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Quem tem medo de Mary Burns?

A questão da relação entre teoria e pesquisa na


Sociologia

Mary Burns foi uma irlandesa, analfabeta, operária da fábrica têxtil Ermen & Engels,
em Manchester, Inglaterra, de que a família de Friedrich Engels era sócia. Como é
sabido, Engels foi o parceiro intelectual de Karl Marx, ambos considerados pais
fundadores do socialismo científico. Engels tornou-se amante de sua operária, algo que
os socialistas sempre criticaram e do que sempre se envergonharam. Era esse um modo
dos patrões não só explorarem economicamente seus trabalhadores, mas de os
explorarem moralmente através do desfrute sexual de suas filhas. Acabaram vivendo
juntos. No entanto, foi ela quem o conduziu pelos cortiços e favelas de Manchester onde
viviam miseravelmente os trabalhadores irlandeses e onde ele nunca conseguiria entrar,
dada a hostilidade dos trabalhadores aos patrões e aos não irlandeses. Foi ela quem, ao
longo da vida, municiou Engels com os detalhes da mentalidade e do modo de vida dos
operários locais, a miséria material e moral de sua vida cotidiana. Foi ela quem revelou
a Engels o que era a carne da ossatura filosófica das teses e ideias dos jovens
hegelianos. Nem Engels nem Marx jamais mencionaram em seus escritos que foi Mary
Burns quem os alertou para a carência de dimensão empírico-indutiva no que hoje se
chama, mais apropriadamente, de sociologia marxiana. No entanto, a involuntária
participação de Mary Burns na vida intelectual de Engels foi decisiva para a elaboração
do primeiro estudo de sociologia urbana, seu livro sobre A Condição da Classe
Trabalhadora na Inglaterra. Engels, aliás, contrabandeava as informações de Mary
Burns para Karl Marx, em Londres, cujo desconhecimento da realidade empírica da
classe operária, que ele pretendia explicar, atrasara em muitos anos o desenvolvimento
de sua explicação científica sobre a formação e a dinâmica das classes sociais. Ele intuía
filosoficamente, mas não conhecia sociologicamente. Aliás, essa é uma das razões pelas
quais a classe operária do sedentário Karl Marx, não obstante Mary Burns, é uma classe
operária filosófica, puramente teórica, como mostrou Agnes Heller, que foi assistente de
Georgy Lukács. Diferente do que ocorreu com a obra de Engels,aqui mencionada.

Formulei o tema desse modo porque a sociologia brasileira vem passando por um
complicado processo de perda de referência empírica. Os jovens sociólogos tendem a
fazer uma sociologia que desdenha a pesquisa empírica cuidadosa e tecnicamente
consistente, quase sempre têm aversão ao trabalho de campo, resistem ao amassar o
barro nas veredas do sertão e nas ruas imundas dos bairros pobres. Acabam no beco sem
saída de uma sociologia dedutiva e filosofante de que resultam estudos em que não se
sabe qual é a diferença entre Arapiraca e Paris. Uma das fortes características da
tradição sociológica é, justamente, a de trabalhar as singularidades de cada sociedade no
marco de sua universalidade, nas enormes diferenças sociais, históricas e culturais que
há entre sociedades. Daí resulta uma sociologia que, não raro, é mera cópia simplificada
do já dito alhures a pretexto de ser densa interpretação teórica. O real que se encaixe no
pretensamente teórico. Esquecem-se que as grandes descobertas teóricas das Ciências
Sociais foram feitas no trabalho de campo, como é o caso do "insight" de Lévy-Strauss
numa conversa com um índio durante a pesquisa de campo no norte do Mato Grosso,
que o levou à formulação do estruturalismo. Ou o "insight" de Henri Lefebvre sobre a
tripla dimensão dialética do espaço quando fazia sua pesquisa sociológica sobre as
cidades como motorista de táxi, sua técnica de pesquisa para penetrar nas incógnitas do
vivido.

José de Souza Martins [maio de 2011]

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