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Escoliose #01

O TEMPO E A OSGA

“​Sim, também eu não sou o mesmo de ontem. A única coisa que em mim não muda é o
meu passado: a memória do meu passado humano. O passado costuma ser estável, está
sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre. (Eu acreditava nisto antes de conhecer
Félix Ventura)​” (p. 65).

O trecho acima faz parte do capítulo “A filosofia de uma osga”, do livro O Vendedor de
Passados, do escritor angolano José Eduardo Agualusa (1960 - ). Essa é a indicação de
estreia dessa coluna torta, ou melhor, dessa Escoliose. Indicarei por aqui, mensalmente,
algo relacionado ao mundo da Literatura, leituras atuais e antigas, feitas sempre de forma
torta e interessada.

Na FLIP do ano passado, como bom marinheiro de primeira viagem, fui descobrindo novas
e interessantes vozes do mundo literário, e a de José Eduardo Agualusa me fisgou de um
jeito bem forte. Ele lançava, na época, seu romance Sociedade dos Sonhadores
Involuntários (2017), que acabou sendo minha porta de entrada em seu mundo onde sonho
e realidade, história e ficção, interpenetram-se e geram sempre inusitadas personagens e
histórias. Ainda no ano passado li também Barroco Tropical (2009) e Milagrário Pessoal
(2010). Este ano, de novo na FLIP, consegui a nova edição brasileira de O Vendedor de
Passados, lançado originalmente em 2004. Não foram necessários mais do que quatro dias
para que eu terminasse a leitura.

Nesses dias conheci a história de Félix Ventura, esta personagem que, como aludido na
citação acima, consegue fazer do passado algo não tão estável como se pode imaginar. É
que este negro albino tem por profissão a comercialização de novos passados, a recriação
de árvores genealógicas. Mas quem são seus clientes? Membros da elite emergente de
uma Angola independente (o país natal de Agualusa conseguiu ver-se livre da colonização
portuguesa somente em 1975). Isto já evidencia, de forma bem clara, uma das
peculiaridades da escrita de Agualusa: um aguçado espírito crítico e conhecimento histórico
acerca de seu próprio país, aliados a uma imaginação poética e inusitada na criação de
histórias aparentemente inverossímeis, mas facilmente cativantes.

Um dos pontos de maior destaque do livro, contudo, aparece em seu narrador, o que me fez
repensar o tempo e descobrir uma palavra nova! O narrador é Eulálio, um ex-humano e
atualmente uma osga, que vive na casa de Félix Ventura. (Sim, até então eu não sabia que
uma osga é uma lagartixa). Através das filosofias e observações dessa simpática osga o
enredo vai sendo desenvolvido e aos poucos vai se tornando quase inevitável não
questionar maneiras lineares de se pensar o tempo e a história. As metamorfoses temporais
efetuadas por Félix Ventura, bem como os interlúdios oníricos de Eulálio nos transportam a
um espaço onde a imaginação pode falar mais alto, sem bloqueios ou limitações.

Referência: AGUALUSA, José Eduardo. O Vendedor de Passados​. São Paulo: Planeta do


Brasil, 2018. 208 p.

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