilidade de decidir au- gloire do herói. Com o casamento começa a liberdade 15.Para a evo-
tonomamente. Daqui resulta a distinção entre «précieuses» e «coquet- lução da semântica do amor, tal significa sobretudo a exclusão de
tes»: umas dizem sempre não, as outras sempre sim. Assim sendo, um testemunho importante do amor: a disponibilidade para o casa-
as preciosas funcionam com o objectivo mais digno da ambição 12. mento. Trata-se de pessoas que já não dispõem de tal prerroga-
Todavia pressupõe-se uma liberdade de decisão: «La liberté est de tiva, já não podem casar e que por isso mesmo têm de atormentar
l'essence de l'amour 13.»Se assim acontece, também o amante pode a sua fantasia para lhe extorquir as formas através das quais podem
reivindicar a autodeterminação do seu próprio desejo, deixa de demonstrar ou provar o seu amor, quer ele seja sincero ou não.
necessitar de outra justificação que não seja ele mesmo. A perfeição Neste sentido, é em meados do século XVII que a velha e re-
imanente é retirada às pessoas que se ama, o culto da perfeição de- quintada situação da ética amorosa se torna extraordinariamente
saparecerá gradualmente, a figuração do cavaliere servente perderá a complexa. São inúmeras as situações que se sobrepõem umas às
credibilidade. E o próprio desejo reveste o seu objecto da aparência outras, donde resulta uma reformulação do código semântico, res-
bela que maior prazer lhe suscitou. A liberdade da escolha amorosa peitante ao amour passion 16.Nos decénios decisivos 17ainda se con-
prevalece através da ajuda de efeitos ilusórios, o que por seu lado sidera possível e já também problemático controlar o amor passio-
se torna também visível. É apenas a esta situação inicial que se deve nal. Torna-se possível apenas enquanto autocontrolo (moral) e no
a necessidade de um código, que não só coloca à disposição formas acto da entrega ao quadro de princípios próprios do amar. Deste
para glorificar os próprios sentimentos como também está vocacio- modo, verifica-se uma deslocação deste quadro de princípios para o
nado para regulamentar a comunicação entre dois parceiros. A dife- centro da discussão. Em especial no seio da concepção de vida das
renciação plena de uma «contingência dupla», enquanto liberdade preciosas verifica-se uma situação arnbivalente e de delimitação
recíproca para optar a favor ou contra o abandono à relação amo- improvável: por um lado mestria, por outro ridículo 18.Uma pers-
rosa, estimula o desenvolvimento de uma semântica especial, à qual
nos podemos ater alternativamente, sempre que as relações se tor- I ~ Assim se formula, com toda a clareza, num conselho de uma noiva em
nem inseguras 14. relação ao uso desta liberdade e à atracção a susci tar nos pretendentes que a isso
Nunca é demais acentuar que a aqui aludida liberdade de estão associados, em François Hedelin, Abbé d'Aubignac, Les conseils d'Ariste à
escolha diz respeito a pessoas casadas e a relações extramatrimoniais. Celimêne sur les moyens de conseruer sa réputation, Paris, 1666.
16 Retornamos a um ponto de vista semelhante ao tratar da pré-história do
amor romântico. Também aqui se parte da inovação de uma situação, na qual
Paris, 1966, pp. 42-60. Uma espanhola observa aí uma galanteria francesa: «que a semântica está «sobredeterminada» através de uma reunião conjunta de
d'esprit mal employé ... a quoi bon tous ces beaux discours, quand ils sont estímulos heterógeneos. CE. p. 170 e segs.
ensernble». CE. para além disso Pierre Daniel Huet, Traité de I'origine des romans, 17 Louise K. Horowitz, Love and language: a study 01 the classical frencb moralist
Paris, 1670 (reimpressão), Esrugarda, 1966, p. 91 e segs. writers, Columbus Ohio, 1977, cingindo-se ainda mais aos anos de 1660-1680,
11 Vejam-se as instruções forneci das a este respeito por Francesco Sansovino, o que com algumas imprecisões periféricas abarca na realidade o essencial. Com
Ragionamento d'amore, 1545, citado da edição organizada por Giuseppe Zonra, vista a uma transformação simultânea do interesse pelo romance, cf também
Trattati d'amore dei cinquecento, Bari, 1912, pp. 151-184 (170 e segs.). Max Freiherr von Waldberg, Der empfindsame Roman in Frankreich, Vol. I, Estras-
12 Uma das questions d'amour em Jaulnay, op. cit., p. 42, aponta para a dife- burgo, 1906, p. 1 e segs.
renciação seguinte: «de seduire une prude précieuse ou de fixer une coquetre» I~ A este respeito e especialmente no que se relaciona com o movimento das
(prude significa aqui prudente). preciosas, 1650-1660, Daniel Mornet, Histoire de Ia littérature [rançaise classique
13 Jaulnay, op. cit., p. 68. 1660-1700: ses caractêres veritables, ses aspects inconnus, Paris, 1940, p. 25 e segs.
14 Já verificámos anteriormente, p. 34 e segs., que tal coincide com um Uma boa apresentação em contraste com o pano de fundo constituído pela
aspecto geral de desenvolvimento dos meios de comunicação simbolicamente periclirante concepção moralista da corte é também fornecida por Édouard de
generalizados, auto-referencialmente sistematizados. Barthelérni, Les amis de Ia Marquise de Sablé, Paris, 1865, introdução, pp. 1-72.
60 LIBERDADE PARA O AMOR CAPÍTULO V 61

picácia psicológica infiltra-se gradualmente nas formas linguísticas terísticas do parceiro. E a substituí-Ia por uma orientação que
mais rebuscadas, superlativas e construídas «involuntariarnenre. 19, atende ao seu amor, no qual, precisamente porque foi concedido
sendo apenas com ela que se pode alcançar e avaliar a liberdade de livremente, o amado se pode reencontrar. Mas por muito antiga
decisão. A inreracção entre comunicação de salão e imprensa dissi- que seja a ideia - segundo a qual apenas o amor pode gerar o amor
pa igualmente o carácter inequívoco da orientação por normas. _, torna-se muito mais difícil renunciar à pesquisa das carac-
Máximas que se verificam na comunicação galante e brejeira e que terísticas do outro que à paradoxização dos ideais; tal renúncia não
são convincentes, actuam, uma vez impressas, como prescrições, das se pode atribuir ao comportamento efectivo, não sendo todavia
quais há que se distanciar de novo, para não sugerir subalternidade. ainda registada no código desta época 21. Nesta questão, é típico
Através de novos impulsos a retórica atinge mais uma vez um lugar encontrar-se ou contradições claras ou considerações mediadoras.
de eleição, sendo igualmente logo ultrapassada pelo livro impresso: Na versão da lenda de Amor e Psyche, que La Fontaine elaborou,
o resultado é um pedantismo insuportável, cheio de palavras atribui-se ao amor o facto de ter sobrevivido a certas imperfeições,
pomposas e troça. Neste caso, dá-se uma desagregação da forma, não demasiadamente graves, da virtude (a curiosidade de Psyche) e
em que toda a semântica cuidada foi redigida: a forma da mais até às imperfeições respeitantes à beleza (enegrecirnento passagei-
elevada perfeição. ro), porque o amor se torna por isso mais independente do tempo
Já a reivindicação da liberdade deixou de poder ser controlável e do acaso 22. Le Boulanger 23 acentua que o amor só se pode con-
sob esta forma, o mesmo acontecendo, o que é mais importante, quistar através do amor. Apenas o amor recompensa o amor; mas
com a concessão de liberdade. Caso se conceda ao amado/à amada logo acrescenta: não basta apenas o amor, há que contar também
a liberdade de decidir tendo em conta a sua própria opinião ou com a perfeição do carácter dos amantes e uma das cinco causas
sentimento, o que vai acontecer, então os ideais provocarão uma desta perfeição é novamente o próprio amor enquanto passion domi-
ruprura da regulamentação. Em contrapartida, a possibilidade de nante 24. O amar ainda não só não é algo de autónomo, ainda não
intensificação transferir-se-á para a imaginação 20. Na imaginação se pode abandonar a si próprio, como também tem ainda de con-
dispõe-se da liberdade do outro, confundindo-se esta com os desejos tribuir para a realização de valores sociais normais, próprios da aris-
do próprio, propagando-se a contingência dupla para o metaní- tocracia (em Le Boulanger: a ambição da g/oire). Somente o século
vel que atribui ao ego do próprio e do outro aquilo que o ego do pró- XIX encontra a segurança que lhe permite a formulação: La beauté

prio projecta para ambos. Mas como se chega à imaginação, como detroné par /'amour 25.
obtém ela o seu espaço e sobretudo: como consegue o tempo? Consegue-se compreender bastante bem a viragem para o ima-
A resposta, como mostraremos mais detalhadamente, coincide com ginário aqui introduzido, através de um exemplo particular. Na
a colocação ao centro - e adiamento respectivo - da última von-
21 Veja-se, a título de exemplo, o tratamento exaustivo das estratégias por
tade. A figuração ideal é substituída pela temporalização da semân-
D'Alquié, La scienceet l'école des amans: ou nouvel/e découvertedes moyens infal/ibles
tica do amor.
de triomfer en amour, 2.' ed., Amesterdão, 1679, p. 49 e segs., 64 e segs. A isto
A inclusão da liberdade do outro no reflexo da relação social corresponde por outro lado o ponto de vista: não basta apenas amar para se cons-
obrigará mais tarde a minar uma orientação que atende às carac- quisrar o amor, é preciso também dançar a compasso, trazer presentes, etc. CE.
René Bary, L'esprit de cour ou les conversationsgalantes, Paris, 1662, p. 233 e segs.
22 «Courage, Messiers les arnants!» Comenta um dos ouvintes da história:
19 Cf. Interaktion in Oberscbicbten, in Gesel/schaftsstruktur und Semantik, op. cit.,
VaI. I, pp. 72-161 (86 e segs. e 96 e segs.). Gelaste (Moliére?). Cf. Les amours de Psiché et de Cupidon, Paris, 1669, citado da
20 Afirma-se numa formulação tardia, surgida no final do século XVIII, edição in: Oeuvre de jean de La Fontaine, VoI. III, Paris, 1892, p. 224 e segs.
23 Morale galante ou l'art de bien aimer, Paris, 1669, VoI. I, p. 101 e segs.
relativa a este deslocamento: «il semble que l'amour ne cherche pas les perfec-
tions réelles; on dirait qu'il les craint. Il n'airne que celles qu'il crée, qu'il 240p. cit., p. 119.
21 Assim o título do capítulo XVIII em Stendhal, De l'amour (882), citado
suppose- (Chamfort, Maximes et pensées, citado das OeuvresCompletes, VaI. I, Paris,
1824, reimpressão, Genebra, 1968, pp. 337-449 (416). da edição de Henri Marrineau, Paris, 1959, p. 41.
62 LIBERDADE PARA O AMOR CAPiTULO V 63

Idade Média, entendia-se ainda sob uma perspectiva totalmente to formulário retórico e as conversas de salão versando temas amo-
médica a noção, vinda da Antiguidade, segundo a qual a paixão rosos, em especial o jogo de sociedade «questions d'amour» e respec-
amorosa consistia numa espécie de doença, tendo-se desenvolvido tiva formulação literária 30. O tribunal do amor (cour d'amour) e a
uma sintomatologia e proposto várias terapias (o coito, por exem- escola do amor (école d' amour) valem como metáforas através das
plo). A sexualidade era entendida enquanto comportamento normal quais se exprime as capacidades de criticar e ensinar, inerentes ao
do corpo, em contrapartida a passion era tida como doença 26. No comportamento em situações amorosas 31. O romance é mais fre-
século XVII apenas ficou a metáfora, o estilo ornamentado e quentemente uma apresentação de galanterias do que uma narrati-
retórica; mas não é por isso que se vai ao médico. Aliás, pouca va plausível 32. Pane-se do princípio que noções e modos de com-
correspondência existiria com a pressuposta liberdade de escolha de portamento correctos são passíveis de codificação e o livro impresso
amores, caso se quisesse tentar obter a mulher como se obtém um parece consolidar tal pressuposto. A receptologia do amor é redigi-
medicamento prescrito. A figuração continua - mas apenas como da de modo a ser (Ornada como certa a existência de meios de
metáfora percebida por ambos os lados.
Impõe-se a liberdade, mas seria uma falsa conclusão deduzir agradece ou possui outros motivos que o levam a escrever cartas. Cf. por exemplo
aquela da individualidade 27. Tal como é já perceptível na contra- ]ean Pouget de Ia Serre, Le secrétaire de Ia cour ou Ia mantere d'écrire selon le temps,
dição-tipo entre preciosas e coquettes, a liberdade interessa em pri- reedição, Lião, 1646; Boursault, Lettres de respect, d'obligation et d'amour, Paris,
1669 (aqui se incluem as cartas a/de Babet, dignas de nota). Importante também
meiro lugar enquanto localização de tentativas e resistências; en-
Raymond Labêgue, La sensibilité dans les lettres d'amour au XVII' siêcle, «Cahiers
quanto liberdade tem, por assim dizer, apenas uma dimensão. Isto de l'Association Internationale des Études Françaises», 11 (1959), pp. 77-86,
facilita o início de um novo desenvolvimento semântico e simplifica onde se destaca a tese segundo a qual a autenticidade da expressão do sentimen-
a diferenciação plena. Assim sendo, é possível indicar fontes res- to e com isso também a percepção pública desta questão aumenram na medida
pectivamente impessoais do desenvolvimento das ideias, nas quais em que nos últimos trinta anos do século XVII se publicam também cartas de
as pessoas, independentemente do seu sexo, surgem como per- amor escritas por mulheres.
30 Cf. C. Rouben, Un jeu de société au grand siêcle: les «questions» et les maximes
mutáveis. É o caso do romance pastoril, em especial do enorme d'amour, «XVIIe Siêcle», 97 (1972), pp. 85-104. Veja-se também René Bray, La
romance de Astrée 28, a carta amorosa copiada 29 e redigida enquan- préciosité et les précieux, Paris, 1960, p. 148 e segs. Relativamente ao desenvolvi-
mento em Inglaterra, Wilhelm P. ]. Gauger, Gescblecbter, Liebe und Ehe in der
Auffassung von Londoner Zeitschriften um 1700, Diss., Berlim, 1965, p. 49 e segs.:
26 Cf. ainda ]acques Ferrand, Traité de l'essence et guérison de l'amour, Toulouse, as questões são aqui colocadas a uma revista e respondidas através da redacção,
1610; veja-se também Aldo D. Scaglione, Nature and loue in the late Middle Ages, atendendo a um público que (tal como se comprende) se interessa de um modo
Berkeley, 1963, p. 60 e segs. geral por isso. Através disto, elimina-se desde logo a forma de perguntar e
27 A falta do respectivo esforço, para caracterizar individualmenre os aman- responder, com base no contexto da diferenciação entre os estratos sociais de
tes ao longo da literatura romanesca do século XVII, salta frequenremenre à origem.
vista. Cf. por exemplo Egon Kohn, Gesellschaftsideale und Gesellschaftsroman des 31 Frequentemente inserido nos romances. Veja-se por exemplo Du Péret,
17. Jahrhunderts, Berlim, 1921, p. 107 e segs. La cour d'amour ou les bergers galans, 2 vols., Paris, 1667 (em especial Vol. I,
28 Cf. ]acques Ehrmann, Un paradis désespéré: l'amour et l'illusion dans p. 31 e segs.); anónimo, L'escole d'amour ou les héros docteurs, 2.' ed., Grenoble,
«L'Astrée», Paris, 1963. Relativamenre à palidez na caracterização das persona- 1666, em especial os textos doutrinários, p. 90 e segs. Relativamente à tradição
gens nos romances da época, cf. também Sévo Kévorkian, Le tbême de l'amour dans medieval, comparar Pio Rajna, Le corti d'amore, Milão, 1890; Paul Rémy, Les
l'oeuore romanesque de Gomberoille, Paris, 1972, p. 23 e segs. cours d'amour: Légende et realité, «Revue de l'Université de Bruxelles», 7 (1954-
29 Cf. Mornet, op. cit., p. 318 e segs.; Bernard Bray, L'art de Ia lettre amou- -55), pp. 179-197; Theodor Straub, Die Gründung des Pariser Minnehofs von 1400,
reuse: des manuels aux romans (1550-1700), Haia-Paris, 1967. Neste pequeno livro, «Zeitschrifr für romanische Philologie», 77 (1961), pp. 1-14; ]acques Lafitre-
modelo do género epistolar, salta especialmenre à vista o facto de a formulação -Houssat, Troubadours et cours d'amour, 4.' ed., Paris, 1971.
cuidada e a acumulação de cumprimenros se apresenrar em primeiro plano para 32 Muito típico a este respeito: ]ean Regnaulr de Segrais, Les nouvelles fran-
cartas do mesmo género e também de entre elas cartas de amor. O amanre deixa çoises ou les divertissements de Ia princesse Aurelie, Paris, 1657 (citado da reimpressão,
inspirar-se apenas através de Outros modelos enquanro aquele que se recomenda, Genebra, 1981).
64 LIBERDADE PARA O AMOR CAPÍTULO V 65

sedução seguros, enquanto se pressupõe a liberdade para dizer sim pessoas cuja actividade principal parece ser essa mesmo 36. Eviden-
ou não. O que se teve de ceder em individualidade é dissimulado temente que o sigilo amoroso é uma forma tanto óbvia quanto
pelo exagero retórico e deste modo re-uniformizado. falhada, tendo em vista a diferenciação plena socialmente válida.
Em todas estas formas verifica-se estar em movimento um A solução do problema não reside ao nível da interacção, mas antes
processo de descoberta, que se dirige ao quadro de princípios da no nível semântico do código amoroso.
arte de amar e que por isso mesmo se interessa não pelo que é in- Aqui, temos de contar em primeiro lugar com as ideias morais
dividual, mas pelo que é típico 33. Os romances introduzem perso- e as máximas de comportamento, que estão geralmente previstas
nagens com nome e estatuto social - o bastante para a caracteri- para o comportamento dos membros de um determinado estrato
zação. Assim sendo, as suas acções ficam submetidas a um juízo social. Este pano de fundo formado por uma sociabilidade vincula-
baseado em critérios universais. Discute-se por exemplo se, na da à especificidade de estratos sociais e por uma segurança assim
situação da Princesse de Cléues, foi ou não certa a célebre confissão 34. proporcionada, permite e comporta igualmente a diferenciação ple-
O individual está apenas presente enquanto caso, em que o geral se na das relações amorosas e com isso o acontecer referencial com
exemplifica. Por isso mesmo pode-se copiar frases e cumprimentos vista à diferenciação plena do código. Em Astrée surge como ócio.
sem ter de se temer que o destinatário sinta tal como falta de jeito Também mais tarde, quer a nobreza quer sobretudo a riqueza
ou como falta de tacto. E o individual está presente na conversação, valem quase rudo como pressupostos indispensáveis ao amor 37.
desde que se discutam temas que jamais deixem de atender aos Quando muito é possível compensá-los com muito esforço através
presentes e em especial temas amorosos nos quais as damas presen- da virrude, porém muito dificilmente através da idiossincrasia das
tes jamais deixarão de ser incluídas 35. Desaprova-se a falta de características pessoais. Nesta medida, o modelo de comportamento
consideração para com os presentes, mas isto mesmo significa amoroso está bem fixo às charneiras da diferenciação social estrati-
também que ninguém pode surgir ou ser tratado individualmente, ficada. Porém, surgem igualmente, ao nível da formulação semân-
por não permitir aos outros o usufruto dos seus direitos. tica, características que superam estes condicionalismos, nomeada-
A diferenciação plena de uma semântica respeitante ao amor
tem o seu fundamento natural na eliminação da interacção entre os
36 A fim de consolidar este ponto de vista cf. as máximas do conde Bussy
amantes. O código desenvolve-se atendendo a este facto, no entan- Rabutin para o caso segundo o qual a amada cai em desgraça:
to, a eliminação do acontecer interactivo mantém a sua ambivalên- «Vous me rnontrez en vain que vous êres innocente.
cia própria. Tal como acontece na Idade Média, os amantes são Si le public n'en voit autanr,
aconselhados a respeitarem o sigilo, mas acabam por ser sempre Je ne puis pas être content..
(citação de Maximes d'amour, in: Bussy Rabutin, Histoire amoureuse des Caules,
observados; tornam-se objecto de conversa e especialmente para
Paris, 1856, reimpressão, Nendeln/Liechtensrein, 1972, Vol. I, pp. 347-398,
392.
33 Importantes reservas, que seriam de levar em consideração, resultam do 37 Cf. Recueil de piêces galantes en prose et en vers de Madame La Comtesse de La
próprio quadro de circunstâncias; haveremos de voltar a este aspecto. Suze et de Monsieur Pellisson, 4 vols., reimpressão, Paris, 1684, Vol. I, p. 267:
34 Pontos de vista sobre esta discussão são apresentados por Paolo Russo, «L'amour triomphe avec plus d'éclat dans un coeur qui a éré formé d'un sang
La polemica sulla «Princesse de Clêoes» , «Belgafor», 16 (1961), pp. 555-602; 17 noble, et Ia noblesse donne mille avantages aux arnants.» Relativamente à
(1962), pp. 271-289, 385-404.
imprescindibilidade da riqueza, veja-se também François de Caillêres, La logique
35 Uma boa impressão a este respeito é forneci da por René Bary, L'esprit de
des amans ou l'amoar logicien, Paris, 1668, p. 6 e segs., 22 e segs. A utilização da
cour, op. cit.; do mesmo autor, Journal de Conversation, Paris, 1673. Cf. ainda, riqueza com vista ao incremento do amor pertence já, pelo contrário, a essas
escrito pela mão de um observador participante: Michel de Pure, La pretieuse ou discordâncias próprias do código. Por um lado é válido, assim se lê em René
le mystêre des ruelles, 4 Vols., Paris, 1656-58, citado da edição de Émil Magne, Bary, op. cito (1763), p. 178, sem margem para dúvida: «Poinr d'argent, point
Paris, 1938-39; ou também sob a forma de uma história enquadradora: François de Dorirnene, que point d'argenr point de Suisse.» Por outro lado: «Il faut êrre
Hedelin, Abbé d'Aubignac, Histoire galante et enjouée, Paris, 1673. Veja-se tam- dupe ou allemand pour gagner les femmes par Ia dépense- (L.C.D.M. = Cheva-
bém Georges Mongrédien, Madeleine de Scudéry et son salon, Paris, 1946. lier de Mailly, Les disgrâces des amants, Paris, 1690, p. 64).
66 LIBERDADE PARA O AMOR (,7
CAPÍTULO V

mente paradoxos, ilusões conscientemente forjadas, fórmulas reple- Numa culrura que valoriza a racionalidade e que entende a
tas de possibilidades interpretativas contraditórias, ambivalências lógica como algo de saudável, a motivação paradoxal é entendida
estratégicas, em suma, que possibilitam a transição para uma es- sob um ponto de vista patológico - a grande excepção: Pascal 39.
trutura social diferente 38. Por muito que pareça surpreendente, o Segundo uma concepção muito difundida actualmente, tal motiva-
tornar paradoxal manifesta-se, como mostraremos seguidamente, ção ocasiona a esquizofrenia 40 ou pelo menos uma repetição com-
enquanto técnica de uma energia sistematizadora forte; e por siste- pulsiva de um comportamento patológico 41. Por outro lado, isso é
matização entende-se a forma na qual pode ser alcançada uma também um salvo-conduto para a legitimação de qualquer compor-
estabilidade para as exigências inverosímeis de comportamento. tamento. Num certo sentido, a comunicação paradoxal age como
Antes de entrarmos em detalhes, apresentaremos uma reflexão destruidora do sistema social. A psiquiatria remeteu para o primei-
subsidiária breve sobre a codificação paradoxal. A função do código ro resultado, enquanto, por exemplo, a discussão do conceito de
dos meios de comunicação simbolicamente generalizados consiste amor romântico remeteu para o outro. Não chegará a surpreender
de um modo geral em garantir às exigências improváveis uma os sociólogos o factu de a transformação do inverosímil correr tais
suficiente probabilidade de aceitação. No final, é sempre a este riscos. A questão consiste apenas em saber se podem fornecer de
paradoxo socioestrutural que se dá expressão como um paradoxo um modo mais exacto as condições que conduzem à patologia. Caso
transposto para o nível semântico e que reside na própria coisa (na coloquemos esta questão a todos os meios de comunicação simbo-
essência da religião, do conhecimento, do amor). A intensificação licamente generalizados, reconhecer-se-á, em primeiro lugar, que é
da descoberta dos paradoxos fundamentais, que fornecem o motivo possível em muitos casos destacar os meios do processo de comu-
para diferenciar plenamente os meios de comunicação, conduz a nicação 42. As possibilidades de indecisão de Gõdel não têm prati-
paradoxos já formulados, que por um lado encobrem o paradoxo camente qualquer significado para a investigação. O mesmo acon-
principal e por outro lado o tornam operacional para campos deter- tece com os paradoxos entre senhor e servo e com a prática da
minados da comunicação. comunicação política bem ou mal sucedida 43. No que respeita à
Paradoxização não significa de modo algum incapacidade para economia, podemos reconhecer com clareza a derivação em Adam
agir, nem mesmo necessidade de selecção e de decisão. Os amantes Smith: o paradoxo universal e moral do egoísmo altruísta dissipa-
não são sequer confrontados com padrões - «forced cboice» ou com -se de tal modo, não na teoria da moral, mas na teoria económica,
alternativas incompatíveis. O paradoxo refere-se antes ao nível das que ele não irrita por mais tempo o comportamento. É exactamente
expectativas que se tem de depositar no parceiro durante a relação
íntima e o amor simboliza o facto de todavia ser possível a satisfa-
ção de todas as expectativas. Através da paradoxização (e jamais 39 Cf. Hugo Friedrich, Pasca/s paradox, «Zeitschrift für Romanische Philo-
através da idealização) verifica-se a filtragem de todas as expecta- logie», 56 (936), pp. 322-370.
40 Cf. Gregory Bateson/Don D. Jackson/Jay HaleylJohn Weakland, Toward
tivas normais: prepara-se igualmente a cena, na qual o amor pode
surgir. a theory 01 Schizopbrenia, «Behavioural Science», I (1956), pp. 251-264.
4\ Cf. Gregory Bateson, The Cybernetics 01 the «self»: toward a theory 01
aicoholism, «Psychiarry», 34 (1971), pp. 1-18, reimpressão, in, do mesmo autor,
Steps to an ecology01 mind, Nova lorque, 1971.
38 Relativamente à documentação, consulte-se sobretudo Max Freiherr von 42 Tal é abrangido através de uma formulação como: The double bind: Schi-
Waldberg, Die galante Lyrik: Beitrá"gezu ibrer Geschichte und Charakteristik, Estras- zopbrenia and Gõde! - do título de um capítulo em Anthony Wilden, System and
burgo, 1885, p. 44 e segs.; Henry T. Finck, Romantische Liebe und persõnlicbe structure: Essays in communication and exchange, Londres, 1972, p. 110.
Scbiinbeit: Entwicklung, ursiichliche Zusammenhange, geschichtliche und nationale 43 Aqui, parece clara a coincidência da transição das constelações duplas
Eigenbeiten, trad. alemã, 2.' ed., Breslau, 1894, VoI. I, p. 339 e segs.; Vilhelm para as triplas com a viabilidade de uma auto-referência cíclica do progresso
Aubert, A note on loue, in, do mesmo autor, The hidden society, Torowa N. ]., decisivo do desenvolvimento. Cf. Niklas Luhmann, Potitiscbe Tbeorie im Wohl-
1965, p. 201 e segs.
[abrstaat, Munique, 1981.
68 LIBERDADE PARA O AMOR CAPITULO V 69

a busca tranquila dos objectivos próprios e o efeito de ordem auto- do valor da intensificção da falsidade. Eram todavia formas dema-
maticamente daí decorrente que é celebrada enquanto ordem resul- siado exigentes (e em todos os casos, apenas especificamente
tante da desordem. aplicáveis de acordo com o estrato social); o que se adoptou parece-
Esta forma de tratar a questão: o isolamento dos níveis de -se antes com uma espécie de banalização do paradoxo. A semântica
interacção por oposição ao paradoxo e com isto também o isolamen- do amor pode fornecer as palavras e os sentimentos a qualquer um
to da comunicação corrente por oposição ao paradoxo existente no que queira evocá-Ios. Esta liberta comportamentos flexíveis, cuja
reconhecimento de uma constituição paradoxal do sistema - esta consistência não se fica a dever ao código à luz do qual se orienta,
solução não é aplicável ao caso do amor; pois o amor regulamenta mas antes, se é assim que acontece, ao respeito para com o compa-
a comunicação íntima, e esta não elabora qualquer sistema exterior nheiro e à história do sistema de interacção. Este modelo-solução
aos níveis de interacção. Aqui não se verifica por isso aquela distin- seria suficiente, se confirmasse aquilo de que hoje se suspeita na
ção entre macrosistema paradoxal e interacção regulamentada, que maioria dos casos: é exactamente sob as condições actuais de vida,
favorece a ilusão segundo a qual a sociedade moderna seria uma que o ser humano apresenta de tal modo uma necessidade espon-
sociedade especificamente racional (Max Weber). A constituição tânea de relações pessoais e comunicação íntima, que já não existem
paradoxal tem de ser preservada, inclusive aplicada expressiva- quaisquer grandes obstáculos da inverosimilhança para ultrapassar.
mente durante a comunicação íntima. Neste momento falha a fuga
rumo ao reino de uma racional idade aparente.
As razões respectivas tornam-se claras, quando se pergunta
quais os problemas estruturais específicos da comunicação íntima
que são resolúveis através da paradoxização. As razões surgem
diversamente na sequência de uma decisão livre. Isto exclui a
compreensão das regras, de modo a que o comportamento seja
directarnenre condicionado por elas. Pelo contrário, caso se aplique
o paradoxo ao código, o comportamento orientado segundo este
último será representado como vinculado ao sentido, dependente e
ao mesmo tempo livre. Por outro lado, a forma do paradoxo pro-
porciona a possibilidade não de solucionar, mas de dissipar as ques-
tões referentes à atribuição causal. Não podem por isso atribuir-se
inequivocamente deveres e responsabilidades (como acontece na
literatura contemporânea, no caso da família e da economia domés-
tica). Por intimidade também não se entende uma relação de
permuta. É nos ourros e no próprio que residem as razões que
explicam tudo o que acontece. E sempre que a atribuição se dirige
ao ego ou ao alter enquanto tais, considera-se já uma infracção ao
código. No próximo capítulo voltaremos a este assunto, tendo em
conta a abolição da distinção entre passivo e activo.
Mas como se tornará o paradoxo numa relação semanticamente
suportável? Não que faltem sugestivas hipóteses de solução. Os clás-
sicos, como veremos seguidamente, propuseram a racionalidade do
culto da irracionalidade; os românticos o conceito de ironia e a ideia
CAPÍTULO VI

Retórica do excesso e experiência da instabilidade

Não é uma invenção do século XVII revestir afirmações sobre o


amor com formas de paradoxo, mas antes da tradição clássica e
medieval 1. Esta tradição deu origem a uma casuística do amor, uma
vez que os paradoxos se deixam resolver 2 apenas casualmente e
através da acção dos amantes. A proximidade do amor baseia-se
assim na forma narrativa. Constitui o tema do romance por exce-
lência. Ao nível das imagens, das fórmulas e metáforas, também
aqui, como de costume, é difícil estipular o que é realmente
«novo» 3. Caso tomemos todavia o código como um todo, verifi-
caremos então claramente uma espécie de mudança tendencial. En-
quanto que na Idade Média se observou uma unidade mística
(unia), estendendo-se a todas as contradições semânticas, o século
XVII começa assim a aplicar a si próprio o paradoxo, a apresentá-
-10 em função de si próprio e a encarar exactamente aqui a unidade
do código do amor. O paradoxo torna-se fórmula conclusiva do
código e através dele conquista-se: a legitimação da instabilidade e
o refinamento psicológico. A dissolução «casuística» do paradoxo
desloca-se do exemplar para o individual e isto significa em contra-
partida que o paradoxo tem de ser esttuturado de outro modo. No
lugar da relação paradoxal, própria da distância verificada na corte
e no lugar da paixão, que tudo supera, surgem, no século XVII, pre-
dominantemente, problemas de tempo.

I crp. 44 e segs.
2 Este contexto referente ao paradoxo e à casuística é também anotado por
Use Nolting-Hauff, Die Stellung der Liebeskasuistik im bifiscben Roman, Heidel-
berga, 1959, p. 15.
3 A mesma questão, coloca-a Perer Dronke à Idade Média, Medieval latin
and the rise of tbe european looe-Iyric, Oxford, 1965, Vol. I, p. XVII, 2, 50 e segs.,
57 e passim.
CAPÍTULO VI 73
72 RETÓRICA DO EXCESSO
social que ainda se encontra seguro do seu estatuto; mas quando
É o próprio facto de colocar novamente o paradoxo no centro se consegue sobretudo levar a sério os paradoxos e as ilusões, for-
que se deixa reconhecer na comparação do conto de La Fontaine mulando-os enquanto código, estabelecer-se-á a nível semântico,
«Les amours de Psyché et de Cupidon» 4 com o original clássico também através disto, uma estabilidade do instável que poderá
(Apuleio): o oráculo, no início do conto, é transformado pelas usuais perdurar para além dos condicionalismos iniciais. A estrutura
codificações de sentido em temas que suscitam o paradoxo do amor. temática do amour passion contém material riquíssimo, com o qual
a tema central de Hybris é re-estilizado pelo desejo de realização se consegue documentar pormenorizadamente este efeito de trans-
do último dos desejos ainda por satisfazer. A recusa (provisória) da formação. Ela revela igualmente de que modo esta transformação
satisfação deste desejo não resulta da numinosidade do divino, congrega numa unidade o código do meio de comunicação amor.
sendo antes uma mera disposição e com isso também um momento Seguidamente vamos destacar os momentos mais importantes
do próprio acontecer amoroso. a conto é reformulado ainda que com vista a documentar este contexto quer histórica quer rernati-
parcialmente, e tanto quanto deriva do tema, no sentido de uma camente. É no que diz respeito ao conceito de passion que se deci-
psicologia da evolução do amor e o paradoxo do oráculo (um mons- dem as questões, talvez mais importantes, inerentes à diferenciação
trum causador de uma felicidade enorme; trajo de luto no caminho plena e tratamento especial do amor, bem como à ordem interna de
do amor) torna-se lei da natureza, valorizadora do amor. um código correspondente. Este conceito tem no essencial a chance
É exactamente este tema: amor que se presta principalmente a de traçar uma linha que o demarca das responsabilidades sociais e
apresentar esta mudança de postura face ao paradoxo, pois presta- morais em situações amorosas. Passion significa primitivamente um
-se a declarar estável o instável. Hylas em Astrée (vinculado ainda estado de alma em que o sujeito sofre passivamente e não age
à união mística) ou D. Juan constituem os modelos de comporta- activamente. Em si mesmo, tal não exclui ainda uma obrigação de
mento correspondente - mais profundamente enraizados que os dar contas face a um agir decorrente da passion. Passion não funciona
admitidos por uma moralização posterior. A instabilidade transfor- como desculpa, quando um caçador atinge uma vaca. A situação
ma-se então em necessidade. Mesmo quando neste caso nem sem- modifica-se todavia quando a passion é reconhecida como uma es-
pre se pode amar o mesmo objecto, deve-se acreditar que se amará pécie de instituição e é tida como condição para a formação de sis-
sempre 5. Mesmo em casos particulares o amante deve agir, salvo temas sociais. Quando se espera, se exige mesmo, que o sujeito
opinião mais avalizada, à luz da ficção de duração: «Il doit agir fique à mercê de uma paixão, contra a qual nada pode fazer antes
comme si son amour ne pouvait jamais finir 6.» E em relação à de mergulhar numa relação amorosa profunda, então utiliza-se a
questão acerca da duração, responder-se-á com o estilo das questions/ semântica da paixão para esconder liberdades institucionalizadas,
/maximes d'amour: «Il n'y en a que dans I'idée et dans les promes- isto é, para as proteger e ocultar. Passion torna-se liberdade de acção,
ses des Amans 7.» Isto mesmo pode ser formulado por um estrato que não carece de ser justificada enquanto tal nem em relação aos
seus efeitos. A actividade é camuflada de passividade, a liberdade
de coacção 8. A semântica da passividade é explorada retoricamente
4 Paris, 1669, citado da edição in: Oeuore deJean de La Fontaine, Vol. VIII,
para exortar a mulher à realização dos desejos: afinal foi a sua beleza
Paris, 1892, pp. 1-234.
5 Bussy Raburin, Histoire amoureuse de France, s.!., s. d., p. 242. Cf. também que provocou o amor e o homem sofre inocentemente se ninguém
op. cit., 1972, p. 389. E exactarnente o lado oposto das preciosas: «L'arnour n'est vier em seu auxílio.
pas seulernent une simple passion comme partout ailleurs, mais une passion de Este nunca foi todavia o sentido original de passion. Na Idade
nécessité et de bienséance: il faut que tous les hommes soient amoureux», afir- Média este conceito detinha um valor central teórico-teológico.
ma-se em Madeleine de Scudéry, em Cyrus, citado em de Plahnol, op. cit., p. 68
Distinguem-se sobretudo os métodos: os libertinos procuram atingir a constância
através da permuta, as preciosas através da recusa da última vontade. 8 Sob este ponto de vista, Bussy Rabutin, op. cit., (1972), p. 390 e segs.,
6 Recueil La Suze - Pellisson, op. cito Vol. I, p. 242. opõe-se ao topos: «ficar apanhado repentinamente»: só se ama quando se quer.
7 Jaulnay, op. cit., p. 83.
CAPÍTULO VI 75
74 RETÓRICA DO EXCESSO

Nele podia projectar-se o modo como se devia lidar com a distinção os lados, acção e passion encontram-se do mesmo lado. «Bien sou-
geral entre coisas corporais e não corporais, respeitantes ao ser vent l'agent pâtit en agissant, et le patient agí't sur son agent 11.»
humano. Passion era entendida como auto-activação sensível do «L'amant et I'arnante sont agents et patients à Ia fois 12.» Puissance
corpo humano. Caso concordemos com a separação profunda que passive e puissance active são partes distintas do amor e através disto
mesmo são vistas como duas formas de um todo 13. Verifica-se: o
Santo Agostinho estabelece entre corpo e alma, temos que conside-
rar apenas a alma enquanto portadora de altas qualidades; o corpo condicionalismo resultante da interacção social aglomera acção e pas-
estava abandonado às suas pulsões. Pelo contrário, caso aceitemos
sion numa unidade nova em termos de história das ideias; provoca
por assim dizer na passion um motivo para um agir apaixonado 14.
a consubstancialidade do corpo e alma (S. Tomás de Aquino), a
Esta activação da passion conduz a uma revaloração positiva do
passion, a auto-activação do corpo, tornar-se-ia no «sujeito» das
conceito na segunda metade do século XVIl. Pode-se prescindir do
virtudes 9, pelo menos na arena da auto-superação, do combate
confronto entre passion e honnêteté, tal como é ainda pressuposto, por
entre influências superiores e inferiores. O conceito tinha conse-
exemplo, em Chevalier de Méré, passando a passion a ser avaliada de
quentemente de comportar todo o ónus do problema, que, segundo
acordo com a perspectiva antropológica e o estrato social. A tran-
a antropologia, resultou da distinção central, válida para o velho
sição do conceito passivo de passion para o activo constitui-se mais
pensamento europeu: res corporales Ires incorporales, dependendo o
tarde na pré-fase de qualquer individualização possível, pois apenas
seu destino principalmente do acto de se acentuar mais ou menos
o agir e não o viver é algo que pode acontecer individualmente.
a distinção ou a unidade.
É o facto de este activar da passion ser forçado através da inclusão
Na medida em que este contexto, que se ocupa suficientemente
de condições sociais reflexivas respeitantes ao amar, e o facto de o
do conceito, retrocede, a passion torna-se por assim dizer disponível
activar o papel do amante implicar o respectivo desempenho atra-
independentemente de qualquer contexto. A carga de significado
vés de características pessoais percepcionadas como impulso decisi-
inerente ao conceito pode ser investida de novas enfâses e talhada
vo, que permitem a transição do comportamento verosímil referente
de acordo com novas necessidades. O que se transmite é o sentido
do dramático, tendo em vista o confronto consigo mesmo. Também
à semântica do amor de uma estrururação ideal para uma para-
doxal. Pode-se todavia, neste momento, reconhecer particularmente
a passividade da auto-activação do corpo, exactamente apreendido,
bem em que medida as condições socio-estruturais despoletam
permanece como componente do conceito. Assim, a concepção do
transformações na semântica, implementando diferenciações plenas.
amor enquanto passion continua, pelo século XVII adiante, ligada
Agora o amor pode ser reproduzido como uma espécie de super-
ainda sobretudo ao velho conceito «passivo» de passion. Trata-se de
sofrer um estímulo. A própria ambição é entendida ainda como
-passion, que coloca todas as outras ao seu dispor; ou simplesmente
como quinta essência das paixões 15. O amor torna-se princípio de
algo passivo, tal como antigamente, como faculté appetitive que se
exprime através do estímulo das qualidades inerentes ao objecto
desejado. Podemos continuar a afirmar que a virtude (virtus, vertu) no local autêntico ao qual se atribuem as paixões e o espírito no seu factor ge-
«qualifica» a passion enquanto seu veículo. «La passion est Ia recep- rador, preservador e intensificador.
tion de Ia vertu de l'argent; comme quand de beaux yeux donnent 11 De Caillêres, op. cit., p. 85.
de l'amour 10.» Uma vez que acontece exactamente isto em ambos 120p. cit., p. 86.
I) Cf. Charles Vion d'Alibray, L'amour divisé: discours académique, Paris, 1653,
p. 12 e segs.
9 Cf. a este respeito Marie-Dominique Chenu, Les passions vertueuses: L'anthro- 14 Para a transformação de passion no sentido geral cf. Eugen Lerch, «passion-
pologie de Saint Thomas, «Revue Philosophique», Lovaina, 72 (974), pp. ll-18. e «Gefühl», cf. «Archivum Romanicum», 22 (938), pp. 320-349.
10 De Caillêres, op. cit., p. 84. Face ao conceito de amor da Astrée, comple- 15 A este respeito existem modelos radicados em Santo Agostinho. Cf. com
tamente subjacente a esta linha, cf. também Ehrmann, op. cito Veja-se todavia a, Abbé de Gerard, Le caractere de l'honneste-homme mora/e, Paris, 1682, p. 21 e segs.
já em 1649, influente tendência para uma redefinição patente no artigo 27. de 0

(45).
«Les passions de I'ârne», da autoria de Descartes. A própria alma torna-se aqui
76 RETÓRICA DO EXCESSO
CAPiTULO VI 77
actividade, e o facto deste princípio ser designado por passion signi-
da arte da sedução, não se deve naturalmente fazê-lo com demasia-
fica apenas e ainda que não se tem de esclarecer, fundamentar,
da superficialidade. São apresentados como um saber secreto, em-
justificar o seu activo. Pelo exemplo do amor pode-se então tornar
bora publicados e discutidos nos salões. Deve por isso concluir-se
. evidente o modo como esta passion coloca ao seu serviço meios
que lhes é atribuída uma função preventiva no que às damas diz
opostos: presença e ausência dois amado/s, esperança e desespero,
respeito 17. Neste caso, pode ser perigoso o próprio acto de prevenir
ousadia e medo, raiva, respeito - tudo isto está ao serviço do amor
e o cônjuge é aconselhado a não prevenir a sua mulher contra os
com vista apenas ao seu próprio fortalecimento 16. A unidade do
sedutores 18. Pois assim se desperta a atenção e o interesse, ficando
amor torna-se ideia que fornece o enquadramento com o objectivo
os visados então realmente expostos ao amor, tal como acontece
de reproduzir paradoxos da vida quotidiana. Ao acentuar-se a
com qualquer proibição. Seja qual for o modo de colocar a questão,
passion, afirma-se sobretudo que o amor se desenrola num âmbito
jamais se pode confiar apenas na habilidade.
exterior ao do controlo racional. Isto poderia significar que se reti-
Uma vez transformada em doutrina e em literatura, a sedução
ravam as possibilidades de desenvolvimento ao comportamento
constitui-se em jogo de dois adversários. Pode portanto tratar-se
ponderado e à habilidade. Mas o contrário verifica-se. A irraciona-
apenas de um jogo transparente, no qual se toma parte apenas
lidade da passion torna necessariamente inverosímil que duas pes-
quando se pretende. Submetemo-nos ao código e às suas regras,
soas sejam surpreendidas concomitantemente pela passion durante
deixamo-nos seduzir ou brincamos com o fogo apenas por momen-
a sua relação. O amor não dispara duas setas ao mesmo tempo.
tos, residindo o encanto não só no facto de o jogo deixar de ser
O amor pode acontecer como um acaso, mas normalmente não
controlável, mas também de isto se verificar para ambos os lados.
como um duplo acaso; é preciso por isso dar uma ajuda - também
A fusão operada em ambas as partes entre actividade e passivi-
a fim de captar o sentimento próprio, durante a corte e a sedução.
dade, com vista a um novo conceito de passion, não significa que
A vulnerabilidade no que respeita à passion própria e refinamento
seja abolida a assimetria na relação entre os sexos. Tem todavia que
em relação à passion do outro fazem parte de um contexto de inten-
ser reconstruída com base nesta unidade entre acção e passion e
sificação - quanto mais paixão mais cautela e planificação ponde-
tal acontecer através de duas assimetrias de sentidos opostos. Por um
rada do comportamento, e isto reciprocamente sempre que ambos
lado, caracteriza-se o amor como luta: como assédio e conquista
estiverem ainda inseguros da passion do outro e viverem nessa
da mulher 19. Por outro, é a auto-submissão incondicional à venta-
medida a situação assimetricamente. Não se deve por isso confiar
na primeira impressão de uma incompatibilidade inerente aos
17 Tal é já válido para a Idade Média. Ler a este respeito um documento em
desígnios semânticos: a projecção numa relação social de contin-
John F. Benton, Clio and Venus: an bistorical view 01 medieval loue, in F. X.
gência dupla torna possível, indispensável até, a combinação de
Newman (ed.), The meaning 01 courtly loue, Albany N. Y., 1968, pp. 19-42 (31).
opostos. Não é no sistema psíquico, mas sim no social que reside 18 Igualmente num conto de Madame de Villedieu, in, da mesma autora,
a referência sistérnica do meio de comunicação amor. Annales galantes, Paris, 1670, reimpressão, Genebra, 1979, VoI. II, em especial,
Assim se perpetua a tradição da ars amandi. Quando se exami- p. 26.
19 «Il est impossible d'aimer sans de violence» afirma-se em Jaulnay, op. cit.,
nam os inúmeros modos de apresentar, tratar, aconselhar próprios
p. 19. «L'amour aussi bien que Ia guerre demande beaucoup de soins», assim se
enuncia em Recueil La Suze - Péllisson, VoI. I, p. 237. Para a metáfora «as-
sédio» cf. também VoI. III, p. 177 e segs. Para a preparação da meráfora-da-lura
16 Exposição minuciosa desta tese em Le Boulanger, op. cit., VoI. I, p. 29
cf., para além disso, D'Alquié, op. cit., (1679) (continuamente); Louis Ferrier de
e segs. O escrito é dedicado ao príncipe herdeiro e acentua especialmente a força
La Marriniêre, Précepts galans, Paris, 1678, p. 86 e passim; do mesmo autor, Ovide
heróica, indispensável ao controlo de uma tal passion, quase invencíveI. Assim,
amoureux ou L'école des amans, Haia, 1698, p. 24 e segs. e passim; (Ortigue) de
torna-se viável a um estrato social dos guerreiros continuar também o respectivo
Vaumoriere, L'art de plaire dans Ia conversation, 1688,4." ed., Paris, 1701, p. 395.
heroísmo em plena situação amorosa e verter o resultado para a forma de galan-
teria e de prazer. Aqui o homem avalia a oposição da mulher como condição da intensificação do
seu esforço; a mulher avalia igualmente a persistência e a constância dos esforços
78 RETÓRICA DO EXCESSO CAPÍTULO VI 79
de da amada que constitui a forma pela qual o amor se apresenta existência, de «cibo per conseruarse», tal como Nobili formula 24.
e «agrada» 20. A submissão absoluta não passa de uma renúncia É também por este trilho que se chega ao princípio: vicendevole amare
completa às particularidades pessoais. A tradição mística medie- _ mas tendo como pano de fundo uma atmosfera de decadência e
val 2i e o platonismo da Renascença italiana 22 são ainda um exem- não a intenção de criar o homem propriamente dito. O classicismo
plo consequente disto mesmo. Também Astrée é dominado 23 por francês lembra ainda, à distância, este universo de ideias - com a
este princípio da abnegação, da aniquilação e do renascimento no ajuda sobretudo de Astrée; mas confere-lhe traços claramente mun-
outro. danos. Na segunda metade do século XVII, o amor pode ainda ser
Não há dúvida que esta exigência corresponde ao velho concei- definido como auto-altenação 25.
to «passivo» de passion. O amor culmina consequentemente com a O amor combina assim algo de aparentemente contraditório:
perda da identidade - e não, tal como hoje se pensaria, com a con- conquista e auto-submissão. Tal é possível à luz do condicionalis-
quista da identidade. Também o amante que renuncia a si mesmo se mo complementar, segundo o qual não há submissão contra von-
sente na realidade com direito a exigir reciprocidade amorosa, tade da dama 26. Tal seria pecar contra o espírito sagrado. O
chegando mesmo a reclarnã-Io insistentemente, quase como se de carácter de absoluto simboliza também aqui a diferenciação plena.
uma obrigação se tratasse; trata-se aqui de conservar a sua própria Como excesso - e não apenas como amor «puro» - o amor não
é compatível com qualquer tipo de consideração por quaisquer in-
do homem e ambos sabem que ambos têm consciência disto. Este saber pelo teresses 27. A sequência temporal amorosa segue também aqui as
saber fornece a ambos a segurança necessária à continuação, bem como a possi- suas próprias leis, ao passo que os interesses do amor ligariam ou
bilidade de se encararem mutuamente como oponentes de estirpe idêntica. também desagregariam, sob acção de pontos de vista que lhe são
«L'arnour est une espêce de guerre ou il faut pousser ses conquêtes le plus avant
estranhos 28.
et avec le moins de relâche que l'on peut, Un arnant qui remerciroit sa Maitresse
paroitroir comme satisfait d'elle, er cerre espéce de repos ne plair jamais tanr que A motivação combinatória entre conquista e auto-submissão
les ernpressernenrs er les inquiétudes» (De Vaumoriere, op. cit.). está condicionada por mais um importante momento, integrante da
20 «Aussi-tosr qu'on a donné son coeur à une bellle on ne doit songer qu'a esttututa temática do código: na concepção dos amantes existem
luy plaire, on ne doit avoir d'autre volonré que Ia sienne; er de quelque humeur apenas características positivas do outro (doia amante) 29. Isto mes-
qu'on soit, il faut se faire violence pour se regler sur ses senrirnenrs. Il faut
esrudier toutes ses pensées, regarder toutes ses actions pour y applaudir et s'ou-
blier soy-mesme pour ne se souvenir que d'elle et pour rendre hommage à sa 240p. cit., foI. 29 R.
beauré- (Recueil La Suze - Pellisson, op. cit., Vol. I, p. 222 e segs. Aqui não 2j Em Le Boulanger, op. cit., Vol. I, p. 97, afirma-se: «Arnour à le bien
basta a submissão enquanto tal, a douceur tem de colaborar também, o impor- definir, est une generale alienation de Ia personne qui ayme: c'esr un transport
tante é a forma, o como (op. cit., p. 249). A submissão também não deve ser sans contracr er sans esperance de retour, par lequel on se donne tout entier er
apenas um passe de namoro e terminar quando o amor é correspondido; ela deve sans aucune reserve à Ia personne aymée.»
persistir enquanto o amor durar (op. cit., p. 255).
26 Citação correspondente extraída da Astrée «<il est vraiú, sauf dans le cas
21 Duvidosa é a respectiva relação face ao amor cortês que parece dar origem
ou elle commanderait de n'être pas airnée»), em Gustave Reynier, La femme au
ao dogma da submissão incondicional. Cf., por exemplo, Moshe Lazar, Amour XVII' siêcle: ses ennemis et ses défenseurs, Paris, 1929, p. 17.
courtois et Fin' Amors dans Ia littérature du XII siêcle, Paris, 1964, passim, em 27 Por outro lado, isto quer dizer: «Inrornpatibilité de l'union des coeurs
especial p. 68 e segs.
avec Ia division des interesrs» (]aulnay, op. cit., p. 60), deduzindo-se: o amor não
22 Cf. Heinz Ptlaum, Die ldee der Liebe: Leone Ebreo, Tübingen, 1926. Para a pode modificar nem superar a distinção entre os interesses. A diferenciação plena
transição para a conversa amorosa no salão e na corte, em especial p. 36 e segs. enquanto excesso torna o amor igualmente impotente em relação a tudo menos
Ainda Friedrich Irmen, Liebe und Freundschaft in der franzosiscben Literatur des 17.
a si próprio.
Jahrhunderts, Diss., Heidelberga, 1937, em especial p. 35 e segs. 28 Laurent Bordelon, Remarques ou réflexions critiques, morales et bistoriqaes,
23 Cf. René de Planhol, Les utopistes de l'amour, Paris, 1921, p. 51 e segs.;
Paris, 1690, p. 162 e segs.
Antoine Adam, La théorie mystique de l'amour dans l'Astrée, «Revue d'Histoire de 29 Veja-se a infundada atribuição estereotipada da beleza perfeita como dado
Ia Philosophie», 1936, pp. 193-206; Kévorkian, op. cit., p. 163 e segs. objectivo (apesar de na terra da ilusão) em Astrée e seguidamente a aceitação
80
RETÓRICA DO EXCESSO CAPiTULO VI 81

mo possibilita aquela intensificação de imposição e aceitação. Este Verifica-se uma modificação na posição semântica (e com isto
condicionalismo é reproduzido pelo metaforismo até aqui consigna- também: na capacidade interpretativa da religião) do procedimen-
do - ver e não ver, estar e não estar cego: o amor torna cego por to no amor através da integração no paradoxo. Não se sofre por o
um lado e perspicaz por outro. Domina os olhos, utiliza-se da lin- amor ser sensual ou por despertar desejos terrenos; sofre-se por o
guagem destes, pode até nisso constatar algo de negativo, mas não amor ainda não ter sido realizado ou porque uma vez realizado não
produz qualquer impressão 30. corresponde ao prometido. Em vez de uma hierarquia das ligações
Paradoxos semelhantes associam-se, corroborando a impressão do homem com o mundo surge o quadro de princípios e a estrurura
segundo a qual é exactamente da construção que depende a obten- temporal de uma esfera existencial e vivencial relativamente
ção de algo que não seria possível de outro modo. Assim, o amor autónoma. Uma fundamentação a partir de si próprio, incluindo o
pode ser considerado uma prisão, da qual não se gostaria de sair, ou próprio sentimento - tal constituíra previamente uma caracteriza-
também uma doença, preferível à saúde 3l, ou uma prevaricação ção reservada à divindade.
cuja respectiva penitência o prevaricador tem de pagar 32. Trata-se De resto também se argumenta assim, explicitamente, sempre
aqui, obviamente, de caracterizar uma oposição à normalidade, uma que o paradoxo se transforma ele próprio em tema. Num romance
situação invulgar, situação essa que faz com que um comportamen- de D' Aubignac 38, uma das damas duvida ingenuamente «que le
to invulgar se torne compreensível e aceitável. E quando se afirma: martyre, Ia tyrannie, les feux, les fers soient des choses fort plai-
«Les Amants aimenr mieux leurs maux que rout les biens» 33 ou santes» e exige que se esclareça o paradoxo. Como resposta é esta-
«L'Amante Ia plus misérable ne voudroit pas ne poinr aimer» 34 ou belecida a distinção: amor não coincide com desejo, mas suscita
«La plus grande douceur est un secret martyre» 35 ou «Les plaisirs necessariamente, de acordo com a sua natureza, o desejo de ser
d'Amour SOnt des maux qui se font désirer» 36, então tornar-se-á amado, e este desejo provoca, enquanto não for satisfeito, toda
também clara a diferenciação plena do esquema valorativo do amor a alegria e sofrimento do amante. Com isto, está já implícito, mas
- até mesmo o seu valor negativo é parte integrante de um modo ainda não expresso, que a sociabilidade é a fonte do paradoxo;
que não pode ser ultrapassado por valores de outras proveniências 37. em contrapartida, «responsabiliza-se» explicitamente o coração, no
sentido de «volonté parfaite d'êrre ayrné». Por isso se infere que
consciente da ilusão no código do amor, durante a segunda metade do século, não se deveria duvidar da verdade imanente ao paradoxo «il ne faut
por exemplo em Jaulnay, op. cit., p. 8, 23 e segs. Veja-se em especial o retorno donc pas s'opiniâtrer dans Ia contradiction d'une vérité si publi-
ao amor-próprio, op. cit., p. 23: «ia preoccupation dans une personne qui a bien
que».
de l'esprir esr une finesse de l'amour propre qui ne nous fait voir I'objer aimé
que par l'endroit ou il nous peut plaire, afin d'authoriser son cboix» (sublinhado
Para além disso, a possibilidade de o comportamento ser ensi-
meu, N. 1.). nado em situações amorosas, modificar-se-á com a qualidade do có-
30 Cf. anónimo (Bussy Rabunn), Amours des dames il/ustres de nostre siêcle, 3." digo. Ela propagar-se-á, renegando-se simultaneamente. No manual
ed., Colónia, 1682, p. 5; Recueil ia Suze - Pellisson, op. cit., VaI. Ill, p. 154
e segs.
31 Assim em Recueil ia Suze - Pellisson, op. cit., VoI. I, p. 140. e sofrimento remetem-se exactarnente, na sua adversidade, para o seu oposto de
32 Bussy Raburin, op. cit., (972), p. 369. um modo tão profundo que não é possível romper do exterior esta auto-referên-
3.3 Jaulnay, op. cit., p. 35.
cia circular através de outro património.
34 Madame de Villedieu, Nouveau recueii de quelques piêces galantes, Paris, É uma conseqüência desta estrutura semântica o facto de também todo o
1669, p. 120.
código poder ser recusado por via do seu conteúdo, relativo ao sofrimento e à
35 Benech de Cantenac, Poesies nouvel/es et autres oeut/res galantes, Paris, 1661, pretensão absurda de comportamento - também em Mailly, op. cito (1690), ou
p.69.
no recém instituído entusiasmo, por volta de 1700, em torno da amizade (veja-
36 Le Boulanger, op. cit., VoI. lI, p. 78. -se p. 79 e segs.),
37 Assim sendo, a estreita afinidade entre alegria e sofrimento, esperança e 38 François Hedelin, Abbé d'Aubignac, Histoire galante et enjouée, Paris,
receio faz parte, no âmbito do amor, dos temas standard da literatura. Alegria 1673, p. 126 e segs. (citações, p. 129, 157 e segs., 140).
82 RETÓRICA DO EXCESSO
CAPiTULO VI 83
da éco/e d'amour 39, amor é transcrito como 40 «un ie ne sçait quoy,
A transição da idealização para a paradoxização, enquanto for-
qui venoit de ie ne sçait ou, er qui s'en alloit ie ne sçait com-
ment» 41, e ainda: «Et par ces termes qui nous apprennenr rien, ma de constituição do código, traz consequências para a orientação
da consciência. O ideal é mantido ainda enquanto forma intencio-
ils nous apprennenr tout ce qui s'en peut sçavoir.» Uma fórmula
nada 44, oferecendo nessa condição protecção contra a libertinagem
vazia enquanto fórmula didáctica! Só deste modo é possível ser-se
pura. Todavia, as paradoxizações permitem simultaneamente um
posto ao corrente de um código cuja unidade tem de ser expressa
por via do paradoxo. novo tipo de distanciamento face às prescrições técnicas e próprias
atitudes apresentadas. Só pode verificar-se um distanciamento dos
As contradições do amor estão sistematizadas em dois tipos: o
ideais sob a forma de uma satisfação imperfeita; as formas para-
amor esperançado e o amor desiludido. Ao lado das fontes latinas,
doxais apelam ao aurod istanciamento 45, as mistificações do amor
são sobretudo representativas deste último caso as Lettres Portugaises,
são tratadas enquanto requinte. Deste modo, com o aperfeiçoamen-
de Guilleragues 42. O amor feliz, satisfeito, é pensado enquanto
to do código e com o grande gesto que ele exige, também se
liberto de contradições; suprime todas as contradições; é um ponto
encontram sempre reenvios quer para a esfera da ironia quer para
de referência que garante aos paradoxos da semântica a sua uni-
a da retórica. Ganhou forma o exemplo da tipologia do suspiro,
dade. Não pode todavia perdurar. De resto, é exactamente através
patente no Dictionnaire des Précieuses 46. Foi igualmente difundida a
do amor infeliz e das Lettres Portugaises que se consegue esclarecer
inclusão do «simplesmente retórico» na auto-representação, um tra-
como é possível sofrer tanto, de acordo com as regras do código.
tamento da forma enquanto forma, do exagero enquanto exagero,
A auto-expressão mais intensa recorre a formas estabelecidas para o
destinada a ser imediatamente desvendada. Tal foi novamente in-
efeito. O amor continua a ser sentido com autenticidade, a sedução
troduzido no complexo temático do código 47.
continua dizendo respeito ao sedutor - ambos continuam final-
mente sendo a consequência de um código 43. Da paradoxização e em especial da inclusão do esforço, da preo-

