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O pensamento estético de Kant

Rogério Arantes1

Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,


Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Porque sequer atribuo eu
Beleza às coisas.

Uma flor acaso tem beleza?


Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe
Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então porque digo eu das coisas: são belas?

Alberto Caeiro2

1. Introdução

Gostaria de iniciar a minha fala agradecendo imensamente o DA de Filosofia do


Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora pelo convite. É uma honra e ao mesmo
tempo uma grande responsabilidade estar aqui para falar um pouco sobre o pensamento
estético de Kant. O que proponho é apontar para vocês alguns aspectos que considero
relevantes e significativos dentro da estrutura da terceira Crítica. Antes de iniciar a
exposição sobre a obra, faz-se necessário, contudo, um breve esclarecimento acerca do
próprio termo estética, da maneira pela qual ele aparece em Kant. Já na Crítica da
Razão Pura, temos uma seção chamada Estética Transcendental que, apesar do nome,
nada tem a ver com a Estética da qual tratarei na presente apresentação. Para que fique
1
Possui Licenciatura e Bacharelado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Atualmente é mestrando em Filosofia, na linha de pesquisa em Estética e Filosofia da Arte, pela
Universidade Federal Fluminense (UFF), sob orientação do Prof. Dr. Vladimir Vieira. Membro do
Núcleo de Pesquisas em Estética e Filosofia da Arte da UFF e do Núcleo de Pesquisas em Filosofia
Clássica Alemã (NUFCAL) da UFJF, ambos cadastrados no CNPq. E-mail para contato:
rogeriogauche@gmail.com O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa Nacional de
Cooperação Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
CAPES/Brasil.
2
In: PESSOA, 2012, pp. 65-6.

1
clara a distinção entre as duas estéticas: na primeira Crítica o termo aparece referindo-
se às capacidades sensíveis de conhecimento do ser humano, é uma estética passiva, que
somente recebe os dados da experiência. Já no sentido em que aparece na terceira
Crítica e também no qual usarei aqui, a Estética é uma tentativa de pensar o que há de
racional no sensível e não sem motivo tem sua ''segunda vinda'' datada justamente no
pensamento alemão de meados do século XVIII3. Sobre a extrema importância ocupada
pela obra que trabalharei a seguir, é esclarecedor o comentário de Marco Aurélio Werle:

Com Kant, […] acaba o domínio das estéticas prescritivas, das poéticas e das teorias
da arte, da ideia de imitação como cópia do exterior e ganham espaço as estéticas
especulativas, pois agora a tarefa da estética consiste em partir do próprio sensível
para examinar como nele se instaura a racionalidade. A operação de Kant liquida
com a ideia de que para fazer arte se deve partir de uma teoria pré-estabelecida,
anterior à sensibilidade (WERLE, 2005, p. 138).

2. As duas Introduções à Crítica do Juízo e o aparecimento do juízo reflexionante

Uma primeira peculiaridade da terceira Crítica de Kant aparece logo em sua


Introdução, quer dizer, em suas Introduções. A obra, publicada em 1790, possui uma
primeira Introdução que acabou sendo descartada por Kant. Mais do que analisar aqui
os motivos da escrita da segunda Introdução, quero falar de um conceito que aparece
tanto na primeira, quanto na segunda Introdução: o juízo reflexionante. Além disso,
falarei também da separação entre os dois domínios da Filosofia, entre entendimento e
razão, filosofia teórica e filosofia prática, outro tema comum nas duas Introduções.
Na Crítica da Razão Pura, publicada em 1781 e depois, com algumas alterações,
em 1787, Kant defende a cisão sensível/suprassensível do homem e estabelece uma
dupla causalidade: a da liberdade e a da natureza ou da necessidade. Isso aparece na
terceira antinomia. [explorar/explicar]. Ou seja, é justamente esse problema, que
aparece já na primeira Crítica, que é retomado por Kant nas Introduções da terceira
Crítica. Cito um trecho da seção II, da segunda introdução:

3
A ideia de uma ''segunda vinda'' da Estética no século XVIII aparece em Benedito Nunes. Cf.
FIGUEIREDO, 2010, p. 75.

2
Ainda que na verdade subsista um abismo intransponível entre o domínio do
conceito da natureza, enquanto sensível, e o do conceito de liberdade, como supra-
sensível, de tal modo que nenhuma passagem é possível do primeiro para o segundo
(por isso mediante o uso teórico da razão), como se se tratasse de outros tantos
mundos diferentes, em que o primeiro não pode ter qualquer influência no segundo,
contudo este último deve ter uma influência sobre aquele, isto é, o conceito de
liberdade deve tornar efetivo no mundo dos sentidos o fim colocado pelas suas leis e
a natureza em consequência tem que ser pensada de tal modo que a conformidade a
leis da sua forma concorde pelo menos com a possibilidade dos fins que nela atuam
segundo leis da liberdade (KANT, 1993, p. 20).

