Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Linguagem
Linguagem
Música
Para os antigos gregos, a música acompanhava diversas atividades humanas e, dentre elas, as
representações teatrais, com a utilização
de coros, e a poesia, sempre declamada por um aedo com o acompanhamento de liras. Daí o
surgimento da expressão “poesia lírica”.
As cantigas de amor representam o amor espiritual e eterno de um trovador por uma Dama
(ou Dona). Por não ser correspondido, em virtude da diferença de classes sociais, esse amor
provoca sofrimento e desejos de morrer no trovador, que não revela a ninguém seu
sentimento por respeito à amada.
Esse modelo de amor consagrou-se ao longo dos séculos, sendo expresso em diversos
romances, poemas e composições musicais. Amor passou a rimar com dor, morte, sonhos,
segredos. É fácil notar a influência das cantigas de amor na música popular brasileira quando
comparamos as letras das cantigas de amor com a música “Meu Bem Querer”, de Djavan.
A dona que eu am’e tenho por senhor
Outra modalidade de cantiga trovadoresca que marca o nosso cancioneiro popular são as
cantigas de amigo. Apesar de compostas e cantadas por trovadores, o eu lírico constituído é
feminino. Essas cantigas representam a relação amorosa entre um homem fidalgo ou cavaleiro
(da Corte) e a mulher aldeã (camponesa ou pastora). O amor, nesse caso, é carnal e, após a
entrega amorosa, a mulher é abandonada pelo homem amado. Suas confidências e lamentos
são temas das cantigas de amigo.
São várias as referências, na música popular brasileira, a essas fontes. No entanto, o mais
comum, nos meios acadêmicos, é associar as cantigas de amigo às composições musicais de
Chico Buarque de Holanda, artista que é comumente chamado de “trovador”. Além de suas
músicas fazerem referência aos mesmos temas, há a coincidência de Chico Buarque emprestar
sua voz para o eu lírico feminino que ele traduz.
Ai, Deus, que doo que eu de mí hei, porque se foi meu amigu'e fiquei pequena e del
namorada.
Ai Deus, que dó que eu de mim tenho, porque se foi meu amigo e fiquei sozinha e dele
enamorada.
(Paráfrase)
(...)
O seu homem foi-se embora,
Prometendo voltar já.
Mas as ondas não têm hora,
Morena,
De partir ou de voltar.
Passa a vela e vai-se embora
Passa o tempo e vai também.
Mas meu canto ‘inda lhe Implora,
morena,
Agora, morena, vem.
(...)
Estudos mais recentes têm estabelecido uma relação entre as cantigas de escárnio e maldizer
e as letras dos funks cariocas. Compostas pelos mesmos trovadores medievais, essa
modalidade de cantigas tinha o objetivo específico de satirizar figuras da Idade Média e criticar
determinados comportamentos sociais, como se identifica, hoje, no funk. Trata-se, no caso, de
uma proposta de processo criativo e não de influências diretas dos textos medievais sobre
essas manifestações culturais específicas.
As influências literárias sobre a música popular brasileira não se limitam a uma retomada
direta – a que se chama intertextualidade – de elementos dos textos poéticos. As propostas
estéticas dos movimentos literários também deixaram modelos que são assimilados pela
sociedade e se repetem na música contemporânea.
Nas composições abaixo, é apresentado um dos temas mais constantes do Romantismo: a dor
da separação.
(...)
Nos anos 70, o cenário musical brasileiro estava limitado pela censura. Alguns compositores,
como Chico Buarque, conseguiam ludibriar os censores com metáforas difíceis de serem
interpretadas e enviavam à nação suas mensagens contra a ditadura. No entanto, a maior
parte dos artistas não encontrava espaço para criar livremente. É nesse período que invadem
as rádios músicas nas quais podem ser identificadas as marcas do movimento literário
denominado Arcadismo, o qual pregava a simplicidade da vida no campo, o amor tranquilo, a
abdicação dos ideais revolucionários.
Há uma interessante relação entre história, literatura e música que podemos estabelecer. No
século XVIII, época do Arcadismo, o mundo vivia uma grande revolução. A burguesia assumiu o
poder com a Revolução Francesa (1789) e ameaçava as monarquias constituídas. No mesmo
ano, a Coroa portuguesa debelava uma revolta, no Brasil, contra a cobrança de impostos
abusivos, revolução essa que ficou conhecida como Inconfidência Mineira.
No entanto, a poesia, indiferente a esses fatos, tratava de temas bucólicos. Em nosso país, algo
semelhante acontecia na década de 70: em meio a revoltas contra a ditadura, a música que
fazia sucesso nas rádios também pregava o equilíbrio, a serenidade, a paz da vida no campo.