39 Anónimo, op. cito (1666), p. 92. Cf. também a mesma fórmula num Forschungen», 65, (1954), pp. 94-135. A historiografia literária mais antiga
contexto crítico-refutativo, em finais da época clássica: Laurent Bordelon, Remar- admirou, pelo contrário, a autenticidade das cartas. Cf. por exemplo Max Frei-
ques ou reflexions critiques, morales et historiques, Paris, 1690, p. 297. herr von Waldberg, Der empfindsame Roman in Frankreich, Vol. I, Esrrasburgo,
1906, p. 45 e segs.
40 Mas a necessidade de uma perífrase é aqui justificada através da ideal i-
dade da ideia! 44 Friedrich Irmen, op. cit., concentra as suas análises neste ponto de vista.
4) Ou, ter-se-á de acrescentar, com vista à prorecção do em si, através da
41 Uma fórmula por certo ironicarnenre subentendida, utilizada aqui toda-
via de um modo ingénuo. Um pouco mais adiante, afirmar-se-á então (p. 78), difamação da mulher - uma alternativa conrinuadarnenre utilizada desde as
o amor é frequentemente uma estupidez, refere-se a: Querelles des Femmes do século XVI.
«... une femme, un beau visage 46 Antoine Baudeau de Somaize, Le dictionnaire des précieuses, 1660/61, citado
Qui bien souvenr n'a rien en soy da edição de Paris, 1856, reimpressão, Hildesheim, 1972, p. 131 e segs. Seria
D'aymable que ie ne sçay quoy.» de se anotar aqui o facto de o ironizar e ridicularizar se apresentarem especial-
É natural que tal seja recusado na escola do amor. mente contra as preciosas, porque estas procuram ainda preservar momentos
42 Reedição de F. Deloffre e ]. Rougeot, Paris, 1962, cf. também La de ideal idade em torno da sua própria imperturbabilidade, onde no horizonte
solitaire, in De Villedieu, op. cit., pp. 108-126. espiritual da época se prometia paradoxização em vez de sucesso.
47 Assim se afirma por exemplo numa carta reproduzida por Canrenac,
43 Horowirz, op. cit., p. 131 e segs., anota a este respeito «Guilleragues'
careful choice of metaphor, his overly lyric tones, bordering on rhe banal, testify op. cit., p. 224 e segs.: «]e souspire quelquefois, mais mes souspires ne me
not only to Marianne's naiveré, bur also to a sense of her control by a porenr coürent iamais des larmes, mes chaisnes sont comme des chaisnes de parade, et
code. Marianne is surely determined to love, determined by love, bur it is as if non pas com me celles qui pesent aux criminelles» (225), e isto como resposta
determinism is here viewed as a seduction by powerful myths». Cf. também os à questão: «de quelque façon ie vous aime.» Ou numa missiva de Le Pays,
argumentos COntra a autenticidade e a favor da composição consciente do estilo Amitiez, amours et amourettes, edição aumentada, Paris, 1672, p. 120: «Voila bien
(consciente do código) em Leo Spitzer, Les 'Lettres portugaises', «Romanische du style de roman tout d'une haleine, direz-vous. Hé bien voicy du langage
commun pour vous contenter», erc.
84 RETÓRICA DO EXCESSO CAPÍTULO VI 85

cupação e da dor no amor resultará mais tarde uma distinção entre disso, o amor e as regras de sociabilidade com base na conversação.
amor e interesse, afinal entre amor e economia (no sentido mais As diferenças são conscientemente formuladas, o que não exclui
lato, inclusive o de doméstica). Diferentemente do que acontece o facto de a própria formulação ser tarefa de salão. É exactamente
com os interesses, no amor não se podem contabilizar perdas e o excesso da passion que finalmente permite que as formas sociais e
ganhos, não se podem calcular custos; pois os pontos são fruídos, o carácter se destaquem mais nitidamente. Com a ajuda de um
servindo precisamente para manter o amor consciente e alerta. É na título de obra etnológica poder-se-ia afirmar: Excess and restraint -
verdade possível aproveitar o amor para perseguir certos interesses, social control among Paris mountain people 52. Na semântica, as valora-
mas estes não podem ser transferidos para o amor: «C'esr que ções extremas têm a função de desactivar as regulamentações da nor-
l'amour sert de beaucoup à I'interest, mais l'interest ne sert iamais malidade. Apenas o excesso justifica a entrega da mulher 53. Tal é,
de rien à I'amour 48.» para além disso, válido para as expectativas institucionalizadas dos
Os diferentes paradoxos (auto-submissão cativante, sofrimento papéis a desempenhar e para o entrosamento recíproco entre direi-
desejado, cegueira que vê, doença desejada, prisão preferida, doce tos e deveres, para o jus no sentido outrora dominante. Com isto
martírio) culminam na tese central do código: o desregramento, o verifica-se também um recuo nas noções de justiça que desempe-
excesso 49; aliás, apesar do alto apreço que o comportamento mode- nharam um papel importante na semântica do amor medieval, o
rado desfruta, no amor tal vale como erro decisivo. O próprio que veio a terminar num reconhecimento com capacidade jurídica
excesso constitui o padrão do comportamento. Tal como acontece de esforços, méritos, honrarias e compensações devidas. Desistir do
com todos os meios de comunicação, também neste caso o código codex de direito e deveres significa também: diferenciação entre
necessita de prever em si próprio uma excepção para o seu próprio amor e casamento juridicamente regulamentado. Só se dá início ao
caso; só se torna institucionalizável através da assimilação de uma amor, quando se ultrapassa o que pode ser exigível, e quando um di-
auto-referência negativa. Uma distância mais ou menos marcada reito ao amor impede que este se realize de facto 54. A distinção face
face à raison e à prudence faz parte da semântica e das exigências para ao casamento institucional permite descobrir e formular um quadro
representar o amor. Assim sendo, não se fornece uma boa imagem de circunstâncias que passa a pertencer a partir de então ao quadro
da passion sempre que se mostrar que se consegue dominá-Ia 50. de princípios do amor, podendo ser recuperado enquanto tal, através
A imposição do excesso simboliza por seu lado a diferenciação de uma concepção renovada de casamento, apenas muito mais tar-
plena, precisamente uma violação dos limites impostos, sobretudo de: «) e ne sçay rien que ressemble moins à l'amour que le devoir 55.»
pela família, ao comportamento 5l. O excesso distingue, para além
52 De acordo com Ronald M. Berndt, Excess and restraint: social contra! among

48 Michel de Pure, La prétieuse ou le mystêre des rueiles, VoI. lII, Paris, 1657, New Guinea mountain people, Chicago, 1962.
citado da edição de Émile Magne, Paris, 1939, p. 78. 53 «Quand vous aimez passablement,
49 «Qu'en amour assez, c'esr trop peu; quand on ayme pas rrop, on ayme On vous acuse de folie;
pas assez», assim soa uma das máximas do conde Bussy Raburin, op. cit., (s. d.), Quand vous aimez infinirnenr.
p. 239 (= op. cit., 1972, p. 385); ou em Jaulnay, op. cit., p. 79: «il esr de Ia narure lris, on en parle autrernenr:
de l'amour qu'il soir dans l'excez er si on n'airne pas infiniment, on n'airne pas Le seul excês vous juscifie.»
bien.» Bussy Raburin, op. cit., (972), p. 384 e segs.
54 Uma das muitas variações face a este tema em Le Boulanger, op. cit.,
50 René Bary, L'esprit de cour, op. cit., p. 246. Veja-se também a crírica de um

rival em Abbé de Ia Torche, La toilette ga!ante de l'amour, Paris, 1670, p. 77 VoI. II, p. 79: «Le droir d'esrre aimé sert souvent d'obsracle pour l'estre et
e segs.: ele mostra-se pouco amadurecido face às exigências do amor da amada l'Amour n'est plus Amour, sitosr qu'il esr devoir.»
em virtude da sua calma indeferente. 55 Leitres nouuelles de M. Boursault, Paris, 1698, p. 428 e segs. (citado de
SI Muiro bem documentável na 5.' carta da freira portuguesa que, após não Waldberg, op. cit., p. 106). De resto, surge aqui evidente o relativo atraso no
amar mais, regressa a casa: «Ma famille qui rn'esr fort chêre depuis que je ne desenvolvimento levado a efeito nas Ilhas Britânicas (desenvolvimento esse que
vous aime plus.» Esta indicação em Spirzer, op. cit., p. 106. mais tarde providenciará melhores pontos de partida para uma recombinação
86 RET6RICA DO EXCESSO CAPiTULO VI 87

«Excesso» não quer certamente significar que durante o comporta- lir 58. Tornam-se assim imperdoáveis quaisquer falhas no trato com
mento se têm de adoptar constantemente posições limite. Deste os amantes, porque se trata do essencial da questão: a regra do
modo, a «submissão» incondicional do homem é igualmente um excesso e a reivindicação da totalidade 59.
apelo à generosidade da mulher e a pretendida será ti da como cruel Amor e ódio podem convergir no excesso ou transferir-se facil-
se não corresponder. A semântica do desregramento despoleta mente de um para o outro. A tradição idealista mais antiga tratou
novas liberdades que têm de ser satisfeitas e reespecificadas através o amor e o ódio com pólos nitidamente opostos, apenas conseguin-
da história de um amor - mas jamais: através da própria socie- do compreender o ódio como reacção à injustiça, enquanto senti-
dade.
mento ferido, porque não lhe correspondia qualquer perfeição
Caso tomemos o excesso como medida do amor, logo surgirá autêntica 60. Também agora se estabelece uma relação paradoxal
fundamentado um conjunto de consequências. Em primeiro lugar: entre o amor e o ódio: trata-se de formas diferentes para exprimir,
o amor é totalizante. Ele torna relevante tudo o que de qualquer no essencial, uma passion unitária: «Quand le dépit vient d'une
modo se relaciona com a amada, até chegar ao nível da bagatela 56. passion extrême, on dit qu'on hait, et 1'on sent que 1'on aime 61.»
O amor valoriza tudo o que se inscreve no seu horizonte específico. No mesmo sentido desenvolve-se paralelamente a discussão cien-
Toda a vivência e todo o agir dos amantes exigem uma observação tífica no âmbito da doutrina dos afectos 62. Assim sendo, o ódio faz
continuada e um controlo segundo os esquemas: amor/indiferença parte do código do amor: é natural que odeie o outro, todo aquele
ou amor sincero/falso. Formula-se assim um universalismo novo que não encontrar a réplica ao seu amor; a questão está apenas em
que se destaca da velha distinção entre qualidades essencrais e
acidentais.
ss Nesta linha, o amor defende-se em diálogo com a amitié contra a censura
O amor é assim representado como um círculo fechado, no da tirania em Recueil La Suze - Pellisson, op. cit., Vol. III, p. 127 e segs. Cf.
qual todos os momentos se fortalecem mutuamente e do qual também de Cailleres, op. cit., p. 125 e segs.
j9 «Il n'y a point de raison qui aurhorise les manquements en amour, c'est
não se pode sair 57. O amor não pode, por isso, permitir a mais
une signe infaillible ou qu'on a jamais aimé, ou qu'on commence à cesse r d'ai-
pequena negligência. Nessa medida, o código tiraniza sem compe-
rner», sublinha Jaulnay, op. cit., p. 93. Daqui nasce a tese segundo a qual, ama
mais profundamente, quem não consegue perdoar top. cit., p. 96). Cf. também, p. 110
e segs., sobre o perdoar as falhas que se reconhecem. Tal não constitui qualquer
entre amor e casamento). Aqui, tenta-se apenas atenuar, através do amor, o
contradição, mas pelo contrário, uma indicação sobre a especificação do código
cânone de deveres inerentes ao casamento, mal se obtendo todavia daqui os
do amor. Imperdoáveis são as falhas que admitem conclusões acerca do amor; o
estímulos necessários para uma reformulação da semântica do amor. Cf., relati-
amor não consegue perdoar os seus próprios erros, mas antes tudo o resto. Por
vamente ao ponto de partida da evolução inglesa, James T. Johnson, A society
isso Bussy Rabutin, op. cit., (972), p. 377, pode afirmar:
ordained by God: englisb puritan marriage doctrine in the first half of the seuenteentb
«Je excuse volontiers er bien plurôr j'oublie
century, Nashville, 1970, em especial p. 104 e segs.
Un crime dont on fait l'aveu
A distinção aguda entre obrigação matrimonial e amor livremente consen-
Qu'une bagarelle qu'on nie.»
tido, tal como se acentuou em França, teve um efeito bastante estimulante.
60 Cf. por exemplo Mario Equicola, Libro di natura d'amore, reedição, s. 1.,
% «A l'esgard des Arnanrs, il n'y a point de bagatelles en Amour» (Jaulnay,
1526, foI. 145 e segs.; Nobili, op. cit., foI. 31 R. Veja-se ainda também Vion
op. cit., p. 45 e segs.). «Enfin, pour vous le faire court, rien n'esr bagatelle en
d'Alibray, op. cit., 1653, p. 8 e segs. ou De Chalesme, L'homme de qualité ou les
arnour» (Bussy Raburin, op. cit., 1972, p. 378). B. D. R. (de Reze), Les oeuures
moyens de vivre en homme de bien et en homme du monde, Paris, 1671, com uma mera
caualiêres ou piêces galantes et curieuzes, Colónia, 1671, p. 19 (também aqui, uma
comparação entre amor e ódio enquanto tendências perniciosas.
outra colectânea de questions d'amour e respostas).
6\ Livre de Cbançons, publicado por Corbinelli, op. cit., Vol. I, p. 121. De
j7 Numa versão negativa afirma-se por exemplo num artigo de Recueil de
resto, esta opinião está igual e docurnentalmenre fundamentada através das
Sercy, 1658: «Ces malheurs font un cercle duquel roures les parties se tiennent
célebres Lettres portugaises (cf. nota 42).
l'une l'aurre et n'onr point du tout d'issue» (Discours de l'ennemy d'amour et des
62 A este respeito ver Werner Schneider, Naturrecbt und Liebesethik: zur Ges-
femmes, in Recuei! des piêces en prose, le plus agreables de ce temps, composées par divers
chichte der praktischen Philosophie im Hinblick auf Christian Thomasius, Hildesheim,
autheurs, Paris, 1658, pp. 332-355 (338 e segs.).
1971, p. 194 e segs., com documentos comprovativos.
88 RET6RICA DO EXCESSO CAPÍTULO VI 89

saber se será capaz de o fazer 63. Amor e ódio dependem assim desenvolvidos. Se nos abstrairmos da obtenção deste objectivo,
intrinsecamente um do outro, sendo ambos distintivo de uma rela- então não será possível considerar outras consequências (consequên-
ção, que por sua vez se distingue da amizade 64. cias complementares, custos de ocasião). Também isto constitui
Da regra-do-excesso decorrerá ainda uma relação problemática um aspecto da totalização específica: o objectivo domina em abso-
face a qualquer regulamentação. A unidade do código basear-se-á luto 68.
assim num nível superior a todos os programas de comportamento. Ao excesso corresponde sobretudo uma recusa de todas as fun-
As regras não servem para aferir a justeza do comportamento indi- damentações. Afirmar algo de determinado seria contradizer o espí-
vidual; quem observar as regras, não obedece à amada 65. É à luz rito do amor. A fundamentação coincide com a própria inefabili-
destas noções que se devem entender estas formulações, que subli- dade 69. No lugar de outras fundamentações surgem as provas do
nham a auto-referencialidade do amar, antecipando assim aparen- amor. Não se referem à sua própria razão, mas à sua factualidade.
temente o que só o romantismo haveria de estabelecer. Deste modo, Sobre isto existem ideias elaboradas que se estendem à tentativa
é apenas recusado o tornar-se dependente de receitas e regras 66. Por de De Cailleres: submeter a prova do amor às regras da lógica 70.
outro lado, existe por certo uma arte de sedução, uma técnica do O dilema está bem à vista: exibir à mulher a prova de amor defi-
excesso, baseada na experiência 67, mas também transmissível. Pese nitiva não constitui prova de amor segura por parte do homem 7l.
embora a reserva perante a dependência das regras, o código per- Transferir estas questões para o âmbito verbal (mesmo em Astrée)
manece como uma orientação que se pode traduzir através de _ fala-se, protesta-se, escreve-se - fomenta por seu lado o desen-
operações. Nos casos em que uma orientação por regras teria um volvimento do código formulado. Inversamente, a codificação das
efeito subalterno, torna-se possível uma orientação-em-função-de- formas de expressão fomenta dúvidas quanto à autenticidade dos
-fins/meios, com vista a um determinado efeito, porque a amada sentimentos. O sentimento funciona como catalisador permanente,
não se pode renegar a si mesma, enquanto destinatária dos esforços à volta do qual se depositam formulações, sem conseguir através
disso a resolução da questão. Amor verdadeiro ou falso, comporta-
63 Assim Quinault, em resposta a uma das questions d'amour, formuladas pela mento honesto ou desonesto - esta questão adquire uma irnportân-
condessa de Brégy, in Comtesse de B. (Brégy), Oeuvres galantes, Paris, 1666,
p. 103 e segs.
68 «L'amour ne permettant pas que l'on face (sic!) de reflexions sur ce qui
64 Assim se afirma na Maxima 72, em La Rochefoucauld: «Si on juge de
l'amour par Ia plupart de ses effets, il ressemble plus à Ia haine qu'a l'arniriê» nous en peut encore arriver- (Iaulnay, op. cit., p. 33).
69 Cf. p. 63, relativamente ao problema da capacidade de ensinar.
(citação das Oeuvres Completes, Éd. de La Pléiade, 1964, p. 412).
65 «C'est en vain qu'on establiroit de dessein certaines regles d'amour, il ne 700p. cito (1668). Face à questão da fundamentação e finalmente a respec-
prend loy que de soy-rnême. Les regles là seroient mesmes d'une dangereuse tiva segurança inamovível, cf. também Jaulnay, op. cit., p. 48 e segs., 104 e segs.
suire, parce que le coeur qui ne peur souffrir de contrainre nous forcerait à les Na versão optimista afirma-se: quem ama verdadeiramente dá necessariamente
rornpre» (jaulnay, op. cit., p. 67). provas do seu amor. O amor não se pode esconder. Ele torna-se visível através
66 Veja-se o retorno a um conceito fundamental em Bussy Raburin, op. cit., da centelha, pelo menos através do fumo, tal como o fogo (última comparação
(1972), p. 348: «Aimez! er vous serez airné.» Ou em relação ao aprender: em Recueil La Suze - Pellisson, op. cit., Vol. I, p. 229. Para uma versão actual
«L'amour sçaura bien vous former; Aimez, et vous sçaurez airner» (op. cit., do mesmo problema (e como indicação do facto da casuística do amor não
p. 352; ver também p. 376). O facto de e o modo como este argumento é uti- estar rotalmente extinta) cf. Judith Nilstein Katz, How do you love me? Let me
lizado no contexto da sedução, podem ser vistos em Le Pays, op. cit., p. 110 e count the ways (tbe phenomenology of being loued). «Sociological Inquiry», 46, (1975),
segs. O romantismo esclarecerá também isto, através de Madame de Srael, como pp. 11-22.
7\ Os «soins- e «empressements» do homem são na realidade apresentados
tratando-se de uma atitude tipicamente masculina que compele as melhores a
reacções desagradáveis. Cf. De l'influence des passions sur le bonheur des individus et como sinais de amor - mas estabelece-se a distinção entre «marques» e
des nations, 1796, citado in Oeuvres Completes, Vol. III, Paris, 1820, p. 135. «épreuve», sem que constituam uma prova definitiva. E face a estas, afirma-se
67 A acrescentar ainda os trabalhos acima citados e da autoria de Ferrier de
numa das questions d'amour: «Si les dernieres faveurs sont Ia nourriture; ou le
La Marriniere. poison du veritable amour- (em de Reze, Oeuvres Cavalieres, op. cit., p. 16).
90 RETÓRICA DO EXCESSO
CAPITULO VI 91
cia central quer através da distinção entre código e comportamen-
Precisamente por isso deve valorizar-se a oposição, os rodeios, os
to quer através do adiamento da obtenção do objectivo 72. Todavia,
impedimentos, pois só através destes o amor consegue durar mais.
neste passo referir-se-á sobretudo a estratificação: a capacidade de
A palavra serve como meio ao serviço deste tempo. As palavras
distinguir a passion verdadeira da falsa está reservada às honestes gens 73.
separam mais profundamente que os corpos, fazem das distinções
Terá o excesso limites? A eliminação dos aspectos negativos
informação e motivo para prosseguir a comunicação. O próprio
causa-lhe uma falta de aurolimiração e com isso também uma
código de comunicação produz assim a verbalização necessária à sua
limitação da insistência, desejo e ousadia. Falta sobretudo a ideia
génese 76. Todavia, o amor deve apenas a sua existência ao «ainda
segundo a qual existe uma fronteira naquilo que é conforme à não». O momento da felicidade e a eternidade do sofrimento con-
individualidade de uma personalidade, naquilo que se pode exi-
dicionam-se mutuamente, são idênticos 77. Nada seria mais errado
gir ou esperar de uma determinada pessoa (em comparação com que pensar em casamento quando se trata de amor. O amor morre
todas as outras). O amor, ilimitado quanto a todos estes aspectos
com a indiferença e com problemas tácticos próprios do «cooling
objectivos e sociais, fica limitado quanto a um aspecto, nomeada- out» 78 ou, segundo as ideias de Madeleine de Scudéry, com uma
mente o que se refere ao tempo. O amor expira inevitavelmente e continuação fingida «par generosité» 79. Georges Mongrédien 80 for-
na realidade muito mais depressa que a beleza, consequentemente mais mula o princípio: "Se donner avec passion et se reprendre avec pru-
depressa que a natureza. O seu fim não está integrado na decadência dence.» Situado entre o início e o fim, o amor pode também ser
global e cosmológica, sendo antes condicionado pelo próprio amor.
visto como processo. O prolongamento no tempo e o preenchimen-
O amor tem uma duração breve e o seu fim compensa a falta de to deste através de uma história foram também importantes anti-
todas as outras limitações. A própria essência do amor, o excesso,
gamente; mas aquilo com que o tempo e os acontecimentos podem
constitui a razão do seu fim; e vice-versa: «En arnour, il n'y a guê-
ser preenchidos, caminha no século XVII numa direcção diferente:
res d'autre raison de ne s'aimer plus que de s'être trop aimés 74.»
uma diferenciação plena mais acentuada. O cavaleiro da Idade
A realização quase se torna no fim, quase mesmo nos obriga a
Média tinha que se afirmar através da superação dos perigos, de
temê-Ia e a tentar adiá-Ia ou evitá-Ia. Enquanto necessidade abso-
luta, a satisfação não comporta qualquer repetição. «Si Ia possession
esr sans trouble, les desires ne SOnt plus qu'une habitude riêde 75.» 76 Também aqui se pensa em que extensão é possível reinserir na literarura
testemunhos escritos de relações amorosas suposta e factualrnente vividas - um
exemplo: as Lettres à/de Babei, veja-se o capítulo V, nota 29.
72 Um romance com este tema em Madame de Villedieu, Les désordres de 77 Bussy Raburin, op. cito (s. d.), p. 238.
l'amour, 1675, citado segundo a edição de Micheline Cuénin, Genebra, 1970. 78 Erving Goffman, On cooling tbe mark out, «Psychiatry», 15 (1952), pp.
73 Assim o artigo anónimo La iustification de l'amoar, in Recuei! de piêces en 451-463, e a este respeito Jaulnay, op. cit., p. 80 e segs. e em especial p. 109:
prose les plus agréables de ce temps (Recueil de Sércy) ,Vol. m, Paris, 1660, pp. 289- tratamento suave, tentativa para libertar o outro enquanto atenção derradeira
-334 (307). Este texto é novamente atribuído a La Rochefoucauld _ ver edição perante o amor passado, um «honeste procédé purement polirique». Discute-se
com este nome de]. D. Huberr, Paris, 1971. É exactamente no aspecto aqui também sobretudo se é necessário entregar as cartas, guardar os segredos, erc.;
citado que surge rodavia mais evidente a distinção face às Maximes. A atribuição veja-se para além disso Jaulnay, op. cit., p. 121 e segs., relativamente à difícil
continuará sendo discutível, respeitaremos o estado anónimo e citaremos de questão sobre se e como se deve declarar que já não se ama. Recomenda-se uma
acordo com a edição original. A este respeito também Louise K. Horowirz, Loue diminuição das tentativas e o adivinhar.
and Language: a study 01 tbe classicallrench moralist umters, Columbus Ohio, 1977, 79 Veja-se o seguinte passo em de Planhol, op. cit., p. 69, citado do romance
p. 33 e segs.
Clélie: «Je veux qu'on aime par générosité lorsqu'on ne peur plus aimer par
74 Jean de La Bruyere, Les caractêres ou les moeurs de ce siêcle, citado de Üeuores
inclination, et je veux mêrne, si l'on ne peut plus aimer du rout, qu'on se
Completes, Paris, 1951, p. 137.
conrraigne pourtanr à agir com me si l'on aimait encore: puisque c'est en cerre
n Jaulnay, op. cit., p. 31. Cf. também De Caillêres, op. cit., p. 90, Recuei! seul e occasion qu'il esr permis de tromper innocernent, et qu'il est rnêrne beau
La Suze - Pellisson, op. cit., Vol. I, p. 241; Bussy Rabucin, op. cito (1972), de le faire.» Deve atender-se ao tom do legislar!
p. 361 e segs.
80 Libertins et amoureuses: documents inédits, Paris, 1929, p. VI.
92 RETÓRICA DO EXCESSO CAPiTULO VI 93
feitos heróicos, da concretização da ideia da cavalaria 81. No século facto de e no modo como se pode mais tarde retomar a esses mes-
XVII, esse modo de afirmação transfere-se para o papel do próprio mos acontecimentos, sob a acção de exigências mais fortes e compro-
amante e as exigências sociais surgem aqui ainda apenas como metedoras. Tudo isto impõe-se através de uma retlexividade social:
condicionalismos balizadores sob a forma de conceitos como: hon- a dama pode ainda repelir uma insistência mais forte, quando foi
nêteté, bienséance e nas formas verbais de galanteria. O processo ela a dar os primeiros sinais de uma atirude favorável; mas deixa
amoroso é posto a funcionar em regime de auto-propulsão. Precisa de poder surpreender-se deveras ou aceitar despudoradamente uma
de, acto contínuo, redinamizar-se a si mesmo. 82 corte mais arrojada. O sedutor pode esperar que ela seja obrigada
A dinâmica específica do processo amoroso é sobretudo formu- a levar em consideração o facto de ter sido ela a enrusiasrná-lo. E
lada enquanto estimulada pela autocompulsão do plaisir com vista quanto a este aspecto não conta a intenção real, mas aquilo que foi
a variar de formas e a combinar ininterruptamente o que é novo 83. tido como sinal respectivo e que a este nível não pode ser negado 85.
Todavia, da vivência do acontecimento amoroso surge muito em O processo amoroso tem portanto a sua própria referência
breve um momento mais fortemente táctico. Diferentemente do temporal. Os amantes começam - e a sua história fica de antemão
que o plaisir e o amor poderiam reclamar, as acções e os aconteci- programada para eles, através do código. Deste modo, o processo
mentos são fruídos não só em si mesmos, mas também valorizados amoroso conquista o seu próprio tempo e, tal como acontece com
de acordo com o seu significado mais lato. A mulher deve ponderar o fim, também o início tem o seu conjunto de características es-
se deve aceitar ou mesmo responder a cartas, se deve receber visitas, pecíficas e arípicas no que respeita ao amor. Neste caso ainda se
exprimir desejos, alugar carruagens, pois daí podem ser extraídas pode escolher com sensatez. Uma vez conhecido o código, o amor
conclusões de uma atitude mais permissiva que o normal 84. A es- acontece por assim dizer antes de se estar apaixonado, sobretudo
tratégia da sedução baseia-se, pelo contrário, exacrarnente no apro- com autocontrolo. A decisão de encetar uma aventura amorosa é
veitamento de tais sinais, para outras finalidades. A sensibilidade à frequentemente apresentada como um acto volitivo, através do qual
nuance intensifica a densidade das referências aos horizontes tem- se dá cumprimento às exigências de um jogo socialmente neces-
porais do acontecimento. Os acontecimentos tornam-se referências sário 86. A importância da escolha certa neste momento, antes de
temporalmente autônomas enquanto se for obrigado a pensar no
85 A consciencialização destas limitações sociotemporais é remetida para a
forma de receita neste primeiro arranque, encontrando-se mais tarde, sobretudo
81 «Par le mérite qui organise, pour ainsi dire, l'atrenre», formula Myrrha na literatura romanesca. Cf. por exemplo Crébillon (Fils), Lettres de Ia Marquise
Lotborodine, De l'amour profane à I'amour sacré: étude de psychologie sentimentale au
de M. au Comte de R., citado da edição de Paris, 1970. Aqui está, por isso, patente
Moyen Age, Paris, 1961, p. 73.
a (extraída do código e da sua literatura) consciência do tempo presente no
82 «Recommencez vos soins jusqu'aux bagatelles», é uma recomendação de próprio processo amoroso, e integrado com um sentido duplo: a consciência
Bussy Rabunn que deve provocar isto mesmo, (op. cit., 1972, p. 386) e, para segundo a qual o amor não pode durar, provoca um atraso da satisfação e a
além disso, reafirmar que se ama sempre: «Le passé chez I'amanr ne se compre consequente intensificação do sentimento necessário ao amor. Nesta medida,
pour rien; il veut qu'à toure heure on lui dise ce qu'il sçait déjà forr bien. a reflexividade do tempo funciona como equivalente funcional para a virtude,
(op. cit., p. 396).
cuja retórica é simultaneamente utilizada e revogada. Assim, a Marquise, sobre-
Cf. com o, (erradamente) atribuído a Pascal, Discours sur les passions de
83
tudo nas suas primeiras cartas, insinua as suas concessões através da forma
l'amour,in L'oeuvre de Pascal (Éditions de La Pléiade), Paris, 1950, pp. 313-323
(319, 321). segundo a qual comunica ter receio de que tais concessões, quando feitas, possam
ser exploradas - daía necessidade de omiti-Ias; ela poderia apenas continuar a
84 Cf. François Hedelin, Abbé d'Aubignac, Les conseils d'Ariste à Celimêne sur
comunicar que não ama.
les moyens de conseroer sa réputation, Paris, 1666. Ou numa versão mais tarde, já
86 Veja-se a este respeito Christian Garaud, Qu'est-ce que le rabutinage?
mais psicológica: «J'étais un peu rrop moi-rnême, er je m'en aperçus trop tard:
«XVII' Siêcle», 93, (1971), pp. 29-53 (p. 35 e segs. para «ernbarquer»); C. Rou-
l'espoir s'étair glissé dans I'ârne du cornre- (extraído de Contes Moraus de
ben, H istoire et geographie galantes au grand siêcle: l'bistoire amoureuse des Gaules et
Marmontel, precisamente Heureusement, citado das Oeuvres Completes, VoI. lI, Paris,
Ia carte du pays de Braquerie de Bussy Rabutin, «XVII' Siêcle», 93, (971), pp. 55-
1819, reimpressão, Genebra, 1968, pp. 83-95 (85).
-73 (65).
CAPiTULO VI 95
94 RETÓRICA DO EXCESSO

se perder o autocontrolo, não deixa de ser acentuada 87. O próprio caçar que a presa. O prolongamento no tempo serve a intensifica-
amor deve sobretudo operar aqui «incógnito» 88. ção, a verbalização, a sublimação; ele estrutura o interesse latente
Nesta fase inicial que se caracteriza mais pela complaisance que e comum e é antes de mais - visto à luz do contexto semântico
pelo amor, é frequente acreditar que se ama, sem se amar; ou _ a forma para a qual as preciosas (por exemplo: Madeleine de
também que se brinca ao amor, para que o entusiasmo cresça então, Scudéry) e os libertinos (como Bussy Raburin) podem convergir,
logo às primeiras contrariedades. Os obstacles são principalmente tendo em conta a unanimidade quanto à apreciação do jogo como
úteis à tomada de consciência e à intensificação da passion 89. jogo 92.
Também a primeira indicação favorável da amada tem um signifi- Todavia, esperança significa também que o resgate da pro-
cado especial: não se lhe podem fazer exigências, mas mal seja bem missória pelo futuro sairá mais caro do que se esperava. Surgem
sucedida logo se encontrará a segurança e se poderá continuar 90. também custoS suplementares, nos quais não se pensou, e a passion
Uma vez em marcha o processo cairá no controlo do respectivo então saciada poderá não estar em condições de os absorver. A dis-
código específico, estabelecendo-se novamente modos de comporta- crepância será apenas mais acentuada devido à estrutura reflexiva
das expectativas dos amantes; a mesma tendência para sobreinter-
mento normais e sensatos apenas quando parar. Inaugurar um
período próprio para cada situação amorosa constitui a situação pretar, que sustentava a estruturação da relação, bem como a com-
prévia de um processo de intensificação que se exprime através do paração entre esperança e realidade aceleram a desagregação 93. A
conceito de esperança (e respectivos receios), constantemente a sur- relação não acompanhou a sua própria temporalidade e dissipa-se.
gir 91. O efeito de intensificação é compatível àquele que se pro- O amor destrói-se a si próprio em virtude do tempo de que
cura obter em economia através do crédito; baseia-se no carácter carece, faz desaparecer as qualidades que deram asas à imaginação
indirecto, na inevitabilidade do desvio, deferred gratification e facto- e substitui-Ias pela confiança. Logo à segunda vez, uma mulher
bela surge menos bela e uma feia mais aceitável 94. A transposição
res de segurança especificamente funcionais de uma continui-
do código da natureza 95 para a imaginação expõe, noutros termos,
dade, todavia permanente do processo. A amada pode patrocinar o
jogo, concedendo sobretudo esperança, adiando a sua própria entre-
ga. O amante ficará mais predisposto a sobrevalorizar o acto de 92 Cf. por exemplo C. Rouben, Bussy Rabutin Épistolier, Paris, 1974, p. 88
e segs.
93 Uma boa ilustração é fornecida pelo segundo conto in Madame de
87 Por exemplo, Recueil La Suze - Pellisson, op. cit., Vol. I, p. 218 e segs.
Villedieu, Les desordres de l'amour, op. cit., p. 67 e segs., sintetizado na Maxime
88 Recueil, op. cit., Vol. III, p. 129 e segs.; de resto um tema apropriado es-
pecialmente a um tratamento romanesco. Veja-se d'Aubignac, op. cit., (1673), V (p. 85 segs.):
«Le bonheur des amans est rout dans I'esperance;
p. 96 e segs., ou também Claude Crébillon, Les égarements du coeur et de l'esprit,
citado da edição de Paris, 1961, p. 50 e segs. «<L'amour dans un coeur verrueux Ce qui de loin les éblouit,
se masque longtemps.») Perd de prés son éc1at et sa fausse apparence;
89 Jaulnay, op. cit., p. 4 e segs.; De Villedieu, Nouveau Recueil, op. cito (1669),
Et tel mettoit un plus haut prix
p. 133. A Ia felicité si long-tems desirée,
90 Cf. Jaulnay, op. cit., p. 53 e segs. Qui Ia trouve à son gré plus digne de mépris,
91 «L'esperance enrretient I'arnour, affoiblit les douleurs et redouble les plai- Quand avec son éspoir il l'a bien comparée.»
94 Também aqui o progresso da observação psicológica é digno de nota;
sirs», afirma-se em Recueil La Suze - Pellisson, op. cit., p. 237. Tal documen-
Pierre de Villiers, Reflexions sur les défauts d'autruy, Amesrerdão, 1695, p. 132,
ta simultaneamente a relação com a unilateralidade do esquema de percepção.
formula: «La beauté et Ia laideur reviennent presque au même; et I'une et l'autre
Também a correlação esperança e impaciência, esperança e inquietação, esperan-
diminue à force de les voir, et on aurait de Ia peine à dire pourquoi une belle
ça e medo continua sempre a ser acentuada. Também a própria esperança é de
femme paroist moins belle, et une laide moins laide, Ia seconde fois qu'on Ia
resto novamente temporalizada: no início de uma relação ela é antes medo,
ganhando a fortaleza necessária apenas com o decorrer do processo. (Iaulnay, voit.»
op. cit., p. 29.) 95 Cf. a este respeito, p. 61.
CAPiTULO VI 97
96 RET6RICA DO EXCESSO

tal como o romance ressurge no romance. Isto torna possível que os


o amor ao desgaste da temporal idade e na realidade muito mais
temas morais sejam colocados no primeiro plano da mera retórica,
rapidamente (!) do que a acção do declínio natural da beleza. A
permitindo o domínio da temática temporal. Aquilo que se apre-
subjectivação e a temporalização agem em convergência.
senta como «virtude» é na verdade um interesse pela duração, pela
Esta forma de assimilação de temporalidade, em conexão com
serenidade _ quase se poderia afirmar, pela redenção 98.
a subjectividade e a reflexividade social, evidencia-se especialmente
Esta complicação patente na relação entre literatura e literatura
quando é comparada com outros modelos, em que temporalidade
e entre a temporal idade e a moral, bem como o reflexo desta com-
e sociabilidade se encontram correlacionadas. A temporal idade é
plicação na reflexividade social das relações íntimas, deixará por
introduzida na teoria da conversação apenas como necessidade para
certo de continuar a ser um património comum. A codificação atin
uma mudança permanente. No conceito de amizade são válidas,
ge neste momento os limites das condições de sucesso na comuni-
pelo contrário, a constância e a tranquilidade enquanto caracterís-
cação social. Um Marivaux será um autor com sucesso quer para os
ticas definidoras de uma relação perfeita. Por isso, a questão do tem-
seus contemporâneos quer para a posteridade, o mesmo não acon-
po torna-se, no século XVII, tema predominante ainda enquanto di-
ferença entre relação inconstante e constante - e não enquanto tecerá com Crébillon 99.
Este tema deveria ser aprofundado só por si. Seja como for, a
processo que a si próprio se constrói e volta a destruir. Esta versão
estrutura temporal do processo amoroso facilita, todavia, a diferen-
do problema apenas se ultrapassa através da semântica do amor,
ciação plena do código, estabelecida para ele. A estrutura temporal
dinamizando-se a relação entre temporalidade e reflexividade social
obriga sobretudo a uma (sempre discutida) separação entre amor e
sob a forma de um processo especial e com a sua história própria
casamento lOG. O contraste entre amor e casamento é apresentado de
- um indicador importante do facto de se estar a trabalhar aqui
na diferenciação plena e na automatização de um campo funcional. de ... au Duc de ... , in: Oeuvres Completes, Londres, 1777, Vol. I e, nalguns casos,
O impacte deste tema - temporal idade e brevidade, quando Vols. X e XI (citado da reimpressão, Genebra, 1968). Ambas as damas lutam
não instantaneidade do amor - deixa-se também reconhecer pelo consigo próprias pela sua «virtude», tendo por pano de fundo a esfera da sua
facto de ocupar um lugar fixo no código simbolicamente generali- auto-representação. A virtude não constitui para ambas a essência da questão,
mas sim a consciência do amor como algo de inconstante. Ambas tomam deci-
zado do meio amor e de ser posteriormente tratado como um
sões diferentes. Ambas se tornam infelizes.
conhecimento indiscutível, como um quadro de circunstâncias 98 A este respeito é também difícil afirmar o que existe realmente de novo
conhecido por todos. Na literatura do século XVII afirma-se ainda nos séculos XVII e XVIII. Possivelmente este contexto que reflecte influências
que tal acontece assim; nos romances e peças de teatro do século semânticas com referências temporais. Por certo, não é o simples aviso segundo
XVIII surge o mesmo tema como fazendo parte da sabedoria das o qual, independentemente de questões morais, não vale a pena o adultério, uma
vez que o companheiro não é merecedor de confiança. A este respeito, por
personagens. Torna-se assim componente da estrutura de motivos
exemplo, documentos extraídos do Livre des trois vertus (1405), de Christine de
inerentes ao amor 96. A impossibilidade de continuidade torna o Pizan, em Chariry C. Willard, A fifteentb century view of tbe women's role in medieval
amor difícil, em especial para as mulheres. Tornam-se necessaria- society: Christine de Pizan's Livre des trois uertus, in Rosemary Thee Morewedge
mente infelizes quer se decidam apesar disso pelo amor ou não o (ed.), The role of woman in tbe Middle Ages, Londres, 1975, pp. 90-120 (em
façam por isso mesmo 97. A literatura reflecte os efeitos da literatura, especial p. 111 e segs.).
99 Não faltam indicações de peritos, mas a hísroríografie literária continua
a não realizar ainda por completo as indispensáveis revalorações.
96 Cf. a este respeito e relativamente a mais bibliografia sobre o século 100 É de anotar o Tácto de Astrée se confrontar quer com a capacidade de
XVIII, Georges Poulet, Études sur le temps humain, Vol. Il, Paris, 1952; Clifton
permuta quer com a diferenciação entre amor e casamentO. Na realidade, sob
Cherpack, An essay on Crébillon (fils), Durham N. c., 1962, p. 28 e segs.;
uma oposição consciente à opinião dominante dos seus contemporâneos. Mas as
Laurent Versini, Lados et Ia tradition: essai sur les sourceset Ia technique des Liaisons
vulnerabilidades desta versão obrigam à sua deslocação para a terra dos pastores.
Dangereuses, Paris, 1968, p. 436 e segs.
É especialmente difícil imaginar como é possível concretizar no casamentO a
97 Comparem-se para o efeito ambos os romances epistolares de Claude
passion no sentido de uma auto-entrega da própria personalidade e de uma
Crébillon (fils): Lettres de Ia Marquise de M. au Comte de R. e Lettres de Ia Ducbesse
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98 RETÓRICA DO EXCESSO
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um modo tão acentuado 101 que nunca será errado supor-se que esta "(~.~~ ..
distinção entre passion e casamento socialmente constituído e fami- ,~ e"
liarmente consolidado tornou consciente, mais que qualquer outra ~~ ~
coisa, a diferenciação plena característica das relações amorosas 102. CAPÍTULO VII
Foi num acesso de raiva que o deus do amor conduziu os amantes
~
ao casamento e assim à perdição, como se lê frequentemente 103. Da galanteria à amizade
Contrair casamento constitui um modo honroso de romper com a
amada. Assim o define Bussy Rabutin 104. É válido independente-
mente de todas as qualidades mais insignes: «11suffit d'êrre marié ~~oral do amor pe~nar-Fat+vo
pour ne plus aimer» 105 ou quem quer casar com a sua amada quer do~, a narração de «histórias de amor» e através disso uma
odiá-Ia 106. Em Cotin encontra-se o seguinte verso na obra Amour -espécie de Ersatz especificamente funcional dos mitos 1. Pontos de )
sans exemple: «Iris, je pourrois vous aimer, quand même vous seriez contacto, para diante ou para trás, podem permanecer em aberto
ma femme 107.» E numa carta, Le Pays 108 reporta-se à morte e ao quer a outras aventuras amorosas quer àquilo que aliás ainda se tem \
casamento como duas infelicidades, às quais escapou apesar da fe- de realizar. A eliminação da razão e do juízo simboliza também a ~.
bre e da pressão familiar, conseguindo salvar a sua vida. Tais argu- <:!iferenciaçãõplena de trat;U;;ento especial do am2f. Dos juízos
mentos não são válidos contra a instituição casamento (embora racionais esperar-se-ia que conduzissem em todos os casos a iguais '
também vigorem no seio do movimento feminista), mas antes a ~es~tados;_aTfracionalidade dã inClínation .protege exaCtãmetlte
favor da diferenciação plena do amor. O aspecto axial da distinção deste fact.Qz..
d~ modo_a_ verificar-se uma melhor distribuição de
reside na questão temporal: a duração.
oportuni.4ad~1'_amorosas 2.
Para além da separação entre relações íntimas ~ ~ suª--p!O=
submissão absoluta. O trabalho sobre formas ilusórias está atribuído ao romance, blerll"áticadistributiva pr6pria, segund~~ perspectiva temporal
mesmo quando o autor sublinha: os juramentos de eternidade e submissão não e social, a diferenciãção plena exige também conceitos unificad~s;
devem ser apenas proferidos; devem pressupor uma intenção honesta. Também e exige sobretudo para a so~iedade estratificada a criação de um /y"
a crítica do romance se dirige exactamente para esta questão na segunda metade ~~ de formas universalmente válidas de intera~s~o soçttl, I\:' ";
do século XVII. Cf. Abbé de Villards, De Ia délicatesse, Paris, 1671, p. 8 e segs.
nos estratos SOClals-eteVãdos.:. Isto mesmo é desem...2enhadoP!lO
O leiror não está interessado no amor que conduz ao casamento, pois tal não é
possível; ele gostaria de ver autorizadas as suas fraquezas, interessa-se pelo amour
ito de gatãnferie '-, -durante uma certa época de transiç!g.
derreglé. Também aõSofhõs de terceiros a corte pode em certa rríêaida ser
101 Veja-se De Cantenac., op. cit., p. 7 e segs.
102 Naturalmente que nos podemos perguntar também a quem se dirige esta I Sob este ponto de vista, a substituição histórica é digna de nota, tal como
literatura? Naturalmente aos casados! Por detrás da recusa do casamento esconde- Ferrier de La Martiniêre sublinha, pois para si não foram as musas, mas a expé-
-se, visto deste modo, a necessidade de fornecer directivas orientadas para os rience e usage que lhe guiaram a pena (op. cit., 1678, p. 10, op. cit., 1698, p. 3 e
casamentos que se contraíram com base em interesses de família e não no amor segs.). Tal legitima a preparação do código com vista à sua utilização intencional.
e que se viram confrontados com o amor. Cf. em especial François Hedelin 2 Este argumento interessante (quase se poderia dizer: «burguês») patente
d'Aubignac, Conseils, op. cito em Jacques du Bosq, L'honneste femme, reimpressão, Ruão, 1639, p. 322: «Plu-
103 Em Cantenac, op. cit., p. 11. siers peuvent avoir le mesrne jugement, mais il ait mal-aisé, qu'ils ayent Ia
104 Dp. cito (1972), p. 382.

105 Anónimo, L'amour marié ou Ia bizarrerie de l'amour en estat de mariage, mesme inclination.»
3 Veja-se a propósito da história do conceito «galant», Else Thureau: Ein
Colónia, 1681, p. 2. Beitrag zur franzosischen Wort- und Kulturgeschichte, Frankfurt, 1936; para além
106 Bussy Raburin, op. cito (1972), p. 381 e segs. disso, também Christoph Strosetzki, Konversation: ein KaPitel gesellschaftlicher und
107 Cotin, Deuvres galantes en prose et en vers, Vol. Il, Paris, 1665, p. 519. literarischer Pragmatik im Frankreich des 18 Jahrhunderts, Frankfurt, 1978, p. 100
108 Amitiez, amours et amourettes, op. cit., p. 333 e segs.
~

'h)
,,\ 100 DA GALANTERIA À AMIZADE
CAPiTULO VII 101

"-
base nisto, contribuir exactamente para se conseguir uma n
levada a efeito sem qualquer compromisso sob a forma de galan-
~ síntese nos paradoxos do amour passion - tal como t~ se
;:: teria. O comportamento galante apresenta-se como capaz de en-
supera sempre ;- mera galanteria, nos seus traços mais conven-
j contra; pontos de contacto quer rlõ campo da intimidade quer n
cionais, sob a forma de paradoxos. Também os libertinos se esfor-
campo da sociabilidade, sendo também capaz de ultrapassar dife-
çam por a protegerem dos mal-entendidos, por uma semântica
~ renças de estrato social 4. A galanteria pretende a~r,
digna de ser mantida; preocupam-se apenas com uma autonomia
Se"mse comprometer a si ou aos outros 5; tal é possível em s~de
mais forte da moral que interessa especialmente ao amor. A litera-
e surge 19~mente-COrnQ um .ingredienre indispensável ao amor 6,
tura que contém apenas vexames 9, em nada contribui para este
sue por s~ez ape~ através desta componente surge c~o
de civilizador, eduçgrivo, socializante. A galanter~onserv~as tema.
~ ainda presumir que a velha idealização da semântica
suas formas linguísticas e respectivas implicações uma sem..imka
do amor (como forma unicamente imaginável de um código norma-
romanesco-idealista _ ~q~ qualquer uso. Vigora ~o
tivü)c:Ofilpõrtou todavia as inovações do amour passion que a ~e-
estilo socialmente vinculativo quer para um comportamento enga-
rarl1'0-:!sto está patente num artigo inÜtulado - «La iustifkat'tõOde
noso e sedutor quer para uma corte sincera e amorosa;. o que ~
l'amour» 11 e publicado no Recueil de Sercy. O amor é apresen-
só tem como consequência não só a dificuldade de decifrar o com-
tado, enquanto amour raisonnable, como algo de necessário, sensato
portamento e de reconhecer o verdadeiro amor, mas também o
e bom, o que inclui a justificação do prazer. Tudo é lido sem
interesse em desmascarar, interesse este que a arte de amar ensina
obstáculos e de um modo impecável do ponto de vista moral, com
e simultaneamente revela. Seguindo o princípio dest<Lfo~cial-
ligeiras e oportunas precauções: o amor deve manter-se oculto a fim
mente vinculada, as preciosas e os libertinos contribue~e~
de não prejudicar o matrimónio, uma vez que todas as coisas
de tudo o ~ os separaradicalmente, Rara o nascimento de um
grandes do mundo são, de acordo com a sua natureza, secretas 12.
Código do amour passion 7. É-Ihes comum a ins.enção de evitar o casa-
E uma vez que, depois do pecado original se tornou simplesmente
mento 8. A heterogeneidade das suas origens e intenções pode, com
inevitável pecar, é melhor cometer os pecados necessários ao amor
enquanto «douce offense, Ia plus naturelle et Ia plus agréable» 13.
e segs.; Roger Duchêne, Réalité vécue et art épistolaire: Madame de Sevigné et Ia lettre
Com estes aditamentos, a aplicação da forma semântica da ideali
d'amour, Paris, 1970, p. 35 e segs.
4 Boas indicações sobre esta condição de dupla faceta em Max Freiherr von
z~~ tem um efeito já um pouco deslocado; mas aparenta ainda
Waldberg, Die galante Lyrik: Beitràge zu ihrer Geschichte und Charakteristik, Estras- s~dispensável enquanto meio de persuasão. Muitos dos novos
burgo, lJl85. Parsons falaria aqui presumivelmente de «inrerpenerração». momentos dependem das premissas tradicionais. M~a-meâ.1cta
j Assim define Jaulnay, op. cit., p. 98. em que a semântica do amour passion atinge a coesão interna e
6 Jaulnay, op. cit., p. 2, apresenta tal com clareza logo no início. O amor não

é apenas «désir d'estre aimé de ce qu'on l'aime», afinal não só amor pelo amor
como dirá Jean Paul mais tarde, mas também «quelque chose de plus, parce que acerca da tirania no casamento e das conversas a ela associadas in Michel de Pure,
l'on cherche à plaire devant que d'esperer d'estre aimé, et le désir d'y reussir La pretieuse ou te mystere des ruelles, Vol. II (1656), citado da edição de Emile
precede celui d'estre heureux». De igual modo René Bary, L'esprit de cour, op. cit.,
Magne, Paris 1938, p. 276 e segs.
p. 233. 9 Veja-se por exemplo Du Four de Ia Crespeliêre, Les foux amotaeux, Paris,
7 Também Rouben, op. cito (971), p. 67 e segs., mostra que é possível 1669; do mesmo autor, Les recreations poêtiques, amoureuses et gatantes, Paris, 1669.
encontrar perspectivas morais contrárias, tendo em vista a generalização das 10 Instrutivo a este respeito Octave-Nadal, Le sentiment de l'amour dans l'ouvre
máximas de comportamento.
de Piem Comeille, Paris, 1948.
S Para as questões do casamento das preciosas, cf. Gustav Reynier, La femme
11 Recuei! de piêces en prose, op. cit., (1660).
au XVII' siêcle, Paris, 1933, p. 87 e segs.; e ainda algumas indicações ao longo 120p. cit., p. 306 e segs., p. 321. Cf. também Kelso, op. cit., p. 171 e segs.,
das caracterizações breves do Dictionnaire des précieuses, da autoria de Antoine
p. 178 e segs.
Baudeau de Somaize, 2.° edição, 1660/61, citado da edição de Paris, 1856,
130p. cit., p. 309.
reimpressão, Hildesheim, 1972; ou a queixa de Eulalie (Corntesse de La Suze)
CAPiTULO VII 103
102 DA GALANTERIA A AMIZADE

começa a ser auto-suficiente, a necessidade de referência ao ideal


retrocede e logo começam a ter efeitos ridículos as tiradas ret6rícas,
--
avança nesta direcção. Face às- aterradoras «desordres de I'amour»
-----..
o romance recomenda, de acordo com o modelo da Princesse de

\'
"
os sentimentos imitados, os suspiros periódicos e o cair dejoelhos.
--
Os momentos psicologicamente requintados da nova semântica
- eleves, a renúncia e a abdícação enquanto forma de actuação moral
_ enqu~nto Tr~6!
Retomar a uma apreciação religiosa moral só é possível porque
"'-... estimulam a p~tensão: regressar à natureza! ainda não se põe a questão das relações íntimas e pessoais. Isto
A condicionante genética de uma idealização ainda vigente e de mesmo se comprova num texto de Bourdaloue que documenta
uma diferenciação plena ainda incompleta torna-se obsoleta em simultaneamente este desenvolvimento, acontecido em finais do
virtude da própria evolução semântica, O vínculo para com todas século XVII 17. No novo modelo mundano de amizades estabelecidas
as formas de vida social universalmente ~idas, a galanreriaç ra- é
de um modo ab;--s-o'l-u-to-,-c-e-n~o facto de acabarem pcifSebasear
pidamente ultrapassado pelo facto de aumentarem as exigênciasCIe no egoísmo, deriãOjJrocurarem_ a salvação do outro e de permâõe-
estilização individual do amor e pelo facto de os estratos da burgue- cerem ii:!.9tre!entespãi'a com este 18. A distinção face a este .E,po de
sia começarem a adoptar os modelos da aristocracia. A galanrefià amizade mundana e humana-está-slntetizada na caritas que tenta
rende-se ao repúdio e à troça, após ter realizado a sua função de amar a Deus na pessoa do outro. Em compensação, não se conside-
transmissão. E a função de reintegração do amor e da soc~de ram obstáculos as qualidades bizarras e perturbadoras, típicas do
transita para umã nova configuração: para a legitimação do senti- outro; as suas qualidades positivas não constituem a base do amor;
mento. É possível também observar segundo outras perspectivas, tão-pouco é também aplicável a regra: aimer ceux qui nous aiment 19.
exactamente ao longo das questões próprias da diferenciação plena, Por isso, no que respeita à pessoa, a caritas torna-se também indi-
que os esforços para formular e redigir um código para o meio de ferente; não lhe interessa o seu destino nem as suas peculiaridades,
comunicação amor excedem rapidamente o seu ponto mais alto nos apenas está interessada no seu bem-estar. ~ão...entre ambas
salões e na literatura do classicismo francês. Quase que se poderia a~ form~ de amar-o-amigo consiste na distinção entre duas formas
pensar: o amor envelhece com o rei. ~12QLYQ1ta-de 1690 que o de .indiferenç,a. Quando se procura a orientação nesta distinção
amor saudável, espontâneo, fantasioso, ousado, atingindo até afri- elimina-se desde logo a condÍcÍonantesegundoa qual se escolhe a
volidade volta a submeter-se ao controlo da moral. O que não
orientaçao pela lOdlVlduaIíclã,gedo outri ~uma época em quejá a 0
'passava de paradoxo, superficialidade ou mesmo fri';olidade dest- nível das transf'õl'J:'llãÇões
socioesttuturais se manifesta uma neces- \\ )
gurar-se-á, tornando-se cinismo, acabando por cair no repúdio 14. E sidade de orientação pela individUalidãde, tal significa u!!lli..liana-
por outro lado, surge uma nova literatura sobre mulheres, na qual' ~ªo entre religião e moral. A caritas remetida para Deus é
o amor passional nem sequer é mencionado 15. Também o romance entendida como:Fácil e praticável» - precisamente porque não
depende das qualidades dos indivíduos 20.
14 Um exemplo a propósito e extraído das típicas «Sentences ou maximes Uma das formas.nas S1:!aiseste movimento de rerocno à moral
contre I'arnour», de Chevalier de Mailly, in: L C D. M. Les disgraces des amants,
encontra expressão, consiste na reanimação do ideal tern~~er-
Paris, 1690, pp. 61-73 (68): «Les femmes pleurent Ia more de leurs Amans,
moins par le regret de leur peree que pour faire croire que leur fideliré rnerite
de nouveaux Arnans.» 16 Cf. Catherine Bernard, Les malheurs de l'amour: premiêre nouvelle Eléonore
15 Ver Abbé Goussault, Le portrait d'une femme bonnête, raisonnable et verita- d'Yvrée, Paris, 1687; da mesma autora, Le comte d'Amboise: nouvelle galante, Haia,
blement cbrêtienne, Paris, 1694; do mesmo autor (erradamente atribuído a Fle-
chier), Réflexions sur les différents caractêres des bommes, in Esprit Fléchier, Deuvres 1689.
17 De Ia charité chretienne et des amitiés humaines, citação de Duvres Completes,
Completes, Paris, 1856, VoI. II, colunas 973-1050 (em especial, 1028 e segs.) -
reedição, Versalhes, 1812, VoI. XV, pp. l-50.
regisro claro dos valores com origem nos estratos sociais burgueses. Para a
18 Assim explícito, op. cit., p. 12.
evolução exacrarnente correspondente em Inglaterra, cf. Joachim Heinrich, Die
19 Dp. cit., p. 8.
Prauenfrage bei Steele und Addison: eine Untersuchung zur englischen Literatur- und
20 Dp. cit., p. 6.
Kulturgeschichte im 17.118. Jahrhundert, Leipzig, 1930, em especial p. 113 e segs.
~ cy~ " CAPÍTULO VII
105
104 DA GALANTERIA A AMIZADE ~
o amor como dever transforma-se em amor como simp-atia, equi-
~a amizade 21.Lamentou-se o declínio da ética própria da ami- p;;ado ao ideal de amizade. Assim se atenua a assimetria no seio
zade por volta de 1660, sendo também considerada impraticável da soberania doméstica. A velha exigência: não obrigar quem quer
(talvez à luz da imagem gerada pelos conflitos políticos e pelas que seja a casar-se contra a sua vontade expressa, encontra uma
intrigas de corte). Por volta de finais do século, tudo se recupera nova fundamentaçaão em pontos de vista oriundos da razão e da
com mais vigor. ~ suret« e a douceur, próprias da amizade.•~ão moral.
enaltecidas, bem como a inutilidade de todas as extravagâncias e a Todo o século XVIII persegue este esforço: transformar o código
possililidadede transcender meras relações duais de curta d.1!raç~o. daíírtimidade do amor nüffia a~e «ínti~ 26. Este esforço
De um ponto de vista mais lato[élimina-se o rigor da difer~ inclui também os pnmeTrõSãfgu~tos com vista a)~
plena inerentê a um código da tntimidade: as amizades são.simul- intimidade no casamento - não com base no amor, mas co.m..-base
taneãmente--uffia autocaracterização para a esfera púglic~2. Não na amí~de, apenas i.::d~vel através ~r 27.O -a;c:r no casa-
admifã;""p0rlSso, que sob este ponto de vista se lastime a qQ~ da
galanteria - das velhas formas de reintegração 23.'lTodavia, neste
caso insiste-se na o osi ão e.n.t1:e-ªmibad~. Na--rr=iesma
época verifica-se em Inglaterra uma evolução semelhante: compro-
mento pode ser assim mais reacentuado, desde que, enquanto foi
amour, não determine a escolha do parceiro e continue sendo amor
racional 28. Mas o que ~ raisonnabie surge agora como alegre e feliz,
--
va-se um afrouxamento na rigidez do conceito puritano de casa- 1965; para o amor e a amizade, em especial p. 59 e segs., 147 e segs., 291;
mento, não só através do conceito de amizade mais fortemente per- Lawrence Srone, The family, sex and marriage in England 1500-1800, Londres,
sonalizado, mas também de uma análise psicológica mais precisa 25.