Kant, também na primeira Crítica, já nos fala acerca dos juízos, porém, na
referida obra, os juízos são determinantes, quer dizer, são juízos que apontam
diretamente para o objeto, determinando o que ele é, gerando conceitos. Não é sem
motivo que as preocupações de Kant, nesta obra, estejam voltadas especificamente ao
âmbito do conhecimento, à legislação do entendimento. Os juízos determinantes, no seu
atuar, fazem com que a imaginação fique mecanicamente subordinada ao entendimento,
como uma vassala. Já no caso dos juízos reflexionantes, trabalhados por Kant nas duas
Introduções da terceira Crítica, essa subordinação deixa de existir e o contato entre
imaginação e entendimento passa a ocorrer de maneira harmônica. O caráter mecânico é
abandonado, dando lugar a um caráter técnico, não conclusivo, mas sim reflexionante.
Tendo mente essa distinção entre a causalidade da liberdade e a causalidade da
necessidade, bem como a distinção entre os juízos determinantes e os juízos
reflexionantes podemos adentrar então na terceira Crítica. Para além das Introduções, a
obra é dividida em duas grandes partes: a Crítica da faculdade do juízo estética e a
Crítica da faculdade do juízo teleológica. Nessa apresentação falarei da primeira parte.
Como Kant procurou mostrar que é possível a causalidade da liberdade possuir efeitos
dentro da natureza? Por que sentimos prazer quando da relação harmônica entre
imaginação e entendimento? Pode o sentimento do belo reivindicar uma universalidade?
E onde, nessa estrutura estética do juízo, entraria a arte? A busca de dar indicações para
essas questões é a meta da minha apresentação.

3. A Analítica do Belo

3
A Analítica do Belo, parte inicial da Crítica da faculdade do juízo, é constituída
de quatro momentos distintos que fazem referência à tábua de categorias da Analítica
Transcendental, sendo assim, os momentos da qualidade, quantidade, relação e
modalidade. Kant procura definir, assim, o que seria o sentimento do belo,
posicionando-se em relação à discussão estética de sua época, que contrapunha uma
visão sensualista e outra visão perfeccionista do belo (rejeitando, como veremos,
ambas) e fazendo valer o dado transcendental de sua Estética.
No primeiro momento do juízo de gosto (§§1-5), segundo sua qualidade, Kant
estabelece que o juízo de gosto deve ser independente de todo interesse. Para justificar
essa característica, ele procura mostrar que quando se ajuiza acerca da beleza, não se
leva em conta a existência de qualquer objeto, mas somente a disposição de ânimo
causada pela complacência que determina o juízo, nesse sentido, Kant diferencia e
compara, nos §3-5, os juízos acerca do belo, do agradável e do bom. [explicar/exemplo
da fome/do palácio].
No segundo momento do juízo de gosto (§§6-9), segundo sua quantidade, Kant
diz que o juízo de gosto, paradoxalmente, é um tipo de juízo que pode reivindicar
universalidade, sendo, ao mesmo tempo, subjetivo e sem conceito. Por ser
completamente livre e desinteressado, tem-se o direito de esperar que a complacência
sem interesses presente no juízo de gosto, ocorra de forma semelhante em todos que
ajuizam. [explicar/exemplo do vinho, cada um tem seu gosto].
No terceiro momento do juízo de gosto (§§10-17), segundo a relação, a beleza é
entendida como a forma da conformidade a fins de um objeto. Ou seja, para Kant, não é
exatamente em um objeto (seja ele uma flor, um rio ou uma montanha) que se encontra
a beleza, mas sim na promessa de conformidade a fins que esse objeto nos dá [favor da
natureza (Gunst der Natur)]. Por não ser nenhum juízo de conhecimento, o juízo de
gosto relaciona-se com os objetos atraído por essa promessa, mas de fato não alcança o
que foi prometido, no entanto, a simples manutenção do estado dessa promessa é o que
causa prazer e propicia um clima harmonioso entre as faculdades do entendimento e da
imaginação, gerando assim a beleza. [mais do que a cor (que é carregada de
materialidade), a composição de tal coisa, sua forma, é o que faz a imaginação