Em 1971, Elis Regina gravou a música “Casa no Campo”, de Zé Rodrix e Tavito: “Eu quero uma
casa no campo / Onde eu possa compor muitos rocks rurais / E tenha somente a certeza / Dos
amigos do peito e nada mais / Eu quero uma casa no campo / Onde eu possa ficar do tamanho
da paz (...)”. Em 1975, o cantor Gilson fez sucesso com uma composição sua e de Joran
chamada “Casinha Branca”, que repetia os ideais árcades: “Eu queria ter na vida simplesmente
/ Um lugar de mato verde / Pra plantar e pra colher / Ter uma casinha branca de varanda / Um
quintal e uma janela / Para ver o sol nascer”. Relançada recentemente, a música “Além do
Horizonte” (1975), de Eramos Carlos e Roberto Carlos, retoma os elementos estéticos da
literatura árcade.
(...)
(fragmento)
(...)
Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo:
Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!
A proposta do eu lírico, nas três composições, é a mesma: um convite à amada para viverem
juntos uma vida simples no campo.
Há muito a música foi incluída nos estudos acadêmicos em comparação com a literatura. A
importância das composições musicais brasileiras foi reconhecida pelos institutos de Letras e,
hoje, é possível estudar tanto uma relação entre os dois tipos de arte – literatura e música –
quanto reconhecer que a letra de uma música pode, sim, ser considerada poesia.
Vários críticos literários têm se dedicado ao tema, entre eles, José Miguel Wisnik e Luiz Tatit.
Ambos consideram que a música brasileira conquistou um lugar tão especial quanto o que
vinha sendo ocupado pela poesia.
O surgimento, na segunda metade do século XX, de artistas como Chico Buarque, Caetano
Veloso, Antônio Cícero, reafirma esta singularidade da cultura brasileira. Eles, e outros,
alternam e combinam a atividade de músicos com intervenções importantes na cultura
letrada. Chico Buarque através de romances, Caetano Veloso em ensaios e Antônio Cícero em
livros de filosofia e poesia.
(http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2006/11/05/wisnik-bosco-falam-sobre-cancao-
14910.asp)
uiz Tatit, professor da USP, poeta, letrista e cantor, no documentário “Palavra (en)cantada”, de
Helena Solberg e Marcio Debellian, busca referências mais internas da relação entre música e
poesia e lembra que a canção depende basicamente da melodia da fala, especialmente no
Brasil, país de forte tradição oral.
O poema concreto, estudado na aula 8 em sua relação com as artes plásticas, mais uma vez se
destaca em nossos estudos, visto serem estabelecidas relações entre a estética concretista e
as músicas do Tropicalismo. O poeta concretista Augusto de Campos, em matéria de jornal,
elogiou a música “Boa Palavra”, de Caetano Veloso, composta em 1966.
Caetano Veloso, reconhecido como um dos maiores poetas da música brasileira, curiosamente
é associado ao movimento concretista com a mesma frequência com que é apontado como o
mais barroco de nossos compositores. Sem dúvida, o trabalho com a linguagem elaborado por
Caetano Veloso faz merecer a denominação de poesia para as letras de suas canções.
Todos os teóricos reconhecem que, hoje, quem discute música é o crítico de literatura e o
acadêmico, os quais deslocam, com frequência, seu centro de interesse do livro para a música.
Silviano Santiago apresenta uma explicação para esse fato: “o atraso da literatura com relação
a outras formas de expressão artística”. E explica:
Tal atraso tem sua razão de ser no fato de a nova geração olhar com tremendo pouco caso a
comunicação verbal e de considerar ainda com violento desprezo o que se define hoje como
escritura. E também porque, do ponto de vista sociológico, estejamos diante de uma geração
que curte o gregário, estando, pois, impossibilitada de aceitar a regra maior para a leitura do
texto literário, a solidão. (SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre
dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.)
Não há dúvida de que a música assumiu um lugar de destaque na pirâmide da cultura nacional.
É verdade que, tendo razão Silviano Santiago, isso é consequência de um comportamento
cultural negativo, que é a autodestruição de nossa existência como leitores críticos e
competentes. Talvez por isso poetas transitem entre o texto e a música, como Antônio Cícero
e Arnaldo Antunes. Seja como for, temos sido presenteados com poemas em forma de música
por Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Adriana Calcanhoto, Lenine, Zeca
Baleiro, Zélia Duncan, Ana Carolina e tantos outros compositores que têm assumido a missão
de desenvolver a nossa cultura contemporânea. Quem sabe não seja a hora de trilharmos o
caminho de volta: reconhecer, através da música, o valor da poesia e voltarmos a ser leitores
críticos e competentes?