!
1977, p. 219 e segs.
26 Cf. também a este respeito Albert Salomon, Der Freundschaftskult des 18.
jahrhunderts in Deutschland: Versuch zur Soziologie einer Lebensform, "Zeitschrift für
21 Veja-se quão característico e influente: Anne- Therêse, Marquise de Soziologie", 8 (1979), pp. 279-308; Wolfdietrich Rasch, Freundschaftskult und
Lambert, Traité de I'amitié, citado de: Ouores, Paris, 1808, pp. 105-129. Cf. Freundschaftsdichtung im deutschen Schriftum des 18. jahrhunderts vom Ausgang des
também Louis-Silvestre de Sacy, Traité de I'amitié, Paris, 1704. Igualmente Barock bis zu Klopstock, Halle, 1936; Ladislao Mittner, Freundschaft und Liebe in
também, Marquis de Caraccioli, Les caractêres de l'amitié, citado da edição de der deutschen Literatur des 18. jahrhunderts, in Festschrift Hans Heinrich Borcherdt,
Paris, 1767. Encontra-se uma visão panorâmica da literatura em Frederick Munique, 1962, pp. 97-138; Friedrich H. Tenbruck, Freundschaft: ein Beitrag zu I,
Gerson, Le tbême de l'amitié dans Ia littérature française au XVIII' siêcle, Paris, 1974. einer Soziologie der personlichen Beziehungen, "Kõlner Zeitschrift für Soziologie und
22 «II nous faut songer de plus que nos amis nous caractérisent; on nous Sozialpsychologie", 16 (1964), pp. 341-456. \1
27 Assim, por exemplo, Johann Gottfried Herder, Liebe und Selbstliebe, in
cherche dans eux; c'est donner au public notre portrait et l'aveu de ce que nous
somrnes», escreve a Marquise de Lambert (op. cit., p. 114). Siimtliche Werke (ed. Suphan), Vol. XV, Berlim, 1888, pp. 304-325 (em especial
23 «La galanterie est bannie, et personne ri'y a gagné» (Lambert, op. cit., p. 311 e segs.): «O amor deve comportar apenas a amizade, o amor deve tornar-
p. 159 e segs. (175) e passim. Um outro autor afirma: «La galanterie autrefois -se ele próprio na amizade Íntima» (313). Outras indicações em Paul
si cultivée, si florissante, frequentée par tant d'honnêtes gens, est rnaintenanr en Kluckhohn, Die Auffassung der Liebe in der Literatur des 18. jahrhunderts und in
friche, abandonnée: que I desert!» (anónimo, Amusemens sérieux et comiques, Ames- der deutschen Romantik, 3: ed., Tübingen, 1966, p. 150 e segs. Também é vulgar
terdão, 1734, p. 98. E ao tema da galanteria dedicam-se apenas mais duas folhas encontrar-se a indução inversa - na literatura como na realidade: em primeiro
num livro com tal título!). Igualmente Abbé Nicolas d'Ailly, Sentiments et lugar amizade íntima, a irmã do amigo contrairá então casamento (Cf. Mittner,
maximes SUl' ce qui se passe dans Ia societé ciuile, Paris, 1697, p. 34. A condenação op. cit., p. 101 e segs.).
28 «Je veux donc que l'amour soit plürot Ia suite que le motif du mariage;
da galanteria não prevalece todavia de um modo geral, quer moralmente quer
psicologicamente - assim, por exemplo, nos Contes Moraux de Marmontel. je veux un amour produit par Ia raison», afirma-se relativamente à «union
24 Larnbert , op. cit., p. 114 e segs.; Jacques Pernetti, Les conseils d'amitié, 2: intime» do casamento em Le Maitre de Claville, Traité du vrai mérite de l'homme,
edição, Frankfurt, 1748, p. 77 e segs.; Marquis de Caraccioli, La jouissance de soi- 6: edição, Amesterdão, 1738, Vol. Il, p. 127. Com isto registam-se, inequivo-
-même, reedição, Urrechr-Amesterdão, 1759, p. 407; Marie Geneviêve Thiroux camente, influências inglesas. Cf. também Ian Watt, Tbe rise of the nouel: studies
d'Arconville, De l'amitié, Paris, 1761, p. 1 e segs., 7 e segs., 80 e segs. in Defoe, Richardson and Fielding, Londres, 1957,5: ed., 1967, em especial as
2j Cf. exaustivamente a este respeito Wilhelm P. J. Gauger, Gescblecbter, indicações na p. 160.
Liebe und Ehe in der Auffassung Londoner Zeitscbriften um 1700, Diss., Berlim,
CAPiTULO VII 107
106 DA GALANTERIA À AMIZADE

pois O verdadeiro amigo não poderia recusar com facilidade ao seu


tranquilo e decente - tentando-se consequentemente ,Qurificar o
~Quzidos.Felos entusiastas e
cô!!iuges descot).-
amigo a liberdade de dizer não. Isto mesmo era uma prova de
verdadeira amizade, mostrar compreensão quando os implicados
~29. A amiza~ amorosa faz quase desaparec~r a diferença
-=.ntre os se~s, Ia mollesse ayant tout feminisé; ~-os.iei.tQf::ner2i:.. somos nós mesmos.
Um outro exemplo, versando o tema da corte à dama, pode ser
- ---
cos mas os petits soins que conguistam as mulheres para.o.amor e
quanto a excessos, apenas se ouve ~o: «Il est de Ia
extraído da literatura inglesa. Não se trata aqui de um ímpeto
passional-impulsivo, mas exactamente do contrário, de uma apa-
ruuure deYamou~e ne pOlfit vouloir de reserve, mais sa principale
rente inintencionalidade patente no comportamento que visa o con-
substance est le sentiment.» 30 ~m ponto de vista profun-
tacto 32• Careful/y care/ess - inventado na Bond Street, tal como
damente teórico, abrangendo á tradição dãfiiosofra prãiTca, verifi-
Stendhal queria dizer 33. Tal permite que o parceiro - precisa-
ca-se que a inserção profunda do conceito de socialização'-orienta~
mente quando entendido como tal - entre em jogo por sua livre
para uma sociabilidade reflexiva, parece ter sobretudQ.2Podificado
vontade, apresentando também a vantagem de (ainda) não empe-
a relação-entre os conceitos de amo; e-amizade (paralelamente à
nhar demasiamente aquele que representa. A apresenta ão inten-
receita banal de amizade como solução para os problem~u-
~. A~ disposições conceptuais, inerentes à tradição, prejudicam
cional da inintencionalidade é um requinte ré
lCOsó per~tível
a nível do fundamento da reflexividade social e praticável à prova
a amizade em reIaçao ao amOr. O amor era uma qualidade, a
de desilusão~ também preenche então a sua função, sempre que
uma relação. Ó am~va
-am=-"17z-ad"1eapénas em relação ~~m
Deus quer-consigo mesmo, a amizade, pelo contrário, era -ªp~nas é desvendada 34• - -
A -;:eflexividade social ainda não é apresentada nestes casos
possível na relação com os outros. A amizade não passou assim (tal
como princípio, nem elaborada sistematicamente; mas a ideia já lá
como sucedeu c~ação da Ética a N icómaco) de algo
adjacente ao tratamento das questões éticas. Todavia, parece haver,
está, inicia-a. transformação da casuística da amizade e do-amor, fi1;:)
sendo já visível aqui e ali na condução dos argumentos - e certa-
por volta de 1700, uma modificação, na medida em que a reflexi-
ão de um mod~casional, nos passos em que não funciona
vidade social se torna ponto de partida para um novo tratamento
a transferência das valorações da aristocracia para a burguesia.
de questões relacionadas com a ética e o direito natural; e ~o fosse
- Todaviã1olo amoiVísto no seu conjunto, e não a amizade ue
. a interferência da sexualidade obrigar a uma diferenciação, tudo
impôs o ritmo à corrida, acabando por determinar o código da
pareceria indirnque durante um certo tempo o amor e a amiZãae
lrití~ Porquê? Não é fácil encontrare docúmentar as respec-
'poderiam ser objecto de fusão. Contudo, ambos os conceitos cõfi:.
tivas razões. Pode-se porém supor que' a amizade, apesar de todas
correm à posição determinante do código das relações íntimas.
Os indíc~ da inserção mais profunda inerente à compreen-
são da socialização apreserrrarrr=se dispersos e dissimulados. Gous- 32 Cf. a este respeito Gauger, op. cit., p. 281 e segs. Encontra-se também

sault 31 critica assim, por exemplo, o princípio aristocrático da ge- uma exemplificação brilhante no início do romance de Claude Crébillon, Les éga-
nerosidade, que é mais ou menos uma auto-representação da vir- rements du coeur et de l'esprit (1736-38), citado da edição de Paris, 1961. Cf ainda,
como correspondente moderno, a citação extraída de William Samson, A contest
tude própria e que, uma vez traduzido para as relações burguesas,
o/ !adies, Londres, 1956, em Erving Goffman, The presentation o/ self in everiday
acabaria por se tornar num princípio de exploração, anotando o
li/e, 2." edição, Garden Ciry N. 1., 1959, p. 4 e segs.
facto de a amizade compreender a oferta e a recusa de empréstimos;
33 De l'amour, op. cit., p. 153.
34 Pode-~ falar aqui de uma prova de confirmação. Existem algumas que
se dissipam quando desmistificadas e outras que se afirmam mesmo nestas situa-
29 Veja-se a respeito desta variante, Boudier de Villemert, L'ami des femmes,
ções. Cf. a este respeito, James W. Woodard, The role o/ fictions in cultural
ou phi!osophie du beau sexe, reedição, Paris, 1774. " ,;:ganization, «Transactions of the New York Academy of Sciences», II, 6 (944),
30 Citação de op. cit., p. 21 e segs., e 119.

31 In Flechier, op. cit., coluna 1046. pp. 311-344.


f::,
CAPiTULO VII 109
108 \ DA GALANTERIA A AMIZADE

as priva~~ões e distinções entre amizade vulgar e especial deste modo protegido do deQínio. ~encia-se exactamente pelo
(Thomasius), não se evidencia como delimitável nem como objecro facto de procurar a sua unidade na paradoxlzaçao e na anrbivatên-
~ ~o...encontrada f~cultou-se não um programa-;Ií'íãSã
de diferenci~ A obsessão pela virtude inerente ao culto da
-ã.lTlizade,que utiliza geralmente uma moral estabelecida, aponta possibilidade de associar interpretações profUndamente individuali-
nesta direcção. Para além disso, a reflexividade torna-se agora sim- zantes.

cv plesmente numa máxima deinteracção 35,~to


de vistã--dê!xa de ser "por isso suficiente para perfilar com precisão
um código das relações íntimas. Finalmente, deve-se considerãr
A análise confirma uma suposição, mais universalmente for-
mulável no âmbito de uma teoria da evolução das ideias. ~ões
adentro do ideário, passíveis de sucesso em, virtude da sua plausi-
também o facto aeo mecanismo simbiótico da sexualidade, que b~oralmente coiídTcionada (neste caso também: poden-
comporta em si a diferenciação plena a nívêl das relaçõesde-iatec- do ser convincente nossalões), ganham estabilidade e possibilidãâe

-
'acção, não-estar à disposição da amizade, por isto mesmo ser-aquilo
que a distingue do amor.
'
de serem transmitidas, por serem sistematizadas, isto é, contextua-
li~ num guadro em que se confirmam mutuamente 39. Tais
Verifica-se de um modo geral o facto de, por volta de 1700, alterações admitem por seu lado, e ao longo da reprodução con-
a natureza e a morar Serem de novo reivindicadas com mais vee- tínua, novas variações que se encontram submetidas a uma obriga-
:ffiência,sinalizando uma tendência para a recessão da direreríC1aÇão toriedade de adaptação e apenas lentamente transformam o com-
plena, .,eara voltar a nivelara-inovação semântica. Todavia não se plexo semântico. ~ clássico do amour passJ.on
,-chegou a tal. A galantecia foi sacrificada, mas não o amor. Talvez transforma-se em amor romântico, mantendo-se a ideia - trata-se
que o comportamento amoroso do estrato social mais elevado não de.3J!la~a @itÚi; A unidade não se torna lógica, pel~70n-
estivesse muito predisposto a ser catalogado com etiquetas morais. trário, é garantida precisamente pela paradoxização de um moclo
Todavia, ~s próprias transformações da semântica remetem sobretu- igualmente efecrivo. Esta1Qrma de_garantiLa unidade e a paradoxi-
do para o facto de ser impossível deter o interesse crescente pelas zação vem talvez ao encontro dos sentimentos dos amantes;pelo
:r~ relações amorosas individuais e marginais ao restrito controlo so- menos ao encontro dos problemas de apresentação próprios dos que
~.Âgora ~rmaliz~do ~o retorno ao amor-próprio 37~do escrevem sobre o amor. Tal forma conserva intacto pOLCUL~s
inicialmente ainda como algo de problemáticO: - ,\;12 '-.c\_ de dois séculos o meio, ~o-se apenas problemáticª,,_quando
- Apassion activa~rmite acto contínuo a sua p~nsfor- extgeque o amor seja a característica fundamental (sempre quSse

-
maçãoêm sentimento e a ocupação com funções de, individliãJ:izãz éoõtrãi) do casamento; pois é então que através da semântiGa-do
çao. O aparelho semântICOdo código cõffi-vista ao amour passion é amor se é colocado perante a questão referente à possibilidade do
casamento se deixar conceber como instituição paradoxal.

Jj Cf. Niklas Luhman, Interaktion in Obersiscbten, in Gesellschaftsstruktur und


Semantik, op. cit., VoI. I, p. 72 e segs.
36 Típico por exemplo: Jaulnay, op. cit., p. 9: «Il faut presque d'avouer, que
l'Amour n'esr autre chose que l'Amour-propre.» Apenas a razão anuncia com
fraca insistência a ressalva, segundo a qual seria pelo menos possível pensar no
amor desinteressado. Indecisão semelhante em Madame de Pringy, Les differents
caractêresdesfemmes du siêcle avec Ia description de l'amour propre, Paris, 1964: amor-
38 Relativamente à capacidade de transmissão pela tradição, veja-se, sob
-próprio como droit natural que não só aponta para conservation, como também
para felicidade, para satisfaction, que todavia representaria em caso de excesso a este ponto de vista, em especial, Vilhelm Aubert, A note on love, in, do mesmo
causa de todos os problemas. autor, The hidden society ; Totowa N. ]., 1965, pp. 201-235.
39 Cf. Niklas Luhman, Gesellschaftsstruktur und semantische Tradition in Ge-
37 Veja-se a este respeito Niklas Luhman, Frühneunzeitliche Anthropologie, in
Gesellschaftsstruktur und Semantik, op. cit., VoI. I, p. 162 e segs. sellschaftliche Struktur und Semantik, op. cit., VoI. I, p. 9 e segs.
\

CAPÍTULO VIII t '\~ \


\)

Distinção condutora: Plaisirl Amour

Antes de continuarmos na senda dos pontos de partida ofereci-


dos pelo código de comunicação do amor apaixonado com vista à
individualização da pessoa, temos de atender a duas reflexões
teóricas subsidiárias. Quanto à primeira, trata-se do código de um
meio especial de comunicação simbolicamente generalizado. Tais
códigos têm de desempenhar uma função que pretendemos descre-
ver como geradora de informações. Tudo o que diga respeito ao
viver e ao agir e que se inscreva no seu âmbito deve estar ao nosso
alcance como informação, podendo fornecer um valor que, por
analogia, é útil para o viver e agir futuros.
A informação é, de acordo com uma sentença frequentemente
citada, da autoria de Gregory Bateson, «a difference that makes a
difference» 1. Seja qual for o modo pelo qual se designe e sempre
que se refira o estatuto ontológico-metafísico da diferença, a sua
encarnação como «escrita» (Derrida) ou algo semelhante, as dife-
renças orientam as sensibilidades que são receptivas à informação.
O_tratamento da informação pode apenas surgir quando algo é
experimentado para além da mera factualidade, enquanto «deste
modo e não de outro», ou seja, quando é localizado num esquema
de distinções. A distinção actua enquanto unidade (bitola cenrrali-
zadora) enquanto gerar informações; todavia não determina quais as
informações a reter e quais as selecções que as despoletam. As dis-
tinções não definem portwo umSlstema, especifica~ e ~pliam
as suas possibilidades de autofixação. Os códigos semânticos especi-
ficam às distinçõesque, enquanto informação, estão na base da con-
cepção de algo; existem, por seu lado, apenas no seio do processo
de tratamento da informação, agindo sobre o sistema através deste
processo.

1 Steps to an ecology o/ mind, São Francisco, 1972, p. 315. CE. também p. 271

e segs., 489 e segs.


CAPiTULO VIII 113
112 DISTINÇÃO CONDUTORA
em vão uma analogia mais exacta. A tentativa de François de
Sob uma perspectiva evolucionista, o sistema social aperfeiçoa a Cailleres de remeter 4 também este código para uma estrutura
sua disponibilidade para o trat~~nto da informação através da
lógica apresenta-se no contexto da época como algo pedante e ina-
diferenciação das distinções que são adª~as a 0nções determir~a- dequado. A distinção central geradora de informação apresenta-se
das ou const~delnteracções, perfil.a~amente quais
--., aqui sob uma forma diversa) todavia exactamente equivalentê do
as outras possíbilidades contra as quais os acontecimentos adquirem
, ~
um valor informativo 2. E bem exemplificarivo OlSto a diferenciação
--- ponto de vista funcional. Consiste na distinção entre plaisir' e
amõíiYZÉ sob este ponto de vista respeitante ao código-função que
plena de um código semântico para o amor. setõf'nãreãIiIlei1te evidente o fãcto -de no século XVII a semântica
Através destas hipóteses teóricas gerais torna-se sobretudo com- do a~r basicamenteaIterada, profundamente unific~da e
preensível" que a diferenciação plena dos meios de com~ igualm~ plenamente diferenciada. As inúmeras distinções que
realize ãfraves da redução a uma distinção semântica fundamen a ,
desempenhavam um papel nas relações amorosas, por exemplo a
relação à -gual- tud·o o que se encontra no âmbito do m.E0 aé
distinção entre os sexos, entre novos e velhos, entre cada um
comunicação pode ser visto como selecção elogo como inform~ daqueles que é amado e todas as outras pessoas ganham uma forma
Vista sob o ponto de vista da função, a unidade de um meio de semântica superior através da distinção central estabelecida entre
comunicação surge tanto mais fortemente marcante quanto mais plaisir e amour, sendo perpassada por novas contingências.~tip.-
conseguir reduzir um conjunto de oposições relevantes a uma dis- ção entre plaisir e amour gera quanto a este âmbito da comunicação
.:h~ tinção central capaz de tornar inteligível todas as outras diferenças
uma necessiãaae específica de informação e também uma estrutura
e contradições. Através de uma tal redução pode-se igualmente específica inerente ao ganho em informação; gera e consolida uma
obter alg~d~Qarentemente contraditório: o âmbito da co~ sensibilidade à diferença, apenas válida para este âmbito de relevân-
ção surge-especificado através do esquema de obtenção da informa-
------ cia, sensibilidade esta para a qual não se verifica qualquer ~pl!s:ação
ção ~ue o domina. Os graus de liberdade da comunicação aumen- em outros contextos. Aquela distinção concede assim um valor
tam igualmente, de modo que se verificam mais possibilidades de informativo a inúmeros acontecimentos ou acções - por exemplo:
adaptação às circunstâncias, bem como aos propósitos e tendências como sintoma ou sinal de amor distinto do prazer -, os quais,
individuais, respectivamente. noutros contextos de aplicação, permaneceriam totalmente inaten-
Entre um conjunto de meios de comunicação que conferem à
didos ou seriam diferentemente valorizados.
distinção central a forma de um esquematismo binário, pense-se na
estrutura lógica do código da verdade ou na distinção entre justiça
Como se --conseguirá
--- - - ---
obter o centramento na_.direcção
~nção? Quais.os meios semân~<LS.eciÇ9
de uma dis-
-~.:.------
desta funç~o?
e injustiça. Isto apresenta como vantagem uma ampla «capacidade ~ comparação com a tradição torna-se surpreendente ofacto
de tecnicização» do tratamento da informação no âmbito do có- de o prazer ser mtroduzidü enquantõ'-con-ceito antropológico chave,
digo. Noutros casos, esta mesma função é desempenhada por uma prece~quanto tal as valorações de carácter moral Assim""a
í franca dualidade valorativa, como por exemplo a distinção entre corte quase obrigatória durante-;- convívio sooal, a nêCessidade de
\~ opções progressistas e conservadoras, dentro do código político 3. aventuras amorosas para a existência enquanto honnête homme 6, bem
Na estrutura semântica do código do amor apaixonado procura-se como a distinção daí resultante entre amor verdadeiro e falso,
reduzem-se a um denominador comum, sedimentando simples-
2 Cf. também a este respeito Reinhardt Koselleck, Zur historisch-politischen
Semantik asymmetriscber Gegenbegriffe, in, do mesmo autor, Vergangene Zukunft: zur
4 ap. cito (1668).
Semantik geschichtlicher Zeiten, Frankfurt, 1979, pp. 211-277. 5 Mantemos a terminologia francesa, porque plaisir é intraduzível.
3 A este respeito, ainda Niklas Luhmann, Der politische Code: «eonseruatiu» 6 Ver especialmente a este respeito, Garraud, op. cit., (1971), p. 47; Rouben,
und «progressio» in systemtbeoretiscber Sicht, in, do mesmo autor, Soziologische
Aufklt'irung, VaI. III, Opladen, 1981, pp. 267-286. op. cit., (1971), p. 65.
"''r);
f. CAPiTULO VIII 115
114 DISTINÇÃO CONDUTORA

numa passagem central: «L'homme n'est pas libre de ne pas faire


mente enunciados sobre o género humano. O ser humano procura
ce qui lui fait plus de plaisir que toutes les autres actions possi-
o prazer a todo o custo nas formas galantes e interessadas de corte,
bles 10.» Afinal, não existe qualquer liberdade face ao próprio
no amor verdadeiro e no amor apenas falso, quer para\si próprio
prazer individual e assim o sujeito também não é redutível à liber-
quer para os outros. Plaisir é a fórmula vital distinta da Jboa vida»
dade. Todavia, é possível fruir a dor e, desde a parcimónia até
(êY3Tl'u) da tradição, com base todavia numa faculdade subjectiva
- ,
\
ao suicídio, executar a exclusão dos plaisirs através do plaisir; nesta
e sem um critério imanente. Enquanto plaisir o ser humano é
medida, o amour passion ganha um contacto íntimo com a fruição do
sujeito. Assim como não é possível contestar deveras o facto real do
-, pensamento, o mesmo acontece com o facto real do plaisir, quer se
sofrimento. A consequência surte evidente quando finalmente apa-
recem configurações masoquistas, com o objectivo de comple_t~.r o
opere ou não com noções certas ou erradas, com meios correctos ou
/" princípio da auto-referência. Substirui-se de certo modo a inatin-
incorrectos. Plaisir é plaisir. Quando alguém afirma estar a sentir
gível liberdade face a si próprio por uma autotortura.
prazer não faz sentido contestá-lo. R~!!!Lªº--.Prazer, o
Quando o prazer manifesta esta espontaneidade da auto-refe-
sujeito não necessita de quaisquer critérios para se certificar do seu
~ rência, tal assume consequên.cias relevantes para as relações sociais.
prazer; de acordo com uma auto-referência sem critério pode ~tar
As sensações podem surgir sem atender ao critério da sua autenti-
certo de si -próprio 7. Aqui falta portanto aql!ela dualida~âl,
r- cidade e de um modo incorrigível; as afirmações acerca disto só
respeitante ao amar autêntico e ao amar apenas falso; dualidade essa
podem todavia ser produzidas no contexto de um outro sistema
'~espíritos com o comportamento dos outros, durante o
auto-referencial, de um sistema social, não podendo por isso «res-
convívio social. Tal é verificável com toda a clareza no já citado
ponsabilizar-se» por aquela incorrigibilidade ". As sensações po-
«Discours sur les passions de I'arnour» 8: «un plaisir vrai ou faux
dem errar, enganar, ser contestadas. É exactamente o carácter irre-
peut remplir égalemment l'esprit; car qu'irnporte que ce plaisir soit
flectido do plaisir que estimula uma prática social reflecrida no que
faux, pourvu que I'on soit persuadé qu'il est vrai? 9»
diz respeito quer ao viver quer ao agir do próximo. No estado ao
Não é só aos outros, mas é também ao sujeito que faltam cri-
plamr, o ser numa no permite que O- observem e descubram bem,
térios para controlar a auto-referência. Ao sujeito não é sequer
mostra-se por inteiro, sai fora de si, a sua alegria fá-lo transvazar-
possível contestar o seu próprio prazer, nem discriminá-lo, nem
-se _ fica assim especialmente exposto ao olhar perspicaz dos
eliminá-lo do mundo a não ser que todos estes esforços lhe dêem,
outros. O plaisir torna a pessoa indefesa perante a observação e o
em contrapartida, prazer. É ainda em Stendhal que encontramos
vfl;
tr~a~entõpªos õu~r2~ A ar! dê plaire torna-se momento de uma
técnica de observação e experimentação, uma estratégia de reco-
7 Ver a este respeito a mais moderna discussão acerca da peculiaridade da nhecimento nesse perigoso terreno que são as relações humanas 13.
autoconsciência, sem necessitar de quaisquer critérios que se reportem a si
Nesta medida, e ao contrário do a_mor_passional....o q~lto do prazer
própria, em especial em ligação com Sidney Shoemaker, Self-knowledge and self-
-identity, lthaca N. L; do mesmo autor, Self-reference and self-awareness, «Journal é algo que diz respeito ao sangue-frio
_.__ - e ao
I procedimento-----
premedi- ,
of Philosophy», 65 (1968), pp. 555-567.
8 Citado de L'Oeuvre de Pascal (Éd. de Ia Pléiade), Paris, 1950, pp. 312-323
"O \
(316).
10 De l'amour, op. cit., p. 16.
9 O facto de a distinção entre verdadeiro e falso, embora tida por insigni- 11 A discussão acerca do «saber» incorrigível velou terminologicamente esta
ficante, continuar a utilizar-se documenta a dificuldade e a inabilidade do ponto diferença. Veja-se todavia o modo claro, apresentado por Richard Rorry, Der
de vista quanto à facrualidade da auto-referência sem critérios. As preciosas Spiegel der Natur: eine Kritik der Philosophie, tradução alemã, Frankfurt, 1981, por
votam de resto de forma decisivamente diferente: «Il ne peut y avoir de vray
exemplo, p. 112.
plaisir dans les plaisirs crirninels», afirma-se em Madeleine de Scudéry, Des 12 Assim d'Alquié, La science et l'école des amam, op. cit., p. 87 e segs.
plaisirs, in Conversation sur divers sujets, Vol. I, Lião, 1680, pp. 36-64 (56). 13 Assim as recomendações do Cornte de Versac no romance de Crébilon
Todavia a direcção principal da opinião aflora apenas a superfície do argumento, (fils), Les égarements du coeur et de l'esprit, op. cit., p. 172.
pois também Madeleine de Scudéry designa por plaisir os plaisirs criminais.
CAPITULO VIII ll7
ll6 DISTINÇÃO CONDUTORA

-
tado 14.A respectiva base de cálculo assenta exactamente naquela
-
incontest~bilidade inesuívoca do p!..aisir. --
Esta incontestabilidade do plaisir auto-experimentado transfere-
contrafactual _ a~ele juramento de eternidade que é apenas
~mento que é todavia necessário ao momento, a hm de
contradizer a consciência da incons~â?cia. l f.'~: ()~<". ,11"c-

Tem de se partir então do plaisir. Por isso, plaire roma-se num


-se ~mento social sempre que se verifica um esforço
meio (honesto ou desonesto) para conquistar o amor verdadeiro ou
para agradar. Por este motivo, não existem dúvidas quanto ã1nten-
falso. A unidade da semântica referente ao plaisirlplaire ilude-nos
ções e técnicas dirigidas 15.A regulamentação social da art de plaire
acerca do facto de o argumento antropológico, inerente à factuali-
- tão importante na segunda metade do século XVII quanto a
dade sem critério, não (ou pelo menos, não tão facilmente) se deixar
orientação segundo a razão desenvolve-se a partir daqui 16.Reporta-
transferir para sistemas sociais 19. Na conceptualização do plaisirl
-se ao sujeito que experimenta o plaisir, não a uma moral a aplicar
Iplaire surge esta tensão entre fundamento antropológico e mula-
e jamais a uma auto-realização no âmbito da honra e da celebri- dor socialcomo unidade necessária-entre natureza e arte.~ O sujeito
dade. Por isso, é durante o desvanecimento das regulações religiosas
é tido como conhecedor, encontrando a sua perfeição no facto do
e morais do comportamento - até mesmo no contexto amoroso
s~eu saber agradar enquanto algo de natural. É exactamente o
-, que é possível traduzir as certezas antropológicas para o com-
procar de Ia galanterie, que se esfoi,ç-ª..poragracÍar, que todavia ori-
portamento social.
gina, na qualid~rocedimento socialmente dirigido e inten-
Perante todas as incertezas respeitantes ao amor, pode-se estar
ciona1, uma suspeita enquanto motivo, e a procura de critérios atra-
certo que o esforço para agradar agrada e que tal esforço comporta
os seus próprios critérios. O destinatário de tal esforço é soberano
vés dos quaiS Se possa distinguir o comportamento hone~do
desonesto. A coquetterie desvia-se então enquanto possibilidade de
relativamente àquilo que lhe agrada, todavia pode-se aprender o
maxim1zar o número de galanteadores, sem que tenha de perder-se
modo como se lhe pode agradar.
,.' no amor 20.A coquetterie parte de um princípio: espera ser engana-
A extensão social opõe-se à redução temporal do J!laisir. O
~ da, por isso reage com o logro; tudo isto se passa no seio do meio
laisir existe apenas po ffi'omento e 2.a~ momento em q-ue-é
""--opáêOdâplaisanterie com base nos princípios, tanto indiscutíveis
~. A extensão temporal é experimentada neste caso em pleno
como comuns, respeitantes ao interesse pelo prazer. Mas pode
momento do prazer como necessidade de permuta: «Chaque plaisir
acontecer que, neste caso, se ultrapasse inopinadamente o limiar do
est passager, ille faut prendre à son passage 17.»Isto significa agora
amor 21,dando-se assim início à tragédia.
mais que a simples assimilação do carpe diem. A própria autoconvic- O plaisir enquanto tal não é meio de comunicação, pois furta-
ção é assim temporalizada, tornando-se duvidosa tanto no «ainda
-se fi questao da acertaçao e da recusa. Assíffi---
senôo, a art---de ptãire
não» como no «já não». Perante tal pano de fundo, a duração do
amor tem de, tal Jomo se anotou 18, tornar-se numa afi~ção 19 Com respeito a esta questão Dieter Heinrich, «ldentitàt» - Begriffe, Pro-
bleme, Grenzen, in Odo Marquard/Karlheinz Stierle (ed.), Identità't, Munique,
14 A distribuição é invulgarmente acentuada em de Villiers, op. cit., (1695), 1979, pp. 133-186 (178).
20 No modelo de Missiva em de Cantenac, op. cit., (1661), p. 199 (edição
p. 130: «Un homme qui ne sent point d'amour place bien mieux qu'un autre
com erros, 159) até 206 (edição com erros, 266), encontra-se uma boa informa-
ces soins qui engagent les femmes: plaire esr un art qui demande du sang froid
ção acerca do aparato técnico e da mentalidade e também do risco da coquetterie.
et de Ia raison pour y réussir, Ia passion qui oste I'un er I'aurre ri'est gueres
21 Exactamente isto, seduzir uma coquette tem, face a este pano de fundo,
capable d'apprendre er de suivre les preceptes de cet art..
novamente o valor da obra-prima da arte do amor. «Si I'on peut espérer à Ia fin
Ij Ver, em oposição a isto, a (completamente inglesa) inovação inerente a
de se faire aimer d'une coquette» coincide com uma das questões a que Bussy
uma representação intencional da inintencionalidade de uma aproximação, p. 8l.
Raburin pretende responder (citado de Mornet, op. cit., p. 34). CE. também
16 Assim ajuiza Mornet, op. cit., p. 97 e segs., a representação global do tema
capítulo V, nota 12. Aqui se vê bastante bem como a distinção atrai distinção,
que continua sendo a melhor.
a fim de magnetizar percepções e ambições com vista a mais elevadas inverosi-
17 Assim Le Pays, op. cit., p. 349.

18 P. 73 e segs. milhanças.
CAPiTULO VIII 119
118 DISTINÇÃO CONDUTORA
o amor a transformar-se em obrigação, o que contradiz o código
consiste numa técnica essencial indistinta, universalmente exe-
quível, que nada Q9de confundir. A art de plaire confere cõDeRUta
gUedi~gue -º- amor do casamento. ~
O código assenta portanto numa arquitectura semântica auten-
social ao comportamento. Pode-se operar indefeso sob sua protecção ticamente complicada. A distinção entre amor verdadeiro e falso,
- e aproximar-se do amor. Por isso mesmo, não é possível ficar- que pode ser dissimulãéIã através da comunicação dele dlsttnta,
-se por aí, caso se queira transpor o limiar para chegar junto do bas~ por seu lado na distinção entreamour e plaisir, que po~~a
amor; e o desejo de agradar aniquila-se a si mesmo, enquantofurma 'V~ara formular uma distinção crescente entre auto-referên-
de relacionamento social, por via do exagero - com o amor é di- ciãiíí1trõPológica e realizasã~ s~ia1. Ou inversamente: a necessi-
ferente 22. O amor, que pode ser dissimulado na comunicação" defe
distinta, deve assumir a função de um meio de comunicação sim-
bolicamente generalizado, colocando-se sob condições suplementa-
f\ da~a socioesttuturalmente com vista a uma separação
profunda da reciprocidade pessoal e social, encontra expressão na
diferença entre plaisir e amour: esta permite por seu lado distinguir,
<:P
~
....
res em cujo âmbito o auto-esforço pelo agradar pode ~ando íll"uito no que respeita ao plaisir no amour, autênticos e inautênticos modos
I, ser um preâmbulo. ( ~ '\11M v ~ '" '\ -)' r
de corilpÕrtamento; e por via desta diferença é orientada a sensibi- "
O aperfeiçoamento é levado mais além, quando em vez de se lidade concreta para as informações patentes nas relações amorosas
c ~ distinguir apenas entre amor verdadeiro e falso, se esclarece, no seio factuais. O contexto em que estas comutações se verificam serve
"'- do próprio engano, a distinção entre simulação e dissimulação, então para dar uma forma semântica às condições socioestruturais
surge ent~issimulação dupla: a simulação do amor (não iniciais. Este aperfeiçoamento permite uma leitura das informações
sentido enquanto tal) e a dissimulação do amor (sentido enquanto correspondentes àquelas condições, sem que a estrutura social que
tal) 23; ambos podem, especialmente quando interagem, produzir tende para uma individualização mais forte dos destinos tenha de
obstacles que bastem para que a relação amorosa se desenvolva.
ser co-tematizada e assim exposta à negação.
Perante todas as distinções entre plaisir e amour, o plaisir torna Sempre que se gera informação no contexto de uma distinção
finalmente a dianteira. Decide acerca da duração do amor. O amor semântica fixada, surge sobretudo o efeito seguinte: também aquilo
acaba quando já não ofereceplaisir. «L'arnour ne lie qu'autant qu~l que é ilusório, fictício, negativo adquire a sua causalidade. Existe
plait», afirma-se numa carta da Marquise de M.24• Todas as arti- algo que pode actuar como gerador de comportamento, mesmo que
ficialidades que simulam uma continuidade surgem precisamente por esse facto não exista. O sistema estende a sua capacidade esti-
insuportáveis àquele que ama. O amor honesto torna-se também muladora ao que é negativo (o que internamente pressupõe natu-
ª
impotente guando fonte de..plá1~e-ext-ifl&ue, comr-elindo então ralmente estruturas e processos auto-referenciais). A pura imutabi-
lidade ganha igualmente um valor de informação e causalidade,
22Cotin faz disto o tema no epigrama Fausse complaisance: sempre que o esquema de distinção permite esperar ou contar com
«Il est vraiy, ie ne rn'en puis taire. alguma modificação. A simples duração da ausência do amado admi-
Tyrsis pour moy n'a point d'appas;
te finalmente conclusões sobre o seu amor e torna-se motivo de
Son excessif desir de plaire,
Esr cause qu'il ne me plaisr pas.» reacções sempre que for lida à luz das expectativas sobre o amor ou
(Op. cit., Vol. II, p. 528). a indiferença 25. É especialmente em ocasiões de amor que a ilusão
23 Em de La Bruyêre, op. cit., p. 125, afirma-se a este respeito: «Il arrive
quelques fois qu'une femme cache à un homme toute Ia passion qu'elle senr pour
lui, pendant que de son côté il feint pour elle toute celle qu'il ne senr pas.» Em 25 A vasta literatura relativa a este tema permite a síntese. A ausência
tais e semelhantes afirmações, produzidas por escritores, eivados de um sentido modifica em todo o caso a situação dos amantes; enquanto breve ausência ela
moralista, é possível de resto ver bem em que medida o novo requinte e a intensifica o amor (e não apenas, mas sobretudo porque as cartas possibilitam
apreensão da retlexividade social desagregam a velha distinção entre idealismo formulá-Io mais calorosamente do que em presença de outros). Enquanto ausên-
e sarcasmo, entre tradição mística e gaulesa, nas questões relativas à mulher. cia longa, ela conduz à dúvida, à indiferença, à ruptura. Cf por exemplo,
24 Crébillon (fils), Lettres de Ia Marquise de M. au Comte de R., op. cito p. 203.
CAP[TULO VIII 121
120 DISTINÇÃO CONDUTORA

permite que o indivíduo se decida quanto ao seu comportamento, sinais do início da extinção do verdadeiro amor 28. Tal distinção
esperando que o mesmo aconteça com o seu companheiro, mesmo transfere-se para uma relação amorosa inautêntica, suportada ape-
quando se sabe que se trata de ilusões. O «excesso», a intensifica- nas, na qual se buscam informações, que poderiam apontar para
ção, a clarificação unilateral tornam-se eles mesmos transparentes, uma vontade de terminar. O facto de no início ser antes rt
~endo tornados Co};;o_pr!=texto para obter as informações respectivas de plaire convencional0-~r is~o e 1 l~l lOte~~ção) a de~mi-
(positivas ou negativas), com o objectivo de serem motivados por n~fica também que se pode começar com o amor
estas. A distinção entre ilusão e realidade torna-se realidade siem sem se sábêr quese trata ae amor 29. A galanteria apresenta, sobre-
mesma e isto mesmo legitima o código enquanto amor que tfãfis- tud:01ia sua regulação verbal, uma forma que assenta em plaire e
cen de/··o mero I!.talslr. ---- que tanto abrange o amor verdadeiro como o falso, mas detém
Talvez que a mais importante e directa consequência desta or- igualmente um outro sentido secreto sempre que se trate de amor
den~ão de distinções semânticas (já tratadas ~ capítulo anterior) verdadeiro. Os obstáculos adquirem então a função de tornar o
seja a temporalizafão do amor. A distinção temporal entre o presente amor consciente, existindo posteriormente outros obstáculos com a
(que vive do af!1()r), o .~~do~ o futuro torna_plausível a distinção função de testar o amor. Pode-se começar antes com uma amizade
entre a ilusão e a realidade.~ A unidade do amor torna-se correspon- convencional e com a troca de amabilidades, com o objectivo de se
denternente unidade entre momento e duração, enquanto paradoxo verificar, após algum tempo, quando já for tarde de mais, que se
do momento com valor de eternidade 26. Também aquiéOpara- trata de amor. Uma pessoa pode apaixonar-se, fingindo o amor, en-
doxo que reduz a distinção, que tem de funcionar como distinção, redar-se nas suas próprias galanterias e falhar o momento exacto da
apenas à formulação da unidade; contudo, o paradoxo compromete- retirada; teme-se sobretudo a coquetterie, pois transfere-se demasiado
~ rapidamente a relação para a forma do amor falso. O facto de no
-se com o facto de o amor se desenrolar enquanto processo, conce-
den:aõ um valor relativo temporal a tudo o que deva ser tratado final persistir a indiferença, significa também que agora se é obri-
como informação. - . --- gado a utilizar a distinção entre amor verdadeiro e falso, para obter
Todo o amor tem a sua própria história (o que neste caso não informações de outro tipo, precisamente para resfriar a relação e
significa necessariamente uma história individual; peculiar, incom- para evitar reacções de afecto, que deixaram de ter lugar.
parável). Tem um princípio e um fim, entre estes extremos decorre Através destes e de muitos outros aspectos semelhantes afirma-
a ascensão e a queda. A relevância deste esquema de distinções -se n-~s uma história típica do decurso amoroso, mas Tam-
modifica-se durante tal decurso. Assim, é vulgarmente aceite que se bé~~eiãprimeira vez na história - se apresenta
trate sobretudo de plaire, quando no início de uma relação amorosa o facto de tal evolução modificar as condições sob as quais as infor-
ainda não existe qualquer certeza social do amor 27. Insiste-se pre- ~ações têp_d~ ser obtid~ e iI!t.erRr~!,adãs; e Õ ~actõ ê1edepenaer da
cisamente por isso na distinção entre amor verdadeiro e falso. É-se tastaetal evolução o esquema de distinção que se deve activar com
compelido a investigar o esforço por agradar, tendo em vista esta vista às illformações--, Na transição entre plaire e amour surge em
segunda distinção voltada para a informação, até que mais tarde o primeirol~-;;'r a esperança e o medo - as alterações inerentes ao
desvanecimento deste esforço por agradar estabeleça os primeiros ~.n i' '>-t~rvr-
28 Já vimos anteriormente (p. 70) que também se pode utilizar tacticamente
Jaulnay, op. cit., p. 86 e segs. Veja-se também Bussy Rabutin, op. cito (972), a inteligência das tentativas, com o objectivo de comunicar tal com indulgência.
p. 374: «L'absence est à l'amour ce qu'esr au feu le vento li étaint le petit, il Uma informação possível e condicionada por etapas continua também a ser uma
allume le grand.» comunicação plausível. A recusa desta comunicação, dentro de uma mais elevada
26 «Tout est siêcle pour eux, ou bien tout est mornent», afirma-se em Bussy evidência do quadro de circunstâncias - eis o tema de Adolphe, da autoria de
Rabutin, op. cit., p. 238. Benjamin Constant.
27 «C'est par Ia complaisance qu'on commence tous les projects amoureux- 29 Tal prolonga a duração da relação amorosa, afirma o autor de Discours sur

(Recueil La Suze - Pellisson, op. cit., Vol. I, p. 258). les passiõiíSclé7'ãiiiõiíY,õp: cit., p. 319. --- --- -- ---
CAPiTULO VIII 123
122 DISTINÇÃO CONDUTORA
tradição entre amor verdadeiro e falso novamente como se se tra-
amar verdadeira e falsamente. Uma distinção depreende-se da outra tasse de uma diferença entre qualidades objectivas. Sendo assim, é
sem qt!e tenha de desaparecer 30. A estrutura global da semântica possível então ligar a isto esta exortação para evitar o falso amor.
do amor desenvolve-seno tempo e nãe existe por isso qualguer reI::- a amor puro é na realidade sempre verdadeiro, mas é através da
vindícãçãO-para o código que não possua ela própria valor relativo corrupção do nosso coração que surgem as malformações que temos
no ternpo., O processo é soberano e decide sobre a dis~ por obrigação descobrir e denunciar e das quais o autor se ocupa
utiliza como forma de...obtenção da informação. então exaustivamente. Percebe-se que uma tal lista de formas fra-
É precisamente por isso que o código do amor apaixonado não cassadas e a serem reveiadas pode ser obtida, mas que não é possível
necessita de nenhuma fundamentação moral, nenhum eillaíZamen- manter aquilo que já fora obtido enquanto estrutura complexa de
to nas garantias permanentes da ordem social. A sua fundamenta- distinções inerentes à moral própriado amor, sob o ponto de vista
ção consiste, se é que se pode afirmar, na curta duraçãoc!ãvtcta 31 sociotemporal. --- ----
- não na vida eterna. As selecções justificam-se através da distInção
do momento face ao anteriormente e ao posteriormente e não com
vista à estabilidade a atingir. A função de selecção é aqui allviada tão
r- ãguda quãO-raramente das suas tarefas estabilizadoras, persistindo
algo disso mesmo, quando mais tarde se encara o amor no sentido
assional do romantismo como pressuposto para contrair casamento.
Nota-se aqui, sem dúvida, que tais inovações semânticas são
ousadãs e tendem pará a-re-normaTizaçãõ·"32.A sua inverosimilhança
é ainda enorme, sendo por ISso verosímil o retorno a uma simples
distinção cognitiva ou moral. Por volta de 1660, era ainda possível
apelar para as características do estrato social das honnestes gens
enquanto solução para o problema das dificuldades de diferencia-
ção 33,mas após 1700 tal tornou-se menos convincente. Assim, em
1715, um escrito anónimo (assinado L.B.D.P.)34 apresenta a con-

30 Pois continua a sublinhar-se sempre que um amor pleno não pode abdicar
da tendência para novos plaisirs, do intercâmbio de manifestações de arnbigui-
dade e favores num sentido mais convencional. Amosr não é de modo algum um
estádio mais elevado de desenvolvimento que torna supérflua toda a complaisance.
Cf. por exemplo: Recueil ia Suze - Pellisson, op. cit., Vol I, p. 255.
31 «Representez vous», adverte René Bary àqueles que são tímidos perante
o amor, «que Ia jeunesse n'a point de retour; que l'age qui Ia suit n'a point de
consolareurs» tL'esprit de cour, op. cit., 1662, p. 73). A remoralização anuncia-se
pelo contrário quando deixou de se ter por fundamento uma perspectiva de
longo prazo e a ponderação entre vantagens e desvantagens: «Qui commence à
aimer doit se preparer à souffrir», adverte de Mailly, op. cit., (1690), p. 61.
32 Veja-se p. 82 e segs.

33 Cf. com o artigo citado no capítulo VI, nota 73: La justificazion de l'amour,
Recueil de Sércy.
34 Anônimo, Les caracteres du faux et du véritable amour et le portrait de l'bomme
de lettres amoureux, Paris, 1715.
CAPÍTULO IX

Amor contra razão

Depois das imprescindíveis análises da estrutura desta tentativa


para codificar as relações íntimas, aplicando para tal a distinção
plaisirlamour, podemos de igual modo abordar uma segunda e
fundamental questão: a respeitante à diferenciação plena deste
código. Manrer-nos-ernos no âmbito da semântica histórica e deter-
-nos-ernos num texto pequeno, mas suficientemente rico para o fim
a que se destina, precisamente um Dialogue de I'Amour et de Ia
Raison 1.

a diálogo deve ser lido à luz do ideal tradicional segundo o


qual o amor se subordina à razão 2. Tal ideal esgota-se na oposição
razão/amor; oposição esta que já não admite qualquer solução onde
a hierarquia ou a domesticação tenham lugar, mas antes apenas
uma espécie de espelharnento socialmente reflexivo dos interesses
opostos em cada um dos outros princípios. Para que se possa repro-
duzir isto mesmo, dar-se-a voz à personificação do amor e da razão,
permanecendo-se assim formalmente no nível do tratamento
alegórico 3. a
diálogo é uma discussão passada no salão de uma
dama, a quem o autor atribui uma relação extraordinariamente

I Cf F. Joyeux, Traité des combats que l'amour a eu contre Ia raison et Ia [alousie,


Paris, 1667, pp. 1-23. Citamos o mesmo texto de Le Pays, Amitiez, amours et
amourettes, citado da edição aumenrada, Paris, 1672, pp. 43-58. Cf também
Recueil La Suze - Pellisson, op. cito Vol. III, pp. 127-158.
2 Caritas ordinata, amor rationalis. Não é possível aprofundar aqui esta tradi-
ção, rica em si mesma e prevalecente face à controvérsia; tradição essa que
Thomasius tenta prosseguir. A este respeito e em pormenor, Werner Schneiders,
Naturrecbt una Liebesethik: zur Geschichte der praktischen Philosophie im Hinblick auf
Christian Tbomasius, Hildesheim, 1971.
I De resto, tal constitui um belo exemplo do uso amplamente expandido no
século XVII, que consistia na representação de quadros de circunstâncias através
da alegorização enquanto relações sociais, introduzindo neles deste modo a re-
flexividade.
127
CAPÍTULO IX
126 AMOR CONTRA RAZÃO

reivindicar um domínio absoluto. U niversalismo e absolutismo


favorável para com o amor e a razão; nele a razão representa, e aqui
excluem-se. «Et c'est ce qui rend môn empire bien dilferenrdü
reside a questão decisiva, a sociedade, dada nas suas exigências es-
vostre; car vous ne sçauriez rien ordonner en Maitresse absolue,
truturais. Tal é válido em especial para ambos os aspectos fulcrais
puis que vous estes obligees de rendre raison de toutes choses. Mais
que a razão terá de defender: a autoridade dos pais (paterna) do
pour rnoy j'agis en Souverain, et ne rens raison que quand il me
membro do casal para com o filho ou filha e a igualdade entre
plaist 5.» Neste argumento, a razão reconhece ainda e apenas a
estratos sociais no seio do casal ou no seio da relação íntima. Tais
intenção de um poderoso conflito, acabando por interromper indig-
exigências parecem razoáveis tanto à própria razão como até mesmo
ao amor. nada o discurso. ~
O diálogo permite uma transposição fácil para a linguagem
Não conseguimos imaginar uma sociedade se não se cumprirem
teórica da sociologia. A sociedade tem de abdicar do controlo (isto (
essas exigências e a razão tem por isso boas razões para se queixar
é: aquele que é justificável face a si próprio) «racional» sobre as
dos impulsos irracionais do amor que entretanto irrompem. Por
relações íntimas, sem que por isso a sua existência como sociedade .
isso, o amor surge perante a razão como se se quisesse furtar ao
tenha de ser contestada ou até mesmo subvertida 6. No caso de
contro~;' a fim de praticar o seu jogo irresponsável no seio do
relações cada vez mais complexas, devem dissociar-se as exigências
irrãclOnal. -
de universalidade das de totalidade. Só à luz de pontos de vista I
!'erante tal crítica, o amor faz prevalecer as razões da sua pró- ()
peculiares se pode exigir uma atribuição total de sentido. No caso
pria razão. Estas baseiam-se esse!lcialmente na afirmação de um
do amor, tal como sabemos de outras fontes, o mesmo só é possível
dom~róJ2QP.JJeivindlcando assim a su~própriãaütondade. Os
apenas momentaneamente. Por outro lado, é exactamente sob este
pais cometem um erro quando não consultam o amor, antes de
condicionalismo da separação entre competência universal e impul-
decidirem sobre o casamento dos seus filhos. E no que diz respeito
so totalizante, que é possível a intensificação das exigências e satis- J
às diferenças entre estratos sociais e às fatalidades do amor que
fações que interessam ao amor. '
ultrapassam os limites dos estratos sociais, surge como argumento O amor exige a primazia para as suas razões. Esta exprimir-
decisivo do amor o facto de este tornar iguais os amantes, abolindo
-se-á através de um estilo soberano: «Porque assim me agrada 7.»
as diferenças sociais entre estes: «À mon égard je les rend toüjours
A este correspondem inúmeros paradoxos presentes na codificação,
égaux, quoy qu'ils ne le paroissent pas aux yeux de ceux qui
inclusive os paradoxos que são apresentados não como embaraço
ignorent mon pouvoir et mes mystêres 4.» Baseado na e~ecifici~
lógico, mas como forma pretendida. Tal não significa que o amor
dade do seu império e do seu poder, o amor consegue apresentar
se coloque à margem da sociedade e opere arbitrária e ilegalm~nte.
a sua própria razão (enquanto que a capacidade amorosa da razão
Pelo contrário, o amor dá testemunho de si próprio, baseando-se na
permanece no fim do diálogo como um simples desideratum diri-
razão. «L' Arnour a des raisons qui valent mieux que celles de Ia
gido, como um galanteio, à dona do salão).
Raison mesrne> 8. Só gue, }!:ma vez ~_~e~.lxfº- do conflito, o amor
O amor continu~consciente da sua im.1'0ssibilidade de con-
---- - -- - ~ reclama a.2u~b.e.I:ania ..Bnrregce. a si .,prQp-rio, opera segunCIo as
corr~_ÇQ!!L.!Lra.zão, uma vez que esta tem.. de compreender ~ma
suas próprias leis, formuladas no código do amour passion.
competência universal que o amor não lhe pode tirar. Mau RQf
isso mesmo que.ie.este argumento colhe, também a razão não pode
'Op. cit., p. 57.
6 Por isso se verifica que o amor usurpa o terreno que pertence à razão

_ assim em Comtesse de Brégy, Oeuvres Galantes, op. cit., p. 113.