4
reflexionar sobre o objeto e aí então, em sua relação harmônica com o entendimento,
julgá-lo capaz de despertar um sentimento de beleza (formalismo kantiano)]. Mostrarei,
mais adiante, que em relação aos objetos artísticos o raciocínio kantiano muda um
pouco, com o aparecimento das ideias estéticas.
No quarto e último momento do juízo de gosto (§§18-22), segundo a
modalidade, Kant procura mostrar que o juízo de gosto pressupõe uma necessidade de
que ele ocorra em todos os seres humanos. Como tal juízo não é objetivo, nem sequer
gera conceitos, como foi mostrado nos outros momentos, essa necessidade é subjetiva e
condicionada, e só pode ser esperada através da ideia de um senso comum da
humanidade. Daí a explicação kantiana desse quarto momento: ''Belo é o que é
conhecido sem conceito como objeto de uma complacência necessária'' (KANT, 1993,
p. 86). Essa universalidade subjetiva do belo toca num ponto abordado pelo comentador
português Leonel Ribeiro dos Santos:

A solução kantiana para o problema do gosto não passa, nem depende do


conhecimento, Kant garante uma universalidade e capacidade de comunicação
universal dos sentimentos. esse sentimento comunitário é mais originário do que a
capacidade de pensar e comunicar pensamentos ou ideias logicamente, desta forma o
sentimento estético está num plano mais fundo da subjetividade humana, a que Kant
chama o Gemüt (SANTOS, 2010, p. 61).

4. A Analítica do Sublime

Após a Analítica do Belo aparece a Analítica do Sublime, que constitui os §§23-


29 da terceira Crítica. Ainda que de bastante interesse, inclusive para o momento
contemporâneo da Estética e das artes em geral, o conceito de sublime foge um pouco
ao escopo dessa minha fala, portanto, deixarei apenas indicado o motivo dessa ''fuga'' e
passarei em seguida ao tópico que versa sobre o gênio e as ideias estéticas.
Diferentemente do que ocorre no ajuizamento sobre o belo que, como vimos
acima, necessita de uma relação harmônica entre imaginação e entendimento, relação
essa que proporciona um prazer a partir da promessa de adequação que essa própria
relação nos dá, o ajuizamento acerca do sentimento do sublime, ainda que também

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reflexionante, como todo juízo estético, pelo fato de não possuir conceito, ocorre
levando em conta não a relação entre imaginação e entendimento, mas sim entre a
faculdade da razão e a imaginação. No sublime, a faculdade da imaginação é levada a
seguir adiante na apreensão de novas intuições – até que seja atingido um ponto máximo
a partir do qual não é possível mais compreendê-las simultaneamente no ânimo. O
sujeito percebe, então, esse fracasso através de um sentimento de desprazer ao qual se
segue o prazer de tomarmos consciência de que somos entes morais. Em outras
palavras: se para a obtenção do sentimento do belo ocorre um livre jogo entre a
faculdade da imaginação e o entendimento, para que possamos obter o sublime o que
deve ocorrer é uma inadequação sensível da imaginação, um limite, que é como que
suplantado pela razão. A harmonia entre imaginação e entendimento nos proporciona o
belo, o conflito entre imaginação e razão, o sublime.

5. O gênio e as ideias estéticas

O último tópico que abordarei será então a noção de gênio presente no


pensamento kantiano, em especial no §46, e o papel das chamadas ideias estéticas, que
aparecem no §49. Aliás, é somente nessa parte final da Crítica da faculdade de juízo
estética, mais especificamente entre os §§43-54, que questões relacionadas diretamente
à arte aparecem.
Kant, afirmando a não determinabilidade e não conceitualização do belo, diz no
§44 que não pode existir uma ciência bela, pois o que deve ser decidido cientificamente
parte de juízos teóricos e determinantes, e colocar a beleza dentro desse ramo seria tirar
justamente o seu caráter reflexionante e autônomo, como vimos acima. Confirmando
esse ponto aparece em seguida o §45, que eu sugiro chamar de ''parágrafo do 'como se'
(als ob)''. Vimos, na Analítica do Belo, a forte relação do sentimento do belo com a
natureza. Como venho subrepticiamente apontando, até chegarmos nesse último tópico
a preocupação kantiana central não era especificamente com a arte, mas sim com a
maneira pela qual a estrutura transcendental do sujeito capta a beleza, e nesse sentido
vimos que a beleza é encontrada na natureza, porém, não na natureza meramente