40p. cit., p. 56. Veja-se também a mediação da força (force) do amor através 7 Pelo contrário, tal pertence ao âmbito das alegorias geopolíticas vulgares,
da respectiva capacidade de superar distâncias, quer face aos inferiores quer aos após 1653, das Cartes de Tendre, etc.. Veja-se sobretudo Louis Moreri, Le pays
superiores, em de Ia Torche, La toi/ette galante, op. cit., (1670), p. 179 e segs.
Como question d'amour relativa a este tema, cf. também Comtesse de Brégy, d'amour: nouvelle allegorique, Lião, 1665.
op. cit., p. 111 e segs. 80p. cit., p. 48.
128
AMOR CONTRA RAZÃO

~ Finalmente, salta à vista que a razão é velha e o amor jovem e


que este possui não só os argumentos mais fortes como também
uma melhor visão de conjunto acerca do conflito. A razão pode
apenas depreciar os argumentos do amor, apodando-os de sagazes
e subris, até que acabará, não o amor, por regressar ao centro do
conflito. Depois de a razão que representa os estratos da sociedade CAPÍTULO X
se transformar em partido, notar-se-á a falta de uma instância capaz
de decidir sobre o conflito e teremos de nos perguntarmos se tal No caminho da individualização:
. instância poderá alguma vez voltar a ostentar o título de razão. Processo de fermentação no século XVIII
\" '- Afinal de COntas, no diálogo entre o amor e a razão, durante o
século XVII, trata-se apenas da afirmação de um território próprio,
" de uma lógica própria e de uma disposição soberana acerca do Depois destas discussões intercaladas sobre a estrutura semân-
comportamento do ser humano. O amor exige reconhecimento, tica e a diferenciação plena de um código especial, destinado ao
exige um estatuto moral próprio. Ele gostaria de certo modo, como amour passion, voltamos novamente à questão acerca da condição e
desassossego que é, que o deixassem sossegado. Só a partir de 1760 do grau em que esta evolução está correlacionada com uma inclusão
será tal exigência progressiva e gradualmente apresentada. As con- mais profunda das características individuais das pessoas implica-
venções morais serão acometidas como tais e o amor alargará igual- das. A exclusividade pertence às características invulgares próprias da
mente o seu repertório: ménage à trais, intercâmbio de parceiros, semântica do amor (diferenciando-se das ideias sobre a amizade).
liberdade para dispor do seu próprio corpo, incesto _ permite-se Está dado como aceite, e acerca disso existe um largo consenso 1,
que só é possível amar realmente uma pessoa ao mesmo tempo.
aquilo que é prejudicial aos outros. l
tudo aquilo a que o outro dê assentimento; a razão, essa, só proíbe
Discute-se também se tal será apenas viável uma vez na vida;
todavia, refuta-se tal tese na maior parte das vezes, porque incom-
patível com o imperativo do estado de amor permanente.
( ~ r. f ',..o/' Enquanto o amor for entendido como uma entrega mística total
~ ao outro, a exigência de ·mlusividade situa-se plenamente n-o
âm151todo código; pois como poderia uma pessoa entrega~-s; roral-
.; (/'A) ( l !h l ~ , mente a vários amantes sem se multiplicar. As mudanças de ênfase
do código íntimo permitem todavia o retrocesso desta ideia. No
fundo, as características do código, sobretudo o imperativo do ex-
cesso, falam da obrigação de amar sempre, do estímulo exercido
pela beleza contra a exigência da exclusividade. Todavia, esta con-
sequência não é daí extraída 2. Introduzida como costume ao revés

I Consenso deste tipo suscita naturalmente contradições. Cf. a compilação de


afirmações em Corbinelli, op. cit., Vol Il, p. 164 e segs.
2 Quem a adverte tem de escrever todo um livro sobre isso: assim, Charles

Vion d'Alibray, L'amour divisé: discours academique. Oil il est prouvé qu'on peut aimer
plusieurs personnes en même temps egalement et parfaitement, Paris 1653. Pelo contrário,
face à afirmação da exclusividade basta uma frase. Esta distribuição do peso da
argumentação revela, mais que os próprios argumentos, o que é plausível a
despeito de toda a apresentação de provas.
CAPiTULO X 131
130 NO CAMINHO DA INDIVIDUALlZAÇÃO

da lógica - D'Alibray fala de superstition religieuse! 3 -~ pretensão não a fidelidade até para além da morte. O amor encontra em si
de exclusividade comporta uma função importante na formação do mesmo os seus próprios motivos de decisão, não no casamento.
A sua reivindicação de unicidade completamente individualizada,
sistema: simboliza a pretensão de um novo início em cada re~~o
só pode documentar-se no extraordinário, no negativo, na renúncia.
amorosa-,Só assim pode o código da intimidade dirigir a catálise do
Também de um outro ponto de vista, não se pode valorizar, no
sistema. A ruptura verificada na lógica não perturba, porque é
funcional. que respeita ao classicismo francês e respectiva sequência directa, a
Pelo contrário, ainda não é possível entender-se esta redução a carga de individualização patente nas afirmações sobre as pessoas.
A ideia de amor, própria das preciosas, baseava-se na realidade na
uma relação dual, própria do século XVII, como expressão de uma
personalização e individualização da relação amorosa; é válida, tentativa que a mulher realizava para ganhar distância face a si
mesma e à sua própria pulsionalidade sensual, fazendo com que tal
acontecendo já na Antiguidade, enquanto redução que favorece uma
intensificação do sentimento 4. Mais tarde verificar-se-a o aproveita- distância, expressa por palavras e gestos, fosse respeitada pelo ho-
mem. O amor deixa assim de referir apenas o outro idealiza<iº-,j)1ira
mento desta relação entre redUÇãoeintensificação com vista ao
passar a reportar-se à auto=reTerência~-àllberdade_desre ....M~te
aprofimdamento da individualização pessoal da relação amorosa; em
amo-relacionamento é entendido de u!!l_mQdo.aindacomp!etamep-
primeiro lugar, pensa-se apenas na intensificação da perfeição do
próprio amor. te pessoal-;5endo caraéi:erizado por um problema que se coloca a
No classicism~_~exjgência de ind.iYid.ualidadefaz êfte todas as mulheres. '
As particularidades que tornam uma mulher atraente são aj)re-
do mundo il~2r!..0 dos amantes. Verifica-se também quanto a este
sentaaas através ele con~=g.e.rais. Quando as ãpreci~mos numa
aspecto que o amor se orienta pela auto-ilusão, acabando por se
demonstrar que também isto se tratava de uma ilusão. A traição mulher, será possível então negar que elas também se encontram
secreta do Duc de Nemours permitiu que a Princesse de Cleves noutras mulheres? «I'ay trop de ioye à vous aymer, pour haire ce
ficasse finalmente a saber que também ela amara apenas um qui vous ressemble», afirma Cotin à sua amante 6. É precisamente
p~so 'lue o amor encontra a sua c.onstância na álternância, -na
homem como outro qualquer, sendo tratada por ele como mulher
igual a qualquer outra. Ele vangloria-se do amor que ela lhe dedica! inconst.ância.
Não deve ser m~nospr~zado_o facto de a psicologia do século
«]'ai eu tort de croire qu'il eút un homme capable de cacher ce qui
flatte sa gloire. C'est pourtant pour cet homme, que j'ai cru si
xvn, que operava ainda com velhos con~eit-º;-COJl}9jem12erap1~nto
e humor, não conceder qualquer espaço ao desenvolv!ment2.J?.ess~al
différent du reste des hommes, que je me trouve comme les autres
(o que significa que se ignorava o processo de envelhecimento) 7.
femmes, étant si éloignée de leur rassembler 5.» Gostaria de afir-
O mundo obscuro dos instinto_sfactuais, afecros, motivos e [nreres-
mar que foi este o seu motivo para não se unir a este homem e
ses auto-referenciais postava-se imediatamente atrás do bastante
incipiente e formal quadro de conceitos psicológicos. Assim sendo,
JOp. cit., p.18. o cepticismo dominava e a medida, imposta a todas as relações
4 Veja-se Aristóteles, Ética a Nicómano, 1158a, 11-13, estruturada aqui ainda
sociais, obrigava também a uma certa reserva perante a intromis-
com base na forma fundamental relativa à amizade e entendida como sua inten-
sificação.
são em tudo o que fosse demasiadamente pessoal. Tal reserva foi
5 Madame de La Fayette, La Princesse de Clêues, citado de Ouvres (ed. Robert formulada com vista não ao convívio em geral como também às
Lejeune), Vol. Il, Paris, p. 257 e segs. (realce dado por mim, N.L.). A exigência
de individualidade baseia-se aqui de resto não numa antecipação das formas
60p. cit., Vol. Il, p. 566. Cf. também os versos de Brebeuf em Corbinelli,
futuras da existência, mas através da preservação de ideais passados, cuja inexi-
op. cit., Vol. lI, p. 28: a beleza dos amantes justifica a inconstância, pois esta
quibilidade é já evidente. Ver a este respeito a interpretação ímpar de Jules
Brody, La Princesse de Clêues and the myth o/ courtly loue, «Universiry of Toronto também se encontra nos outros.
Quarterly», 38 (969), pp. 105-135. 7 Aliás também na Astrée!
CAPiTULO X
133
132 NO CAMINHO DA INDIVIDUALIZAÇÃO

nuação através das caracterizações radicais, do declínio da moral


relações mais íntimas 8 (sendo embora muitas vezes suplantado,
contemporânea e da descrição concreta do que é bom, simples, útil
quanto a estas últimas, por fórmulas ideais). Pelas mesmas razões
para a vida diária do homem e da mulher. O efeito literário baseia-
não resultava transparente pensar-se que o a~or l!!fIuenciasse o de-
-se em tais contrastes, nos quais cada vez mais se infiltra todavia
senvolvimento de uma personalidade individual. Jaulny chega a
um perspicaz ponto de vista de natureza psicológica. A questão do
negar explicitamente que o amor pudesse modificar as pessoas que
casamento torna-se o centro desta literatura; mutual love vale como
o viviam; «elle ne peut changer nos humeurs» 9. «Les manieres
único fundamento sólido de um casamento quer no sentido psi-
nouvelles dont on se sert ne durent guêres, et c'est ce qui fait rant
cológico quer moral. _Subl!p~-=-se o amor conjugal - mas com isso
d'inconstance 10.» Nesta citação, ~rcebe-se bastante bem pQf{j.ue as
nem se sub0tende o amor orientado segundo_o -roma~ce-nem a
pessoas não se podem modificar, o amor é inconstante. A constância
paixão ~iz se~l 13. A mulher - esbelta, meiga, frágil, sempre
das pessoas gera a inconstância no se.t:!-~or - garantida que está
à beira da inanição e sem consciência de si própria - encontra
a distinção entre sexos e caracteres. Pode-se também afirmar, uti-
apenas no casamento o seu papel de ser humano e a sua plenitude
lizando o metaforismo do amor: a identidade consome-se no fogo
moral. Compreensão mútua, consideração, estímulo dos interesses
do amor, podendo apenas ser salva através da inconstância ll.
do outro, amizade constituem a base dos objectivos anteriore~. A
O mesmo acontecendo sem dúvida na estrurura temática do có-
expressão love continua a ser empregue com hesitação; não são os
digo. ~u~Qdifica com o decorrer do sé~lo XVIII.
modos dramát;i.s..osque contam, mas sim os pormenores: lli;sta vellia
As pessoas são entendidas como modificáveis, passíveis de evolução,
con~fu1cia entre amor.,e amizade encontramos, em suma, uma
perfectíveis e o amor, por seu lad~ como capaz de estabilidade -; fi-
opção pela amizade enquanto base da intimidade e da missão
nalmente até mesmo como fundamento_.- possível do casamento~
--- O es~fu- no seio da sociedade. Torna-se -;'ssim possível

-
contexto permanece, mas os indícios invertem-se; a indefinição e a
encaaear numa síntese inédita, especialmente no que diz respeito à
pl~t1clâãck.d~caracter~s Rermitem a constância no seio do amor.
mUlher;à cultura e à actividade doméstica, bem como às relaçoes
As tentativas de reforma das relações entre os sexos, sucedidas .-
tidas com as pessoas com quem entra em contacto.
em Inglaterra por finais dos episódios da restauração - por volta
Tudo o que em Inglaterra e também nos EUA 14 surge como
de 1685 - e mais tarde na Alemanha, foram accionadas através de
polémica, não passa de antropologia aplicada. A mulher é desco-
uma polémica moralista 12. Como padrão de contraste: a cultura

._-
berta enquanto ser humano 14.., o casame_nto_perd~qllente-
francesa. O velho duo: elogio da virtude e sátira têm a sua conti-
mente o caráéter hierarquizado 15 e a adaptação nansfQrmou-se
igualmente numa regra de saber prático. A cada um a sua felici-
8 Assim, por exemplo, em Essay de Ia eonnoissaneed'autruy et de soy-mesme, de
dade _ com a ajuda do outr~ As esperanças que se depositam na
Madeleine de Scudery, in Conversations sur divers sujets, Vol. I, Lião, 1680, pp. 65-
-135, em especial p. 72 e segs.; face ao exame mais pormenorizado do amigo,
a amizade dissipar-se-ia e com ela desapareceria a alegria perante o amigo, a
-- -
13 Cf. a este respeito Ian Watt, The rise of the novel: studies in Defoe, Richardson
advertência soaria assim: «Il ne faut jamais détruire son plaisir soy-mesme.»
and Fielding, Londres, 1957, reimpressão, 1967, p. 135 e segs.
90p. cit., p.14. Igualmente Bussy Rabutin, op. cit., (972), p. 387. 14 Ver a este respeito Sydney Ditzion, Marriage morais and sex in Ameriea:
100p. cit., p. 15.
a history of ideas, 2." ed., N.!., 1969, em especial pp. 13 e segs., 35.
11 Sobre o pano de fundo desta afirmação, poder-se-ia ler então que apenas 14." A Renascença é novamente, a este respeito, propiciadora de instruções,
a religião sabe assegurar uma identidade eterna - «il doit être tousiours le enquanro contraste. Veja-se Ruth Kelso, Doctrine for the lady of the Renaissanee,
même dans I'Ererniré, il n'esr jamais dans le temps» (François de Grenaille,
La mode ou le cbaratere de Ia religion... , Paris, 1642, p. 25). Urbana Il., 1956, reimpressão, 1978.
Veja-se no que em especial diz respeito ao âmbiro da alta aristocracia,
t)

12Cf. Joachim Heinrich, Die Frauenfrage bei Steele und Addison: eine Untersu- Randolph Trumbach, Aristoeratie kinship and domestie relations in eighteenth century
ehung zur englisehen Literatur- und Kulturgesehiehte im 17./18. Jahrundert, Leipzig, England, N.!., 1978; para além disso, e melhor documentado, Lawrence Srone,
1930; Rae Blanchard, Riehard Steele and the status of women, «Studies in Philo-
Thefamily, sex and marriage in England 1500-1800, N.!., 1977.
logy», 26 (929), pp. 325-355.
135
CAPiTULO X
134 NO CAMINHO DA INDIVIDUALIZAÇÃO
sentimento e da sensibilidade, não rompeu de modo algum com a
intimidade estão relacionadas com a casa, conquistando assim _ {2remlssa segundo a qual se tratava das qualidades morais da ou_tra
contornos suficientemente claros e inteligíveis. Reportar a intimi- ~a _ e com isto de algo que, individ~almente, é impossível
dade à «sociedade» seria - face a uma leitura da sociedade basea-
tornar l1!llÜdade apenas através dela. •
da na plataforma cada vez mais económica - entendido como dis- Só através de um modo completamente indirecto e irnper- j:-
torção (enquanto que a elaboração do código do amour passion apro- c~{2tíve~ontradas no código do amour passion as precauções -- r
veitou precisamente do facto de não se tratar de uma casa bem -<
necessárias à individualização e na realidade através do facto de a
definida, mas de um comportamento social livre de compromissos). sistematização da estrutura temática do código se estender para
Faria bastante sentido uma elaboração realmente concreta dos mo- além dQ...Earadoxo. Um código ideal não admite guaEguer v~ia- '!

delos morais de comportamento, visando o foro doméstico fomen- ~te ~dividuali:gção apenas cQffio desvio; só as ..0?nfigu-
tado pela crítica de costumes e pelos maus exemplos. A esfera social rações negativas j~odem ser descritas plasticame~e - assim como t
mantém-se todavia inalterável, tornando-se por isso dispensável a só existe ~ saúde, ainda que múltiplas doenças e inúmeros
evolUção de um Zódigo para a intimidade que teria de encontrar em destinos individuais determinados por estas. Este bloqueio da idea-
primeiro lugar os seus próprios limites. - --- lidade uni~e-se ~lo facto de o código das relaçõe
A Inglaterra comunica à Europa estas novas ideias através de futiiiUiSSe ter adaptado ao paradoxo. Tal favorece o aparecimento
Richardson. Elas actuam no continente de modo bem variado; em de soluções contraditórias para os problemas apesar-da-sua-subor-
França, por certo sem que se destacassem tão vincadamente os dinaçãõà unidade do código - e com isso também de -opções
pormenores domésticos 16. Representar a sexualidade como nature- individuais de comportamento. A literatura está repleta de tais
za e colocar todas as instituições em questão opõe-se ao gosto bri- conw;;ITçõe, que por ,eu lado favorecem o individu~ É EO"iVel)
tânico. O amour sérieux supera através da ajuda desta sobrecarga esco er uma ase mais técnica, que acentue a destreza ou um con-
moral o -;;;;Wury;:t;ãl,
como acontece por exemplo em Marmontel e c~~mente-.idealis-ta_sempreCíUe o excesso se tenhade
o Próprio amour frivol torna-se então mornr-isto é, negatiVo. --
Ao apreciar este IDõVlmento ref'õrrllista deve-se, portanto, aten-
der ao facto de a tradição se manter intacta até pleno século XVIII,
apesar dos abalos da moral e d; teoria da moral. Tradição essa que
-
trãrlsf'õfffiar em técnica de comportamento. Consegue-se c~á'-
mente preservar certoS segredos (o que decorre da máxima inerente
à escolha unilateral do que é positivo) ou confiar francamente em
tudo (o que corresponde de igual modo ao imperativo que apela à
descreveu, através de categorias morais, tudo o que torna um ser entrega total ao amor). pode-se utilizar a própria honnêteté como
humano atraenteençJuant1LS.er humano. Assim:pãrte-se da unidade d~ pólo de atracção ou mostrar também que prescindimos dela por
influências pessoais e morais próprias da interacção entre pessoas; culpa do amor. Uma tocará mais facilmente a flauta da estime, a
renunciar ou renegar tal, deve ter significado uma inovação pouco outra a trompa da indination. Sem que esteja de antemão previsto
provável. À teoria da moral competia revelar aquilo que é real- na semântica do amor o carácter exclusivo e inédito, enquanto tal,
mente essencial para o ser humano, independentemente de cada das pessoas que se amam, atingiu-se todavia um pré-estádio a isto
destino ou da situação social. Ela formulou para si mesmo a sua necessário _ e na verdade através da ambivalência do princípio
disponibilidade individual. Como poderia não ser isso o impor- que diferencia plenamente e sistematiza o meio de comunicação.
tante, quando se tratava de envolvimento, amor, amizade entre Pelo menos a fundamentação do meio de comunicação não perturba
pessoas? O modelo novo e individualizante e a transposição do
o rumo de uma personalização mais forte.
conhecim~o outro-da esfera racional para a emocional, a do Não é tão facilmente a.PEeensível uma segunda transformação,
por sua vez de sucesso mais lento. EstLdiz respeito à forma sob a
16 A fim de se adaptar as traduções francesas de Richardson, cf. Servais qual está codificada uma sirtemãtização binária do viver e do agir.
Etienne, Le genre romanesque en France depuis l'apparition de Ia Nouvelle Heloise Durante o classicismo respondia-se a esta questão segundo o
jusqu'aux approches de Ia Revolution, Bruxelas, 1922, p. 119 e segs.

l
137
CAPtTULO X
136 NO CAMINHO DA INDIVIDUALIZAÇÃO

i\'
funda que provocou uma segunda distinção: o sentimento sociali-
c' modelo da lógica, de um modo consequentemente análogo ao pen- zador oposto ao indivíduo isolado. Shaftesbury surge aqui como

r Ç(
sar e conhecer. Tratava-se port~nto da distinção entre amar e não
amar ou do reconhecimento da distinção entre amor verdadeiro e
autor estimulante por excelência. A segunda distinção converge
com base na primeira - sem um grande aparato semântico acen-
\ falso 17, reportável sempre a duas pessoas determinadas. A questão tuado. Consequentemente, o sujeito lança-se entusiasticamente
para os braços do sentimento, da sensibilidade, da amizade, pare-
consistia em saber se se amavam (com verdade) ou não, a isto se
referindo os calculismos mentais, bem como os esforços deliberados. cendo sobretudo residirem os problemas apenas na fuga à solidão e
~atU:a. aQ5.e...sjm
se não ~erva evidentemente o seu no auto-relacionamento consigo próprio. Não admira que os sedu-
significaio, ma{ o alcance desta esquematização surge deslocad03õ tores possam experimentar e tirar proveito do quanto a linguagem
longo do século XVIII, ºª-medida em que se-Kformula aquilo que da sedução serve e se ajusta à linguagem do amor 19.
o sUjeito é enquanto pessoa.e enquanto indiy@~..o\É naturãI queo Com a intensificação da compreensão da pessoa e do sentimen-
processo decisivo de desencadeamento residisse na transição do códi- to, tranSforma-se sobretudO o esquematismo do código no contexto
,go_.Rara~emântica dQ sentimento; dt:.-utJLSm~nto qpe se rêeõ.- do plaisir e do amour. Se, no século XVII, se via a art de plaire e a
contra, forma e reitera na_confumação .~ocia~-..!!Qamor recíQ.roco. galanterie como momento inicial à preparação e manutenção das
A veemência, através da qual a insistência (sobretudo não clã- relações amorosas, momento esse disponível apenas de um modo
borada semanticamente, mas antes superficialmente actuante) no fatal para uso correcto e incorrecto, agora, em face deste novo
sentimento se impôs na primeira metade do século XVIII, apresen- entendimento da 'pe~soae do sentimento, depara-se com.a alte.ra.ção
ta sobretudo um pano de fundo do âmbito da história das religiões. deste equilíbrio instável. A art de pla&-e e-.a_g.alanterie_pas.s.a.m.A.l2artir
20
A crescente diferenciação plena e entre confissões despoletou um ~ª-a-valer GOme tendenc.ialmente.- inc.arr.ec1aL • ~ se quiser
conjunto de contramovimentos que acentuaram a religiosidade ~acionar honestamente com o «l~undo» (isto é, as mulheres), de-
er
individual em oposição às religiões organizadas em Igreja - assim, verá imitar a falsidade e de um modo tão exagerado que 1IleP -
por exemplo, o puritanismo, o jansenismo, o pietismo. A rejeição m~ar assim e~ individualidade 2l. Só se tem sucessoãüãvés
da mediação na relação com Deus tornou-se o ponto de divergência
a que se chegou; e com isto, nestes movimentos, o aspecto social 19 Nas Confessions du Comte de ... , de Charles Duelos 0741, citado da edição
ficou relegado para segundo plano na relação com Deus. Segundo de Lausana, 1970, p. 82) lê-se: «Une dévote emploie pour son amant tous les
rerrnes tendres et onctueux de l'écriture, et tous ceux du dictionnaire de la
o ponto de vista que mais interessava, o indivíduo passou mais pro-
dévotion la plus affectueuse et la plus vive» (82). Deve-se atender também ao
fundamente do que nunca a ter de contar consigo próprio, sabendo- facto de os caminhos da devoção benéfica exigirem a mesma flexibilidade dis-
-se apenas dependente da fé e da graça. O indivíduo tornou-se
creta e incógnita, tal como os caminhos do amor.
religiosa e socialmente isolado a fim de sublinhar a distinção face 20 Um importante documento a este respeito: Boudier de Villemert, Le
à instituição eclesiástica l8. Mas foi exactamente esta antítese pro- nouvel ami des femmes ou Ia philosophie du sexe, Amesterdão-Paris, 1779, p. 122 e
segs. O chercherà plaire torna-se suspeito enquanto tal. Aquilo que no início era
válido pelo menos enquanto igualmente provável, a ligação sentimental sincera
17 Cf. François de Caillêres, La logique des amans ou /'amour logicien, Paris, no contexto da galanteria é agora consentida como excepção: «Il est vrai qu'au
1668, com uma imitação do código da lógica, demasiado pedante e sobretudo milieu de cette galanterie universelle il se forme des engagements de préférence
pouco típico do pensamento contemporâneo. qu'on apelle affaires de coeut. Mais en est-il beaucoup parmi ces engagements
18 Cf. Hermann Schmalenbach, Die Genealogie der Einsamkeit, «Logos», 8 ou le coeur soit veritablement de Ia partie?» (p. 125). ~o avança aqui
(1920), pp. 62-69; para além disso, a interpretação da génese do culto da ami- de resto um pouco mais, pressupondo uma condição à formação do amor autên-
n
zade nisso baseado e da autoria de W olfdietrich Rasch, Freundschaftskult und riZo na falsidade ;na extecioridade dãs formas. Ver em especiaI13e jamin Cons-
ta~~6), citado de Oeuvres, F:d. de la pléiade, Paris, 1957, pp. 37-117.
Freundschaftsdichtung im deutschen Schrifttum des 18. Jahrunderts: vom Ausgang des
21 Assim, todavia, as doutrinas do Com te de Versac, in Crébillon (fils), Les
8arock bis zu Klopstoce, Halle, 1936, p. 36 e segs. Face à ambivalência da versão
de Nicole, cf. também: Niklas Luhmann, Interaktion in Oberschichten, in Gesel- égarements... , op. cit., P: 168 e sego Atenda-se ao jogo da auro-referência semântica
lschaftsstruktur und Semantik, VoI. I, pp. 72-161 009 e segs.).
139
CAPiTULO X
138 NO CAMINHO DA INDIVIDUALlZAÇÃO
cumpram promessas, transformando assim o amor em obrigação;
da má reputação, enguant<2-queo~scravo do seu bom nome pouca nem através do facto de, perante situações futuras, se confiar na
atenção consegue.obrer. --. capacidade de aprendizagem e adaptação. O colapso da ética veri-
Também a mulher deixará de poder entregar-se à sua próe!ia fica-se também na phronésis que suplanta a dimensão temporal.
sincenaãcie. Ela define-se com a sua «virtude» - não que tema a Apenas n~mo_~.l!~J?odemos ent!!gar jJlenamente, só no e~a!~ o
perda desta, mas por temer tornar-se infeliz devido à inconstância .presente e podemos viver e iludir. assim a distinção entre honesto/ 1
do amor do homem. Não se sen~osta apenas à distin- /desonesto. No conceito de passion é relevante a referência ao pre:~ \'l o

ção ~tre sedução ~i~ra e falsa; el~ envolve~e também ~


senteTodavia
espécie de auro-sedução, ao defender os interesses da sua virtude e
ao colaborar igualmente, todavia: fto-i.Qgo do seu sedutor e ~ ser
--- 24.
_ de Montaigne a Rousseau - correm paralelamente
duas orientações..Exist~dúvida radical quanto à possibilidade
incapazde ~e acordo consigo própria 22. Já não é da distinção de s~como atitude e o desmascaramento---ºº-absurdo da
entre a passion sincera ou apenas simulada dos sedutores que se tentativ0al.A,úvida resultará na tomada de conhecime_ntoda in-
trata, quando a entrega ao amor apenas tem a possibilidade de se comunicabilidade da experiência individual, do ser própriQ..auJ:@-
enganar a si próprio e aos outros. O paradoxo inerente ao código rico. por outro lado, continua-se a procurar uma saída através da
torna-se forma de existência por excelência; torna-i.e fruto de ela- dist'i;ção semântica entre naturalidade e artificialidade, naturezà e
'Doração psicológica; e tal significa, para a representação da sernân- civilização. A questão fica reduzida a um equívoco retórico e mai~
rica, que a apresentação por regms, maximes (l'aiiiõUr e quejáiídõs, t~ a uma situação histórica particular: apenas no mundo (distin-
tem de ser substituída eelo r~ce. to) de hoje é impossível um comportamento honesto; mas ainda
Este convergir do comportamento sincero e falso acaba por existe também um modo de comportamento baseado na natureza.
resuTta;"datemj2oralizt1:fão da comflexidaaéSõêiaF3, da-incorporação de Hoje em dia, cabe em parte à psicologia a tarefa de representar os
uma consciência reflexiva do tempo no proprio processo amoroso. paradoxos inerentes ao amor enquanto natureza e consequentemente
Os amantes e ntram-se era cessídade.,n código tornece- enquanto unidade. É óbvio que tal não acontece sob a forma de uma
- es instruções no sentido de estabelecer a distinção entre o futuro doutrina científica, mas antes através da representação literária psi-
presente e o presente fururo: juram-se eternidade - naquele mo- cologizante. O amor autêntico (para o qual deixou de existir distin-
mento.ipara aquele momento. E sabem que se estão a enganar.""Não ção sincero/falso) surge em parte com «witty, cruel, polished, brutal,
é possível regulamentar tal questão através de um estilo quer nor- dignified and unprincipled» 25, apresentando o romance o modo como
mativo quer conjectural; nem através do facto de se exigir que se tudo isto se harmoniza. Em parte acredita-se novamente na boa
natureza que tem por obrigação aceitar sem reservas a respectiva
que serve de paradoxo: a falsidade coincide com o ser verdadeiro para consigo Sellsual1dade: Rousseau!Nüm caso,ãquifo que é Tridispensávél à
próprio; a imitação de outros é o caminho para a individualidade (<<singulari- ~a.ai.od~upenas sofisticação, e~pírito; no outro, trata-se-da
dade» até). Trata-se da Projecçâo negativa do mundo, que em oposição à ideal
sensualidade, que se autolegitima enquanto natureza. --
permite relações de intensificação deste tipo.
22 Assim a Marquise de M. no romance de Claude Crébillon (fils), Lettres de
Ia Marquise de M. arl Comte de R., 1732, citado da edição de Paris, 1970. Cf. por
---
exemplo na carta XIII, op. cit., p. 71: «Je sens des mouvernents que je n'ose 24 O facto de isto ser uma característica que o ser humano partilha com o
démêler; je fuis mes réflexions, je crains d'ouvrir les yeux sur rnoi-même, tout animal irracional deixa por isso de ser sulinhado. Veja-se por exemplo sobre a
m'enrraíne dans un abirne affreux; il m'effraie, er je rn'y précipite.» Precursores relação com o presente da passion (Joseph) Joubert, Penséeset lettres (ed. Raymond
importantes, as sete cartas «autênticas» in Boursault, Lettres nouve/les de M. B., Dumay), Paris, 1954, p. 65; Charles Duelos, Considérations sur les moeurs de cesiêcle
avec sept lettres amoureuses d'une dame à un cavalier, Paris, 1697.
(1751), Lausana,em 1970,
25 Assim,
p. a358.
relação Claude CrébiUon, Clifton Cherpack, An essay on
23 A este respeito Niklas Luhmann, Temporalisierung von Komplexitàt: zur
Semantik neuzeitlicber Zeitbegriffe, in Gese/lschaftsstruktur und Semantik, op. cit., Crébillon fils, Durham N. c., 1962, p. 28.
Vol. L, pp. 235-300.
140 NO CAMINHO DA INDIVIDUAL/ZAÇÃO
CAPiTULO X 141
É possível observar uma luta fatal travada pela retórica da velha
Europa, admita-se a formulação polémica, aquando do interrelacio_ através das tentativas para desmascarar não o ecado nem o amor-
namento destas duas versões. Retórica que entendia a simplicidade -propno, mas a me lOcn a e (ia Bruyece) e não menos importante,
composta quer pela natureza quer pela receita 26. Assim, sucede_ atravéSão dIagnostico do «mundo» enquanto turbulento (termos
ram-se apenas os pormenores referentes à falsidade e à arrificiali_ namoda tourbtllon, torrent) e frívolo.
dade desol'sam,. ~uestão mod',"a t"P';ta~ à ';nc',;d~ Alguns dos problemas mais antigos resolvem-se por si. Sobre-
respectiva incomunicaoIhdade só se coloca quando a relação ~tre tudo agora já não é possível tratar-se simplesmente de uma verdade
'0 ãUtõ;e a ,üãQ;muu;cação nem é comptoend;da como-algo.d, a reconhecer sempre que se está perante o amor e a amizade, pois
natural nem como algo de tecnicamente construÍdo, mas antes aquele que busca o conhecimento toma também parte na criação do
como uma espécie de simulação da existência. As dec1~e objecto. O sentimento deixou de ser - e aqui reside a novidade -
amor deixam então de ser v~.
apenas uffiãpãíxão activada, Rara passar a ter de ser compreendi-
Uma vez aqui chegados, ~mbém de te~ntid~estar a do, sempre que tiver de solucionar os problemas profundos de um.à
- --=
disdnçao entre amor sincero e falso. A distinção não se traduz
através de operações, não sendo também passível de sofisticação
falsidade existencial, como ca-Paz de emitirjuízoJ em relaf.ão a si próprio 'V
ecõns~entemente..Lomo capaz.de.emitir.jufzos.schre o amor. Não
sempre que esta residir exactamente no exercício da unidade cons- necessita de instâncias externas nem de ser remetido ara as capa-
tituída pela sinceridade e falsidade. Cada reflexão reduziria a dis- c1 a es especí Icas e pró rias do estrato social em que as honnêtes
tinção ao denominador comum da falsidade, pois não é possível gens se Integram. _ ssim, reaparece ~ velha guestão acerca da 4is-
saber ou até mesmo afirmar, quando a sinceridade está presente. ~ção entre amor verdadeiro e falso, o sentimento~e, autocrí-
É válido aceitar-se tal - e com isto também a incomunicabilidade tico, produz unicamente amor autêntico - ou então fracassa. «"En
do amor autêntico -, uma atitude que por seu lado está nova- ~our», afirma-se finalmente em Chamfort, «rour est vrai, tout est
mente aberta a uma nova consciência do código, a um amor segun- faux; et c'esr Ia seule chose sur laquelle on ne puisse pas dire une
do prescrições culturais, à ironia romântica, à representação «cien- absurdité 28.»Qificilmente se conseguirá formular com maior clare-~
tífica» do amor como ideologia da reprodução.
za a diferenciação plena do amor, já não é apenas a passion incontro- J

Antecipemo-nos. Face ao pano de fundo constituído or uma ~ mas o fracasso dos eSÇ}uemasde distinções cognitivas e mmais
incomunica 1 ida e, rnars tácita que expressa, teve sobretudo de se respeitantes ao amor,-que..dLex~o à autonomia do amor.
~voa, ijualquor tontativa ..eata 'mpu"", o ho- O sedutor despede-se como figura moral a partir de 1760, com
mem qlle cksti~_Qar~um cQlD.p.o..ttaIQ.entover~ tÍ~o do precio- um último gesto marcante. Ultrapassa as dimensões de uma técnica
so ou do _galã ~ O século XVIII traz consigo o fim da confIança na consciente dos seus objectivos, actua metodicamente de acordo com
mímica COrporal e o11m da retórica. Com isto relaci9na-se o colae a lógica própria do mal, destrói por destruir, depois de o mero
da confian.ça absoluta nos esquematismos cognitivos e morais _ so
sucesso junto das damas lhe surgir demasiadamente natural e por
anunciados através da superficialidade de novos conceitoSInõrãis, isso insignificante 29.Na vertente negativa, estilizada como valor
em si, surge a expectativa informulável de uma moral para além da
moral: de uma moral Qlle....permitetudo ao amor - todavia preci-
26 Cf a este respeito Henry Peyre, Literatllre and sincerity, New Haven, 1963,
em especial p. 13 e segs. samente apenas ao amor.! lo A~\. C t\!) tI
27 Já há muito tempo que, precisamente a consciência dessa estratégia era
algo de natural. O amor da Princesse de eleves começa, de um modo quase irre-
28 Maximes et pensées, em Oeuores completes, VaI. r, Paris, 1824, reimpressão
mediável, com uma dança. Mas o facto de ser ainda possível tomar, levar igual-
Genebra, 1968, pp. 337-449 (421).
mente a sério a palavra enquanto ónus produz aquele género dramático do
c1assicismo que mais tarde se tornará inviável. 29 É possível encontrar uma visão panorâmica acerca de tendências equiva-
lentes na literatura inglesa e francesa que preparam as Liaisons Dangereuses, em
Laurent Versini, Lados et Ia tradition, Paris, 1968, p. 121 e segs.

-------.J
143
CAP[TULO X
142 NO CAMINHO DA INDIVIDUALIZAÇÃO
distinção histórica: «Chez les comiques», afirma o próprio Mari-
Por volta de finais do século, o eSC}.!:lema
de distinções verda- v~u'ici Tamour est en querelle avec ce qui l'environne et
deiro/falso deixa de ser transferido ~o sentimento, passando a finit par être heureux malgré les opposants; chez moi, il n'est en
sê-Io em seu l~ar - p~lo menos na literatura alemã =- a refe"fê: querell qu'avec lui seul et finit par être heureux malgré lui 33.»
cia universar da cognição. Expande-se e aperfeiçoa-se, dando ori- e
Através da agora aprofundada semântica da distinção respei-
gem a um novo conceito de-tndividualidade 30,a ideia segundo a tante ao plaisir (ou goíit) e amour alarga-se na realidade o campo de
ual o amofVisa tanto o outro cornoã' relação universal dêCUríilo manobra destinado à comunicação e à informação, não se rompendo
próprio, ~;--o indivíduo singular ep~r isso também como ~ todavia o estilo tipificador da representação do código. Abrem-se
mundo percepclOnado sirlgUIarmente. Este mundo suojectivamente vias para a individualização pessoal, não sendo ainda identificadas.
reférenciadonão é por seu lado capaz de verdade, é precisamente Ainda faltam nomes de caminhos e localidades, sinais de aviso e de
aceitável apenas enquanto amor e não enquanto conhecimento limite de velocidade. A subjectividade do plaisir é pertença de cada
(também não enquanto conhecimento do amor). Assim sendo, ve- um, enquanto vida, não sendo ela própria um indivíduo. É im-
rifica-se também uma deslocação do momento previamente estabe- possível separar o prazer de contextoS, por outro lado ele é divisível;
lecido no código clássico do amour passion, referente à unilaterali- contraria, no que respeita a todas as características conceptuais, o
dade e à totalização condicionada deste modo. Deixou de se referir
a cada bagatela, bem como às características positivas e à supressão
outrora frequente conceito de individualidade. E todavia, só a
pessoa singular pode sentir o plaisir e amour e atestar a respectiva
6/}
das negativas respeitantes ao «objecto» amado, para se referir à autenticidade. A integração destes conceitos num código destinado
relação única, idiossincrática, não consensual que o sujeito amado ao comportamento comunicativo fundamenta assim previamente a
estabelece com o mundo. A redução da qual depende a totalização 31 auto-referência e a determinação daqueles que comunicam na
diferencia-se deste modo plena e mais profundamente, baseando-se qualidade de regra fundamental da própria comunicação. Uma vez
mais claramente numa reflexividade social de cariz peculiar. Ape- aceite esta regra, a conclusão já não está longe do facto de ser a
nas agora se pode co-formular com ]ean Paul: «Amor pelo amor 32.» comunicação e respectiva assimilação franca das informações espe-
O que significa todavia: o fundamento do amor não reside nas qua- cíficas do código que conduz de um modo personalizado para um
lidades do outro, mas no seu amor.
destino sempre individual.
Também é possível detectar, nas peças teatrais de Marivaux,
esta evolução relativamente à diferenciação plena. yerifica-se um
retrocesso nas circunstâncias externas e nas resistências com que os
amantes se defrontam. O amor causa dificuldades a si próprio até
-acabar por encontrar a saída feliz do casamento. E tal COnStItuIum
programãCõõsciente, sendo formulado conscientemente enquanto

lOVoltaremos a este assunto ainda no capítulo XIII.


liCf. pp. 67 e segs., 96 e segs.
l2 Com isto se subentende a diferenciação em oposição à verdade que passou
a ser recuperada pela ciência. Compare-se: «Altra cosa no puõ pagar colui che
ama, che esser arnato», em Sansovino, op. cit., 1547/1912, p. 163; de igual modo
Nobili, op. cit., 1567/1895, foI. 17 e segs.; ou «L'arnour ne se paye que par
I'Arnour», em Recueil La Suze - Pellisson, op. cit., p. 244, onde (de modo es-
pecialmente inequívoco em Sansovino) se encontra sm primeiro plano a diferen- 3l Citado, sem indicação das fontes, em Maurice Donnay, Marivaux ou
ciação em oposição às reflexões econ6micas co-actuantes. Cf. Cicero, Laelius 58 l'umour au XVIII' siêcle, «La Revue des Vivants», 6 (1929), pp. 843-867 (848).
para a decisão contrária segundo a qual não é possível atingir a afeição do Outro.
CAPITULO XI 145

ficado, se não mesmo recusado, este código enquanto forma lin-


gliÍsuca)3 ~
A-uma maior distância face a uma semântica mais exigente
verÍfica-se simultaneamente que se ama o pecado e a virtude -
CAPÍTULO XI
cada coisa a seu tempo. O que provoca perturbação e o que provoca
harmonia surge alternativamente pelo menos enquanto leitura.
I nc/usão da sexualidade
A proposta ousada: aceitar a passion como princípio selectivosem pers-
peCtiVas de estabilidade e viver o paradoxo correspondente como
As análises do último capítulo demonstram uma interpreta- unidade, desagrega-se nos seus componentes. A distinção entre amor
frívolo e sentimental não pode funcionar enquanto distinção dentro
ção profunda - mais do que as que se reportaram ao século XVII.
Tal deve-se à transferência das fontes literárias do enunciado objec- dc:urrrtôdigo --= tal como plaisirlamour. A frivolidade já só pode ser
tivo e directo para o romance. Dificilmente se notam também apreciada enquanto frivolidade, o sentimento já só enquanto sen-
progressos aquando da transição para o século XVIII, ao nível das 'tim-ento, a virtude já só enquanto virtude. Para isso não é necessária
dissertações temáticas e da semântica do amor oficialmente ano- nenhuma forma grande.
tada. Verifica-se antes a estagnação da evolução. As forças da nor-
malização desencadeiam_se, actuarn, o que é importante, em dupla
---Pode-se todavia supor que esta dupla via contém algo de irri-
tante para todos os que se ocupam literariamente do amor e que
direcção (mais tarde recombináveis!). Leva-se por um lado a semân- com o tempo deixará de provocar satisfação negar a virtude, o com-
tica do amour passion para o superficial, o agradável, o frívolo, a promisso, o casamento quando se trilha a frivolidade ou então, ao
ausência de compromissos 1. Desproblematiza_se o ideário liber- contrário, defender o amor virtuoso contra o pecado. Mas onde
tino, o que se tornou num hábito. É-se levado por Outro lado residirão" ospontos de partida com vista a uma recombinação? Charles
a sínteses novas, sem profundidade, estruturadas de sentimento, Duelos encontra uma solução provisória para o seu herói: depois de
virtude e fundo religioso 2. Os grandes conceitos tradicionais como um estudo profundo e completo de todas as relações amorosas com
razão, moral, religião ainda são indispensáveis. Todavia, é raro repro- todos os tipos do universo feminino, elaborar um juízo global acerca
duzirem uma maior capacidade de distinção. O progresso reside disso e depois tumar para o porto do casamento, cujos fundamentos
na intenSificação da sensibilidade psicológica e-sõcJãl face -aüqUe são a virtude e a amizade 4. Mas quem poderá chegar aí? Não será
epessoal; sêõs.ébilldade essa que por seu lado ainda não se crista- possível pouparmo-nos às fadigas do amor frívolo e decidirmo-nos
lizou a ponto de originar uma semântica respeitável. Onde quer logo correctamente - só com base na leitura?
que se queira descrever um amor impetuoso, recorre-se ao código Se de um modo geral é possível encontrar uma interpretação
do amour passion por falta de outras formas de expressão (e isto global das modificações agora prevalecentes na semântica do amor,
sucede embora os participantes desse amor tenham já desmisti- então ela deveria resultar numa conservação e reforço daquela simbólica
que legitima e exprime a diferenciação plena do campo dõSmeios
de comunicação.
1 Cf. por exemplo de Planhol, op. cit., p. 115 e segs .. Na Alemanha foi
Deixa de existir aquilo que se incluia no código clássico como
..... - -. --~-- j

seguido por autores de «galancen Romans» (romance galance), sobretudo Hu- destreza, procedimento individual de sedução e galanteria social,
- "----I
nold. Cf. a este respeito Herbert Singer, Der galante Roman, 2." ed., Estugarda,
1966. Na forma literária do romance não se destingue também, segundo Singer,
quaisquer inovações essenciais. Ela provém de Inglaterra. 3 A este respeito, inúmera bibliografia em Valentim P. Brady, Loue in the
theatre of Marivaux, Genebra, 1970.
2 Veja-se a este respeito Robert Mauzi, L'idée de bonheur dans Ia litterature
4 Assim nas Conféssions du Conte de... , op. cito : «Nous vivons, nous pensons,
et Ia penséefrançaise au XVIlle siecle, Paris, 1960, em especial p, 180 e segs.
nous senrons ensemble»; assim termina, à Ia modeanglaise, poder-se-ia acrescentar.
146
INCLUSÃO DA SEXUALIDADE
CAPiTULO Xl ( • 147
para passar a existir uma concentração nos momentos da semântica
' ue simbolizam a irresponsabiEdade e no aproveitamento do facto rnento, porque este impõe o tempo e o mod2J Reduz-se à frujção
d_~nti~uar a chamar passion a um procedimento bem activo em pknããa sensualidade, por só assim lhe ser possível surgir enqua~to
matéria de amor. Oatureza 7f1gnora o facto de a natureza ter sido sempre um concei-
[.N.: ~n!:a da frivolidade distingue-se o amor do cOntrol~/ ;;-inibidor, que exclui a singularidade, afinal a individualização
e do <onrrolo racional na linha do sentimento (o que para ambos As transformações mais importantes, trazidas pelo século XVIiI,
significa: a participação de outros~ de a frivolidade e....o...sen- dizem respeito à sexualidade - e na realidade não tanto no que diz
respeito à praxis do próprio acto sexual 8 em si, como ao seu tra-
fimento se encontrarem em oposição, não impossibilita aJunção
c'üinum: fomentar o processo da diferenciação plen~ Este utiliza tamento enquanto mecanismo simbiótico inerente à semântica do
simultaneamente um conjunto de duas alavancas que podem ser amor. A vitória dos cristãos e dos bárbaros destruiu, segundo Bertrand
entregues alternativamente de acordo com o modo como a socieda- Russel 9, a cultura sexual do mundo antigo, fazendo sobretudo a
de procura os amantes sob controlo: mediante a moral ou mediante vida sexual retroceder para o nível do animalesco. Com a continua-
ção da desvalorização semântica e da repressão desenvolveram-se', a
a razão. Ambas as concepções, o forçar da frivolidade e o idealizar
partir doSéculo XVI, tendênci~ na direcção d;- uma privatização
do sentimei1tO;não encontram uma relação equilibrada nõq-üõti-
~o casamento comprometido..familiarmente, contribujn~m mais profunda e intirnização, no sentido por exemplo de uma ini-
--.
para a destruição deste, independentemente do princípio pelo qual
----- bição crescente da exibição do corpo nu l2.. Assim sendo, a reserva
se o~tfor volta de meados do século XVII!, o conceito de nat~ e a alusão indirecta passaram a fazer parte da comunicação; nunca
~caba por permitir encontrar um denominador comu~a
/ sexualidade, agora cada vez mais tematizada enquanto tal,
7 Assim por exemplo nos romances do oficial da guarda Loaisel de Tréogare.
S'errrírrrentos passlOnaw' Denominador comum essf queeXPtim.e
8 Em relação a isto existe uma ampla discussão, sobretudo no que diz res-
igualmente o facto dê" o âmor se ter Liõerto das amarras da socie- peito ao uso crescente de técnicas anti-concepcionais que por seu lado facilitam
dade e de não ter perdido os seus direitos face a esta, já que é ele- em compensação O) a livre disponibilidade do entusiasmo sexual e (2) o alarga-
-rnenro da natureza. Também o conceito de natureza simboliza agora mento da intimidade em relação aos filhos. Cf. entre outros: Marcel Lachiver,
Féeondité legitime et contraception dans Ia région parisienne, in SUl' Ia population fran-
difere~iação pl~ não perfeição sõ5tarmas essen~to
çaise au XVIII' siêcle: hommage à MareeI Reinhard, Paris, 1973, pp. 383-401; Jean
mesmo é compatível com a ideia segundo a qual as "pa1xoes São Louis Flandrin, Familles: parenté, maison, sexualité dans l'ancienne société, Paris, 1976,
I1teís,por muito desordenadamente que possam surgir; sendo~ p. 204 e segs.
possível julgá-Ias segundo as suas consequências. A partir de cerca 9 in Marriage and morais, 1929, citado segundo a reimpressão, Londres, 1972,
e
g 1760, aumenta o n~mero de romances_nos quais os heróis apre- p.36.
sentam a sua passion como tratando-se da sua natureza e revoltan- !DUma evolução muito discutida. Cf. por exemplo Lawrence Stone, The
family, sex and marriage in England 1500-1800, Londres, 1977, p. 143 e segs.;
.ao-se em nome desta COntra as convenções morais da sociedade.
Robert Muchernbled, Culture populaire et cslture des élites dans Ia France modeme
9 «amor livre» passa ao ataque à sociedaC§J. Verifica-se no Inces- (XV' et XVIII' siêcles), Paris, 1978, p. 230 e segs. Com respeito à questão de
to - a princípio como qualquer coisa de bom e só depois de acordo dormir junto cf. Flandrin, op.cit., (976), p. 97 e segs. Na maior parte dos casos
com o juízo social, como infamante 6 [õ «amor livre» recusa o casa- fala-se aqui de repression (veja-se apenas Jos van Usel, Sexualunterdrüekung: Ges-
ehiehte der Sexualfeindsehaft, trad. alemã, Reinbek, 1970). Tal poderia suscitar
5 Cf. a este respeito, com muita documentação, Paul van Tieghen, Les droits o erro, como se através disso se limitassem as oportunidades para apaziguar as
de I'amour et l'union libre dans le roman franfaise et aflemand 1760-1790, Neophi- necessidades sexuais, o que dificilmente se pode afirmar; mais característico seria
lologus», 12 (927), pp. 96-103. antes o facto de a sexualidade se diferenciar plenamente dos outros domínios da
6 Cf. Louis Sébastien Mercier, L'homme sauvage, histoire traduite de... , Paris,
existência. Mais intimidade significa também mais liberdade. ~ais intimam~te
1767. Também aqui fica claro, embora sem referência ao tempo, sem passado e significa também mais liberdade. Desiste-se da regulamentação religiosa - posi-
sem futuro (por exemplo, p. 68). ções permitidas e proibidas - ~rante a relação sexual e no lugar do que é ne-
cessário à procriação surge o amor enquanto princípio permissivo.
CAPiTULO XI 149
148 INCLUSÃO DA SEXUALIDADE
não são levadas em considerafão (amizade). Dentro destas variantes,
se deveria referir faveur, mas antes douleur, prescreve uma das pre- fica camoén=tem abe;to a continuaç-ão do desenvolvimento de um
ciosas 11. Assim se elaborou um dos pressupostos com vista à codi- ~igOdêstlfiãdo- às relâçôes íntimas. Todavia, n<2-s§sulo XV!!!, ~
ficação da intimidade baseada na sexualidade. Paralelamente veri- largamento dã refleXlvidad~p~ssoal e social começa a modificar os
fica-se uma mudança na teoria. Enquanto algo ~I, a sexua- pontos de partida para uma análise da sexualidade como fenóffie~o;
lidade fazia, ·parum lado, parte da essência humana corrompida eGlib'e'rta-os da tematização predominantemente religiosa e éticO-
pelo pecado, mas todavia como algo designado por Deus, portanto -i2olítlca permitindo um tratamento mais aberto do fenômeno 15.
não simplesmente como algo repreensível, censurável. Em iniQos '--- a -queda- dos obstáculos que se criaram também e precisa-
Dá-se
do século XVII, o problema era assim formulado: a natureza em si mente no seio do casamento para obviar à realização de relações
é boa, todavia leva o homem a comportar-se de um modo co~ o sexuais 16. Estabelece-se ligação com a valoração do conceito de
qual este mesmo não pode concordar 12.
natureza (física) 17, mas também com a tese segundo a qual~r
- ~nsar-:'qtre se é obrigado a concordar sempre com o compor- é. iá Eor si, virtud~n112~cendo de qu~uer..2utra justificação
tamentopróprio tem as suas raízes na Idade Média 13. O co~a- J. Parece também consolidar-se, no uso correntepa língua, o
mento individual relacionado com a consciência reflexiw-llão se
~
dissociava daquele modo de pensar, estando igualmente exp-2.stoaos.;:>
c~ndicionalismos sociais (pois os critérios, segundo os quais é po~el
- subentender da senstialidãâe quando se fala de amor ou amour 18.
Através de tudo isto desarticula-se o carácter alternadvo presente

_~ncordar --- ou-não - com o respectivo comportamento.Têm na-


15Cf. enquanto visão panorâmica detalhada, Paul Kluckhohr, Die Auffassung
tu~lme~te a sua origem social). Este modelo conceptualTeIãt1vo à der Lieble in der Literatur des 18. jahrhunderts und in der deutschen Romantik, 3." ed.,
representação do instinto sexual, como natureza carente de controlo Tübingen, 1966, em especial pp. 42 e segs., 82 e segs.; ainda Edward Shorter,
e de consenso, mantém-se ainda e é mesmo reforçado ao longo do Illegitimacy, sexual revolution and social change in modern Europe, «Journal of Inter-
século XVII, porque os critérios de tolerância começam a vacilar 14. disciplinary History», 2 (1971), pp. 237-272; Georges May, Diderot et dA re-
Tal como se apresentou no capítulo VI, a própria paixão acaba por ligieuse»; Etude historique et littéraire, Paris, 1954, em especial p. 98 e segs.; Aram
Vartanian, La Mettrie, Diderot and the sexologie in tbe Enlightenment, in Essays on
conduzir para aquele consenso interior e assim legitimar a entrega
the Age of enlightement in bonor of Ira of Wade, Genebra, 1977, p. 347-367. Ver,
ao amor sensual. Por volta de finais do século XVII, aparece clara- relativamente ao aspecto histórico-social Helmut Müller, Die Kleinbürgenliche
_ mente a forma pcl;" qwil a referência à sexüaliêlãdepossi~llitãã Familie im 18. jahrundert: Verhalten und Gruppenkultur, Berlim, 1969, p. 279 e
gen-eralizaçãOao meiõ-simbólico amor. As possl6irraad~ -nasquais segs. Por outro lado, existem múltiplas evoluções prévias, por exemplo a lenta
se pensou gradualmente: 1) sublimação através da exclusão provisória, separação da sexualidade matrimonial da justificação exclusiva com base em
objectivos de procriação (cf. por exemplo: André Biéler, L'bomme et Ia femme dans
'õU"ãté definiriva,- de põsslveis contactos sexuais; 2) modehzaçãodo
Ia morale calviniste, Genebra, 1963; James T. Johnson, A society ordained by god:
desenrolar daS histórias de amor numa analogIa secreta com a rela- english puritan marriage doctrine in the first half of the seventeenth century, Nashville,
Çao sexuanestab;l~cimento de contactos - jogo de Intensificação 1970) ou casos isolados de tratamento do tema, à excepção de literatura mais ou
·":auge - indiferença e necessidade de sep_~ração)e 3} çransferên- menos pornográfica, por exemplo em Montaigne.
cia da generalização para uma alternativa na qual as relações sexuais
- - - 16Cf. por exemplo François Lebrun, La vie conjugale sous l'Ancien Régime,
Paris, 1975, p. 85 e segs.
17Tal constitui igualmente um dos pontos de referência com vista a uma
comparação entre movimentos que visam a liberdade religiosa, sexual e política
IIComtesse de B. (Brégy), Oeuvres galantes, Paris, 1666, p. 113.
que jogam a natureza contra os compromissos civilizadores. Cf. Edward A. Tiryakian,
12Cf. Pierre Charron, De Ia sagesse,citado de Toutes les oeuvresde Pierre Cbar-
Sexual anomie in prerevolutionary France, Ms. Febr., 1981.
ron, Paris, 1635, reimpressão, Genebra, 1970, VoU, p. 76 e segs.
18«Je suis faché de n'avoir jamais pu concevoir l'amour independent des
13Começando com - será isto acaso? - um herói da semântica do amor:
sens», reconhece ainda Pernetti um pouco sobressaltado, op. cit., p.78, e mais
Pedro Abelardo. Ver em especial a Ética, segundo a edição inglesa da autoria de
tarde algo mais claramente, op. cit., p.79 : «L'attrait rnutuel des sexes fait Ia base
D.E. Luscombe, Oxford, 1971.
de l'amour»; ou então veja-se Jean Blondel, Des hommes tels qu'ils sont et doivent
14Cf. a este respeito novamente op. cito (948); Horowits, op. cito (1977).
CAP[TULO Xl 151
150 INCLUSÃO DA SEXUALIDADE
rada For sofismas que não temem ser descobertos, tornando-se já,
em todas as discussões mantidas até ao momento, entre as tendên- 'pelo contrário, na base para o passo seguinte. O carácter indizível
cias religiosa e pornográfica da literatura e com ele a oscilação entre do último momento de ocultação pode atrasar por momentos o
os enunciados idealizantes e sarcásticos acerca do amor e das mu- avanço da desocultação - ou deixã-lo à fantasia do leitor. Tendo em
lheres, oscilação essa que distinguiu em especial a literatura fran- conta a forma semântica, associa-se a tudo isto uma desagragação
cesa 19. A aceitação do mecanismo base fornece uma solidez nova à radical do tema amor, no momento e no ponto de vista - um pointil-
,«obstin~a» insistência no amor. O resultad~ consiste numa fu~ lisme sociotemporal, ao qual o comportamento se tem de adaptar 23.
(que se legitima a si mesmo) entre a sensualidade e a sofisticação; A libertação das relações sexuais, verificada nos estratos sociais
fusão essa que é possível demarcar, por um lado face à mera sexua- franceses mais elevados durante a segunda metade do século XVIII,
"!idade, por outro face ao amor «platônico- 20.
progrediu talvez exageradamente - excessivamente com vista a
Em muito se fundamenta a suposição, segundo a qual a trans- uma possível integração da sexualidade e do amor 24. Outros países
ferência para uma maior reflexividade social introduziu sobretudo e outras literaturas começam todavia a reagir n~gativamente aos
a libertação da sexualidade. Os romances de Claude Crébillon modelos franceses. O interesse inglês pela sexualidade formou-se de
(Le Fils) estão esttuturados através de diálogos que procuram estar um modo singular e notável, para logo de imediato se retrair.
tão perto quanto possível dos factos. O coeur torna-se aqui dis- Também a Inglaterra viu a questão sexual deslocar-se para o centro
pensável, não acontecendo o mesmo ao esprit. O amor deixou de das atenções de um modo mais efectivo do que anteriormente
«ser» excesso, para ser apenas «un désir que 1'on se plaisoit à acontecera, logo após ter passado de moda o culto do herói. Porém,
s'exagérer- 21. É esta superação da natureza, este exagero, que geE.a tornam-se simultaneamente mais rígidas as normas que regulamen,-
a infelicidade ~ O amor "parece ser todavia necessário à meaiação tarn a 'convivência honesta com tais questões, transferindo-se toda
entre os sexos. A aproximação é improvisada de um modo perspi- esta problemática para a zona da incomunicabilidade. A hipocrisia
caZ; frívolo, fácir, a partir de cada situação oportuna; realiza-se

----
«vitoriana» não passa de uma designação incorrecta, ela é um produto
sensível à ressonância, mas jamais de forma grosseira; sendo susten- do século XVIII 25. Pode-se pressupor a omnipresença deste interesse
_ e por isso afastá-Ia com toda a determinação. Isto mesmo é difi-
Londres-Paris, 1758, p. 140 e segs. «Il n'est pas du
être: ouvrage de sentiment»,
véritable amour, de l'amour le plus pur, d'anéanrir les senso Il ne pourroit»
(142). A Encyclopédie de Diderot define finalmente amour (autor Vauvenargues) 23 Devem perseguir as consequências até às questões referentes ao estilo
como «une inclination dont les sens forrnenr le noeud», Vol. I, Paris, 1751, literário: o estilo de Crébillon (frequentemente acusado de tortuoso) corresponde
p. 367. exactamente a esta exigência de analizar e aglomerar as perspectivas.
19 Enquanto visão panorâmica, veja-se, à luz deste ponto de vista, René de 24 Uma boa visão é aqui fornecida pela literatura de memórias, na qual é
Planhol, Les utopistes de l'amour, Paris, 1921. possível controlar em que medida a vida influencia o romance e este a vida. Um
20 A fim de documentar isto com uma citação típica: «La volupté ... sera bom exemplo: Comte Alexandre de Tilly, Mémoires: pour servir à l'bistoire des
donc l'art d'user des plaisirs avec délicatesse, er de les gourer avec sentirnenr», moeurs de Ia fin du XVIII' siêcle, citação da 2." ed., Vol. IlI, Paris, 1828. Para a
afirma-se em: anónimo (Thémiseuil de Saint-Hyacinrhe), Recueils de divers écrits, correlação entre romance e (tal como se poderia quase afirmar) mundo da vida
Paris, 1736, p. 130. e para o papel de Tilly quanto a esta correlação, cf. também Laurent Versini,
21 Crébillon (fils), La nuit et le moment, ou les matinées de Cytbêre, citado da Lados et Ia tradition: essai sur les sources et Ia technique de Liaisons Dangereuses, Paris,
edição Oeuvres Completes, Vol. IX, Londres, 1777, p. 15 (reimpressão, Genebra, 1968, p. 25 e segs. Acerca das cortesãs e respectivos preços, podemo-nos orientar
1968, Vol. lI, p. 61). De resto, é precisamente através das passagens, das quais com a ajuda dos relatórios de pollcia, entretanto publicados. Cf. Camille Piton
se extraíram as citações, que é possível reconhecer uma desiludida mistura entre (ed.), Paris sous Louis XV: rapports des inspecteurs de police au roi, 5 Vols., Paris,
amargura, objectividade e cinismo; mistura essa que não é totalmente indepen-
1909-1914.
dente da expectativa, segundo a qual se esperava que tudo acontecesse realmente 2j A este respeito e de leitura agradável: Robert P. Utter / Gwendolyn B.

de um modo diferente. Needham, Pamela's daughters, 1936, reimpressão, 1972. O tratamento usual que
22 Aqui reside o trabalho prévio para um código-consciência, que os «ideólo- apenas o século XIX tem em vista, abrange apenas ainda a especificidade histórico-
gos» formularão mais tarde. Cf. p. 156 e segs.
152 INCLUSÃO DA SEXUALIDADE CAPiTULO Xl 153

cilmente explicável pela repercussão da rigidez da moral puritana, interesse pela perfeição do ser humano, formulando-se como sem-
surgindo antes como consequência das negligências desta última. pre a problemática no âmbito da distinção genérica entre homem
Em França, como exaustivamente se mostrou, elaborou-se um código e animal. Tal está evidentemente relacionado com o facto de ele-
;gtanfente complexo para as situações amorosascircunscritas às relações mentos constituintes do velho Amor Rationalis continuarem a pro-
~xtramatrimoniais.: A Inglaterra não estava preparada, no que r~- longar-se no conceito de «amor sensato» 28 e com o facto de se
ta a esta questão, por isso foi possível introduzir-se em França a re- destacar a razão enquanto particularidade distintiva do ser humano.
valoração da sexualidade num contexto semântico transmitido pela «Sensibilidade» (Empfindsamkeit) e até ternura surgem na litera-
tradição. Tal revaloração foi não só realizada em Inglaterra êõfuo tura alemã como conceitos que se referem às qualidades objectivas
também reprimida. Verifica-se assim em que medida a evolução de e morais da pessoa""amad,!29. O sentimento continua a ser órgão
ideias depende da capacidade de estabelecer contactos, da auto- para percepcionar qualidades morais. Os conceitos pertencentes à
-selecção a partir do material existente., A ligação entre amor e sentimentalidade continuam assim a descrever o controlo que a razão
casamento, proclamada pela primeira vez em Inglaterra, consegu"'iu exerce sobre as paixões, continuando comprometidos com a antiga
ctetacto impressionar o continente. Contudo enfermava de um pontõ ideia europeia, segundo a qual as capacidades são especificadas pelo
fraco, quanto a um aspecto decisivo: a mulher devia permanecer objecto. À seXualidade resta apenas o campo dos impulsos instin-
imaculada até ao casamento. Ora para o amor tal não constituia tivos. A comparação mostra assim em que medida a revalorização
qualquer tipo de exigência. Tal discrepância manifesta portanto o da sexualidade está associada à diferenciação plena de uma semân-
fracasso da integração quer do ponto de vista psicológico quer do tica especial do amor e ao recuo da antiga terminologia europeia.
ponto de vista semântico. Exigia-se o que aliás não era possível sem Torna-se fácil testar ft expansão factual deste clima de opinião.
hipocrisia, que se namorasse antes do casamento e só depois ct~ste Basta ler apenas a quantidade de formulações extáticas que assimi-
houvesse lugar para a vivência sexual. Não fosse porventura possível lam os valores do corpo e verificáveis quer no culto religioso quer
atribuir infundadamente outras oportunidades de aprendizagem, mundano do amor amigo. Que os amigos se cubram de beijos sem
um melhor conhecimento e consequentemente uma moral ambígua, fim; caiam nos braços um do outro (e o mesmo se passe na cabana!)
o romance jamais poderia atingir os primórdios do plausível. e que cada um guarde o outro no seu coração (como S. João a
Torna-se para além disso interessante comparar a evolução até Cristo); e que falem livremente de efusões sentimentais - tudo
aí modelar, verificada em França, com a literatura alemã sua con- isto jamais poderia ter sido escrito se os que têm por ofício escrever,
temporânea (ambas expostas ainda ao sentimentalismo inglês). A tivessem de temer que lhes pudesse ser atribuído que o pensar no
sexualidade é ainda e quase sempre recusada na Alemanha do ;é- seu próprio corpo lhes tivesse guiado a pena. .ó. relação com o corpo
culo XVIII 26. Verifica-se uma prisão muito mais forte ao aparelho orienta-se aqui, pelo contrário, ainda de acordo com a velha distin-
conceptual "tradicional, distingue-se a propósito de Thomasius e ção semântica entre Res Corporales e Res lncorporales; a ênfàse situa-
Leibniz duas espécies de dedicação ao outro (Amor Concupiscentiae/ -se no lado não corporal, espiritual desta distinção. A solidez deste
/Amor Benevolentiae) 27, mais tarde: interesse pela união carnal e pressuposto foi abalada apenas no terço final deste século (pelo que
não é natural atribuir-se esta mudança à galanteria e arte de sedu-
-nacional, não tentando de modo algum esclarecê-Ia, cf. para os E.V.A. Milton ção dos franceses nem seguramente a Wieland).
Rugoff, Prudery and passion, Londres, 1972; para além disso e na qualidade de A exclusão da sexualidade apresenta presumivelmente também
imagem complementar, Steven Marcus, The other victorians: a study of sexuality
and pornography in mid-nineteenth century England, 2." ed., Nova Iorque, 1974.
26 Com vista a uma panorâmica geral, ver Paul Kluckhohn, op. cit., p. 140 28 Cf. Christian Thomasius, Von der Kunst Vernünfftig und tugendhafft zu
e segs. Lieben... oder Einleitung zur Sitten Lebre, Halle, 1692.
27 Cf. Neue Abhandlungen über den menschlichen Verstand, Livro 2, Capítulo 20, 29 Ver a este respeito Georg Jager, Empfindsamkeit und Roman, Berlirn, 1969,

§4, §5, citado de Leibniz, Werke, VoI. III, r, Darmstadt, 1959, p. 224 e segs. p. 44 e segs.
154 INCLUSÃO DA SEXUALIDADE CAPiTULO XI 155

~a relação discreta com a estrarificação do sistema de sociedade. elemento essencial, acabará por favorecer de igual modo uma
fi. inclusão inco.!ldici<?nal da atracção sexual no código amoroso ~utralização das distinções entre estratos sociais por via do cet
teria franqueado as portas entre estratos sociais. A Marquise de M. à diferenciação plena funcional. Porém, tal só é possível a partir de
sublinha numa das suas cartas não necessitar dese apoiar na sua . Julho de 1789, só possível para o romantismo.
virtude para se defender dos galãs burgueses; neste caso, bastariã o Suponho que para além da revaloração da sexualidade, tam-
gosto 30. É precisamente por isso que em Inglaterra se recusa a bém a concorrência entre «amor» e «amizade» se tornará decisiva
mensalidade da mulher com estratos inferiores, porque aquela deixa enquanto fórmula fundamental de uma codificação da intimidade.
entrever com demasiada clareza um interesse sexual pelo homem 31 O amor vence. No início do século XVIII, apresentam-se à partida
(e a existência da mulher apresenta-se aqui, segundo o romance, diferentes oportunidades para ambas as formas. Rousseau mostra-se
desprovida de consciência sexual). Através de tais atitudes destaca- ainda incapaz de tomar uma decisão - a pujança da sua represen-
-se novamente o primado da estratificação por oposição ao da dife- tação do amor contradiz a sua opção pela amizade. A amizade,
renciação funcional. Com isto se insinua igualmente que é mais apresentada como vantagem determinante, melhor capacidade de
"'(""
fácil suplantar a virtude que os limites do bom gosto. E todavia generalização sociotemporal, pode pretender durar e ser também
v", devemo-nos interrogar em que medida tal gosto ainda se mantinha viável entre pessoas que não pretendem ou não querem relacionar-
~ - tendo em vista a atracção demonstrada por um arlequim -se sexualmente 33. Apenas ela pode efectivar a reflexividade social
ou por um criado nas obras dramáticas de Marivaux. Um testemu- ao, agora necessário, nível da individualidade, enquanto que o amor,
nho tardio esclarece subitamente a situação (e documenta igual- em face das exigências crescentes de individualidade, conduz obri-
mente em que medida a atracção sexual era compreendida de um gatórJa e individualmente à infelicidade ~. Será que não é necessário
modo limitado, sempre que era simbolizada pela beleza ou pela atender à Marquise de Lambert e basear as conjecturas de supe-
juventude). rioridade numa mais elevada capacidade de generalização do con-
Humboldt anotou nos seus diários (Junho de 1789) 32 que «con- ceito de amizade? O romance sentimental inglês não acrescenta, no
templar o vigor que a mulher ostenta» - especialmente a oriunda essencial, nada mais quando destaca o amor no seio do matrimónio 35.
dos estratos sociais inferiores - despertava enormemente a sua E por acaso não teria também a reflexão psicológica crescente por
volúpia; fundamentou assim o seu casamento em ideias bem dife- obrigação favorecer mais a amizade que o amor? Parece que o culto
rentes. Seja como for, a reformulação de um código destinado às da amizade do século XVIII vive sobretudo destas plausibilidades
relações fntimas, no qual se inclui a componente sexual enquanto iniciais. Não constitui coincidência de qualquer espécie o facto de
a literatura alemã se ter revelado receptiva a estes pensamentos e
30 «En vérité ce serait une sottise que d'avoir avec eux de Ia vercu; on n'a, ter avançado, a partir deste aspecto, em direcção à intimização do
pour s'en pouvoir defendre, tout au plus besoin que de goüo (Crébillon fils, casamento 36. Por seu lado, o amor beneficia enormemente com a
Lettres de Ia Marquise de M. au Comte de R., op. cit., p. 114). Cf. Também a este revalorização da sexualidade.
respeito, Jean de La Bruyêre, Les caractéres ou les moeurs du siêcle, citado de Oeuvres
Completes, Paris, 1951, p. 115: «Pour les femmes du monde, un jardinier esr un
jardinier, et un maçon est un maçon; pour quelques aurres plus rerirées, un 33 Deixamos aqui de lado o complicado problema da homossexualidade como
maçon est un homme, un jardinier est un homme. Tout est rentarion à qui Ia o de uma hipoteca oculta do conceito de amizade. Relativo à capacidade literária
craint.» deste complexo cf. Hans Dietrich, Die Freundesliebe in der deutschen Literatur,
31 Cf. Ian Watt, op. cito (967), p. 164 e segs. Também em França surge este Leipzig, 1931.
tema - mas de preferência com vista a representar como vítima inocente o 34 Em meados do século XVIII, a oferta desesperada da mulher como expres-

homem de origem inocente que ama acima do seu estrato. Assim no romance são de grande paixão surge como modelo desta concepção.
anonimamente publicado, Les amours d'Eumêne et de Flora ou histoires véritables des 35 Voltarei a este aspecto. Ver p. 135 e segs.
intrigues amoureuses d'une grande princesse de notre siêcle, Colônia, 1704. 36 Cf. indicações no capítulo VII, nota 27. Ver também Boudier de Vilemerc,

32 Citado de Kluckhohn, op. cit., p. 260, nota 1. Nouvel ami des femmes, op. cit., p. 130. Cf. ainda Helmut Mõller, op. cit., p. 305 e segs.
156 INCLUSÃO DA SEXUALIDADE CAPÍTULO XI 157

Embora se insista teoricamente numa separação rígida entre ser cuidadosamente especificada e aperfeiçoada. Não afirma sobre-
amizade (espiritual) e amor (sensual), exige-se que a amizade fun- tudo que as amizades não seriam possíveis nem suficientemente
cione agora como factor de revaloração face à sexualidade. «Mas...Q verosímeis, nem tão somente que a relação sexual seria um pressu-
amor só tem mérito quando a amizade pulsa com ele no mesmo posto indispensável à comunicação íntima e altamente l'e~j-
coração.» 37 Em compensação, o amor entre sexos torna-se base in- 2ftàa. O ponto de vista decisivo é de cariz negativo, o que é válido

dispensável da intensificação (todavia, é recusado como sensuali- em igual medida para outros meios e mecanismos simbióticos.
dade pura). Este processo de enobrecimento não pode entrar em Possibilidades imprevistas, inerentes à activação de processos
actividade sem esta base, não basta apenas a «simpatia das almas». orgânicos de elevado grau plástico e culturalmente configuráveis,
«O amor não é despoletado pela afeição entre as almas; é enobrecido dificultariam as especificações funcionais das interacções comunica-
desde que exista.» 38 O casamento oferece a este processo de eno- tivas, excluindo, quanto a este aspecto, exigências de maior grau.
brecimento a forma adequada à solidez e duração - é com emoção Deste modo, as economias de capital intensivo pressupõem uma
que se verifica ser possível observar a mesma propensão para o satisfação suficiente das necessidades primárias de toda a popula-
amor matrimonial de base sexual, nas camadas sociais inferiores. ção, assim como a ordem política pressupõe um enclausuramento
Esta evolução desagrega a orientação - paralelamente a e em da violência física. Parece ser a mesma razão aquela que dificulta,
sintonia com a reflexividade - segundo as qualidades estéticas e quando não exclui, a concentração de relações altamente persona-
morais doia amante. Mauvillion, por exemplo, utilizou ainda o termo lizadas, caracterizadas por uma interpenetração inter-hurnana e a
«amor moral», mas com um sentido fundamentalmente alterado. aceitação da vida mundana do parceiro e a sua ascensão ao inve-
Comenta: «Seria porém mal compreendido, se se julgasse que a rosímil sempre que é possível aos parceiros relacionarem-se sexual-
capacidade de amar um objecto consistiria principalmente em ser- mente com outras pessoas.O conteúdo intimista específicodas relações
-se induzido a tal, devido às particularidades morais desse objecto. entre pessoas e que passa pela sexualidade é demasiado alto para
Nada menos que isso. Nada mais do que, em particular para a aquele poder ser ignorado numa outra relação, apenas «amistosa»;
nossa espécie, uma orientação totalmente especial do instinto sexual o ónus que outras possibilidades representariam para a intimidade
na direcção de um único objecto.. 39 De início, esta modificação de seria todavia difícil de suportar. E a consciência mútua desta
sentido surpreende: moral enquanto sexualidade dirigida? Mas a problemática, patente numa relação unilateralmente possível, acen-
demonstração é reveladora: a felicidade (no casamento) depende por tuaria ainda mais esta dificuldade. Está assim iminente a inclusão
isso «da índole afectiva do outro» 40. das relações sexuais no modelo de comunicação íntima, com o objec-
O resultado da concorrência entre amizade e amor confirma tivo de não permitir que elas se transformem em fonte de pertur-
uma teoria que defende a importância de mecanismos simbióticos bação: enquanto relação com o mundo circundante, característica
destinados a viabilizar a diferenciação plena de meios de comuni- de um dos parceiros do sistema íntimo, elas tornar-se-iam na ori-
cação simbolicamente generalizados. Esta tese precisa todavia de gem de pertubações permanentes.
'Dtl_como o enclausuramento do poder físic~ reservado ao
37 K. W. von Drais, Drei Vorlesungen uber Liebe, Gescblecbterund Ehegliick, dreien
~,_aSsim também a circunscrição da sexualidade está reservada
Damen gehaften, Gorha, 1783, p. 14. ao casamento e surge como pressuposto d; uma evolução de nível
38 Von Drais, op. cit., p. 22. superior. É possível que o casamento, no seio dos estratos sociais
39 Jakob Mauvillon, Mann und Weib nach ibren gegenseitigen Verhziiltnissen elevad;; clãs séculos XVII e XVIII, tenha proporcionado um fundo
gescbildert, Leipzig, 1791, p. 273. Cf. também (todavia ao contrário: partindo da yivencial como resposta a estas questões. Estes estratos sociais ele-
perspectiva da mulher) Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts nach
Prinzipien der Wissenschaftslehre, (1796), citado de Ausgewahfte Werke, Darmstadt,
vados reagiram com uma liberalização da sua concepção de casa-
1962, VoI. Il, p. 308 e segs. (dedução do casamento). mento à tendência para uma maior individualização e para uma
400p. cit., p. 273. determinação acentuadamente individual do agir; tais estratos so-
158 INCLUSÃO DA SEXUALIDADE CAP[TULO XI 159

ciais apenas poderiam conceder liberdade aos indivíduos, não ao pode ser recusado, carece de delimitação, sendo respectivamente
casamento, pois a reprodução do estrato social superior inchrfa () onerado com complicações, que mais tarde podem tornar-se nos
casamento (e não como hoje as carreiras). Tal significou a evolução estímulos para um equilíbrio instável ern siruações limite. p inte-
do código do amour passion na direcção das relações exrramatrimo- resse e a representação da sexualidade não podem por si só ser
niais. «Un bon marriage, s'il en est, refuse Ia compagnie er condi- suficientes enquanto censura. A separação deixa de se verificar entre
tions de l'arnour», afirma Montaigne 4r9
casamento é na realidade a sensualidade e a alma, quando se exige a unidade entre o amor
um canal para desviar o excesso de sensualidade, mas a sua essência e o casamento. O obsceno perde o seu valor através da ausência de '"
ccincide com a compreensão mútua e não com a paixão 42. Fazer interesse pela pessoa ou, mais exactamente, através da permutabi-
a corte à sua própria mulher seria profundamente ridículo, bem lidade da pessoa do outro 44. Associada a esta questão, surge igual-
como o uso em excesso da paixão para ter acesso à sua própria cama mente uma consciência da unidade do interesse sexual (seja qual for
- o que por si não deve naturalmente excluir a atenção e o amor a sua forma cultural e sexual), de modo a que o amor se permita
(no sentido do conceito tradicional), nem sobretudo a relação res- algo que inclua a possibilidade de ser obsceno (quer momentanea-
peitosa com a própria mulher 4fE.sta fixação semântica e institu- mente, quer esperando ou recordando, quer para outros). Atender
cional tinha de bloquear a evol'UÇão do casamento em direcção a à individualidade do parceiro aumenta com esta distinção, atin-
uma rel~ão pessoal e íntima - pelo menos para as camadas sociais gindo igualmente a fronteira daquilo que à partida pode ser pro-
elevadas, Assim, é possível perceber que sexualidade e intimidade porcionado pela codificação cultural.
se encorlrram numa contradição que não pode ser aboli da no qua- É ainda antes do romantismo que se pode reconhecer uma nova
dro da ordem estabeleci<!] Num quadro de relações sexuais sem síntese em todas estas tendências inequívocas; síntese essa que pode
barreiras, o casamento não poderia ser transformado num relaciona- abranger as velhas distinções (sensual/espiritual, amor/amizade, plaisir/
mento íntimo; experiências semelhantes podiam ser obtidas através /amour) e que em princípio são válidas (ainda que com diferenças)
das amizades" para todos os estratos sociais. A intimidade é vista como felicidade
O facto de se procurar uma nova fórmula unificadora para o matrimonial, exigindo a inclusão da sensualidade num processo de
amor, a sexualidade e o casamento, e de se a ter encontrado no constituição mútua de uma forma anímica e espiritual. A semântica
conceito de auto-realização pessoal, acabou por ter os seus efeitos no do amor permanece assim, munida de tais exigências, suficiente-
campo da pornografia e do obsceno. Aquilo que nestes conceitos mente aberta e rica, a fim de suscitar evoluções futuras. O sistema
de paradoxos, elaborado no classicismo francês, transmite a sensa-
ção de um contexto plausível bem como de algo não arbitrário
41Essais III, V, Éd. de Ia Pléiade, Paris, 1950, p. 952.
42«C'est le consenternenr et non pas Ia satisfaction des sens qui fait l'essence neste campo de orientação, não sendo substituído nesta função.
du rnariage» (François de Grenaille, L'bonneste mariage, Paris, 1640, p. 57). Admite todavia variações, através das quais o reportório temático
43 Bastante típicas as citações de ]acques des Coustures, La morale uniuerselle, do amour passion pode ser adaptado a novas condições e a semântica
Paris, 1687, p. 42 e segs.: «Le mariage est ... três necessaire à I'État, il faut se do amor encontrar uma forma, que se converteu em tradição, sob
sacrifier à son utiliré et tâcher par sa conduire d'en faire son propre bonheur ...
a designação de «romantismo».
(50). ]e ne voudrois pas non plus que cerre union fur causée par une grande
passion, puisqu'il n'y en a point d'eternelles ... (51). Cela n'ernpêche pas qu'on
ne doive sentir er marquer à sa femme une tendresse exrreme ... (52). 11 me
semble que cerre familiarité, qui est entre le mary et Ia femme, altere le charme
de cerre union» (53). Afinal não se trata de passion violente, mas de um tratamen-
to solícito, pessoal-íntimo enquanto correlativo da estabilidade socialmente neces- 44 Observações boas, a este respeito, em Emil Lucka, Die drei Stufen der
sária e institucional, ao nível do convívio quotidiano. Em compensação, isto não Erotik, 12-15, Berlim, 1920, p. 258 e segs. A sociologia interessa-se mais pelas
pode ser assegurado através de sentimentos flutuantes, mas apenas através do críticas do que pela matéria em si. Para muitas críticas, veja-se Vilfredo Pareto,
facto de se contrair casamento dentro do mesmo estrato social. Der Tugendmythos und die unmoralische Literatur, tradução alemã, Neuwied, 1968.
CAPÍTULO XII

A descoberta da incomunicabilidade

Torna-se difícil sintetizar as análises complexas e intricadas,


como aquelas de que houve necessidade para a semântica do amor
do século XVIII. Qualquer generalização ao nível das formas semân-
ticas violaria o material histórico. Isto é especialmente válido quan-
do se atende às seguintes questões: quais as ideias na realidade ino-
vadoras? Será crível atingir a essência de uma determinada época
através de tais questões? E todavia o século XVIII legou-nos uma
descoberta que temos de retrospectivamente dignificar. Trata-se da
descoberta da incomunicabilidade.
O século XVII começou assim, de imediato, por interiorizar as
grandes aventuras heróicas e os seus desenlaces felizes ou trágicos
- especialmente no que diz respeito ao amor. Uma heroína de
Madame de Villedieu encontra-se num palácio ao chegar ao fim
da sua história «nous Ia laisserons former ses regrets en liberté, et
se preparer à recevoir sans repugnance le poison qui luy fut apporté
quelque temps apres». O envenenamento, os homicídios, as cruel-
dades, as destruições do império que se seguem, não são merecedo-
ras de atenções, pois tal significaria «tornber dans un récit tragique
que j'ai toujours soigneusement évité. I. No século seguinte, a moral
adapta a sua técnica de desmascaramento e a literatura a sua técnica
àquilo que é vulgar. Ambas começam a interessar-se pelo que é
normal. A virtude torna-se fórmula defensiva desprezível perante
uma sensibilidade forte. Era algo que podia contar com a compre-
ensão do homem, do leitor vulgar. Já não é possível colocarexigên-
cIas demasiadamente elevadas perante o aurodomínio e o drama
desloca-se então para as questões da comunicação. A complexa reali-
d~de psíquica dos participantes não é completamente transmissível.
Trata-se de «ces choses dont on ne peut dire que Ia moitié de ce

I Annales Galantes, op. cito (1670), VaI. IV, p. 180 e segs.


u
162 A DESCOBERTA DA INCOMUNICABlLlDADE CAPiTULO XII 163

qu'elles sont», tal como o formula Marianne Marivaux 2. Inventa- Tal descoberta comporta, face à codificação das relações íntimas,
-se, ao que parece, a incornunicabilidade, tendo em vista a desbana. um significado invulgar. A codificação diz respeito ª,-um meio de
lizaçã~ediocridade. A ela se deve também o facto de o homem comunicação, procurando afinal intensificar a efectividade de uma
vulgar estar ainda à altura de uma história interessante aos oluos comunicação em si mesmo inverosímil. Assim se origina exacta-
dos outros. mente a vivência de uma fronteira.
Incomunicabilidade: com isto já não se subentende apenas que A diferenciação plena das relações íntimas só é certamente possível
a p;;;ion tenha abalado a retórica, confundido a eloquência - atrai- através da comunicação. Aquela pressupõe uma codificação especial
çoando-se a si própria. Já não se trata apenas de desajustamentos e um à-vontade com formas semânticas de grande rigor, conduzin-
condicionados psiquica e situacionalmente, eles próprios com~ni- do à constituição de sistemas sociais (como sempre temporários,
cação adaptada à paixão. Surgem, pelo contrário, limites 1Unda- que reproduzem a interacção entre duas pessoas)._A respectiva in-
mentais à comunicabilidade. Problemático torna-se não o fracasso tensificação intensifica-se com a função do sistema social, bem como
da habilidade, mas a impossibilidade da honestidade. :'~ /f,~r:" do processo que torna conscientes os limites decisivos da capaci-
Isto começa por ser válido em termos muito gerais, A experiên- dade de comunicação. A vivência da incomunicabilidade constitui
cia da incomunicabilidade acontece onde quer que a moral seja um aspecto da diferenciação plena dos sistemas respeitantes à inti-
reduzida a conceitos, que em comunicação têm um efeito oposto ao midade; (tal vivência) não contradiz a intimidade, corresponde-
do propósito. Trata-se de conceitos que têm de exigir autentici- -lhe; é através da diferenciação plena de tais sistemas que ela surge
dade, tal como a naturalidade, a sinceridade, a sensibilidade, a ori- necessariamente.
ginalidade; ora, a moral do século XVIII joga exactamente com tais Não se entende suficientemente a incomunicabilidade, se se
conceitos 3. Esta experiência impede também que se expresse a pensar unicamente nos limites da capacidade de expressão verbal.
individualidade, compreendida como singularidade (caso as regras Não se trata apenas do facto da comunicação precisar de tempo e
de cortesia não proibissem de antemão que cada qual evidenciasse de os acontecimentos sucederem com maior rapidez que a comuni-
as suas idiossincrasias em comparação com os outros). Quem sub- cação, de modo que escrever a sua própria biografia seria já estar
\
linhar a sua ~ está por isso mesmo a comparar-se; eis inevitavelmente em atraso, caso se quisesse relatar tudo o que acon-
porque não podemos sequer saber disso, pois tal anularia desde logo tece. Já não se trata naturalmente da velha doutrina, segundo a
o facto 4. ,~t< qual certos conteúdos se devem manter secretos, devido à sua natu-
reza, não podendo ser revelados 5. Até mesmo o ponto de vista
2 Citado de Servais Etienne, Le genre romanesque en France depuis I'apparition
segundo o qual existem informações sobre os estados de espírito,
de «La nouuelle Heloise» Jusqu'aux approchesde Ia Reooluuon, Bruxelas, 1922, p. 52. conjecturas e em especial pontos de vista que este mantém acerca
3 No capítulo IV, nota 6, antecipámos logo um exemplo: delicate. do outro, cujo conhecimento este último não poderia suportar, não
4 Uma citação algo detalhada deve mostrar que esta questão, em primeiro aborda na essência a nossa questão. Trata-se de aprofundar muito
lugar lógica, é perfeitamente vista, mas não passível de paradoxização, sendo
antes cuidadosamente resolvida com base na latência. «La singularité n'est pas
précisement un caractêre; c'est une simple maniêre d'être qui s'unir à tour autre
caractêre er qui consiste à être soi, sans s'apercevoir qu'on soit different des
-
mais e saber se, precisamente nas relações íntimas, existe algum

l Ainda no século XVII se encontra


.

esta doutrina relativa ao segredo em


aurres; car si l'on vient à le reconnaítre, Ia singularité s'evanouir; c'esr une certa medida cósmico do amor. Revelá-Io contradiz a sua natureza, pois daí
enigme qui cesse d'être aussitôt, que le mot en est connu» (Charles Duelos, adviria a sua destruição. Mas tal não é naturalmente válido para a comunicação
Considerations sur les moeurs de ce siêcle, 1751, citado da edição de Lausana, 1970, entre os próprios amantes. Cf. por exemplo La iustification de l'amour, Recueil de
p. 291 e segs.). O autor faz assinalavelmente uma excepção para o caso, segundo Sercy, Vol. m, Paris, 1660, pp. 289-334 (321 e segs.). A verificar-se o facto de
o qual a incomparabilidade se baseia nos méritos. A moral ainda controla afinal este Essay, tal como por vezes se supõe, ter origem em La Rochefoucauld, ter-
a questão: remete-a para o âmbito da especificidade imerecida e por isso afec- -se-á de compreender aqui a afirmação de um modo irónico, enquanro referência
tada. a um panorama socialmente necessário.
164 A DESCOBERTA DA INCOMUNICABILIDADE '-' CAPITULO XII 165

sentido que seja tmtd'o pelo facto de se tornar objecto de G dúvidas inerentes a uma relação duradoura; acerca do modo como
presume precisamente a existência de tais dúvidas nos outros ou
~ ,
Toda a comunicação baseia-se numa distinção j;" .J
rcunstanciada como as imputa ao outro para alívio próprio; acerca do modo como
'Y com precisão, na distinção entre informação e com icação. Sem a tira proveito do facto do outro saber, mas sem poder afirmar que
existência de uma protecção, concedida por tal distinção, o receptor já não é amado; e àcerca do modo como se desembaraça de situações
da comunicação seria directamente confrontado com o quadro de em que ambos sabem que não comunicar é mais vantajoso para um
". ~
circunstâncias do mundo, tal como acontece com as percepções que para outro. r"- ("'\ ,.
usuais. Só se chega à comunicação e à aceitação ou rejeição das É precisamente a valoração m~ta de todas as afirmações que
,( ~ selecções por ela comunicadas, quando o receptor consegue distin- é previsível nas relações íntimas, bloqueando a comunicação. Já se
guir a selectividade da informação, da selecção da comunicação. Sãõe de -antemão como tudo irá passar-se, hesitando-se então pôr
Isto significa também que este tem de reagir a ambas e que pode em andamento o que quer que seja que, uma vez no seio da
casualmen!! reagir a ambas diferentemente: pode captar a comunicação comunicação, se torne ainda mais difícil de controlar. Toda a comu-
como autêntica e sincera, e todavia tomar a informação por falsa; nicação comporta uma referência pessoal, sob a condicionante da
pode ficar grato por uma notícia desagradável; tomar o facto por intimidade, trazendo no seu seio a esperança que tal venha também
insignificante e a comunicação por desagradável (<<atua gravata a ser encarado, considerado, corresponsabilizado. Tentar fugir a isto
está torra»). Quando acontece que esta distinção entre comunicação acabaria por seguir, como tudo o mais, esta lei rígida da atribuição.
e informação é elemento constituinte da unidade de comunicação Não há dúvida: em tais situações haverá um que se desembaraçará
e que o ganho total em informação depende da capacidade dê dor que o ourro; e pode tornar-se difícil apanhá-lo. No entanto,
estabelecer diferenças deste modo, então esta distinção deverá ser ficar-se-é a saber também, sem que se possa transmitir tal saber,
referente obrigatório da questão inerente aos limites da comunica- que um tal comportamento não se adequa a uma relação que de
ção. acordo com o código da intimidade se define como amor.
Pode existir, poderno-lo agora formular assim, uma vivência de O século XVIII vive o fim da retórica, isto é, o fim da confiança
sentido que não é possível comunicar, porque a afirmação da dis- técnica na comunicação. O fracasso no plano gestual pode destruir
tinção entre comunicação e informação se destrói em relação a este o falso amor, não o verdadeiro 6. Em primeiro lugar, toma-se tam-
mesmo sentido. Expresso metaforicamente: a comunicação não pode bém aquilo que se passa entre as pessoas como uma relação comu-
permanecer fria, quando a informação é demasiado escaldante. Que nicativa. As relações sociais são de imediato entendidas como com-
isto seja precisamente típico da diferenciação plena das relações pletamente reflexivas, sendo precisamente isto o que condu; a
íntimas altamente individualizadas e que tenha proporcionado às Cõillunicação aos limites das suas possibilidades. Jamais existiu tão
relações íntimas descobrirem tais traços, não deve surpreender aquele rico repertório de tentativas visando tais situações. O manuseamen-
que recorda o tratamento da intimidade, sob um ponto de vista da to conscientemente lúdico das formas apresentou-se como uma das
teoria da atribuição (capítulo Hl). Todo o tipo de comportamento, . possibilidades. Outras residiam no paradoxo, na ironia, no cinismo.
inclusive o comportamento que contempla a comunicação, é aqui Ou seja, detecta-se o erro de comunicação, assumindo-o como forma
utilizado a fim de reconhecer, testar e reproduzir as disposições do Ir - ~ comunicação. Evitarno-lo, cometendo-o conscientemeõte. Pelo
Companheiro face à relação íntima ...À própria c~ção trans- menos furtamo-nos assim à crítica, segundo a qual não sabêmos:-o
~ forma-se em informação do processo d~ atribuição, com base na 'que fazemos ou não estamos à altura de dominar os meios. Tal é a
informação que fornece. Ela permite estabelecer conclusões acerca
do modo como o outro se entende enquanto amante-presente ou 6 Leia-se a propósito Le scrupule ou l'amour mécontent de lui-même, extraído de
amante-passado, enquanto confiando, contando com, exigindo o Contes Moraux, de Marrnontel, citado de Oeuvres Completes, Vol. Il, Paris, 1819,
amor; acerca do modo como não se deixa impressionar com as reimpressão, Genebra, 1968, pp. 28-43.

'"
166 A DESCOBERTA DA INCOMUNICABILIDADE CAPiTULO XII 167

forma adequada ao programa da AufklCirung. Adequa-se também a transforme em conhecimento, sem que tenha de debruçgr-se sobre
este contexto centrar tçda a comunicação íntima no acesso às rela- a comunicação, correndo assim o risco de ser destruída.
ções sexuais. Pelo menos este tema contém uma relação indubitável Na crítica burguesa à «decadência dos costumes» do mundo da
e sólida com a realidade. Finalmente, também o jogo coquette com corte, este problema desaparece também com as formas de vida que
a solidão, uma variante mais alemã, pertence ao âmbito deste quadro procuram responder à incomunicabilidade. Recorda-se a frivolidade,
de reacções à incomunicabilidade. Aceita-se o que se tem de expe- a frequência de adultério no seio da aristocracia e a «Iibertinage de
rimentar - mas não como parte integrante da relação social, antes tête» 8 na personagem de Versac 9. Mas não é possível sustentar o
c~-sua alternativa. facto de tais selecções de forma não acontecerem de ânimo leve, a
• Escolhemos a forma literária do romance epistolar com o objec- não serem praticadas como um fim em si mesmo, sendo a represen-
tivo de demonstrarmos ainda com mais clareza este ponto de vista tação tudo menos uma auto-satisfação com a realidade (tal não é
quanto a uma questão pormenorizada. Esta forma de romance tão possível sustentar-se e transmitir-se pela tradição). O romantismo,
preferida no século XVIII serve especialmente para apresentar a si- em especial talvez F. Schlegel, ainda tem consciência disto - e não
tuação da comunicação no seio das relações de interpenetração, sem foi este o facto menos importante que explica a razão pela qual
se tornar por seu lado (mas todavia, quase) completamente em tema Lucinda se tornou um escândalo. No essencial, dá-se o aparecimen-
de comunicação. A carta pode descrever as razões (ou também, to de um humanismo tão elaborado quanto inadequado à realidade,
ocultá-Ias na descrição) por que foi escrita. Pode precisamente com tão exigente quanto banal e isto porque agora se trata sobretudo de
isso promover uma aventura amorosa, que procura combater. A es- tornar o amor solidário com o casamento. Até hoje, ainda não se
critora de cartas, em Crébillon, recusa o amor, mas o simples facto conseguiu reconquistar aquele sentido da tristeza própria da solidão
de escrever a carta, aproxima-a um pouco mais dele e com a con- na intimidade. ~ão é possível colher qualquer ajuda quer junto do
tinuação da correspondência modificam-se igualmente os motivos meio de comunicação quer de uma semântica elaborada, uma vez
disponíveis, à medida que as relações progridem. O autor do romance que generalizações simbólicas deste tipo estão especializadas na con-
pode ainda, para além do mais, construí-Io de modo que ele se êreuzação da comunicação inverosímil. Não existia por isso nada
torne mais evidente para o leitor que para o que escreve (e, no que pudesse ter constituído o fundamento da tradição, tendo em
romance, para o leitor da missiva), mais evidente para o que obser- ;ista a experiência da comunicação. Ela não se deixou canonizar
va que para o que age 7. Neste caso, a evidência para o que lê inclui enquanto Maxime d'amour.
(em ambos os níveis) a ausência de evidência para o que escreve. É sobre este pano de fundo que adquire vida o.novo modelo
Este pode permanecer ingénuo [ou aproveitar a oportunidade para «Parnela». A máxima diz: permanecer imaculado até ao casamento.
se fingir ingénuo ou orientar a consciência do leitor (no romance) Esta m1iima exprime a unidade entre amor, casamento e relaçã~
a partir da ingenuidade simulada}. O romance consegue assim ~; ela não parte de código, pelo menos enquanto seu elemento
colocar ao mesmo nível a continuação da própria história (por exemplo, constiruinte. O amor é por conseguinte aquele entusiasmo singular,
as esperanças e receios reproduzidos na própria história) e a superi- que se vive quando se repara que se está decidido a casar. Corres-
oridade da consciência do leitor do romance, sem que o saber do ponde-Ihe a imagem de mulher que vive até ao casamento sem
observador, que desempenha o papel de factor de impulso e de qualquer consciência sexual. Em seu lugar está o vínculo à virtude.
percepção, tenha de ser expresso por via oral ou escrita .• A forma Todavia, a consciência da virrude identifica-se naturalmente
manifesta a sua unidade nas incomunicabilidades produzidas no com a consciência sexual e recusar qualquer relação de ênfase sexual
processo de comunicação, conseguindo que o incomunicável se

8 Cf. capítulo X, nota 2l.


7 No que respeita às distinções atributivas aqui em jogo, cf. p. 29 e segs. 9 Esta formulação em Versini, op. cit., (1968), p. 43.
168 A DESCOBERTA DA INCOMUNICABILlDADE CAP[TULO XII 169

pré-matrimonial pode também ser tomado como suave pressão ou municabilidade. Todavia, ter-se-á de encontrar formas também para
estratégia para consumar o matrimónio. Este modelo abole a velha isso, uma vez que com a intensificação, apresentada como conse- \

distinção entre prudes e coquettes, a qual pressupõe, nas mulheres quência de diferenciação plena e codificação das relações íntimas, a
casadas, uma consciência demasiadamente orientada para a sexua- interpenetração inter-humana transcende também as hipóteses de
lidade. Suprime também a velha distinção entre amor honesto e falso. comunicação. A linguagem do amor, as suas palavras, a comunica-
Em seu lugar, surge uma distinção nova entre tendências, impulsos, objec- ção pelo olhar e pelo corpo forja a sua própria transparência, origina
tivos conscientes e inconscientes. A mulher torna-se oficialmente des- compromissos que a transcendem. Não é possível ambicionar, reve-
sexualizada, com vista à protecção desta distinção. É-lhe atribuída lar, exigir, acordar, terminar interpenetrações. Interpenetração inter-
consciência da virtude; não tem consciência e tem todavia de ser assim: -humana significa exactamente, que o outro, enquanto horizonte
pretende casar deste modo, querendo até fazê-Io com um membro das suas próprias vivências e acções, proporciona ao amante ser-ele-
de estrato social superior ao seu 10. Iodo o comportamento man- -próprio, o qual sem amor não existiria. Esta capacidade de ser
tém-se por conseguinte ambivalente, uma vez que para ela também horizonte, inerente à interpenetração, acompanha toda a comunica-
esta distinção entre consciente/inconsciente escapa à consciência. ção e escapa-se-lhe também. Aceitar esta vivência pode ser tanto
Em compensação, isto significa incomunicabilidade. Não é possível agradável como desagradável - tudo depende do amor.
nenhum entendimento intencional sobre DS «verdadeiros motivos» "; Não constitui coincidência o facto de o romantismo suceder à
a inanição seria a atitude do corpo que melhor corresponderia a esta experiência da incornunicabilidade. Quaisquer que sejam os princípios
situação. O homem tem também necessidade de se deixar contami- deste novo estilo, constitui uma das suas particularidades o facto de
nar pela virtude e por isso mesmo casar-se finalmente. Ele não permi- o autor ( ou artista) apresentar uma encenação acerca da qual tem
tiria ser seduzido ou mesmo pressionado para casar. Apenas o leitor consciência que o leitor (observador) não vai acreditar. O «estilo»
do romance consegue ler a história à luz da distinção entre cons- realista deixará de vigorar por algum tempo, para mais tarde, no
ciente/inconsciente; para ele torna-se plausível (afinal, comunicável) segundo terço do século XIX, ser reintroduzido com mais veemên-
que exista qualquer coisa de incomunicável em tais relações. Com cia (enquanto estilo!). O próprio romantismo baseia-se no facto de
efeito, isto significa que atalhar caminho através da literatura, através o autor e leitor ousar pedir ao outro (e terem disso consciência) que
do romance, se mostra necessário; necessário para compreender o a encenação, embora deva representar o mundo, não deve ser levada
código íntimo. a sério. É exactamente isto que se transforma na base de compre-
Ainda voltaremos às evoluções ulteriores do meio de comuni- ensão e no encanto patentes na obra de arte, sendo compreendido
cação amor e à omissão da incomunicabilidade, e sobretudo à mera como uma referência a algo que não é acessível à comunicação di-
recepção da honestidade e self-disclosure no seu grau zero. Não se recta, O incomunicável viabiliza-se através da distância; e aqui já
alude a qualquer tendência para uniformizar o problema da inco- não se trata apenas da ambiguidade dos sentimentos, de motivos
híbridos, da parcialização e desvirtuação do sentido através da co-
municação pelo diálogo, mas antes da generalização da questão,
10 Embora esta questão tenha sido detalhadamente discutida logo após o
elevando-a à qualidade de sentimento universal que transcende todas
aparecimento de Pamela. Enquanto texto mais conhecido que se lhe opôs: Shamela
de Fielding (Henry Fielding, An Apoiogy for the iife of Mn Shameia Andreios, as possibilidades de expressão. Está concluída a exploração do mundo,
Londres, 1741, citado da reimpressão, Folcroft Pa., 1%9). agora ele constitui um enigma em si mesmo. Todas as ideias rece-
11 Tal está também assente no código social e universal da sociabilidade _ bem assim faces invisíveis. O próximo passo coincidirá com a sua
não sem conhecimento do lado oposto. «Were we to dive too deeply into the reformulação em ideologias e posteriormente em trivialidades.
sources and motives of the most laudable actions, we may, by tarnishing their
lustre, deprive ourselves of a pleasure», aconselha a condessa Dowager of Car-
lisle, Thoughts in the form of maxims addmsed to young iadies on tbeir first establisb-
ment in tbe uorld, Londres, 1789, p. 81.
CAPÍTULO XIII

Amor romântico

Apesar da experiência da incornunicabilidade coincidir com aquele


momento que nos permite sintetizar aquilo que o século XVIII
ganha em compreensão, tal experiência não é todavia celebrada
enquanto conquista, não sendo passível de registo no código do
amor paixão. No século XVIII, verifica-se uma estagnação no desen-
volvimento - ou então não se regista qualquer transformação
incipiente importante - do meio de comunicação próprio das
relações íntimas, apesar dos progressos da apreensão conjunta da
sexualidade, apesar do favorecimento do sentimento, apesar de todo
o entusiasmo da intimidade; com isto, deixam de ser tomadas em
consideração as tendências para exigir não só o amor no sentido
tradicional - como solidariedade conjugal - mas também o amor
passional como princípio de selecçâo conjugal, reivindicando-se afi-
nal o casamento por amor. Tal será predominantemente refutado
ainda no século XVIII 1. O fundamento de tal recusa encontra justifica-
ção redobrada no simples facto de não ser possível ao sujeito amar-se a
si próprio (e assim se abre sem dúvida uma brecha importante).
É difícil reportar esta questão a uma distinção essencial entre aris-
tocracia e burguesia 2; tal está antes relacionado com o facto de a

1 Cf por exemplo Abbé de Mably, Principes de morale, Paris, 1784 e segs.,


em forma de análise dos perigos do casamento por amor. A questão não é na-
turalmente recente. Robert Burton reflecre com seriedade na sua Anatomy of
melancholy (1621, eirado da tradução alemã da 3." parte, Zurique, 1952), sempre
que não existe outra terapia disponível para os amantes concretizarem a sua von-
tade. Reporta-se por isso a testemunhos antigos, acrescentando melancólico, segui-
damente: «Não há dúvida ... não é possível! Por muitas e variadas razões» (p. 299).
2 Existem por certo diferenças, mas devem-se mais ao casal que ao casamen-

to. A burguesia valoriza muito mais uma relação conjugal, íntima, doméstica,
procurando demolir assim a rigidez tradicional no seio da estrutura familiar,
enquanto a aristocracia não foi capaz de encontrar qualquer viabilidade no princí-
pio da intimidade, sendo por isso obrigada a rejeitá-lo.
172 AMOR ROMÂNTICO CAPiTULO XIII 173

família ser entendida ainda como a unidade imutável perante o homem. O princípio da igualdade conjugal e o casamento funda-
curso das gerações, sem que por isso a consumação do matrimónio mentado no amor, razão, respeito mútuo é posto em relevo aquande
tenha de ser dada como constituição de uma nova família, devendo de um primeiro movimento reformista, através de análises cem por
antes ser controlada como reprodução da família 3. Por essa mesma cento racionais e sensíveis dos aspectos psicológicos 7.
razão, pelo século XVIII dentro, a burguesia só podia contrapor à «Lave and peace», eis a fórmula de Milton para esta questão 8.
moralidade dos estratos sociais elevados o facto de, no seio do casa- Uma família saudável, neste sentido, é válido como pressuposto de
mento e da família, o homem se sobrepor à mulher para esta se qualquer reforma do Estado. Seria com base nisto e não na mera
lhe submeter 4. As ideias acerca do amor conjugal têm um funda- reprodução física da humanidade, que se teria de partir; esta
mento essencialmente racional. Baseiam-se na aceitação do espaço distinção polérnica torna sobretudo desnecessário comentar mais
no qual se tem de desenrolar a vida. Uma boa prova disso reside no pormenorizadamente a fórmula: «lave and peace». Esta está ple-
facto de medo e amor não serem vistos como inconciliáveis, já para namente associada, segundo Miltoo, à ideia de igualdade, roas
não dizer: contraditórios - tal como acontece na relação com Deus, nem esta nem o programa favorecendo o divórcio são exequíveis na
o mesmo acontece na relação com o soberano, com o dono da casa 5. época.
Não se trata de tirar partido das próprias paixões, mas da soli- A evolução especificamente inglesa tem de ser vista também de
dariedade livremente desenvolvida, dentro de uma certa ordem. acordo com o avanço da economia monetária, tendo especialmente
A isto mesmo corresponde a ideia de um senhor que ama a sua em conta a inclusão da propriedade fundiária e do trabalho na
propriedade: casa e bens, mulher e filhos 6. integração monetária do sistema económico. A velha ideia, na rea-
É na Inglaterra que em primeiro lugar se abrem as primeiras lidade bastante natural, segundo a qual se ama aquilo que se possui,
breêhas n~; estrutura europeia da autoridade doméstica~m perde assim a sua plausibilidade. Não é necessário recusar a eroO-
Inglaterra -- a isto se associa o facto de aqui o tema não ser tanto cionaLidadeao velho amor à propriedade, onde se inclui o amor pela
a posição social da mulher como o papel por ela desempenhado em casa e pelos bens, à mulher e aos filhos; o ponto fulcral consiste na
casa, no contexto de uma supremacia religiosa e hierárquica do facto de se tornar cada vez mais difícil ~mbinar ';ínculos pessoais
com ideias de propriedade, dentro de uma distinção crescentemenfe
Funcional entre ambas as esferas, acabando o valor semântico de tal
J A este respeito, o material documental compilado por ]ean Flandrin,
comunicação por ter de perder o valor - trata-se de resto de alga
Les amours paysannes (XVt-XIX' siêcles), Paris, 1975.
4 Cf. Levin L. Schücking, Die Familie im Puritanismus: Studien über Familie que é característico tanto da aristrocacia como da burguesia e de
und Literatur in England im 16., 17., und 18. Jahrhundert, Leipzig-Berlim, 1929; modo nenhum especificamente burguês e também de modo algurtl
William and Malleville Haller, The puritan art of loue, «The Huntington Library circunscrito à gentry 9. Segundo o que sabemos hoje, também a "in-
Quarrerly», 5 (942), pp. 235-272; Edmund S. Morgan, The Puritan Family: dustrialização» não tem nada a ver com isto. As ligações íntimas e
religion and domestic relations in seventeenth century New England, Nova lorque,
domésticas e a ambição económica para manter o estatuto sociale
1966; e agora sintetizando, Lawrence Stone, op. cirt. (1977). Para a evolução em
França desde 1770, com base na influência inglesa, cf. ]ean-Louis Flandrin,
rendimento devem ser entendidos como commitments de tipos dife-
Familles: parenté, maison, sexua/ité dans l'ancienne société, Paris, 1976, p. 165 e segs.
j Cf. Morgan, op. cit., p. 47 e segs.; Howard Gadlin, Private lioes and public
i
order: a critical view 01 tbe history 01 intimate relations in tbe United States, in George 7 Cf. Rae Blanchard, Richard Steele and the status 01 women, «Srudies in Ph -
Levinger/Harold L. Raush (eds.), Close Relationships: perspectioes on tbe meaning lology- 26 (1929), pp. 325-355; Stone, op. cit., (977), p. 325 e segs. .
01 intimacy, Arnherst Mass., 1977, pp. 33-72 (40). 8 Assim, por exemplo, no célebre texto da reforma, The doarine ande dis(/"
oll
6Com vista à modificação desta ideia e na transição para o século XVIIl, pline 01 dioorce, citado da cópia da 2: ed. in The prose works 01 John Milt
sitll
cf. Randolph Trumbach, The rise 01 the egalitarian lamily: aristocratic einsbip and (ed. J.A.St. ]ohn), vol. Ill, Londres, s. d., por exemplo, p. 177, 194 e pas ·
domestic relations in eighteenth-century England, Nova lorque, 1978, em especial, Veja-se também ]ohnson, op. cito (1970), em especial p. 121 segs.
p. 150 e segs. "Tal é exactamente visível no caso da alta aristocracia, Trumbach, op. cit.
174 AMOR ROMÂNTICO CAPiTULO XIII 175

rentes, devendo subordinar-se a códigos semânticos diferentes; ~.'


ora Um outro obstáculo diz respeito à concepção da própria persp-
•.....
tal foi decidido imediatamente antes da entrada em vigor da indus- nalidade individual. Embora a literatura sobre os temas do amor e
trialização. da amizade sublinhe, logo no início do século XVIII, que se trata
A exigência imposta, sobretudo em Inglaterra 10, relativa a uma de indivíduos que procuram a sua felicidade em tais relações, não
vida familiar pessoal e íntima associa-se a um sentimentalismo moral se pretende subentender muito mais que a negação da condição de
e novo. Em ambos os aspectos, a distinção que gera os temas coin- classe como ponto de vista relevante. ~-se indivíduo enquanto,
cide com a recusa da submissão estrutural da mulher e do decalque durante as relações de intimidade social, não se tratar de apurar se
da hierarquia política no seio da família. A diferença estrutural entre se é aristrocata ou burguês. Verifica-se o retrocesso da galanteria
família e soberania política ~duz, portanto, por seu lado, a iliSiin- praticada apenas nos estratos sociais elevados, bem como o retroces-
ção semântica qúe impulsiona a evolução do código das relações íntimas. so da terminologia através da qual se distinguiram atributos espe-
Todavia, tal constitui o pano de fundo institucional unicamente em cíficos de estrato social, enquanto pressuposto da amizade e do
função do qual se deve compreender a intensidade e o sucesso amor. A serenidade substitui a honnêteté. Mas as caracterizações man-
literário da nova semântica do sentimento. Devido a isto, o in- têm-se de um modo geral na mesma. Também a facilidade com a
divíduo ainda não consegue ser completamente bem sucedido. qual se procuram amizades por correspondência, bem como o ritmo
Podemos conceder-lhe a fruição do seu amar, a expressão dos sen- a que as amizades íntimas se desenvolvem, atestam que as carac-
timentos, a procura e a obtenção da sua felicidade - e tudo isto terísticas pessoais não desempenham qualquer papel importante.
na pessoa do outro; mas fundar, com base neste princípio, institui- A amizade não se constrói através de particularidades que se asso-
ções como o casamento, a família e a educação, tal constitui uma ciam apenas a este amigo e o distinguem de todos os outros.
outra dimensão ". O vazio semântico que esta concepção de indivíduo, que abs-
trai apenas das ligações o estrato social, mantém disponível, só
IOE às colónias inglesas ter-se-á de acrescentar, tendo em vista o que mais
se tornará mais rico e repleto em termos de conteúdo no decurso
tarde seriam os EUA. Cf. para o período 1741-1794, Herman R. Lantz et. aI., do'século. Só gradualmente aumenta a percepção das influências
Pre-industrial patterns in the colonial family in America: a content analysis of colonial marcantes no ambiente, milieu, educação, viagens, amizades, sendo
magazines, «American Sociological Review» 33 (1968), pp. 413-426. Em relação apenas nos finais do século e na verdade apenas na filosofia alemã,
à industrialização os autores verificam: «it may well be that industrialization encontradas aquelas formas radicais que corroboram a mundani-
facilitated the development of a romantic love complex already in existence».
dade do eu, a subjectividade dos projectos de mundo 12._0 carácter
11Vale e pena citar a este respeito o início de Vicar of Wakefield (1766):
«I was ever of opinion that the honest man who married, and brought up a concreto e único do indivíduo é declarado como princípio universalista
large family, did more service than he who continued single, and only talked
of population.From this motive, 1 had scarce taken orders a year, before 1 began
to think seriously of matrimony, and chose my wife, as she did her wedding- 12Cf. por exemplo Wilhelm von Humboldt, Tbeorie der Bildung, in Werke,
-gown, not far a fine glossy surface, but such qualities as would wear well... voI. 1, Darmstadt, Z." edição, 1960, pp. 234-240. Uma variante menos convin-
However, we loved each other tenderly, and our foundness increased as we grow cente desta antropologia idealizadora da individualidade afirma apenas que a
old.» (Oliver Goldsmith, The Vicar of Wakefield, citado da edição de Bielefeld- humanidade só encontrará o seu desenvolvimento pleno através da individuali-
-Leipzig, 1919, p. 2). Documentação mais antiga em Morgan, op. cito (1966), zação de todos os homens e que os conduzirá à sua singularidade específica
p. 29 e segs. Cf. também Trumbach, op. cit., passim, relativamente ao aumento _ por exemplo, Friedrich D. E. Schleiermacher, Monologen ]800 II (Prafungen),
de casamentos por amor no seio da alta aristocracia inglesa por volta de meados in Werke, voI. IV, Leipzig, 1911, p. 420; veja-se então também o monólogo
do século XVIlI. «Weltansicht». Cf. a este respeito e especialmente em confronto com a concep-
Relativamente à suposição segundo a qual, por volta de finais do século ção alemã e europeia ocidental acerca da individualidade, Louis Dumont, Reli-
XVIII, se liberalizou também a contracção do casamento, cf. também Daniel gion, politics and society in the individualistic uniuerse, «Proceedings of the Royal
S. Smith, Parenta] pouer and marriage pattems: an analysis of bistorical trends in Antropological Institute», 1970, pp. 31-41; Lilian R. Furst, Romanticism in pers-
HinghamMassachussets, «]ournal ofMarriage and Farnily» 35 (1973), pp. 419-428. pectiue, Londres, 1969, p. 53 e segs.
176 Í' ..,f:F' AMOR ROMÂNTICO CAPÍTULO XIII 177

-: teoria económica; mas o conceito corresponde exactamente àquilo~


apenas nesta antropologia filosófica e na literatura romântica por
ela influenciada. Duas almas, dois mundos. Madame de Stãel tam- que é de esperar enquanto amor, enquanto correspondência incon- ~)
bém encontra formulações semelhantes; o amor surge-lhe também dicional com a singularidade do mundo (e não só das particularidades)
como intensificação de tljJi.rz o que lhe é relevante através da refe- do outro. O âmbito temático que é possível associar-se ao amor é
rência a uma outra pessoà ~O romantismo alemão contemporâneo assim alargado e igualmente sintetizado num princípio central.
passa todavia do relacionamento do mundo com um outro para a O amor deixou de estar vinculado apenas a um enaltecimento das
revalorização do mundo através de um outro 14. À sofisticação psi- qualidades fisícas e morais. Anything goes - embora a literatura
cológica, que diz apenas respeito às próprias pessoas e respectivo burguesa prefira uma semântica do pão escuro 16, casa, jardim, etc.
tratamento, sucede agora uma espécie de exploração subjectiva de ~ransformação não se verifica apenas nas situações, quadros, opor-
mundo. O mundo dos objectos; a natureza transforma-se em campo tunidades que permitem a observação e a descrição do amor; mas
de ressonância do amor. Caso comparemos romances do início do antes, na respectiva ampliação e redução. As complicações a que se
século XVIII com os do início do seguinte, verificaremos uma reces- c-hegou,quando se começou a entender o amor na sua reflexividade
são no diálogo entre amantes. Este é completado ou quase substi- social, têm agora de ser novamente suplantadas. Só assim se chega
tuído pelo encanto dos objectos, pelos quais os amantes experimen- ao romantismo, cuja semântica do amor se refere a uma relação
tam o seu amor, em relação com o outro 15• .Quando o amor ~i~ entre sujeito individual e ~e. ~.
deste modo do seu próprio universo de experiências, ao qual se O que surge de novo aqui reconhece-se melhor através da com-
paração com o princípio de individuação patente na filosofia de
entregam os amantes - e é nisto que consiste o amor -, já quase
deixou de ser possível de associar-lhe uma teoria de Estado ou uma Leibniz 17. Já Leibniz define previamente a individualidade através
da correspondência universal. A correspondência refere-se todavia à
representatividade no seio da dimensão objectiva (metáfora: espelho).
13Cf. Anne Louise Germaine de Staêl, De l'influence des passions sur le bonheur A dimensão temporal e sobretudo a dimensão social só se lhe acrescen-
des individus et des nations, 1796, citação de Oeuvres Completes, VoI. IH, Paris, 1820, tam com o decorrer do século XVIII - poder-se-á dizer: com
p. 115 e segs.: «L'univers entier est lui sous des formes différentes; le printemps,
base nas experiências com o novo princípio da individualidade?
Ia nature, le ciel, se sont des lieux qu'il a parcourus; les plaisirs du monde, c'esr
ce qu'i l a dit; ce qui lui a plu, les amusements qu'il a partagés; ces propres É difícil determinar a influência de Leibniz sobre esta evolução;
succcês à soi-rnêrne, c'est Ia louange qu'il a entendu ... » (115). A citação docu- todavia, preenche-se gradualmente aquilo que, enquanto mundo,
menta que o mundo é avaliado em relação a um outro, mas não, (ou todavia ainda constitui a individualidade e enquanto individualidade o mundo,
não claramente) enquanto projecto de mundo subjectivo que deforma ou pelo menos com relações históricas e prático-sociais, sendo apenas esta tríade de
tinge a normalidade. Amor ainda não significa aqui: que se saia em conjunto do
dimensões correlativas o que destaca a individualidade pessoal
mundo normal e se entre num mundo privado.
14Em Lucinde, de Schlegel, encontramos este progresso formulado com cla- na sua singularidade e-ft~ no mundo. Por isso, o amor entra
reza: «Eles (os franceses) vêem o universo de um no outro, pois perderam o também logo em funçõe~ao ~adoda educação e da sociabilidade: a
sentido de tudo o resto. Nós, não. Tudo o que amámos outrora, amamos agora evolução temporal das singularidades objectivas de um ponto de
mais apaixonadamente. O sentido do universo escapou-se-nos deveras.» (Frie- vista universal exige a inflJência interpessoal, assimilando esta mesma
drich Schlegel, Lucinde, Berlim, 1797, citado da edição de Estugarda, 1975,
influência. , ;.,
p. 89). Se o amor está deste modo inserido na reconstrução do mundo, podemos- <:» r .,
-lhe atribuir duração; todavia ele não fracassa ao contradizer factos ou interesses
dos quais extraiu abstracções imponderadas.
16Faz-se novamente referência aDie Leiden des jungen Werther, carta de
15Assim a comunicação é ainda pouco necessária à «cristalização" do amor
em Stendhal, e sempre que aparece ela consegue destruir a imagem, pois permi- 16 de Junho.
17Cf. a este respeito, tendo em conta o campo paralelo da teoria da cultura,
te o «não». Veja-se o pequeno romance eivado de teoria «Ernestine ou Ia nais-
Clemenz Menze, Leibniz und die neuhumanistische Theorie der Bildung des Menschen,
sance de l'amour», citado da transcrição impressa in De l'amour, op. cit., (1959),
pp. 352-378. Opladen, 1980.
178 AMOR ROMÂNTICO CAPÍTULO XIII 179