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mecânica e causal, mas sim nessa natureza que nos dá uma promessa, sempre e
novamente reafirmada pela relação harmônica entre imaginação e entendimento. Ora,
essa maneira de se relacionar com a natureza, faz com que ela, em seus objetos
considerados belos, como a flor, a serra mineira ou qualquer outro, nos passe uma
sensação de que ela possui – misteriosamente – uma certa liberdade, que poderia ser
pensada como se fosse a liberdade que a arte, através da vontade do artista, possui, quer
dizer, como se tivesse a capacidade de gerar espontaneamente uma série causal, e isso
nos dá prazer. O que Kant vai nos dizer no §45 é que, além dessa suposição de pensar a
natureza como se fosse arte, também podemos fazer o caminho contrário, e pensar a arte
como se fosse natureza, ou seja, como se não tivesse que obedecer nenhuma regra
interna do ânimo, como têm de fazer, por exemplo, a faculdade do entendimento, para
que possa gerar conceitos, mas também a arte, dado que uma arte sem nenhuma regra,
segundo Kant, também não configura-se como arte.
Quem realiza, de fato, a obra de arte, para Kant, é o gênio (§46). E mais uma vez
a relação direta com a natureza aparece, pois a definição kantiana do gênio é a seguinte:
''Gênio é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte''
(KANT, 1993, p. 153). O que Kant pretende mostrar é que o gênio não cria suas obras a
partir de regras próprias, que passariam a servir de modelo a ser imitado por outros, isso
seria a negação de toda a estética kantiana, pelo contrário, o gênio apenas recebe da
natureza a disposição para criar uma arte bela e, ao fazê-lo, não consegue explicar
conceitual e racionalmente como o fez. É nesse sentido que Kant distingue, por
exemplo, a arte da ciência: um cientista consegue remontar, passo a passo, todo e
qualquer experimento que ele porventura venha a realizar, o gênio, por sua vez, pode
criar uma belíssima obra de arte hoje e amanhã, se vierem lhe perguntar como fez tal
coisa, ele não saberá recompor todo o caminho, e isso não será nenhum demérito, mas
sim a confirmação de que a arte, para Kant, não pode ser reduzida a explicações teóricas
e racionais, ela é singular.
Por fim, o que marca de maneira forte essa disposição do gênio e faz da arte algo
inesgotável, dentro do pensamento kantiano, é o aparecimento, no §49, das chamadas
ideias estéticas. Tais ideias seriam justamente as ideias originais do artista, que, tanto no

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contato com outras obras geniais, quanto no contato direto com a natureza cria
representações que não podem ser determinadas, enclausuradas em um conceito, mas
sim, dão muito o que pensar, isto é, geram obras que nos dão uma infinita e inesgotável
possibilidade de interpretação, mostrando assim a diferença entre o belo natural e o belo
artístico: aquele nos dá prazer por uma promessa de conformidade a fins, que nunca é
alcançada, mas que justamente por isso mantém imaginação e entendimento em uma
relação harmoniosa, prazerosa, que não chega a nenhum conceito, este, por sua vez,
através das ideias estéticas concebidas pelo artista genial, nos dá infinitas
possibilidades, não ficando na mera promessa, porém estas possibilidades também não
se determinam, não podem ser conceituadas.

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Referências

FIGUEIREDO, Virgínia. Kant: liberdade da forma e forma da liberdade. In:


HADDOCK-LOBO, Rafael (Org.). Os filósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução: Valerio Rohden e António


Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.

PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro: obra poética II. Organização,


introdução e notas: Jane Tutikian. Porto Alegre: L&PM, 2012. pp. 65-6.

SANTOS, Leonel Ribeiro dos. A concepção kantiana da experiência estética:


novidades, tensões e equilíbrios. Trans/Form/Ação, Marília, v. 33, n. 2, pp. 35-76, 2010.

WERLE, Marco Aurélio. O lugar de Kant na fundamentação da estética como


disciplina filosófica. Revista Dois Pontos, Curitiba, São Carlos, v. 2, n. 2, pp. 129-143,
2005.

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