Inédito é todavia um momento que não é facilmente reco- soal, tanto mais inverosímil será também acertar no companheiro
nhecível na semântica do amor e da individualidade, precisamente com as qualidades esperadas. O queorienta e motiva a escolha do com-
a função para a qual se leva em consideração a singularidade indi- panheiro já não pode fundamentar-se em tais qualidades; transferir-
vidual. A função actua no contexto do amor como retardador da -se-ã para os símbolos do meio de comunicação, para a reciproci-
entropia, como orientação opondo-se à decadência. Recorremos nova- dade do amor e para a história da evolução de um. sistema social de
mente às reflexões teórico-arributivas, apresentadas no capítulo Hl, vínculo íntimo.
com o objectivo de destacar isto mesmo. Na entrega às relações É na Alemanha e não em França, e na realidade durante os
~ti.l1}as (e isto no que especialmente se refere à intimidade de base últimos trinta anos do séculoXVIII, que se reúnem as condições
sexual) procuram-se certezas que transcendem o instante, acabando evolutivas respeitantes à COntinuaçãode urna tal evolução do meio
por serem encontradas no modo como o parceiro se sabe identificar de comunicação amor e ao aperfeiçoamento provisoriamente con-
Consigo próprio: dentro da sua subjectividade. A subjectividade ultra- clusivo do romantismo. O ainda sobrevivente e levemente modi-
passa o instante, porque ela está na base de todas as transformações ficado aparelho conceptual da velha Europa, orientado sobretudo
da essência própria. Assim, a pessoa do outro, e apenas ela, pode para a distinção entre amor sensuale não-sensual, expõe-se às impor-
emprestar duração ao amor através da sua estabilidade dinâmica. tações de Inglaterra e França:ao sentimentalismo (Richardson), à
Tal é particularmente possível sempre que ela for compreendida oscilação indecisa de Rousseau entre amor e a.rriizade, ao romance,
como relação entre sujeito e mundo; incluindo afinal nela própria, que da galanteria degenera nafrivolidade, mas que ao mesmo tempo
antecipadamente, qualquer mudança. Tinha-se a consciência da mo- se torna mais exacto na observação. A mística e a AufklCirung coa-
mentaniedade de toda a intimidade satisfeita, através da respec- bitam. A recusa da sexualidade remetida para a esfera animal vê-
tiva fatalidade - é possível detectar isto mesmo em John Donne -se anulada pelo Sturm und Drang. O sentimentalismo (Empfind-
ou em Bussy Rabutin, em Claude Crébillon e finalmente em Sten- samkeit), partindo de uma base pietista, torna-se profundamente
dhal. A fórmula do sujeito, com a inevitabilidade de um eu que adepto do auto-sofrimento, enquanto se reconhece o direi to à sexua-
acompanha todas as variações, oferece uma resposta relacionada com lidade e se pretende salvar o casamento (com Rousseau) enquanto
ele e à sua altura. Esta fórmula não exclui sem dúvida a mudança; amizade. Por volta de finais do século, torna-se além disso obri-
inclui-a todavia. Quem melhor que os românticos sabe que tam- gatório tomar posição afirmativa ou negativamente face à filosofia
bém os amantes infiéis são sujeitos de direito. O importante é afi- de Kant. Nesta época, tem-se,em suma, a irrrpressão que as dife-
nal como em qualquer praxis, que se orienta pelo sujeito filosófico renças de autor para autor sãomaiores que aquelas que distinguem
transcendental l", de colocar o sujeito ao nível das operações passíveis as épocas históricas. Não se impõe qualquer distinção dominante
de fazer parte do quotidiano, submetendo-o assim a uma prova - nem sensual/não-sensual, nem plaisirlamour, nem amor/ami-
prática. Deve-se observá-lo em pleno comportamento e verificar o zade. São todas válidas, sendosobretudo o resultado adoptado apenas
que se lhe pode atribuir no que respeita a atitudes estáveis. uma intensificação do sentimento do valor próprio das mulheres
Tais exigências têm que atingir e modificar esta semântica da (leitoras). As linhas de demarcação interceptam-se, os contrastes
intimidade. Quanto mais individualmente for pensado o que é pes- perdem os seus contornos claros. O que é do foro pessoal atinge,
comonunca atingira anteriormente, a poesia (sobressaindo especial-
mente o contraste em relaçãoà época em que se originou o amour
18 Para os problemas análogos no âmbito da praxis do direito e da educa-
passion, no século xVII), passando esta a ser interpretada à luz do
ção, cf. Niklas Luhmann, Subjektive Rechte: zum Umbau des Rechtsbewusstseinsfür
die modern Gesellscbaft, in, do mesmo autor, Gesellschaftsstruktur und Semantik, que é pessoal 19. A semântica da intimidade actua transitoriamente
VoI. II, Frankfurt, 1981, pp. 45-104 (64 e segs.) e do mesmo autor, Theoriesubs-
titution in der Erziehungswissenschajt: von der Pbilantbropie zum Neuhumanismus, 19 «Lotte in Weimar» é uma tematização tardia do problema daqui resul-
pp. 105-194. tante. Um outro caso é o de «lucinde» de Schlegel. Cf. também Alfred Schier,
180 AMOR ROMÂNTICO CAPiTULO XIII 181

como um caos estruturado, como uma massa em fermentação, que ça, para a nostalgia, para o horizonte distante, devendo por isso,
ãlimenta a sua própria combustão, motivando cada qual estãOe- a tanto procurar-se como temer-se o progresso em pleno processo do
tecer as suas próprias conclusões, favorecendo assim a individuação amor.
face à simples presença de si no sentimento. Por razões semânticas, É óbvio que não podem ser agora já os atributos ou virtudes
muitos escritores acham necessário a existência de duas mulheres, vin~ulados a um estrato social aqueles que são afirmados e honrados
tanto na literatura como na vida, com o objectivo de esgotar as pos- através do amor. Trata-se do ser-indivíduo no seio do mundo próprio.
sibilidades do amor. Outros utilizam pormenores da sua vida que A assirnetria entre os sexos mantém-se aqui enquanto assimetria da
são identificáveis 20. Tudo isto despoleta de um modo diverso varia- tomada de posição face a esta questão. O homem ama o amar, a
ções que se transformam novamente em resultados claramente ma- mulher o homem; por isso, aquela ama por um lado mais profunda
nifestos, apenas segundo a concepção romântica do amor. e espontaneamente, por outro, com mais entrega e menos reflexão.
A inovação não é suficientemente compreendida, quando se O que o romantismo postula como unidade, mantém-se afinal como
pretende saber quais as mudanças de atitude face a dados temas. experiência do homem, embora e precisamente porque a mulher é
Ela visa uma nova fundamentação do amor, que permite o apare- a amante primária, o que possibilita o amar ao homem. A sociabi-
cimento de uma nova tradição sob uma nova capa. Não há unani- lidade presente no amar é entendida assim como intensificação das )
midade àcerca dos critérios para definir o que é romântico: trata- oportunidades tendentes à autoformação com base na consciência própria /_ t)

-se da intenção sobre a síntese (que já não pode realizar-se), da afir- o que conduz a uma recusa definitiva do conceito de amor-próprio 22.
mação da unidade entre sujeito e mundo, do desvio à normalidade, Uma primeira consequência coincide com a inclusão plena da
que permite tudo isto. No âmbito da semântica do amor, torna-se sexualidade e da aceitação de tudo o que anteriormente não tinha
\ sobretudo evidente que a velha distinção quanto ao que é típico na tido direito à existência, pois era abrangido pela amizade frívola e

0\
-, forma da semântica, a diferença entre idealização e paradoxo, se
dissolve numa nova unidade. O próprio amor é ideal e paradoxo
enquanto pretender ser a unidade de uma dualidade. Durante a
entrega, é válido preservar e intensificar o si-mesmo, realizar o
pelo casamento árido. Trata-se agora, no que diz respeito à sexua-
lidade, de algo mais do que apenas o esforço duvidoso para que
todavia seja ainda reconhecido o animal no humano 23; no que diz
respeito ao casamento, de algo mais do que estabelecer apenas um
consenso baseado na compreensão relativa ao desempenho dos deveres
amor completamente e simultaneamente com reciprocidade, bem
como com êxtase e simultaneamente com ironia. de cada função. Casamento é amor e amor é casamento - pelo
~ - -
Em tudo isto impõe-se um novo paradoxo 21, tipicamente ro-
mâhtico: a vivência da intensificação do olhar, do experimentar, do 22 Compare-se assim, todavia formalmente, o argumento semelhante de Fran-

fruir, através da distância. O afastamento permite a unidade entre cis Hutcheson: tem de se reconhecer a naturalidade das «kind and generous
a auto-reflexão e o compromisso que se perderia na fruição ime~ affections» (em vez de as remeter para o amor-próprio), pois apenas deste modo
é possível atingir «irnprovernenr». Veja-se: An essay on the nature and conduct 01
diata. O acento transfere-se assim da realização para a esperan-
the passions and affections, Londres, 1728, em especial o prefácio; este argumento
ainda pode ser pensado em paralelo com a ciência da natureza: tem de se obter
Die Liebe in der Frühromantik mit besonderer Berücksichtigung des Romans, Marburg, um conhecimento correcto da natureza, a fim de se poder melhorar a situação
1913, p. 58 e segs. da humanidade. Um argumento, de que se serve a auto-referência com vista a
20 A correlação entre produção lirerária e questões conjugais referentes a esta
poder recusar esta enquanto amor-próprio, utiliza pelo contrário uma estrutura
época é bem elaborada por Kluckhohn, op. cit., p. 176 e segs. Para um parale- que não se encontra (hipoteticamente) na natureza.
23 Veja-se apenas a curiosa concepção de Kant: na, relação sexual, o ser
lismo inglês, o casal Griffith, que publicou a sua correspondência e que mais
tarde a continuou com vista à sua publicação, cf. Joyce M. S. Tomkins, The polite humano e o outro tornam-se o centro da questão; apenas no casamento está
marriage, Cambridge Mass., 1938, reimpressão, Freeporr, N. L, 1969. garantido o tratamento recíproco enquanto pessoa (Recbtslebre I. Theil, 11.Haupts-
21 Assim, aliás, Lascelle Abercrombie, Romanticism, 2.' impressão, Londres, tück § 25). Cf. também a crítica em Johann C. F. Meister, Lehrbuch des Natur-
1927. -Recbts, Züllichau-Freistadt, 1808, p. 398 e segs.

I,
182 AMOR ROMÂNTICO CAPITULO XIII 183

menos de acordo com o «direito natural» de Fichte 24. A maior outro 26. Isto começa por ser fixado em conceitos genéricos e caren-
parte dos casamentos são na verdade apenas tentativas de ;asam~- tes de preenchimento individual, como o de felicidade e de vo!uptas
'tb-;", mas pelo menos sabe-se aquilo que se pretende. Renega-se a taedium. A auto-referência do sujeito ainda não coincide com a
falsa evolução da semântica do amor em direcção ao que é fãcil reflexibilidade do processo. Todavia, por volta de meados do século,
e frívolo, tornando-se igualmente desnecessário subordinar o ~mor a importância dada à sensibilidade permite estabelecer uma ligação
a uma amizade mais valiosa, porque mais estável. com a reciprocidade - porque assim se sublinha a dinâmica do
Tudo isto se inclui na invalidação global ·semântica da velha subjectivo, não se formulando também, quanto a este aspecto, qual-
Europa, que é possível observar por volta de 1800. Também de quer diferença entre os sexos: ambos têm de ser sensíveis. A auto-
acordo com outros pontos de vista, o ser humano deixa agora de -intensificação da sensibilidade própria permite que seja finalmente,
ser definido através do que o distingue do animal. A sua maior mas não inequivocamente, esta a condição e o modo como se está
riqueza deixou de ser, por exemplo, a capacidade de reconhecer os inteiramente di~on-wel. para o outro.
universais', para passar a ser a capacidade de constituir uma relação Além disto, é obvramente difícil renunciar às qualidades em que
a'uto-referencial com o mundo 25 - e já não como ser humano o amor se fundamenta, como sejam: a riqueza, a juventude, a beleza,
pertencente a uma espécie própria em oposição às outras espécies ,~ a virtude, sendo necessário recorrer ao direito próprio da individua-
animais. No âmbito deste aproveitamento geral da semântica humana, lidade 27. Enquanto se tratar de qualidades, é possível basear o amor
verificam-se tãmbém novos meios de comunicação respeitantes ao 'VI naquilo qile se ouve dizer. A destruição deste pressuposto centra de
tema: amor. Quando no amor se refere muito simplesmente o homem ~ antemão o processo em si mesmo. Amar por ouvir dizer é substi-
enquanto indivíduo, então verificar-se-a também que a compreen- tuído pelo amar do amar, que procura o seu próprio objecto e
são da reflexividade social (e não apenas a possibilidade de reflexão C'õri.suóia reflexividade social no amor recíproco. Reciprocidade no
da acção do sentir) se inserirá a um nível mais profundo: a reflexi- affiãfé afinal mais que uma simples participação da consciência-do-
vtdade social - em todo o caso ao nível da interpenetração inter- -eu no amor, mais também do que a mera consciência do facto de
-hurnana - tornar-se-á condição constitutiva da «formação» da se amar e ser amado. A intervenção da inteligência no amor e o
auto-reflexão individual e vice-versa. correspondente requinte que se enaltece em França como de!icatesse,
Já anteriormente esquematizámos os fundamentos históricos e não corresponde ao quadro de circunstâncias. Pode renunciar-se a
teóricos com vista à compreensão desta evolução (p. 145 e segs.). tudo isto, desde que se encontre a via para a reflexividade no amor 28.
Com o decorrer do prolongamento e universalização do meio amor, Aqui inclui-se a reiteração e a procura intuitivas de um sentimento
tem de renunciar-se à dependência das qualidades estabelecidas,
devendo o amor basear-se na sua própria factualidade. Em primeiro 26«Qui alterum amat, is eundem considerat tanquam seipsum», afirma-se
lugar, formular-se-á com maior profundidade, que também ..9-JUllilDte em Christian Wolff, Psychologia empirica methodo scientifica pertractata, Frankfurt-
se refere sempre a si próprio, mesmo quando se orienta pelo outro: -Leipzig, 1738, reimpressão, Hildesheim, 1968, §659.
(ele) quer encontrar a sua própria felicidade na felicidade do 27Encontra-se documento característico da transição em Minna von Barnbelm,
(1765), de Lessing, II, 7: «Teremos de ser belos? - Todavia o facto de acredi-
tarmos que o somos, foi talvez necessário. - Não, se sou apenas bela para ele!»
Tanto mais que o importante é a virtude surgir como fundamento do amor.
24Veja-se a «dedução do casamento», seu objectivo único, in Grundlage des
Ela acabará por ser sacrificada.
Naturrecbts (1796), citando de Werke, Vol. II, Darrnstadt, 1962, p. 308 e segs.
28«Renunciar» coincide com uma formulação talvez demasiado forte. Foi
25É de resto partindo daqui que é possível subestimar todo o romantismo
especialmente Friedrich Schlegel quem elaborou uma terminologia (ironia, gra-
filantrópico da tradição, enquanto animalesco, enquanto brutal - o que ilustra
cejo, reflexão) com vista à participação da auto-referência no supremo prazer da
igualmente o facto da distinção ser humano/animal deixar de funcionar. Veja-
união. Mas a terminologia acentua na sua distinção face às exigências tradicio-
-se a este respeito o material oriundo do âmbito da nova pedagogia em Rudolf
nais, visando a racionalidade, a inserção, quando não a submissão, deste momen-
Joerden (ed.), Dokumente des Neuhumanismus, Vol. I, Weinheim, 1962.
to num todo diferente e superior.
184 AMOR ROMÂNTICO CAPITULO XlII 185
correspondente; o facto de se amar a si próprio quer seja amante ou tismo desaparece também a tensão entre os elementos caprichosos
amado, e de se amar o outro quer ele seja amante ou amado, isto e sensatos que constituíram o sustentáculo do modelo clássico. Após
significa que afinal se reporta o seu sentimento exactamente a esta experimentar a reflexividade no amar, é inevitável a viragem do
coincidência de sentimentos. O amor dirige-se a um eu e a um tu, sentimento mais elevado para a náusea. Não (Qossívellivrarmo-nos
enquanto ambos se encontrarem em relação de amor, isto é, enquan- p relacionamento interior.jf'ern-se a sensação que o s~ir naocõr-
to permitirem reciprocamente uma tal relação amorosa - e não responde completamente ao sentimento sentido. Espontaneidade
porque sejam bons, belos, nobres ou ricos. rompe-se, o sentiment~ imediato é sentido como primordial, ambos
Encarada de um modo abstracto, a reflexividade no amar é uma os níveis de sentimento começam a diferir na sua situação tempo-
possibilidade ~ferecida -a todos os talentos e todas as situaçõêS - rãL. O amante do amor admira-se, surpreende-se, aborrece-se con-
õão é de modo algum uma questão esotérica, reservada apenas ao sigo mesmo, enquanto amante, com o modo como se surpreende
número diminuto de grandes amantes e especialistas da sedução. numa gestualidade em harmonia com o outro. É incapaz de contro-
Ela não exige necessariamente o «trabalho pesado» da P.ftssü}n. Pode lar técnicas, manobrar o seu corpo para se aproximar do outro... e
estender-se ao fortalecimento do sentimento, não precisando toda- com isto sai maculado. Deixa de poder controlar-se a problemática
via disso. Pelo menos ]?ara o romantismo, ela fortalece a capacidade através da ironia romântica; aquela deixou de se encontrar sobretu-
de fruição do sentimento bem como a possibilidade de .g>f!!.!..com do na reflexão pensante sobre o interesse próprio no amor; ela
eSte. «Ámor pelo amor» ~9 torna-se fórmula existencial, sendo Jean ttãiís~eriu-se para a capacidade de manutenção da identidade do eu
Paulo seu profeta mais impressionante 30. Todavia, no romantismo por si próprio: eu esse que tem de sentir os sentimentos e amar o
n~o é ainda compreensível a democratização do amor em si, no àmor. E esta identidade pode tornar-se distinção para ambas as
sentido de uma possibilidade igualmente disponível para todos. parte.s e para cada um na pessoa do outro - com a consequência
A forma através da qual se celebra a semântica: a unidade formada de se libertar aquilo que é mais tarde sentido como vínculo.
pela idealização e pelo paradoxo bloqueia o que seria possível. Amar Pode-se reconhecer uma questão completamente semelhante e
com «ironia romântica» não foi algo pensado para o trabalhador ou respeitante à ambiguidade romântica, quando em vez de reflexivi-
para a empregada doméstica. Sem ser designadamente algo específico dade social se suprime o tempo. Podemo-nos reportar neste momento
do estrato social, o universalismo do amor romântico (como aliás o a Stendhal, na verdade ao capítulo XXXII De l'intimité, in De l'amour
universalismo burguês europeu) é uma ideia altamente selectiva no (1822) 31. Salta à vista a dependência de Rousseau. A intimidade é
que respeita às orientações pressupostas. o conceito apropriado para exprimir a comunhão da felicidade de
Ao ganho em autonomia reflexivamente fundamentada, relati- dois amantes, comunhão essa que consiste no facto de para ambos
vamente ao amar pelo amar incondicional, corresponde uma nova a felicidade residir exacrarnente nas mesmas acções. Tal só é possível
espécie de consciência da distinção. O amar do amar não pode ser quando se desactiva o tempo, quando cada um se orienta por aquilo
mero amor amicitiae, não pode ser simples amar do amor do outro; que cada momento lhe oferece. Qualquer tentativa de recorrer ao
não podendo tão-pouCo restringir-se aõ si~ples-;mar. No rornan- saber e à realização paralisa a vivência 32. Cada acto premeditado,
~xecução de planos concretos, sobre os qúais se reflectiu anterior-
mente, tem de ser evitado, pois tal suscita a insensibilidade ao
29Decerto, mas não adiantando muito mais, em Christoph Martin Wieland,

Werke, IV Theil, Berlim, s.d., pp. 149-231.


-momento 33. A art d'aimer fica reduzida a esta lei, autoneutrali-
lOVeja-se Levana, § 12l. Citado de Sàmtliche Werke, Abteilung I, VoI. XII,
Weimar, 1937, p. 341. Cf também «Todo o amor ama só o amor, este é o seu 31 Citamos da edição de Henri Martineau, Paris, 1959, p. 95 e segs.
próprio objectivo», in Es gibt weder eine eigennützige Liebe nocb eine Selbstiiebe, 32 «Car rien ne paralyse l'imagination comme l'appel à Ia mérnoire», op. cit.,
sondem nur eigennützige Handlungen, Sámtliche Werke, op. cit., Abreilung I, VoI. V,
p. 36.
Weimar, 1930, pp. 208-213 (209). II «Il vaut mieux se taire que de dire hors de temps des choses trop tendres;

~
186 AMOR ROMÂNTICO CAPÍTULO XIII 187

zando-se deste modo. Não existe vontade capaz de determinar a que uma adaptação recíproca, de algo mais que um satisfazer-se
acção, nem a transparência (candeur) 34. «On est ce qu'on peut, mais recíproco que teria de morrer rapidamente pelo esgotamento das
ón sent ce qu'on est» 35. Agora, isto significa sensibilidade, desde necessidades e pela habituação; trata-se da construção de uma reali-
que se neutralizem todas as implicações morais. Torna-se compre- dade especial comum, na qual ~mor se reinforma a cada momen-
ensível então a inversão, caso tomemos em consideração que foi to, na medida em que, subjacente à sua reprodução, está aquilo qu~~
exactamente este o ponto de vista à luz do qual a tradição criticou tem algum significado para o outro. Apenas deste modo pode o ~
a passion, pois esta tornava a pessoa vulnerável ao momento, como amor ser casamento. Apenas assim pode o amor conferir-se duraçãó.
se de um animal se tratasse! A referência temporal inserir-se-à A harmonia auto-referencial pode agora ser perseguida sob um
igualmente mais profundamente do que através de uma mera te- ponto de vista ou mais social ou mais temporal, mais como questão
matização da iaconstância e da sucessão temporal típica de uma respeitante à individuação de um critério do mundo ou mais como

--
história de amor. O afundamento no momento sem fronteiras coin-
cide agora com a condição necessária ao facto de o sujeito se poder
e;q;erienciar a si próprio no selo de uma relação auto-referenciald'o
questão relativa à sintonia sensível: terá sido na aceitação de tal
auto-referência do amor, que existiu a mais importante evolução do
meio amor no seio do romantismo. Tal permite que os paradoxos,
amor. Tudo aquilo que a pessoa procura ser, permanecer, petrifica- outrora eleIEe!.!!.2Lconstituintes do código amour passion, sob a forma
:se-numa atitude artificial, incompatível com o amor; ou então, e descrições contraditórias ou de preceitos, sejam integrados' no/ ~
petrifica-se na vaidade que substitui o amour passion pelo amour próprio amor - mais ou menos como sensualidade espiritualizada, ' /-
vanité. Aqui, verifica-se também que o insucesso é necessariamente erotismo irónico, intercâmbio de papéis com base no amor como
originado pela impossibilidade de uma existência temporal - até forma da respectiva intensificação, etc. A questão estilizada deste
ser impossível recordar-se, uma vez que só é possível ter memória modo acaba p~ consistir na manutenção da identidade, na dissó-
de testes reproduzíveis. O romance do século XIX conduz por fim lução no outr~. Ora, a amizade é exactamente o contrário: a auto-
à reocupação da posição, a partir da qual o amor pode ser reflectido: duplicação através da integração do outro em si (a velha questão:
no lugar do amour passion surge o amour vanité - superior pelo duas almas num só corpo). Sob esta form~semântica,_o ~onceiJo do
facto de ter de refutar não só todos os outros prazeres, mas por ter amor romântico procura suplantar o amour passion e de acordo com
de negar-se a si próprio. dois pontos de vista: através da inclusão da individualidade ilimi-
O que se obtém é, segundo tudo isto, uma combinação peculiar tadamente crescente e através da perspectiva (que assim se garante
entre um fechamento circular e uma abertura a tudo o que enrique- a si própria) da duração, enquanto,conciliação com o casamento.
ça o amor. Exactamente o facto de o amor apenas contar para o O amor torna-se fundamento do casamento, este torna-se mérito
amor, significa na realidade que ele constitui um mundo para si sempre renovado do amor 37, pelo que a intensificação excessiva, em
- mas por isso também: em si um mundo. Trata-se de algo mais '>')t2Jt
36 Assim se compara novamente a problemática da «subrnission», no século
ce qui était placé, il y a dix secondes, ne l'est plus du tout, et fait tâche en ce XVII. Caso coincidisse com a aniquilação e o renascimento, então o homem
momento Toutes les fois que je manquais à cerre rêgle, et que je disais une chose poderia afirmar a sua liberdade apenas pela recusa do amor, ou mais tipicamente:
qui m'était venu trois minutes auparavant, er que je trouvais jolie, Léonore ne pelo súbito retorno (Corneille, La place royale, citado de Pierre Corneille, Oeuvres
manquait pas de me battre» (op. cit., p. 97). Completes, Paris, 1963, pp. 149-167). Caso coincidisse com uma oferta «galã»,
34 A transparência surge exactamente como inconciliável com a auto-refe- então a liberdade residiria na tácita incapacidade em levar a sério ou no percurso
rência momentânea, pois ela fornece o si-mesmo enquanto objecto da sua própria subjacente da comunicação, baseada no amor verdadeiro ou falso. Apenas o ro-
observação, tal como um texto de antemão (!) formulado e de origem jamais mantismo ousa postular a unidade do ser-livre-no-outro.
recuperável. «Donc il ne faut pas prétendre à Ia candeur, cette qualité d'une âme 37 Cf. por exemplo A~ Müller, Von der Idee der Scbõnbeit, Berlim, 1809, em
qui ne fait aucun retour sur elle-rnême- (op. cit., p. 99). especial p. 146 e segs., onde se inclui uma crítica à literatura romântica, na qual
350p. cit., p. 99. ou o amor ou o romance terminam com o casamento.
188 AMOR ROMÂNTICO CAPiTULO XIII 189

especial no romantismo, é sempre experimentada em comum, sendo digna de ser amada. A literarura que acompanha esta mudança de
vividos também em comum, quer a respectiva problemática quer a cÕrÍcepçãotem a seu cargo esta dupla função, a de a realizar ple-
própria ameaça - é quase possível afirmar: fruídos conjuntamente. namente e de a desmascarar 41. y

Uma das consequências mais importantes coincide com o colapso Para além disso, a constiruição auto-referencial do amor neu-
da distinção entre amor sincero e falso, resultando com isso a perda traliza a imaginação dos amantes. O facto do amante ver o sorriso
de validade do pressuposto estrurural relativo à elaboração da infor- e não as falhas na dentição foi sempre observado com o objectivo
mação no código clássico do amour passion. O romance que procura de caracterizar a sua paixão. Agora já não se trata da selecção do
compreender o amor à luz desta condicionante intitula-se Adolphe 38 complemento imaginário das suas percepções, mas da i-ntensifica-
e é da autoria de Benjamin Constant. A distinção entre amar e já- ção do sentimento do mundo. A partir deste momento, tudo passa
-não-amar escapa à comunicação 39, p~que toda a comunicaç,ãoé a obter novas qualidades, cujo valor reside no facto de serem apenas
totalmente reflectida no âmbito social. É precisamente isso que válidas para os amantes 42.
torna a informação impossível, pois não se pode exigir o esquema Por volta de~O_O e perante um tal cenário surgem então temas
de distinção necessário àquela ou porque ele tem de ser tratado de tradicionais com uma aparência de novidade. Devem a sua aparên-
modo diferente por causa do amor. O próprio amor transforma-se cia de novidade a um mais forte isolamento reflexivo do amar.
no ponto de vista do fracasso da sua codificação. Soube-se sempre, p(;; exemplo, que o ãmãr conduziria os amantes
'l:i2ico da tendência romântica da época é, de um modo mais à desilusão 43; Kater Murr experimenta-o como se se tratasse da pri-
geral, o facto de este tentar manter-se sem a ajuda de critérios meira vez 44. A técnica do paradoxo mantém-se; os paradoxos usuais
"'\ objectivos. Assim, não se verifica a polémica desde há muito diri- são completados através de novos temas. Assim, Stendhal considera
ida contra a falsa devoção, o amor dissimulado, a hipocrisia 40. Em a solidão e a abertura ao mundo como pressupostos do amor 45.
vez disso, concede-se autonomia à praxis social. É quase inevitável Muitas inovações surgem como enxertias feitas no velho tronco do
que ela se comece por orientar por superficialidades, utilizando a amour passion. E neste processo, o que parece permanecer é mais a
ilusão, a dissimulação, a fim de se pôr em movimento. Regular-sé- literatura romanesca que a literatura especializada, mais a senti-
-á por modelos sociais, sobretudo também por padrões literários mentalidade que a galanteria, mais a técnica do narrar que a téc-
- porém, tudo isto com vista a possibilitar finalmente uma vida nica da codificação das «maximes d'amour».
autêntica, a encontrar as qualidades que tornam a própria vida Através deste comportamento selectivo relativamente à história,
substirui-se - e no que corresponde ao fechamento reflexivo do
acontecimento amoroso - o mecanismo de arranque da reflexão
3BPrimeira edição, 1816, citado de Oeuvres, Éd. de Ia Pléiade, Paris, 1957,
pp. 37-117.
39A fim de se ser mais exacto e de se fazer jus ao romance, deveríamos dizer:
41René Girard, Mensonge romantique et vérité romanesque, Paris, 1961, responde
escapa-se à comunicação verdadeira, pois é viável uma espécie de comunicação
a esta ambiguidade que deve ser vista como unidade à luz da distinção algo
«roubada» que transmite o conhecimento da realidade.
artificial entre romântico e romanesco.
40 Já não é possível incluir um texto como o seguinte no seio do romantis-
42Veja-se também Schier, op. cit., p. 122 e segs., através da observação
mo. No contexto da crítica e da devoção, em moda, afirma-se em Villier, op. cit.,
segundo a qual é exactarnente este abandono da realidade factual que conduz ao
(1695), p. 15: «Quand Ia Corntesse D ... a commencé a visiter les pauvres et à
facto de a fantasia acabar por continuar um monólogo.
enrendre des sermons elle savoit bien dans son coeur qu'elle érait une hypocrire,
43Por exemplo: Anónimo (Aphra Behn), The ten pleasures of marriage, Lon-
mais aujourd'hui elle se croit devote à force d'enrendre les sermons er de visiter
dres, 1682; do mesmo autor, The confession of the neu/ married couple, Londres, 1683.
les pauvres, son coeur n'est pas mieux reglé; mais il est plus trornpé.» O roman-
44Cf. E.T.A. Hoffmann, Lebens-Ansichten des Katers Murr, introdução ao ter-
tismo desistirá da possibilidade de distinguir entre autenticidade e inautenrici-
ceiro parágrafo, citado de E.T.A. Hoffmann, Werke, IX Teil, Berlim-Leipzig,
dade com base na verificação verdadeira dos factos e confiará na praxis inauten-
ricamente iniciada, cujo objectivo coincide com a evolução posterior dos sentimentos s.d., p. 193.
45 Fragments dioers, Nr. 21, in De l'amour, op. cit., p. 246.
autênticos (e não apenas com a verificação dos inautênticos).
190
AMOR ROMÂNTICO CAPiTULO XIII 191

ponderada e a perícia galã pelo mecanismo de arranque: acaso~6. facto de nas pessoas mutuamente dispostas à futura união amorosa,
A inclusão deste no código comporta uma inovação importante: a
-~ pãradoxização do caso enquanto necessidade, enquanto destino ou
também enquanto liberdade de escolha 47, e com tal inserção, quais-
resultar o afecto entre estas pessoas, destinadas a reconhecerem-se;
o outro extremo, com o facto de o afecto surgir primeiro nas pes-
soas, enquanto infinitamente particularizado nestas. Aquele extre-
quer que sejam as suas funções, far-se-á jus à ampliação dos cír- mo ou mesmo o caminho no qual a decisão de casar tem o seu
culos de contacto, preparando uma extensão do código a todos os princípio e tem como consequência o afecto, pois no verdadeiro
estratos da sociedade. Enquanto o amor cortês e mais tarde o galâ casamento ambas as coisas se encontram reunidas, pode ser tomado
podia obviamente dirigir-se apenas a damas que já «se» conheciam como o caminho mais moral. No outro extremo, é a particularidade
- de modo a que a escolha pudesse basear-se em informações infinitamente especial que pretende afirmar as suas pretensões em
prévias 48 -, agora também o início de uma relação amorosa é ple- conexão com o princípio subjectivo do mundo moderno. Todavia,
namente diferenciada em sociedade através da marca simbólica: nos dramas e outras representações estéticas modernas, onde o amor
«acaso», não se fundamentando em nada, nem assentando em qual- entre sexos constitui o interesse fulcral, o elemento de insistente
quer pressuposto. A combinação acaso/destino significa que o início frieza que neles se encontra, é transposto para o clímax da paixão
sem pressupostos não prejudica o significado da relação amorosa, representada, através da total casualidade a isso associada pelo facto
pelo contrário, chega mesmo a intensificar e, por assim dizer, a de todo o interesse ser apresentado como apenas assente nestes (dra-
absolutizar por si mesmo este significado, enquanto independente mas modernos), o que para estes pode ter uma importância in-
de toda a influência exterior. _
calculável, não o tendo deveras em si mesmo». Estas passagens
Até Hegel se deixou iludir quanto a esta questão ao tomar, por esclarecem por fim, mais uma vez, o princípio que atende ao casa-
assim dizer, literalmente o «acaso» e não enquanto símbolo defi- mento tradicional: a aceitação do facto, segundo o qual afeição e
nitivo. Relativamente aos pontos de partida subjectivos/objecti- amor se seguirão normalmente à consumação do casamento. Tal era
vos sobre o matrimónio, afirma-se no parágrafo 162 de Grundlinier de esperar, pois partia-se do pressuposto que nem se colocavam exi-
des Phi/osophie des Rechts (Princípios da filosofia do direito): «Os ex- gências demasiado elevadas à individualidade autocentrada nem
tremos respeitantes a esta questão coincidem um com o facto de o à interpenetração inter-humana. O mundo moderno rompeu há
começo ser originado pela reunião dos pais bem intencionados; e no muito com este pressuposto. Por outro lado, através da simbólica
da diferenciação plena da passion e do acaso e da técnica de codifi-
cação da paradoxização, o mundo moderno não dispõe de qualquer
46A respeito da origem, em especial em relação a Manon Lescaut, de Pré- princípio pelo qual fosse possível prever a estabilidade quer do
vost, Erich Kõhler, Esprit und arkadische Freiheit: Aufsiitze aus der Welt der Romania,
casamento quer das outras relações Íntimas. Face a esta situação, na
Frankfurt, 1966, pp. 97 e segs, 172 e segs. Este tema é também transmitido
desde há muito pela tradição, sobretudo através do topos da inesperada instan- qual a semântica do amor entra em conflito com as exigências de
taneidade própria da origem de um amor duradouro. Assim se afirma numa das sentido duradouro para mundos pessoais, o romantismo reage atra-
célebres Lettres Portugaises: «]e vous ai destiné aussi rôr que je vous ai vu» vés da fuga para a intensificação excessiva.
(Guilleragues, Lettres Portugaises, 1669, citado da edição de F. de Loffre/]. Rougeot,
Paris, 1962, p. 39). Digna de menção é a mudança de uma versão temporal
(instantaneidade//duração) para uma teórico-modal (acaso/necessidade) (por exem-
plo, em F. Schlegel).
47Veja_se também Aubert, op. cit., p. 213 e segs.
48
0 facto de se amar já com base em imagens, COntos, erc., e de se procurar
conracro com a amada a partir de então, coincide com um motivo recorrente no
romance do século XVII, pressupondo tacitamente um estrato social elevado
relativamente pequeno.
CAPÍTULO XIV

Amor e casamento: para a ideologia da reprodução

Tanto o sentimentalismo inglês como a sexologia do século


XVIII, próxima da natureza, colocaram em primeiro plano a ques-
tão do casamento. A crescente diferenciação da economia, no âmbito
da produção e vida familiar, contribuiu ainda mais para que as
famílias perdessem a importância devido a interesses mais gerais.
No século XVIII, as famílias pertencentes aos estratos sociais mais
elevados tinham já perdido a sua importância como «suportes do
Estado». Deixaram de se verificar as razões socioestruturais com
vista ao controlo dos casamentos. O que poderia impedir a socie-
dade de transitar dos casamentos por interesse para os casamentos
por amor? I A inovação tem de ser caracterizada com maior clareza

I Face a esta tendência, existem inúmeras investigações tanto no âmbito da


história como no da equiparação regional. O desenvolvimento económico é ge-
ralmente apresentado (demasiado uniteralmente) enquanto base desta transfor-
mação. Sob uma perspectiva teórica, especialmente darwinista, veja-se sobretudo
Henry R. Finck, Romantische Liebe und persõnlicbe Scbõnbeit: Entwicklung ursái:hliche
Zusammenbàng», geschichtliche und nationale Eigenheiten, tradução alemã, 2." edição,
Breslau, 1894 (em especial relativamente às relações americanas durante o século
XIX, Vol. II, p. 57 e segs.). Cf., no âmbito da literatura sociológica em especial,
William J. Thomas/Florian Znaniecki, The polisb peasant in Europe and America,
Nova Iorque, 1927, em especial, Vol. II, p. 1159 e segs; Olga Lang, Chinese
Jamily and society, New Haven, 1946, p. 120 e segs.; Hiroshi Wagatsuma/George
de Vos, Attitudes toward arranged marriage in rural Japan, «Hurnan Organiza-
tion», 21 (1962), pp. 187-200; George A. Theodorson, Romanticism and motiva-
tton to marry in the United States, Singapura, Burma and lndia, «Social Forces», 44
(965), pp. 17-27; Frank F. Furstenberg Jr., lndustrialization and tbe american
Jamily: a look backward, «American Sociological Review» 31 (966), pp. 326-
-337 (em especial, 329 e segs.); Robert o. Blood Jr., Love-match and arranged
marriage: a Tokyo-Detroit comparison, Nova lorque, 1967; Promilla Kapur, Lote,
marriage and sex, Deli, 1973; Greer L. Fox, Love match and arranged marriage in
a modernizing Nation: mate selection in Ankara, Turkey, «Journal of Marriage and
the Farnily» 37 (975), pp. 180-193; Barbara Lobodzinska, Love as a Jactor in
CAPÍTULO XIV 195
194 AMOR E CASAMENTO
-se perante a evolução continuada de um meio de comunicação:
de acordo com dois pontos de vista que se fortalecem durante a amor; todavia, apenas o amour passion surge disponível no momento,
respectiva relação mútua. Por um lado, torna-se agora possível que como correlativo semântico, aberto ao enriquecimento de novos
a diferenciação plena de ourros sistemas de função abdiquem de temas 2, sem todavia poder resolver o problema da estabilidade. Foi
vínculos familiares (derivados do casamento) enquanto sustentáculos apenas possível excedê-Io novamente, no que respeita à sua extra-
de funções políticas, religiosas ou económicas. ~istemas de fu..gção vagância, designando a vida normal como indesejada de todo 3. Tal
~ suficiente~ autónomos, cuidando da sua própria auto-re- exaltação permanece todavia como um fenómeno especial que está
produção. Ê por isso aceitável que os diversos contextos familiares, longe de abarcar tudo o que, desde então, só descreve com um sen-
aos quais pertenCem por nascimentos os cônjuges, se encontrem tido novo, já não apenas referido ao romance como «amor romântico».
ocasionalmente em conexão por virtude do respectivo casamento e Em finais do século XVIII, reconhece-se a unidade entre casa-
que o seu contexto consista apenas no casamento isolado, sem deno;';; mentOpõrãíilor~~~iugal como princípio da realização
qualquer significado para além dele mesmo. As famílias que derom humana pe~ en~aI4. !}m dos mais importantes gan.[os
origem aos pais apenas se encontram simbolicamente reunidas nos
gesta agwS1ção coincide com o facto de agora po~CQQvergir
netos, para mais tarde serem todavia reduzidas novamente àquele não só os motivos conjugais como t~mpara..além disso os m~os
laço estreito de um novo vínculo. ~ais atrib~ão entre os sexos diminui - e na
A dependência, face a este processo vinculativo e de distancia- reali~~o apenas dn r~ãõ ags p'!~príos_mo~mas...ta.mb.ém
ção face a outras macro-funções do sistema da sociedade, permite,
em relação aos motivos que supostament~u~ ao outro sexo
gera até forçosamente, a ideia segundo a qual, em cada geração, as como razões para contrai!S-asamento 5. À sombra da invulgaridade
famílias são fundadas a partir do nada. Não podemos negar tOtãl- do complexo constituído pelo amor romântico, as expectativas dos
mente a antiguidade desta ideia (especialmente nos casos em que
parceiros equivalem-se. É quanto mais ~tranha for a im~ gue
era hábito uma separação de domicílios). Todavia, o processo da
---------.:.:- um facto amoroso dá de s~anto mais claramente. se_desviar do
I}ova~ituiçào está agora dependente de si mesmo, concedend"o comportamento normal, tanto mais se uramente oderão os .-
ao casamento no sistema de famílias um significado muito maior ~~ ser reciprocamente supC?stos ~ distinção e a unanimidade são
-;n comparação cQ.m õ gue acontecia ~coQQ..mia ôomésti'3- da
!:.elha Europa. Assim sendo, a selecçfuLCQn+ug~ar-
-se a sipróp~nse o que pensar o sujeito individual). Foi para 2 As inovações temáticas mantiveram-se de resto exíguas e sem grande im-
esta mudança estrutural que, sem o saber, nos fomos preparando portância. É apenas uma constelação diferente que lhes concede um outro tipo
de atenções. Abordámos com bastante pormenor o código clássico do amour
concomitantemente com a evolução do meio de comunicação amor.
passion com o objectivo de tornar claro isto mesmo.
A semântica, orientada em parte or aixões extramatrimoniais 3 Uma interpretação correspondente do romantismo em Lorhar Pikulik,
(França), em--l2 'sticL(lngla~ra), em parte pela Romantik ais Ungenügen an der Normalittit: am Beispiel Tiecks, Hollmanns, Eichen-
cwtura (Alemanh~ ~ de al)tem-ª~eparada, podendo entrar dorffes, Frankfurt, 1979.
k.go em Tunçoes. 4 Assim afirma por exemplo Mauvillon, op. cito (1791), p. 342, «que a maior
A questão da liberalização do casamento, com base em casua- perfeição do próprio (=casal) surgiria entre os homens quando o casamento
coincidisse sempre com o amor e este com o casamento».
lidades sociais sobre as quais se perdeu o controlo, tornou-se 5 Ainda é possível verificar isto em dados recentes. Veja-se Lobodzinka,
afinal actual através de modificações na estrutura social, destacando-
op. cit., (1975), em especial p. 62 e segs.
6 Investigações empíricas continuam evidentemente a apresentar as diferen-
ças entre homens e mulheres, sobretudo na direcção segundo a qual os homens,
marital decisions in contemporaryPoland, «Journal ofComparative Family Studies»,
no início de uma relação, tendem mais fortemente que as mulheres para um ser-
6 (1975), pp. 56-73; J. Allen Williams Jr.lLynn K. White/Bruno J. Ekaiden,
-amado romântico. Veja-se, por exemplo, Charles W. Hobart, The incidence 01
Romantic love as a basis for marriage, in Mark Cook/Glenn Wilson (eds.), Love and
romanticism during courtship, «Social Forces», 36 (1958), pp. 362-367; do mesmo
attraction: an international conference,Oxford, 1979, pp. 245-350.
CAPITULO XIV 197
196 AMOR E CASAMENTO

levadas a relacionarem-se de um modo novo, dentro de uma inten- ~ semântica do amor romântico assume a função de transformar
~ificação recíproca. -- -- - esta insegurança e certeza subJectlva. A função que desempenha é
~emelhante a d~ituto mágiCOda....antev:lsão.Ela fornece
Assim, consegue-setodavia esclarecera questão do elevadonúmero
de casamentos infelizes (ou todavia não particularmente felizes). Já pe1õ menos formas de representação, através das quais a~-
não se fica a dever apenas ao facto de os filhos casarem por inre- rança pode ser trataClacomo certeza, durante a interacçãüeCõm o
seguinte efeito: ela pode encontrar uma confirmação social;-põCIen-
resses materiais ou por prestígio mcial.-O <+amor-româ-at.«;O~
or isso de assumir a explicação que.L.da.felic~de quer da infeli-
do assim chegar-se à ~ A marginalização do par amoroso
preeílcl:leSõ5remaneiraa função: permitir que este processo de trans-\ I
-
cidade no casamento.
Para o amor romântico, a liberalização do casamento, que su-
cede durante o século XIX, teve por seu lado um efeito selectivo
-
formação decorra sem o controlo social objectivador. Quadros de
problemas socioestruturais específicos actuam também aqui selec-
@

tivamente sobre o que é extraído do rico manancial da semântica


sobre o que então se entendia e exigia pela ideia de «romântico».
O amor torna-se no motivo exclusivamente le ítimo

,
esco a de
companheiro, por isso tem de 1 trar-se todos aqueles momentos da
eaixão, ameaçadores. perigosos para a existência e que colocam as
coisas em termos de vida ou de morte~ Permanece a compreensão
institucionalizada para com a paixão desgovernada e a aceiração
-- do amor reproduzido.
Podemos ilustrar esta mudança ao considerarmos o facto de
uma declaração de amor, quando pretende ser definitivamente con-
vincente 8, exigir sempre uma segunda declaração. A isto mesmo se
chamou no século XVII, «déclaration de sa naissance» 9. Tinha de
dizer-se ou salientar-se que o amante era um príncipe ou então um
disto mesmo como uma forma de testar a disponibilidade para o ca-
pretendente de origem social idêntica 10. No lugar desta declara-
samento e como usa uma espécie de promessa de felicidade. Agora,
ção, surgiu, no século XIX, o propósito de contrair casamento 11.
em cada geração, as famílias têm de ser fundadas de novo. Aquilo
A declaração complementar já não se refere ao passado, mas antes
que agora se designa com um sentido mais ténue por «parentesco»
ao futuro: e isto porque a família já não se continua pelas gerações
é antes tomado como uma pertubação em potência, pelo menos não
como ajuda para o matrimónio ou para a vida conjugal. Os pais têm adiante, tendo antes de ser fundada de novo.
ainda, quando muito, possibilidades indirectas para facilitar ou
dificultar aos filhos o início dos contactos 7. A insegurança (objec- 8Talvez se tivesse de afirmar: caso ela tivesse de convencer o público leitor!
tiva) e o risco na escolha do outro são consequentemente grandes. "Esta formulação é utilizada em Kévorkian, op. cit., p. 188, relativamente
a um romance de Gomberville.
10 «Puisque vous sçaves si bien ma naissance, Madame, poursuivit le Pelerin,
autor, Disiilusionment in marriage and romanticism, «Marriage and Family Living»,
je ne vous parleray plus que des affaires de mon coeur», afirma-se numa novela
20 (958), pp. 156-162; William M. Kephart, Some corre/ates of romantic love,
de Madame de Villedieu, Anna/es Galantes, VoI. I, Paris, 1670, p. 14 e segs.,
«]ournal of Marriage and the Farnily», 29(967), pp. 470-479; David H. Knoxl
IMichael ]. Sporakowsky, Attitudes of college students toward /ove, «] ournal of Marriage citado da reimpressão de Genebra, 1979.
II Veja-se o drama em um acto de Alfred Musset: «il faut qu'une porte soit
and the Farnily», 30 (968), pp. 638-642; Alfred P. Fengler, Romantic /ove in
ouverte ou fermée», citado de Oeuvres Completes, Paris, 1963, pp. 415-422. Ver
courtsbip: divergent paths of ma/e and [emale students, «]ournal of Comparative Family
também a rejeição da declaração amorosa tipo formulário pela marquesa: «Heu-
Srudies», 5 (1974), pp. 134-139; Bernhard L Murstein, Mate selection in the
reusement pour nous, Ia justice du ciel n'a pas mis à votre disposition un
1970s, «]ournal of Marriage and the Family», 42 (1980), pp. 777-792 (785).
vocabulaire três varié. Vous n'avez tous, comme on dir, qu'une chanson ... Cela
Por esclarecer fica todavia se e em que medida esta diferença age retroactiva-
nous sauve par l'envie de rire, ou du moins par le sirnple ennui» (p. 149). Com
mente sobre a avaliação do motivo do outro.
vista ao controlo social da inter-relação entre a corte amorosa e a preparação para
7 Cf. a este respeito (talvez hoje já ultrapassadas devido ao desenvolvimento)
o casamento, na França do século XIX, cf. também Henry T. Finck, Romantische
consrarações em William J. Goode, The theoretical importance of loue, «American
Liebe und persõnlicbe Scbdnbeit: Entwick/ung, ursachliche Zusammenhange, geschichtli-
Sociological Review», 24 (1959) pp. 38-47 (43 e segs.), ou em Claude Henryonl
che und nationale Eigenheiten, tradução alemã, 2." edição, Breslau, 1894, VoI. 11,
IEdmond Lambrechts, Le mariage en Belgique: Étude sociologique, Bruxelas, 1968,
p. 129 e segs. p. 1 e segs.
CAPiTULO XIV 199
198 AMOR E CASAMENTO
contracção de casamento apenas assim fundamentada 16. Encon-
Caso atentemos nesta necessidade de reorientação de acordo tram-se ainda valorações elitistas nos conceiros de exigência 17,mas
com o futuro, surge então evidente que o romantismo não se esgota também se encontra já a ideia: ~mor é a consolação para o homem
enquanto grande teoria do amor. Ele celebra o invulgar através vulgar (afinal para todos), para aquele que não consegue obter nada
\}i' de uma orgia delirante - devido à liberalização do casamento em mais na vid';-18~ - -
(}l'-J relação às pressões de natureza social e familiar. Todavia, raramente Caso CO[;.sultemosainda Destutt de Tracy 19e Schopenhauer 20,
roma providências face ao quotidiano amoroso daqueles que con- podemos reconhecer, logo nas primeiras décadas do século XIX,
traem casamento e que mais tarde se encontram numa situação da uma teoria segundo a qual a semântica do amor já não é aceite
qual se consideram culpados. como dada nem como uma espécie de conhecimento, tentando-se
O amor romântico não pode por isso ser a única re~osta a este antes compreendê-Ia como um complexo trifásico de controlo. Veri-
problema inédito-:-Na-realidade, após 1800 sucedem-se outras evo- ficam-se ideias directrizes ao nível da literatura, do romance, da
luções temáticas que fundem a semântica do amor/sexualidade e «ideologia» (que aqui designamos por semântica) e que influencia
casamento numa base não romântica, relegando-se por assim dizer a informação individual dos sentimentos. Em compensação, esta
para a esfera do trivial. Encontramos bom material, comprovativo orienta o comportamento gerativo do ser humano numa espécie de
disto mesmo, no livro sobre o amor da autoria de Sénancour 12. «medi ração do génio da espécie» 21.Tomam -se decisões acerca_da
~ceita-se que o a~or se fundamente na sexualidade guando con- reprodução e conseQuentemente acerca da «composição da geração
se.sue simultaneamentesuperaresta base. A sexualidade é, em si seguinte» 22, segundo um procedimento selectivo completamente
mesma, apenas «un soulagement à 05tenir: rien de plus» 13,mas é individuali:ad~:.tivre (de qua~r pre~sã~)e todavia discretamente -,JJ -
igualmente um_condicionalisffiCLJllL.9ue respeita à manutenção controladõ. Liberdade coincide com instituição 23.O ob)eCtiVõdas --;:r"
e intensificação do próprio amor 14.A função do mecanismo sim- ideias gue os amantes constróiem de acordo co~ o romance não
biótico imanente-ao-código é afinal apreendida com bastante exac- ~e nelas mesxp.as,mas na sua função. ~ja como for, elas poderão
tidão. Ao respeitar a ideia: perseguir a sua própria felicidade, os concretizar-se de um modo paradoxal, desgovernado, incontrolável:
indivíduos colocam-se ao serviço da reprodução do género humaoo. elas individualizam a escolha do companheIro com vista a uma
à SOCIedadedeve por isso colocar formas à disposição do amor e do s~o comoinatória da espécie humana, sendo esta funçao aquela
casamento que viabilizem a combinação ao mais alto grau entre a que .~rmite reconhecer o sentido profundo de todos os encantos e
ordem e a liberdade. ~al objectivo em vista, tem de se atingir,
tanto no amor como no casamento, um estado de e~p.íri.t~e-
ferênciãpãêTfico, pelo menoS1rão-demãsiad~ento, apaixona- «fureur- mas «sentiment tendre et genereux». Também ]oseph Droz, Essai sur
d~,~lativizando-se fortemente, refutando-se mesmo o velho7on- l'art d'être heureux, 1806, reedição, Amesterdão, 1827, p. 108 e segs. (113).
sc:i!:.9 de C!!!!0ur passion [5 Antecipa-se a crítica soci~lógica de uma 16cr Sénancour, op. cit., em especial Vol. I, pp. 104 e segs., 147 e segs., 153,
VoI. II, p. 29 e segs.
17Veja-se, por exemplo: Vol. I, pp. 37 e segs., 277 e segs. (com recurso à
12 De l'amour selon les lois premiêres (1808), citado na 4: edição, VoI. II, Paris, tradição literária).
1834. A respeito do autor e obra, cf ]oachim Merlant, Sénancour (1770-1846), 180p. cit., Vol. I, p. 148.
Paris, 1907, reimpressão, Genebra, 1970; André Monglond, Vies pré-romantiques, 19 De l'amour, op. cito _ um programa conscientemente delineado e versando
Paris, 1925. a reforma da instituição família.
13 Op. cit., VoI. I, p. 56. 20 Die Welt aIs Wille und Vorstellung, IV corno, capítulo 44 (Metaphysik der

*
14 «Sans quelque idée secrête de Ia plus vive jouissance de l'amour, les Geschlechtsliebe), citado de Werke, Darmstadt, 1961, Vol. II, p. 678.
afféctions les moins sensuelles dans leurs effets apparents ne naitraient pas, er 21 Schopenhauer, op. cito p. 702.
sans quelque espoir semblable, elles ne subsisteraient pas» (op. cit., VoI. I, p. 51). 22 Schopenhauer, op. cit., p. 682.
Iscr por exemplo B. Destutt de Tracy, De l'amour (uma parte dos Éléments 23 Especialmente em Desrutt de Tracy.
d'Ideologie, planeada mas não publicada no seu tempo), Paris, 1926, p. 17: não
CAPÍTULO XIV 201
200 AMOR E CASAMENTO
banalização d~or, contra o acesso generalizado ao ~or?..Qu
padecimentos, medos e necessidades, de todos.ns.eatusíasmcs efu-
.!er-se-á de pagar o respeito por um «grande amor» com uma pecu-
sivos 24.
--.,. liar incapaciaaae de deClsao, com a peraa>3esmo da grand00r-
,~ neste contexto de «ideologia» que o conceito de natureza do ma? 21 !9aavia, é através dãâíférenciação plena das famílias isola-
~ XV....!.IIse desagrega. O lugar de uma força que se impõe por ~ue se deslocam os fundãffiêÕ.tOsdadis~nibilidade que ~pro-
~t~.'p'!.~rio é ocupado pela matéria cientificamente investi€el, vam ~imensões ~mpre possíveis 28-:- Só agora se torna actual o há
civilizacionalmente codificada. A isto corresponde, decénios mais muito a]2arecidorpotivo: os amantes procuram o casamento (o casa-
tarde, uma espécie de sentimentalismo biológico ao qual Proudhon mento coincide com.Q.epílogo do romance). ~gora tem de ultrapas-
fornece formulações pouco claras, mas hábeis. A unidade entre amor sar-se a velha tese" segundo -ª- qualnão existia união entre amor e
e casamento é J2!.'es~postaenquanto unidade entre matéria e forma. casamen~o. O epílogo do romance não coincide com o fim da vida,
A reprodução da humanidade coincide com o objectivo funclOnal Tenta-se abreviar a semântica do amor romântico através da exclu-
deste arranjo, para cujo sucesso colaboram ideais: «l'influence de são de todos os elementos indicadores do que é ameaçador. Todos
l'ideal était nécessaire aux générations de I'humaniré- e «l'amour têm possibilidade e não apenas os heróis romanescos como D, Qui-
est done. .. Ia rnatiêre du mariage» 25,~ distinção fundamental reza xote, Ernrna Bovary, Julien Sorel de se transpor para o plano das
afinal assim: forma e matéria ou ideal e realidade. Como não é
--- --- necessidades imitadas. Assim nasce uma espécie de romantismo ,
ossível roma-artido no seio desta distin ão uer por uma quer ara o homem comum, que pode ser eventualmente satisfeito -'>-~
1: P.2,t outra parte, tal distinção exprime a unidade entre amor e ase
sexual e casamento, prescindindo de todas as diferenciações foã§is
vés do consumo de livros e fil!!}..es
-- «one of the few ng spots ~
in ãJi±€-flórmal1ybounded by the kitchen, the office and rhe gra~ "",
anteriores. O romantismo sobrevive portanto ainda às tendências <S ve» 29.~ fácil.sompreensão, realizável na imaginação, intelec- ~
;;Curaltst'~ e evolucionistas da.-S.egundametade do século ~-
mas com o prejuízo de todas as tensões profundas e sob a forma de
4 tualmente estéril e sem grandes exigências, Só poucos conseguem i,,
~, mas todos conseguem sonhar com isso 30. Essa espécie -\
um ilusionismoaparentemente sério, em breve exposto ao desrnas- de romantismo para gente comum surge, além disso, ao longo dos ~
caramem;;-26 -- -- -
condicionalismos normais das carreiras profissionais, como subja-
S,:rá o romantismo afinal apenas a última revolta contra a cente a uma sociedade dominada pelos mercados e organizações,
tornando assim o amor e o casamento acessíveis enquanto modos
24 Segundo Darwin, tal pode ser igualmente repetido e elaborado de um
modo evolucionista e neste sentido estritamente científico. Veja-se, por exem-
27 É neste sentido que pode ser lida a capacidade de acção de Frédéric
plo, Max Nordau, Paradoxe, Leipzig, 1885, p. 273 e segs.; ou Gasron Danville,
Moreau, em Éducation sentimentale, de Flaubert. Constituiria uma interpretação
La psychologie de I'amour, Paris, 1894: amor - no sentido de uma «systernatiza- ;~ ousada o facto de uma educação (evolução pessoal), à qual não se chega de modo
tion exclusive er consciente du désir sexuel- - como forma final de diferencia-
algum no romance, ter agora de passar por um relacionamento entre amor e

-,
ção evolutiva do processo de reprodução.
dinheiro e o facto de isto mesmo tornar igualmente impossível tal educação, pois
25 Formulação de Pierre ]oseph Proudhon, Amour et mariage, partes X e Xl:
';
o
De Ia justice dans Ia révolution et dans l'égiise, 2." ed., Bruzelas-Leipzig, (1865),
aqui o dinheiro (tal como sempre) não simboliza um motivo autêntico,
28 Cf. o artigo: Gesellschaftliche Struktur und semantische Tradition, in Niklas
Parte X, pp, 11, 10, C(,também a crítica do amor erroneamente idealizado que
Luhmann, Gesellschftsstruktur und Semantik, op, cit., Vol. I, pp. 9-71 (49 e segs.).
corrompe o casamento, op. cit., p. 48 e segs.
29 Francis E. Merril, Courtship and Marriage: a study in social relationships,
26E disto típico uma mistura de romantismo e anatomia, idealização, esté-
tica e selecção educativa: Henry T. Finck, op. cit., ou a mistura de poesia, Nova Iorque, 1949, p. 25.
30Harry C. Bredemeier/]ackson Toby, Social problems in America: costs and
fisiologia e «política do crepúsculo»: Paul Manregazza, Die Physiologie der Liebe,
casualties in an acquisitive society; Nova Iorque, 1961, p. 461 e segs., acentuam por
tradução alemã, 3." edição, 4: transcrição impressa, Iena, s. d., (I." edição 1854).
exemplo em que medida a passion pouco vale enquanto código de um compor-
Os sociólogos também estão unânimes, por exemplo, Lester F. Ward, Pure socio-
tamento autêntico. Cf. também relativamente aos dados franceses, Patterns of sex
logy: a treatise on the origin and spontaneous development of society (1903), 2." edição,
and loue: a study of the french woman and her morais, Nova Iorque, 1961.
Nova Iorque, 1925, pp. 290 e segs. e em especial 390 e segs.
203
CAPiTULO XIV
202 AMOR E CASAMENTO
romântico lança assim uma nova e dramática luz sobre o divórcio.
peculiares de ascenção que não permitem de igual modo pressu-
«The world that loves a lover does not love a divorcé ... He has got
por seja o que for e que são vistos como plenamente individuali-
what he wanted and found ir was not good for hirn» 33. O recuO das
zados.
barreira~osas, morais, Qolíticas e familiares dirige a condena-
as será suficiente uma simples banalização? Quando o amor
ção Social para a própria pessoa~o divorciado. Já não é possível de-
tem de ser continuamente~tituclOnahzado enquanto ideal, com
fender uma segregação ostensiva, todavia é impossível que a própria
o objectivo de fo!nec<;.L.u.m2cobertura social ao comportamento
pessoa detenha uma imagem favorável: ela sabe que os outrOS sabem
inverosímil e de o preparar psicologicamente? Será que a comp-;ra-
que foi ela própria quem provocou tal situação. A culpa residirá
ção entre ideal e pessoa nãô ãContecefa~COm0-üffiã-~-;;ag~
eventualmente numa falsa orientação ideológica pelo «amor român-
típiCa desta última? Quando um código se especializa em permilli
tico». A aceitação de tal facto despoleta a procura de outros fun-
que um comportamento pareça normal, manter-se-à ainda válido
damentoS para a relação íntima duradoura. A velha (por exemplo,
quando o comportamento se renormaliza sob a influência de verda-
puritana) ideia de «companheiros para a vida in:;i.!:~.~~ce, sem
deiros condicionalismos psíquicos e sociais? Redescobre-se final- que dela nos recordemos, sob a designação drlompanionshiPll éama-
mente a velha incompatibilidade enquanto problema no seio do ~ ~ o matrimónio não se procura u~ndo idear, e1evã-
casamento: como desilusão precisamente face às ex ctativa bre do a qualidade de irreal e muito menos uma efectivação permanen-
as quais se un amentou o casamento. E bem possível que (em
te CIõSSentimentos passionais, mas uma-base 'para conrpreeenGer e
especial) os homens se encontrem expostos a estas desilusões, sem-
realizar em conjunto tudo aquilo que é importante para a pessoa.
pre que acontece o que Madame de Stãel presumiu: a imaginação Enquanto na primeira metade deste século, a literatura de entre-
substitui o vazio nas ligações afectivas 31. Todavia, a sociologia es-
tenimento ainda concretiza, intensifica, estandardiza a tendência,
peculou sobretudo acerca do !acto reãf de um tal choque com a
visando a diferenciação plena de um complexo semântico reduzido
realidade ameaçar o casamento iniciado como romance 32. O amor
a poucas características 34, parece que o trabalho de profunda re-
flexão sobre o código introduz já a mudança radical. Além disso,
31 Cf. De l'influence des passions sur le bonheur des individus et des nations, op. cit.,

p. 132; os resultados das investigações anteriormente introduzidas (nota 6) confir- interesse por tais comprovações. Cf. J. Richard Udry, The social context of mar-
mam isto mesmo. De um ponto de vista sociológico, a diferença entre a infecção riage, Filadélfia, 1966, p. 192; Ernest W. Burgess/Harvey J. Locke/Mary Mar-
do amor romântico no homem e na mulher deve relacionar-se também com o garet Thomes, The family: from traditional to companionship, Nova lorque, 1971,
facto de o estatuto social do homem não se modificar normalmente através do p. 272 e segs. De resto, também a lógica através da qual esta opinião argumenta
casamento, tendo por isso razões para controlar através de considerações adjacen- não é de todo convincente. Quem contrai matrimónio por razões bem pondera-
tes com quem pretende empreender a fuga para os terrenos do romantismo. Ver das, não está completamente imune a desilusões; encontra-se até numa situação
a este respeito Zick Rubin, Liking and loving: an invitation to social psychology, muito mais favorável que a do romântico, a fim de poder verificar tais desilu-
Nova lorque, 1973, p. 205 e segs.
sões e compará-Ias com as suas expectativas.
32 Cf. Ernest R. Mowrer, Family disorganization: an introduction to a sociological 33 Willard Waller aborda o tema do divórcio através destas formulações
analysis, Chicago, 1927, p. 128 e segs.; Ernest W. Burgess, The romantic impulse _ ver The old love and tbe neu/: divorce and readjustment (1930), reimpressão, Car-
and family disorganization, «Survey», 57 (926), pp. 290-294; Merrill, op. cit.,
p. 23 e segs.; Paul H. Landis, Control of the romantic impulse through education, bondale, 1967, p. 3.
3 Cf. a investigação de R. W. England Jr., Images of love and courtship, in
4
«School and society», 44 (1936), pp. 212-215. Decisiva a este respeito foi a «Family-Magazine Fiction, Marriage and Family Living» 20 (1960), pp. 162-
descoberta do facto dos problemas funcionais da família moderna, em especial -165, com uma comparação da literatura dos EUA em 1911-1915 e 1951-1955,
as dificuldades de entendimento entre membros do casal, não constituirem um profícuo sobretudo em relação a 1) acaso (=desordem) no primeiro encontro;
mal civilizacional nem poderem ser consideradas um ónus para a sociedade 2) brevidade na duração da relação (=apenas o amor decide imediatamente); 3)
industrial, radicando-se antes de mais na própria autonomia do âmbito funcio- retirada de todos os outros compromissos de vida; e 4) revalorização proporcio-
nal, precisamente através da intensificação das expectativas despoletadas por tal nal ao estrato social através da transferência para estratos sociais mais elevados.
autonomia. É de sublinhar todavia o facto de, após 40 anos, se ter perdido o
CAPiTULO XIV 205
204 AMOR E CASAMENTO
as facilidades que permitem tal indiferença. Também não se trata
dados empíricos mostram que, .di,feretltemente do que acontece com
da distinção entre casamento e solidão com base na qual se infla-
a imagem fornecida pela literatura de entretenimento e o interesse
mou a fantasia, a ironia e a desilusão dos românticos. ~ distinção
por ela, o entusiasmo romântico não está muito divulgado nas ideias
que agora providencia a forma reside pelo contrário ao nível das
dOãillor e estes factQLreage~ralmente de um modo desmo-
~ ações sociais, nas quals o indivíduo pode ou não investir-se in-
bilizador sobre a semânti~a 35._ O que está na origem desta mu-
tegralmente. O sujeito individual só poâe garantir a maíõCj)arte
dag.ça? Numa afirmação, acidentalmente proposta, diz-se que não ~
das suas exigê~aqui está a novidade, apenas e so durante as
é possível combinar a tolerância crescente face às relações sexuais
re ações impessoais; em relações nas uais ele não pode comUnIcar
pré-matrirnoniais e o nivelamento amplo das distinções respeitantes
ara a em e S1 mesmo ou po e fazê-Io apenas dentro de reduzI os
às funções de ambos os sexos com as ideias de amor romântico 37;
r mites do respectivo sistema. Este condlcionalismo inclui até o de-
o romantismo pressupõe ascese, protelamento da satisfação. Tal é
senvo Vlmento do ró rio si-mesmo; precisamente o percurso no
possível, esclarecendo quando muito o declínio da plausibilidade
contexto a carreira escolar e pro lssional. expenencia da distin-
das ideias de amor romântico e não a orientação segundo a qual tais
ção, ao longo da qual o propno si-rtlesnm ganha forma, recebe uma
ideias devem ser transformadas enquanto meio de comunicação sim-
matiz específica através destes condicionalismos socioestruturais.
bolicamente generalizado.
A necessidade de um outro si-mesmo - e isto quer dizer: um
b. nova semântica da intimidade a desenvolver pode apoiar-se outro outro e um outro si-mesmo próprio - surge assim prufttn-
num factor que jamais marcou anteriormente conteudos slmbóltêõs amente marcacra:rãz parte da constitUIção da própriãidentiCl.llde.
deste modo: a distinção entre relações impessoais e pessoa.iJ.. Isto nãõ
Face aos acontecimentos proporCIonados pela revolução Indús-
corresponâe à velha distinção entre os que pertencem e os que não
rrial às camadas sociais burguesas, foi possível aceitar, no século
pertencem a um grupo e da qual nasceu a tradição philos/philia 38.
XIX, que esta questão dizia apenas respeito ao homem. Apenas
Não se trata de um agrupamento de pessoas natural e já existente,
este trabalhava fora de casa. Apenas este tinha de se debater com
no qual indivíduos ou grupos podem quando muito ser deslocados
as adversidades do mundo. Apenas ele estava directamente expos-
por via da mobilidade (secessão). O problema já não reside na
to à indiferença, à irreverência, à maldade do seu semelhante, cabendo
distinção entre amor religioso (em função de Deus) e secular (ne-
à mulher consolã-lo com o seu amor. «Le soir, il arrive brisé. Le
cessariamente egoísta). Ambos podem manter-se indeferentes aos
travail, l'ennui des choses et Ia méchanceté des homrnes on frappé
destinos e características pessoais do outro 39. Não se verificam assim
sur lui. 11 a souffert, il a baissé, il revient moins homme. Mais il
trouve en sa maison un infini de bonté une sérénité si grande, qu'il
35Cf. Charles B. Spaulding, The romantie loue complex in Ameriean Culture, doure presque des cruelles réalités qu'il a subies tout le jour ... Voilá
«Sociology and Social Research», 55 (1971), pp. 82-100. Ia mission de Ia femme (plus que Ia génération mêrne) c'est de
36A própria tendência continua a ser invesrigada e confirmada até aos mo-
refaire le coeur de l'homme 40.» A distinção antropológica entre
mentos mais recentes. Cf. B. K. Singh: Trends in attitudes toward premarital sexual
relations, «Journal of Marriage and the Farnily», 42 (980), pp. 387-393.
37Assim Merril, op. cit., p. 52; G. Marion Kinget, The «many-splendoured
tbing« in transition 01 «Tbe agony and the ecstasy» reuisited, in Mark Cook/Glenn 40 Jules Michelet, L'amour, Paris, 1858, p. 17. Igualmente (casamento como
Wilson (ed), Love and attraetion: an international conference, Oxford 1979, p. 251- ilha da felicidade, face a um mundo vulgar) já em Droz, op. cito (1806/1827),
-254. Enquanto investigação empírica, que poderia fundamentar este ponto de p. 108 e segs. Face a uma ideologia da família nos EUA correspondente às ca-
vista, veja-se Joachim Israel/Rosmari Elliasson Consumption society, sex roles and racterísticas «retreat», «conscious design» e «perfectionism», cf. também Kirk
sexual behavior, «Acra Socilogica», 14 (1971), pp. 68-82. Jeffrey, The lamily as utopian retreat [rom the city: the nineteenth eentury eontribution,
38Franz Dirlmeier, <l>IAOI: und <l>IAIA im oorbelieniscbenGrieehhentum, Diss., in Sallie TeSelle (ed.), The lamily eommunesand the utopian societies, Nova Iorque,
Munique, 1931. 1972, pp. 21-41, também in «Soundings» 55 (1972), pp. 21-41. Ver ainda para
39Tal como foi também claramente formulado, pelo menos no final desta o século XIX, Neil ]: ]wilser, Vicissitudes of loue and work in Anglo-Ameriean Society,
tradição. Veja-se a este respeito as notas referentes a Bourdaloue, p. 77 e segs.
CAPÍTULO XIV 207
206 AMOR E CASAMENTO

homem e mulher tem de ser sobretudo mantida à luz destas pre- deduzi da do interesse forte, e por assim dizer compensatório, pelas
missas de teoria da sociedade, levadas até ao extremo - antes de relações íntimas. A esperança e a expectativa de tentar encontrar
se desistir delas por completo. algo ~te ou de tentar satisfazer algo por realizar podêIll-oonsti-
Quando esta experiência básica da distinção entre relaçõesp~ssoais ruir-se como padrões, a que não possível corresponder ou apenas
e impessoais se torna um atrimónio universal, quando ela se reporta o é difIcilmente. Isto aindae finalmente válido quanCTõnãOestá
~9ualguer pessoa In ependentemente do_estrato~al e s~s- disponível qualquer semântica socialmente estandaraíZaoa, com base
pectivos, tal colocará necessariamente mais fundo o desejo de rela- na qual seja possível a avaliação das perspectiv~a regufafuen-
ções essoai$,de uma inte;-penetração inrer-hl.!m-;naJUai.s...co.oJ,plet"a, tação dos modos de comportamento próprios.
cons-olidan o-o igualrote de forma~i;irrealizável. Assim, não
se deIxam de-vêDfiéã:r lenamente referências- a uma economia de
escassez e ens (de a'uda mútua) e a uma moral com sentido
prático. Estes momentos, que comportam em si a ética da amiza e,
não perdem a sua importância; degradam-se todavia ao transforma-
rem-se em condições mínimas, não podem faltar. Uma vez que
estas exi ências ermanecem no âmbito das relações Impessoais,
pQgendo ser satisfeitas nessa condição, elas não po em constItuir o
ponto de partida para aquilo que se eSE.<:Ea dos outros durante as
r$-laçõ~pessoais. Os ideais de amor e de amizade nao pooem âlêan-
dorar-se em mais necessidades; não podem consistir em pretensões
exageradas a uma familiariedade com recursos escassos, ao sentido
prático da vida, à disponibilidade de entrega, ao espírito de sa-
crifício; mas em que consistirão então?
Pressupôs-se que numa sociedade, que oferece a cada pessoa um
ambiente altamente complexo, pleno de relações em constante mu-
tação, casamentos ou relações similares são cada vez mais intensi-
vos, uma vez que podem oferecer o apoio necessário à pessoa no seu
todo, pelo menos numa relação duradoura 41. As investigações
empíricas documentam também que famílias no seio de um am-
biente complexo e variável tendem mais para um vínculo interno
mais difuso e íntimo que famílias cujos papéis específicos se inse-
rem simultaneamente de forma rígida no ambiente 42. A estabili-
dade dos sistemas correspondentes não pode todavia ser facilmente

in Neil J. SmelserlErik H. Erikson (eds.) Themes 01 work and love in adulthood,


Cambridge Mass., 1980, pp. 105-119.
41 Cf., por exemplo, Warren G. Bennis/Philip E. Slarer, The temporary society,
Nova Iorque, 1968, p. 88 e segs, sobretudo com perspectivas futuras incertas.
42 Ver Elizabeth Bott, Family and social network: roles, norms and external
relationships in Ordinary Urban Families, 2." ed., Londres, 1971.
CAPÍTULO XV

E agora? Problemas e alternativas

É mais difícil reduzir a uma fórmula fundamental a situação da


actual semântica do amor que a anteriormente existente. A recusa
e a continuação velada de ideias determinadas pela tradição com-
pensam-se mutuamente. A forma do código parece ter passado do
ideal acerca do paradoxo pm0problema, sendo este então simp-Ies-
mente: encontrar um companheiro destinado a uma relação íntima ~
e ser capa-;-deocomprometer. O cepticismo face aosenrusjasmos
de qualquer espécie está assõfiãdo a atitudes expectantes, exigentes
e altamente individuilizadas. A alternativa correspondente ao cãr-
tar de relações e ao permanecer só é aceite e entendida seriamente
enquanto plano de vida. Numa das poucas tentativas de interpre-
tação adequada que é possível encontrar, Ann Swidler defende
ser possível verificar, no seio das exigências paradoxais do amar,
uma deslocação em direcção a uma maior compatibilidade com a
auto-realização individual '. Segundo Swidler, esta já não é vista
como problema exclusivo e profundo do amor, tal como era vista à
luz do exagero juvenil, mas antes como questão relativa à vida
quotidiana do estado adulto, que diz respeito a compromissos,
respectiva assunção e renúncia ao longo de toda uma vida.
A fim de podermos perceber a transformação dos quadros de
problemas que se apresentam, ainda que de um modo imperfeito,
temos de partir de novo de uma mudança socioestrutural. Faz par-
te de um conhecimento geral da sociologia o facto de as relações
quotidianas das comunidades nas ordens sociais antigas não conce-
derem qualquer espaço às relações íntimas, bem como o facto de o
controlo social, mas também do reassegurar social, estar intima-

I Veja-se Love and adulthood in american culture, in Neil J. Smelser/Erik


H. Erikson, Themes o/ work and love in adulthood, Cambridge Mass., 1980,
pp. 120-147.
CAPÍTULO XV 211
210 PROBLEMAS E ALTERNATIVAS

mente ligado ao comportamento, concedendo ao indivíduo isolado de apenas estar disponível a esfera da comunicação pessoal - com
o número suficiente de oportunidades consensuais. Companheiros base na qual se gostaria de manter a unanimidade face ao amor
envolvidos em relações mais próximas já tinham anteriormente recíproco _ enquanto esfera de resolução dos conflitos face às
travado conhecimento na maior parte das vezes, já se conheciam diferenças de opinião, referentes às acções concretas, à concepção
de outras situações e envolver-se numa relação mais próxima não dos papéis, à avaliação do ambiente, à imputação de causas, às
terá frequentemente significado nenhum aprofundamento essencial questões de gosto, às valorações. Tal ficar-se-a a dever todavia ao
deste conhecimento, nenhuma aceitação de esttutura profunda facto de a conclusão de opiniões ou modos de comportamento estar
da vivência do companheiro. Não era muito viável o incremento simultanemente demasiado perto deste último nível, precisamente
de expectativas relativas à harmonia pessoal; talvez nem a «esfera por este contexto ter de ser garantido pelo amor.
da alma» estivesse sequer patente na sua correspondente dimensão, ~imeira resposta que a sociologia dos anos vinte e trinta
uma vez que a sociedade nem sequer oferecia quaisquer possibili- procurou obter fOI simplesmente: programação errada. O amor
dades de autoproblematização. O factor mais importante com vista romântíCO-não chega até ao casaJIlel!!o 5. ~sta explicação desapare-
à harmonização no seio das relações pessoais devia estar em conso- ceu nos dias de hoje, surgindo uma outra questão em seu lUgar:
nância com as relações exteriores que apenas precisavam de ser reu- saber se a causa do problema não residirá na «regressão socia!», na
nidas nas amizades ou na vida levada em conjunto. liberalizaçã~ das relações íntimas com vista a ~~~ config~r~ão
A autonomização das relações íntimas, aquilo que mais tarde pessoal e peculiar. Caso assim aconteça, então estaremos perante
Slater descreve excelentemente como «regressão social» 2 , origina um diagnóstico geral e típico, segundo o qual a socieClãTe ms>êJerna
uma situação completamente nova. O apoio externo é desmantela- deixa de sentir as suas conquistas apenas como desiderato J.2ara
do, as tensões internas agudizam-se. Agora, a estabilidade tem de passar a experimentá-Ias como realidade. Para a sociologia isto significa
ser favorecida a partir de recursos puramente pessoais. E isto no que que ela terá de estabelecer uma separação clara entre análise socio-
simultaneamente se refere à entrega ao outro! Caso estabeleçamos estrutural e análise semântica e-1nLlusiveeleser mais cuidadosa com
novamente uma comparação histórica, verificaremos que os france- hipóteses causais.
ses achavam pura e simplesmente impossível uma relação amorosa A semântica do amor, cuja evolução observámos, introduziu e
estável, por volta de 1700. Os moralistas ingleses verificaram na acompanhou a diferenciação plena das relações íntimas, em primei-
mesma época um acréscimo de amor e ódio no casamento, em ro lugar em oposição ao casamento como instituição social, depois
simultâneo com uma sensibilidade crescente 3. Na investigação mo- com vista ao casamento como algo fundado pelos próprios amantes.
derna, continua também ,a confirmar-se a apetência especial para o Este vínculo à forma do casamento parece ter-se desarticulado. Desde
conflito no seio das relações íntimas 4. Tal ficar-se-a a dever ao facto há muito que a colaboração dos pais se teve de restringir a meios
mais informais de preparação previdente de contactos ou de impe-
dimento dos mesmos 6. Este controlo parece ceder cada vez mais a
2 Philip E. Slater, On social regression, «Arnerican Sociological Review» 28 critérios de consideração auto-impostos. Todavia, o horizonte tem-
(963), pp. 339-364. Atente-se em especial na inversão da orientação das ques- poral surge como substituto do controlo social. Envelhecemos e
tões de Simmel: não o ingresso de terceiros na questão, mas antes o seu retorno
submetemo-nos à pressão - uma pressão social generalizada! -
das funções de controlo e garantias de consenso.
3Comprovação em Wilhelm P. J. Gauger, Gescblecbter, Liebe und Ehe in der que consiste em ser-se compelido a encontrar ou então a aceitar
Auffassung von Londoner Zeitschriften um 1700, Diss. Berlim, 1965, p. 300 e segs. um companheiro adequado ao casamento. Estes deslocamentos
4 Cf. apenas Harriet B. Braiker/Harold H. Kelley, Conflia in the development continuam a dizer respeito ao símbolo através do qual a sociedade
of dose relationships, in Robert L. Burgess/Ted L. Husron (eds.) Social exchange in
developing relaiionsbips, Nova Iorque, 1979, pp. 135-168 (é sobretudo digna de
nota a comprovação do facto de aumentar o embrião da conflictualidade sempre 'Cf. as indicações presentes no capítulo XIV, nota 32.
que o companheiro intensifica as suas relações). 6 Cf. as indicações presentes no capítulo XIV, nota 7.
ctfi-l."'.L-o. r.(" \.ôoI'V

a
212 ~ t4 )
PROBLEMAS E ALTERNATIVAS CAPiTULO XV _l> 213
põe à disposição a exclusividade consenti da e protegida. Eles liber- ~derão as relações íntimas libertar-se -e tornar-se auto-regula,Ção
tam este símbolo disponibilizando-o quase autonomamente, o que autónoma? Poaerão tais relações íntimas manter-se socialmente
não pode ficar isento de consequências, o que é válido sobretudo inconsistentes, ligadas ao amDIente apenas através de processos qüe
segundo o seguinre ponto de vista: ~ casament~ qual se conce- não correspondem à sua própria essência, ~o seu modus especial
de semelhante autonomia !!.ãoo~rece defesas suficientes contra'õpe_ de tratamento da informação?
figo princjpal de ~ualquer relação íntima, a respecti instabilidade. Poderíamos igualmente associar a esta uma segunda questão:
Perante esta situação, deixemos por agora de Ia o uestão adequar-se-a uma semântica como a do amour passion, através da
relativa à forma e à atracção do casamento e dirijamos a nossa qual se documentou e impôs a diferenciação plena, ao tratamento
atenção para a questão das relações íntimas estabelecidas social e dos quadros de circunstâncias assim originados? Uma coisa é antes
autonomamente. Pode tratar-se de casamento, mas também de tela- de mais favorecer e tornar plausível o inverosímil, outra suportar
ções extramatrimoniais cada vez que estas tentam pôr em prática isto mesmo. Já no século XIX se hesitou entre a intensificação exces-
exigências especiais relativas à intimidade.
siva e a trivialização, tendo sobrerudo nos dias de hoje de se tornar
Por muito que se fale de intimidade, relações íntimas e temas a codificação da intimidade e respectivas orientações acessível ao
semelhantes, não encontramos um conceito teoricamente abran- homem vulgar. Parsons fala de «generalized accessibility to an "atti-
gente. No máximo, é possível sintetizar aquilo que é subentendido tudinal" entity», mediante o concurso de uma semântica do «afec-
~ enquanto interpenetração inter-humana elevada 7. Isto é: ao inter- to» 8. Para isso, será ainda necessário fazer uso de uma semântica
-relacionarem-se, ~pesSOas reduzem o""limiar de reIeVfu1Cia,o-q~e da pa~do excesso, da extravagência, da irresponsabilidad-;- para
tem como consequência o facto de aquilo que é relevante para um com o sentir próprio, ou apenas de uma semântica do entusiasmo
também o ser quase sempre para o outro. ASSIm sendo, as relações e -a;;-fêlicidade inverosímil?
comunIcatIvas tornam-se maIS densas. Caso tomemos em conside- Em primeiro lugar, dever-se-a comprovar a existência, desde há
ração o que é típico da aceitação da selecção que abordámo; no longa data, de uma confusão relativa ao contéifdo semântico de
~o 11, então é possíveTCarãêterizar ainrimidade atrayé.Ld.o «romântico/romantismo» - tanto quando o sentido se reporta ao
facto de a vivência (selectiva), e não o agir de um compan~itQ,...S.eJ: próprio romântico, como quando com isso se refere simplesmente
já relevante em termõSde agir para cõ~ o outro . este respeito,
.b-
a representação romanesca do amor. Caso atentemos, por exemplo,
consiaeram-se lÕ]jõíãõClassIcismo francês: não existem bagatelas no nos itens utilizados pelos americanos com vista à constituição de
'!,mor; sublinhilt-º-Sumprimento ~ dever é iocof!!Ratível com o escalas através das quais se pode aferir o amor romântico, então
amor; não se deve 'realizar apenas o que é exigido, deve exIStir subentender-se-á com isso, nem mais nem menos, o sentimento
antecipação. O idealismo alemão teria dito: apro.Qriar-se da relação correspondente a uma existência de mútua entrega 9. Já nada resta
que o outro mantém com o mundo significa: fruir ~iuntam~te. da tradição do amour passion. A distinção que é válida, diz apenas
Tam~ o alto grau de verbalização da rel~çãoymorosa demonstra
esta tese. Os amantes podem manter uma conversa interminável
com o
outro, uma vez que tudo o que é vivido é digno ~er 8 Talcott Parsons, Religion in post-industrial America: the problem of seculariza-
tion, «Social Research», 41 (974), pp. 193-225. Cf. também do mesmo autor,
comunicado, pois encontra ressonância comunicativa.
Some problems of general theory in sociology, in John C. Mckinney/Edward A. Tirya-
Impõe-se a questão comum a todos os mewsoe comunicação kian (eds.), Tbeoretical sociology:perspectioes and developments, Nova Iorque, 1970,
simbo icamente genera Iza os: será possível i erenClar p enamente pp. 27-68 (50 e segs.).

-
os correspondentes s~llli-s ;;;Cíãís? .ECOm que consequênciãS? 9Cf. Zick Rubin, Measurements of romantic love, «Journal of Personality and
Social Psychology», 16(970), pp. 265-273. Aparentemente diferenciado (toda-
via sem dados suficientes relativos ao próprio item), L1ewellyn Gross, A belief
7Veja-se por exemplo: Irwin Altman/Dalmas A. Taylor, Social penetration: pattern scale for measuring attitudes toward romanticism, «American Sociological
the development of interpersonal relationships, Nova Iorque, 1973.
Review», 9 (944), pp. 463-472.
214 PROBLEMAS E ALTERNATIVAS CAPITULO XV 215

respeito ao acesso às relações sexuais: quer com ou sem vínculo tivamente simples de manusear e que diz respeito à sexualidade
emocional 10. O mecanismo simbiótico das relações sexuais é assim enquanto indicador secreto do que se deseja. ~o que seja possível
não só incorporado no código, ele coincide com «a própria questão» renunciar à sexualidade como mecanismo simbiótico! Mas a tema-
acerca da qual é possível ter várias orientações cuja distinção define tização da sexualidadee ou o tratamento de temas, representativos
então o «amor romântico». da sexualidade dentro de contextos semânticos, já não possuem
N uma primeira -ªbordagem,---ª,ºotam..os o contras.te-surpr-eendetlte ~lmediata à questão, já não sugerem tão claramente
de exigências modestas referentes aQ....sentido - tem todavia de ser q~nesta senda, é possível satisfazer a necessidade de comunica-
do sentido da vida - com a situação socioestrutural profunda e a ç!o íntima. Quando se trata de mundo à nossa volta, a sexualtdade
inevitabilidade do manuseamento autónomo das relações íntlillãs já não sImDoliza bem a interpenetração. Daqui resulta sobretudo
plenamente diferenciadas. Talvez a declaração amorosa..resida.....exac: insegurança face à questão que aborda o significado a atribuir ainda
tamente aí, talvez que a evolução caracterizada
ção plena, autonomização,
.
regressão social torne demasiado arrisca-
-
como diferencia- à diferença entre sexos, quando se parte da questão da intimidade,
tal como ela nos surge hoje em dia. ~ diferença entre os sexos, que
do sobrecarregar o processo precário da selecção de expectativas s~ destacou até agora em todos os códigos-de-amor e em torno dos
também ainda com modelos, exigências, formas linguísticas cultu- quais foram construídas e mcrementãcIasãssimetrias, tendem a des-
ralmente elevadas. Para além disso, verifica-se neste processojjrn ~anecer-s_e. Mais importante que o dinheiro foi para o casamento é
acresctmo-cIa complexidade inerente áS-'2ossibili~ e perguntarmo-nos_hoje: que fazer com o que restade uma distinção
com istotãffiliérn aa complexidade do ambiente relevante. Quando ilegitimável? -- --
nos apercebemos que, quer l2ara o ego quer l2ara o alter, se ttãtada ~À liberalização das relações sexuais sucede sobretudo
._- o--------
facto de
_ pelo menos no romance - a condicionalização ter de funcionar
questão relatiy.a.àsJelações entre pessoas e ambiente, de uma questão
ode ser simplesmente fixada através da descrição de ao contrárIo. A prolongada ansiedade anterior à.satisfução torna-se »
características pessoais desejadas, torna-se dIfícIl Imagmar soIuçoes ridícula. A entregãàsrefações sexuais..gera l2elo contrário marcas e o

ao nível de uma semântica transmissível de geração em geração vínculos CU:!U0nduzem à infelicidade. O carácter trágico já não
!2fla tradição. Não há dúvida que termos singulares como «cama- reside no facto de os amantes.não se_encon1rarem, mas no facro de
radagem» não passam de indicações insuficientes, tanto mais que as relações sexuais gerarem amor e no facto de não ser 120ssível vivér
têm origem numa.esfera que está hoje em dia amplamente desper- segundo ele nem libertarmo-nos dele 12. Encontraremos também
s~e;;WS de nos perguntar até se e em que mediãapõâRá reacções a esta nova situação na literatura especializada que se ocupa
tal tema ser.scbretudo passível de trat"ª-mentQ.literário[Falta aque1ã directamente de temas sobre a sexualidade. Tais relações apostam
tensão entre sexualidade e moral, entre coisas necessariamente pri- para uma outra direcção 13. As intenções patentes nesta literatura
vadas e públicas, que tornaria possível publicar algo que teria de passaram quase sem excepção da admoestação, da inibição ao acon-
ser realizado em privado, com exclusão do carácter público. Falta o selhamento, ao apoio, ao encorajamento. A última tentativa em
interesse assim implicado pela aprendizagem e pela vivência con-
junta suplementar 11. Falta aquela função directa ou indirecta rela- 12 Cf. o diagnóstico duplo em Robert C. Sorensen, Adolescent sexuality in
contemporary America, Nova Iorque, 1973, p. 108 e segs.; amor como condição
IODeste modo distingue Morron M. Hunt, Sexual behaviour in the 1970's, obrigatória face à sexualidade e vice-versa. Nesta configuração também as rela-
Chicago, 1974, entre dois vecrores na ética sexual: liberal-romântica e radical- ções homossexuais são acessíveis à literatura, chegando mesmoa ser capazes de
-hedonista, De igual modo Joachim Israel/Rosmari Eliasson, Consumption society, introduzir este efeito. Cf. por exemplo James Baldwin, Giovanni's Room, Londres,
sex roles and sexual behavior, «Acra Sociológica», 14 (1971), pp. 68-82, estabele- 1956. '
cem as diferenças numa investigação empírica. 13 Cf. todavia, mais como paralelismo da experiência romanesca, preterindo
II Cf. face a ambos os pontos de vista respeitantes à literatura no âmbito do porém fortemente a relação física, Stanton Peele, Love and addiction, Nova Ior-
amor romântico, Auberr, op. cito que, 1975.
216 PROBLEMAS E ALTERNATIVAS CAPITULO XV 217

grande escala que a época vitoriana fomentou, com o objectivo de uma oportunidade e, tal como acontece no desporto, retornar a um
negar tanto quanto possível a sexualidade, é ainda apenas tratada comportamento físico definido socialmente enquanto razoável e evi-
com ironia 14 e vista como uma via errada que mal se conseguia tando as imprecisões de sentido em todas as restantes esferas da
ainda entender. t'Jo lugar de uma semântica médica, surge em vida. Acentua-se mais do que nunca a igualdade entre os sexos,
~rte um esforço clínico terapêutico, visando a satisfação plena do perdendo assim a validade as diferenças consideráveis respeitantes
1\~ orgasmo 15, causado!a _dos seus próprios _paradoxos 16; em parte, às vivências sexuais do homem e da mulher. Do acentuar a igual-
9-" f 1 uma se>m~~esporto cujo reconhecimento se torna todavia,
<,

pouco conscientemente, mais claro. A juventude é simbolizaClãpeIã


actividade física - tanto sexual como desportivamente. Trata-se
dade resulta paradoxalmente que o acontecimento sexual e a se-
'!!?-~ca do amor dele representativo são inrerpretados segund~ o t-
podo masculino. A sua vivência sexual e comportamento assume a
do esforço e do aperfeiçoamento de tal esforço, mas não do esforço prerrogativa da forma marcante, do acontecimento espectacular,
que se é obrigado a produzir, antes daquele que se produz livre- do princípio e do fim claramente perceptíveis. Adequa-se muito
mente. O melhoramento das capacidades exige por seu lado em- melhor, enquanto ponto de partida para terapias centradas n.o.orgas-
penho, atenção e training, como acontece com todo o tipo de esforço mo. Também as ideias relativas à capacidade de diferenciação plena
físico. A....!.ealizaçãoplena está vinculada à diferenciação ple~s- docornportamenro sexualmente orientado parecem ater-se ao ho-
paço-temporal, resultante dos acontecimentos quotidianos. A rela- mem e não à mulher. Quando uma mulher ama, diz-se, ela ama
ção com õC(;"~panheiro tem de ser «fair», tem de se lhe conceder para sempre. O homem tem que fazer entretanto .
.A esfera d.o.Q!ivad.otende ~ud.o isto,~p.osiç~i- =:»
gências sociais, para a diferenciação plena e para a distensão (também ) ~

14Veja-se o (de resto bastante a propósito) título em Ben Barker-Benfield, isto de resto um símbolo «masculjgo»). O que quer a literatura
The spermaticeconomy: a nineteenth century view of sexuality, in Michael Gordon (ed.), quer o cinema oferecem, no que diz respeito à capacidade de exal- t<1
'"
The american family in social-historical perspeaive, Nova Iorque, 1973, pp. 336-372; r-, ---'- • '<
ração com o objectivo de salvar a existência própria, nunca mais s ") '\
ou o «Respectable», escrito completamente em maiúsculas, in Peter T. Cominos,
Late victorian sexual, respectability and the social system, «Inrernational Review of decrescerá. Todavia, permanecerá a necessidade de intimidade, man-
Social History», 8 0%3), pp. 18-48, 216-250. Face à falta de tentativas expli- ter-se-á a necessidade de inrerpenetração inter-humana. E com isto ';L
cativas, cf. p. 4, p. 118. também a necessidadede preconceitos organizativos, de uma semântica
Il Em especial: William H. Masters/Virginia E. ]ohnson, Human sexual res- cuidada, de forma e sobretudo de oportunidade de aprendizagem.
ponse, Bosron, 1966; dos mesmos autores, Human sexual inadequacy, Boston, 1970.
Porém houve uma deslocação d.os p.ont.osde referência necessários
Cf. a este respeito o receituário de Persiflage Reich em Pascal Bruckner/Alain
Finkelkraut, Le nouveau désordre amoureux, Paris, 1977, p. 15 e segs. Caso se acres- à c.odifi~i.o de comunicação am.or; e de um modo tão
cente literatura mais antiga de tendência técnico-erótica - por exemplo, L. van radlêaI que mal e p.osSíveiafirmar se os temas da semântica ãô
der Weck-Erlen, Das goldene Bucb der Liebe oder die Renaissance in Gescblecbtsleben: amor Qodem ser aceites e quais os que p.oaem continuãraSer
_ __ _ _ __ ---:>o

ein Eros-Kodex für beide Geschlechter, impressão privada, Viena, 1907, reimpressão, \
utilizados. ..,
Reinbek, 1978, não deixaremos sobretudo de pôr em dúvida se a inovação
Se compararmos, por exemplo, c.om a época entre 1780-1830,
conduz de facto a algum lado. ~ ~~
16Deste modo, por exemplo, a representação do «Specrator role» com base não é possível descortinar a radicalidade da transformação na radi-
<;j
em «Fears of perforrnance», in Mastersl]ohnson, op. cit., (1970), p. 10 e segs., calização dos temas, no incremento da idealização, na crítica, etc.
p. 65 e segs., p. 84 passim. Enquanto o global da terapia transporta temas sobre Ela resulta da evolução socioestrutural, consistindo finalmente no
o desempenho correcto e incorrecto para a consciência (ou então mal pode evitá- facto de a sociedade moderna radicalizar as distinções entre as rela-
-los), verifica-se um pesado obstáculo ao desempenho aquando da daí resultante
ções pessoais e impessoais. Pode-se afirmar, sem exagerar muito,
observação do próprio e do outro. Pensa-se com alguma nostalgia na ironia
romântica e na «ponderação», completamente inimaginável enquanto co-fruível,
que tal distinção é experimentável em cada relação social: as rela-
enquanto estado reflexivo do prazer; ou então também na velha problemática do ções impessoais são «apenas» relações impessoais. As relações pes-
confessionário: advertência e simultaneamente incentivo. soais são sobrecarregadas com expectativas de uma essência sincro-
218 PROBLEMAS E ALTERNATIVAS CAPITULO XV 219
'7

nizada com a pessoa, o que lhes provoca a ruptura frequente. Tal mente ainda lembrado que anunciara: gestos exteriores podem sus-
apenas fortalece todavia a procura posterior e permite que se citar sentimentos correspondentes para si próprio.
saliente com apenas maior clareza a insuficiência de relações impes- Outros pontos de partida permitem-nos discutir acerca do modo
soais, como é possível iniciar uma comunicação pessoal durante situações
Diferentemente do que aconteceu anteriormente, a distinção públicas e perante a curta duração do contacto aqui esperado.
entr;Pessoal/impessoal tõffia-se distinção constitutiva, isto é, toriia-se A capacidade de falar sobre si próprio parece ser um pressuposto
naquela CliStíiiÇãó que, no sentido da definição de B;te"son (<<diffe-
o ;:ence that makes a difference»), concede um valor in{õiiiiativo às in-
formações.-SêiTl estã distinção, não s~~ria obter do comporta-
para o início de uma relação íntima; ela estimula o visado a falar
também sobre si próprio. A tendência para o fazer pode em grande
medida ser condicionada psicologicamente; mas a sua efectivação
~ento dos outros qual9.u~ informação relativa à esfera íntima; e está também dependente de situações sociais. Acresce ainda o facto
~~-se-ia dificilmente jeterminar ~tido do agir próprio sem de o código do amor descrever uma relação em exclusivo, bem
a orientaçãq por esta distinção _sempILque se tiver de tramrcte como o facto de se reconhecer apenas qualquer progresso na direc-
amor (ou de equivalentes semânticos). A este nível fundamental, tal ção do amor, sempre que se comunicam aos outros momentos da
significa já, d~ um modo prático, que surgem dificuld;des Pr6@as exclusão. Ora é isto que todavia é quase impossível em situações
do começo, tanto no que respeita ao viver como no que respeita ao impessoais e públicas; uma vez que quem, nesta situação, opta por
agir, porque se tem de ve~ e eX.Eress~~lg~ d~ interessant~ue comunicar sobre assuntos pessoais ou até mesmo íntimos, respei-
se encontra derQeSSõã]em situações ue estã()primcimmente orde- tando o ritmo estabelecido, revela que continuará a proceder do
nadas de acordo com expectativas im essoais, sem ~e l2.ªraisso ~e mesmo modo, por assim dizer, para com quem quer que seja 19.
disponha de formas de abordagem (galanterie) previstas Rela socie- Destacar sob tais circunstâncias os aspectos sensuais e sexuais do
dade@. .c _._-
interesse facilita a preparação dos contactos também em situações
Tal poderia significar que hoje em dia, diferen~nte do ~e públicas. Tal destaque assinala todavia compulsivamente uma certa
se supunha ahterlormenre,-üma compreensão profunda do amor exclusividade característica da disponibilidade para estabelecer
dificilmente se adequaria ao começo e fase de abordagem d~-uma contactos.
tela ão íntima. -rara ésteéIeito seriam mais adequadas asideT;s de Resta ainda esclarecer qual o teor que, sob condições modernas,
troca ..9..uesão focadas no código do verdadeiro amor. Torna-se as formulações semânticas podem apresentar a fim de poderem
então evidente em que medida o altruisrno e a atenção pelo outro reivindicar valoração e duração. As distinções constitutivas da tra-
se podem instalar como motivo dominante numa compreensão dição (amor sensual/amor não-sensual, bem como a distinção plai-
recíproca mais alargada e condensada. Será porém esta compreen- sirlamour abrangedora desta última distinção) 20 estavam semântica-
são menos plausível que a codificação da formação espontânea da mente mais fortemente marcadas através de valorações sociais gerais
paixão? Para além disso, as relações baseadas no romantismo não - quer no que respeita à forma da idealização quer no que respeita
estariam muito distantes, sobretudo num romantismo apenas rara- à forma de paradoxização. Estas valorações concederam também,
todavia por isso mesmo, à distinção constitutiva um maior valor
17Agui o velho tema da inexplicabilidade e instanraneidade do início da informativo com vista à estruturação dos temas e respectiva orien-
relação amorosa de nada serve; prendia-se com o como, não com o facto d~o. tação no âmbito da afeição pessoal. A distinção constitutiva era si-
19 ora carece-se de uma semântic~ que se oriente pela clis.tin.ªº-~ícJ-o e
nfuL início.
18Assim Ted L. Husron/Rodney M. Cate, Social exchangein intimate relationships, 19Cf. Sherry Cavan, Liquor License: an ethnography of bar behavior, Chicago,
in Mark Cook/Glenn Wilson (ed.), Love and atraction: an international conference, 1966; Zick Rubin, Liking and loving: an invitation to social psycbology, Nova
Oxford, 1979, pp. 263-269. Cf. também Robert L. Burgess/Ted L. Husron (ed.) Iorque, 1973, p. 162 e segs.
Social exchange in deueloping relationships, Nova Iorque, 1979. 20 Cf. capo VIII.
CAPiTULO XV 221
220 PROBLEMAS E ALTERNATIVAS

soais espera para si en~nto reconhecimento do seu si-mesmo e o


multaneamente informativa. Isto modificou-se.jf quase impossível
que gostana de saber realizar acerca de si próprio enquanto discurso
extrair linhas _vectoriais da distinçã~soal/i.rr::pessoal - os enga-
livre, não diz respeito ao ideal, mas ao factual; não à representãÇãO
nos devem-se aqui talvez à ambígua situação actual - com vista
da humanidade, partindo de um-ponto demta, mas àqullo que
a uma codificação da esfera da intimidade. J'al distinção é por um
acontece simultaneamente enquanto vida e que gostaria de ser
lado universalmente relevante, sem ~e est~a limirada à tríade clás..Eca
compreendido com base no seu sentido. A questão diz antes respei-
juventude/beleza/riqueza; é válida para todas as situações absoluta-
~o ao modo como_~~e é diverso-pode ainda surgir como_uno
mente imagináveis, enquanto for considerada à luz da perspectiva
% não ao modo como esse algo consegue preencher «o sentido da
jnerente à interpenetração inter-humana.J:or is~ mesmo, ela n~
vida» enquanto «todo»; hoje em dia não designamos o eu do etipõr
.rnenciona ainda, .eorém, sob que formas e q~regras reciproca-
si-mesmo transcendental, mas por identidade 22. O c~eitO"rlão
mente aceites, com base nesta distinção, podem os sistemas ter
possui q~er relevância lógica, mas antes simbólica: ele ilustra
origem, com vista à esfera da intimidade: TaITilié~ não ~vel
difi~ldade Eresente numa sociedade, na qual as relações são pre-
encontrar uma resposta a ega questão, ao aplicar a distinção cons-
dominantemente impessoais, para encontrar o -.20nto através do
titutlva,)sto é, também não de um modo individual e pessoaf põls
qual é possível experimentarmos e agirmos corno un~e. O eu do
a Pr6pria distinção não garante, dificultando antes em situaÇões
eu não coincide com a objectividade da subjectividade no sentido
concretas, exactamente a opção pela intimidade. --
transce'õaental-teófico-:--O eu do eu é o resultado de um processo
É possível apreender igual transformação numa segunda obser-
auto-selectivo; estãndOexactamente por isso, através de outros, depen-
vação, formulável enquanto tri!!...ialização do si-mesmo. O amor já não
~Oeuma co-selecção:,...,Agora, a questão reside nã.2.,.na_intensi-
está destinado a um reduzido número de grandes amantes, já não
ficação, mas antes na selecção baseada nas possibilidades pr6pnas.
se orientando sequer pelo respectivo modelo. O próprio romantis-
O que se procura enquanto -amor, o que se procura nas relaçõês
mo e os próprios românticos foram mais uma vez tentados pelo
íntimas é assim, em primeiro lugar, o seguinte: validação da ãüto-
ideal, enquanto literatura e enquanto vida; viveram e sofreram com
-representação 23. Não se trata tanto da sobreavaliação ou até mes-
ele durante as relações de intercâmbio entre concepção e realidade
mo idealização do amado feita pelo amante. Pelo menos com o ')
e entre mulher e homem. Todavia, é impossível atribuir tal a qual-
tempo tal pode funcionar como exigência permanente para aquele ~ ~
quer pessoa, nem mesmo no seio de um determinado estrato social.
se tornar melhor, constituindo antes algo de desagradável enquanto
-- -
A universalização exige como base da intimidade
-----
um si-mesmo
-.~cessíver a-qualquer pessoa. Foi isto mesmo que a filosofia transcen- vivência permanente de discrepâncias. Quando a auto-representa-
ção é socialmente aceite como «formação» da próp.:.i~ ind~viduali-
dentãl preconizou com o seu conceito de sujeito, foi por este que
a primeira fase do romantismo se orientou. «A mais elevada tarefa
da cultura consiste em apossar-se do si-mesmo trãnscendental, igualar 22Não constitui qualquer acaso o facto de ser sobretudo um conceito tão
o eu do seu eu», afirma-s-e em NõVaIis 21. A ideia transcendental denso a dissipar o culto do próprio eu, para ser de imediato intensificado e
torna-se todavillldealista - deforma-se - aq~da transpog,Ção tratado com uma infundamentada preferência por si mesmo. Do mesmo modo
"para o amo~amento de base completamente empírica. Ela não «intensivische rnotivation», «kognirive Konsistenz» e outros tipos de «balance»;
~ concede justamente aquilo que procura ser de acordo com.ral.exi- e não apenas emancipação.
2lCf. a este respeito William]. Chambliss, The se!ection of friends, «Social
gência: formação da individualidade. O reconhecimento do sentido
Forces», 43 (1965), pp. 370-380, em associação com Morton Deutsch/Leonard
peculiar da individualidade real - em especial, de cada indivíduo Solomon, Reactions to eva!uations by otbers as influenced by self-examination, «Sócio-
específico =--inclui algo de falhado! Tem de se impor conttã a metry», 22 (1962), pp. 321-335; Theodore Newcomb, The prediction 01 interper-
cultura da índividualidade._O ~ cada um durante as relações pes- sona! attraction, «Arnerican Psychologisr», 11, (956), pp. 393-404. Cf. ainda
Hans Wienold, Kontakt, Einlüh!ung und Attraktion: zur Entwick!ung von Paarbe-
ziehungen, Estugarda, 1972, p. 63 e segs.
2IB!ütenstaub, 28, citado de Scbriften, Vol. II, lena, 1907, p. 117 .

•...
222 PROBLEMAS E ALTERNATIVAS CAPiTULO XV 223

dade, sendo portanto conti enternente estabelecida, ela necessita Não se pode deixar provocar o amor. Ele não tem de agir reactiva-
!;xa~nte o sURorte social. ,0 ~ ~c~sciência,.no-'lllaLse _mente, mas pró-acrivarnente. Só assim pode o amor reagir iião
regista a própria «apresentação do si-mesmo em plena vida.quori- apenas ao agir, mas também ao experimentar, à orientação do mundo
r1 diana» 2\ baixa consideravelmente sob influência das modernas do amante, podendo movimentar-se livremente dentro de uma si-
condições de vida. É exactamente então que se depende do ritmo tuação ainda não definida. Só assim pode o amante conservar a sua
dos outros, que estão suficientemente indiferentes a ponto de não própria liberdade J: autodet-;;minação, na medida em que se ant~-
captarem as discrepâncias entre ser e parecer - ou que se depende apa àquele em função do qual se orienta. Resolve-se então também
justamente de alguém que acredita na unidade entre ser e parecer -;;-pãradoxo da livre submissão, do quere;=j;ffinanecer-acorrentado
ou que pelo menos faz disto o objecto da sua própria auto-represen- e::ve=sequal o ponto a que se chêga na vida do dia a dia: poder ;gir
tação, na qual o outro terá então de acreditar novamente. enquanto eu do seu eu, enquanto fõnteao seu próprio amar .. '
Esta confirmação da auto-representação, mesmo quando esco- A isto se ajusta o facto de, contrariamente ao saber reflexivo de
uma longa história da literatura 26, se destacar novamente a sinceri-
lhido arbitrariamente, precisa de ser ~inada e exercitada aquando ------
dade na comunicação entre amantes 27. Assim, por um lado exigir-
da yreparação das relaçÕes Íntimas. Será todavia possÍvelSüDrrreter
esta tarefa, enquanto código de comportamento, à acção de nor- -se-á mais que apenas sinceridade, relativamente à distinção entre
mas? '[odavia isto acabaria por conduzir à renovação daTorma de
cõnstitui~ão paradoxal. ° amor teria de ser inovadoramente
~ enquanto unidade resultante da ilusão e realidade, o~ereocro en-
previs- delimitação face às obrigações sociais ou matrimoniais. Cf. Bussy Rabutin, His-
toire amoureuse des Gaules, Paris, 1856, reimpressão, Nendeln, Lichtenstein, 1972,
quanto modelo de vida igualmente fidedigno. Seja como for que os Vol. I, p. 371 e segs. Em versões modernas este critério da espontaneidade ganha
significado, chega mesmo a tornar-se central para a percepção e fundamentação
observadores ajuizem sobre isto: aos amantes não pode ser-Ihes reti-
do amor. Veja-se em especial ]udith M. Katz. How do you love me? Let me count
rada a confiança, quer por de próprios qier pelos outros, só porque the ways (the phenomenology 0/ being loued), «Sociological Inquiry», 46, (975),
amam. pp. 11-22.
Caso tomemos em consideração esta questão respeitante à vali- 26 A este respeito, Lionel Trilling, Sinceriiy and authenticity, Cambridge Mass.,
dação da auto-representação, então a semântica do amor terá de se 1972.
27 Veja-se pelo lado terapêutico e fisiológico, George W. Bach/Peter Wyden,
lhe adaptar. A modificação respeita sobretudo a simbólica condutora
Streiten uerbindet: Formeln /ür [aire partnerschaft in Liebe und Ehe, tradução alemã,
da diferenciação plena das relações íntimas ,~la deslo~a o «face a quê» Gütersloh, 1970; ainda Sydney M. ]ourard, The transparent self: self disclosure and
~ õ«para quê» implícitos na semântica. Neste momento falha o well-being, Nova lorgue, 1964; do mesmo autor, Self disclosure: an experimental
~
conceito de pãSSlO-,z-que-reve-ue rejeitar a tentativa de controlo social analysis 0/ the transparent self, Nova lorgue, 1971; Howard L. Miller/Paul
e familiar através do destaque de uma irresponsabilidade irracional, S. Siegel, Loving: a psychological approach, Nova lorgue, 1972, p. 22 e segs. Re-
doentia mesmo, para com o sentir e agir próprios. Veemência e lativamente ainda à extensão de ideias correspondentes, Zick Rubin er al., Self
disclosure in dating couples:sex rolesand the ethics oj openess,«journal of Marriage and
exaltação são agora desnecessários face a este assunto. No seu lugar
the Family», 42 (980), pp. 305-317. Cf. a este respeito a análise no âmbito da
surge um princípio de difícil formulação, que tenta exprimir a sociologia do conhecimento acerca das teorias do «si-mesmo» em Ray Holland,
iientidade do próprio amante com a sua (onte.Jjleste se~ Self and social context, Nova lorgue 1977, gue se orienta pela suposição do facto
dada expressão.ã es.pontaneKlade. O amor não se pode dar a conhe- de autores (e em especial americanos a guem falta a experiência europeia e
cer apenas aquando da procura, tem de preceder todos os pedidos destreza no convívio com a auto-referência) atenderem ao seu próprio si-mesmo
ao escreverem sobre o si-mesmo, generalizando por isso positivamente, recomen-
e demandas, para que não apareça enquanto dever ou concilação 25.
dando por exemplo um desenvolvimento saudável da personalidade, sinceridade,
etc.
24 Assim o título de Erving Goffman, The presentation 0/ sel] in Everyday li/e, Naturalmente gue esta reinsistência num autodesmascaramento sincero não
2. edição, Garden Ciry, Nova lorgue, 1959.
0 tem nada a ver com o fanatismo literário pela sinceridade, gue se revoltou contra
25 Tal era já válido para o código do amour passion, agui todavia enquanto
o ponto de vista romântico, segundo o gual a sinceridade não seria nem possível
224 PROBLEMAS E ALTERNATIVAS CAPITULO XV 225

«amor verdadeiro» e mera sedução; por outro lado, trata-se de um e de ser o eu do seu eu? Pode parecer que a desagregação das
princípio simples e passível de ser prescrito, que há trezentos anos pretensões de idealidade (o que inclui a refutação de todas as ideo-
põe de lado opiniões acerca da indissolúvel correlação constituída logias de substituição como «growth of personnality», etc. 30) faci-
pela sinceridade e falsidade inerentes à estrututação da existência litaria a resolução do problema. Na verdade, tal solução extrai da
humana e à evolução do amor ~ IEdependentemente da questão semântica do amor aquilo que até aqui constituiu uma ajuda
sobre se aquele que se ama permite .9!!e se lhe diga tudo o qtle se indispensável à formulação: a intensificação excessiva na direcção
tem para dizer, dever-se-á manter a honestidade me~m SltUã= do ideal ou do paradoxal. Ao nível da semântica cuidada esta foi a
ções humorais que estão continuamente a mudar? Dever-se-á asso- forma sob a qual a diversidade pôde ser formulada, sistematizada e
ciar -o outro cõffiõ um termómetro à nossa p~12.ria te~r~a? 29 transmitida via tradição enquanto unidade. Não se visa um princípio
Mas sobretudo: como se oderá manter a sinceridade para com de substituição. Poderia acontecer que ao facilitar-se as exigênçias,
_al~uém que é falso para consigo mesmo? E não será lUa mente caem atendendo ao qu~ é quotidiano e trivial, se estaria a incrementar a
existência uma rojecção sem fundamento, um esboço que necessrta inverosimilhança da respectiva satisfação, pois já não é pos~ível
dos apoios e zonas de protecção da falsidade? Po er-se-a -e- facto enContrar qualquer forma adeq,uada. --- -- -~
comunicar a sua própria sinceridade, sem através disso estar já a ÇQntudo, é l2QS.SiYe.Lap.1icar
ao amor ~ântica da instabilidade
demonstrar falsidade? -- e do sofrimento, transmitida pela tradiçâç.jmquanto ponto de partida,
É difícil avaliar a influência dos terapeutas sobre a moral (e a a fim de se formular um problema. O código- do amõür passton
da moral sobre os terapeutas), mas decerto que ela é temível. Tal distinguiu-se, corno se mostrou, por oposição ao casamento, sendo
influência coloca no lugar do amor a saúde precária, a constituição a impossibilidade interior do amor captada na qualidade de excesso
individual carente de tratamento; para o amor produz então apenas e epílogo. As teorias modernas parecem também seguir o código,
a ideia de uma terapia recíproca prolongada com base num falso sempre que verificam sintomas de impossibilidade no seio do pró-
entendimento da sinceridade. prio facto. A ligação, por exemplo, surge como autodestruição, de
A pergunta impõe-se agora: o que será afinal o amor, se oferece acordo com o psicoterapeuta Dierer Wyss 31. Jodavia, para uma
a cada indivíduo a oportunidade de se identificar consigo próprio ~ociedade que pretende aglom~rar amor e c:..asamento,não se che-
ará a um fim rápido, mas antes à possibilidade de aprendizagem face
à dllâmIca de dissolução presente em _qual~er ligação; o amar
nem desejável, acabando por ser destruído por este. Como exemplo proeminente
André Gide e como réplica François Derais/Henri Rarnbaud, L'enuers du journal torna-se consciente -feito capaz de determinar o casamento dã
de Gide, Tunes 1942-43, Paris, 1951.Veja-se a este respeito as análises de Henri manutenção do inverosímil. Quanto a esta, trata-se da manutenção
Peyre, Literature and Sincerity, New Haven, 1963, p. 276 e segs. Os rerapeuras de oportunidades" inverosímeis de comunicação, às quais se atribui
não levaram em conta a distinção face à experiência transmissível pela tradição, indevidamente uma necessidade geral e socioestrututalmente pré-
mas antes o ganho provável com as suas prescrições.
via. A peculiaridade do outro que se ama, e em função de quem se
28Cf. apenas Madeleine de Scuderi, De Ia dissimulation et de Ia sincerité, in, da
integram e vivem experiências com o mundo, é assumida como
:x mesma autora, Conversations sur divers sujets, Vol. I, Lião, 1680, pp. 300-321, que
coloca a questão: como é possível levar outros a suportar a sinceridade face a si
-mesmos?Aqul (e apenas' no seculo XVII), surge ainda o tema no contexto d; lOVeja-se apenas Herberr A. Otto (ed.), Love today: a new exploration, Nova
alliilogias entre a condução da guerra, comportamento triunfante e cortês, e Iorque, 1973. Máxima: «The more you ler yourself love, the greater the who-
comportamento em situações amorosas. Comprova-se igualmente a evolução de leness you bring to yourself and orhers.. Observe-se também a escada de sete
uma moral social autónoma que se reflecre a si própria, tendo em conta as degraus do amor, formulada para a época da organização, isto é, a exigência (1)
considerações sociais. As consequências extraídas pelo século XVIII já foram sin- de uma organização com vista à convocação (2) de uma comissão para a formu-
tetizadas no capítulo XII.
lação de uma (3) «action frarnework» com vista (4) «firsr sreps toward (5) a
29Essa comparação em Marquis de Caraccioli, La jouissance de soi-même, re- rnaster plan for the establishment of (7) a loving sociery- (op. cit., p. 11).
edição, Utrecht-Amesterdão, 1759, p. 52. II Lieben ais lern prozess, Gortingen, 1975, p. 80 e segs.

L-
~7
226 PROBLEMAS E ALTERNATIVAS CAPiTULO XV 227

resultado do tratamento das desilusões, no sentido próprio da existên- prejudiciais à existência? Perspicácia quotidiana de cariz psicológico
cia. E, na realidade, especialmente de acordo com os pontos de vista e sensibilidade moderna posicionam esta questão no centro da ética-
segundo os quais ele difere de nós mesmos; diferente também daquilo -do-amor. !l é 2recisamente quando sentimos exacta e intimamente
que desejaríamos; diferente finalmente daquilo a que corresponde- " o modo como o outro procura a simbiose com o «seu» ambíente,
ria uma estilização das suas características essenciais no campo ideal. ~l actua r:troacti~a e negativamente sobre ~le, q~e nesse -=-x,:c~o~ \/'
Depois de tudo isto, poderíamos presumir que a codificação da momento" o amor eXIge sirnultaneamenre confirmação e contradi- ~
intimidade se desenvolverá turno a um programa da compreensão. ção. b. passion tem o seu epílogo, o ideal a sua desilusão, não- se
Em principio postulam-se dois aspectos através do conceito de encontra qualqu-;;-r solução para o problema. A orientação do pro-
compreensão: 1) a inclusão do ambiente e da relação com o ambiente, bIema pode todavia apresentar como vantagem o facto de encàrre-
róprios de um sist~maobservado, no seioda observação, para que gar os amantes de revelarem reciprocamente o seu amor enquanto
a;$im seja possível co-experimentar de qüeV/ve o observaao-ecom lidam com o problema - atormentando-se em vão e apesar de
vista a quê agirá ele; 2) a inclusão da informação e tratamento:da tudo amando-se. Este tema, correspondente à orientação aurodes-
informação, isto é, a inclusão de contingentes e de esquemas com- trmIVa, é novo, não existe na semântica tradicional do amor, que
parativos, relativamente aos quais as notícias patentes no sistema teve sempre de tratar das qualidades e atitudes das pessoas umas
observado são vividas e experimentadas., enquanto selecção; e com para com as outras; seria bom que fosse aqui e não nos paradoxos
tudo isto, 3) a inclusão das necessidades de auto-representação e das transmitidos pela tradição que residisse o ponto, no qual a impos-
facilidades internamente utilizadas para isso, naquilo que é o objec- sibilidade do amor quisesse ser negada.
to da compreensão. Também a compreensão é, neste sentido, uma É perante este pano de fundo, que é possível interpretar tam- <,
quase impossibilidade, uma identidade apenas atingível por aproxi- bém tendências, recusar o casamento e viver assim em comum.
mações. Tal é sobretudo válido face à exigência: enconrrar-serambérn Podemos reconhecer aqui a expressão de uma espécie de cepticismo
disponível para agir em confo;mid~e -;;;:nõ ~experimentar com- sobredeterminado, resultante do conhecer e do enfrentar seriamente
preensivo. A representação do código de acordo com a compreensão os problemas. Não casar expressa uma espécie de reserva - e na
não introduziria qualquer moderação no quadro de exigências, n~m realidade de tal modo que através da recusa do símbolo de ligação
qualquer compromisso com as realidades. Visto sob um ângulo casamento se pode simultaneamente evitar a simbolização da reser-
extremista, a compreensão é exactamente tão inverosímil como o va que conduz à recusa. Esta recusa da forma foi logo defendida nos
"
renascImento na pessoa do outro, como a soumisszon, como o exces- romances da segunda metade do século XVIII a favor do amor livre.
So da duração. A v~r~~m poc:leãpenasS1gllificaLque uma semân- Já anteriormente aparecia por vezes um tio generoso e compreen-
tica, exigIndo a inverosimilhança, se adegua às condições transfor- sivo que permitia ao sobrinho trazer consigo «a sua amiga». Esta
ffim:hIscla plausibilidade. - terminologia já não é válida nos dias de hoje, caso tomemos em
A-pa.E!í!-da~iljJodemo-nos seguidamente in~rrrogar se não consideração o que se passa. «Viver maritalmente» é algo que encon-
haverá bastante material que confirme o facto de idealização e trou o reconhecimento da sociedade. O que surpreende nisto mesmo
paradoxização serem substituídas pela orientação do problemana não é este facto enquanto tal, mas o facto de o reconhecimento ser
qualidade de formas-de-código. Precéifôs totallZadores conduzem proporcionado sem que se aceite ligações simbolicamente generali-
para problemas já especificados e decididamente esperados. Proble- zadas ou qualquer espécie de expectivas compulsivas. Será suficien-
mas esses que nem podem ser simplesmente ignorados a nível ideal temente forre o interesse, enquanto tal, pelas relações pessoais? Ou
nem formulados adequadamente enquanto paradoxo. Deste modo, será suficientemente legítima a escolha de uma «alternativa»? /
o imperativo da entrega à perspectiva do mundo do outro conduz- Também o problema da codificação acabou por obter uma forma
-nos à questão: dever-se-á também incorporar, reconhecer, confir- semântica face à distinção directora entre relações pessoais e impes-
mar medos infundados, pontos de vista nocivos ao próprio, hábitos soais. Forma semântica essa que se separa das tentativas determi-
CAPiTULO XV 229
228 PROBLEMAS E ALTERNATIVAS
O esgotamento do amor apaixonado surge agora visto retros-
nativas da tradição. A codificação é uma espécie de duplicação
pectivamente como uma espécie de semântica de transição, que
semântica de pontos de vista que serve a disposição do ganho e tenta já codificar binariamente as relações íntimas sem recorrer su-
elaboração da informação. Partindo da idealização do objecto do ficiente e estruturalmente ao sistema de sociedade. Deste modo,
amor, poderíamos pensar apenas em perfeição e privação e não poderíamos já apreender, sob influência da literatura (e numa sociedade
numa codificação de valor duplo no sentido restrito 32. A reformu- ainda estratificadamente viva, mas ainda não fortemente desperso-
lação adjacente, visando o princípio do amour passion, oferece já nalizada), a travarmos relações com um outro escolhido e a viver-
pontos de partida melhores. É possível dissociar as possibilidades mos nele partindo dele mesmo; em primeiro lugar, ocasionalmente
do amor sincero e do amor falso com base na incontestabilidade do e extramatrimonialmente, e depois dentro mesmo da relação insti-
plaisir e com referência ao acesso ao último favor. O romantismo tucionalizada. Para esse efeito a semântica teria, por assim dizer,
subjectiviza a questão através da dupla valência reflexiva da entrega
de construir os motivos por si mesma, hesitando correspondente-
e da protecção. Em ambos os casos, a unidade do código remete- mente entre beleza e virtude por um lado e a sensualidade «ani-
-se para a forma do paradoxo de modo a possibilitar tais duplica- mal» por outro. Hoje em dia, a sociedade condescende talvez muito
ções, ao utilizar declarações como: estar preso de livre vontade, mais no que respeita à motivação inerente à estruturação de um
paixão ponderada. Tal como vemos: esforço magistral patente na mundo puramente pessoal. Mas por outro lado começa também a
semântica, apresentando inúmeros problemas ao tentar transpô-Ia só agora saber quão inverosímil assim é.
para a realidade.
Logo que a sociedade simula de um modo estrutural o interesse
contraditório pelas relações impessoais e pelas pessoais é possível
resolver com muito mais à vontade este problema relativo à codi-
ficação da intimidade. Ou seja: a semântica do amor pode ser
sirnJilificacta, Danaltzaâa mesmo; õ que -não significa porém que o
próprio amar se torne mais simples. Agora o código exigLuma
dupla valoração universal de todos os acontecimentos sob--º!ienta-
ção da distinção: pessoallimpesssoal. Oiamor € ne€~s-sá~~al_
~ enquanto diferenciação plena de uma pessoa referencial, com-yista
à qual o mundo pode ser diversamente valorado como normal.
É natural que não se verifique uma duplicação da -realidade "das
coisas do mundo, mas apenas do próprio mundo, A duplicação
permanece um artefacto semântico. Ela constitui um quadro.cípico
duplo de possibilidades de contacto, no âmbito de todo o viver e
agir, segundo, por um lado, o ponto de vista inerente a
validade'

{ anónima e, por outro lado, de acordo com o R0ntO de vista defen-


dido por aquele que se ama. - ,

C{", 1(\ ( .0 t-( +/1-'- _


r {32 Flaminio Nobili, Trattato dell'amore humano, op. cit., foI. 31R, coloca na
I realidade em discussão a dualidade amor/ódio, todavia inclui também o facto de
O tal não funcionar: a natureza não quis que o ódio surgisse da fealdade, tal como
o amor da beleza; «anzi e tal e odio piú simiglianre a privatione che a vero
contrario» .

t
CAPÍTULO XVI

o amor como sistema da interpenetração .~Ir',


'PL~(fJ·
/1 :r r'

As exposições pormenorizadas das mudanças )erificadas na


forma da semântica do amor devem ser por fim n vamente sin-
tetizadas de acordo com perspectivas da teoria dos istemas. Nas
relações íntimas trata-se de sistemas sociais dos quajs se espera e
dos quais os participantes esperam que se leve em consideração os
pontos de vista e as necessidades dos rnrerv€nieQte~ A função e a
atribuição de sentido de tais sis7t~socja~emetem-nos afinal
para a pessoa individuaflcaractenstica da referência ao sistema. As
relações íntimas devem ~~& espera delas - ou
então acabarão por cair em dificuldades, enquanto sistemas sociais.
Esta correlação entre expectativa pessoal e ameaç~à coesão social é
garantida através dainsistência.em.relações du~ é aqui 'l!:!ereside
a função docódigo-norma, segundo o qual só é possível ama7 um/
fuma de cada vez-.--- - -
Remetidosjiovamente.para, o sistema pessoal do indivíduo, foi-
-nos possível por isso continuar a perguntar: qual o significado
importante que a intimidade desempenhou nas.relaçêes-sissema/
/ambiente da' pessoa individual? para este efeito, é importante uma
distinção que adqulfL.um. amplo significado em sociedades' mais
complex~vés d~m2.las relações sistérnicas, diferenciadas ple-
nãmenre.Trevernos distinguir as relações de um sistemrrrtrrn o seu
ambiente das relações do sistema comsistemaJindividuuis-- em seu
ambiente. O ambiente do sistema tem a sua unidade (Sejacorno for,
s~rialiZãaa) llmyés ao próprio sistema. .Os sistemas, dentro do
ambiente dos sistemas, devem por seu lado a ~de a simesmos.--
00 ambiente faz parte tudo acerca do que o sistema não pode
dispor c~moreprodução auto-referencial; ãfinaI tudo ogue diga
respeito a qualquer nutro sistema. Os outros siste.masdístíngu-~
-se todavia suplementarmente, (e face ao meio no seu todo) atra-
- '>
vés de um modo próprio de reproduçãolruto-referencial. «O am-
CAPiTULO XVI 233
232 o AMOR COMO SISTEMA
inatingível I. Só é possível responder ainda a esta questão atra-
bienre» significa para o sistema o outro em abstrato; outros siste- vés de uma ruptura com a tradição. Os amantes deixam de se
mas são, pelo contrário, para o sistema o outro Cíeterminado por si orientar pelo romance, que passa a ser substituído pelo psicotera-
próprio. peuta.
~ Esta distinção resulta ela própria de um desenvolvimento evo- Na distinção entre o ambiente próprio e outros sistemas in-
lutivo. Ela agudiza-se face a diferentes sistemas de modos diversos, ..• cluídos no ambiente próprio residem todavia aspectos ligados à
pelo facto de os sistemas conquistarem distância face ao seu am- tradição, bem como novas perspectivas, caso a sintetizemos apenas -]j
biente e de através dela aprenderem a distinguir outros sistemas, o de um modo suficientemente abstrato. O problema inerente a esta /I.

que acontece com referência a outros sistemas, quer em maior número \ distinção torna-se problema do sistema social cujo desenvolvimento
"~
~ [, I quer com maiores diferenças, fazendo assim com que a representa- ~ às relações Íntimas. Não se trata de qualidades, virtude
<; tividade dos sis~ indW4.dtlais retroceda no seu todo para o harmonia de caracteres; trata-se da outra.pessoa, capaz de introdu- "
ambiente. Devemos aceitar o facto de ter sido a religião que con- zir sentido dentro do ambiente do meu mundo, mas que só o pode '?
seguiu pela primeira vez superar e preservar esta distinção. Ela fazer quando a aceito e me aproprio dela e do seu ambiente. A «re-
realizou um sistema no seio do ambiente de outros sistemas. Siste- ciprocidadedas perspectivas» constitui também uma fórmula dema-
J \ ma ~que para estes outros sistemas tinha a capacidade de inter- si~imples qu~e demasiado a uma tematização recíproca
:f!;"'-.e . ~ar o mundo. O seu símbolo, Deus, significava «um e tudo» - ! das próprias pessoas. Trata-se da viabilidade de ~teIl!a2.0cial
1 \ ----- o que ela própria aspirava realizar. Esta função da representativi- inerente à aquisição etratamento de mformação. Nestas operações
1 t dade do mundo através de um sistema no seio do ambiente de cadamtormação deve confirmar a unidade do mU~ÕCOmum, podendo
• ')1 I v I outros sistemas é aflorada através da Reforma e de transformações poriSSo cadainform;ção provocar a ruptura-da distinção. «O meu
para além dela, verificadas no sistema de sociedade ao longo dos porta-moedas desapareceu» - na primei~z aceitam-se descul-
séculos XVI e XVII. É possível entender-se a diferenciação plena de pas, mas acontecerá o mesmo aquando da segunda ou da terceira
um código das relações íntimas como um acontecimento comple- vezes? E não será alguma vez possível que um dos dois suponha que
~'~ ment~ão significa que o amor tome o lugar da religião o outro leia a informação de um modo diverso?
<-~ora existam t.Qii:Cêl'ç~s ocasionais que queiram afirmar exac- Substituímos a ideia de reciprocidade das perspectivas pelo
tarnente isto). É precisamente nas sociedades funcionalmente dife- conc~fto(mu~ais exigente e rico) de in-Iespenetraç.ão
i~~ria.
renciadas -que é{5às~vel continuar a desenvolverem-se campos de Tal comporta consequências para o tema do amor que apontam
funções, apenas auto-s~i o:atirem:e.Afinal, a religião só pode para várias direcções. Dissipa-se e substitui-se sobretudo o metafo-

/
vir /'
ser substituída pela religião, mas o facto de esta posição, a partir
da qual um sistema pode apresentar o ambiente dentro do ambiente,
se encontrar vaga, suscita problemas especiais a todos os campos
rismo da fusão 2. A interpenetração não conduz sistemas diferentes
à unidade. Ni!Qse ·~ta de uma anio rnystiç.a...Ela decorre apenas' ao
nível operativo da reprodução dos elementos, afitillLaqui, d-ª)uni-
(. funcionais. dade dos acontecimentos relativos ao viver e ao agir. Cada operação,
Procuram-se então soluções especiais para as relações íntimas. ciCIaacção, cada obSerVaçãoatravés da qual um sistema reproduz as
perifica-se um retrocesso na imitação de formas religiosas. É exac- suas sequências de acontecimentos é igualmente concretizada no
tamente nas relações duais que não é bem possível deixar a outro. Cada uma delas tem de atender ao facto de ser acção de um
representatividade ao cuidado do outro, tal como foi aludido em ---
primeiro lugar através dos conceitos de código: submissão (abso-
I Face a este desenvolvimento, Wallace Fowlie, Love in Literature: studies in
luta) e conquista. Assim, visar a unidade entre mundo e relação simbolic expression, reimpressão, Frieporr, N. 1., 1972.
dual conduz, tal como vimos, ao paradoxo. Após o imitar das 2 Afinal não apenas escarnecida. Cf. a este respeito as indicações em Niklas
formas religiosas, ao século XIX resta apenas o imitar enquanto tal. Luhmann, Gesellschaftsstruktur und Semantik, op. cit., Vol. Il, p. 210.
O absoluto torna-se gesto. O dandy, o cloum, o vadio simbolizam o
234 O AMOR COMO SISTEMA CAPiTULO XVI 235

sistema ~ulta!leamente_ vivência de.nutrc..nâo.se, trata.apenas ama cabe a obrigação de declarar o amor como concluído. A Mar-
e uma identificação externa, mas antes condição simultânea da sua quesa de M. pôde fazê-lo; Ellénore não o pôde 3.
(i (' y própria reprodução. Toda a comunicação incluída nas relações íntimas depende da
'~ pode-se agir apenas de modo a que seja possível incomunicabilidade em que ela própria se constitui. Anotámos tal
continuar a ~ exactamente através deste viver do outro. As facto como ponto de vista descoberto e encoberto durante o século
acções têm de ser introduzidas no mundo de vivências de um ou- XVIII 4 e que se esclarece através do conceito de interpenetração.
tro e reproduzidas a partir deste; assim, não devem sobremaneira Cada acção é seleccionada duplamente de acordo com o condicio-
perder a sua liberdade, a sua auto-selectividade e o seu valor ex- naiismo da interpenetração: primeiro, de acordo com aquilo que
pressivo em favor das disposições de constância daquele que age. visa e, segundo, à luz do significado que tem face ao processo de
Não devem precisamente surgir como submissão, como compla-
." atribuição. Este quadro de circunstâncias está também subjacenre
cência branda, como transigência ou como comportamento que ao célebre teorema double bind 5. É apenas no nível que atinge através
evita conflitos. Não há amor nenhum que se contente com «é-me da atribuição que a perspectiva de duração pode ser consolidada -
indeferente». Ele exige que aquele que apenas ama possa agir a comunicação mantém a prerrogativa de ser negada. Por isso, é
assim. impossível concretizar-se a distinção num único acto de amor ou
Agir ~moLnãocontent~ apenas, não quer apenas agradar, mais exactamente: é sempre possível, todavia apenas no momento
não satisfaz apenas desejos. A terminologia da soumission e da com- entendido segundo a perspectiva da eternidade. Cada afirmação
plaisance deixou de ser adequada, se é que alguma vez o foiJrata- afasta o respectivo falante daquilo que afirma e assim se perde
-se de encontrar sentido no mundo de um outro. Uma vez ue este a inocência. Tem de fazer parte do amor respeitar isto mesmo.
mundo jamais deixou de ser problemático tam m o sentido que A outra alternativa identifica-se com a tentativa de forçar a falsi-
Õ confír~ais podeuLdeixar de ser problemático. (");~tido dade, quando não a esquizofrenia.
pode opôr-se ao humor ou ao estado de .espírito do 0ill!:2.:.... Ele Por inrerpenetração deve entender-se também a situação em
pode transformar o mundo do amado através da sua ocorrência no que os amantes admitem reciprocamente o respectivo mundo, re-
mundo dele. Tem de correr o .risco e por IÍltimo nãõ saber o que nunciando à possibilidade de integrar tudo numa totalidade. A uni-
é bom para o outro e em vez disso ater-se ao amor. versalidade da referência de sentido do amor não necessita, não
No fundamento da ma acção, enquanto compreensão do senti- pode mesmo abranger tudo o que diga respeito ao experimentar e
do, o amor dirige-se ao mundo de um outro sistema, modificando agir actuais. Tal como acontece com a universalidade da referência
afinal através da sua consumação aquilo que observou. Ele não se de sentido própria da religião ou do direito, não existe nada de
pode obter através da distância. Ele próprio constitui-se como parte irrelevante do ponto de vista da natureza da referência do sentido,
do seu «objecto». O seu «objecto- não pára, assimila as operações não se verificando, por outro lado, qualquer compulsão com vista
em si mesmo e modifica-se através disso. O ser-experimentado-
3 «Il faut renoncer à vous pour jamais, pour jamais! Grand Dieu! Er c'est ma
-pelo-outro torna-se componente da reprodução operativa. Auto-
propre bouche qui me prononce un arrêr qui peut-être ne sorrirait point de Ia
-reprodução e reprodução-do-outro continuam separadas segundo vôtre», afirma-se num texto. E oitenta anos mais tarde, depois da perda da
os contextos do sistema, sendo consumadas uno actu. atitude heróica que possibilitou tal: «Qu'exigez-vous? Que je vous quitte? Ne
Todavia, sempre que e enquanto a relação de interpenetração voyez vous pas que je n'en ai pas Ia force? Ah! C'est à vous, qui n'airnez pas,
conduzir o viver e o agir, cada companheiro pode naturalmente c'esr à vous à Ia trouver cerre force ... »
Veja-se Crébillon (fils), Lettres de Ia Marquise de M. au Comte de R., op. cit.,
tentar furtar-se a tal relação. No entanto, este furtar-se verifica-se
p. 181, e Benjamin Constant, Adolphe, op. cit., p. 113,
também ainda durante a sincronização da relação íntima. Introdu- 4 Cf. capítulo XII.
zirno-lo através do exemplo que ilustrava a conclusão da relação 5 Cf. Gregory Bateson et, a!., Toward a theory 01 Schyzophrenia, «Behavioral
amorosa, extraíndo de imediato a invulgar conclusão: ao que ainda Science», 1 (1956), pp. 251-264 .

. 1
236 o AMOR COMO SISTEMA CAPiTULO XVI 237

a conjugar cada passo com o código. A universalidade é atingível Caso partamos do postulado referente aos sistemas sociais espe-
no seu sentido estrito só quando se desiste disto mesmo. Só aquele cificamente funcionais, auto-referenciais e de diferenciação plena
que ainda hoje se rege pelo romance e pelo romantismo se deixará .•. aplicáveis às relações íntimas entre duas pessoas e caso entendamos .c ..,

surpreender, quando souber que os amantes não atribuem qualquer a interpenetração, poderemos procurar saber retrospectivamente se
significado extaordinário ao topos «shared activities» e «shared va- e sob que pontos de vista a tradição semântica do amour passion e
lues and goals» 6. Quando tal se confirmasse, teríamos atingido um do amor romântico produziram modelos de orientação, tendo tal
ponto de referência, segundo o qual as sensações reais e as ideias em vista. Face ao estado global da semântica tradicional do amor,
sobre o amor estariam mais amadurecidas do que a semântica tra- é possível desistir das paradoxizações mais ousadas bem como dos
dicional prescreve. momentos de sentido: passion e excesso que deveriam sobretudo
Não constitui de modo nenhum um desvio procurar na monoto- legitimar a diferenciação plena. Irrenunciável permanece, pelo con-
nia _ isto é, na diminuição da afluência de informação 7 - a saída trário, o conceito neo-humanista-romântico do indivíduo desperto
face às exigências inexequíveis do amor. Mas tal significa também para o mundo próprio. Igualmente importante é a ideia de auto-
renunciar à optimização da função, renunciar à possibilidade de -referência, de amor por amor, através da qual se regista que, no
obter no outro a confirmação total do mundo próprio. Receitas deste âmbito da intimidade, os sistemas têm eles próprios de produzir
ou de outro tipo podem ter efeitos diversos. Caso fiquem suspensas, aquelas condições que possibilitam a sua constituição e continua-
então permanecerá a tese do sistema social de diferenciação plena ção. Tal incrementa simultaneamente o velho ponto de vista segundo
provido de estruturas e funções inverosímeis. A rever: toda a infor- o qual o amor concede a si mesmo as suas próprias leis e na rea-
mação que pode ser registada e assimilada por e neste sistema avalia lidade não de um modo abstrato, mas antes no concreto e apenas
a compatibilidade dos ambientes (pelo que cada participante faz para si mesmo 8. Temos de reconhecer de um modo muito mais
ele próprio parte do ambiente do outro, sendo por isso avaliado tam- radical que o amor dissipa todas as características que podem ser
bém). O sistema desagrega-se (mesmo quando os parceiros permane- razão e motivo para si próprio. Cada tentativa para desmistificar o
cem juntos) quando tal deixa de acontecer como base comum que outro conduz ao vazio, àquela unidade constituída por verdadeiro
reproduz o sistema, ao atribuir a todas as informações a função de re- e falso, sincero e desonesto, que se furta a todos os critérios. Por
produzir o sistema. Nisto mesmo consiste o correspondente da teoria isso, é impossível dizer tudo. A transparência só existe na relação
dos sistemas de um código, que exige que a pessoa tome uma ati- entre sistema e sistema, com a ajuda, por assim dizer, da distinção
tude na interacção através do agir sobre a vivência do outro. A unida- entre sistema e ambiente, constituinte do sistema. O amor pode ele
de do código postula a unidade do sistema social inerente à relação próprio ser apenas esta transparência:
íntima e a unidade deste sistema corresponde à unidade da distin- Um rosto face àquele
ção que subjaz à respectiva assimilação da informação. Não é possível Um
«fundamentar» nada com base numa «distinção». Também não exis- Jamais su-jeito
te, dissemo-Ia anteriormente, qualquer razão que justifique o amor. Apenas ainda referência
Imperceptível
6 Esta verificação, com base em investigações empíricas, em Clifford
e fixo
H. Swensen/Frank Gilner, Factor analysis of self-report statements of love relation- (Friedrich Rudolf Hohl)
sbips, «Journal of Individual Psychology», 20 (1964), pp. 186-188 (187 e segs.).
Veja-se também Clifford H. Swensen, The Behaviour of Love, in Herbert A. Otro BNa versão característica do século XVII, afirmava-se por exemplo: existem
(ed.), Love today: a new exploration, Nova Iorque, 1973, pp. 86-101 (92 e segs.). regras gerais, quase técnicas de sedução objectiva; uma vez o amor conquistado
7 Raro sobretudo o facro de tal ser na realidade proposro. Veja-se todavia é apenas válido o que a amada afirma e exige. Assim, La iustification de l'amour,
Elton Mayo, Should marriage be monotonous?, «Harper's Magazine», 151 (1925), in Recueil de piêces en prose les plus agréables de ce temps (Recueil de Sércy), Vol. Hl,
pp. 420-427. Paris, 1660, pp. 289-334 (314 segs.).
ÍNDICE DE AUTORES

CATE, Rodney M. - 218.


ABELARDO, Pedro - 148.
CAVAN, Sherry - 219.
ADAM, Antoine - 78.
CHAMBLISS, William J. - 22l.
AGOSTINHO, Sto. - 74,75.
CHAMFORT - 60, 14l.
ALBERCROMBIE. Lascelle - 180.
CHARRON, Pierre - 148.
ALTMAN, Irwin - 212.
CHENU, Marie-Dominique - 74.
ANNE-THERESE -vd. LAMBERT,
CHERPACK, Clifron - 96,139.
Marquise de
CÍCERO - 142.
APULEIO - 72. COMINOS, Peter T. - 216.
AQUINO, S. Tomás de - 74.
CONSTANT, Benjamim -121,137,
ARISTÓTELES - 57, 130.
AUBERT - Vilhelm, 29,66,109,190, 188,235.
COOK, Mark - 194, 204, 218.
214. CORBINELLI,]ean - 55, 87,129, 13l.
BACH, George W. - 223.
CORNEILLE, Pierre - 187.
BALDWIN,]ames - 215.
COTIN -98,118, 13l.
BARKER-BENFIELD, Ben - 216.
COUSTURES, ]acques des - 158.
BARTHELEMI, Édouard de - 59.
CRÉBILLON, Claude - 93,96, 107,
BARY, René - 61,64,65,84,100,122.
115,118,137,138,139,150,
BATESON, Gregory 67,111,218,235.
151,154,166,178,235.
BEHN, Aphra - 189.
D'AILLY, Abbé Nicolas - 104.
BENNIS, Warren G. - 206.
D'ALIBRAY, C. Vion - 65,87,129.
BENTON,]ohn F. - 77.
D'ALQUIÉ-61, 77,115.
BERNARD, Carherine - 103.
DANVILLE, Gastou - 29,52,200.
BERNDT, Ronald M. - 85.
D'ARCONVILLE - 104.
BIÉLER, André - 149.
DARWIN - 200.
BLANCHARD, Rae - 132, 173.
D'AUBIGNAC, Abbé (vd. HEDELIN,
BLONDEL,]ean - 149.
François).
BLOOD ]r., Robert O. - 193.
DEAN, Dwighr G. - 29.
BORDELON, Laurent - 79,82.
DE BRÉGY, Corntesse de - 88, 126,
BOTT, Elizaberh - 206.
127 t 148.
BOURDALOUE - 103. DE CAILLIERES, François - 14, 65, 74,
BOURSAULT - 63,138.
75,89,90,113,136.
BRADY, Valentim P. - 145.
DE CANTENAC - 98,117.
BRAIKER, Harrier B. - 44,210.
DE CHALESME - 87.
BRA Y, Bernard - 62.
DE CLA VILLE, Le Maitre de - 105.
BRAY, René - 63.
DE MABL Y, Abbé - 171.
BREDEMEIER, Harry C. - 201.
DE MAILLY, Chevalier - 65,81,102,
BRODY,]ules - 130.
122.
BRUCKNER, P. - 23, 216.
DELOFFRE, F. - 82.
BURGESS, Ernest W. - 202, 203.
DE PISAN, Chrisrine - 97.
BURGESS, Roberr L. - 44,210.
DE PRINGNY, Madame de - 108.
BURTON, Roberr - 171.
DESCARTES - 74.
CANTENAC, Benech de 80,83.
DERAIS, François - 224.
CARACCIOLI, Marquis de - 104, 224.
CARLISLE, condessa Dowager of - 168 . DE REZE - 86, 89.

.l
240 AMOR COMO PAIXÃO
fNDICE DE AUTORES 241
DE SACY, Louis-Silvesrre - 104. GARAUD, Chriseian - 93, 113.
DE STAEL, Madame de - 88, 176,202. GARVE, Chriseian - 41. JOYEUX, F. - 125. MARIVAUX, Marianne-142, 143, 154,
DE TRACY, B. Descutr - 198, 199. GAUGER, Wilhelm P.]. - 63, 104, JWILSER, Neil]. - 205. 162.
DE TILL Y, Cornre Alexandre - 151. 107,210. KANT, E. - 181. MARMONTEL - 104, 134, 165.
DE VAUMORIERE -78. GERARD, Abbé de - 75. KAPUR, Promilla - 193. MARQUARD, Odo - 117.
DE VILLARDS, Abbé de - 98. GERDS, Rupprechr - 32. KATZ,Judich N. - 89,223. MARTINEAU, Henri - 185.
DE VILLEDIEU, Madame - 80, 82, 90, GERSON, Frederick - 104. KELLEY, Harold H. - 40,44,210. MASTERS, William H. - 216.
94,95,197. GIDE, André - 224. KELSO, Ruth - 50,101,133. MAUSI, Roberr - 29, 144.
DE VILLEMERT, Boudier - 106, 137. GILNER, Frank - 236. KENTLER, Helmuc - 32. MAUVILLON,Jakob-I56,195.
DE VILLIERS, Pierre - 95, 116. GIRARD, René - 189. KEPHART, William M. - 29,196. MA Y, Georges - 149.
DEUTSCH, Morron - 221. GOFFMAN, Erving - 91,107,222. KÉVORKIAN, Sévo - 62,197. MA YO, Elton - 236.
DIDEROT - 150. GOLDSMITH, Oliver - 174. KINGET, G. Marion - 204. MCKINNEY,John C. - 213.
DIETRICH, Hans - 155. GOMBERVILLE - 197. KLAUSNER, Samuel Z. - 38. MEISTER,Johann C. F. -181.
DIRLMEIER, Franz - 204. GOODE, WILLIAM]. - 21,38,196. KLOPSTOCK- 21, 22. MENZE, Clemenz - 177.
DITZION, Sidney - 33, 133. GORDON, Michael- 216. KLUCKHOHN, Paul- 105, 149, 152, MERCIER, Louis Sébastien -146.
DODD, William George - 56. GORRA, Egídio - 55. 154,180. MÉRÉ, Chevalier de - 75.
DONNAY, Maurice - 143. GOUSSAULT, Abbé - 102, 106. KNOX, David H. - 196. MERLANT,Joachim - 198.
DONNE, John - 178. GRENAILLE, François de - 132,158. KOHLER, Erich - 57,190. MERRIL, Francis E. - 201,202,204.
DRAIS, K. W. von - 156. GRIFFITH (casal) - 180. KOHN, Egon - 62. MERRY, Francis E. - 29.
DRONKE, Perer - 56, 71. GROSS, Liewellyn - 213. KOSELLECK, Reinhardr - 112. MICHELET,Jules - 205.
DROZ, Joseph - 199. GUILLERAGUES - 82, 190. LABEGUE, Raymond - 63. MILLER, Howard L. - 223.
DU BOSQ, Jacgues - 99. GUITTON,Jean - 33. LA BRUYERE,Jean de - 51, 90,118, MILTON, John - 173.
DUCHÊNE, Roger - 100. HALEY, Jay - 67. 141,154. MITTNER, Ladislao - 105.
DUCLOS,Charles-36, 137, 139, 145, HALLER, Malleville - 172. LACHIVER, Marcel- 147. MOLIERE - 61.
162. HALLER, William - 172. LACLOS, C. - 141. MOLLER, Herberr - 57.
DU PÉRET - 63. HEGEL-190. LA FAYETTE, Madame de - 56, 130. MOLLER, Helmuc -155.
DUMONT, Louis - 13, 175. HEINRICH, Dieter - 117. LAFITTE-HOUSSAT,Jacgues - 63. MONGLOND, André - 198.
DURKHEIM, Émile - 13. HEINRICH,Joachim - 102, 132. LA FONTAINE,Jean de - 56, 61, 72. MONGRÉDIEN, Georges - 64, 91.
EHRMANN, Jacgues - 62,74. HELEDIN, François - 42,59,64,81, LA MARTINIERE, L. Ferrier - 77, 88, MONTAIGNE - 20,139,149,158.
EISENST ADT, S. N. - 38. 92,94,98. 99. MORERI, Louis - 127.
EKAIDEN, Bruno]. - 194. HENRYON, Claude -196. LAMBERT, Marguise de -104. MOREWEDGE, Rosemary T. - 97.
ELLIASSON, Rosmari - 204, 214. HERDER,]. Goccfried - 105. LAMBRECHTS, Edmond - 196. MORGAN, Edmund S. - 172, 174.
ENGLAND Jr., R. W. - 203. HILL, Reuben - 21,29. LANG,Olga-193. MORNET, Daniel- 50, 62,116,117.
EMBREE,John F. - 13. HOBART, Charles C. - 195. LANTZ, Herman R. - 174. MORRIS, Colin - 13.
EQUINOLA, Mario - 87. HOFFMANN - 189. LA ROCHEFOUCAULD - 7,21,88, MOWRER, Ernesr R. - 202.
ERIENNE, Servais - 134. HOLH, Friedrich Rudolf - 237. 90, 163. MUCHEMBLED, Robert -147.
ERIKSON, Erik H. - 206, 209. HOLLAND, Ray - 223. LA TORCHE, Abbé de - 84,126. MÜLLER, Adam -187.
ETIENE, Servais - 162. HOROWITZ, Louise K. - 59, 82, 148. LANDIS, Paul H. - 202. MÜLLER, Helrnur - 149.
EVER, H. Dierer - 13. HUET, Pierre Daniel- 58. LAZAR, Moshe - 78. MURR, Karer - 189.
FENGLER, Alfred P. - 196. HUMBOLDT, Wilhelm von - 175. LE BOULANGER - 61,76,79,80,85. MURSTEIN, Bernhard l. - 196.
FERRAND, Jacgues - 62. HUNOLD-144. LEBRUN, François - 149. MUSIL, Robert - 28.
FICHTE,Johann Gotrl ieb - 24,156, HUNT, Morron M. - 214. LEIBNIZ-152,177. MUSSET, Alfred - 197.
182. HUSTON, Ted L. - 44,210,218. LE PAYS - 83, 88,116,125. NEEDHAM, Gwendolyn - 52,151.
FIELDING, Henry - 33, 168. HUTCHESON, Francis - 181. LERCH, Eugen - 75. NELSON, John Chacles - 56.
IiINCK, Henry T. - 66, 194, 197, 200. IRMEN, Friedrich - 78. LESSING - 183. NELSON, Norman -13.
FINKIELKRAUT, Alain - 23, 216. ISRAEL, Joachim - 204, 214. LEVANA - 184. NEWCOMB, Theodore - 221.
FLAHERTY, David H. - 38. J ACKSON, Don D. - 67. LEVINGER, Georg - 37, 172. NEWMAN, F. X. -77.
FLANDRIN, Jean-Louis - 147. JAGER, Georg - 153. LOBODZINSKA, Barbara - 193, 195. NOBILI, Flaminio - 55, 87, 142,228.
FLAUBERT - 201. JAULNAY, Charles - 55, 79, 80, 86, 88, LOCKE, Harvey]. - 203. NOLTING-HAUFF, Ilse - 71.
FLÉCHIER, Esprir - 102, 106. 89,90,91,94,100,108,120, LOTBORODINE, Myrrha - 92. NORDAU, Max - 200.
FOUCAULT, Michel- 33. 132. LUCKA, Emil- 159. NOVALIS - 220.
FOWLIE, Wallace - 233. JEFFREY, Kirk - 205. LUHMANN, N. -19, 24, 30, 31, 37, OCTAVE-NADAL -101.
FOX, Greer L. - 193. JOERDEN, Rudolf - 182. 39,53,54,67,108,109,112, OTTO, Herberc A. - 225, 236.
FRIEDRICH, Hugo - 67. JOHNSON, James T. - 86, 149, 173. 136,138,178,201,233. OVíDIO- 55.
FURST, Lilian R. - 175. JOHNSON, Virginia E. - 216. MAGNE, Émil- 64,101. PASCAL-92,114.
FURSTENBERG Jr., Frank F. - 193. JOUBERT - 139. MAISONNEUVE, Jean - 38. PARETO, Vilfredo - 159.
GADLIN,Howard-37,172. JOURARD, Sydney M. - 223. MANTEGAZZA, Paul- 200. PARSONS, T. - 8,9,21,29,30,100,
MARCUS, Seeven -152. 213.
242 AMOR COMO PAIXÃO
fNDICE DE AUTORES
243
PEELE, Stanton - 215. SEGRAIS, Jean Regnaulr de - 63.
WALLER, Willard - 21,29,203.
PERNETTI, Jacques - 104, 149. SÉNANCOUR - 198, 199. WILLARD, Charicy C. - 97.
W ARD, Lester F. - 200.
PETRARCA - 56. SHOEMAKER, Sidney - 114. WILLIAMSJr.,). Allen -194.
WATT, Ian - 105, 133, 154.
PEYRE, Henry - 140, 224. SHORTER, Edward - 149. WILSON, Glenn - 194,204,218.
WEAKLAND,John - 67.
PFLAUM, Heinz - 78. SIEGEL, Paul S. - 223. WISPÉ, G. - 40.
WEBER, Max - 9,68.
PIKULIK, Lothar - 195. SIMMEL, Georg - 13, 22, 31, 210. WOLF, Christian - 183.
WECK-ERLEN, L. van - 216.
PITON, Camille - 15l. SINGER, Herberr - 144. WOODARD,JAMES W. -107.
WHITE, Lynn K. - 194.
PLANHOL, René de - 78, 91,144,150. SINGH, B. K. - 204. WYDEN, Perer - 223.
WIELAND, Chrisroph M. - 153,
POUGET DE LA SERRE, Jean - 63. SLATER, Philip E. - 38, 206, 210. WYSS, Dierer - 23, 225.
184.
POULET, Georges - 96. SMELSER, Neil). - 206, 209. YOUNG, Eward - 54.
WIENOLD, Hans - 22l.
PRÉVOST -190. SMITH, Daniel S. - 174. ZNANIECKI, Florian - 193.
WILDEN, Anrhony - 67.
PROUDHON, PierreJoseph - 200. SOMAIZE, A. Baudeau de - 83, 100. ZONTA, Giuseppe - 58.
PURE, Michel de - 64, 84, 10l. SORENSEN, Roberr S. - 215.
RABUTIN, Conde Bussy - 65,72,73, SPAULDING, Charles C. - 204.
80,85,86,87,88,90,91,98, SPITZER, Leo - 82.
117,120,132,178,223. SPORAKOWSKY, M,). -196.
RAJNA, Pio - 63. STENDHAL-41, 52, 54, 61, 107, 114,
RAMBAUD, Henri - 224. 176, 178, 185, 189.
RASCH, Wolfdiecrich - 105, 136. STIERLE, Karlheinz - 117.
RAUSH, Harold L. - 37, 172. STONE, Lawrence - 105, 133, 147, 172.
RÉMY, Paul - 63. STRAUB, Theodor - 63.
REYNIER, Gusrave - 79, 100. STROSETZKI, Chrisroph - 99.
RIBOT, Th. - 52. SWANSON, Guy E. - 38.
RICHARDSON - 134, 179. SWENSEN, Clifford H. - 236.
RORTY, Richard - 115. SWIDLER, Ann - 209.
ROUBEN, C. - 63, 93, 95,100,113. TASSO, Torquaro - 55.
ROUGEOT,). - 82. TAYLOR, Dalmas A. - 212.
ROUSSEAU - 139, 179, 185. TENBRUCK, Friedrich H. - 105.
RUBIN, Zick - 202, 213, 219. TESELLE, Sallie - 205.
RUGOFF, Milron -152. THEODORSON, George A. -193.
RUSSEL, Bemand - 147. THOMAS, William). -193.
RUSSO, Paolo - 64. THOMASIUS,Chriscian-152,153.
SAINT-EVREMOND - 57. THOMES, M. Margarerh - 203.
SAINT-HYACINTHE, Thémiseul de- THUREAU, Else - 99.
150. TIEGHEN, Paul van - 146.
SALOMON, Albert - 105. TIRYAKIAN, Edward A. -149, 213.
SALOMON, Leonard 22l. TOBY, Jackson - 20l.
SAMSON, William - 107. TOMKINS,Joyce M. S. -180.
SANCHEZ de Ia TORRE, Angel- 13. TONELLI, Luigi - 56.
SANDY, Tristarn - 12. TRÉOGATE, Loasel de - 147.
SANSOVINO, Francesco - 58, 142. TRILLING, Lionel- 223.
SCAGLIONE, Aldo D. - 62. TRUMBACH,Randolph-133, 172,174.
SCANZONI, Jonh - 44. UDRY,). Richard - 203.
SCHIER, Alfred - 179, 189. USEL,Jos van -147.
SCHLEGEL, Friedrich - 167, 176, 179, UTTER, Roberr P. - 52, 15l.
183, 190. VALENÇA, Maurice - 50.
SCHLEGEL,). A. - 22. VARTANIAN, Aram -149.
SCHLEIERMACHER, Friedtich D. E. - VAUMORIERE - 77.
175. VAUVENARGUES-150.
SCHMALENBACH, Hermann -136. VERSINI,Laurenr-96, 141, 151, 167.
SCHNEIDER, Wermer - 87. VILEMERT, Boudier de - 155.
SCHNEIDERS, Werner-125. VILLIER - 188.
SCHOPENHAUER -199. VIVES -14.
SCHORR, Karl E. - 31, 54. VOS, George de - 193.
SCHÜCKING, Levin L. - 172. WAGATSUMA, Hiroshi - 193.
SCUDÉRY, Madeleine de - 72, 91,114, WALDBERG, Max Freiherr von - 59,
132,224. 66,83,85, 100.
ÍNDICE TE MÁ TICO

AFECTO(S), controlo dos - 17; semânti- semântica do - 7, 8, 16, 22, 25,


ca do - 213; afeição pessoal, 219; 28, 42, 47, 48, 57, 59, 60, 96,
ligações afecrivas, 202. 135, 144, 145, 177, 178, 180,
AMIZADE, 16, 57, 88, 99, 103-106, 182, 191, 197, 199, 217, 222,
129, 133, 134, 137, 145, 155, 225, 228, 231, 237; tribunal do
175, 187, 210; amorosa, 106; - 63; como auto-alienação, 79;
íntima, 105, 175; amizade/amor, como comunicação total, 23; como
53,106,133,155,156,159,179, consolação, 199; como destino,
184, 206; ética da - 206. 21; como doença, 80; como fuga
AMOR, 22, 24, 26, 28, 34, 35, 40-42, ao controlo social normal, 29;
55, 61, 72, 79, 80, 82, 84, 86, como ideal, 202; como luta, 77;
92-94, 99, 104, 105, 114, 117, como prisão, 80; como meio [ou
120, 121, 123, 126, 131, 134, código] de comunicação, 19, 21,
136, 138, 141, 142, 144, 147, 22, 27-29, 59, 76, 96, 102, 120,
149, 151, 159, 164, 166, 169, 168, 179, 194, 195, 217;
175-177, 180-183, 187, 191, máximas de amor, 72, 138, 167,
198, 199, 205, 209, 211, 218, 189; aventura amorosa, 93, 99,
221-224, 227-229, 234-236; 166; declaração amorosa, 214;
amargo (amare amaro), 56; cortês, processo amoroso, 92, 93; recipro-
33, 48, 50, 78, 190; conjugal, cidade do - 35, 179, 183; amor/
133, 171, 172, 195; dissimulado, ódio, 87, 88, 210.
118, 188; livre, 146, 227; paixão ANTIGUIDADE, 62, 130.
(Amour passion), 9, 21, 29, 34, 49, ARISTOCRACIA, 102, 107, 171, 173,
53,55,59,62,71,73,74, 100, 174.
101, 102, 108, 109, 115, 127, BURGUESIA, 102, 107, 171-173, 205;
129, 134, 135, 142, 144, 158, universalismo burguês, 184;
159, 171, 179, 186, 188, 189, crítica burguesa à «decadência dos
195, 198, 212, 213, 225, 229, costumes», 167.
237 (versus casamenro/compa- CASAMENTO, 8, 33, 38, 40, 44, 50, 59,
nionship, 9); racional, 105, 153; 85,97, 104, 109, 122, 131, 133,
romântico, 29, 49, 53, 59, 67, 142, 145, 152, 157-159, 168,
109, 171, 180, 187, 195-198, 174, 181, 182, 190, 191, 194,
203, 204, 211, 213, 214, 237; 199, 202, 211, 215, 225, 227;
sensual, 51; sensual/não sensual, amor no - 105, 156, 172, 173,
179, 219; simulado, 34, 118; 181, 187, 210; conceiro puritano
sublime, 51; amor beneuolentiae, do - 104; controlo do - 193;
188; amour raisonnable, 101; amour igualdade no - 173; felicidade no
vanité, 186; arte do (ArJ amandi) - 156, 159; liberalização do -
- 76; banalização do - 201; de- 194, 196, 198; por interesse, 193;
mocrarização do - 184; ética do recusa do - 147; casamento/
- 59, 227; exclusividade do - amor, 9, 27, 97, 119, 152, 167,
129; impossibilidade do - 227; 181, 220; casamento/solidão, 205;
indicadores do - 27; obstáculos como «companionship», 9, 203;
ao - 94; receptologia do - 63; como «instituição social», 211;
246 AMOR COMO PAIXÃO fNDICE TEMATICO 247

como «material love», 133, 173; IDADE MÉDIA, 34, 49, 50, 57, 62, 64, (do) século XVIII, 57, 96, 186; 222, 231-233, 237; pessoais, 11,
socialmente constituído, 104. 71, 73, 91, 148. manuais amorosos, 82; poesia, 12, 47, 69, 103, 158, 204, 206,
CLASSICISMO, 135; francês, 79, 130, IDEALIZAÇÃO, 83,101,102,180,217, 179; poesia trovadoresca, 57; 210, 227, 228; sexuais, 31, 33,
131, 159, 212. 219, 221, 228; idealismo alemão, romance, 10, 33, 36, 55, 63, 64, 34,147,148,149,157,166,181,
CÓDIGO, 86, 100, 119, 135, 143, 209, 212; tradição idealista, 87. 71, 96, 97, 102, 103, 138, 146, 204, 214, 215; sisrérnicas, 231;
218, 236; amor com código, 7, IDENTIDADE, 43, 221; conquista da - 150, 152, 154, 166, 186, 199, sociais, 12,47,60,76,131, 165,
64,77,82,94, 111, 138, 171; 78; perda da - 78, 132. 233; (pasroril) - 62; (episrolar) 217.
unidade do código, 135; códigos INCESTO, 128, 146. - 166; tratadística, 10. RELIGIÃO, 51, 66, 81, 103, 144, 232,
do (amor) - 32, 65, 71, 80, 83, INDIVÍDUO, 15, 16, 23, 24, 175, 181, MATRIMÓNIO - (vd. Casamento) 235.
87,122,127,215,219,225; (de 182, 224, 237; conceito de - 14, MORAL, 27, 67, 97,103,108,122,123, ROMANCE - (vd. Literatura)
comportamento) - 222; (da inti- 15, 175; indivíduo/estrutura so- 141, 11\4. 146, 152, 161, 162, ROMANTISMO (época), 155, 159, 167,
midade) - 104, 107, 130, 135, cial, 16, 136, 137, 181; individua- 174, 191, 206, 214, 224; colapso 169, 181, 184, 185, 191, 198,
148, 155, 163, 232; (do poder) lidade, 13, 17,23,28,41,44,62, da - 139; controlo da - 102; 200, 218, 228; alemão, 83, 176.
- 36; codificação (do amor), 63, 103, 130, 137, 142, 143, 155, declínio da 133; sexual vitoria- SÉCULO XVI, 147, 232.
65, 93; (da semântica amorosa) - 162, 175, 177, 183, 187, 191, na, 9; teoria da - 67, 134; con- SÉCULO XVII, 10, 21, 23, 32, 34-36,
36, 112; (da intimidade) - 38. 221; (do outro) - 103, 159; venções morais, 128, 134, 140; 42,49,51,52,56,57,59,62,63,
COMPORTAMENTO, 84, 90, 100, 148, (cultura da) - 221; (sociogénese etiquetas morais, 108; qualidades 71. 74, 75, 79, 91, 92, 96-98,
210, 222. da) - 13; individualismo, 14; (da morais, 153; «amor moral", 156; 103, 113, 116, 128, 130, 131,
COMUNICAÇÃO, 12, 14, 17, 19, 22, renascença) - 14; (do barroco) - moral puritana, 136, 156; mora- 137, 144, 148, 157, 161, 179,
27,30,39,47,67,68,118,119, 14, 17; Individualização (da pes- listas ingleses, 210. 197,232,237.
121, 143, 161, 164, 167, 169, soa), 15, 16, 17, 43, 108, 119, NAMORO - (vd. Sedução) SÉCULO XVIII, 9, 10, 16, 17, 23, 27,
188, 211, 235; amorosa, 34; indi- 129,135,157,177,180,181; (do NATUREZA, 95, 117, 146, 147, 148, 35, 42, 96, 97, 105, 132, 134,
recra, 27; íntima, 39,41, 68, 69, afecro) - 14; (da relação amorosa) 176; conceito de - 200; amor 136, 140, 146, 147, 148, 151,
157, 166, 215; pessoal, 211; blo- - 130; destino individual, 14, como - 139; regresso à - 102; 155, 157, 161, 162, 165, 166,
queio da - 165; códigos de - 143. superação da - 150; natureza/so- 171, 172, 175, 177, 179, 193,
12, 91; erro de - 165; fim da INFORMAÇÃO, 23-25, 27, 111, 113, ciedade (ou civilização), 134, 139. 227, 235.
confiança na - 165; isolamenro 119, 143, 164, 226, 233, 236; ÓDIO, 87, 88, 210. SÉCULO XIX, 52, 61, 169, 186, 193,
da - 68; liberdade de - 19, conceito de - 26; tratamento PAIXÃO, 29,54,55,71,73,75-78,84, 196, 197, 199, 200, 205, 213,
112; limites da - 164; renúncia auro-referencial da - 26, 226; in- 85,87,90, 94, 95, 98, 108, 115, 232.
à - 27; sinceridade na - 223; formação/comunicação, 164. 127, 138, 141, 145, 148, 162, SEDUÇÃO, 36, 64, 82, 137, 145, 224;
sucesso na - 26; meios de - 7, INTIMIDADE, 31, 37, 38, 40, 44, 105, 184,189,191,227,228,237 (vd. arte da - 36, 77, 88, 153; estra-
8, 19,20,21,26,30,33,35,36, 107, 133, 147, 157, 164, 178, tb. Amor paixão). tégia da - 92; seduror, 77, 82,
37,84, 112, 135, 179; (Simboli- 179, 185, 212, 218, 219, 237; PIETISMO, 136, 179. 92,93,138,141, 184, 190; (fim
camente generalizados), 7, 9, 14, alargamento da - 147; codifica- PLATONISMO, 78; amor platónico, 150. do) - 141.
17, 19, 20, 22, 30, 36,45,47, ção da - 38, 155, 228; intimi- POESIA (vd. literatura). SENSUALIDADE, 48,51,139,147,149,
66,67,111,156,212; incomuni- dade social, 175. PORNOGRAFIA, 150, 158, 159, 229; espuiritualizada, 187.
cabilidade, 140, 151, 161-163, INTERPENETRAÇÃO, 12, 13,233,235. PRAZER (Plaisir), 92, 113-120; enquanto SEXUALIDADE, 30, 32, 47, 51, 106,
166-169,171,235; inreracção co- ]ANSENISMO, 136. meio de comunicação, 116; culto 108, 147-149, 151, 153, 156-
municativa, 157; processos comu- LIBERDADE, 59, 60, 73, 107, 158, 199, do - 115; Ar! de Plaire, 115, 116, 159, 198, 214-216; exclusão da
nicativos, 33, 34, 166; (liberdade 223, 227, 234; de comunicação 118, 121, 137; relação amor/pra- - 153; libertação da - 150; va-
dos) - 33; comunicações não (vd. comunicação, liberdade de); da zer, 113, 119, 121, 125, 137, lorização da - 9,152,153,155;
verbais, 32. escolha amorosa, 58, 64, 190; do 143, 145, 159, 179,219. como fundamental do amor, 198;
COQUETTERIE, ll7, 121, 166. outro, 60; da recusa do amor, 187; PRIVADO, 16, 214; mundo, 29; vida atracção sexual, 154; cultura
CORTE]AMENTO (vd. tb. Sedução), 71, para dispor do próprio corpo, 128; privada, 37; privado/público, 214. sexual do mundo antigo (destrui-
76, 99. liberdades instirucionalizadas, 73. PURITANISMO, 136. ção da) - 147; instinto sexual,
DIREITO, 35, 178, 235; natural, 35, LIBERTINAGEM, 83; libertinos; 100; RAZÃO, 128, 144; relações amor/razão, 52, 148; interesse sexual, 154,
106, 182. ideário libertino, 144. 125-128. 159.
EROTISMO, 30, 31, 50, 187. LITERATURA, 9,10,51,77,80,96,97, RELAÇÕES, amorosas, 23, 119,145,190, SEXOLOGIA, 193, 209, 211.
EXCESSO, 71, 79, 84, 88-90, 120, 237. 133, 150, 161, 168, 175, 189, 212,234; (impossibilidade das)- SOCIEDADE, 11, 20, 22, 53, 54, 99,
FAMÍLIA, 51,68, 173, 174, 193, 196, 194, 199, 203, 215, 223, 229; 96; burguesas, 106; entre os sexos 133, 193, 206, 210, 227, 229;
206; vida familiar, 193, 196. amorosa da renascença, 55, 56; (reforma das), 132; extrarnarrirno- impessoal, 11; de massas; 11;
FRIVOLIDADE, 51, 102, 141, 145, 146, alemã, 142, 152, 155; árabe, 55; niais, 58,194; impessoais, 11, 12, moderna, 7, 11, 36; tradicional; 7;
179. contem porânea, 68; francesa, 57, 47, 204, 217, 218, 221, 228; sociedade/indivíduo, ll, 14; socia-
GALANTERIA, 63, 92, 99, 100, 102, 102, 150; inglesa, 107; romântica, íntimas, 12, 38, 39, 44, 47-50, bilidade, 41, 85; diferenciação
108, 114, 117, 121, 137, 145, 176, 187; sentenciosa, 10; sobre a 54,66,99, 103, 106, 125, 132, social, 14; esrrarificação social, 49,
153, 175, 179, 189,212. mulher, 102; de entretenimento, 149, 158, 163, 165, 174, 191, 99; comportamento social, 134;
HISTÓRIAS DE AMOR, 99, 148, 186. 204; (do) século XVII, 96, 190; 207, 209, 211-214, 219, 221, condicionalismos sociais, 205;
248 AMOR COMO PAIXÃO

controlo social, 197, 209, 211, SUBMISSÃO, 78, 79, 86, 187, 226, 234;
222; reflexividade social, 96, 107, auro-submissão, 77, 79. ÍNDICE
182; regressão social, 210; subsiste- SUBLIMAÇÃO, 48, 95, 148.
mas sociais, 15; loving society, 225. VIRTUDE, 33, 74,138, 145; elogio da-
SOCIOLOGIA, 7, 8, 127,202,209. 132; consciência da - 168.

Nota de apresentação VII

7
Prefácio

Capítulo I Sociedade e indivíduos: relações


pessoais e impessoais 11

Capítulo II Amor como meio de comunicação


simbolicamente generalizado 19

Capítulo III Evolução das possibilidades de co-


municação 39

Evolução da semântica do amor 47


Capítulo IV

Capítulo V Liberdade para o amor: do ideal ao


paradoxo 55

Capítulo VI Retórica do excesso e experiência


da instabilidade 71

Capítulo VII Da galanteria à amizade 99

Distinção condutora: Plaisir/Amour 111


Capítulo VIII

Amor contra razão 125


Capítulo IX
250 Colecção
MEMÓRIA E SOCIEDADE

Capítulo X No caminho da individualização: AAVV


processo de fermentação no Estudos Portugueses
século XVIII 129 Homenagem a Luciana Stegagno Picchio
Almeida, Pedro Tavares de
Capítulo XI Inclusão da sexualidade 144 Eleições e Caciquismo
no Portugal Oitocentista (1868-1890)
Capítulo XII A descoberta da
Bourdieu, Pierre
incomunicabilidade 161 O Poder Simbólico

Capítulo XIII Amor romântico 171 Cabral, João de Pina


Os Contextos da Antropologia
Capítulo XIV Amor e casamento: para a Chartier, Roger
ideologia da reprodução 193 A História Cultural
entre Práticas e Representações
Capítulo XV E agora? Problemas e alternativas 209 Crespo, Jorge
A História do Corpo
Capítulo XVI o amor como sistema de
interpenetração 231 Geertz, Clifford
Negara. O Estado Teatro
no Século XIX
índice de autores 239
Ginzburg, Carlo
índice temático 245 A Micro-História e Outros Ensaios
Godinho, Vitorino Magalhães
índice 249 Mito e Mercadoria, Utopia
e Prática de Navegar
Oliveira, António
Poder e OposiçãoPolítica em Portugal
no Período Filipino (1580-1640)
Revel, Jacques
A Invenção da Sociedade

A publicar:

Burke, Peter
Antropologia Histórica
Dunning, Eric e
Elias, Norbert
A Busca da Excitação
Elias, Norbert
)
A Condição Humana
Shils, Edward
Centro e Periferia

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